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Editora Lumen Juris
Rio de Janeiro
2014
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO - Prof. Dr. Paulo de Tarso Brandão ................... IX


PREFÁCIO - Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa ........................ XI
PREFÁCIO - Prof. Dr. Paulo Cesar Busato ................................. XIII
NOTA DOS AUTORES ................................................................ XIX
PARA QUE(M) SERVE O DIREITO PENAL? - Uma análise criminológica
da seletividade dos segmentos de controle social ........................... 1
1. Para introduzir o tema....................................................... 1
2. Para que (m) serve o Direito Penal? ................................. 13
3. Os segmentos informais de controle social ....................... 26
3.1 Primeiro Segmento do Controle Informal:
família (Pai e mãe, onde vocês estão?) .............................. 29
3.2 Segundo Segmento do Controle Informal:
escola (Ensinar ou educar?) ............................................... 38
3.3 Terceiro Segmento do Controle Informal:
mídia (Você assiste; eu controlo!) ..................................... 51
3.4 Quarto Segmento do Controle Informal:
religião (Quanto custa a sua fé?) ....................................... 72
3.5 Quinto Segmento do Controle Informal: moda,
modismo e hiperconsumo (Não queremos ficar
à margem!) ......................................................................... 79
3.6 Uma reflexão (a) final ................................................. 84
4. Os segmentos do controle social institucionalizado ......... 86
4.1 Primeiro Segmento do Controle Formal:
a lei penal como instrumento de regulação
da coexistência social ........................................................ 95
4.1.1 O Processo de Criminalização Primária................. 99
4.1.2 A desigualdade refletida em outros ramos do direito:
critérios para a (des) legitimação da norma penal ....... 119
4.1.3 Cifras da Ineficiência da Justiça:
a questão da Cifra Negra da Criminalidade ................. 131
4.2 O Processo de Criminalização Secundária ................ 140
4.2.1Segundo Segmento do Controle Formal: as polícias
(Crimes combatidos ou pessoas perseguidas?) .............. 143
4.2.2 Terceiro Segmento do Controle Formal:
o Ministério Público e o Poder Judiciário ..................... 159
4.2.3 Quarto Segmento do Controle Formal: a prisão
(o instrumento central de controle social) ................... 171
4.2.3.1 A (des) integração social do condenado:
uma análise de “quem punir” por meio do cárcere ... 173
4.2.3.2 A (des) integração social do condenado:
uma análise de “como punir” por meio do cárcere ... 186
4.2.3.3 Ambiente carcerário e fatores criminógenos:
discurso preventivo, prática repressiva ..................... 188
4.2.3.4 A Violência intramuros: o panoptismo
disfuncional no (des) controle interno da prisão ...... 196
4.2.3.5 A crise da ideologia do tratamento
ressocializador ........................................................... 201
5. Palavras Finais ................................................................ 211
6. Referências das fontes citadas ........................................ 225
XIX

NOTA DOS AUTORES

Chegou a hora do esquecimento. Chegou o tempo de de-


saprender os saberes outrora aprendidos. Com esta proposta, o
filósofo francês Roland Barthes provocou espanto na academia,
já que o esquecimento nos traduz, vulgarmente, a ideia de perda,
desapego e empobrecimento, o que é oposto ao sentido de apren-
der, onde educar é acrescentar. Como poderia, então, alguém sus-
tentar que o esquecimento é necessário para o aprendizado?
Para Barthes, o esquecimento é um processo pelo qual o cor-
po raspa de sua pele as sedimentações operadas pelo passado, mor-
tas, sem mais serventia. Analogicamente, o mesmo deve acontecer
com a informação outrora absorvida: para renascer, temos que es-
quecer. A educação é um processo de sucessivas demãos de tinta
sobre o corpo: cascas. O esquecimento e a desaprendizagem são
as sucessivas raspagens em busca do esquecido1. Barthes propõe
o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedi-
mentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos.
É deixar o sabido e lançar-se ao desconhecido, especialmente, por-
que os horizontes interpretativos estão abertos para o leitor ativo. 2
A partir desta premissa, podemos compreender o ensino em
duas frentes: a) ensino do que já é conhecido: é o processo mais
básico. É ensinar aquilo que aprendemos e que se resume em re-
passar aos novos o conhecimento absorvido pela tradição. Neste
processo, não há nada de novo. Trata-se apenas de uma continu-
ação do saber, do que já foi dito; b) ensino do desconhecido: aqui
se ensina o que não se sabe. Este processo apoia-se no passado,
volta-se ao futuro e se aperfeiçoa no campo da pesquisa.

1 ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Editora Planeta, 2011, p. 54-55.
2 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1996.
Airto Chaves Junior
XX
Fabiano Oldoni

Ambos os ensinos são necessários. O segundo é continuação


do primeiro e dele necessita para avançar. O que não podemos, é nos
contentarmos apenas em conhecer o “conhecido”. Nesta perspecti-
va, ensinar a pesquisar é (deveria ser) o objetivo maior da educação.
O que nos motivou a escrever este livro foi a necessidade de
contribuir com o esquecimento do passado, com o que é continu-
amente ensinado (e não refletido) sobre os sistemas de controle
social, especialmente o Direito Penal e os instrumentos que atu-
am em seu nome (com fundamento nele).
A proposta do trabalho é superar o senso comum teórico
das academias e o senso comum folclórico das ruas para, enfim,
impulsionar o leitor a buscar novos caminhos a partir da reflexão
crítica do Direito Penal.
A particularidade desta obra não está no conteúdo aborda-
do, que já foi fruto de estudo por inúmeros juristas, sociólogos e
criminólogos mundo afora, mas na estruturação do trabalho que,
de forma sistematizada, procura refletir os segmentos de controle
social informal e formal que julgamos os mais importantes para a
(des)configuração e (des)construção social.
O estudo poderia ser dividido em duas grandes partes: uma
primeira que trata dos segmentos de controle social informal; e uma
segunda que cuida dos segmentos formais de controle. No entan-
to, uma advertência é aqui necessária: apesar de estruturalmente
possível, essa separação não é aconselhável, ao menos num nível
de compreensão dos sistemas de controle. Inquietações como “Por
que o controle funciona seletivamente?” “Em que circunstâncias alguém
pode ser objeto de controle?” “Quais os efeitos sobre a pessoa contra
quem recai o controle?” são avaliadas, refletidas e respondidas ao
longo da obra. Para tanto, realizamos uma análise sistemática dos
segmentos que atuam no controle social, que muito transcendem
as suas frações formais (controle social institucionalizado).
Não por outra razão, a família, a escola, a mídia, a religião
e o consumismo são tratados num plano inicial. Aqui, será possí-
vel verificar a importância de cada uma dessas frações de controle,
Para que(m) serve o Direito Penal? -
XXI
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

suas eventuais falhas e o reflexo dessa deficiência no plano social, a


partir do que, mostrar-se-á bastante evidente a eminência parda que
maliciosamente conduz cada uma dessas frações de controle social.
Num segundo momento, passaremos a avaliar a atuação das fra-
ções que guardam mais significativa repercussão no controle formal
institucionalizado e que abrange, também, o Sistema Penal. Neste
caso, o estudo recairá sobre a lei penal, a polícia, o Ministério Público,
a Justiça (atuação dos juízes e tribunais) e, por fim, sobre a prisão.
Após a leitura, será possível verificar que o denominador
comum de todos esses segmentos é a sua fatal e discriminatória
seletividade. Acreditar, hoje, que esses sistemas de controle foram
elaborados e instituídos para todas as pessoas em nome de um
bem comum só pode ser sustentado diante de uma incomensurá-
vel ingenuidade. Precisamos abrir os olhos e enxergar um pouco
além daquilo que nos mostram (ou nos querem mostrar): além do
discurso dos professores nas salas de aula, muitas das vezes mani-
pulados ou amordaçados nas palavras pelo estado que os paga o
mísero salário; além daquilo que noticia a televisão, que mais com-
promisso tem com o patrocinador que garante sua manutenção
do que com o destinatário do conteúdo transmitido; além do teor
ofertado (ou imposto) pelo padre ou pastor da igreja que frequen-
ta; além dos padrões de modismo que ditam as regras daquilo que
devemos vestir, com o que devemos nos alimentar, os locais que
precisamos frequentar, etc.; e além, muito além do falso discurso
de que o Direito Penal causa melhoramentos na sociedade e trans-
forma pessoas para melhor. Na verdade, a constatação é que todos
esses segmentos são operados por uns para que se aplique a outros.
Não podemos mais ficar inertes assistindo o que se passa. Não
somos apenas telespectadores. Para melhor compreender a marca
registrada dos segmentos de controle – a seleção de pessoas - pre-
cisamos nos colocar como protagonistas desse fenômeno, ora na
condição de agentes de controle, ora como alvos e sujeitos que
sofrem as consequências desse mesmo controle. Como lembrou
Airto Chaves Junior
XXII
Fabiano Oldoni

Zaffaroni3, nosso poder é o poder do discurso. É o que temos. Mas


o discurso, para expor as feridas, precisa ser renovado. E essa afir-
mativa pode ser extraída a partir das lições da filosofia de quase três
séculos. David Hume, por exemplo, já anotava que o ser humano
é uma “coleção de diferentes percepções”, pois não pode resistir
a todas as mudanças pelas quais viveu. Assim, não se pode dizer
que alguém é exatamente a mesma pessoa que era em qualquer
momento do passado. Daí, o “desaprender” é imprescindível quan-
do há necessidade de se incorporar novas experiências (Roland
Barthes). Não na forma de negação do saber, mas na configuração
de complementaridade, por mais paradoxal que isso possa parecer.
Enfim, o estudo reflete a experiência que o discurso ganha
maior legitimidade na medida em que maior reflexo traga na conten-
ção (limitação) do poder punitivo do Estado. Só assim poderemos
legitimar o poder do nosso discurso, mesmo cientes que “a capaci-
dade para agir é a mais perigosa de todas as aptidões e possibilidades
humanas” 4. A dúvida que resta é a seguinte: perigosa para quem?
Itajaí/SC, maio de 2014.
Airto Chaves Junior
Fabiano Oldoni

3 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Debates in KARAM, Maria Lúcia (org).Globalização,


Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lu-
men Juris, 2005, p. 34.
4 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 95.
1

PARA QUE(M) SERVE O DIREITO PENAL?


UMA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DA SELETIVIDADE
DOS SEGMENTOS DE CONTROLE SOCIAL

1. PARA INTRODUZIR O TEMA


Uma das maiores dificuldades da produção de um escrito é
saber exatamente por onde começar. E a dificuldade desse pon-
ta-pé inicial é diretamente proporcional à sua importância, pois
ali se inicia o processo de organização de ideias na tentativa de
argumentar acerca do objeto já delimitado. Já registrou Eduardo
Galeano1 que, na arte da escrita, em todo o resto, o começo é
o mais importante. Tão fundamentais como os primeiros tijolos
de uma casa ou de um templo. Ludwig Wittgenstein2 dizia que
é muito difícil encontrar o começo, ou, melhor dizendo, é difí-
cil começar no começo e, depois disso, não tentar recuar a ele.
No caso do estudo que aqui se propõe, o recuo parece mesmo
inevitável. Não porque o caminho que se pretende traçar é con-
siderado inadequado, mas, especialmente, porque a densidade
do objeto que pretendemos analisar neste livro requer avaliação
sistemática, sobretudo, em razão do ruidoso afastamento entre o
eixo daquilo que ressoa teoricamente e o eixo da experiência real
de qualquer indivíduo que exerce atividade no âmbito da justiça

1 GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. 2. ed. Tradução de


Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 16.
2 WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições 70,
1969. § 471.
Airto Chaves Junior
2
Fabiano Oldoni

criminal. Essa discrepância existente entre a teoria e a prática no


campo do Direito Penal, tão evidente para alguns, não parece se
apresentar manifesta para a maioria das pessoas3. Talvez porque
exista um aparente deslocamento do objeto observado (Direito
Penal), que é causado por mudanças no posicionamento dos pró-
prios observadores, fenômeno que pode ser explicado por meio da
paralaxe cognitiva4, muito bem trabalhada pelo professor e filósofo
Olavo Luiz Pimentel de Carvalho.
Agradar e confortar não estão entre os objetivos do estudo
que aqui iniciamos. Se assim o quiséssemos, cremos que melhor
seria traçar um panorama que parece mais equitativo para a
maioria dos leitores, pois, como registrou Platão5 no diálogo entre
Fedro e Sócrates, “para quem quer tornar-se orador consumado
não é indispensável conhecer o que de fato é justo, mas sim o que
parece justo para a maioria dos ouvintes, que são os que decidem;
nem precisa saber tampouco o que é bom ou belo, mas apenas o
que parece tal – pois é pela aparência que se consegue persuadir,
e não pela verdade”. Talvez por isso a humanidade tenha tanto
a aprender com os camaleões. Eduardo Galeano6 já dizia que es-
ses animaizinhos, peritos no disfarce, revelam também essa ca-
racterística muito bem delineada no ser humano, especialmente
naquilo que o autor chama de “dupla linguagem dos artistas da
dissimulação”. Neste caso, uma moral é refletida no discurso (no
dizer); outra na prática (no fazer). Quem sabe, por isso, a conso-
nância entre o “dizer” e o “fazer” não precisa guardar qualquer
correspondência para que seja tomado como “aceito” ou então,
“legítimo” pelo seu destinatário. Explicamos com um exemplo de
incomensurável importância simbólica:

3 Sobre a lógica do direito de punir, ver Fabiano Oldoni in Aquisição da propriedade


ilícita pela usucapião. Jundiaí: Paco Editorial, 2013.
4 Trata-se do deslocamento entre o eixo da construção teórica de um pensador e o
eixo da sua experiência humana real.
5 PLATÃO. Fedro. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 98.
6 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. 2. ed.
Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 176.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
3
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

O tema “redução da maioridade penal” ressurge sempre que


se tem um ilícito penal de grande repercussão nacional envolvendo,
como autor da infração, criança ou adolescente. A partir disso, a mí-
dia clama por penas exemplares, encarceramentos e instrumentos que
aparecem camuflados no perigoso discurso: “algo precisa ser feito”.
Esse “algo” a que se referem é “uma dose a mais de Direito Penal”.
Enraíza-se, então, um macabro consenso por meio de um in-
tenso bombardeio de justificativas, todas elas, extremamente pro-
pensas a se utilizar do sistema repressivo em um instrumento polí-
tico promocional de bem viver. Acredita-se, num primeiro plano,
que os problemas da criminalidade infanto-juvenil e segurança
pública serão resolvidos com o encarceramento de alguém. Tanto
isso ocorre que, em pesquisa do Datafolha7 divulgada em abril
de 2013, constatou-se que 93% dos moradores da cidade de São
Paulo concordam com a diminuição da idade em que uma pessoa
deve responder criminalmente por seus atos. A mesma pesquisa
revelou que apenas 6% dos entrevistados eram contra a redução.
Em consultas anteriores, em 2003 e 2006, a aprovação à medida
pelos moradores da cidade foi de 83% e 88%, respectivamente.
Em nível de Brasil, a pesquisa da CNT8 (Confederação Nacional
do Transporte), feita em parceria com o instituto MDA, divulga-
da em junho de 2013, revelou que a redução da maioridade penal
de 18 para 16 anos é aprovada por 92,7% dos brasileiros.
A peça publicitária sustentadora da redução da maioridade
penal – muito bem desenhada – concentra-se em algumas premissas
bastante divulgadas e incorporadas ao discurso: a) é cada vez maior
o número de menores envolvidos em práticas criminosas; b) o Es-
tatuto da Criança e Adolescente não é eficaz, porque as respostas
(“medidas socioeducativas”) nele previstas são muito brandas; c) os
autores intelectuais dos crimes (maiores) se utilizam dos menores

7 BENITES, Afonso. Folha de São Paulo. 93% dos paulistanos querem redução da
maioridade penal. Matéria veiculada em 17/04/2013.
8 DOURADO, Kamilla. Portal R7 Notícias. Mais de 90% da população aprova a
redução da maioridade penal. Matéria veiculada em 11/6/2013.
Airto Chaves Junior
4
Fabiano Oldoni

para sua prática; d) para reduzir essa violência promovida pelo pú-
blico juvenil, o Direito Penal é a saída mais rápida e eficaz. Esse “sa-
ber” jurídico e o sistema de comunicação de mídia produzem uma
realidade irreal, e que não dá espaço para que as pessoas permitam
perceber a deslegitimação perante os problemas colocados.
A discussão deixa os bancos das Academias de Direito para
invadir a sociedade, que com o apropriar dos meios de comuni-
cação de massa, torna toda e qualquer pessoa legitimado para
proferir juízos sobre o Direito Penal. Todos têm respostas prontas,
criativas e brilhantes quando o tema em voga é criminalidade
(ainda que imaginária) e a solução que deve se ofertar a ela.9
A filosofia10 tem demonstrado, ao longo dos séculos, que o que
torna um objeto dificilmente compreensível é o contraste entre a
compreensão do objeto e aquilo que a maior parte das pessoas quer
ver. Por isso, o que deve ser superado não é uma dificuldade de enten-
dimento que se tem sobre o Direito Penal, mas da vontade de enxer-
gá-lo como ele realmente se mostra, pois, como registrou Wittgens-
tein11, o fato de algo que parece ser, não se segue que o seja realmente.
Extrai-se, então, uma vontade quase que insuperável de se en-
contrar, no Direito Penal, um efeito farmacológico na redução daqui-
lo que se convenciona politicamente como comportamentos indese-
jáveis, desconexão que é denunciada há pelo menos três décadas por
autores adeptos àquilo que se denominou criminologia crítica.
A dificuldade, então, está em compreender as meticulosas e
perceptivas funções do Direito Penal a partir desse ponto, já que,
em tempos de (des) informação, qualquer âncora de um tele-jornal
de boa audiência é capaz de fornecer guarida e limites às políticas
criminais, vez que influencia diretamente a opinião pública que,
por sua vez, não faz ideia, ou então, comporta uma vaga ideia, uma

9 CARVALHO, Amilton Bueno. Direito Penal a Marteladas (algo sobre Nietzsche


e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 40.
10 TOLSTÓI, Liev. Apud WITTGENSTEIN, Ludwig. Filosofia. Trad. Antônio Zilhão.
In Manuscrito. Vol. XVIII. Nº. 2. São Paulo: Unicamp, 1995, p. 5.
11 WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições 70, 1969. § 1.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
5
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

noção puramente abstrata daquilo para o qual o Direito Penal se


apresenta. E isso já se inicia nos bancos dos Cursos de Direito.
É que, sedimentou-se no senso comum de que a criminologia
se limita à dimensão reflexiva acadêmica, sem conteúdo prático
no âmbito das políticas criminais. Talvez por isso que a esmagado-
ra maioria dos cursos de direito tem relegado o estudo da crimino-
logia a um âmbito optativo ou mesmo excluído a disciplina de suas
grades curriculares. Além disso, quando dispensada uma cadeira,
a investigação da criminologia em si, via de regra, trabalha-se com
a criminologia positivista, tratamento que vem sendo muito bem
anunciado pela Prof. Dra. Vera Regina Pereira de Andrade12: a
disciplina Criminologia ocupa pouco espaço no Ensino Jurídico e
as “Criminologias Críticas”, pouco espaço na Criminologia.
Em termos gerais, a Criminologia propõe observar as ciên-
cias criminais a partir de fatos concretos, inseridos no cotidia-
no e que fazem parte do nosso dia-a-dia. Devemos lembrar que,
quando não diretamente visualizados, esses fatos chegam até nós
por meio de uma gama de veículos extremamente diversificados,
alguns deles, pouco confiáveis. A informação e a credibilidade do
transmissor daquele que informa determinado fato deve ser, en-
tão, verificada com cuidado máximo. Uma consciência crítica se
faz imprescindível frente às complexidades que nos são colocadas
com máxima frequência no mundo contemporâneo.
Não queremos aqui, dizer que o estudo da criminologia é de
uma importância maior do que as demais disciplinas. Mesmo por-
que, isso seria uma tarefa que, consideramos, num aspecto sistê-
mico, impossível. Um eventual exercício comparativo para tanto,
demandaria de técnicas bem diversificadas àquelas empregadas
no presente livro. No entanto, é oportuno lastrear e dimensionar
o peso da Criminologia dentro das Ciências Jurídicas, especial-

12 ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Por que a Criminologia (e qual Criminologia) é im-
portante no ensino jurídico? Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas. RECJ. 05.05/08.
Disponível em www.pgj.ma.gov.br/ampem/ampem1.asp. Acesso em 28 de janeiro de 2013.
Airto Chaves Junior
6
Fabiano Oldoni

mente na formação intelectual e prática daquele que militará, em


qualquer de suas esferas, na Justiça Penal.
Isso facilitará que possibilitemos enfoques diversificados e
que resultem em algumas aberturas nas rígidas construções dog-
máticas que tomam conta do universo jurídico. E essa rigidez da
qual tratamos não é fruto do acaso. Há um discurso legalista que
toma conta de todas as esferas de atuação no âmbito da justiça
penal. As instituições acadêmicas, via de regra, norteiam as dis-
cussões fundamentadas numa interpretação exegética, análise de
textos, comparativo entre legislações e decisões judiciais. Pouco
se questiona. As respostas estão:
a) No texto legal (porque está escrito);
b) Nos precedentes dos tribunais (porque é assim que já se decidiu).
Com relação à primeira resposta (porque está escrito), é pre-
ciso entender que o sentido da norma jurídica (norma + regra +
princípio) demanda um círculo hermenêutico, fundamentando,
essencialmente, na filosofia da linguagem,13 de ordem objetivada
e pública, ao invés daquela superada concepção introspectiva e
privada, própria da filosofia da consciência. Todo texto legal, para
comportar legitimidade empírica, deve ser interpretado a partir des-
sa tríade. Não fosse assim, “um bom linguista ou professor de por-
tuguês seria o melhor jurista”14, porque bastaria avaliar “aquilo que
está escrito” sem situá-lo no plano concreto do mundo. Conforme
Streck, por razões de baixa densidade hermenêutica, os intérpretes
(tribunais, etc.) lançam mão de ampla discricionariedade. Como
os tribunais não estão acostumados a julgar principiologicamen-
te e, sim, politicamente, acaba predominando o seguinte: quando
interessa, vale a palavra da lei, a sua sintaxe, o verbo nuclear, etc.;
quando não interessa, as palavras são fugidias, líquidas e amorfas.

13 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto de Processo Penal conforme a


Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 2.
14 STRECK, Lenio. É possível fazer direito sem interpretar? In Consultor Jurídico. 19
de abril de 2012.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
7
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

E existem boas razões empíricas para se sustentar isso. A


decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto
Barroso, na Ação Penal 565(Caso Senador Ivo Cassol - PP-RO),
que, em um dia decide com base na “letra” da Constituição que
é o Congresso que tem o poder de cassar mandatos e, dias de-
pois, determina a anulação da decisão do Congresso que não cas-
sou o mandato do Deputado Donadon (Mandado de Segurança
32.326), desta vez com base em argumentos metajurídicos.15
A Ação Penal 470 havia sedimentado posição do Supremo no
sentido de que, quando havendo condenação criminal definitiva
de mandatário de cargo eletivo, a cassação do mandato seria conse-
quência automática da pena, independente de qualquer manifesta-
ção da Casa Legislativa. O Caso Cassol, porém, trouxe outro rumo
de entendimento. Na Ação Penal 565, a perda do mandato eleti-
vo passou a depender de decisão das Casas Legislativas, na forma
como dispõe a CRFB/88. Como se vê, muito mais se enaltece uma
Filosofia da Consciência, pois é possível que se extraia da norma
absolutamente qualquer sentido, um hoje, outro amanhã.
Outro ponto que, neste aspecto, julgamos ser alvo necessá-
rio de debate e que está intimamente atrelado à questão do texto
legal positivado, é o alcance da interpretação que se dá àquilo que
“está escrito”. Para exemplificar, não é difícil encontrar alguém
que pretende explicar sobre tudo aquilo que as pessoas falam que
existe ou que acontece. Quando dizemos que “é cada vez maior
o número de menores envolvidos em práticas criminosas” (pre-
missa registrada para fundamentar a necessidade de redução da
maioridade penal), temos que essa afirmação pode ser verdadeira,
pois se relaciona com uma maneira adequada de avaliar a questão
numérica de menores alcançados pelas agências de repressão em
razão de envolvimento em práticas de atos infracionais. Por outro
lado, quando falamos “para conter a criminalidade infanto-juve-

15 Exemplo ofertado por STRECK, Lênio. Como se mede a “régua” para aplicar a lei:
quem a fixa? In Consultor Jurídico. 24 de outubro de 2013.
Airto Chaves Junior
8
Fabiano Oldoni

nil, temos que encarcerar os menores envolvidos nessas práticas”,


o que dizemos é falso, e aqui temos um problema, pois a primeira
premissa (sobre o aumento de registro de atos infracionais) não per-
mite que concluamos isso, pelo que, essa afirmação simplesmente
não pode ser o elemento legítimo dessa relação. E por que não?
A maioria das pessoas não nota que ignora a essência das
coisas, o que não os impede de acreditar erroneamente que a co-
nhecem.16 Falamos muitas coisas que simplesmente não o são, ou
então, são falsas. E isso não exclui por completo a possibilidade de
se encontrar verdade nesta fala, pois uma coisa é o discurso, ou-
tra é o significativo que ele comporta. Isso é bastante evidente no
plano midiático. Discursos de âncoras que nada dizem. O discurso,
porém, é verdadeiro. Ele está lá, basta ter ouvidos para recebê-lo.
Ele gera efeitos, gera consequências. O problema dele (do discurso)
está na carência de seus significados, ou, conforme a filosofia da
linguagem, trata-se de ideia alguma. É como se falássemos “Papai
Noel existe!” A frase é verdadeira, mas não seu significado, embora
ainda possa conter algum significativo para alguns seres humanos
de tenra idade e que, por questões culturais, são submetidos (ainda
que temporariamente), ao mundo da fantasia. Para compreender
as verdadeiras funções do Direito Penal dentro da nossa sociedade,
portanto, temos que fechar as portas para a fantasia e transitar no
mundo do real. Assim, pretendemos, com esta obra, abater dogmas
(verdades absolutas) que dão sustentação, desde sempre, a essas
fantasias. Em contrapartida, objetivamos direcionar as luzes ao dis-
curso oculto, mas latente e verdadeiro do Direito Penal e das ins-
tâncias de controle social formal e informal que o cercam.
A segunda resposta (porque assim já se decidiu) se encontra
mais voltada ao campo do Direito Processual Penal e não é menos
preocupante. Conforme Alexandre Morais da Rosa17, a situação
chega a ser patológica. É que as gerações antecedentes, a saber, os

16 PLATÃO. Fedro. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 69.
17 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto de Processo Penal conforme a
Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 2.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
9
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

atuais atores jurídicos, em grande parte, não sabem também com-


preender e reproduzir uma cultura democrática. Esses, portanto,
acreditam que trabalhar o Direito é fazer “feira da jurisprudência”.
O problema de “fazer feira” é que, desse modo, eternalizam-se
precedentes que beiram o absurdo, para dizer o mínimo.
Exemplo disso pode ser extraído da problemática levantada em
torno da (im) possibilidade de progressão de regime prisional para
os condenados pela prática de crimes hediondos e equiparados. Ve-
jam que a CRFB/88, ao criar a figura do crime hediondo no art. 5º,
XLIII, não fez qualquer menção à vedação de progressão de regime,
e tampouco receitou tratamento penal stricto sensu mais severo, quer
no que tange ao incremento, quer no tocante à execução das penas.
No entanto, dois anos mais tarde, com a entrada em vigor da Lei
8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), passou-se a decidir pela impos-
sibilidade absoluta de progressão de regime prisional para os condena-
dos dessa estirpe, pois a lei referida, em seu artigo 2º, §1º, anotava que
a pena deveria ser cumprida em “regime integralmente fechado”.
O dispositivo que tolhia o direito a progressão era, notada-
mente, inconstitucional, sobretudo, diante das várias facetas que
compreendem o princípio da individualização da pena. No entan-
to, por 15 anos ele surtiu efeitos jurídicos em todas as cortes e ins-
tâncias do Brasil, sob o prisma da constitucionalidade. Para exem-
plificar, leia-se: “Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário
constitucional contra decisão do Egrégio Superior Tribunal de
Justiça. 2. Estupro e atentado violento ao pudor praticado contra
menores (arts. 213 e 214, ambos c/c art. 224, alínea “a”, do Có-
digo Penal). 3. Alegação de que os crimes de estupro e atentado
violento ao pudor, quando aplicada a regra do art. 224, alínea “a”,
do CP, não se caracterizam como hediondos. 4. Improcedência da
alegação. 5. Incurso o paciente nos arts. 213 e 214, independen-
temente de a violência ter sido real ou ficta, a pena deverá ser
cumprida em regime integralmente fechado, por força do art.
2º, § 1º, da Lei 8.072 , de 1990. 6. Precedentes: HC 81288,
Rel. Min. Mauricio Corrêa, Red. Acordão Min. Carlos Velloso;
Airto Chaves Junior
10
Fabiano Oldoni

RHC 82.098/PR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 29.11.02. (STF -


Habeas Corpus nº 82712 – RJ, 2ª Turma, Rel. Min. GILMAR
MENDES, j. 20/05/2003, D.J.U. de 27/06/2003, p. 54).18
No ano de 2006, no julgamento do Habeas Corpus 82.959,
o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitu-
cionalidade do § 1º, do art. 2º, da Lei dos Crimes Hediondos,
sustentando, dentre outras considerações, que a vedação abso-
luta a progressão de regime para determinados tipos de crimes só
poderia ser realizada por norma de hierarquia constitucional.19
A partir desse exemplo, é possível notar o quão desastroso
pode ser o direito produzido a partir daquilo que Alexandre Morais
da Rosa chama de “feira de jurisprudência”. A norma constitucio-

18 Idêntico posicionamento acerca da impossibilidade de progressão de regime prisional


anterior a 2006 pode ser extraído em pesquisa a qualquer tribunal brasileiro. Desta-
camos aqui, também, o Superior Tribunal de Justiça: CRIMINAL. RECURSO ES-
PECIAL. EXECUÇÃO. REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA. HOMICÍDIO
QUALIFICADO, LESÕES CORPORAIS GRAVES E TRÁFICO DE ENTORPE-
CENTES. EXISTÊNCIA DE CONDENAÇÃO POR CRIME ELEVADO À CATE-
GORIA DE HEDIONDO. REGIME INTEGRALMENTE FECHADO. LEI 8.072/90.
VEDAÇÃO LEGAL À PROGRESSÃO. CONSTITUCIONALIDADE. RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO. I. As condenações por delitos elencados, equiparados
ou elevados à categoria de hediondos pela Lei nº 8.072/90, devem ser cumpridas em
regime integralmente fechado, vedada a progressão. Precedentes. II. Constitucionali-
dade do art. 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos já afirmada pelo E. S.T.F. III. Recur-
so conhecido e provido para impor o regime prisional integralmente fechado. Habeas
Corpus nº 27554 – SP, 5ª Turma, Rel. Min. LAURITA VAZ, j. 27/05/2003, D.J.U. de
30/06/2003, p. 281. Outros precedentes do mesmo Tribunal: Recurso Especial nº 476466,
6ª Turma, Rel. Min. PAULO MEDINA, j. 03/06/2003, D.J.U. de 23/06/2003, p. 456;
REsp 252.886/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 21/08/2000).
19 “(...) Evidente, assim, que, perante a Constituição, o princípio da individualização
da pena compreende: a) proporcionalidade entre o crime praticado e a sanção abs-
tratamente cominada no preceito secundário da norma penal; b) individualização da
pena aplicada em conformidade com o ato singular praticado por agente em concre-
to (dosimetria da pena); c) individualização da sua execução, segundo a dignidade
humana (art. 1º, III), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no
cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e à
vista do delito cometido (art. 5º, XLVIII). Logo, tendo predicamento constitucional
o princípio da individualização da pena (em abstrato, em concreto e em sua execu-
ção), exceção somente poderia aberta por norma de igual hierarquia nomológica.”
Voto do Ministro Cezar Peluso.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
11
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

nal que trouxe à baila a figura dos crimes hediondos é de 1988 e,


neste momento, não fez qualquer registro acerca da eventual ve-
dação à progressão de regime prisional. Em 1990, uma lei ordiná-
ria passa a prever a impossibilidade de progressão, registrando que
a pena deve ser cumprida em regime integralmente fechado, o que
entrava em choque como alguns princípios constitucionais, dentre
os quais, o da individualização da pena. Tem-se, então, que desde
a entrada em vigor da Lei 8.072/90, o seu art. 2º, § 1º, sempre
esteve eivado de inconstitucionalidade, não só a partir de 2006.
Entretanto, ao “fazer a feira”, os operadores só encontravam ma-
nifestações de “constitucionalidade” nos Tribunais Superiores. É
como dizer: “me diga como você fez para eu fazer igual, ainda que
eu não concorde ou nem mesmo entenda o porquê de ser assim”.
Não podemos negar,apesar disso tudo, que o “porquê está
escrito” e o “porquê assim já se decidiu” pode trazer uma espécie
de “segurança” no entendimento daquilo que se pretende. No
entanto, conforme a crítica de Wittgenstein20, a menor existên-
cia de negação a essa “verdade” pode fazer ruir aquela segurança
inicialmente implementada. E onde estaria o núcleo dessa fragi-
lidade? Essas construções escritas ou faladas com caráter descri-
tivo têm a pretensão de verdades e assumem um perfil filosófico,
provocando naquele que lê ou ouve uma impressão de obviedade,
tal como: “é isso mesmo!”. E, para esses casos, conforme bem
lembra Zaffaroni21, não existe teoria que, por si mesma, tenha for-
ça suficiente para vencer uma estrutura que se interioriza, desde
cedo, na vida das pessoas, se não vier acompanhada de um fato de
particular evidência, e que opere como “choque” com aquela re-
alidade até então enaltecida. A percepção de determinados fatos
notórios pode ser perturbada, mas não pode ser negada.

20 Ver WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos


Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
21 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimida-
de do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Concei-
ção. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 38.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

Luiz Alberto Warat22afirma que precisamos admitir a exis-


tência de certos efeitos de verdade (consequenciais), detectados
a partir da observação do discurso de objetivação, especialmente,
quando esse discurso se torna estratégico e estereotipado, o que é
complementado com aquilo que Foucault registrara: “o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual
nos queremos apoderar” 23. E essas regras epistemológicas apare-
cem como marcas sagradas no discurso e que furtam das relações
conceituais a sua função referencial, perpetuando uma reprodu-
ção ideológica dentro dos Cursos de Direito, daquilo que se pode
chamar de verdadeiras “fábricas de reprodução ideológica”24.
Assim, analisar essas questões em paralaxe é de importân-
cia primeira para a compreensão das finalidades do Direito Penal
(“legislação penal” e “saber do Direito Penal”), pois, não raro, os
observadores do objeto (Direito Penal) também se deslocam para
a condição de desviantes, muito embora poucos sejam alcançados
pelas agências de repressão. Para compreender isso, porém, anota
Paulo César Busato25, a análise do Direito Penal deve ser feita de
forma mais ampla possível, muito além da norma penal, pois o
objeto de estudo implica relações sociais, políticas e culturais (in-
clusive as normas), relacionadas à reação humana e ao fenômeno
do desvio. Daí porque é importante a constante interação com
outros pontos de vista atinentes ao Direito Penal, como a sociolo-
gia, a filosofia, a antropologia e, é claro, a criminologia.

22 Luís Alberto Warat. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In Epistemologia
e Ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004c, p. 27-34.
23 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 19. ed. São Paulo: Loyola, 2009, p. 10.
24 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimida-
de do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Concei-
ção. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 237.
25 BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. São Paulo. Atlas, 2013, p. 5.
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

2. PARA QUE (M) SERVE O DIREITO PENAL?


Feitas essas considerações introdutórias, vamos formular o questio-
namento que servirá de mola propulsora para este estudo: o Direito Pe-
nal, como hoje é concebido, é produto de quê (m) e para que (m)?26
Para chegar a essa resposta, não podemos perder de vista o
legado que nos deixou Karl Marx, quando afirmou que, se se sou-
ber olhar bem, todo produto traz os traços do sistema produtivo
que o engendrou. Esses traços lá estão, mas não são vistos, pois
são invisíveis. Certa análise pode torná-los visíveis, de forma que
é possível postular que a natureza de um produto só é inteligível
em relação às regras sociais de seu engendramento.27
Assim, no campo das ideias, a resposta sofre influência de fontes
bastante diferentes daquelas observadas, quando levamos em conta
a materialidade e a concretude do objeto que passaremos a analisar:
o Direito Penal. Tratar a questão apenas do ponto idealmente, pode
trazer severas dificuldades para a avaliação do Direito Penal empre-
gado da concepção de mundo, em que se exige sua materialização.
Isso se torna bastante claro quando se formula uma pergun-
ta aos acadêmicos do último ano dos cursos jurídicos, indagação
esta que, a priori, e diante da complexidade do tema, pode cau-
sar desconforto: “Para que serve o Direito Penal?” Aqueles que
arriscam a resposta, fundamentados na Teoria Geral do Direito
Penal, colocam que o Direito Penal serve, prioritariamente, de
instrumento protetor dos bens jurídicos. Essa concepção funcio-
nal ganhou força a partir da década de 1970 com o escrito sobre
Política Criminal e Sistema Jurídico Penal de autoria do penalista

26 Por questão terminológica, adotaremos a concepção ofertada por Winfrie Hassemer


e Francisco Muñoz Conde (In Introdución a lá Criminologia. Valencia: Tirant ló
Branch, 2001, p. 100 e ss.), e oferecida por Paulo César Busato: objetivos ou missões
são propósitos, o que deve buscar o Direito Penal; funções são aquilo que efetiva-
mente provoca, independentemente de ser ou não a pretensão do Direito Penal. In
Direito Penal: parte geral. São Paulo. Atlas, 2013, p. 5.
27 VERON, Eliseu. A produção do sentido. São Paulo: Cultrix, 1980, p. 54.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

alemão Claus Roxin28. Desde então, a ideia de um Direito Penal


instrumental e protetor do “bem jurídico” é bastante difundida,
sobretudo, após a sedimentação dos critérios de subsidiariedade e
fragmentariedade tratados pelo jurista, que reunidos, buscam uma
intervenção penal minimalista. Trata-se de uma das facetas do fun-
cionalismo penal29: o Direito Penal como missão tutelar, proteto-
ra. Mas, protetora do que ou de quem?
Conforme Roxin30, o Direito Penal deve garantir os pres-
supostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre
os homens, na medida em que isso não seja possível, através de
outras medidas de controle sócio-políticas menos gravosas. Essa
finalidade estaria condicionada a um pressuposto limitador: a
pena só poderia ser cominada, quando fosse impossível obter esse
fim através de outras medidas menos gravosas, de maneira que
o Direito Penal seria desnecessário quando se pudesse garantir
a proteção desses bens através do Direito Civil, uma proibição
administrativa ou medidas preventivas judiciais.
Essa teoria do bem jurídico31 se refere ao funcionalismo mo-
derado, teleológico ou valorativo. A ideia de valor está bastante

28 Ver ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís


Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
29 Neste caso, refere-se ao Funcionalismo moderado, teleológico ou valorativo. O ou-
tro aspecto é chamado de Funcionalismo radical, estratégico normativo, construído
pelo também penalista alemão Günther Jakobs, a partir do funcionalismo sistêmico
do sociólogo Niklas Luhmann.É “sistêmico” porque a preocupação dele não é com
bem jurídico, mas com o sistema. Assim, para Jakobs, a finalidade primeira do Di-
reito Penal é a reafirmação da autoridade da norma. Neste caso, a função do direito
penal é proteger e resguardar o sistema.
30 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2. ed. Tradução de Luís Greco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 32-33.
31 Acerca da expressão “bem jurídico”, são importante os registros de Luís Greco: “No
Brasil, a doutrina tradicional, a rigor, nem sempre utilizar as palavras “bem jurídico”,
preferindo por vezes o termo objeto ou objetividade jurídica. Como esta diferença é
apenas terminológica, pode-se dizer que ela já conhecia o conceito de bem jurídico,
mas em sua dimensão exclusivamente dogmática. Ou seja, a nossa doutrina, acos-
tumada exclusivamente com o conceito dogmático de bem jurídico, não costuma
reconhecer qualquer função crítica ou política-criminal à ideia. Em geral, só a partir
Para que(m) serve o Direito Penal? -
15
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

presente na construção funcionalista desenvolvida por Roxin,


de maneira que cada conceito (conduta, tipicidade, ilicitude e
culpabilidade) deve ser avaliado sob um prisma Político Criminal,
ou seja, analisado sob uma orientação voltada aos direitos funda-
mentais e aos valores do Estado Social e Democrático de Direito.
Bem Jurídico, neste ínterim, pode ser definido como “pressupostos
que a pessoa necessita para a sua auto-realização e desenvolvi-
mento de sua personalidade na vida social.”32
Não se recorre, então, a categorias ontológicas do ser. Leva-
se em conta, por outro lado, o aspecto normativo, o fundamento,
o sentido que cada conceito tem de cumprir no sistema da Teoria
do Delito, especialmente no que se refere ao injusto penal, com a
chamada teoria da imputação objetiva. Conforme essa teoria, o injusto
não é apenas um acontecimento causal (causalismo), nem tampou-
co final (finalismo), mas primariamente a realização de um risco não
permitido criado pelo autor da conduta. Assim, o núcleo do injusto
penal se desloca de um dado ôntico de caráter físico (causalismo) ou
psicológico (finalidade) para se firmar num ponto de vista normati-
vo, que seria o risco juridicamente desaprovado, criado e realizado. As-
sim, para a teoria da imputação objetiva, ainda que presentes os dois
citados dados ônticos, caso o comportamento do sujeito não tenha
criado um risco proibido, está-se diante de um indiferente penal.33
Neste contexto, Roxin34 explica que o ato de vender um pu-
nhal a uma pessoa de aparência suspeita, apesar de criar certo

de investigações mais recentes se começou a propor um conceito de bem jurídico


como diretriz para o legislador.” In “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo
abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. Biblioteca Cláudio Guimarães. Obra nº
960. Julho – agosto de 2004. Ano 12, p. 93-94.
32 MUNÕZ CONDE, Francisco; GARCÍA-ARÁN, Mercedes. Derecho Penal: parte
general. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998, p. 65.
33 GRECO, Luiz Felipe. Funcionalismo Penal. Dicionário de Filosofia do Direito. Vi-
cente de Paulo Barreto (Coord.). São Leopoldo/RS: Editora Unisinos; Rio de Janei-
ro: Editora Renovar. 2006, p. 369.
34 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2. ed. Tradução de Luís Greco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 105.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

risco, não pode ser considerado risco proibido, pois uma vida or-
denada em sociedade só é possível se o indivíduo, em princípio,
puder confiar que as pessoas com quem interage não cometerão
crimes dolosos. Do contrário, além dos punhais, igualmente não
poderiam ser vendidos ou emprestados materiais inflamáveis, fós-
foros, machados, enxadas, etc.
Então, a doutrina funcionalista traz o Direito Penal como
instrumento para um fim. Trata-se de uma concepção metodo-
lógica segundo a qual os conceitos e o sistema do Direito Penal
devem ser construídos com base em considerações normativas,
bem como aos seus pressupostos de legitimidade.
Há, no entanto, construções funcionalistas diversas daque-
la sustentada por Claus Roxin. Exemplo disso é o Funcionalismo
Radical, estratégico normativo, idealizado pelo também penalista
alemão Günther Jakobs, com base teórica no funcionalismo sistê-
mico do sociólogo Niklas Luhmann. É chamado sistêmico porque
a preocupação dele não é com bem jurídico, mas com o sistema.
Para Jakobs, a finalidade primeira do Direito Penal é a reafir-
mação da autoridade da norma.35 A missão do Direito Penal é pro-
teger e resguardar o sistema, tanto que para Jakobs36, o delito não é
tomado como princípio de uma evolução que deve ser solucionado
de modo cognitivo, mas sim, como uma falha de comunicação so-
cial, sendo imputada, essa falha, ao autor do crime como respon-
sabilidade sua. Assim, a sociedade mantém as normas e se nega a
conceber-se a si mesma de outro modo. Por consequência, a pena
não deve ser vista apenas como um meio para manter a identida-
de social, mas a própria manutenção dessa sociedade. Enaltece-se,
neste caso, a chamada prevenção geral positiva, que objetiva preser-
var a confiança da sociedade na vigência da norma penal.

35 Ver JAKOBS, Günther. Fundamentos de Direito Penal. Tradução de André Luís


Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
36 JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa. Tradução de Mauricio Antonio
Ribeiro Lopes. Barueri/SP: Editora Manole, 2003, p. 4.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Chaïm Perelman37 já dizia que a concepção funcional do di-


reito vê nele (no Direito) um meio para a obtenção de um fim
buscado pelo legislador. O fim a que se destina o Direito Penal
dependerá do funcionalismo com que se pretenda trabalhar. As
diferenças práticas são incomensuráveis. Para exemplificar, no
funcionalismo moderado a subtração de algo de ínfimo valor
pode ser um irrelevante penal. Imaginemos que alguém vai até
um supermercado e lá esconde, por entre as vestes, uma barra
de chocolate no valor de R$ 3,00, deixando o estabelecimento
sem realizar o pagamento pela mercadoria. Não há dúvidas que
o comportamento, formalmente, se enquadra àquilo descrito no
art. 155, caput, do Código Penal. Diante disso, faremos alguns
questionamentos: a) qual o bem jurídico protegido pelo crime
tipificado em referido dispositivo? Resposta: o patrimônio; b) a
subtração do chocolate ofendeu o patrimônio do estabelecimen-
to? A resposta não pode ser outra, senão, negativa. Não haveria
como sustentar, num plano material, que o ínfimo valor tenha
causado “prejuízo patrimonial” ao supermercado.
Por outro lado, para o funcionalismo sistêmico de Jakobs, pou-
co importa se a conduta foi ou não insignificante. Para esse autor,
o bem jurídico, que deveria ter sido protegido pelo Direito Penal,
já foi violado e por isso o que está em jogo agora é a garantia de
vigência da norma, ou seja, o agente que praticou a infração penal
deverá sofrer as reprimendas previstas no tipo, para que se afirme
que a norma atacada pelo autor está vigente. O objetivo aqui é pro-
teger o sistema. A questão é: o comportamento do sujeito violou a
norma penal? Numa análise puramente formal, não é possível negar
que a subtração do chocolate violou aquilo que dispõe o art. 155
do Código Penal. Neste caso, deve o violador da norma ser punido.
Essa teoria é a base de construção do chamado “Direito Pe-
nal do Inimigo”: punem-se os atos preparatórios, tipificam-se cri-

37 PERELMAN, Chaïm. La lógica juridica y la nova retorica. Tradução de Luis Diez


-Picazo. Madri: Civitas, 1988.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

mes de mera conduta; tipificam-se infrações de perigo abstrato,


dentre outras situações que serão trabalhadas mais a frente. Em
suma, é uma doutrina que restringe o alcance dos direitos e ga-
rantias fundamentais, previstas constitucionalmente.
Neste contexto, para o funcionalismo moderado, a subtra-
ção da barra de chocolate não pode ser considerada crime, pois
não ofendeu o bem jurídico “patrimônio” daquele que seria a ví-
tima. Como a missão do Direito Penal é a proteção do bem jurídi-
co, não deve atuar neste caso, pois é carente de razões para tanto.
Vale registrar que, no Brasil, adota-se, com preponderância,
o funcionalismo moderado. Isso pode ser constatado pelo reco-
nhecimento de um princípio que nasceu a partir dessa doutrina: o
princípio da insignificância. Importa colocar que, além dos crimes
que protegem o bem jurídico “patrimônio” (STF, Habeas Corpus
117.903), a insignificância pode ser reconhecida em outras es-
pécies de infrações: porte de droga para consumo pessoal (STF,
Habeas Corpus 110.475); Crimes Ambientais (STJ, AgRg no
RHC 32220); Crimes Funcionais (STF, Habeas Corpus 107370);
Crimes Militares (STF, Habeas Corpus 107.638); entre outros.
Atento a isso, no Brasil os Tribunais Superiores consolidaram
critérios para o reconhecimento do princípio da insignificância. São
eles: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma
periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade
do comportamento; d) inexpressividade da lesão provocada.
Em outras palavras, o Direito Penal tem como missão a tutela
dos interesses vitais e fundamentais das pessoas e da sociedade. Nes-
te caso, definem-se como vitais e fundamentais os interesses que, tra-
dicionalmente, são tomados em consideração pelo Direito Penal.38
Esta concepção está intimamente atrelada à compreensão
de Direito Penal como último instrumento de proteção. Mas, se
é o último, devemos ter como certo que não é o único. Todos

38 BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal: linea-


mentos de uma teoria do bem jurídico. In Revista Brasileira de Ciências Criminais,
São Paulo, RT, ano 2, n. 5, jan./mar. 1994, p. 10.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

os ramos do direito pensam na harmônica convivência social.


Apesar de a missão ser exatamente a mesma, o que diferencia o
Direito Penal dos outros ramos é a violência da sua intervenção
e as suas consequências jurídicas. O Direito Penal é direcionado
pelo princípio da intervenção mínima. É o único que tem como
consequência a pena privativa de liberdade.
E, sendo o Direito Penal instrumento de proteção dos bens
jurídicos mais importantes, como é feita essa proteção pelo Esta-
do? O Estado tipifica comportamentos e impõe sanções àqueles
que violarem as regras (tipicidade e pena). Aliás, Rogério Greco39
bem lembra que a censura vem corporificada por meio da pena. É
ela que irá ditar a gravidade do mal praticado.
Não podemos esquecer, porém, que a pena, além de conse-
quência do crime, é também uma manifestação de violência. No
Direito Penal Brasileiro, por exemplo, existem as penas de morte
(somente para os crimes militares próprios em tempo de guerra),
de privação de liberdade, de restrição de direitos e de multa. O
fato é que, quaisquer destas penas atingem os bens jurídicos prote-
gidos pelo Direito Penal. Se pelo crime de homicídio (CP, art. 121)
incrimina-se a produção da morte de alguém, pela pena de morte
também se mata alguém; se pelo crime de sequestro (CP, art. 148)
incrimina-se a violação da liberdade de locomoção de uma pessoa,
pela pena privativa de liberdade se viola esta mesma liberdade; se
pelo crime de furto (CP, art. 155) incrimina-se a violação do patri-
mônio de alguém, pela pena de multa também se viola o patrimô-
nio de uma pessoa.40 Se é a pena, também, uma forma de gerar um

39 GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito


Penal. 4. ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 65.
40 BRANDÃO, Cláudio. Significado Político-Constitucional do Direito Penal. In Jus-
tiça e Sistema Criminal – Revista produzida pelo Grupo de Pesquisa Modernas
Tendências do Sistema Criminal. Curitiba: FAE Centro Universitário. V. 3. Nº 4,
jan./jun. 2011, p. 81.
Airto Chaves Junior
20
Fabiano Oldoni

dano 41, devem as suas finalidades e efeitos colaterais da punição


relacionar-se a sua própria legitimidade político-criminal.
Assim, o primeiro limite imposto ao direito de punir do Estado
é a mais estrita necessidade de recorrer à punição (pena ou medida
de segurança), consubstanciado em dois princípios fundamentais: a)
o da subsidiariedade na seleção dos bens jurídicos (que opera in abs-
trato); b) a proteção aos bens jurídicos deve suportar a forma frag-
mentária, limitada a ataques mais perigosos (que ocorre in concreto).
Conforme Mir Puig42, negligenciar esses critérios seria abandonar al-
gumas das tarefas sócio-políticas que o Estado se propõe a cuidar.
A utilidade principal que cobre o estudo desse limite do po-
der punitivo do Estado é que ele deriva, especialmente, de uma
operação funcional, de condições de justificação da punição e a
sua necessidade de proteger a sociedade. O fundamento político
(que anuncia uma abordagem impositiva de respeito ao Estado
democrático de direito) ficaria num segundo plano.
Resumidamente, conforme os adeptos do funcionalismo mo-
derado, o Direito Penal é um dos instrumentos de proteção dos bens
jurídicos e, neste caso, de proteção daqueles bens de maior relevância
ao convívio social. Mas, algumas dúvidas aqui são levantadas: quais
os critérios de seleção desses bens jurídicos para tutela penal? Como
chegar ao quantum para determinar que um comportamento é mais
grave que o outro e, consequentemente, deve comportar pena maior?
A seleção dos bens jurídicos varia de sociedade para socie-
dade. Assim, o critério de seleção será o valorativo-cultural, con-
forme a necessidade de cada época. Existe uma zona de consen-
so, comum a toda e qualquer sociedade, no sentido de proteção a
determinados bens, com a criação de certas figuras típicas, como
ocorre, por exemplo, com as condutas que encontram tipicidade
nos crimes de roubo e homicídio. Por outro lado, existem zonas de

41 Conforme registrou Francesco Carnelutti, in El problema de la pena. Buenos Aires:


Europa América, 1947, p. 14.
42 MIR PUIG, Santiago. Introduccion las bases Del Derecho Penal. Montevideo:
Julio César Faria Editor, 2003, p. 112.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
21
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

conflito, nas quais condutas que são incriminadas e determinadas


sociedades já não o são em outras, a exemplo do crime de aborto.43
Vale dizer, no entanto, que essas questões são bastante tor-
mentosas. E por que afirmamos isso? Vejam que a seleção de bens
jurídicos nem sempre observa critérios legítimos. Disso derivam
bens jurídicos menos relevantes e com grande proteção e outros
que, apesar de sua maior importância não encontram no Direito
Penal a proteção merecida. Mas há razões dessa incongruência,
especialmente, quando constatamos que a proteção dos bens ju-
rídicos não ocorre em escala universal.
A coerção penal (basicamente, a pena) deve procurar ma-
terializar uma aspiração ética que será a razão de atuação do pró-
prio Direito Penal (seu “por que” e seu “pra quê”) a fim de buscar
a prevenção de futuras afetações de bens jurídicos. Por isso, con-
forme registram Zaffaroni e Pierangeli44, não se pode penalizar a
mulher que usa a saia dez centímetros mais longa ou mais curta
porque contraria as últimas tendências da moda ou então, porque
desagrada às comadres do bairro. Por outro lado, pode-se penali-
zar quem pratica um ato sexual na via pública e à vista de todos,
porque esse comportamento afetaria o sentimento de recato e
reserva sexual daqueles que se vêem constrangidos a presenciar
aquele comportamento contra a vontade.
Isso, é bom anotar, relação alguma tem com moralidade. Uma
pessoa que se dispõe a fazer sexo em troca de dinheiro pode, a de-
pender de quem enxerga, praticar um comportamento que ataca a
moralidade. No entanto, referida prática não pode ser alvo de atu-
ação do Direito Penal, pois não afeta qualquer bem jurídico alheio.
Por isso, a sanção penal só seria legítima quando se prestasse
para restabelecer a ordem jurídica afetada pela conduta humana,
violadora de interesses do corpo social. Mas, indaga Nilo Batis-

43 GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito


Penal. 4. ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 67.
44 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 88.
Airto Chaves Junior
22
Fabiano Oldoni

ta45: o que significarão interesses do corpo social numa sociedade


dividida em classes, na qual os interesses de uma classe são estru-
tural e logicamente antagônicos aos da outra?
E é justamente aí que esbarra a teoria do bem jurídico. Ao
que parece, há uma falsa universalidade do bem jurídico, o que
resta consubstanciado na manipulação do Direito Penal como
instrumento a serviço de proteção dos bens de alguns setores da
sociedade. Vejam que, segundo o discurso oficial, o Direito Penal
tem a missão de tutelar os interesses vitais e fundamentais das
pessoas e da sociedade. Mas, neste caso, quais seriam os interesses
definidos como “vitais”? Qual seria o âmbito de proteção?
Inicialmente, é necessário lembrar que em nossa sociedade
existe uma estrutura de poder político e econômico. Nesta estru-
tura, há segmentos ou setores mais próximos (ou hegemônicos) e
outros mais afastados dos centros de poder.46 De acordo com essa
estrutura, se procura “controlar” socialmente o comportamento
das pessoas. Esse controle é exercido por diversos segmentos de
poder denominado Sistema Penal. Esse Sistema engloba as ativida-
des do legislador, do público, da polícia, do ministério público, do
judiciário e dos funcionários que atuam na execução penal.
Zaffaroni e Pierangeli47 destacam três grupos humanos que con-
vergem na atividade institucionalizada do sistema penal: o policial, o
judicial e o executivo penal. No entanto, por óbvio que são também
importantes os legisladores e o público. Este último exerce impor-
tantíssimo papel, pois com as delações, tem a faculdade de pôr em
funcionamento o sistema. Além disso, controla a atuação dos demais
segmentos de forma que, quando o público se retrai, as denúncias
diminuem e o sistema encontra dificuldades em criminalizar pessoas.

45 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. 8. ed. Rio de Ja-
neiro: Revan, 2002, p. 21.
46 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 70.
47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 64-65.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
23
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Os legisladores, por outro lado, são os que dão os padrões


de configuração, embora frequentemente eles mesmos ignorem o
que realmente criaram, superestimando seu poder seletivo. Para
os autores supra referidos, a polícia é o segmento que comporta
maior poder seletivo, pois opera diretamente sobre o processo de
“filtragem” do sistema. Por esta razão é que não se tem uma po-
lícia independente, mas sim limitadíssima, mormente quando o
Poder Executivo possui um especial interesse na apuração ou não
apuração de determinado fato com aparência de crime.
Agora, será que temos uma sociedade homogênea política
e economicamente? Acreditamos que não. Contudo, não olvi-
damos que há grupos mais e outros menos próximos aos centros
de decisão. Essas pessoas, consideradas aptas a decidir, fazem isso
para proteger bens jurídicos de quem? A resposta, um tanto per-
turbadora, é trazida por Nilo Batista48, quando anota que numa
sociedade dividida em classes, o Direito Penal está protegendo
relações sociais (ou “interesses”) escolhidos pela classe dominan-
te, ainda que aparentem certa universalidade, contribuindo assim
para a reprodução dessas relações sociais desiguais. Há mais de
dois séculos, diagnosticando o domínio do poder econômico so-
bre o império das leis, Mayer Amshel Rothschild49 já havia deixa-
do consignado: “Dai-me o controle sobre a moeda de uma nação,
e não terei por que me preocupar daqueles que fazem suas leis.”
Nesse ínterim, não é difícil constatar que a escala de proteção
dos bens jurídicos considerados “úteis para a sociedade” coincidi-
rão com aqueles alinhados aos valores das classes sociais hegemô-
nicas da formação social. E qual a razão? Sabemos que somente
essas pessoas que detém certa medida de poder (e consideradas
especialmente preparadas), poderão decidir acerca daquilo que é

48 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro.8. ed. Rio de Janei-
ro: Revan, 2002, p. 116.
49 Banqueiro alemão de origem judaica e fundador do império bancário da Família
Rothschild. Viveu entre 1744 e 1812 e foi considerado pela Revista Forbes, em 2005,
como “pai fundador das finanças internacionais”.
Airto Chaves Junior
24
Fabiano Oldoni

“socialmente útil” para o equilíbrio interno do sistema50, pelo que,


utilizam-se do Direito Penal para realizar a autoproteção.
Agora, se os bens jurídicos que o Direito Penal tem a missão
de proteger não são universais, o discurso que serviria de instru-
mento de proteção desses bens, não encontra correspondência
no plano prático operativo. Vejam que, a partir desse tradicional
discurso jurídico de missão protetiva de bens e ainda, preventiva
do sistema penal, é possível concluir duas situações:
1ª. O Direito Penal tem como missão precípua a proteção
subsidiária e fragmentária de bens jurídicos (prevenção geral positi-
va). Caso isso não funcione, conforme o proposto, entra em cena a
segunda missão; qual seja
2ª. O Direito Penal, por meio da pena (privativa de liberdade ou
não), busca a “ressocialização”51 do condenado (prevenção especial positiva).

Tem-se, com isso, o discurso declarado do sistema penal. Um


discurso largamente difundido e que, a partir dele, o sistema procura
legitimidade para operar. E, conforme veremos mais adiante, essa le-
gitimidade parte de todos os segmentos formais e informais da socie-
dade. Conforme esse discurso, então, o Direito Penal objetiva (tem
a missão) de proteger aquilo que é necessário para a coexistência e,
incessantemente, busca esses objetivos por meio de seus segmentos.
O ponto de partida é: essa missão comporta correspondência com as
suas funções? Ao que parece, a discrepância é flagrante!

50 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Críticos de Direito Penal. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2010, p. 34.
51 Se admitirmos que a pena tem por função ressocializar o infrator, estaremos reconhe-
cendo que o direito penal é seletivo e estruturado para alcançar uma determinada
classe social. Historicamente, a corrupção é prática comum dentro da política bra-
sileira. A elite ali concentrada, como regra, frequentou os melhores colégios (tem
educação), possui os melhores planos de saúde e, como sabemos, não passa por qual-
quer privação de ordem alimentar. Dentro dessa perspectiva, será que precisam eles
ser ressocializados? Essa compreensão, por óbvio, destoa por completo daquilo que
frequentemente se enxerga. A ideia de pena como instrumento ressocializador é a
confissão de que o Direito Penal se destina a quem está à margem social.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
25
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

A Criminologia Crítica e a Sociologia do Direito Penal con-


temporâneo assinalam que as suas reais funções são bastante di-
vorciadas das missões difundidas no discurso oficial (aparente).
Conforme Zaffaroni e Pierangeli52, para alguns, o sistema penal
teria a função de selecionar, de forma mais ou menos arbitrária,
pessoas dos setores sociais mais humildes, criminalizando-as para
indicar aos demais desses mesmos setores os limites de seu espaço
no âmbito social. Para outros, cumpriria a função de sustentar a
hegemonia de um setor social sobre outro.
Essas funções, obviamente, não são anunciadas de forma
manifesta. Na verdade, são funções invertidas àquelas propostas
confessadas. Neste sentido, a proteção subsidiária e fragmentária
de bens jurídicos e a “ressocialização” do condenado seriam ape-
nas missões aparentes (não reais) do Direito Penal. Sua função
latente (objetivo verdadeiro) seria contribuir para a reprodução
das relações sociais de desigualdade, sustentando a hegemonia de
um setor social sobre outro. Para citados autores53, isso já é o su-
ficiente para concluir acerca da enorme dificuldade de se teorizar
uma função socialmente útil para esse instrumento de controle.
O sistema penal faz parte do segmento de controle social
punitivo institucionalizado (ou formal). Controle social é tudo
aquilo que influencia o comportamento dos membros da socieda-
de.54 Esse controle é extremamente amplo, de maneira que trans-
cende aos segmentos formais (controle social institucionalizado).
Temos, nesta seara, uma fração de controle informal (difusa) e
outra fração formal (institucionalizada).
A partir desse ponto iniciaremos a análise do controle social
pelos segmentos informais. Depois de avaliados aqueles que, em
nossa ótica, repercute mais contundentemente no plano social,

52 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal


brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 70.
53 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 70.
54 Conceito operacional proposto por SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica:
introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 113.
Airto Chaves Junior
26
Fabiano Oldoni

trataremos do controle formal institucionalizado, que abrange o


Sistema Penal, mais especificamente.

3. OS SEGMENTOS INFORMAIS DE CONTROLE SOCIAL55


Podemos compreender o sistema de controle social como um
conjunto de sistemas normativos (religião, ética, costumes, usos,
terapêutica e direito [aqui compreendido a lei, a polícia, o judici-
ário, o Ministério Público]) cujos portadores, através de processos

55 Na sociologia, o tema do controle social informal está diretamente ligado ao processo


de socialização, ou seja, processo no qual somos preparados para viver em sociedade
por meio dos sistemas sociais e seus símbolos, valores, linguagens, crenças etc., que
definem um padrão social para se garantir um consenso mínimo de vida coletiva. Se
olharmos na perspectiva do padrão individual, são os sistemas sociais que permitem
ao indivíduo desenvolver a sua identidade, seus próprios valores e crenças. Durante
muito tempo a Sociologia entendeu que este processo de socialização era universal,
linear, hierárquico e tinha o poder demoldar os sentimentos, pensamentos e com-
portamentos dos indivíduos, e que o processo de individuação nada mais era do que
fruto da socialização. No entanto, a partir das últimas décadas do século XX, vários
autores/as questionaram estas características da socialização em busca de um novo
entendimento do papel do indivíduo e da sociedade (“retorno do ator”). Apenas
para ilustrar, foi no campo dos estudos da infância que este questionamento foi mais
efetivo, pois ali havia uma tradição sociológica de compreender a teoria da sociali-
zação como um processo no qual a criança absorve passivamente as regras e o com-
portamento socialmente esperado para elaspor intermédio de dois tipos de ações: 1)
a ação das instituições, sobretudo a escola e a família, e 2) a ação de uma geração
hierarquicamente superior a ela, isto é, os adultos, principalmente os pais e os/as
professores/as. Ao questionar a forma como as crianças eram socializadas mediante
única e exclusivamente a ação das instituições e dos adultos, originou-se um amplo
e atual debate sobre a Sociologia da Infância, que veio “emancipar” as infâncias e
as crianças, antes restritas a uma só forma de socialização. Como diz o sociólogo
português Manoel Sarmento, a desconstrução da teoria da socialização permitiu a
“emancipação da infância como objecto teórico e a interpretação das crianças como
seres sociais plenos”, isto é, “dotados de capacidade de acção e culturalmente criati-
vos.” Logo, não há como discutir, no caso da Sociologia, o controle social sem antes
saber das atuais críticas ao modelo de socialização, que em resumo, significa dizer
que há vários tipos de socialização, e não mais uma única operada pelas instituições
tida como a certa e as demais como deficiente (In OLIVEIRA, Ana Cláudia Delfini
Capistrano de. Estudos sociológicos sobre infância no Brasil: crianças sem gênero?
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, linha de
pesquisa Gerações, gênero, etnia e educação, como requisito parcial para a obtenção
do Grau de Doutora em Sociologia Política. UFSC, Florianópolis, 2011, p. 44-51).
Para que(m) serve o Direito Penal? -
27
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

seletivos (estereotipia e criminalização) e estratégias de socializa-


ção (primária e secundária ou substantiva), estabelecem uma rede
de contenções que garantem a fidelidade das massas aos valores do
sistema de dominação, o que, por motivos inerentes aos potenciais
tipos de conduta dissonante, se faz sobre destinatários sociais dife-
rencialmente controlados segundo a classe a que pertencem.56
O controle social determina os limites de atuação do ho-
mem ou, nas palavras de Muñoz Conde, determina a “liberdade
humana na sociedade”57. Portanto, apresenta-se como algo im-
prescindível, não havendo “alternativas ao controle social”.
Neste capítulo, procuraremos identificar e analisar alguns
dos segmentos do controle social informal que, neste aspecto,
parecem ser os mais importantes e significantes, tais como a famí-
lia, a escola, a mídia, a moda (consumo, capitalismo) e a religião.
Cada segmento do controle social informal possui regra-
mentos próprios, que podem ser escritos ou consuetudinários,
com previsão ou não de sanção, em caso de descumprimento.
Mas o que diferencia este regramento/punição daquele previsto
no controle social formal é a imperatividade e a exigibilidade.
Apesar de atribuírem ao Direito (controle social formal), as ca-
racterísticas da exterioridade, da heteronomia, da coação e da bilate-
ralidade, apenas a imperatividade e a exigibilidade lhe são inerentes.
A exteriorização– visa regular a conduta exterior dos ho-
mens – não é uma característica sempre presente no Direito, que
também pode regular as condutas interiores, na medida em que
anuncia ou deixa esperar uma conduta exterior. Ex: diferentes
formas de culpa e a boa-fé; o perigo moral a um menor já autoriza
a intervenção e proteção do Estado58. No controle informal temos
os costumes, ritos e mitos que norteiam diariamente a vida social.

56 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan/


ICC, 2005, p. 54-55.
57 MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 2005, p. 22.
58 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes,2004, p. 179.
Airto Chaves Junior
28
Fabiano Oldoni

A heteronomia – homem necessariamente obrigado a obede-


cer regras postas por outrem – também não é impreterível ao Direi-
to. Para Reale59 o Direito também pode ser autônomo (inerente à
moral) quando as regras são postas pelo indivíduo ou reconhecidas
espontaneamente por ele. Pode haver cumprimento de uma regra
jurídica com plena correspondência entre a “vontade da lei” e a
“vontade do obrigado”. No controle informal, temos os costumes
morais/éticos/grupais, interferindo e norteando o fazer humano.
Se para Kant e Jhering a coação é elemento necessário e
intrínseco ao Direito, para Thomasius o Direito não se realiza
sempre pela força, podendo haver a realização espontânea. Deve-
mos diferenciar a coação no sentido de coercível (coercibilidade)
– estado latente, em potencial (Thomasiuse Reale) – da coação
no sentido de coercitivo (coercitividade) – coerção sem a qual
não haveria Direito (Kant e Jhering). Ora, a coação também se
apresenta como característica da religião, dos costumes, da famí-
lia, não sendo, portanto, exclusiva do controle formal.
Já a imperatividade e a exigibilidade são características ex-
clusivas do Direito, na medida em que a aplicação da norma jurí-
dica é destinada a todos, indistintamente, a qual deve ser obriga-
toriamente observada, estando amparada pelo Estado.
Sintetizando, o controle social informal possui as características
da coação (a escola que frequentamos nos coage (influencia) a agir
desta ou daquela forma; da exteriorização (regula a conduta exterior
dos homens, como cada um deve agir perante a sociedade) e da hete-
ronomia (o homem está sujeito a cumprir regras postas por outrem).
Isso é importante para que possamos compreender que o
controle social informal não possui a imperatividade e a exigibili-
dade. Ou seja, determinada família possui algumas regras próprias
de conduta: fazer uma oração antes das refeições; os filhos não
devem sentar-se à mesa ou servir-se antes dos pais. Estas regras
não são imperativas, eis que elas podem valer para uma família,

59 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. Saraiva, 2002, p. 286.


Para que(m) serve o Direito Penal? -
29
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

mas não para outra. Também não são exigíveis, pois apesar do seu
descumprimento poder gerar uma punição, não há instrumento
legal que obrigue os seus destinatários a cumpri-las. Outro exem-
plo: podemos fazer parte de uma associação religiosa que possui
regras próprias, que valem apenas para esta instituição privada,
as quais não somos obrigados a seguir, nem que para isso sejamos
expulsos da instituição, num típico ato de censura social, como
diz Russell60, o que é diverso do controle social formal, onde a lei
vigente vale para todos, querendo ou não, e o seu descumprimen-
to gera ao Estado o direito de fazer com que nós a cumpramos61.
Colocadas estas informações, passaremos a descrever cada
um dos segmentos de controle social informal que nos parecem
importantes e mais determinantes, procurando identificar a in-
fluência que este controle exerce e se ele é positivo ou negativo.

3.1 Primeiro Segmento do Controle Informal:


família (Pai e mãe, onde vocês estão?)
Talvez seja certa a afirmativa de que a família é a principal
célula formadora da sociedade. Também, ninguém duvida da im-
portância da família na formação moral e ética dos seus integran-
tes. Não será esta a discussão a ser travada neste espaço. O que
pretendemos é discutir até que ponto a família está efetivamente
exercendo seu papel e quais os efeitos da sua atuação. Como es-
tão vivendo as pessoas em seu núcleo familiar?
No passado, a família era constituída por um núcleo que ul-
trapassava pais e filhos. Família era entendida num sentido amplo

60 RUSSELL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 59.


61 Caso alguém não pague o aluguel, o locador poderá valer-se da lei e pedir judicial-
mente o despejo do inquilino. O Estado, através do judiciário, emitirá uma ordem
para que o inquilino desocupe o imóvel dentro de um determinado tempo e caso ele
descumpra esta ordem, o Estado/Judiciário determinará que um oficial de justiça,
juntamente com a força policial, retire-o do imóvel, mesmo contra a sua vontade,
podendo até usar a força. Aí estão a imperatividade e a exigibilidade.
Airto Chaves Junior
30
Fabiano Oldoni

– pais, filhos, avôs, tios, primos etc. – sendo que todos conviviam
muito próximos e sempre sob as ordens do mantenedor patriarcal.
Este modelo familiar desintegrou-se com o desenvolvimento eco-
nômico e o consequente individualismo.
Importante também destacar a atuação dos movimentos de
mulheres e do movimento feminista que questionou o patriarcado e
até mesmo a naturalização da violência do homem contra a mulher
e os filhos na família. A primeira onda do movimento feminista data
do final do séc. XIX e foi marcada pela reivindicação dos direitos
civis e políticos das mulheres. O movimento de segunda onda é tri-
butário das lutas do feminismo e do movimento de mulheres nas
décadas de 1960 e 1970. Sua característica principal foi ampliar a
“questão das mulheres” para os domínios do privado, como “as lutas
pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o patriarcado – entendido
como o poder dos homens na subordinação das mulheres”.62
Ainda resta a família nuclear, constituída pelo casal e pela
prole reduzida, mas que também está em crise63, conforme sugere
Edgar Morin64, para quem o trabalho das mulheres65, os encon-

62 OLIVEIRA, Ana Cláudia Delfini Capistrano de. Estudos sociológicos sobre infância no
Brasil: crianças sem gênero? Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia
Política, linha de pesquisa Gerações, gênero, etnia e educação, como requisito parcial para a
obtenção do Grau de Doutora em Sociologia Política. UFSC, Florianópolis, 2011, p. 25.
63 A crise pode ser também o start para mudanças positivas, como por exemplo, a capaci-
dade de negociação familiar, as liberdades individuais versus a “estatização” da família,
o processo de reflexividade social, maior diversidade nos relacionamentos amorosos, os
novos tipos de casamento enfim, as novas dinâmicas familiares quebram a idealização
da família tradicional e nos colocam desafios novos. Afinal de contas, as mudanças na
família nada mais são do que reflexos das mudanças sociais, culturais, políticas etc.
64 MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2013, p. 357.
65 Destacamos que são 22 milhões de mulheres que assumiram a responsabilidade em
38,7% dos lares. Nas estatísticas, as mulheres são as responsáveis em 38,7% dos
domicílios, o que representa 22 milhões de unidades, de acordo com o último censo
demográfico do IBGE, de 2010. No levantamento anterior, em 2000, essa chefia fe-
minina estava em 24,9% dos lares, o que indica a importância da mulher como man-
tenedora familiar (IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. 2010, dis-
ponível em http://oglobo.globo.com/infograficos/familias/ acesso em 13 fev. 2014).
Para que(m) serve o Direito Penal? -
31
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

tros externos de cada um dos esposos, o superdesenvolvimento de


um individualismo forçado, a liberdade sexual, as incompreen-
sões e disputas minam e acabam por destruir o casal.
Não há dúvida que a sociedade moderna, movida pelo con-
sumo e pela liquidez de suas relações (Bauman), ocasionou uma
mudança de paradigma na família.
Estudo realizado pela Catho Online66 sobre os profissionais
brasileiros, no período de 24 de fevereiro de 2013 a 18 de março
de 2013 e divulgado em agosto do mesmo ano, demonstrou que
a mulher trabalha em média 43.2 horas semanal, enquanto o ho-
mem trabalha em média 45.1 horas semanal, ou seja, o mercado
de trabalho está norteando o “tempo” entre os pares.
A partir desta nova formatação familiar (pai e mãe traba-
lhando fora em turnos iguais), surgiu a necessidade de relocar o
filho para o espaço escolar desde os primeiros meses de vida. Hoje
as crianças vão para a escola em idade precoce e por lá ficam,
invariavelmente, durante todo o dia.
A mesma pesquisa realizada pela Catho, mostra que as mulhe-
res que deixam o mercado de trabalho para ser mães retornam em
média após 1 ou 2 anos aos seus empregos, com a colocação dos
filhos na escola em período integral, na maioria das vezes, já que tra-
balham, em média, 43.2 horas semanais. A dupla jornada e a preca-
rização do salário, pois as mulheres recebem aproximadamente 30%
a menos que os homens pelo mesmo trabalho realizado, também são
problemas da família pós-moderna, líquida e sobrecarregada.
Estamos diante de um fenômeno que podemos denominar
de terceirização da educação filial, que se inicia nos primeiros anos
de vida e se prolonga por toda a idade infantil.
Os pais acabam transferindo à escola a educação dos filhos e
enquanto a escola “educa” as crianças, os pais cumprem com suas
jornadas diárias de trabalho, em um frenesi alucinante que não
pode ser interrompido. Afinal, eles têm a casa, o carro e tudo mais

66 Site de classificados de currículos e vagas de emprego de maior audiência na América Latina.


Airto Chaves Junior
32
Fabiano Oldoni

para pagar. A máquina do consumo não permite a estagnação,


como bem dramatizou Chaplin em Tempos Modernos.
De forma alguma estamos criticando a busca pelo bem estar e
pela comodidade material. Tampouco criticamos o fato de ambos
os pais buscarem espaço no mercado de trabalho. A emancipação
da mulher no trabalho é uma conquista importante e necessária.
Porém, é inegável que estas mudanças provocaram uma crise no
sistema familiar tradicional. E justamente por isso pretendemos
identificar as possíveis consequências destas “novas” posturas em
nossa sociedade. A ausência dos pais e a superficialidade nas re-
lações familiares é evidente e consequentemente a “sociedade”
adoece, já que o que vai definir o que somos é a relação com o
outro. O outro é mediador indispensável, já dizia Sartre.
Não se enganem em pensar que a terceirização da educação
e do afeto dos filhos é uma realidade encontrada apenas nas clas-
ses menos favorecidas economicamente. As famílias, com melhor
poder aquisitivo, também acabam por cometer o mesmo equívoco
ao delegarem a “educação” dos filhos para terceiros, mesmo que
dentro do próprio lar. Assim é que a procura por babás ou baby
sisters tem aumentado consideravelmente, num fenômeno que as
tem transformado em verdadeiras “mães” em tempo integral.
Pesquisa realizada em 2010 pelo instituto Datafolha67, a pe-
dido da Sociedade Brasileira de Pediatria, mostrou que 87% das
crianças brasileiras entre 4 a 10 anos disseram que o que mais as
deixam feliz é estar próximo da família. O resultado da pesqui-
sa, se não surpreende, causa uma preocupação, já que o desejo
das crianças é paradoxal à realidade encontrada. Elas estão sendo
afastadas de seus pais e familiares cada vez mais cedo, por conta
do ingresso destes no mercado de trabalho e pela inclusão dos
pequenos nas escolas em tempo integral.

67 SOU DA PAZ. Mortes violentas na cidade de São Paulo: estudo divulgado em janeiro de
2014, referente a dados de 2011. Disponível em http://www.soudapaz.org/o-que-fazemos/
noticia/mortes-violentas-na-cidade-de-sao-paulo/25, acessado em fevereiro de 2014.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
33
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Explica Leviski que o pai (e mãe) simbólico, orientador, que


sinaliza o eixo, os limites e o elemento materno, continente e pro-
vedor estão esmaecidos, confusos, ambivalentes quanto aos seus
papéis e valores a serem transmitidos. A mulher conquistou no-
vos espaços na sociedade, mas, em contrapartida, grandes perdas
estão ocorrendo na qualidade das primeiras relações mãe-bebê e
na realização da função materna. Estes fenômenos são devidos,
em parte, às transformações rápidas, difíceis de serem acompa-
nhadas, características da cultura vigente68.
Por outro lado temos os pais que, preocupados com a sua função de
provedores, também não conseguem exercer satisfatoriamente as fun-
ções paternas, isso quando não abandonam completamente a família.
Esta integração forçada, a que estão submetidas as crianças,
representa, para elas, um conflito muito sério entre a casa e a esco-
la, entre a sua vida privada e a social e, embora esses conflitos sejam
comuns na vida adulta, não se pode esperar que as crianças saibam
lidar com esses problemas e assim não se deveria expô-las a eles69.
Há até quem afirme que a inserção da mulher no mercado
de trabalho, que distancia ainda mais filho e mãe e que fragiliza os
mecanismos de socialização da criança, resulta no fortalecimento
da trajetória delituosa70, o que, pensamos, também deve valer às fa-
mílias onde a ausência no lar é do pai. A família vulnerável pode le-
var seus filhos a esta trajetória quando um dos genitores é ausente.
Não se pode negar que a família da sociedade atual se estru-
tura de forma muito diferente da família de nossos pais e avós. A
fragmentação familiar como consequência do individualismo exa-
gerado é, hoje, uma realidade. Cada um no seu quarto, com seu

68 LEVISKY, D. L. Aspectos do processo de identificação do adolescente na sociedade


contemporânea e suas relações com a violência. In: ______. Adolescência e violên-
cia: consequências da realidade brasileira. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. p. 29.
69 ARENDT, Hannah. Reflexões sobre Little Rock. In Responsabilidade e julgamento. Ed.
Jerome Kohn. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 280.
70 ROLIM, Marcos. A síndrome da rainha vermelha: policiamento e segurança pú-
blica no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford/Inglaterra: University of
Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006. p. 173.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

aparelho de telefone celular, centrado no seu mundo, o que por


consequência acaba por afetar a formação moral e ética dos filhos.
Não que isso seja um fator determinante para a criminalidade e o
desvio. No entanto, não podemos ignorar que esse modelo familiar
pode funcionar de instrumento facilitador para o desvio. O que
restaria para aquele que não tem a dignidade de se sentir cuidado?
Basta, neste ínterim, fazermos uma análise dos jovens em con-
flito com a lei penal. Constataremos que a incomensurável maioria
dos jovens alcançados pelas agências formais de repressão cresceu
em uma família fragmentada, ou até mesmo longe dos pais (criados
por avós, tios, etc.), sem que tivessem vivenciado aqueles valores
que muitas vezes somente o binômio pai/mãe pode transferir ou,
pelo menos, tem mais condições de ensinar aos filhos. Diante disso,
não é demais afirmar que uma parte significativa dos jovens em
conflitos com a lei é proveniente de famílias em vulnerabilidade
social e moral. Afeto, diálogo e presença são fatores que devem
integrar o processo de educação desde a tenra idade.
Vemos, porém, que nem mesmo a presença dos pais na cria-
ção dos filhos é garantia de que os mesmos serão devidamente
amparados e orientados. É preciso investir nestas relações.
Estudo realizado pelo Desembargador Marco Antônio Scapini71,
quando juiz da Vara da Execução Penal de Porto Alegre, evidencia
que a maioria dos detentos que cumpriam pena por crime de estupro
haviam sido vítimas de violência sexual no meio familiar, crimes estes
praticados pelos próprios pais e demais familiares próximos, violência
esta dificilmente denunciada às autoridades policiais ou judiciais.
O Ministério da Saúde, em estudo divulgado em maio de 2012
sobre a violência praticada contra menores, demonstrou que a vio-
lência sexual contra menores até 14 anos é a segunda conduta mais
praticada, perdendo apenas para o abandono/negligência. Na faixa
etária entre 15 a 19 anos a violência sexual ocupa a terceira posição.

71 NASSIF, Aramis. Direito penal e processual penal: uma abordagem crítica. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 135.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
35
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Os números revelam também que 22% do total de casos de


violência contra menores foram praticados contra crianças de até
1 ano de idade e 77% foram contra crianças na faixa etária de
1 a 9 anos. A maior parte das agressões ocorreu na residência
da criança (64,5%), e a maior parte dos agressores é alguém do
convívio muito próximo da criança e do adolescente: o pai, algum
parente ou ainda amigos e vizinhos.
Outro exemplo de que a família não representa, hoje, uma
garantia absoluta de proteção é a edição da Lei nº 11.340/2006
(Lei Maria da Penha), que visa, primordialmente, coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher. Esta lei determina que os
Estados criem órgãos policiais e judiciais de proteção e combate à
violência doméstica, como delegacias e varas criminais especializa-
das na matéria, o que, de fato, evidencia a gravidade do tema.
O ambiente familiar, mesmo que em menor escala, também se
apresenta como o nascedouro de muitas práticas perniciosas, dei-
xando de ser uma instituição segura, apresentando as mulheres e as
crianças como as vítimas mais comuns.72 A violência crescente no
interior da família – tanto em relação à mulher como em relação às
crianças – é um dado que chama a atenção, tendo em vista o grande
número de crianças abusadas, espancadas e até mesmo assassinadas
pelos pais, sem falar nos abusos psicológicos. Este fenômeno está pre-
sente em todas as classes sociais e não raras vezes há uma aceitação
por parte da sociedade, que entende terem os pais o direito de prati-
car tais atos, especialmente as agressões físicas mais leves.73
Quanto ao desenvolvimento infantil, verificou-se, por estudos,
que quando o crescimento ocorre em meio a ambiente conflituoso, há
grande possibilidade da criança desenvolver intenso sofrimento psí-
quico e comportamentos irritadiços no decorrer da infância, diante

72 Ver YOUNG, Jack. El fracaso de la criminologia: la necesidad de un realismo radi-


cal. In Criminologia critica y control social: El Poder Punitivo del Estado, vários
autores, editorial Juris: Rosário, 2000, p. 31.
73 BOCK, Ana Maria Bahia; Furtado, Odair e Teixeira, Maria de Lourdes. Psicologias:
uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 285/286.
Airto Chaves Junior
36
Fabiano Oldoni

das dificuldades de adaptação, e na adolescência, pelas críticas cir-


cunstâncias adaptativas e conflitos do início da vida adulta. Estas in-
terferências podem fomentar os traços impulsivos e a falta de atenção,
e podem resultar no comportamento agressivo, na idade jovem.74
O modelo patriarcal também acarreta outra prática muito usu-
al nos crimes de tráfico, que é a coação por parte do pai/marido/
companheiro, contra a mulher e/ou os filhos para participar da venda
da substância ou, pelo menos, da sua guarda. Em muitas situações,
os demais familiares sabem que o pai/marido/companheiro guarda
a droga dentro de casa e, pelo receio e até mesmo para evitar a pri-
são e a “desconstrução” da família, aceita tal condição, encobrindo a
conduta ilícita. Constitui-se uma representação familiar tal situação,
onde a droga/violência/insegurança são corpos desta estrutura.
Fica esclarecido que não negamos a importância da família
como primeiro segmento a (tentar) praticar o controle/orienta-
ção informal no indivíduo, quando ainda criança, pois certamen-
te é ele o mais importante que temos, já que sua missão seria
justamente assegurar aos seus componentes o exemplo do que é
viver em sociedade. O problema é que a família, no modelo atual,
não tem se mostrado tão eficiente diante das novas perspectivas
sociais. E qual o fundamento dessa afirmação?
A família está desestruturando-se e, por consequência, per-
dendo força e capacidade de orientar positivamente seus mem-
bros. Porque a família, independentemente da sua formatação ou
estruturação (tradicional ou monoparental) tem agido de acordo
com o modelo de produção capitalista de consumo sem limites.
É a época da “ostentação” pelo dinheiro, pela força, pelo corpo,
mensagem trazida pelas músicas, novelas, mídia etc.
Este sistema é tão desumano que nega às crianças o próprio
e natural direito de serem crianças. Tratam os meninos ricos e
provenientes de famílias abastadas como se fosse dinheiro, isso

74 ROLIM, Marcos. A síndrome da rainha vermelha: policiamento e segurança pú-


blica no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford/Inglaterra: University of
Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006. p. 116.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua; os meninos


pobres, ao contrário, são tratados como verdadeiro lixo, para que
se transformem em lixo e também, de forma natural, sejam ades-
trados a assumirem essa condição de não servir aos meios de pro-
dução. Aqueles que se encontram no centro (nem ricos, nem po-
bres) atam-se à frente do televisor, para que aceitem desde cedo,
como destino, a vida prisioneira (futuros adultos asfixiados pelas
dívidas, dominados pelo pânico de viver, de morrer, de perder o
emprego, o carro, a casa, o pânico de não chegar a ter o que se deve
ter para chegar a ser)75 em que estão inseridos.
O jovem, criado neste modelo, faz qualquer coisa para pos-
suir o objeto, com a esperança de uma mudança de lugar, para
encontrar o reconhecimento social, que lhe é negado76. Dessa
forma, não é difícil entender por que o jovem opta, com frequên-
cia, pelos atos de roubar e furtar.
O Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducati-
vo ao Adolescente em Conflito com a Lei, realizado no ano de
2012 pelo SINASE, mostra que 39,3% dos atos infracionais são
de roubo (primeiro lugar) e 5,6% de furto (quarto lugar). Já o
tráfico de drogas ocupa a segunda posição com 26,6% dos atos
infracionais, o que comprova a busca pelo lucro fácil, pelo ter.
Não podemos esquecer que a ideologia do sistema capitalista
é a individualização das pessoas e das famílias, o que se aperfeiçoa
através da competição, onde as qualidades individuais são privile-
giadas77. É justamente filhos de famílias sem estrutura emocional,
educacional e cultural (não necessariamente nesta ordem e não
necessariamente a ausência de todos ao mesmo tempo) que, na
sua maioria, povoam nossas prisões.

75 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9 ed., Porto
alegre: L&PM, 2007, p. 11 e 20.
76 OLIVEIRA, Carmen Silveira de. Sobrevivendo no inferno: a violência juvenil na
contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina, 2001. p. 60-63.
77 GUARESCHI, Pedrinho A. Sociologia crítica: alternativas de mudança. 36. ed.
Porto Alegre: Mundo Jovem, 1995. p. 83.
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Fabiano Oldoni

Evidente que vivemos uma crise de autoridade78, sendo que


o sintoma mais significativo que indica a sua profundeza e serie-
dade é ter ela se espalhado na criação dos filhos e na educação79.
Cunhando a terminologia proposta por Bauman, vivemos em
“famílias líquidas”, cenário que deve ser avaliado como um desti-
no natural para a instituição familiar. Edgar Morin sugere o amor
como instrumento a resgatar as relações familiares, tanto entre o
casal como entre estes e os filhos. O amor é o que temos de mais sa-
grado, razão pela qual deve ele ser digno de cultivo cada vez maior.

3.2 Segundo Segmento do Controle Informal:


escola (Ensinar ou educar?)
“Gostaria de ver um mundo em que a educação tivesse por
objetivo antes a liberdade mental do que o encarceramento do
espírito dos jovens numa rígida armadura de dogmas (...)” 80.
Esse pensamento exteriorizado por Bertrand Russell propõe um
novo modelo de sociedade baseado em valores como justiça so-
cial e máxima liberdade individual, sobretudo, do pensamento.
Para tanto, o autor tratava como elemento essencial o mínimo de
controle e opressão de poderes centrais sobre as pessoas. Tanto
que um dos princípios daquilo que denominaram de seu “código
de conduta” rezava: “Não tenhas certeza absoluta de nada.” As
razões são simples: o “duvidar”, o “pensar”, o “questionar” são ini-
migos primeiros do controle exercido através dos bancos escolares.

78 A ideia de autoridade que usamos é a de Hannah Arendt: “a autoridade exclui a


utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si
mesmo fracassou” (in Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa.
7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 129).
79 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7
ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 128.
80 RUSSELL, Bertrand. Porque não sou cristão: e outros ensaios sobre religião e assun-
tos correlatos. Tradução de Brenno Silveira. Livraria Exposição do Livro, 1972, p. 8.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
39
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Dentre as entidades de controle informal, entendemos que


o segmento escolar se caracteriza como a entidade mais inepta ao
exercício deste controle, assemelhando-se, no quesito “ineficá-
cia”, ao cárcere. Conforme sugere Alessandro Baratta81, a homo-
geneidade do sistema escolar e do sistema penal corresponde ao
fato de que realizam, essencialmente, a mesma função de repro-
dução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical
da sociedade, criando, em particular, eficazes contra-estímulos à
integração dos setores mais baixos e marginalizados. Por isso, se-
gundo o autor, encontram-se no sistema penal os mesmos meca-
nismos de discriminação presentes no sistema escolar.
Este mesmo raciocínio é apresentado por Michel Foucault82,
que visualiza a escola e a prisão como dois microssistemas que
exemplificam as diferentes formas da manifestação individualizan-
tes do poder, uma vez que os membros que as compõem se encon-
tram observados e, através de prontuários criminais, fichas e bole-
tins escolares, são mais precisamente individualizados. Em ambos
os sistemas destaca-se a separação das pessoas, seu alinhamento,
sua colocação em série e a vigilância que se exerce entre elas.
Além da crise institucional da área da educação, mormente
nos níveis fundamental e médio, construiu-se um conceito de es-
cola neutra a pretexto de se manter imparcial. Desta neutralidade
resulta a falta de indicações seguras de rumos a seguir, quer seja
para eximir-se de responsabilidades ou por falta de comprometi-
mento dos profissionais da área da educação com seu público alvo.
A família de baixa renda, desinformada e excluída do pro-
cesso de globalização ou pelo contexto hodierno de ausência
dos pais (e nesse quesito independe a classe social), não oferece
amparo necessário aos seus jovens. Não encontrando este apoio
na família, tampouco orientação da escola “neutra”, não restam

81 Ver BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: intro-


dução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2002.
82 Ver Vigiar e punir: história da violência nas prisões, Petrópolis: Vozes.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

alternativas ao adolescente que passa, então, a decidir com base


no que aprende nas ruas, o que nem sempre é a melhor escolha,
podendo, muitas vezes, inclinar-se às margens da lei como saída
rápida para a resolução de seus conflitos.
Explica Zanella83, que as relações sociais entabuladas no con-
texto escolar organizam-se em razão das atividades que caracterizam
a própria escola: o ensinar e o aprender. A escola não deve servir
como substitutivo familiar. Por mais que se trabalhe com ética, moral
e demais temas intrínsecos às relações sociais, a escola não tem como
prerrogativa principal a retificação de caracteres desviados.
Para Hannah Arendt84a escola não é de modo algum o mundo e
não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos
entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que
seja possível a transição de alguma forma, da família para o mundo.
Escola deve ser lugar de relação, coletividade, reflexão e
construção. Além da aprendizagem do mundo letrado, é lugar de
fazer-se atuante/ativo em direção ao mundo, para não “engolir”
passivamente um modo de ser que limita e encarcera.
Mais preocupante ainda é se levarmos em conta a crítica de
Guareschi85, para quem a escola não tem nada de “neutra”. Cons-
titui-se, na verdade, em um aparelho ideológico criado pelo grupo
dominante para reproduzir seus interesses, tendo relação direta
com o modelo de produção do Estado. No caso, a escola estaria
a serviço do modelo capitalista e, por isso, desempenharia duas
funções: a) preparar mão-de-obra para o capital; b) reproduzir as
relações de dominação e de exploração, ao utilizar como teoria da
aprendizagem a “matriz dos condicionamentos”86.

83 ZANELLA, Andréa Vieira. Psicologia social e escola In STREY. Marlene Neves et al.
Psicologia social contemporânea: livro texto. 2. ed., Petrópolis: Vozes, 1998, p. 227.
84 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de
Almeida. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 238.
85 GUARESCHI, Pedrinho A. Sociologia crítica: alternativas de mudança. 36 ed.,
Porto Alegre: Mundo Jovem, 1995, p. 69/78.
86 Segundo o autor, a matriz dos condicionamentos utiliza como método de ensino a imitação
Para que(m) serve o Direito Penal? -
41
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Russell87 também nutre o mesmo entendimento, afirmando


que no âmbito da educação cooperam capitalistas, militaristas e ecle-
siásticos, uma vez que, para exercer seu poder, dependem todos da
prevalência do emocionalismo e da carência de julgamentos críticos.
Em contraste com grande parte dos países do mundo, que se res-
ponsabilizou amplamente pela educação pública de seu povo, o poder
público no Brasil não garantiu esse direito para todos, optando por
não institucionalizar o Sistema Nacional de Educação como instru-
mento para concretização de seus deveres. Tal opção contribuiu para
que nossa história educacional fosse tributária de políticas públicas,
cuja marca tem sido a da exclusão, revelada pelo, ainda, alto índice
de analfabetismo, pela pouca escolaridade dos brasileiros88, pelo frágil
desempenho dos estudantes89, pela não universalização da educação
básica e a não democratização de acesso à educação superior90.
Um dos equívocos mais frequentes e recorrentes nas análi-
ses da educação no Brasil em todos os seus níveis e modalidades,
tem sido o de tratá-la em si mesma e não como constituída e
constituinte de um projeto dentro de uma sociedade cindida em
classes, frações de classes e grupos sociais desiguais e com marcas
históricas específicas – colônia durante séculos, escravocrata e,
atualmente, capitalismo associado e dependente.91

e a repetição. O aluno imita e repete o que o professor faz, sem reflexão e análise crítica.
87 RUSSELL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 65.
88 Segundo dados do IBGE-PNAD, a taxa de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais
de idade é 8,6%, o que representa 12,9 milhões de pessoas e a média de anos de estudo do
brasileiro é de 7,3 anos. Disponível em http://www.ibge.gov.br, acessado em agosto de 2013.
89 O Brasil ocupa a posição 53, num total de 65 países avaliados pelo Programa In-
ternacional de Avaliação de Alunos, em pesquisa divulgada no ano de 2010 pela
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
90 GRACINDO, Regina Vinhaes. O Sistema Nacional de Educação e a escola públi-
ca de qualidade para todos. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 4, n. 6, p. 53-64,
jan./jun. 2010. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>.
91 FRIGOTTO, Gaudêncio. A nova e a velha face da crise do capital e o labirinto
dos referenciais teóricos. In FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Org.).
Teoria da educação no labirinto do Capital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p.1.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

Esta posição vem ao encontro do modelo proposto pelo mo-


vimento A Ética da Autenticidade92que surge nos anos 60. Este
movimento procura desconstruir os valores tradicionais (aristo-
cráticos e republicanos), dando ênfase à diferença, sustentando-
que a escola não deve ter por objetivo criar nem transformar o
outro, mas desabrochar os seres que lhe são confiados. O ensinar
e aprender são substituídos pelo despertar.
Segundo Morin93, o século XXI deverá abandonar a visão
unilateral que define o ser humano pela racionalidade, pela técni-
ca, pelas atividades utilitárias e pelas necessidades obrigatórias. O
ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, carac-
teres antagônicos: sábio e louco; trabalhador e lúdico; empírico e
imaginário; econômico e consumista; prosaico e poético.
Para tanto o teórico da complexidade, como é conhecido, no ano
de 1999, a pedido da UNESCO, sistematizou um conjunto de reflexões
que pudessem servir como ponto de partida para repensar a educação.
O pensador francês nos apresentou os sete saberes necessá-
rios para a educação do futuro, que deu origem ao livro homôni-
mo e que julgamos oportuno trazer a conhecimento dos leitores,
motivando uma reflexão.
Segundo Morin, os sete saberes fundamentais para a educação
devem ser tratados por toda a sociedade e em toda a cultura, sem
exclusividade nem rejeição, respeitando modelos e regras próprias de
cada sociedade e de cada cultura. Os sete saberes necessários são94:
a. As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão: A educa-
ção, que visa transmitir conhecimentos, é cega quanto ao
que é o conhecimento humano, não se preocupando em
fazer conhecer o que é conhecer. Por isso é necessário intro-

92 ERRY, Luc. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, p. 186.
93 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 3 ed. São Paulo:
Cortez, 2001, p. 58.
94 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 3 ed. São Paulo:
Cortez, 2001, p. 13-18.
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

duzir e desenvolver na educação o estudo das características


cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos humanos,
de seus processos e modalidades, das disposições tanto psí-
quicas quanto culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão.
b. Os princípios do conhecimento pertinente: O conheci-
mento fragmentado impede de operar o vínculo entre as
partes e a totalidade e deve ser substituído por um modo de
conhecimento capaz de apreender os objetos em seu con-
texto, sua complexidade, seu conjunto. Em suma, o autor
critica a hiperespecialização (especialização que se fecha so-
bre si mesma, sem permitir sua integração na problemática
global ou na concepção de conjunto do objeto do qual ela só
considera um aspecto ou uma parte) do conhecimento. Para
tanto, necessário ensinar os métodos que permitam estabe-
lecer as relações mútuas e as influências recíprocas entre as
partes e o todo em um mundo complexo.
c. Ensinar a condição humana: O ser humano é a um só tempo
físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico e esta unida-
de complexa da natureza humana é totalmente desintegrada na
educação por meio das disciplinas. Por isso, o autor propõe que a
condição humana seja o objeto essencial de todo o ensino.
d. Ensinar a identidade terrena: A educação ignora o destino
planetário do gênero humano. Por isso, Morin entende que
se deve ensinar a história da era planetária e mostrar como
todas as partes do mundo se tornam solidárias, já que todos
os seres humanos compartilham dos mesmos problemas de
vida e de morte, partilhando um destino comum.
e. Enfrentar as incertezas: Ao passo que a ciência nos deu muitas
certezas, também nos revelou muitas incertezas. Por isso seria im-
portante ensinar estratégias que permitam enfrentar os imprevis-
tos, o inesperado, a incerteza e modificar o seu desenvolvimento,
em virtude das informações adquiridas ao longo do tempo.
f. Ensinar a compreensão: A compreensão é a um só tempo meio
e fim da condição humana. Isso exige a reforma das mentalida-
Airto Chaves Junior
44
Fabiano Oldoni

des e deve estar sempre presente em todos os níveis educativos


e em todas as idades. A compreensão mútua dos seres humanos
é vital e o estudo partiria das raízes da incompreensão, conhe-
cendo as causas do preconceito, do racismo, da xenofobia etc.
g. A ética do gênero humano: Todo desenvolvimento verdadeira-
mente humano deve compreender o desenvolvimento conjunto
das autonomias individuais, das participações comunitárias e da
consciência de pertencer à espécie humana. A partir daí surgem
duas finalidades ético-políticos: estabelecer uma relação de con-
trole mútuo entre a sociedade e os indivíduos pela democracia e
conceber a Humanidade como comunidade planetária.

A proposta é deveras interessante. Contudo nossa realidade


educacional ainda repousa em berço nada esplêndido. Pesquisa
divulgada em junho de 2013 pelo movimento da sociedade civil
brasileira Todos pela Educação95, apresenta dados preocupantes
em relação ao analfabetismo no ensino fundamental no Brasil.
O levantamento analisou 54 mil crianças, de 2º e 3º anos,
de escolas públicas e privadas, de 600 municípios de todo o país
e teve por base investigar o índice de analfabetismo nesta faixa
escolar. Destaca-se que o objetivo da pesquisa era avaliar aquele
aluno que aprendeu a ler, e sabe ler e escrever para aprender,
ou seja, que já tem autonomia para seguir aprendendo. Portanto,
não se trata de pesquisa sobre o letramento. Saber ler e escrever
não significa entender, tampouco refletir.
O estudo revelou que apenas 44,5% dos alunos do 3º ano
possuem proficiência adequada em leitura.
Considerando que o índice acima representa uma média na-
cional, a situação fica ainda mais crítica se analisarmos os índices
de forma regionalizada. No Pará 80% dos alunos com 8 anos de
idade não sabem ler adequadamente e em Alagoas o índice é ain-
da mais baixo, sendo que apenas 13,7% dos alunos do ensino fun-

95 TODOS PELA EDUCAÇÃO. Educação no Brasil. Disponível em http://www.to-


dospelaeducacao.org.br, acessado em 10 de janeiro de 2014.
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

damental apresentaram um resultado adequado, ou seja 86,3%


não foram aprovados na avaliação.
A situação é gravíssima, se observarmos que este problema
se arrasta por muitos anos no Brasil e, pelo jeito, irá se alongar por
mais algumas gerações, já que a pesquisa constatou que 70% dos
alunos que terminam o 3º ano do ensino fundamental não tem
domínio de noções de escrita e matemática.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)96, num
estudo intitulado “um olhar mais atento às unidades de internação e
semiliberdade para adolescentes”, e divulgado em agosto de 2013, fez
um comparativo com os dados do IBGE97 e demonstrou que a faixa
etária dos jovens que mais cometem atos infracionais (15 a 17 anos)
coincide com a faixa etária que possui o maior índice de evasão escolar.
Entre os alunos de 6 a 14 anos a taxa de frequência escolar
é de 91,1% (com evasão de 8,9%), enquanto entre os alunos com
15 a 17 anos é de apenas 50,9% (com evasão de 49,1%). Esta
queda na frequência escolar pode explicar a participação maior
dos jovens desta faixa etária em atos infracionais. Por quem e
pelo que os jovens estão sendo acolhidos?
Para Pereira e Mestriner98 a evasão escolar deve-se à ine-
ficácia dos métodos educacionais em sua totalidade, por falhar
em ensinar as habilidades acadêmicas necessárias, e também à
exclusão social por parte dos colegas e professores da escola. Tais
alunos são rotulados como problemáticos, agressivos, e lhes são
atribuídos outros estereótipos estigmatizantes. Assim, eles aban-
donam a escola e passam a assumir “identidade do bandido”.
Justifica Meichenbaum, que os adolescentes com baixo nível in-
telectual têm maior probabilidade de praticar crimes mais violentos

96 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Um olhar mais aten-


to às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes. Disponível em
http://www.cnmp.mp.br, acessado em 12 de fevereiro de 2014.
97 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
98 Apud GALLO, Alex Eduardo; WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque. Ado-
lescentes em conflito com a lei: uma revisão dos fatores de risco para a conduta
infracional. Psicol. teor.prat., jun. 2005, v. 7, n. 1, p. 81-95.
Airto Chaves Junior
46
Fabiano Oldoni

do que jovens com maior escolaridade e, também, são três vezes mais
prováveis de se ferir em brigas e precisar de intervenção médica99.
Dados divulgados em junho de 2013, pela Organização para
a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE),100 tam-
bém indicam que o Brasil tem o mais baixo nível de população
que completa o ensino superior e o terceiro pior entre os que
acabam o ensino médio, dentre os 35 países pesquisados.
O estudo, que coletou dados nas escolas públicas entre 2009
e 2011, revela que apenas 12,74% da população entre 25 e 34
anos e 11,61% entre 25 e 64 anos atingiu o nível universitário
no Brasil em 2011, ranqueando o país entre o pior de todos os
pesquisados. Na Coréia do Sul, primeiro lugar no ranking, esses
índices chegam a 63,82% e 40,41%, respectivamente.
Esta mesma organização divulgou dados em 01 de abril de
2014, referente ao Relatório do PISA 2012 (Programa Interna-
cional de Avaliação de Alunos),101 onde os alunos brasileiros fica-
ram com a 38a colocação, entre jovens de 44 países, em um teste
de solução de problemas matemáticos.
Mas a responsabilidade não é apenas dos governantes ou
da política educacional adotada pelo Brasil. Os professores têm
um papel fundamental neste processo. Devem eles se apresentar
com qualificação e autoridade, onde a qualificação do professor
consiste em conhecer o mundo da criança e do adolescente e ser
capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade
se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo.

99 Apud GALLO, Alex Eduardo; WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque. Ado-


lescentes em conflito com a lei: uma revisão dos fatores de risco para a conduta
infracional. Psicol. teor.prat., jun. 2005, v. 7, n. 1, p. 81-95.
100 ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔ-
MICO – OECD. Educationat a Glance 2011, Relatório de País – Brasil. Disponível
em http://www.oecd.org/brazil/48670822.pdf, acessado em 22 de janeiro de 2014.
101 ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔ-
MICO – OECD. PISA 2012 Results: Creative Problem Solving: Students’ Skills
in Tackling Real-Life Problems (Volume V), disponível em http://www.oecd.org/
pisa/keyfindings/PISA-2012-results-volume-V.pdf, acessado em 01 de abril de 2014.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
47
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Neste contexto, qualquer pessoa que se recuse a assumir a res-


ponsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e
é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação102. É preciso
demonstrar interesse por quem está à sua frente.
Como visto, o descompasso não está apenas na educação
básica e fundamental. Durante as últimas décadas ocorreu um
reconhecimento explícito do caráter econômico da educação su-
perior, por sua particular relação com a produção de certo tipo de
conhecimento, vinculado com a indústria e o desenvolvimento.
Isso apresenta importantes implicações na orientação e na estru-
tura atual do sistema de educação superior103.
Este fenômeno se da em virtude da política neoliberal ado-
tada pelos países, que, de um lado, reduz o papel estatal, passando
este apenas a regular o sistema de educação e, de outro, amplia o
papel do mercado, que regula toda a educação superior centrado,
no critério custo/benefício e no predomínio econômico mercado-
lógico. As ações das universidades/empresas passam a ser nego-
ciadas no mercado internacional, segundo o potencial de lucros
aferidos com os serviços que prestam. Tais serviços são analisados
e avalizados não do ponto de vista de seu valor acadêmico/inves-
tigativo/formativo, mas de seu potencial de retorno financeiro.
Com esta entrega da educação superior à iniciativa privada, o re-
sultado foi o ingresso de algumas universidades na bolsa de valo-
res, a criação de corporações acadêmicas supranacionais gestadas
a partir de suas sedes nos países desenvolvidos, a organização de
grandes redes internacionais de educação à distância e, sobre-
tudo, a crescente transformação da educação em mercadoria ao
encargo de empresas privadas interessadas em lucro104.

102 ARENDT, Hannah. A crise na educação. In Entre o passado e o futuro. Tradução


Mauro W. Barbosa de Almeida. 3ª reimpressão da 5ª ed. de 2000. São Paulo: Pers-
pectiva, 2005, p. 239.
103 DIDRIKSSON, A. Universidad del futuro. México, DF: Universidade Nacional
Autónoma de México, 1993, p. 23-24.
104 GOERGEN, Pedro. Educação superior na perspectiva do sistema e do plano nacional
de educação. Revista Educação e Sociedade, v. 31, nº 112, jul.-set. 2010, p. 899/900.
Airto Chaves Junior
48
Fabiano Oldoni

Este movimento e estas características são mundiais, não


sendo diferente no Brasil. Desde a implantação deste sistema ne-
oliberal para a educação superior 73% das matrículas e 90% das
instituições nacionais são do setor privado, alavancando o país
como um dos que possuem o sistema de educação superior mais
mercantilizado do mundo105.
O educador Nicaraguense Tünnermann Bernheim106 critica
aquilo que chama de transnacionalização da educação. Para ele,
este processo visa facilitar o estabelecimento em nossos países de
filiais de universidades estrangeiras, a criação de universidades
corporativas auspiciadas pelas grandes empresas transnacionais,
pelos programas multimeios e universidades virtuais, controladas
por universidades e empresas de países mais desenvolvidos.
É preocupante este modelo adotado para a educação supe-
rior, que prioriza o lucro em detrimento dos pilares básicos de en-
sino/pesquisa/extensão e vem corroborar a crítica de Guareschi,
de que a escola é um instrumento ideológico a serviço de deter-
minadas classes sociais, as quais vocês já devem saber.
Outro fator que potencializa a crise na educação é a hiperes-
pecialização do conhecimento que substitui as antigas ignorân-
cias por uma nova cegueira. Ensina-se a dissociar tudo, fazendo
com que percamos a aptidão de religar e, com isso, pensar os pro-
blemas fundamentais e globais107.
Ensinam-se matérias que preparam para a vida profissional,
mas que não servem para a vida pessoal e social.
A partir deste panorama, como poderemos confiar que a es-
cola transforme nossos jovens, se o ensino básico e fundamental
apresenta, muitas vezes, um modelo voltado a criar mão-de-obra

105 GOERGEN, Pedro. Educação superior na perspectiva do sistema e do plano nacio-


nal de educação. Revista Educação e Sociedade, v. 31, nº 112, jul.-set. 2010, p. 907.
106 TÜNNERMANN BERNHEIM, Carlos. La educación superior necessaria para el
siglo XXI. In LOPEZ SEGRERA, F; RIVAROLA, D. M. (Comp.). La universidad
ante los desafíos delsiglo XXI. Asunción: Ediciones Y Arte, 2010, p. 36.
107 MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2013, p. 30-31.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
49
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

para o mercado de produção, utilizando-se da técnica do con-


dicionamento (ensinar e aprender) e o ensino superior pauta-se
muito mais pela busca do lucro? A reflexão não é incentivada e as
mudanças ficam muito mais distantes.
É neste cenário de professores com salários aviltantes, des-
preparados, escolas com estrutura física precária, que ainda nos
importamos com a punição do jovem infrator. Segundo pesqui-
sa divulgada em julho de 2013 pela Confederação Nacional dos
Transportes 92,7% dos brasileiros são a favor da redução da maio-
ridade penal, o que demonstra o equívoco quanto à solução deste
problema, conforme já relatado alhures.
Infelizmente esses dados revelam que nossas crianças já são,
desde tenra idade, esfolados no direito básico de aprender, vítimas
da hipocrisia que permeia o cenário escolar, onde a informação vale
mais do que o conhecimento, onde o ensinar e aprender resume-se
em alguém fazer (professor) e outro imitar (aluno), onde o impor-
tante é preparar a mão-de-obra para o mercado de trabalho, onde
o pensar/refletir/raciocinar é substituído pelo “fazer bem feito”.
Essas crianças que hoje são analfabetas funcionais (55,5%),
que não conseguem aprender com a leitura, mesmo que saibam ler
e escrever, são os futuros (não todos é claro) jovens “marginais” que,
talvez, só serão lembrados pelo Estado, através da “mão” forte e estig-
matizante do direito penal, quando praticarem um ilícito qualquer.
Antes de exigirmos a redução da maioridade penal, deverí-
amos sair às ruas e exigir uma educação de qualidade, melhores
condições e salários aos professores, bem como professores mais
qualificados. De nada adianta atacar o efeito (violência juvenil) e
esquecer a causa (jovem negligenciado no saber).
Lembrem-se, os jovens são muito mais vítimas da violência
que geradores dela.
Os dados não mentem e evidenciam que a discussão gira lon-
ge do direito penal. Ou seja, não cabe ao direito penal resolver as
mazelas sociais, o qual, pela ideia punitiva que representa e pela
falta de estrutura das suas agências, acaba por gerar mais violência.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

O estudo realizado pelo Conselho Nacional do Ministério


Público (acima referido) também evidenciou que as unidades de
execução de medidas socioeducativas para menores infratores es-
tão superlotadas em 15 estados e no Distrito Federal. Em todas
as unidades da federação, há 15.414 vagas, mas o total de jovens
cumprindo punições é de 18.378 - déficit de quase 3 mil vagas.
No quesito salubridade, mais da metade das unidades de in-
ternação situadas no Centro-Oeste, Nordeste e Norte foram dadas
como insalubres, assim consideradas aquelas sem higiene e conser-
vação, sem iluminação e ventilação adequadas em todos os espaços
da unidade. No Sul, 40% das unidades foram reprovadas no que-
sito salubridade. A melhor situação está no Sudeste, com o maior
percentual de unidades julgadas adequadas neste aspecto (77,5%).
A situação mais crítica, com comprometimento das unida-
des por falta de higiene, conservação, iluminação e ventilação
adequadas, foi verificada nos Estados do Piauí, Roraima e Ser-
gipe, onde a totalidade das unidades de internação visitadas foi
considerada insalubre. Na Paraíba, 80% das unidades foram, tam-
bém, avaliadas como altamente inadequadas à saúde, índice que
em Goiás atinge 85,7%. No Pará, Rio de Janeiro e Mato Grosso,
dentre as unidades fiscalizadas, 75%, 71,4% e 75% das unidades
também foram reprovadas, segundo o estudo.
Sobre a questão da redução da maioridade penal, o relatório
do CNMP destaca que há um grande desconforto social pelo en-
volvimento de adolescentes em atos de requintada violência, am-
plamente divulgados nos veículos de comunicação, e que estão a
merecer, de fato, atuação mais efetiva do sistema socioeducativo.
Entretanto, limitar a problemática infracional ao debate sobre a
redução da maioridade penal é, de todas e de longe, a saída mais
fácil (ao menos, aparentemente) e menos resolutiva.
Pesquisa realizada pelo Datafolha (2010) e encomendada
pela Sociedade Brasileira de Pediatria108 nos mostra um dado

108 SOU DA PAZ. Mortes violentas na cidade de São Paulo: estudo divulgado em janeiro de
Para que(m) serve o Direito Penal? -
51
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

curioso: para 91% das crianças de 6 a 10 anos, estar de férias é


o que mais as deixam felizes, enquanto 89% ficam felizes com
o momento do “recreio” da escola. O fato é que nossas escolas,
definitivamente, não são atrativas, pois na visão dos destinatários
do ambiente escolar, pouco agrada ir, estar ou permanecer nesses
locais. Por outro lado, o mesmo estudo revelou que é motivo de
alegria para 65% das crianças fazer a lição de casa e para 58%, fa-
lar para a classe (como se professor fosse) quando referida prática
engloba determinada atividade curricular.
Se por um lado a pesquisa evidencia que a criança prefere as férias
a estudar e, quando na escola, não vê a hora do intervalo ou mesmo, de
ir embora, por outro também demonstra que esta mesma criança, quan-
do exigida ou estimulada no aprendizado, gosta e corresponde. Neste
caso, é de se concluir que o interesse aparece quando é alimentado.

3.3 Terceiro Segmento do Controle Informal:


mídia (Você assiste; eu controlo!)
“Na era da informação, a invisibilidade é equivalente à mor-
te”. Essa frase de autoria da escritora australiana Germaine Greer
retrata, de forma bastante contundente, o poder sobre a vida ou
morte que sustentam hoje os meios de mídia. Antes de adentrar
especificamente nessas questões, vamos iniciar este recorte do tra-
balho com alguns questionamentos: Você sabe o que motivou o
uso generalizado da televisão? Sabe em que contexto isso ocorreu?
Na década de 1930, a alemã Ursula Patscheke, então emprega-
da dos correios da Alemanha, apareceu num vídeo e anunciou atra-
vés dos dez aparelhos receptores que existiam em Berlim, que estava
tudo preparado para “fazer penetrar nos corações dos camaradas do
povo, a imagem do Führer”109. Isso ocorreu no dia 22 de março de

2014, referente a dados de 2011. Disponível em http://www.soudapaz.org/o-que-fazemos/


noticia/mortes-violentas-na-cidade-de-sao-paulo/25, acessado em fevereiro de 2014.
109 DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 3 ed., Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 76.
Airto Chaves Junior
52
Fabiano Oldoni

1935, situação que coloca, originariamente, a televisão, como instru-


mento a serviço do nazismo. Disso, é de se concluir que desde a sua
origem, a principal função da televisão foi a dominação das massas.
Antes de avançarmos, outro questionamento: vocês sabem
qual foi uma das primeiras estações radiofônicas do mundo? A res-
posta é a seguinte: a Estação do Vaticano. E qual teria sido o interesse
do Vaticano em se comunicar ao mesmo tempo com a massa de fieis?
Vejam: as agências informais exercem um poder de controle da
massa social. A mídia, de forma mais notória, além de influenciar a
massa, também procura interferir no judiciário, no legislativo e no
executivo. Algumas vezes esta influência é exitosa, pois regra geral
“os órgãos judiciais preferem não entrar em conflito com as agências
não judiciais, uma vez que as reconhecem como mais poderosas”110.
A mídia, além de interferir direta e rapidamente no seg-
mento de controle formal, atua nos momentos em que se sente
ameaçada em seus interesses. Identificada qualquer ameaça, os
meios de comunicação de massa lançam mão de uma campanha
de lei e ordem, com objetivo de criar uma sensação de pânico
generalizado, ocasionando uma pressão pública às agências po-
líticas ou judiciais, com objetivo de deter tais ameaças. Estas
campanhas se realizam através da distorção pelo aumento de
espaço publicitário dedicado aos fatos de sangue, da invenção
direta de fatos que não aconteceram, da instigação pública para
a prática de delitos mediante as mensagens “a impunidade é
absoluta, os menores podem fazer qualquer coisa, os presos en-
tram por uma porta e saem pela outra”, da instigação à violência
coletiva, à autodefesa, glorificação de justiceiros etc.111.

110 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade
do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 126.
111 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade
do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 126; ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 127.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Por isso, afirma Zaffaroni112 que os meios de comunicação de


massa – especialmente a televisão – são hoje elementos indispen-
sáveis para o exercício do poder no sistema penal.
Da mesma forma é válido e correto dizer que vivemos em
uma cultura do medo, onde a mídia tem um papel constitutivo que
nos é vendido diariamente, seja através de programas sensaciona-
listas que investem no conteúdo violento, como forma de aumen-
tar a audiência, mostrar a impunidade e exigir o endurecimento
das penas e o aumento da criminalização, seja através de sofistas
jurídicos embutidos na função de comentaristas e representantes
das “vítimas em potencial”, que se utilizam de um discurso falso
para induzir em erro a grande massa popular. Este mesmo movi-
mento encontramos nas séries policiais, todas importadas, as quais
glorificam o violento, o esperto e o que aniquila o “mau”, onde a
solução do conflito através da supressão do “mau” é o modelo que
se introjeta nos planos psíquicos mais profundos, pois são recebi-
dos em etapas muitos precoces da vida psíquica das pessoas113.
O medo, segundo Bauman114, é o nome que damos a nossa
incerteza, nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do
que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la.
O medo é a vulnerabilidade sentida, cujo pressuposto não é o
aumento das ameaças reais, mas a falta de confiança nas defesas.
Uma pessoa que tenha interiorizado uma visão de mundo que in-
clua a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá rotineiramente,
mesmo na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a
um encontro imediato com o perigo.
Toda a análise da cultura do medo não pode ignorar a ação da
imprensa. Está ela entre as instituições com maior responsabilidade
em criar e sustentar o pânico, mas também uma ampla variedade de

112 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade
do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 127.
113 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade
do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 128.
114 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008, p. 8-9.
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54
Fabiano Oldoni

grupos, incluindo empresas, organizações de defesa de uma causa, sei-


tas religiosas e partidos políticos promovem e lucram com o pânico115.
Já afirmava Carnelutti116 que os jornais ocupam uma boa
parte de suas páginas com notícias dos delitos, fazendo com que o
leitor tenha a impressão de que neste mundo se produzem muito
mais delitos do que boas ações.
A grande mídia é quem determina qual a mensagem que
irá passar ao público e, via de regra, esta mensagem visa incutir
medo, pânico e sensação de insegurança coletiva. Isso gera na
população uma cobrança ao Estado, que responde com a criação
de novas leis criminalizadoras, aumento de penas, enfim, com o
endurecimento do sistema penal em geral.
Percebemos, assim, passo a passo, como a construção social
da notícia, mediatizada pelo poder econômico e político, vai ge-
rando atitudes e valores, isto é, elementos de juízo, para que se crie
um sentimento de insegurança que é absolutamente seletivo. Esse
processo indica o que é que se deve temer, deixando à sombra situ-
ações e condutas abertamente danosas que, entretanto, não cau-
sam temor117. Será que vemos os meios de mídia se preocuparem
com questões sociais a fim de contribuir com uma mudança?
O que a mídia faz e de forma eficiente é denominar (pregar
uma etiqueta numa coisa118) a violência como sendo a regra nas re-
lações pessoais, incutindo, assim, o temor na coletividade. Este pro-
cesso não deixa de ser um “jogo de linguagem” (Wittgenstein), onde
a palavra violência, que pode designar vários sentidos, é associada ao
medo. A ideia é não desassociar a violência mostrada diariamente do

115 GLASSNER, Barry. Cultura do medo: porque tememos cada vez mais o que deverí-
amos temer cada vez menos. São Paulo: Francis, 2003, p. 33.
116 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Editora Pi-
lares, 2009, p. 7.
117 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan/
ICC, 2005, p. 216.
118 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bru-
ni, São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 36.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
55
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

temor coletivo, da necessidade de maior combate ao crime, da po-


lítica de “lei e ordem”, que acaba causando ainda mais “desordem”.
Esta cultura do medo repercute também no sistema capi-
talista e nos meios de consumo. O crescimento da demanda por
segurança privada é proporcional ao aumento da exposição da
violência pela mídia. Gastamos cada dia mais com alarmes, mo-
nitoramento eletrônico e câmeras de vigilância. Nem no trânsito
nos sentimos seguros e o número de carros blindados cresce a
cada ano. A procura pela rede particular de ensino é crescente,
não apenas pela melhor qualidade, mas também para “fugir” da
insegurança que as escolas públicas representam.
Sugere Galeano119 que o medo é a matéria-prima das prósperas
indústrias da segurança particular e do controle social, onde a deman-
da por segurança cresce tanto ou mais do que os delitos que a geram.
A mensagem de violência é tão intensa que assistimos passi-
vamente noticiários policiais e nem nos damos conta do número
de mortes retratadas em apenas um quadro jornalístico. É a bana-
lização do crime e da violência. Crianças já não se assustam em
ver um corpo sangrando na tela da televisão. É apenas mais uma
morte neste processo de “seleção natural” da violência.
Mas porque a mídia age assim? Você já parou para pensar qual
é a mensagem que os telejornais e alguns programas policiais nos
passam? Ou você pensa que a mídia se preocupa apenas em passar
a informação e propiciar entretenimento sem nenhum objetivo?
Este é o problema: não lançamos um olhar crítico e poucos se dão
conta deste “discurso que tocaia” (Alexandre Morais da Rosa), o qual
é ineficaz no combate à criminalidade, mal intencionado e falacioso.
Os canais de informação, exceto os canais públicos, traba-
lham com lucro e lucratividade se obtém com audiência, a qual
se conquista com fidelidade e identidade de ideal entre o canal de
comunicação e a população.

119 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9 ed., Porto
alegre: L&PM, 2007, p. 107.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

Então, por detrás da informação despretensiosa, do entrete-


nimento “banal”, existe uma ideologia das agências de comuni-
cação. Afinal, a grande mídia está a serviço de algo e de alguém e
para entendermos este processo, faz-se necessário analisarmos o
sentido do vocábulo “ideologia”.
Pedrinho Guareshi120 apresenta quatro dimensões do termo,
das quais utilizaremos apenas duas delas, a ideologia no sentido
positivo e no sentido negativo. A primeira pode ser entendida
como um conjunto de valores, ideias, filosofias e ideais de uma
pessoa ou grupo. Já a segunda apresenta-se como ideias distorci-
das, enganadoras, mistificadoras, algo que ajuda a obscurecer a
realidade e a enganar as pessoas.
Para J.B Thompson121 ideologia é o uso das formas simbólicas
para criar ou manter relações de dominação. Este mesmo autorfor-
neceu mecanismos para analisar e interpretar a ideologia na mídia,
denominados de modos e estratégias, a seguir delineados122:
a. Legitimação: A mídia veicula uma série de imagens que
mostram as regalias123 de alguns presos dentro das unidades
prisionais, induzindo a audiência a apoiar o endurecimento
da execução penal e lançando a ideia de que os agentes pri-
sionais são coniventes e corruptos;
b. Dissimulação: A mídia veicula informação de que a crimi-
nalidade tem aumentado nos bairros e regiões mais pobres,
não esclarecendo quais as regiões, o que não nos permite

120 GUARESCHI, Pedrinho Arcides. Ideologia. In STREY. Marlene Neves et al. Psicolo-
gia social contemporânea: livro texto. 2 ed., Petrópolis: Vozes, 1998, p. 91.
121 THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 76.
122 THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 80/89. Ver: ROSO,
Adriane. Comunicação. In STREY. Marlene Neves et al. Psicologia social contem-
porânea: livro texto. 2 ed., Petrópolis: Vozes, 1998, p. 146.
123 Sem informar que a regalia é uma recompensa possível de ser dada ao preso, confor-
me autoriza o artigo 56, inciso II, da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal).
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

identificar os pontos exatos, passando a imagem de que to-


dos os bairros pobres são violentos;
c. Unificação: A mídia elabora campanha mostrando que o
governo e a população são a favor do endurecimento das
penas, numa tentativa de fazer o público identificar no go-
verno os seus próprios interesses;
d. Fragmentação: Os movimentos de sem terra, sem teto e as
manifestações que se disseminaram no Brasil a partir de junho
de 2013 são relacionados pela mídia a episódios de violência
e conflito, ao invés de mostrar os ideais dos respectivos mo-
vimentos. A mensagem é fragmentada em episódios isolados,
deixando ocultos os objetivos que permeiam os movimentos.

Vejam que a linguagem não se restringe somente à expressão


verbal, tem ela um sentido muito mais amplo. As palavras, ao
saírem de seu estado neutro de dicionário e ao dependerem do
contexto em que foram empregadas, passam a expressar valores,
ideais ou, então, ideologias.124
Percebam como a mídia pode influenciar o público em geral
e incutir a ideia de que a sensação de insegurança coletiva só
pode diminuir com um sistema penal cada vez mais rígido.
Para Dotti125, os defensores desse pensamento partem do pressu-
posto maniqueísta de que a sociedade está dividida entre bons e maus,
cuja violência só pode ser controlada com penas mais severas e longas.
Recentemente noticiou-se em nível nacional comentários
sobre determinado julgamento pelo tribunal do júri, onde o acu-
sado foi condenado a 33 anos e 9 meses de reclusão, pelo come-
timento de dois homicídios. Este fato só foi julgado 9 anos após
ter ocorrido, o que é bastante comum no judiciário brasileiro. Na
sentença, o juiz concedeu ao réu o direito de recorrer em liber-
dade, já que estava em liberdade quando do julgamento e não

124 CARMO, Paulo Sérgio do. Merleau-Ponty: uma introdução. 2 ed., São Paulo:
EDUC, 2011, p. 101.
125 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 13.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

apresentava nenhum requisito que autorizasse a decretação da


prisão preventiva. Esta decisão, acertada juridicamente, recebeu
os mais variados adjetivos negativos por parte da mídia em geral,
tais como “ineficácia do judiciário”, “aumenta a sensação de in-
segurança na população”, “leis muito brandas” etc. Também foi
voz corrente no noticiário que o réu demorará muito tempo para
ser preso em razão da “morosidade da justiça”. Jamais se viu um
instrumento de mídia, por exemplo, elogiar os acertos do Poder
Judiciário no deferimento de um habeas corpus em favor de al-
guém que se encontrava ilegalmente encarcerado.
Estas manifestações são perigosas e apresentam uma ideologia,
por traz da informação, no sentido negativo, como diria Guareschi,
com o objetivo de criar uma realidade falsa, de pânico e insegurança,
mistificando-a com o objetivo de enganar e manipular a população.
No exemplo relatado, temos duas situações fáticas muito claras.
A primeira é a garantia constitucional da presunção de inocência de
todos os cidadãos(artigo 5º, inciso LVII da CRFB/88). A segunda é a
morosidade da justiça, o que é de conhecimento de todos, apesar dos
esforços de alguns setores para modificar esta realidade.
O que não pode é a mídia utilizar a morosidade da justiça para
querer afastar a garantia da presunção de inocência. Se o trânsito
em julgado do processo e o início do cumprimento da pena demo-
rar 4 ou 5 anos, isso depende apenas do judiciário e não do réu, que
está exercendo o seu direito de recorrer. Quando o juiz concedeu o
direito de recorrer em liberdade, não levou em conta a lentidão do
judiciário (pois nem poderia), mas apenas os critérios legais.
Portanto, ao passar uma notícia como a referida acima, a mídia
está claramente induzindo a população a pensar que se o judiciário é
lento, o réu não pode ser beneficiado por esta lentidão, merecendo ir
preso desde já, mesmo que não exista motivo legal para tanto. Aliás,
para a mídia, sempre haverá “motivo legal” para prender alguém.
O que falar, então, de outro julgamento recente, onde o acu-
sado foi condenado pela morte da ex-namorada. Este julgamento
foi todo televisionado e transmitido ao vivo pela imprensa nacional,
com autorização do juiz. A cobertura foi intensa, com opiniões de
Para que(m) serve o Direito Penal? -
59
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

“especialistas” logo após cada dia de julgamento. E a sociedade pa-


rada na frente da TV assistindo, torcendo... Na leitura da sentença,
o magistrado, visivelmente emocionado, apresentando toda a sua
parcialidade ao caso, foi ao extremo ao aumentar a pena do acu-
sado pelo fato dele ter “mentido” no interrogatório. Sem entrar no
mérito desta absurda decisão que contraria os mais básicos direitos
e garantias individuais, previstos na Constituição Federal (direito de
não fazer prova contra si mesmo), o que nos chamou a atenção foi o
comentário do apresentador de um telejornal que, ao final da edição
da reportagem, a qual terminou justamente quando o juiz dizia que
aumentava a pena pelo fato do acusado ter mentido em juízo, ex-
pressar um sorriso de satisfação e vaticinar “é isso mesmo”.
O que sabe ele, jornalista, das questões jurídicas? Nada, abso-
lutamente nada. Mas como contrariá-lo, criticá-lo e não concordar
com ele, jornalista, não ficar satisfeito como ele, jornalista, se to-
dos viram, ao vivo, que o juiz fez o “correto”, um juiz emocionado,
“humano”, com sentimentos aflorados aplicando uma pena “justa”.
Este é só um exemplo dos inúmeros noticiários diários equi-
vocados que são lançados na grande mídia nacional. Nestes ca-
sos, devemos receber a informação criticamente, refletindo sobre
ela e tentando entender o que a motiva.
É bom lembrar que a propaganda foi criada pela Igreja e ti-
nha por objetivo, além de propagar a “crença do amor” (Miranda
Coutinho), também difundir as consequências penais e morais
do pecado, objetivando manter o ideal dominante, que balança
conforme a lógica capitalista.
Em uma sociedade, onde o número de residências com tele-
visão é maior do que os lares com geladeira126, onde se individu-
alizou o uso da televisão e cada um tem a sua, vale a afirmação

126 Segundo pesquisa IBGE/PNUD (2011), 96,9%dos lares brasileiros estão equipados
com televisão, enquanto 95,8% possuem geladeira. Disponível em www.ibge.gov.br,
acessado em junho de 2013.
Airto Chaves Junior
60
Fabiano Oldoni

de Zaffaroni127 de que os meios de comunicação de massa têm a


função de gerar a ilusão de eficácia do sistema penal.
É importante aqui, é que tenhamos a consciência de que
as imagens que as pessoas têm a respeito da justiça criminal são
predominantemente baseadas na apresentação das atividades di-
vulgadas pela mídia, pois sempre que elas participam de modo
vicariante da justiça criminal ou avaliam o sistema como obser-
vadores, o fazem baseadas nas imagens da mídia.128
Além da mensagem passada aos adultos, nossas crianças tam-
bém estão sendo destinatárias deste movimento velado, o que é faci-
litado pelo fato dos pequenos passarem mais tempo diante da televi-
são e de um computador do que diante de um professor. A televisão
acaba se tornando uma “babá de baixo custo”, na feliz expressão de
Luc Ferry129 e por serem educados na realidade virtual, deseducam-
se da realidade real, que ignoram ou que tão-só existe para ser temi-
da ou ser comprada e o fácil acesso à internet autoriza os cibermeninos
viajarem pelo ciberespaço com a mesma desenvoltura com que os
meninos abandonados perambulam pelas ruas da cidade130.
A já citada pesquisa realizada pelo Datafolha (2010) e encomen-
dada pela Sociedade Brasileira de Pediatria revelou que, quando estão
sozinhas, as crianças (entre 4 a 10 anos) gostam de brincar de boneca
ou boneco (28%), e em segundo lugar de assistir televisão (26%).
Mesmo os canais infantis, com programas na maioria das
vezes importados, trazem uma mensagem dicotômica muito clara,

127 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade
do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 128.
128 HULSMAN, louk. Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da justiça cri-
minal. InVERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Liber-
tária/Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº 3 (abril
2003) - São Paulo: o Programa, 2003, p. 190.
129 FERRY, Luc. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, p. 70.
130 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9 ed., Porto
alegre: L&PM, 2007, p. 13.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

onde a solução do conflito entre herói e vilão, mocinho e bandido


acontece pela supressão do mal, numa invenção da realidade.131
Outro papel que a mídia se ocupa é a “catalogação dos crimino-
132
sos”, apresentando um estereótipo do delinquente pré-fabricado,
deixando de fora alguns tipos de criminosos do colarinho branco.
A eficiência deste processo é facilmente percebida com um
olhar mais atento ao nosso redor. Repudiamos e queremos dis-
tância daqueles “marginais” que cometem roubos, latrocínios,
homicídios, tráfico de drogas, crimes sexuais e demais crimes de
“sangue” ou crimes violentos. Para esses visualizamos prisão, iso-
lamento social e muita punição.
Paradoxalmente não temos a mesma repulsa com relação
àqueles que sonegam impostos, dirigem embriagados, desviam di-
nheiro público, corrompem autoridades públicas etc. E qual a razão
desta diferenciação no trato? Porque somos mais complacentes com
estes indivíduos? Quem são e como qualificamos os “marginais”?
A razão parece estar no fato de que nos identificamos ou
identificamos alguém próximo ou algum familiar como autor des-
tas condutas criminosas. Somos rápidos em afirmar que jamais co-
meteremos um roubo, um homicídio, um estupro. Não nos vemos
cometendo esses crimes e, consequentemente, fazendo parte deste
grupo social. Contudo, reconhecemos a possibilidade de já ter come-
tido ou conhecer alguém de nosso relacionamento que já sonegou
imposto, dirigiu embriagado ou andou armado etc., fazendo com que
estas condutas não nos aparentem tão repulsivas assim, justamente
porque nos vemos fazendo parte ou podendo fazer parte deste grupo.
Quem já não sonegou imposto ou comprou um produto
falsificado, contrabandeado descaminhado133, ou dirigiu veícu-

131 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade
do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 129.
132 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade
do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 130.
133 O crime de contrabando ou descaminho está previsto no artigo 334 do CP, sendo
que o contrabando é a entrada ou saída de mercadoria proibida do Brasil, enquanto
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

lo automotor após ingerir bebida alcoólica? Não temos dúvida


em afirmar que isso é hipocrisia e um reflexo do que a mídia nos
passa, da mensagem cotidiana de que os crimes violentos estão
aumentando e devem ser combatidos de forma mais enérgica,
deixando para poucas manchetes as demais condutas criminosas
que se afastam do cardápio de pânico e pavor.
Estes crimes são muito mais comuns que os crimes violentos e
realizados por um extenso número de pessoas, fazendo com que en-
caremos tais condutas como normais ou pouco ofensivas ao interesse
social. São condutas que não criam pânico na população. É normal
escutarmos justificativa para a sonegação de imposto: “sonego im-
posto porque não vejo retorno do Estado”. Isso é uma excludente ín-
tima de criminalidade. Para estes desvios não há uma reação social.
Alexandre Morais da Rosa fala do senso comum penal for-
jado pelos meios de comunicação de massa e justifica no fato da
mídia extrapolar a função comunicativa que lhe é inerente, agin-
do como verdadeira agência do sistema penal134.
A novíssima legislação penal e processual penal que vai surgin-
do, por força da televisão, das mídias, dos jornais, daqueles que estão
reclamando maiores penas, é uma legislação cada vez mais absurda,
que vai criando um novo autoritarismo ea lógica que a mídia está
transmitindo a respeito da pena é a lógica do capitalismo primitivo135.
Outro papel a que se propõe a mídia é o etiquetamento ou a estig-
matização, próprio do sistema de Lei e Ordem, do labelling approach136.

o descaminho é a entrada ou saída de mercadoria permitida, mas sem o pagamento


total ou parcial do imposto devido.
134 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da.Para um pro-
cesso penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 3-7.
135 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Debates inKARAM, Maria Lúcia (org).Globalização,
Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lu-
min Juris, 2005, p. 40.
136 O labelling approach, entendido como etiquetamento ou rotulação, tem por paradigma
a “reação social” do “controle” ou da “definição”. Becker, através da obra Outsiders,
é considerado precursor deste paradigma criminológico. Sustenta acertadamente que
a criminalidade não tem natureza ontológica, mas social e definitorial e ao acentuar
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Estigma137, para os gregos, era um termo empregado para desig-


nar sinais corporais com os quais se procurava evidenciar algo de extra-
ordinário ou mau sobre a moral daquele que os apresentava. Os sinais
eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era
um escravo, criminoso, alguém marcado para sempre e que deveria ser
evitado, não tocado. O estigma era associado a algo de ruim.
Na era cristã, o estigma apresentou-se sobre duas novas fa-
cetas: como sinais corporais de graça divina (os estigmas de Cris-
to crucificado, por exemplo) e como distúrbio físico.
Na atualidade, o termo é mais usado na acepção original
grega, representando algo de mau, uma desgraça (do italiano dis-
graziato: infeliz, deformado).
Para Goffman, o indivíduo apresenta-se com uma identida-
de social virtual – aquilo que imputamos ao indivíduo – e com
uma identidade social real – atributos que ele prova possuir. E
não raras vezes a identidade social virtual é diversa da identidade
social real. Quando essa discrepância ocorre, acaba por estragar a
identidade social do indivíduo, afastando-o da sociedade e de si

o papel constitutivo do controle social na sua construção seletiva, o labelling desloca


o interesse cognoscitivo e a investigação das “causas”do crime e, pois, da pessoa do
autor e seu meio e mesmo do fato-crime, para a reaçãosocial da conduta desviada, em
especial para o sistema penal (BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia
do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008). Explica Vera Regina Pereira de Andrade que
“para o Labelling, o desvio e a criminalidade não é uma qualidade intrínseca da con-
duta ou uma entidade ontológica pré-constituída à reação social e penal, mas uma
qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos proces-
sos de interação social; isto é, de processos formaise informais de definição e seleção”
(ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da
reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e
no senso comum. Revista Sequência, V. 16. Nº 30, UFSC, Florianópolis, p. 24-36).
Em suma, o ato só é considerado desviante se houver reação social a ele, o que pode
se dar através das instâncias de controle formal e informal, adquirindo a qualidade
de criminalização quando esta reação parte do controle penal (formal). Isso explica
porque a conduta de sonegar imposto, referido no texto acima, e muitas outras são
aceitas pelo senso comum, não havendo uma “reação social” por punição.
137 As referências sobre a categoria Estigma foram extraídas de GOFFMAN, Erwing.
Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed., Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1988, 158 p.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

mesmo de tal modo que ele acaba por ser uma pessoa desacredi-
tada frente a um mundo não receptivo.
O estigma é tão representativo em nossa cultura que se
acredita que o estigmatizado não seja um humano “normal”, de-
rivando, daí, as discriminações, onde os termos pejorativos es-
tigmatizantes acabam por reduzir o indivíduo a um “ser” cego,
aleijado, criminoso, homossexual, malandro etc.
Explica Goffman que construímos uma teoria do estigma, uma
ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que
ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade ba-
seada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos
termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em
nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de
maneira característica, sem pensar no seu significado original.
E a mídia é um dos principais fomentadores do estigma so-
cial, na medida em que ideologicamente manipula as informações
no sentido de desqualificar determinados grupos sociais. O medo
com relação aos negros nos Estados Unidos está franqueado na
perpetuação da atenção excessiva dada aos perigos causados por
uma pequena porcentagem de afro-americanos com outras pesso-
as, assim como por uma relativa falta de atenção para os perigos
que a própria maioria de negros enfrenta138.
Glassner139 apresenta-nos alguns fatos que evidenciam a rea-
lidade da manipulação midiática. Segundo ele os arautos do medo
projetam sobre os negros exatamente aquilo que a escravidão, a po-
breza, a exclusão educacional e a discriminação garantiram que eles
não tivessem: poder e influência. Segundo o autor, em 1998, depois
que dois garotos brancos atiraram contra alunos e professores em
um pátio de uma escola no Arkansas, políticos, educadores e diver-
sos pseudo-especialistas sugeriram – com absoluta seriedade – que

138 GLASSNER, Barry. Cultura do medo: porque tememos cada vez mais o que deverí-
amos temer cada vez menos. São Paulo: Francis, 2003, p. 193.
139 GLASSNER, Barry. Cultura do medo: porque tememos cada vez mais o que deverí-
amos temer cada vez menos. São Paulo: Francis, 2003, p. 208.
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

os músicos negros de rap inspiraram um deles a cometer o crime. Fã


de rappers, o adolescente de 13 anos imitou os massacres descritos
em algumas das canções. No final de 1990, o poder pernicioso do
rap era tão aceito como verdadeiro que as pessoas podiam respon-
sabilizar os rappers por quase todo ato violento em qualquer lugar.
Comprova isto, uma pesquisa divulgada no ano de 2012,
que mostrará o retrato do mapa da violência no Brasil.
De acordo com Waiselfisz140, podemos observar que, com for-
tes oscilações de um ano para outro, a tendência geral desde 2002
é a queda do número absoluto de homicídios na população branca
e de aumento nos números da população negra. E essa tendência se
observa tanto no conjunto da população quanto na população jo-
vem. Vemos que, considerando o país como um todo, o número de
homicídios brancos caiu de 18.867 em 2002 para 14.047 em 2010,
o que representa uma queda de 25,5% nesses oito anos. Já os homi-
cídios negros tiveram um forte incremento: passam de 26.952 para
34.983: aumento de 29,8%. Destacam-se, pelos pesados aumentos
de vítimas negras: Pará, Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte.
O pesquisador ainda expõe outro dado preocupante e que mere-
ce especial atenção que é a idade das vítimas. Não se observam dife-
renças significativas de taxas de homicídio entre brancos e negros até
os 12 anos de idade. Mas nesse ponto, inicia-se um duplo processo:
a. Por um lado, um íngreme crescimento da violência homici-
da, tanto branca quanto negra, que se avoluma significativa-
mente até os 20/21 anos de idade das vítimas.
b. Se esse crescimento se observa tanto entre os brancos quan-
to entre os negros, nesse último caso o incremento é mar-
cadamente mais elevado: entre os 12 e os 21 anos de idade
as taxas brancas passam de 1,3 para 37,3 em cada 100 mil,
aumenta 29 vezes. Já as taxas negras passam, nesse interva-
lo, de 2,0 para 89,6, aumentando de 46 vezes.

140 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil.
Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012, p. 9/26, disponível em
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf, acesso em mar. de 2013.
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

Estudo da ONG “Sou da Paz”,141 revela que a principal cau-


sa de morte não natural de negros na cidade de São Paulo é por
homicídio (29,2%), enquanto entre os brancos a principal causa
é por acidente de trânsito, sendo o homicídio apenas o terceiro
fator. Outro dado revelador é a de que em cada 3 vítimas em con-
frontos policiais, 2 são negros.
Como pode ser visto, o negro é muito mais vítima da violên-
cia que causadora dela. Contudo, enquanto vítimas, não atraem os
mesmos holofotes da mídia que atraem, quando são os autores142.
Já afirmou Jung que “o indivíduo na multidão torna-se facil-
mente uma vítima de sua sugestionabilidade”143 e Sartre, com preci-
são, salientou que, enquanto imerso na situação histórica, o homem
sequer chega a conceber as deficiências e faltas de uma organização
política ou econômica determinada, não porque está acostumado,
como tolamente se diz, mas porque apreende-se em sua plenitude de
ser e nem mesmo é capaz de imaginar que possa ser de outro modo144.
É perfeitamente compreensível que o coletivo necessite de
garantias para diminuir o medo, já que até o advento da socieda-
de industrial a cidade era o local protegido, no qual as pessoas se
enclausuravam a fim de se defender da aspereza e da violência
dos campos. Durante a sociedade industrial, essa relação foi, aos
poucos, invertendo-se e no imaginário coletivo a cidade tornou-
se um lugar de movimento frenético, senão de vícios e de vio-
lência, onde os cidadãos sonham com uma serena tranquilidade
campestre e a paz e o silêncio do sítio, da casa de praia ou da casa
na serra, para onde correm nos fins de semana145.

141 Estudo divulgado em janeiro de 2014, referente a dados de 2011. Fonte www.soudapaz.org.
142 GLASSNER, Barry. Cultura do medo: porque tememos cada vez mais o que deverí-
amos temer cada vez menos. São Paulo: Francis, 2003, p. 194.
143 JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7.ed. Petrópolis: Vo-
zes, 2011, p. 129.
144 SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 538.
145 DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante,
2003, p. 327.
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Porém não se pode aceitar que o Estado satisfaça esta de-


manda através do Direito Penal e, principalmente, por meio da
criminalização e do aumento de pena. Como diz Jung146, é verda-
de que exigimos tudo do Estado, mas não percebemos que ele é
constituído pelos mesmos indivíduos que fazem tais exigências.
Realmente, dos instrumentos difusos de controle social a mídia
televisiva ocupa lugar de destaque. Ao referir-se às transgressões das
normas, noticiadas por esse meio, Luhmann enfatiza que os meios
de comunicação podem produzir, mais do que de outra forma, um
sentimento geral de que todos foram atingidos e estão indignados.
Segundo ele, quando se noticiam as transgressões (e transgressões
apropriadamente selecionadas, como casos isolados), isso reforça,
por um lado, a indignação e, assim, de forma indireta, a própria nor-
ma, e, por outro, também aquilo que se chama de “ignorância plu-
ralista”, quer dizer, o desconhecimento da normalidade do desvio. E
isso não ocorre nas formas ostensivas de sermões ou das tentativas
de doutrinamento, que hoje despertam antes tendências contrárias à
socialização, mas nas formas inofensivas do puro noticiário que dá a
todos a oportunidade de chegar à conclusão: “isso não!”147.
A televisão ainda tem importante função de manutenção e
reprodução da moral. Transgressões às normas são particularmen-
te selecionadas para o noticiário se nelas puderem ser misturados
julgamentos morais, quer dizer, se elas puderem dar motivo para
que pessoas sejam valorizadas ou desrespeitadas.
A ideia moral e de sua renovação contínua ocorre com o
apoio de casos espetaculares – na apresentação dos patifes, víti-
mas e heróis que realizaram aquilo que estava além do exigível. O
receptor não irá se enquadrar tipicamente em nenhum desses gru-
pos. Ele permanece observador. A moral precisa das coisas que são

146 JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7.ed. Petrópolis: Vo-
zes, 2011, p. 228.
147 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro
Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p. 60/61.
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Fabiano Oldoni

claramente escandalosas para se renovar ao longo da história, ela


precisa dos meios de comunicação e, em especial, da televisão148.
Os novos papéis da mídia também são alvo de análise de
Nilo Batista149. Para o penalista é fácil observar que ela chamou
para si o estratégico discurso do controle social penal, já que os
comentários do âncora de um telejornal com boa audiência são
mais importantes para a política criminal brasileira do que a pro-
dução somada de nossos melhores criminólogos e penalistas. A
universidade perdeu essa função, e um personagem novo surgiu
para conceder autoridade ao editorial que clama por direito penal:
o especialista, seja um aventureiro, seja mesmo um acadêmico, ca-
paz de rapidamente dizer exatamente o que querem que ele diga.
Neste contexto, a mídia encarrega-se de encenar, entre o misto
do drama e do espetáculo, uma sociedade comandada pelo banditis-
mo da criminalidade, e de construir um imaginário social amedron-
tado. À mídia incumbe acender os holofotes, seletivamente, sobre a
expansão da criminalidade e firmar o jargão da necessidade de segu-
rança pública como o senso mais comum do nosso tempo. Como o
elo mais compulsivo que unindo “Nós contra o Outro” (Outsiders)
agiganta por sua vez a dimensão do inimigo criminalidade.
De acordo com Andrade150 este inimigo, tornando cenica-
mente maior que todos os demais, concorre para invisibilizar o
enredo do poder que subjaz à força simbólica do maniqueísmo,
punitivamente reapropriado. E ao que parece, esse “tornar invi-
sível” é definitivo, porque quem se expande não é, propriamente,
a criminalidade (prática de fatos definidos como crimes) mas a
criminalização (definições de crime e etiquetamento seletivo de
criminosos pelo sistema penal) que a co-constitui e produz.

148 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro


Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p. 63/134.
149 BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros in ANDRADE, Vera Regina Pereira
de (org). Verso e Reverso do controle penal: (Dês) Aprisionando a sociedade da
cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux. Vol. 1, 2002, p. 155.
150 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima: códi-
go de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 24.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

As vítimas são inocentes, pessoas simpáticas; o criminoso


é um bruto alheio a qualquer sentimento. Os detalhes do ilícito,
embora chocantes quando externados pelo meio televisivo, são
muito fáceis de repetir. E a ocorrência possui um significado so-
cial, evidenciando uma crise social subjacente.
A cada dia fica mais evidente que o poder punitivo, que do-
mina completamente o noticiário, constitui a referência cultural
hegemônica no discurso jornalístico. Observem com atenção, as
caras e bocas desses oráculos dos tempos pós-modernos: a notícia
criminal é servida a seco, para que o destinatário possa digeri-la
segundo suas convicções. Uma convicção geral, “global” se qui-
serem, é servida junto. Há uma astúcia dramatúrgica. Alguém já
ouviu na TV algum “especialista” afirmar que tal ou qual habeas
corpus foi bem concedido pelo tribunal, que havia efetivamente
uma coação ilegal? Em suma, a mídia está longe de ser o impar-
cial cronista dessa escala do estado de polícia: é um protagonista
importante, seja na difusão da mentalidade policialesca que a sus-
tenta, seja na seleção dos casos que podem alimentá-la. A mídia
pauta as agências do sistema penal, na razão direta em que seus
operadores sucumbam às tentações da boa imagem. Em alguns
casos, o processo que verdadeiramente importa é o processo que
tramita virtualmente, nas manchetes, nas imagens, na carranca
dos âncoras que monopolizam a narrativa dos fatos151.
Para Guareshi152 quem tem a palavra constrói identidades
pessoais ou sociais e os que detêm a comunicação chegam até a
definir os outros, definir determinados grupos sociais como sen-
do melhores ou piores, confiáveis ou não confiáveis. A comuni-
cação é um instrumento privilegiado de dominação, pois cria a
possibilidade de dominar a partir da interioridade da consciência

151 BATISTA, Nilo. A criminalidade da advocacia. Revista de Estudos Criminais. Por-


to Alegre: Notadez/PUCRS/ITEC, nº 20, out/dez 2005, p. 88.
152 GUARESCHI, Pedrinho Arcides. A realidade da comunicação in GUARESCHI, Pe-
drinho Arcides. A comunicação e controle social. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 15.
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70
Fabiano Oldoni

do outro, condenando e estigmatizando a prática e a verdade do


oprimido como prática antissocial.
O papel desestabilizador da mídia ingressa e faz estragos,
também, em vários institutos do Direito, notadamente nas pri-
sões cautelares (Processo Penal).
Para a decretação (legítima) das prisões preventiva e tempo-
rária, por exemplo, o Código de Processo Penal e a Lei 7.960/89
exigem o preenchimento de alguns requisitos que servem de limi-
tação do poder do estado para restringir a liberdade das pessoas.
Isso deveria funcionar como uma razoável garantia de que o poder
judiciário não decretará a prisão cautelar de alguém, simplesmente,
porque a infração ganhou notoriedade nos meios de mídia, mas,
sim, quando comprovadamente necessário o cárcere para atingir
os fins de cada instrumento processual diante do caso concreto.
A questão é que, em crimes de grande repercussão, os meios
de (des)comunicação acabam fazendo a cobertura jornalística
com intensidade tão parcial e implacável que a liberdade do in-
vestigado passa a ser avaliada com sinal de perigo para aquela
leitura que se tem de sociedade. Vejam que hoje, aquilo que as
pessoas conhecem (em sua forma e extensão) é trazido a elas,
principalmente, pela mídia, que funciona como verdadeiro ins-
trumento de mediação do conhecimento. Por isso, por mais ab-
surda que a informação (ou opinião daquele âncora) se mostre,
possui enormes chances de ser incorporada como realidade no
processo de cognição do ouvinte, leitor ou telespectador. Por isso,
a “necessidade da prisão cautelar”é avaliada a partir de paradig-
mas totalmente divorciados do regramento processual penal. 153

153 O Superior Tribunal de Justiça não tem aceitado a decretação da prisão cautelar
com fundamento no clamor popular: “CRIMINAL. HABEAS CORPUS. ROU-
BO. LIBERDADE PROVISÓRIA INDEFERIDA.GRAVIDADE ABSTRATA DO
DELITO. PERICULOSIDADE DO AGENTE NÃODEMONSTRADA. NECES-
SIDADE DE COIBIR NOVOS CRIMES NÃO EVIDENCIADA. RÉU PRIMÁ-
RIO. CLAMOR PÚBLICO QUE NÃO JUSTIFICA A CUSTÓDIA CAUTELAR.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL VISLUMBRADO. ORDEM CONCEDIDA.
(...);III. A simples menção aos requisitos legais da custódia preventiva, à necessida-
Para que(m) serve o Direito Penal? -
71
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Decisões que acampam o discurso midiático e ignoram por


completo o regramento do jogo processual penal, proferidas por
alguns juízes singulares e alguns Tribunais de Justiça, afrontam não
somente o Código de Processo Penal, que não prevê, por exem-
plo, o clamor público como requisito autorizador para decretar a
prisão, mas também a segurança jurídica, pois ficamos (todos) a
mercê de um juiz que, pela influência da mídia, acaba decidindo
pela prisão de alguém. E porque afirmamos que é pela pressão da
mídia? Porque só haverá clamor popular quando o fato for de co-
nhecimento público e de um grande público. E quem pode trans-
portar a informação do processo ao grande público, quem tem este
poder de uniformizar esta informação senão a mídia?
Salo de Carvalho154 vai além ao afirmar que também somos
culpados pelo papel desestabilizador que a mídia apresenta, pois as
pautas jornalísticas são feitas com base na audiência, no consumo
da informação, e se esta pauta tão criticada aqui é comum, é porque
contempla a audiência suficiente para se perpetuar nas telas de TV.
Seja pelo interesse econômico, que exige o aumento da au-
diência, que só ocorre se houver uma aceitação do público alvo
ao discurso midiático, seja pela ideologia que maquina as pautas
informativas; o certo é que tudo o que sai da mídia tem um obje-
tivo ideológico, que muitas vezes passa longe da inocente ideia de
entreter e divertir. Estas informações intoxicam de forma rápida.
Como podemos dar crédito a um sistema mundial de informa-
ção que dispensa maior preocupação à manipulação e divulgação de

de de manter a credibilidade da justiça e de coibir a prática de delitos graves, assim


como o clamor público não se prestam a embasar a segregação acautelatório, pois
não encontram respaldo em qualquer circunstância concreta dos autos”(HC 212202
/ PB – Dje de 01/08/2012). Também “A mera alusão aos requisitos da custódia caute-
lar, expressões de simples apelo retórico, bem como relativas à necessidade de coibir
a prática de delitos graves e ao clamor público, não são aptos a embasar a medida
restritiva de liberdade” (HC243.717/BA - DJe de 05/09/2012);
154 CARVALHO, Salo de. Debates .In KARAM, Maria Lucia (Org.). Globalização,
Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Lumen Juris: Rio de
Janeiro, 2005, p. 130.
Airto Chaves Junior
72
Fabiano Oldoni

ideologias do que com a própria informação que deveria socializar?


Para exemplificar, o jornal uruguaio El Observador, em sua edição
de 31 de janeiro de 1998, aprontou, em sua página 2, parabenizou o
então presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, “por tirar
dos ombros empresas e serviços que se tornaram uma carga para os
cofres estatais e os consumidores”. Referia-se a matéria à privatiza-
ção da Telebrás. Contudo, na página 16 da mesma edição, o jornal
noticiou, fazendo referência a Telebrás, “a empresa mais rentável
do Brasil, gerou no ano anterior lucros líquidos de três bilhões e
novecentos milhões de dólares, um recorde na história do país” 155.
Assim, verifica-se que, em grande parte, são os interesses
privados que perfilam os bastidores da notícia. Não há como sa-
ber com segurança, mas é possível supor que a primeira notícia,
parabenizando o governo brasileiro, tenha sido “solicitada” por
alguém que tivesse interesse em passar à população o “acerto”
da decisão. A segunda notícia, por outro lado, parece sustentar
cunho informativo e não ideológico, pois apresentava inocente-
mente a “mina de ouro” que representava a Telebrás.
Se, por um lado, a mídia é extremamente competente no
papel a que se propõe, por outro, já passou da hora de começar-
mos a refletir acerca das informações que nos são colocadas gar-
ganta abaixo pelas agências de comunicação. Precisamos deixar
de consumir a informação sem ao menos “degustá-la”, nem que
para isso tenhamos que regurgitá-la, caso o mínimo senso crítico
nos permita identificá-la como nociva e manipuladora.

3.4 Quarto Segmento do Controle Informal:


religião (Quanto custa a sua fé?)
Em primeiro lugar, esclarecemos que as expressões “religião”
e “religiosidade” não se equivalem. Religiosidade é o ato de fé, in-

155 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9 ed. Porto
alegre: L&PM, 2007, p. 161.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
73
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

dividual e íntimo, é o ser-religioso, independente onde e como é


exercido. Diferente da religião156, instituição dominada pelos dog-
mas, criada pelo homem, com regras próprias e que busca conduzir
seus fiéis dentro do que acredita ser o melhor e o “verdadeiro”.
Não nos preocuparemos em discutir a religiosidade (fé), por
respeito ao ser-religioso e justamente pelo subjetivismo que isso
representa. O que abordaremos é a crença (religião), pois somen-
te ela (e não a fé) possui uma inerente afinidade com a dúvida e
é constantemente exposta a ela.157
O que pretendemos é analisar a religião enquanto instituição,
enquanto instrumento de controle social que se utiliza do ser-religio-
so, da fé individual dos “crentes” para projetar suas ideias e objetivos.
Esta abordagem ficará limitada ao cristianismo, por ser o
segmento com maior número de fiéis no mundo e por representar
a tradição religiosa do nosso povo. É no ocidente que o cristia-
nismo concentra a maioria de seus seguidores, dividindo-se em
inúmeros credos: ortodoxa, anglicana, evangélica etc.
Cada uma dessas igrejas é regida por regras próprias, criadas
por homens e mulheres e que se fundam em objetivos, muitas
vezes, particulares158.
Nietzsche159 foi contundente e certeiro ao afirmar que o“Evan-
gelho morreu na cruz” e que “no fundo só existiu um cristão, e esse
morreu na cruz”. Esta percepção do pensador demonstra como ele

156 Não olvidamos que a religião, além de apresentar múltiplas formas de representação
da fé, também possui função social (integradora, agregadora) e cultural. Contudo, o
enfoque dado no trabalho será verificar a religião enquanto controle social.
157 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de
Almeida. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 131.
158 Necessário esclarecer que os reformadores Lutero, Calvino, Wesley tinham objetivos
que se fundavam em outras bases, distantes dos meros interesses individuais. A crí-
tica aqui é inspirada nos atuais evangélicos e igrejas neopentencostais, que definem
claramente objetivos mais particulares do que coletivos, o que não se vê nas igrejas
reformadas, históricas. Segundo o censo demográfico divulgado pelo IBGE em 2012
(dados de 2010), os evangélicos aumentaram 61,45% em 10 anos no Brasil, o que
representa 22,2% dos brasileiros (42,3 milhões).
159 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 73.
Airto Chaves Junior
74
Fabiano Oldoni

via o cristianismo pós Jesus Cristo. Para Nietzsche, Jesus foi o úni-
co que conseguiu viver plenamente o evangelho, a boa nova, que
morreu junto com ele na cruz. A igreja de Paulo, para Nietzsche, é
um Dysangelum (uma má nova), pois em momento algum procura
vivenciar os ensinos de Cristo, mas dominar e impor, através de dog-
mas e “verdades” construídas em salas fechadas. Para o filósofo, “só
(...) uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã”.
O “fora da Igreja não há salvação” é uma demonstração da
arrogância da igreja e da intenção de controle social pela ameaça
e pelo medo. O recado é claro: somente minha igreja pode te sal-
var do sofrimento eterno, “do fogo do inferno”, somente minha
igreja, que não aceita opiniões, que muitas vezes se fecha em um
mundo pequeno e ultrapassado, que reluta em não acompanhar
os anseios sociais, que não areja os posicionamentos ortodoxos
e ilógicos é que pode te mostrar o caminho que leva a Deus160.
Tudo o mais é “errado”, é pecado161 e deve ser evitado. Venham
até mim que eu os controlo. Muitas igrejas estão de braços aber-
tos esperando uma população carente de atenção e que se deixa
iludir facilmente em busca da “salvação”.
É isso. A salvação é estar num local, é pertencer a uma institui-
ção de “fé”. A igreja retira do indivíduo a responsabilidade de “salva-
ção” e centra nela própria, no estar nela, fazer parte dela. E a retirada
deste fardo do indivíduo o agrada, cativa, o faz ser fiel aos ensinos da

160 “O ‘reino dos céus’ é um estado da alma, e não o que quer que seja que suceda ‘para
além da Terra’, ou ‘depois da morte’ (...). O ‘reino dos céus’ não é algo que se espere,
não tem ontem nem amanhã, não vem dentro de ‘mil anos’ – é uma experiência do
coração; está em toda a parte e não está em parte alguma...” in NIETZSCHE, Frie-
drich. O anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 70.
161 “O pecado, digamo-lo uma vez mais, essa forma de poluição da humanidade por
excelência, foi inventado para tornar impossível a ciência, a cultura, toda a elevação
e toda a nobreza do homem: o sacerdote reina pela invenção do pecado” in NIETZS-
CHE, Friedrich. O anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 88. Neste mesmo
contexto assinala Russell: “Originalmente certos atos eram tidos como desagradáveis
aos deuses, sendo, desse modo, proibidos por lei por temer-se que a ira divina pudesse
recair sobre toda a comunidade, e não apenas sobre o indivíduo culpado. Daí nasceu
a concepção do pecado, como aquilo que desagrada a Deus” (RUSSELL, Bertrand.
No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 61).
Para que(m) serve o Direito Penal? -
75
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

“igreja”, pois, afinal, é ela quem irá lhe salvar, basta fazer o que ela
diz, e de preferência sem pensar, refletir ou questionar. Para qualquer
questionamento, a resposta é padrão e rápida: “está na Bíblia”, “está
na palavra”, ainda que ninguém saiba ao certo quem a escreveu, pois
se trata a Bíblia do livro anônimo mais lido no planeta.
A igreja secular, enquanto instituição criada pelo homem, é
verdade, é regida por questões nem sempre sagradas. Guareschi
já afirmava que a igreja também é um instrumento de controle
social a serviço do modelo de produção do Estado e, como tal,
não se diferencia dos demais segmentos.
Para tanto, a igreja oferece “justiça” eterna se houver reden-
ção nesse mundo de “injustiça” terrena. Essa questão é muito bem
trabalhada por Bertrand Russell162, quando trata “do argumento
quanto à reparação da injustiça” vivida no plano terreno. Con-
forme o autor, dizem que a existência de Deus é necessária a fim
de que haja justiça no mundo. Na parte do universo que conhe-
cemos há grande injustiça e, não raro, os bons sofrem e os maus
prosperam, e a gente mal sabe qual dessas coisas é mais molesta;
mas, para que haja justiça no universo como um todo,temos de
supor a existência de uma vida futura para reparar a vida aqui na
terra. Por isso, a igreja sustenta que deve haver um Deus, e que
deve haver céu e inferno, a fim de que, no fim, possa haver justiça.
Ocorre que, como não conhecemos o resto do universo,
tanto quanto se pode raciocinar acerca das probabilidades, pode-
ríamos dizer que este mundo constitui uma bela amostra e, se há
aqui injustiça, é bastante provável que também haja injustiça em
outras partes. É que, como lembra Russell, os argumentos intelec-
tuais sobre os quais falamos aqui não são, na verdade, de molde a
estimular as pessoas. O que realmente leva os indivíduos a acre-
ditar em Deus não é nenhum argumento intelectual. A maioria
das pessoas acredita em Deus porque lhes ensinaram, desde tenra
infância, a fazê-lo, e essa é a principal razão.

162 RUSSELL, Bertrand. Porque não sou cristão: e outros ensaios sobre religião e assun-
tos correlatos. Tradução de Brenno Silveira. Livraria Exposição do Livro, 1972, p. 13.
Airto Chaves Junior
76
Fabiano Oldoni

Essa crença, no entanto, faz com que acreditemos que, para


alcançar esse mundo de justiça, devemos pagar um preço nesta
vida. O dízimo, por exemplo, faz parte dessa conta. E isso faz da
igreja uma instituição capitalmente bastante rentável. Faz de seus
pastoreios uma profissão, com cargos e salários conforme a produ-
ção, conforme a conquista de novos fieis. O que busca uma igreja
que comercializa a “fé”? Que condiciona a “salvação” (o acesso ao
mundo justo) ao dízimo, senão o lucro? Será que devemos achar
natural a proliferação de templos como há hoje? Encontrar natu-
ralidade na venda de “toalhas com o suor do pastor”, como objeto
“abençoado”? A venda de “fronhas de travesseiros abençoadas”
pelo pastor para que seu filho deixe de usar drogas? A venda de
perfume com o “cheiro de Jesus”? A distribuição de “carnês para
oração incessante”, para que seja o fiel constantemente “abençoa-
do”? A aceitação de dízimo pelo cartão de crédito e débito para que
não se falhe com o compromisso “divino” de confirmação da fé?
É fácil constatar que grande parte dos fieis que buscam de-
terminadas igrejas, assim o fazem motivados pela melhora da situ-
ação material. Procuram o “melhor emprego”, o aumento da ren-
da etc., etc., etc. E porque buscam isso na igreja? Porque do outro
lado do balcão do comércio da fé está alguém que promete isso. É
a lei de oferta e da procura, tão graça ao capitalismo liberal.
Rui Barbosa163, ao prefaciar a obra O papa e o concílio, foi ca-
tegórico ao afirmar que a igreja (Apostólica Romana),ao mesmo
tempo em que obteve autoridade temporal (influência na elabora-
ção de leis terrenas e no Estado), viu decair sua autoridade moral
na mesma proporção; buscou riquezas e se corrompeu; derramou
o sangue dos considerados “infiéis” para impor silêncio à hetero-
doxia. Essa postura sujeitou o “espírito” à letra, muito bem ini-
ciada pelo formalismo, primeiro sintoma da sua decadência. Ao
falar sobre o dogma da infalibilidade papal (o papa nunca erra), foi

163 JANUS. O papa e o concílio(versão e introdução de Rui Barbosa). v. I. Londrina:


Leopoldo Machado, 2002, p. 33.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
77
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

enfático ao afirmar que essa postura é uma demonstração de “au-


toridade sobrenatural”, que a Igreja, desde que fora instituída, se
autoatribui. O fato é que essa construção de crenças e dogmas não
passa de mera criação terrena, invento de uma política mundana
tendente à exploração da sociedade inteira a bem de um absolu-
tismo que, com o intuito de fazer-se eterno, quer, como todas as
idolatrias e todas as opressões, estribar-se em origens celestes.164
Por qual motivo apontamos a igreja/religião como um seg-
mento de controle social? Porque ela, efetivamente, controla seus
fiéis, interferindo até mesmo no pleito eleitoral, ao “orientá-los”
para quem devem votar, precisamente em candidatos que represen-
tem seus interesses no cenário político nacional, estadual e munici-
pal. Se a preocupação das igrejas fosse tão-somente com a fé indi-
vidual do seu seguidor, por que motivos se preocupariam em ter lo-
bistas políticos que representem seus interesses perante o governo?
É fácil verificar que a igreja é um poderoso segmento de con-
trole social informal. Se fosse ela utilizada para orientar os seus
seguidores de forma ética e moralmente correta, possivelmente se
constituiria em uma ferramenta eficiente no controle da violên-
cia. Contudo, da forma como se apresentam, as igrejas de ontem
e de hoje dispensam preocupação realmente para a lucratividade
econômica e apenas (e às vezes) a implementação de cultivo dos
dogmas que enaltecem como fundamentais. Dentro desta pers-
pectiva, o aumento dos fieis sugere mais arrecadação o que, por
consequência, gera mais poder consubstanciado, é fácil notar,
com a construção de templos suntuosos e com a proliferação de
“filiais” pelo país e mundo afora. A postura pouco se diferencia de
uma empresa voltada a acumulação de capital.
Ideologicamente, por outro lado, as religiões se encontram em
crise. Dividem-se entre modernismo e conservadorismo. Atormenta-
das por conflitos internos entre cultos rivais, mostram-se, mais do

164 JANUS. O papa e o concílio(versão e introdução de Rui Barbosa). v. I. Londrina:


Leopoldo Machado, 2002, p. 109.
Airto Chaves Junior
78
Fabiano Oldoni

que nunca, incapazes de assumir seus princípios de fraternidade


universal165. Diante desta constatação, o que realmente as igrejas
estão fazendo pela informação e autonomia de seus fiéis?Melhorar
as pessoas é uma das justificativas de sua existência (necessária?).
O sacerdote, então, seria o típico melhorador de seres humanos.
Espera-se que o adestrador faça isso com os animais; espera-se que a
pena de prisão faça isso com o delinquente; acredita-se que os ban-
cos escolares façam isso com o ignorante: tornar a pessoa melhor.
As pessoas que sabem, porém, o que ocorre dentre do cár-
cere, duvida que o recluso seja melhorado. Isso ocorre, também,
com os animais no adestramento. Lembra Nietzsche166 que tornar
o “objeto” menos nocivo, enfraquecido, especialmente, através
do mesmo discurso rasteiro há séculos marcado pelo afeto de-
pressivo do medo (do inferno, do diabo, da impossibilidade de
“salvação”, etc.). Esse é o fim da teoria do melhoramento e, perce-
bendo isso, a Igreja perverteu o homem, ela quer torná-lo fraco,
mas sempre sob o pretexto de melhorá-lo.
Mas o primeiro passo desse processo é a necessidade irre-
nunciável de absorção da crença religiosa, o que deixa de lado
toda e qualquer justificativa racional, capaz, inclusive, de levar o
sujeito a dar a própria vida para atestá-la (deixar, simplesmente,
de viver). Como bem anota Wittgenstein167, a religião diz para o
fiel: faça isto! Ainda que o “isto a fazer” não possa ser justificado
racionalmente. E ainda que existisse, para cada razão que fosse
apresentada há uma contrarrazão válida. É mais convincente di-
zer: “Pensem assim! Por mais estranho que vos parecer”, ou en-
tão: “Não queres fazer isto? Por mais repugnante que seja”.
O fato é que, o que combate a dúvida é, por assim dizer, a re-
denção. A adesão a ela deve ser a adesão a esta crença. Assim, o

165 MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2013, p. 26.
166 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo). Tra-
dução de Marco Antônio Casa Nova. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 52-53.
167 WITTGENSTEIN, Ludwig. Cultura e valor. Lisboa: Edições 70, 1996, p. 51.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
79
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

que tal significa é: deves, primeiro, ser redimido e apoiar-te na tua


redenção – em seguida verás que te estás a agarrar a esta fé: mas
tal só pode acontecer se o teu peso já não assentar na terra, mas
se te suspenderes do céu. Então tudo será diferente e não será de
espantar que possas fazer coisas que agora não podes fazer.168

3.5 Quinto Segmento do Controle Informal:


moda, modismo e hiperconsumo (Não queremos
ficar à margem!)
Não é novidade afirmar que estamos num mundo globaliza-
do e instantâneo, porém talvez poucos tenham percebido que a
era da globalização já se divide em duas fases169. A primeira surgiu
na época das luzes, onde a revolução científica rompeu com as
antigas visões do mundo, racionalmente e de forma experimental.
Teve ela o objetivo de servir à humanidade toda, numa época
em que os valores da liberdade, igualdade, felicidade e bem-estar
nasciam como vetores para uma nova época.
A segunda fase da globalização surge na metade do século XX,
com o nascimento dos mercados financeiros e da internet, que tiveram
por mérito universalizar instantaneamente as informações, fazendo
com que a competitividade e a busca pelo lucro (fim), independente
dos métodos (meios), sejam os únicos objetivos globais. Segundo Ferry,
a segunda fase da globalização acarreta algumas consequências:
a. A perda do sentido: A Revolução Francesa tinha um ob-
jetivo claro que era oferecer a igualdade, a liberdade e o
bem-estar. A segunda fase da globalização visa o lucro, o
crescimento e a expansão sem limites, onde o fim não é o
homem e sim a mercantilização do mundo.

168 WITTGENSTEIN, Ludwig. Cultura e valor. Lisboa: Edições 70, 1996, p. 56.
169 Conforme explica FERRY, Luc. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 49/77.
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Fabiano Oldoni

b. A perda de controle sobre o mundo: Vivemos em uma era


em que o homem se mostra impotente frente às crises globais
(financeira, fome, guerra, naturais etc.). Alguns estão na
“crista da onda”; a grande maioria está sob ela, mas a onda
ninguém fabrica e controla. Há uma perda de controle sobre
os acontecimentos globais e o motivo desta impotência não
está na negligência, na idiotice, na falta de coragem ou de-
sonestidade de nossos governantes. Segundo Ferry quando
as alavancas de comando são globalizadas, tendem a esca-
par cada dia mais do controle dos Estados-nação. Em outras
palavras, no seio da globalização as alavancas das políticas
nacionais estão em falta e não movem mais muita coisa.
c. Hiperconsumo ou mercantilização do mundo: O consumo
se individualizou (basta ver o número de televisores e compu-
tadores existentes em cada residência, sendo quase que um
para cada cômodo/pessoa) e com isso cresceu extraordina-
riamente. Isso tem gerado alguns problemas, pois tem feito
participar do universo do consumo, esferas que até poucos
anos atrás não poderiam pertencer a ele. Tudo tem se tornado
“mercadoria”, a educação, como já dito anteriormente, a re-
ligião, com a mercantilização da fé. Tudo vale para aumentar
o consumo, até mesmo o governo cortar impostos. O círculo
está tão fechado que o consumismo é o motor da globalização.
Hoje o governo combate a falta de crescimento com o estímu-
lo do consumo e não com a produtividade e educação.

Estamos em um momento social onde não suportamos a ex-


clusão, e a eliminação é humilhante, cuja representação da reali-
dade se dá através dos reality shows, em que a disputa é pela não
eliminação, sinônimo de esquecimento e indiferença social.
A sociedade industrial, tendo o lucro como razão de existir,
impôs ao mundo as leis da estandardização, sincronização, maxi-
mização, especialização, centralização e concentração.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

Segundo De Masi170, a estandardização do mercado pressu-


põe a produção em série e a venda em grande escala a preços
acessíveis. Para manter este processo é importante também pa-
dronizar o gosto do consumidor, fazendo-o desenvolver um gosto
padrão. O slogan da Ford era: “Os americanos podem escolher
carros de qualquer cor. Desde que seja preta”. A estandartização
produtiva implica às pessoas o desejo de serem iguais umas às
outras, ao invés de aspirarem ser diferentes.
A sincronização exige uma “linha de montagem” que faça
tudo dentro de um tempo pré-estabelecido. Ao invés de uma
pessoa fazer um produto do início ao fim, cada um executará
uma parte na confecção do objeto. Essa sincronização na linha
de produção pressupõe a sincronização da cidade, fazendo com
que todos tenham que sair e voltar para casa ao mesmo tempo,
fazendo com que todos se desloquem de um lugar para outro
(bairro – centro) no mesmo horário, ocasionando os horários de
rush, com intermináveis congestionamentos. E assim as fases da
existência também acabam sendo sincronizadas, com o estudo na
juventude, o trabalho “forçado” e a procriação na idade madura
e a coação ao descanso na terceira idade.
Estes caracteres surgidos com a sociedade industrial ainda re-
fletem e condicionam a sociedade pós-industrial. Vivemos a moda, o
modismo, passageiro como o vento, contudo intenso como a paixão.
Para fazer parte deste gueto global, necessário consumir e se moldar
na “caixa social”, sob pena de ser excluído à força e lançado à “caixa
marginal”, pequena, fétida, distante, isolada e estigmatizante.
Se há os que são obrigados a se distanciar do modelo social,
outros se afastam por não suportarem a convivência com ”estra-
nhos”, preferindo levar uma vida cool171. A secessão dos bem-su-

170 DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 3 ed., Rio de Janeiro: Sextante, 2000, ps. 58/70.
171 Expressão que significa “fuga ao sentimento”, fuga “da confusão da verdadeira inti-
midade, para o mundo do sexo fácil, do divórcio casual, de relações não possessivas”
in BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança nos dias de hoje. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p. 50.
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Fabiano Oldoni

cedidos pressupõe comunidades cercadas, muito bem guardadas


e eletronicamente controladas. Estas comunidades são comuni-
dades só no nome, pois o que seus moradores querem é o distan-
ciamento dos “intrusos” (todas as pessoas que vivem suas vidas
do modo como querem). Estes “desocupados” são as pessoas que
temorizam os “bem-sucedidos”.
O crescente hiato entre os espaços vivos/vividos dos que se
separaram e dos que foram deixados para trás é comprovadamen-
te o mais produtivo de todos os afastamentos sociais, culturais e
políticos, associados à passagem do estado sólido para o estado
líquido da modernidade172.
O hiperconsumo, a moda e o modismo, como segmento de
controle informal, movimentam a população ao “aqui e agora”,
ao “aproveitar a vida” sem medo das consequências e quem não
consegue “estar” neste lugar, seja pela exclusão social ou econô-
mica, buscará seu espaço, mesmo que à custa do outro.
Essa necessidade de ter mais, de consumir cada vez com
mais intensidade e rapidez nos é ensinada. Somos indivíduos
criados em um mundo de consumo, em um mundo líquido (Bau-
man), orientados a “vencer na vida”, a buscar sempre o melhor
emprego, o melhor salário, onde não basta o conforto, queremos
o excesso, nada de uma vida frugal, queremos uma vida fugaz e
através dos meios de comunicação de massa“os donos do mundo
nos comunicam a obrigação que temos todos de nos contemplar
num único espelho, que reflete os valores da cultura do consu-
mo”, onde as “ordens de consumo, obrigatórias para todos, mas
impossíveis para a maioria, são convites ao delito”173.
Estamos intoxicados, é o diagnóstico de Edgar Morin174. Seja
pela obsessão permanente do lucro, do quantitativo, do calculá-
vel, do cifrável, seja pela rotina da cidade, pelo ritmo opressor do

172 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004, p. 121.
173 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9 ed., Porto
alegre: L&PM, 2007, p. 25 e 26.
174 MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
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Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

trabalho, tudo linkado ao consumismo, que transforma o supér-


fluo em necessário e os antigos luxos em necessidades, estimula
a obsolescência rápida dos produtos, a promoção do descartável
em detrimento do sustentável, a sucessão acelerada da moda, o
incentivo permanente do novo e a preocupação individualista de
status social, gerando frustrações psicológicas e morais que so-
mente encontram “consolo” passageiro na compra e no abuso de
bebidas, alimentos e objetos sem utilidades.
Não há necessidade de pesquisas para identificar que o gran-
de motivador do desvio é a busca pelo lucro fácil. Extraindo os
motivos passionais e o desvio sexual, a busca pelo dinheiro é o que
mais impulsiona o “desviante”. Roubos, furtos, latrocínios, extor-
sões mediante sequestro, corrupções, peculatos, tráfico de drogas,
crimes contra o sistema financeiro, crimes de sonegação fiscal, to-
dos são praticados com a finalidade de obter mais dinheiro. Porém,
como se sabe, apenas uma gama desses crimes são identificados e
alcançados seus autores. A criminalidade aparente (aquele que se
vê), aquela praticada pelas classes menos favorecidas (furtos, rou-
bos, etc.) acaba por sofrer as consequências das práticas delitivas.
Mas, por que razões praticaram esses sujeitos crimes patrimoniais,
senão pela ausência do “material”? Sabemos que hoje, a sociedade
em que estamos inseridos considera a pessoa tanto mais importante
quanto maior o capital acumulado por ela. Confunde-se “quanti-
dade de coisas” com “qualidade de vida”. E como se busca uma
qualidade cada vez maior, nunca é o bastante aquilo que se tem.
É necessário acumular mais e mais. Pretendem, assim, preencher
com “quantidade de coisas” o enorme “vazio do ser”.
O modelo capitalista de Estado faz aquilo que se propõe a
fazer: incentivar um consumo de satisfação improvável. Neste
caso, problema não haveria se todas as pessoas tivessem condições
e escolher e consumir aquilo que está intimamente atrelado a sa-
tisfação da autoridade de seus desejos. Mas, quando as condições
econômicas, simplesmente, proíbem o sujeito de fazê-lo? Economi-
camente tratadas, as classes sociais são dividas por letras: quanto
Airto Chaves Junior
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Fabiano Oldoni

mais próximo a letra “A”, maior o potencial consumidor de deter-


minada classe. Há, porém, uma “subclasse”. Uma classe que não
se encaixa nos padrões classificáveis de consumo. A “subclasse”,
legitimamente, não consome. Não porque não quer, mas porque
não pode. Desinteressante do ponto de vista de uma sociedade de
consumo que é, ao tempo em que se proíbe, confinam-se às favelas
e periferias de forma que se destacam num grupo de pessoas facil-
mente identificável. Em caso de ocorrência de desvio, ainda que
direcionado para o consumo, polícia e prisão são os instrumentos
reparadores mais (e quase que unicamente) utilizados.

3.6 Uma reflexão (a) final


Do que foi dito até o momento, possível verificar que por
traz de todos os segmentos de controle informal, atuando como
eminência parda, existe um denominador comum determinando
o modus operandi de cada segmento: o modelo de produção do
Estado, no caso o capitalismo, verdadeiro “poder invisível que
a todos governa, embora não tenha sido eleito por ninguém”175.
Os meios de comunicação de massa, onde a massa não se
comunica176, vende o medo, a frustração do não ter, do não con-
sumir. A mídia trabalha com o lucro, o lucro pressupõe audiência
e esta indica a fidelidade do “teleconsumidor”, o que só se conse-
gue na aderência deste, com a mensagem veiculada.
A escola, por sua vez, mais preocupada com o ensino técni-
co, de repetição, busca adequar o aluno ao sistema de produção,
treinando-o para ser um “bom” executor, pois é desta mão-de-obra
que o mercado está precisando. A reflexão não é importante, já
que o senso crítico não é condição para ingressar no mercado de

175 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9 ed., Porto
alegre: L&PM, 2007, p. 164.
176 CZERMAK, Rejane; NEVES DA SILVA, Rosane Azevedo. Comunicação e pro-
dução da subjetividade. In GUARESCHI, Pedrinho A. (Coord). Comunicação &
controle social. 2 ed., Petrópolis: Vozes, 1993, p. 50.
Para que(m) serve o Direito Penal? -
85
Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social

trabalho, mas sim a qualificação “técnica”, o saber-fazer-alguma-a-


tividade-específica. O homem na engrenagem do capitalismo.
A escola, antes de ensinar, deveria se preocupar mais com
a educação, onde o educador visa auxiliar o outro a encontrar
o conhecimento internalizado e refletido, de forma crítica, res-
ponsável, respeitando-se a individualidade. Enquanto a escola é
coletiva, a educação é individual.
Deveríamos refletir sobre a proposta de Edgar Morin177, onde o
novo sistema de educação é fundado na religação, radicalmente di-
ferente do atual. Este sistema permitiria favorecer a capacidade da
mente para pensar os problemas individuais e coletivos em sua com-
plexidade; ensinaria a situar qualquer informação ou dado em seu con-
texto; ensinaria as diversas formas de racionalidade (teórica, crítica e
autocrítica); introduziria os problemas vitais, fundamentais e globais
ocultados pela fragmentação disciplinar. Enfim, ensinaria a pensar.
Mas, e a família? Será que também sofre influência do mo-
delo de produção estatal? Logicamente que sim. O Estado incen-
tiva e a família entra na rota do consumo. Cada indivíduo é um
consumidor em potencial e a individualização do “ter” acaba pro-
vocando uma fragmentação familiar. A família não consome co-
letivamente, mas sim individualmente. O pai/mãe tem seu com-
putador, seu telefone, sua televisão, o que é repetido pela mãe e
pelos filhos. E esta demanda de consumo exige da família alguns
sacrifícios, sendo que algumas decisões refletem diretamente na
formação moral e ética dos seus membros.
Por fim, a religião (e não a religiosidade). Pensando no au-
mento gigantesco de algumas igrejas e suas riquezas, percebe-se
que as cifras ali se apresentam definitivamente como o objetivo
a ser alcançado. A “casa do pai” é revestida de ouro e precisa de
ofertas generosas para sua prática. Tudo é possível ser comprado,
até mesmo a paz eterna. De posse de um cartão de crédito você

177 Conforme sintetiza nas obras “A via para o futuro da humanidade” e “Os sete saberes
necessários à educação do futuro”.
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facilmente “acessa” o reino do céu. Esta é a nossa religião, onde o


dízimo é o motor propulsor da fé moderna.
Sucumbimos, assim, ao modelo neoliberal, que apresenta o se-
guinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial
e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria
causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva
em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo178.
Para compreensão dessa sistemática, devemos avaliar a atu-
ação desses segmentos informais de controle em conjunto com
segmentos formais e institucionalizados pelo Estado, todos eles
interagindo ao mesmo tempo entre si. Como vimos, o controle
difuso (os “meios de massa”, a “escola”, os “preconceitos”, “for-
mas de educação”, “família”, “modas”, etc.) tem um papel muito
importante na reprodução ideológica, na influência de compor-
tamentos e até mesmo no regramento de certas condutas. Vejam
que essas formas de controle podem, também, motivar ou desmo-
tivar comportamentos. Por outro lado, são segmentos do contro-
le social institucionalizado, dentre outras formas, os “asilos”, as
“práticas psiquiátricas”, e o “sistema penal”.
Passamos, então, a análise dos segmentos de controle insti-
tucionalizados que atuam por entre esse sistema.

4. OS SEGMENTOS DO CONTROLE SOCIAL


INSTITUCIONALIZADO

Inicialmente, cabe aqui esclarecer que a legislação penal é


apenas um dos segmentos de controle do Sistema Penal. Sua im-
portância, embora inegável, não é tão absoluta como às vezes se
pretende, pois representa apenas um dos meios de controle formal
existentes, especialmente, quando dimensionamos o enorme campo
de controle social que, diuturnamente, opera e influencia em nossas

178 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 6.

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