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ano I

abr./2017 04
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Julgamento de contas dos


prefeitos ordenadores
de despesas

Thaís Boia Marçal Direito administrativo Gina Copola Novo tipo de ato de
pág. 40 sancionador versus direito pág. 44 improbidade
administrativo dialógico administrativa
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Animal e Direito: o afeto como base de Nancy Andrighi, Fernando Tourinho Filho, Fernando da Costa Touri-
família multiespécie pág. 6
ano I l abril de 2017 l nº 04
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nho Neto, Georgenor de Souza Franco Filho, Geraldo Guedes, Gilmar
Ferreira Mendes, Gina Copola, Gustavo Filipe B. Garcia, Humberto
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Theodoro Jr., Igor Tenório, Inocêncio Mártires Coelho, Ivan Barbosa


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Relativizando a tortura ou
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O equívoco da tentativa de
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PARA QUEM QUER ESTAR
EM SINTONIA COM AS
TENDÊNCIAS DO
MUNDO JURÍDICO
SUMÁRIO

Nesta edição, o advogado Flaviano dos


Santos Veras discorre acerca de decisões do
Supremo Tribunal Federal, com reconhe-
cida a repercussão geral, que modificaram
o entendimento a respeito do julgamento
de contas de gestores municipais. O autor
levanta o debate sobre um julgamento polí-
tico ser capaz de comprometer as garantias
de moralidade e eficiência administrativas,

6 Capa
uma vez que os prefeitos não só adminis-
tram as contas de governo como também
exercem a função de ordenadores de des-
pesas. Confira!

Primeira Página – Amadeu Roberto Garrido


de Paula

4 Corromper e delatar:
o melhor negócio
Especial – Ivan Barbosa Rigolin

19
As licitações nas empresas estatais
pela Lei nº 13.303/2016

Destaque – José Matias-Pereira

28 Construção de um
projeto de nação
Direito Eleitoral – Leonardo Sarmento

30
Teria sido constitucional
a decisão do TSE sobre a
chapa Dilma-Temer?

Política Econômica – Armando Castelar

34 O mundo em gradual
recuperação
Enfoque – Eduardo Luiz Santos Cabette

36 O detetive particular e a hipótese


da equiparação a funcionário
público na investigação criminal

Direito Administrativo – Thaís Boia Marçal

40
Direito Administrativo
sancionador versus Direito
Política Educacional – Arnaldo Niskier

43
Administrativo dialógico Educação e trabalho

Processo Administrativo – Gina Copola


Opinião – Pedro Puttini Mendes

44
Novo tipo de ato de
improbidade administrativa
48 Cadastro Ambiental Rural
e áreas indígenas
PRIMEIRA PÁGINA

ARQUIVO PESSOAL
Amadeu Roberto Garrido de Paula

Corromper e delatar:
o melhor negócio

H
á crimes que se pode praticar só: matar, roubar, furtar etc. Não há
como delatar outros e sair sorrindo, devolver apenas parte de coisa, da
“res furtiva” e ficar com o lucro. Já no crime de corrupção há dois polos
do ato criminoso, um ativo, o corruptor, e outro passivo, o corrompido.
Corrompidos são agentes e servidores públicos, políticos em geral, segundo as
últimas e tristes notícias que consomem os noticiários brasileiros. Corruptor pode

4 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito
Conceito Jurídico
Jurídico
Administrativo e Político
Administrativo e Político

ser qualquer um, até mesmo mediante um bombom. Mas as corrupções mínimas
não estremecem o Brasil, embora sejam eticamente reprováveis. O que fez de
nossa sociedade uma baixada pantanosa e desesperadora foi a corrupção alta,
de grandes valores, milionários e bilionários, que extraíram, como o faz qualquer
ladrão, dinheiro da saúde, da educação, da justiça, do desenvolvimento que gera
postos de trabalho. Nosso superior problema, embora não o único – perdoem-me
os donos das miraculosas soluções teóricas, econômicas e sociais – é a corrupção
altíssima e devastadora. Daí nosso estado atual.
Sob miragem da operação “Mãos Limpas” da Itália, que, ao fim e ao cabo,
redundou num retumbante fracasso, com a volta dos Berlusconi da vida, com a
corrupção, inclusive, entremeada com o Banco do Vaticano, o Brasil promulgou
uma lei que deve ser profundamente rediscutida: a que premia delatores, a pior
espécie dos caráteres humanos, os traidores de seus antigos parceiros, sejam da
legalidade ou da ilegalidade. Não há no mundo paradigmas mais repugnantes do
que Judas Iscariotes ou Joaquim Silvério dos Reis.
Há delinquentes que são, pelo menos, homens que se dispõem a pagar por
seus crimes, com coragem, até o final de suas vidas. Há até mesmo os que, em
determinado momento da vida delitiva, desejam ser apenados. Testemunhamos
fatos dessa natureza em mais de 40 anos de exercício ininterrupto da advocacia.
Pois bem, apenas para exemplificar, a Lei nº 12.850/2013 permite que uma orga-
nização criminosa como a JBS, em atuação no Brasil, por seus diretores máximos,
embalados em conluio com um governo sem um mínimo brio, que todos desejamos
esquecer e riscar do mapa político, pratique crimes de corrupção na ordem de R$
10 bilhões, o que significa que sangraram os cofres públicos em cerca do décuplo.
Ademais, no acordo celebrado com a chefia do Ministério Público e homologado,
só nas suas formalidades externas, pelo Supremo Tribunal Federal, tenham reem-
bolsado os cofres públicos em meros trezentos milhões, uma gorjeta diante da
magnitude do crime.
Indaga-se: haverá melhor negócio? Corrompo. Se descoberta a manobra repug-
nante, delato. Nem sequer sou denunciado, como não o foram os diretores da J&F,
principais autores dos crimes. Quer isso dizer que nem sequer serei processado,
apenas se for pilhado numa mentira demonstrável por si mesma, por uma contra-
dição íntima. Voarei como um passarinho, depois de haver lesionado gravemente
meus compatriotas, até pousar numa régia cobertura na Quinta Avenida.
Ah, é um meio de prova. Talvez, dependente de corroboração e de impunidade.
Só uma das partes delinquentes é punida, o corrompido. Em se tratando de altas
autoridades políticas, no torvelinho de múltiplas marchas e contramarchas. Na
verdade, a delação premiada é a confissão da inépcia da polícia, confortada na con-
fissão de um delator. O Brasil, hoje, é o país que mais recorre à delação premiada no
mundo. Há países em que ela causa nojo e asco, e o delator é convidado à morte.

AMADEU ROBERTO GARRIDO DE PAULA é advogado e sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.

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DIVULGAÇÃO
CAPA

Julgamento de
contas dos prefeitos
ordenadores de despesas
Flaviano dos Santos Veras

6 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

O
Supremo Tribunal Federal, por meio dos REs 848826 e 729744, fixou
a tese de que a Câmara Municipal é responsável pelo julgamento das
contas de governo e de gestão de prefeito. Apesar de as decisões servi-
rem de parâmetro, elas não se prestaram a pôr fim à polêmica em vir-
tude de se tratar de matéria assaz complexa e envolver, inclusive, aparente confli-
to entre normas constitucionais. A tese vencedora, no caso do RE 848826, foi a de
Ricardo Lewandowski, que abriu a divergência e entendeu mais acertado atribuir
às Câmaras Municipais a função de julgar as contas de prefeito sob o argumen-
to de que, por serem os membros das Casas Legislativas municipais eleitos pelo
povo, o julgamento deveria levar em conta o aspecto democrático embutido na
ideia de representação popular.

“ Apesar de as decisões do STF, em caráter geral, terem sub-


traído da decisão do Tribunal de Contas o fato de resultar em
inelegibilidade do prefeito em caso de rejeição de suas con-
tas, ainda assim perdura a possibilidade de, com base nessa
decisão, o gestor ficar sujeito a sanções administrativas, cíveis
e criminais. Além disso, o julgamento das contas de prefeito
por órgãos técnicos não dá a garantia de um julgamento mais
justo em virtude de a composição destes órgãos quase sem-
pre representar escolhas políticas e não técnicas, fator que
não garante a idoneidade do julgamento.

Toda a celeuma girava em torno de candidato à deputado estadual que teve
suas contas referentes à gestão como prefeito rejeitadas pelo Tribunal de Contas,
fator que o tornaria inelegível, segundo decidiu o TSE. O processo chegou ao STF
na forma do RE 848826, no qual se decidiu ser a decisão mais adequada atribuir a
um órgão político a função de julgar as contas do prefeito. Assim, tanto as contas
de governo quanto as de gestão deveriam ser julgadas pela Câmara Municipal. A
atuação do Tribunal de Contas, nesse caso, foi reduzida a um parecer meramente
opinativo, o que gerou polêmica, podendo inclusive ter restringido o âmbito de
eficácia da lei de inelegibilidades.
Importa esclarecer que a dúvida quanto ao órgão competente neste tipo de
situação surge em razão de a própria Constituição ter atribuído ao Poder Legisla-
tivo a competência para julgar, com o auxílio do Tribunal de Contas, as contas do
chefe do Executivo municipal, além de ter conferido àqueles a competência para
julgar as contas dos administradores e responsáveis por dinheiro público. Assim,

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CAPA

a diferença entre contas de governo e de gestão pode ser vislumbrada, sendo as


primeiras julgadas pelo Poder Legislativo e as contas de gestão julgadas pelo TC.
Em uma interpretação literal do texto constitucional, esta poderia ser a conclusão
mais acertada. No entanto, o entendimento adotado pelo STF foi diverso.
Com base no exposto, resta questionar o papel dos TC’s para apreciar as contas
de gestores municipais, lançando luz sobre a discussão e apresentando as princi-
pais teses que serviram como base para a fixação da competência no julgamento
das contas de prefeito.

NATUREZA JURÍDICA DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

O Tribunal de Contas é um órgão com autonomias administrativa e financeira,


com competência firmada constitucionalmente, desvinculado de qualquer um
dos Poderes e que exerce o controle externo ao auxiliar o Poder Legislativo na
apreciação das contas prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo. Esse
auxílio, diga-se, não pressupõe subordinação. É, por assim dizer, órgão adminis-
trativo e parajudicial, daí sua autonomia, que tem a função conforme preceitua
Eduardo Gualazzi (1992, p. 187) de “exercer, de ofício, o controle externo, fático e
jurídico, sobre a execução financeiro-orçamentária, em face dos três Poderes do
Estado sem a definitividade jurisdicional”.
Assim, não é correto definir o Tribunal de Contas como sendo um órgão mera-
mente auxiliar, uma vez que se estaria admitindo um certo grau de subordinação.
A bem da verdade, os Tribunais de Contas realizam efetivamente o controle finan-
ceiro e orçamentário da Administração pública. Ademais, a própria Constituição
atribui diversas competências exclusivas aos TCs, sendo impossível extrair do
texto constitucional qualquer entendimento acerca da ingerência exercida sobre
os indigitados Tribunais por qualquer um dos Poderes. Nesta linha de raciocínio
é a importante lição de Carlos Ayres Britto:

Tribunal de Contas da União não é órgão auxiliar do Parlamento Nacional, naquele sentido
de inferioridade hierárquica ou subalternidade funcional. Como salta à evidência, é preciso
medir com a trena da Constituição a estatura de certos órgãos públicos para se saber até
que ponto eles se põem como instituições autônomas e o fato é que o TCU desfruta desse
altaneiro status normativo da autonomia. Donde o acréscimo de idéia que estou a fazer:
quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo “com
o auxílio do Tribunal de Contas da União” (art. 71), tenho como certo que está a falar de
“auxílio” do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Poder
Judiciário. Quero dizer: não se pode exercer a jurisdição senão com a participação do Mi-
nistério Público. Senão com a obrigatória participação ou o compulsório auxílio do Minis-
tério Público. Uma só função (a jurisdicional), com dois diferenciados órgãos a servi-la. Sem
que se possa falar de superioridade de um perante o outro. (BRITTO, 2001, p. 3).

A natureza jurídica dos Tribunais de Contas é, vale a repetição do juízo, de órgão


independente, sem vinculação a qualquer um dos Poderes, sendo irrefutável a
relevância deste órgão para o controle adequado uso da coisa pública. Há que se
mencionar ainda que, entre os Tribunais de Contas, inexiste hierarquia. Destarte,
o Tribunal de Contas da União (TCU) não tem predomínio sobre os tribunais de
contas dos estados (TCEs). Cada um dos TCs, seja o da União, seja o de cada um dos

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Conceito Jurídico
Administrativo e Político

estados tem competências e atribuições delineadas em suas normas de regência


e, apesar de não possuírem personalidade jurídica própria, mantém capacidade
processual ou postulatória.

NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Outro importante ponto é saber se as decisões dos TCs possuem caráter judi-
cante ou meramente administrativo. Decisão judicante é a que tem o condão
de dizer definitivamente o direito. Assim, se as decisões destes tribunais fossem
judicantes haveria “definitividade”, não sendo possível questioná-las, ao menos
em tese. Obviamente, no Brasil não se adotou o modelo chamado de conten-
cioso administrativo. As decisões dos tribunais de contas sempre estarão sujeitas
a controle judicial. Mas por que a Constituição Federal atribuiu aos TCs a função
de julgar as contas dos ordenadores de despesas se estes órgãos não fazem parte
do Poder Judiciário?
O julgamento previsto no art. 71, II da CF representa um ato administrativo
que poderá ser objeto de controle judicial com base no que dispõe o art. 5º, XXXV
da CF. No Brasil, como se sabe, se adotou o sistema de jurisdição una. Assim, as
decisões dos TCs são, na verdade, administrativas.
Contudo, vale lembrar que a decisão dos TCs, a despeito de serem meramente
administrativas, acabam por vincular a Administração pública, uma vez que deverá
obedecê-las ou, caso discorde delas, interpor os recursos cabíveis junto aos tri-
bunais de contas ou mesmo ingressar no Poder Judiciário com as ações cabíveis.
Desta forma, pode-se dizer que as decisões dos TCs prevalecem enquanto não
forem invalidadas ou superadas. Neste ponto, importa trazer à baila a lição de
Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Pode-se afirmar que a decisão do Tribunal de Contas, se não se iguala à decisão jurisdicio-
nal, porque está também sujeita ao controle pelo Poder Judiciário, também não se iden-
tifica com a função puramente administrativa. Ela se coloca a meio caminho entre uma e
outra. Ela tem fundamento constitucional e se sobrepõe à decisão das autoridades admi-
nistrativas, qualquer que seja o nível em que se insiram na hierarquia da Administração
Pública, mesmo no nível máximo da chefia do Poder Executivo. (DI PIETRO, 1996, p. 23).

Apesar de a decisão dos TCs ser administrativa ou entendida como ato adminis-
trativo, esse fato não permite que o poder público a invalide, já que tais tribunais
estão em situação de permeio entre os Poderes e executam a fiscalização finan-
ceira e orçamentária deles. Assim, em tese, somente por decisão judicial é que se
poderia afastar a decisão tomada no âmbito dos TCs ou, pelo menos, afastar alguns
de seus efeitos, ressalvada, como veremos, a possibilidade de voto qualificado de
membros do Judiciário. Acerca do caráter vinculante da decisão administrativa,
cite-se importante ementa de recurso especial da relatoria do ministro Felix Ficher:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DO TRIBU-


NAL DE CONTAS DA UNIÃO. APOSENTADORIA. ILEGALIDADE, REGISTRO. NEGATIVA. AUTO-
RIDADE COATORA. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. I – “A aposentadoria é ato adminis-
trativo sujeito ao controle do Tribunal de Contas, que detém competência constitucional
para examinar a legalidade do ato e recusar o registro quando lhe faltar base legal” (RE

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CAPA

nº 197.227-1/ES, Pleno, Rel. Ministro ILMAR GALVÃO, DJ de 07/02/1997). II – O Tribunal de


Contas da União é parte legítima para figurar no polo passivo do mandado de segurança,
quando a decisão impugnada revestir-se de caráter impositivo. Precedentes do Colendo
Supremo Tribunal Federal. III – A decisão do Tribunal de Contas que, dentro de suas atri-
buições constitucionais (art. 71, III, da CF), julga ilegal a concessão de aposentadoria, ne-
gando-lhe o registro, possui caráter impositivo e vinculante para a Administração. IV – Não
detendo a autoridade federal impetrada poderes para reformar decisão emanada do TCU,
não é parte legítima para figurar no polo passivo da ação mandamental que se volta contra
aquela decisão. Recurso não conhecido. (STJ. REsp nº 464.633/SE (2002/0112803-7). Rel.
Ministro Felix Ficher. Julgado em: 18/02/2003).

As decisões dos TCs, como visto, têm caráter vinculante para a Administração
pública. Além disso, têm força de título executivo quando delas resultar imputação
de débito ou multa, conforme dispõe o art. 71, § 3º da CF.
Dessa forma, o erário credor terá direito de reaver os valores desviados ou
subtraídos do patrimônio público. A decisão do Tribunal de Contas servirá como
título hábil para a propositura da competente ação de execução, sendo desneces-
sária a inscrição do crédito em dívida ativa. Terá, pois, natureza jurídica de título
executivo extrajudicial, a exemplo da certidão de dívida ativa, prescindindo, deste
modo, da propositura de ação de conhecimento. Neste ponto, vale lembrar que
a ação tendente a operacionalizar o ressarcimento ao erário é imprescritível por
força do que dispõe o art. 37, § 5º da CF.
Como dito, somente o ente administrativo que teve o patrimônio reduzido por
ato de administrador ou responsável por dinheiro público é que poderá propor
a competente ação de execução. Assim, por exemplo, fica afastado do polo ativo
desta ação o Ministério Público, ainda que este seja o órgão responsável por fisca-
lizar o cumprimento da lei. Este foi, inclusive, o entendimento adotado pelo STJ
no AGRESP nº 201500457556 da relatoria do ministro Humberto Martins, publi-
cado no DJE em 02/06/2015.

REGIME CONSTITUCIONAL DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Conforme dispõe o art. 75 da CF, as normas constitucionais que regulam o TCU


aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos TCs dos
estados e do Distrito Federal, bem como dos tribunais e conselhos de contas dos
municípios. Assim, os TCs estaduais e os municipais devem seguir os pressupostos
constitucionalmente aplicáveis ao TCU, como é o caso do disposto no artigo 71
da CF. Obviamente, algumas situações serão distintas e, desse modo, as peculia-
ridades de cada um dos níveis federativos deverão ser verificadas.
Vale lembrar que os TCs realizam as fiscalizações contábil, financeira, orçamen-
tária, operacional e patrimonial do ente federativo, bem como as das entidades
da Administração pública direta e indireta. A fiscalização mencionada recai sobre
a função administrativa dos entes públicos, baseada na legalidade, legitimidade
e economicidade, relativas à despesa pública. Assim, os TCs podem intervir no
sentido de garantir que os gastos públicos estejam de acordo com as disposições
legais, sendo realizados de forma eficiente e menos onerosa para o erário sem,
contudo, comprometer a boa prestação do serviço público. Essa intervenção,
no entanto, não ocorre de maneira preventiva, uma vez que deve ser corretiva,

10 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

havendo a possibilidade, inclusive, de aplicação de multas em razão de má utili-


zação do dinheiro público.
As atribuições dos TCs estão previstas no artigo 71 da CF, mas iremos nos ater
tão somente aos incisos I e II, que são o cerne da temática em discussão. Vejamos
a redação dos indigitados incisos:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do
Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante pare-
cer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;
II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valo-
res públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades institu-
ídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda,
extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
[...]

No caso do Poder Executivo federal, a própria CF, em seu artigo 84, XXIV, dispõe
ser competência privativa do presidente da República prestar contas anualmente
perante o Congresso Nacional. Ademais, o artigo 49, IX, da CF traz expressamente
esta competência do Congresso Nacional. Contudo, apesar de o artigo 75 da CF
estender esse regramento aos municípios, é importante apontarmos algumas
peculiaridades.

JULGAMENTO DE CONTAS DE PREFEITO ORDENADOR DE DESPESAS

A priori, importa trazer à colação o texto do artigo 31 da CF:

Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, median-
te controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na
forma da lei.
§ 1º. O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de
Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Muni-
cípios, onde houver.
§ 2º. O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve
anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da
Câmara Municipal.
§ 3º. As contas dos Municípios ficarão, durante 60 (sessenta) dias, anualmente, à disposição
de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legi-
timidade, nos termos da lei.
§ 4º. É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.

Destaque-se o texto do § 2º do dispositivo acima, já que se revela de suma


importância para o desenvolvimento e discussão da temática aqui proposta. Pelo
indigitado dispositivo se pode concluir, ao menos em tese, que o parecer do Tri-
bunal de Contas irá prevalecer até certo ponto, podendo ser afastado desde que
por voto qualificado de dois terços dos membros da Câmara Municipal. Se assim
não fosse, bastaria a Câmara não se pronunciar para invalidar o parecer do TC.
Assim, por essa interpretação, se estaria garantindo a função fiscalizatória dos TCs.

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CAPA

Cite-se, ademais, que as contas mencionadas no dispositivo são as referentes


às contas de governo, não se confundindo com as contas de gestão. Desta forma,
tem-se que o parecer prévio se prestará a apreciar os aspectos gerais do governo,
incluindo nesta análise o exame dos balanços e demonstrativos contábeis, finan-
ceiros, orçamentários e patrimoniais, além da observância da aplicação do mínimo
de recursos nas áreas da saúde e educação, conforme previsto constitucional-
mente, e o respeito aos limites de gastos com pessoal e a avaliação da execução
orçamentária, como dispõe o art. 58 da LC nº 101/20001. Não faria parte deste
parecer as contas de gestão representadas por atos e contratos administrativos
referentes a realização de despesas como licitações, contratos, admissão de pes-
soal, empenhos etc.
Desta forma, teríamos clara distinção entre a atuação dos TCs quando estiverem
diante de contas de governo e de gestão, já que estas últimas se submeteriam ao
seu julgamento na forma do que dispõe o artigo 71, II da CF.
As contas de gestão são, portanto, as oriundas de ordenamento de despesas.
Os administradores de dinheiro público, aqueles que efetivamente assinam empe-
nhos, é que estariam sujeitos ao julgamento de contas pelo tribunal especializado.
Com base neste dispositivo, parte da doutrina entende que quando o chefe do
Poder Executivo Municipal figurar na função de ordenador de despesas, assinando
empenhos e outros documentos, este deverá ter suas contas (referentes aos atos
enumerados) julgadas pelo Tribunal de Contas e não pela Câmara Municipal. Este
é, inclusive, o entendimento de Edson de Resende Castro, quando diz:

O certo é que o Tribunal de Contas, quando examinando a execução da despesa pública,


ou seja, esse ato de ordenação de despesa, profere julgamento das contas, aprovando-as
ou rejeitando-as. O TC não vai, neste particular (ordenação de despesas, repita-se) emitir
parecer prévio para apreciação da Casa Legislativa. Vai, isto sim, proferir um julgamento,
porque é dele a competência para o juízo definitivo, nesta instância, a respeito das contas
de tal natureza. (CASTRO, 2014, p. 183).

Em complemento ao delineado acima, imperioso é trazer à colação importante


lição de José Jairo Gomes:

Demais, ao ordenar pagamentos e praticar atos concretos de gestão administrativa, o Prefei-


to não atua como agente político, mas como técnico, administrador de despesas públicas.
Não haveria, portanto, razão para que, por tais atos, fosse julgado politicamente pelo Poder
Legislativo. Na verdade, a conduta técnica reclama métodos e critérios de julgamento, o que
– em tese, ressalve-se – só pode ser feito pelo Tribunal de Contas. (GOMES, 2015, p. 212).

Cite-se ainda que este era o entendimento do TSE, conforme podemos extrair
dos julgados abaixo:

[...] Alegação de incompetência do TCU para rejeitar contas municipais: improcedência, por
se tratar de convênio firmado entre o município e o Ministério da Ação Social. (TSE, Rec.
Ord. nº 595. Rel. Ministro Sepúlveda Pertence. Julgado em: 19/09/2002).

INELEGIBILIDADE. REJEIÇÃO DE CONTAS DO PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL. PARE-


CER PRÉVIO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO. CARÁTER DEFINITIVO. I – Em relação às

12 ano I - nº 04 - abril/2017
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Administrativo e Político

contas de Câmara Municipal, basta o parecer prévio do Tribunal de Contas do Estado (art.
71, II, da Constituição Federal), sendo despicienda a decisão da Câmara Municipal sobre a
matéria. (TSE. REsp. nº 12.875/CE. Rel. Ministro Eduardo Alckmin. DJU: 05/11/1996).

Vê-se, portanto, caracterizada a distinção entre contas de governo e contas de


gestão. Nesse ponto, é de suma importância trazer a esclarecedora decisão da lavra
do Supremo Tribunal Federal na ADIN 849/MT:

Tribunal de Contas dos Estados: competência: observância compulsória do modelo fe-


deral: inconstitucionalidade de subtração ao Tribunal de Contas da competência do jul-
gamento das contas da Mesa da Assembleia Legislativa – compreendidas na previsão do
art. 71, II, da Constituição Federal, para submetê-las ao regime do art. 71, c/c art. 49, IX,
que é exclusivo da prestação de contas do chefe do Executivo. I – O art. 75 da Constitui-
ção Federal, ao incluir as normas federais relativas à fiscalização nas que se aplicarem aos
Tribunais de Contas dos Estados, entre essas compreendeu as atinentes às competências
institucionais do TCU, nas quais é clara a distinção entre a do art. 71, I – de apreciar e
emitir parecer prévio sobre as contas do Chefe do Poder Executivo, para serem julgadas
pelo Legislativo – e a do art. 71, II – de julgar as contas dos demais administradores e
responsáveis entre eles, dos órgão do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. II – A di-
versidade entre as duas competências, além de manifesta, é tradicional, sempre restrita
a competência do Poder Legislativo para o julgamento às contas gerais da responsabili-
dade do Chefe do Poder Executivo, precedidas de parecer prévio do Tribunal de Contas:
cuida-se de sistema especial adstrito às contas dos Poderes, mas como responsável geral
pela execução orçamentária: tanto assim que a aprovação política das contas presiden-
ciais não libera do julgamento de suas contas específicas os responsáveis pela gestão
financeira das inúmeras unidades orçamentárias do próprio Poder Executivo, entregue à
decisão definitiva do Tribunal de Contas. (STF. ADIN 849/MT. Relator: Ministro Sepúlveda
Pertence. Publicada em: 23/04/1999).

Observe-se que, apesar de ficar clara a distinção entre as contas globais ou anuais
e as contas de gestão, no próprio julgado é possível observar a ressalva quanto ao
julgamento das contas do chefe do Poder Executivo, o qual receberia tratamento
diferenciado segundo o STF. Neste ponto, o TSE já vem adotando entendimento,
evidenciado no julgamento dos REsp’s 12.645 e 12.694, de que o pronunciamento
dos Tribunais de Contas quando da apreciação das contas do chefe do Poder Exe-
cutivo constitui mero parecer prévio. Esse é, inclusive, o entendimento que pre-
valeceu no STF, no julgamento recente do RE 848826/DF, com repercussão geral
reconhecida:

[...] Para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, a apreciação
das contas de Prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câ-
maras Municipais, com auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio
somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores. (STF. Plenário.
RE nº 848826/DF. Rel. orig. Ministro Luís Roberto Barroso. Acórdão. Ministro Ricardo Lewa-
ndowski. Julgado em: 10/08/2016. Repercussão Geral reconhecida).

A tese vencedora foi capitaneada pelo ministro Ricardo Lewandowski, que adotou
o entendimento no sentido de que, por força da Constituição, são os vereadores

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CAPA

responsáveis pelo julgamento das contas de prefeito em razão de serem os repre-


sentantes do povo. Assim, adotou-se a tese de que, em razão do regime democrá-
tico, seria mais consentâneo com o que determina a Constituição Federal e com
o sistema de check and balances atribuir ao Poder Legislativo tal competência.
Decidiu-se, assim, que a soberania popular representada pelos vereadores seria
motivo suficiente a garantir o julgamento das contas do gestor municipal pelo
Poder Legislativo.
No caso objeto do RE, no RO nº 401-37, de relatoria do ministro Henrique Neves
(27/08/2014), o TSE havia reconhecido a inelegibilidade de candidato em virtude
de à época em que era prefeito ter tido suas contas rejeitadas pelo Tribunal de
Contas estadual, tomando como base a ressalva contida no artigo 1º, I, “g” da LC
nº 64/1990. Vejamos:

Art. 1º São inelegíveis:


I – para qualquer cargo:
[...]
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeita-
das por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa,
e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou
anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguin-
tes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da
Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários
que houverem agido nessa condição;
[...]

O dispositivo em análise faz referência direta à Constituição Federal, especi-


ficamente ao dispositivo que atribui ao TC a competência para julgar as contas
dos ordenadores de despesas, o que validaria o julgamento do Tribunal de Contas
para fins de inelegibilidade. Insta salientar ainda que o próprio STF, ao apreciar as
ADC’s 029 e 030, considerou todas as hipóteses de inelegibilidade prescritas na LC
nº 64/1990 (com as alterações dadas pela LC nº 135/2010) constitucionais. Desta
forma, entendeu o TSE plenamente cabível a aplicação do disposto no art. 71, II
da CF aos prefeitos quando estes agissem na função de ordenadores de despesas.
Por força do princípio da simetria, o qual determina que os estados e municípios
sigam, no que couber, as normas prescritas na Constituição Federal relativas às
competências do TCU, estaria sendo reforçada a tese de que as contas de gestão
deveriam, sim, ser julgadas pelo TC.
Ademais, é possível abstrair na própria CF a distinção entre as contas de gestão
e de governo e a forma de julgamento de cada uma delas. Essa foi, inclusive, a tese
advogada por Luís Roberto Barroso, que consignou ser a competência em casos
tais definida em razão da natureza das contas prestadas, e não em virtude do cargo
ocupado pelo administrador.
Essa, no entanto, não foi, como visto, a tese que prevaleceu. Para a maioria do
STF o julgamento das contas dos prefeitos é de competência do Poder Legislativo,
que assim como aqueles é composto por membros eleitos pelo povo e, portanto,
representam este último na busca pela concretização do interesse público. Atri-
buir ao Poder Legislativo a competência para julgamento das contas dos prefeitos
seria, nessa interpretação, mais adequada democraticamente.

14 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

Data maxima venia, é importante citar o fato de que a própria Constituição


delineou as competências dos Tribunais de Contas com base na natureza das
contas a serem apreciadas ou julgadas. Se os constituintes quisessem ter incluído
ou excluído determinado sujeito de sua apreciação teriam determinado na letra
da lei. O cargo exercido pelo indivíduo que terá suas contas julgadas não foi o real
critério adotado, mas sim a natureza das contas. Ao confrontarmos os arts. 31, § 2º
com o 71, II da CF é possível vislumbrarmos a distinção entre as contas que cada
um deles aborda. Um dispõe acerca das contas anualmente prestadas (contas de
governo) e o outro das contas dos ordenadores de despesas (contas de gestão).
Cada uma das referidas contas tem periodicidade distinta, não seria apropriado
aplicar o que dispõe o artigo 31, §2º da CF às contas que têm periocidade reduzida
para sua realização (contas de gestão).
Insta mencionar ainda que se os prefeitos tivessem suas contas julgadas pela
Câmara Municipal quando exercessem as funções de ordenadores de despesas
haveria a possibilidade de se admitir despesas realizadas de formas imoral e
ímproba, que comprometeriam a eficiência administrativa. Isto ocorreria em
razão de, não raro, em municípios de pequeno porte o chefe do Poder Executivo
ter a seu lado a grande maioria dos vereadores que, por óbvio, facilitariam a apro-
vação de suas contas. Admitir que o prefeito tenha sempre suas contas julgadas
pela Câmara Municipal teria efeito desastroso, já que bastaria que este avocasse
todas as ordenações de despesas para se livrar do crivo do TC. Relegar as contas
do gestor municipal a um julgamento político acarretaria fortes danos à eficiência
administrativa, servindo como incentivo aos desmandos com a coisa pública. Mais
adequado seria que um órgão técnico totalmente imparcial julgasse as contas que
guardassem forte relação com o interesse público.
Um julgamento de contas sempre político pode comprometer as garantias de
moralidade e eficiência administrativas ao retirar dos TCs o exercício do controle
externo, além de impedir que contas sejam julgadas por um órgão técnico. Ade-
mais, poderia ocorrer outras implicações, como a citada por Rodrigo Tenório:

Se o Tribunal não pudesse julgar as contas do prefeito, não poderia jamais promover a san-
ção de ressarcimento do dano patrimonial ou impor multa, como permite o art. 71 da CF.
Bastaria ao Prefeito concentrar em si o papel de ordenador de despesas para que ficasse
imune a essas duas sanções. (TENÓRIO, 2014, p. 157).

No julgamento do RE 848826, o STF deixou de se ater ao fato de as normas cons-


titucionais atinentes ao julgamento de contas dos chefes do Poder Executivo serem
claramente voltadas primeiramente ao presidente da República e aos governadores.
É dizer, deixou de considerar as peculiaridades da gestão municipal, sobretudo a
de cidades menores. Isso é explicado pelo fato de que tanto o presidente quanto
os governadores não ordenam despesas, mas apenas gerem o orçamento, manipu-
lando contas de governo. Nas cidades pequenas os prefeitos não só administram as
contas de governo como também exercem a função de ordenadores de despesas, o
que, por óbvio, não ocorre na Presidência da República ou nos governos estaduais
dado a extensão territorial a ser governada. Assim, a expressão “no que couber”
contida no “caput” do artigo 75 da Constituição Federal deve ser interpretada de
forma sistêmica a fim de englobar as peculiaridades de cada ente federativo, res-
peitando, assim, a unidade da Constituição.

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CAPA

DEMORA NO JULGAMENTO DAS CONTAS DE GOVERNO DOS PREFEITOS POR


PARTE DO PODER LEGISLATIVO LOCAL

Outro ponto importante levado ao STF na forma do RE 729744/MG foi a dis-


cussão quanto à demora da Câmara Municipal para julgar as contas dos gestores
após a apresentação de parecer prévio do Tribunal de Contas, a qual e tinha como
base o artigo 31, § 2º da CF, que aduz o seguinte: “o parecer prévio, emitido pelo
órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só dei-
xará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal”.
A dúvida era se na omissão da decisão da Câmara Municipal o parecer prévio do
Tribunal de Contas prevaleceria.
Pela análise literal do dispositivo seria fácil concluir que o parecer do TC
prevaleceria até ser superado pela decisão da maioria qualificada dos membros
do Poder Legislativo competente. No entanto, não foi isso o que decidiu o STF.
Para a Suprema Corte, o mencionado parecer, ainda que técnico, tem natureza
tão somente opinativa, não podendo ser considerado julgamento até que a
Câmara se pronuncie. Desta forma, como se vê do julgado a seguir, inexistiria
a possibilidade de julgamento ficto das contas por demora no julgamento pelo
órgão competente:

[...] Parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinati-
va, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais
do chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por de-
curso de prazo. (STF. Plenário. RE 729744/MG. Rel. Ministro Gilmar Mendes. Julgado em:
10/08/2016. Repercussão Geral reconhecida).

Apesar de bastante questionável, a decisão do STF se baseou em uma inter-


pretação sistêmica ao concluir que a expressão “deixará de prevalecer” con-
tida no dispositivo questionado se referiria à necessidade de quórum qualifi-
cado para a rejeição das contas do chefe do Poder Executivo. Assim, se estaria
dizendo que somente uma quantidade significativa dos membros da Câmara
Municipal (2/3) poderia dar decisão contrária ao parecer prévio. Mesmo que o
quórum não fosse atingido, ainda assim, segundo entendimento do STF, não se
poderia conferir natureza jurídica de decisão jurisdicional ao parecer do Tribunal
de Contas.
Cite-se, nesse ponto, a lição de Nelson Nery Costa, pela qual não reconhece
natureza judicante à decisão do Tribunal de Contas mesmo quando este exercer
a função contida no art. 71, II da CF:

[...] a expressão julgar as contas ou, ainda, julgar das contas, deve-se crer que tais expressões
não indicam que o Tribunal de Contas ou o Poder Legislativo passou a exercer atividades
judicantes. Julgar as contas, no caso, vem a ser examiná-las, conferir-lhes a exatidão, ave-
riguar se foram elaboradas de acordo com a lei. Trata-se, na verdade, de um processo ad-
ministrativo de controle, com as fases que lhe são peculiares, mas sem força jurisdicional.
(COSTA, 2014, p. 361).

De modo diferente defende José de Ribamar Caldas Furtado o caráter jurisdi-


cional da decisão do Tribunal de Contas:

16 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

[...] os Tribunais de Contas, por disposição constitucional – com a única exceção prevista
no artigo 84, IX –, é o juiz natural para julgar os processos de contas públicas (CF, art. 71, II),
porém não pertencem ao Poder Judiciário, e o processo de contas tem peculiaridades que
o diferenciam do processo judicial comum. Assim, tem-se que as Cortes de Contas exercem
função jurisdicional atípica quando julgam as contas dos administradores públicos. Situa-
ção análoga sucede com o Tribunal do Júri em relação aos crimes dolosos contra a vida (CF,
art. 5º, XXXVIII), com o Poder Legislativo, com referência aos crimes de responsabilidade do
chefe do Executivo (CF, art. 52, I) e com o juiz arbitral, relativamente às questões que lhe são
submetidas (CF, art. 114, § 2º; Lei nº 9.307/96) (FURTADO, 2007, p. 83).

A despeito do relatado acima, especificamente quanto à decisão do STF, é pos-


sível vislumbrar uma certa incongruência na decisão e um, por assim dizer, esva-
ziamento das funções constitucionais dos Tribunais de Contas. É dizer, o parecer
prévio do TC representaria um nada jurídico sem qualquer função prática, visto
que em momento algum prevaleceria, servindo, talvez, apenas como argumen-
tação para os vereadores oposicionistas.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, é possível perceber a relevância do tema e os impactos que


advirão das indigitadas decisões do STF. Apesar de ter sido reconhecida a reper-
cussão geral nos julgados analisados, ainda assim a discussão perdurará, posto
envolver tema de suma importância para a Administração pública e que certamente
beneficiará alguns administradores. Infelizmente, as decisões do STF, neste ponto,
acabaram por reduzir substancialmente as atribuições dos tribunais de contas,
retirando destes o julgamento das contas de gestão dos prefeitos.
O mais prudente seria (e até mesmo considerando as peculiaridades dos muni-
cípios e dos seus respectivos gestores que podem cumular as funções de ordenador
de despesas e de administrador das contas de governo) destinar às câmaras muni-
cipais o julgamento das contas de governo (relativas à execução orçamentária), e
aos tribunais de contas o julgamento das contas de gestão (realização de despesas).
Ter-se-ia, diante disso, uma repartição de competências mais consentânea ao que
dispõe a Constituição e à natureza de cada uma das verbas, posto que, diferente-
mente do que ocorre com o presidente da República, os prefeitos podem cumular
as contas de governo e de gestão. Contudo, vale lembrar que, apesar de as decisões
do STF, em caráter geral, terem subtraído da decisão do Tribunal de Contas o fato
de resultar em inelegibilidade do prefeito em caso de rejeição de suas contas, ainda
assim perdura a possibilidade de, com base nessa decisão, o gestor ficar sujeito a
sanções administrativas, cíveis e criminais. Além disso, o julgamento das contas
de prefeito por órgãos técnicos não dá a garantia de um julgamento mais justo em
virtude de a composição destes órgãos quase sempre representar escolhas políticas
e não técnicas, fator que não garante a idoneidade do julgamento.

NOTA

1 Art. 58. A prestação de contas evidenciará o desempenho da arrecadação em relação à previ-


são, destacando as providências adotadas no âmbito da fiscalização das receitas e combate à
sonegação, as ações de recuperação de créditos nas instâncias administrativa e judicial, bem
como as demais medidas para incremento das receitas tributárias e de contribuições.

www.zkeditora.com.br 17
CAPA

REFERÊNCIAS

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2014.
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TENÓRIO, Rodrigo. Direito Eleitoral. São Paulo: Método, 2014.
ARQUIVO PESSOAL

FLAVIANO DOS SANTOS VERAS é advogado. Bacharel em Direito, Pós-Graduado em Direito do Trabalho e em
Direito Público.

18 ano I - nº 04 - abril/2017
DIVULGAÇÃO
ESPECIAL Conceito Jurídico
Administrativo e Político

As licitações nas empresas


estatais pela Lei nº 13.303/2016
Segunda parte

Ivan Barbosa Rigolin

“ Existem poderes de administração ou de gestão que são


originariamente ínsitos à própria atividade estatal, e que
podem ser utilizados a qualquer tempo desde pelos instru-
mentos administrativos adequados que variam de entidade
para entidade, como são os editais de chamamento público;
as convocações para manifestações de interesse ou apresen-
tação de trabalhos, propostas, projetos ou programas; os
avisos sobre programas ou atividades de recíproco interes-
se público e privado, e mais inumeráveis fórmulas de tentar
atrair a criatividade da iniciativa privada, e dos mercados os
mais variados, para serviços ou empreendimentos de interes-
se comum.

O
artigo 30 da Lei nº 13.303/2016 parece ter sido escrito para inventar
a roda ou dar novo sentido a palavras banais da língua portuguesa.
Definiu contratação direta como aquela procedida com o pressuposto
da inviabilidade de competição, exatamente o que significa, na Lei nº
8.666/1993, a consagrada fórmula da inexigibilidade de licitação. Com efeito, a
competição materialmente impossível em face de apenas um fornecedor deter
o objeto pretendido ou, por outro lado, a ideia de comparação de coisas tecnica-
mente desiguais, tudo isso conduz à necessidade de contratação direta, aquela

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ESPECIAL

celebrada sem a intermediação de uma licitação, sendo diretamente contratado


o objeto com o fornecedor ou o prestador. Nesse sentido, um contrato licitado
seria algo como a contratação “indireta”.
Por que motivo alterar as formulações tradicionais da Lei de Licitações, conhe-
cidas e consagradas há mais de três décadas, ainda por cima de modo gratuito e
com a possibilidade de induzir a alguma confusão? Isso é algo que foge à análise.
Trata-se de uma originalidade nem um pouco original. A contratação com a licitação
dispensada é e sempre será uma contratação direta, assim como é direta aquela
celebrada quando a competição for inviável, já que bastará não existir licitação
para se configurar a contratação direta. Agora, porém, com a Lei nº 13.303/2016,
para as estatais contratação dita direta é aquela que a Lei de Licitações denomina
“contrato com licitação inexigível”. Troca-se seis por meia dúzia, a evidenciar que
parece sobrar tempo ao legislador.
Muito bem, o art. 30 tem dois incisos, sendo que o inc. I repete a parte inicial
do inc. I do art. 25 da Lei de Licitações. Ficou melhor que o original por ser menor
e, com isso, mais lógico e coerente, pois o que não puder ser posto em competição
por haver somente um fornecedor para fornecer será adquirido diretamente, sem
licitação. Corretíssimo, e se for acaso narrado para uma criança de cinco anos ela
comentará: – e poderia ser diferente? Como se licita algo que só uma pessoa tem
para fornecer? O único ônus da estatal que compra algo de origem única será,
então, demonstrar que, de fato, só um fornecedor existe daquele objeto.
O inc. II do art. 30 repete o elenco de serviços técnicos especializados, o qual
consta do art. 13 da Lei nº 8.666/1993, para, portanto, o efeito de informar que a
contratação de pessoa física ou jurídica de notória especialização na área respec-
tiva poderá ser sem licitação, diretamente.
Antes de se voltar àquele elenco, o § 1º do art. 30 da Lei nº 13.303/2016 repete
o disposto no § 1º do art. 25 da Lei de Licitações, a definir, sem novidade, o que
deve ser entendido por notória especialização profissional.
Uma importantíssima novidade da Lei nº 13.303/2016 nesta questão é a de
que a lei não mais se refere à natureza singular do objeto como requisito para a
contratação direta.
Parabéns entusiásticos ao legislador, apenas por esse fato!
Eliminou-se um pesadelo da legislação, nunca compreendido nem por iminentes
juristas, juízes e estudiosos, nem por quem quer que seja – sobretudo por quem
tem competência para ingressar com ações civis públicas contra contratantes de
objetos com ou sem natureza singular – quem sabe? –, e que o faz a torto e a direito
contra culpados e contra inocentes em igual medida, e que, quanto aos últimos,
rouba a saúde, destrói a economia e arruína reputações profissionais como um
tornado que eclode sem aviso prévio.
Ao não prestigiar essa asquerosa praga que a Lei de Licitações denomina “natu-
reza singular do objeto”, a qual ninguém jamais soube o que significa nem com
a mínima nitidez por ser um conceito abstrato, indeterminado, necessariamente
impreciso e inteiramente subjetivo, etéreo como o fogo de santelmo e, na prática,
similarmente fantasmagórico, exalçou-se o legislador, nesse passo, a uma gran-
deza inesperada.
Pode ter sido boa a intenção do legislador, um remoto dia no passado, ao referir-
se à natureza singular do objeto como condicionante da contratação direta. Porém,
o que então ensejou foi uma genuína desgraça na prática da lei, que dura ainda e

20 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

não se sabe por quanto tempo. Lei não é poesia condoreira nem discurso filosófico,
e seja lembrado que também o inferno legislativo está repleto de boas intenções.
Uma tal verdadeira infâmia institucional em matéria de licitações e contratos
– e alvíssaras! – não teve vez na lei das estatais, apenas se anelando que também
a Lei de Licitações, nalgum glorioso momento do porvir, seja convenientemente
desinfetada da alusão à natureza singular dos objetos contratáveis, tanto quanto se
deseja com relação ao mosquito da dengue, à febre amarela ou à praga de plantão
no dia. Parabéns ao legislador, uma vez mais, por aquele momento de elevada
consciência jurídica. Foi singularmente feliz.
Agora, retomando o elenco dos serviços técnicos profissionais especializados
constantes no inc. II do art. 30, a matéria é por demais conhecida em nosso país,
e sobre ela muita tinta já foi gasta em livros e em artigos, e muito dito em cursos,
aulas, congressos, seminários, simpósios e conclaves do gênero.
Cumpre entretanto, aqui novamente, dizer algo sobre aqueles específicos
serviços.
O primeiro a repisar é que na Lei das Estatais não existe a figura da natureza
singular do serviço como requisito à sua contratação direta. Assim, por exemplo,
qualquer treinamento e aperfeiçoamento de pessoal pode ser contratado direta-
mente, desde que somente o contratado seja notoriamente especializado no assunto.
Assim, quaisquer (I) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos ou exe-
cutivos; quaisquer (II) pareceres, perícias ou avaliações; quaisquer (III) assesso-
rias ou consultorias técnicas, ou auditorias financeiras ou tributárias; quaisquer
(IV) fiscalizações, supervisões ou gerenciamento de obras ou serviços; quaisquer
(V) patrocínios ou defesas de causas administrativas e judiciais; quaisquer (VI)
treinamentos e aperfeiçoamentos de pessoal; e, por fim, quaisquer (VII) restau-
rações de obras de arte ou de bens de valor histórico, repita-se, quaisquer desses
serviços, sejam do porte, da complexidade, do valor, da natureza que for, ou da
particularidade que acaso detenham, todos podem ser contratados diretamente,
observado o exclusivo pressuposto da especialização do prestador, a ser docu-
mentalmente comprovada nos autos do contrato, na forma do § 1º do art. 30 da
Lei nº 13.303/2016.
Observa-se que aqueles serviços da lista do inc. II são velhos conhecidos em nosso
Direito e, na prática, diuturna do serviço público. Estão escritos, exceto os da alínea
“f”, na Lei de Licitações, desde a década de 1980, no art. 12 do Decreto-lei nº 2.300,
de 21 de novembro de 1986, diploma que antecedeu e inspirou a Lei nº 8.666/1993.
Em nosso ordenamento são sobejamente conhecidos, portanto, há mais de
30 anos e, de resto, não encerram mistério algum quanto ao seu conteúdo, pois
não deve existir pessoa, profissional ou não, que ignore o que seja uma auditoria
financeira, um parecer jurídico, uma perícia contábil ou de engenharia, ou um
treinamento ou aperfeiçoamento de pessoal. Saber o que são todos sabem, pois
para a contratação direta cumpre apenas à estatal interessada demonstrar que (I)
o serviço pretendido é um daqueles e (II) que o pretendido prestador detém espe-
cialização objetivamente demonstrável na exata área do objeto – e não apenas em
outra em tudo diversa, já que especialização alguma aproveitável existirá.
Quanto à parte final do inc. II do art. 30, que pretende proibir a alegação de
inexigibilidade de licitação em contratos de publicidade – contratos esses indis-
criminada e infantilmente generalizados como nos arts. 1º, 2º e 25, todos da Lei
de Licitações –, já disséramos em artigo:

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ESPECIAL

Observe-se que a Lei de Licitações contém uma impropriedade clamorosa, logo ao início,
sobre este tema de inexigibilidade: trata em certos momentos da inexigibilidade como se
essa regra fosse uma pessoa que entrasse pela porta, uma entidade material e física que
saísse pelo duto do ar condicionado, com um metro e meio de altura, pesando setenta
quilos, cor pardacento-esverdeada, e não como se fosse uma simples ideia, um conceito,
uma instituição imaterial, puramente convencional como é.
No inc. II, do art. 25, prevê: “vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divul-
gação”. Estaria por acaso a lei proibindo o ingresso da inexigibilidade, ou vedando a sua
presença no respeitável recinto?
Um tão imponderável e imaterial conceito como o de inexigibilidade de licitação poderia
estar dessa forma tratado em alguma lei, ou ao menos em alguma lei cujo autor soubesse
o que está fazendo? Poderia ser tratada como um cão indesejável em certos ambientes
onde cão não entra, como a se dizer “inexigibilidade não entra”?
Que imensa, rematada e plenamente caracterizada besteira, grandíssima impropriedade
vocabular e redacional!
Quando a lei ao início, arts. 1º e 2º, se refere insistente e obsessivamente à publicidade,
para o fim de tentar proibir a alegação de que pode ser contratada diretamente por ine-
xigibilidade de licitação, comete também seguidos desatinos, porque a palavra “publici-
dade” tem inúmeras acepções em Direito e fora do Direito, inúmeros sentidos, que todos
conhecem, independentemente de profissão ou ofício1.
A divulgação na Folha de São Paulo, ou no Estadão, de um edital de licitação em resumo, é
um contrato de publicidade; a contratação da divulgação, por matéria paga, da divulga-
ção extraordinária daquela licitação, é outro contrato, diverso do primeiro e já, portanto,
em outra acepção; a contratação da concepção de uma campanha publicitária, objeto emi-
nentemente artístico e absolutamente subjetivo e imprecisável por excelência é uma ter-
ceira forma ou concepção de contrato de publicidade, e a sua veiculação na mídia constitui
uma quarta. Como pôde, então, a mil vezes desavisada e francamente estúpida a Lei de Li-
citações pretender tratar igualmente todas essas essenciais diferenças materiais, como se
contratar publicidade fosse uma só coisa, ou que fosse o mesmo que comprar um litro de
óleo na venda da esquina?” (cf. artigo Contratações diretas. Dispensa e inexigibilidade de
licitação. In: Boletim de administração pública municipal, ed. Fiorilli, mar/17, assunto 314).

Assim, de fato, nos parece. O legislador, mais uma vez, demonstra ignorar ou
desprezar o pujante e multifário escopo da palavra publicidade, os seus múlti-
plos significados e as inumeráveis formas como a publicidade ocorre, sob as mais
variadas acepções e formas, como uma autêntica necessidade do poder público.
Sim, eis que existem dez ou quinze espécies diferentes de publicidade, e a lei não
pode tentar reduzi-las a apenas uma ideia – e apenas porque existiu nas últimas
décadas em nosso país um imenso oceano de corrupção envolvendo centenas ou
milhares de milionários contratos de publicidade de atos, campanhas, programas
e atividades públicas as mais variadas.
Por mais grave que tenha sido aquele conhecido e muito duradouro aconte-
cimento delitivo, o fato é que o ser humano não pode em dado momento da his-
tória abrir mão de sua inteligência e de seu discernimento a ponto de incluir na
lei absurdos técnicos e de lógica como o de, sic et simpliciter, tentar proibir con-
tratos diretos de publicidade, sem indagar de que espécie de publicidade se cogita.
Se o legislador mereceu aberto elogio por proscrever a figura da “natureza sin-
gular” do objeto desejado pela Administração, neste ponto da publicidade já não

22 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

merece o mesmo enaltecimento, muito infelizmente. Faltou-lhe acordar para a


realidade e maleabilizar a sua visão de modo a habilitá-la a enxergar a enorme
multivariedade das situações em que se cogita de genuína publicidade, mas em
que a licitação se torna não menos que patética – salvo se a modalidade for o
concurso, a licitação para objetos que de outro modo não exigem licitação e que
não admitem licitação por preço. Exempli gratia, uma campanha publicitária de
conteúdo eminentemente artístico não pode tecnicamente ser licitada senão por
concurso, e não é nada fácil realizar um concurso.
Os §§ 2º e 3º fecham o art. 30, o primeiro deles repetindo em parte o § 2º do art.
25 da Lei de Licitações, com as seguintes modificações:

a) a Lei de Licitações menciona apenas a desprezível gíria superfaturamento, originária tal-


vez de traficantes de bebidas durante a lei seca ou de organizadores de rinhas de galo, para
incluir também a muito mais institucional palavra sobrepreço, ambas a indicar o contrato
celebrado por mais do que o objeto vale. Se o legislador conhecia o termo sobrepreço,
então por que insistir no malcheiroso e esfarrapado superfaturamento? Mas o art. 31 rema-
tará esta insânia, como se irá examinar, com requintes de sesquipedalice.

Naquelas hipóteses – em verdade uma só, apesar do malabarismo do art. 31 ao


tentar diferenciar sobrepreço de superfaturamento – responde pela irregularidade
o agente estatal responsável pela contratação e também o contratado beneficiário,
tanto quanto ocorre na Lei de Licitações. E, pensamos, o contratado respondendo
tão injustamente quanto naquela lei.
Com efeito, qualquer pessoa pode legitimamente propor o preço que quiser
ao poder público, sempre que a isso for instado, já que cumpre ao agente público
rechaçar propostas excessivas, e não contratar nessa base irreal. E ainda, se con-
tratar, deve exclusivamente o agente responder por isso, não o contratado. Apenas
por propor e por ser contratado é evidente que o particular não merece o mesmo
tratamento devido ao agente público reconhecidamente ímprobo;

b) o órgão ou a entidade que aponta o sobrepreço é o de controle externo, previsão inexis-


tente na Lei de Licitações. Por controle externo se pode entender tanto o conselho fiscal,
que é um órgão da estatal não subordinado hierarquicamente à sua diretoria e que, por esse
motivo e nesse estreito sentido, pode ser tido como externo, ou a assembleia de acionistas
se existir a cada caso, ou o Tribunal de Contas com jurisdição administrativa sobre a estatal

Já, entretanto, o mesmo poder não se pode atribuir a uma entidade privada de
auditoria que seja contratada pela estatal para essa função, porque nesse caso nem
se pode cogitar de controle externo oficial, eis que se tratará de mero particular
contratado para auxiliar a diretoria no controle dos negócios da estatal.
Encerrando o artigo, o § 3º reproduz três dos quatro incisos do parágrafo único
do art. 26 da Lei de Licitações. O processo de contratação direta será instruído,
quando e como couber se acaso couber, com (I) caraterização da emergência ou
da calamidade, se se tratar disso; e, sempre, (II) motivação da escolha do prestador
ou fornecedor; e (III) justificativa do preço.
O primeiro inciso contempla um casuísmo – emergência ou calamidade. Estado
ou situação de emergência numa estatal é fácil denotar, e pode ocorrer por infinitas
razões. Porém, calamidade não é situação que pode ocorrer no âmbito interno de

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ESPECIAL

uma estatal, mas algo suscetível de dar-se em toda uma região geográfica maior ou
menor, que pode englobar desde parte de um município até um conjunto deles,
ou mesmo, eventualmente, todo um estado.
Desse modo, a estatal demonstrará necessariamente a emergência, interna ou
mesmo externa, quanto ao objeto que enfrente. Porém, para valer-se de estado
de calamidade, para poder contratar diretamente, não dependerá propriamente
de si, mas de uma decretação governamental externa, relativamente a uma região
que abranja a sua sede.
Quanto à justificativa de preço (inc. III do § 3º) resta evidente que sempre será
exigida nos contratos diretos da estatal, porque jamais, estatal alguma, estará
isenta dessa obrigação com vista aos preços de mercado, nem livre para contratar
diretamente o que quiser a qualquer preço injustificado.
Trata-se da aplicação mais imediata possível, e invariavelmente a mais neces-
sária, do princípio da economicidade dos negócios públicos, figurante no art. 70
da Constituição Federal como obrigação fiscalizatória do Tribunal de Contas da
União, como também do princípio do interesse público só, em si, o da finalidade
e também o da motivação, em geral constantes das Constituições dos Estados,
sendo que na do Estado de São Paulo figuram no seu art. 111 como incontornáveis
limitadores da atuação estatal nos negócios que realiza.

Artigo 31.
Outro longo artigo que, como os até aqui comentados, resultou muito maior
e mais pesado que deveria ser, o que somente aborrece, dificulta e, francamente,
atrapalha a aplicação da lei, quase sempre por via de bisonhos artificialismos que
não fazem falta alguma ao Direito ou às estatais.
O caput homenageia, modificadamente, o art. 3º da Lei de Licitações, nele se
alicerçando e se inspirando. Repete que “licitação” serve para obter a proposta mais
vantajosa para a estatal e ingressa nos detalhes de obrigar a incluir na preocupação
da entidade que licita (a) evitar superfaturamento e sobrepreço, e (b) atentar para
o ciclo de vida do objeto, preocupações relevantes e necessárias sempre
O caput ainda elenca os tradicionais princípios de administração que constam
do art. 3º da Lei de Licitações, assaz conhecidos e decantados pela doutrina, e
também consigna os princípios da obtenção de competitividade e do desenvol-
vimento nacional sustentável. Elogiáveis preocupações em razão de atestarem o
cuidado do legislador com dois dos principais problemas com os quais se defronta
o poder público de todas as esferas e a todo tempo, crescentemente.
A obtenção da competitividade é sempre muito desejável, na medida em que
garante mais que de outro modo que houve disputa e competição entre os inte-
ressados na tentativa de obter o contrato estatal, o que, em tese, favorece preço e
condições. Nem sempre é viável uma grande competição porque existem objetos
muito menos interessantes à iniciativa privada que outros, e nessa medida muito
menos disputados. Mas a lei, neste passo, permite à fiscalização e ao controle das
estatais exigir-lhes a demonstração – se essa já não estiver evidenciada – de que a
licitação favoreceu e induziu a maior competitividade possível no certame, ou ao
menos a competitividade que foi possível induzir entre os interessados, fazendo-o
por quaisquer meios comercialmente aceitáveis.
Quanto ao desenvolvimento sustentável, esse é um cuidado que hoje em dia
não se imagina como descurar. Neste histórico momento de saturação máxima

24 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

do planeta em matéria de poluição, destruição das reservas naturais, assoreamento


de cursos d’água e do próprio mar, esgotamento de recursos naturais básicos, a
começar da água, ameaças permanentes à fauna e à flora, contaminações de todas
as naturezas, e ameaças e agressões das mais variadas à qualidade de vida, jamais
pode deixar a lei de exigir todo o cuidado e toda a atenção com a sustentabilidade
dos objetos das licitações.
A tal ponto deve ir tais preocupações por parte das estatais nas suas licitações
que legitima as autoridades controladoras e fiscalizadoras, segundo entendemos,
até mesmo para impedir ou travar certames licitatórios que deixem de observar
aquele imperativo comando de sustentabilidade do objeto. Com todo efeito, não
mais se admite contemplação ou tolerância quanto a essa questão relevantíssima
como pouca coisa mais na Terra.
A mesma questão não é apenas nacional como o caput induz a crer, porém
plurinacional, oniabarcante e generalizada por todo o planeta, tanto quanto são
universais as dificuldades ensejadas por desastres, por exemplo, a devastação da
selva amazônica, a poluição na China, o aquecimento global na parte devida ao
homem ou o “buraco” na camada de ozônio, filtro natural de radiações lesivas.
O artigo contém cinco parágrafos. O § 1º, para mal dos pecados, define e dife-
rencia superfaturamento de sobrepreço, como se na vida real fossem realidades
diferentes. Começa mal a elevar a palavra “superfaturamento” a alguma coisa digna
de figurar na lei, como não é. Trata-se de uma gíria sem-vergonha e seguramente
da pior origem, que já deveria ter sido extirpada da Lei de Licitações, mas além de
não ter sido, agora ganha prestígio na Lei das Estatais.
Pelo § 1º superfaturamento ocorre quando “houver dano ao patrimônio da
estatal”, enquanto sobrepreço é ou a cotação na licitação de preços ou a contra-
tação por preços “expressivamente superiores aos preços referenciais de mercado”.
Inicia-se a impropriedade pela expressão “expressivamente superiores”. Que
vem a ser isso? Dez por cento? Vinte? Cinquenta por cento? O dobro?
E o mercado acaso conta com preços referenciais seguros e uniformes? Onde,
quando e por qual critério? Trata-se de subjetividade em cima de subjetividade, a
não conduzir o aplicador e o fiscal rigorosamente a lugar algum, mas induz grave
temor de que realize algo errado.
Quanto ao direito de fundo, desde quando um superfaturamento deixou de ser
um sobrepreço? A única diferença é que sobrepreço é uma palavra precisa e ade-
quada, enquanto superfaturamento constitui um jargão de croupier de cassino
paraguaio, ou de banqueiro de jogo de bicho.
Existiria acaso, mesmo malgrado estas artificiais e circenses definições, um
sobrepreço que não fosse superfaturamento, ou um superfaturamento que não
fosse sobrepreço?
Por essa tese, o homem possivelmente é uma coisa, e o ser humano outra.
Moradia talvez seja uma realidade, enquanto outra diversa seria habitação como
se o céu pudesse ter se tornado algo diferente do firmamento. Pelo que se denota,
o legislador deve dispor de suficiente tempo livre para produzir uma passagem
tão elaborada quanto infeliz, tão rotundamente desnecessária, extraída do nada
e direcionada a coisa nenhuma, na lei das estatais.2
Nessa esteira, resultou tão ridículo o conjunto dos quatro incisos desse
§ 1º, a exemplificar – talvez visando esgotá-las – as possíveis espécies de

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ESPECIAL

superfaturamento, como se alguém ignorasse o que seja isso ou precisasse de


exemplos de condutas criminosas quanto ao dinheiro público, que não nos
merecem comentário. Ora, por tudo que é sagrado, será papel de uma lei des-
crever as espécies de superfaturamento? Recusamo-nos a descer a esse nível
de pauperismo legislativo.
Espera-se das inúmeras autoridades de controle e de fiscalização, as quais oca-
sionalmente se vejam às voltas com o problema, que no seu lavor sobrepairem
altaneiramente por sobre matéria legislativa tão deplorável, até porque, imagina-
se, sempre têm muito mais o que fazer.
O § 2º consigna um casuísmo tão acidentário que chega quase a constranger
o aplicador da lei. Prevê que o Sinapi é o referencial do custo global das obras de
engenharia civil em geral, e que o Sicro o é referentemente às de engenharia de
serviços rodoviários. Mas que garantia a lei pode oferecer de que esses mencio-
nados sistemas continuarão existindo, e possivelmente atendendo, a cada novo
momento da economia, as demandas e as particularidades de toda e qualquer
estatal? Transformou-se o casual do momento em regra permanente. O legislador
não tem visão alguma de estado nem de sistema, aparentando divisar não mais
que meio metro adiante do esôfago.
A previsão recorda passagens da Lei nº 8.112, de 1.990, a lei do regime jurí-
dico único dos servidores federais, uma das quais o art. 31, no qual se menciona
o SIPEC – Sistema do Pessoal Civil, da Administração federal, que é um instituto
exclusivo do Poder Executivo federal, como o gestor das questões de pessoal de
todos os servidores regidos pela lei estatuária. Esqueceu-se ali o legislador de que
a L. 8.112/90 abrange os servidores do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, do
Tribunal de Contas e do Ministério Público, todos federais.
Uma vergonha inominável no estatuto federal de servidores, vergonhosamente
mantida até o dia de hoje e que agora, em ponto menor, a lei das estatais repete,
ao circunscrever os dados referenciais de preços para as licitações das estatais a
determinados sistemas de custos da construção, como se fossem marcos civili-
zatórios eternos, imutáveis ou ditados pela vontade divina. Fique o registro deste
péssimo momento da lei das estatais. O legislador aqui demonstra não parecer
enxergar mais que um palmo à sua frente.
O § 3º abre exceção à univocidade do § 2º, como a tentar reduzir aquele estrago,
ao permitir que em caso de inviabilidade de se utilizarem aqueles sistemas outros
possam ser empregados, desde que aprovados pelas autoridades dirigentes de cada
estatal. Autêntico festival de inutilidades, uma mais rebarbativa que a outra. Para
quê, então, o aparente rigor do § 2º?
O § 4º deste artigo simplesmente execrável em técnica contém uma regra,
no que tem de compreensível, ainda mais inútil do que as consignadas retro.
Permite, autoriza, faculta que o poder público licitador adote “procedimento de
manifestação de interesse privado para o recebimento de propostas e projetos de
empreendimentos com vista a atender necessidades previamente identificadas?.
Pergunta-se ao legislador: que diabo disso é aquilo?
Que estrovenga jurídica será essa faculdade, absolutamente gratuita e sem a
mínima causação no mundo real, que não se sabe a que veio, e que nem detém a
mais remota utilidade à vista?
Precisaria acaso a lei admitir que particulares propusessem o que quer que fosse
ao poder público? A que veio essa abstrusa e inexplicável novidade?

26 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

E o § 5º, cuja virtude primeira é a de ser o último deste artigo, prescreve que
o autor do projeto a que se refere o § 4º, se participar da licitação e não vencer,
poderá ser ressarcido pela estatal respectiva dos custos que enfrentou, desde que
lhe transfira os direitos autorais daquele projeto.
Observe-se apenas o seguinte: nada disso precisaria estar autorizado em lei
alguma. Jamais foi proibido ao poder público, da administração direta, indireta,
paraestatal ou de quantas mais naturezas acaso existam, a estabelecer um cha-
mamento de projetos particulares sobre qualquer assunto de interesse do ente
público – e o concurso de projetos não é nada muito diverso disso.
Se nesse passo o ente fixar que premiará o projeto escolhido, ou que ressarcirá
os custos de um projeto, licitado ou não, que venha a aproveitar – sempre que o
autor lhe repassar os direitos de autor -, tudo isso jamais lhe foi vedado, mesmo
sem lei alguma que o admitisse de forma expressa.
Existem poderes de administração ou de gestão que são originariamente ínsitos
à própria atividade estatal, e que podem ser utilizados a qualquer tempo desde
pelos instrumentos administrativos adequados que variam de entidade para enti-
dade, como por exemplo são os editais de chamamento público; as convocações
para manifestações de interesse ou apresentação de trabalhos, propostas, projetos
ou programas; os avisos sobre programas ou atividades de recíproco interesse
público e privado, e mais inumeráveis fórmulas de tentar atrair a criatividade da
iniciativa privada, e dos mercados os mais variados, para serviços ou empreendi-
mentos de interesse comum.
Tudo isso, e muito mais semelhante, sempre foi permitido, dado ou facultado
ao poder público – sobretudo se se tratar de empresas estatais, muito mais livres
em sua gestão que os entes da Administração direta e mesmo da autárquica -,
nenhuma lei sendo exigida a ente público algum para o exercício de uma tal dis-
cricionariedade administrativa.
A lei, repita-se outra vez ainda, andou bem no art. 30, ao jamais mencionar a
natureza singular dos serviços técnicos ilicitáveis que repetiu de leis anterioes, e
quanto a isso merece franco e aberto elogio, que se reitera.
Já neste art. 31, entretanto, houve-se não menos que pessimamente, e
perdeu a oportunidade de se restringir às regras do caput, que estaria perfeito
se não houvesse rebaixado o nível técnico do seu texto à degradante menção a
superfaturamento. A seguir do caput, no entanto e desafortunadamente, este
artigo desandou.

NOTAS

1 Nesse sentido nosso artigo Publicidade é contrato que nem sempre pode ser licitado. In: Revista
Forum de contratação e gestão pública, ed. Forum, MG, p. 6.877, e revista L&C, ed. Consulex,
Brasília, abr/06, p. 20.
2 Neste passo a lei lembra de perto um estatuto de gafieira. Omite-se entretanto, no seu eviden-
te afã de prestigiar os neologismos que tanto enriquecem o vernáculo deste popularesco país,
ao não definir eventualidades como pixuleco, jabaculê, mutreta, bufunfa, mão-grande e turbina,
dentre outras práticas fundamente arraigadas à nossa nacionalidade.
ARQUIVO PESSOAL

IVAN BARBOSA RIGOLIN é Advogado em São Paulo.

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DESTAQUE

José Matias-Pereira

ARQUIVO PESSOAL
Construção de um
projeto de nação

E
m um debate sobre a “construção de um projeto de nação” é preciso
avaliar, preliminarmente, como funciona os sistemas político, econômi-
co e social do país, a solidez das instituições, além de averiguar o grau
de educação, o amadurecimento político e a consciência de cidadania
da população. É a partir dessas avaliações que se torna possível, apoiado num
planejamento consistente de longo prazo, dar início à construção de um projeto
de nação que viabilize as transformações e reformas orientadas para fomentar o
desenvolvimento. Observa-se que, em quase todos esses aspectos, o Brasil pos-
sui deficiências e fragilidades. Diante desse contexto, permito-me analisar, em
especial, quatro indicadores sensíveis, que reputo importantes para estimular o
desenvolvimento brasileiro: a produtividade e competitividade; a solidez das ins-
tituições; boa governança e participação popular.
Os indicadores socioeconômicos do Brasil mostram que a sua produtividade e
a competitividade vêm se reduzindo ao longo do tempo. A produtividade é men-
surada por meio do grau de eficiência com que determinada economia utiliza seus
recursos para produzir bens e serviços de consumo. A produtividade do trabalho,
por exemplo, cresceu apenas 0,4% ao ano, no período de 1996 a 2005, e 2% entre
2006 e 2011. É sabido que o crescimento da produtividade depende também de
inovações diretas, absorção de tecnologia (P&D) e realocação de produção entre
firmas e setores. Consta-se, assim, que o crescimento da economia dependerá cada

28 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito
Conceito Jurídico
Jurídico
Administrativo e Político
Administrativo e Político

vez mais da produtividade do trabalho e do estoque de capital por trabalhador,


segundo o modelo de crescimento de Solow.
As reformas institucionais que foram feitas no Brasil, pós-Constituição de 1988,
focadas na segurança do ambiente econômico e na estabilidade da economia,
com destaque para a imposição da Lei de Responsabilidade Fiscal, produziram
um impacto muito aquém do esperado sobre a produtividade do país. Isso reforça
a percepção de que, em grande parcela, as instituições ainda são frágeis. O fato
de os governantes desconsiderarem que as instituições constituem as regras do
jogo e alinharem o retorno privado das ações dos agentes econômicos ao retorno
social explica, em grande parte, a diferença observada da produtividade total dos
fatores entre o Brasil e os países mais evoluídos.
Por sua vez, a má governança e o agravamento das crises política e ética que se
abateram sobre os dois últimos governos aprofundaram ainda mais o fosso existente,
que separa a capacidade de resposta do Estado e as crescentes demandas da sociedade,
a qual exige melhores serviços públicos, redução nos gastos, maior transparência,
combate à corrupção e o fim da impunidade. Assim, as mudanças que a sociedade
deseja – em especial, crescimento econômico, redução do desemprego, aumento
da renda, serviços públicos de qualidade, além de uma boa gestão na condução da
política econômica – exigem a implementação de políticas públicas consistentes.
Para que isso aconteça é preciso que a população tenha uma postura mais proativa
sobre os governantes, fazendo valer seus interesses. Essa participação deve ocorrer
desde a fase de formulação de políticas públicas, seguidas das discussões para alo-
cação dos recursos orçamentários, na votação e aprovação e no acompanhamento
de execução e avaliação da eficiência, eficácia e efetividade dos gastos públicos, nos
três níveis de governo: União, estados e municípios. Essa é uma tarefa indelegável
a ser executada pela sociedade organizada e apresenta-se para cada cidadão bra-
sileiro como o ato mais importante da prática do exercício da cidadania. Busca-se
viabilizar, assim, por meio de uma ação política, uma estrutura democrática.
Apoiando-se nessas análises, pode-se afirmar que as mudanças aspiradas pela
sociedade somente irão ocorrer se as forças políticas, econômicas e sociais tiverem
a capacidade de construir um projeto de nação ousado e inovador. Nesse esforço é
essencial que se defina uma estratégia de desenvolvimento a fim de permitir que a
estrutura produtiva do país possa contar com setores de maior agregação de valor
e com ganhos de produtividade que elevem as competitividades externa e interna,
com distribuição de renda e valorização do trabalho. Ou seja, o novo projeto de
nação precisa estar apoiado em sólidos pilares institucionais e educacionais, com
planejamento de longo prazo e políticas macro e microeconômicas consistentes,
capazes de transformar o Estado em um aglutinador de alianças estratégicas entre
os distintos setores e atores da economia e da sociedade brasileira.

JOSÉ MATIAS-PEREIRA é Economista e Advogado, Doutor em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madri,
Espanha, Pós-Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo, Professor de Administração Pública e Pesquisador
associado do programa de Pós-Graduação em Contabilidade da Universidade de Brasília.

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DIVULGAÇÃO
DIREITO ELEITORAL

Teria sido constitucional a


decisão do TSE sobre a
chapa Dilma-Temer?
Leonardo Sarmento

A
Rede Sustentabilidade recorreu ao Supremo Tribunal Federal com o
pedido de nulidade do julgamento do TSE que absolveu o presidente
Michel Temer da acusação de abuso de poder político e econômico
nas eleições presidenciais de 2014.
A ação tem como pedido principal a realização de um novo julgamento, para
que leve em consideração as provas colhidas em depoimentos prestados pelos
executivos da empreiteira Odebrecht. Requer ainda que o processo do TSE reste
suspenso até que a reclamação seja definitivamente julgada pelo pleno do Supremo
Tribunal Federal.
A ratio essendi recursal sustenta que a decisão do TSE contrariaria entendi-
mento do próprio Supremo trazido pela ADI 1082, quando os ministros rejeitaram
a alegação de que a apreciação pelo juiz eleitoral de fatos supervenientes violaria o
devido processo legal, desde que sejam resguardados os meios necessários à ampla
defesa da parte interessada, como a notificação dos interessados e possibilidade
de oposição de argumentos.
As razões recursais do recorrente assim se expressaram:

30 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

Enquanto prevaleceu no Tribunal Superior Eleitoral uma visão que dramaticamente res-
tringia os poderes instrutórios do juiz sob a alegada necessidade de preservação da “es-
tabilidade político-social dos mandatos”, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em prece-
dente vinculante para todos os Tribunais (inclusive para o TSE), o oposto: como as ações
eleitorais se destinam à garantia da lisura do processo eleitoral, elas tutelam interesses
públicos indisponíveis, avultando a importância que o juiz persiga e reúna os elementos
necessários para a formação da sua convicção, e assim resguarde a eficácia e a qualidade
da sua decisão.

Trazemos à colação o art. 23 da Lei nº 64/1990:

O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos
indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda
que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de
lisura eleitoral.

Em 2014, o Plenário do Supremo enfrentou o mérito que arguiu a inconstitu-


cionalidade do mencionado artigo 23, e, por unanimidade, entendeu pela consti-
tucionalidade. Ficou assentado que:

[o] juiz estará autorizado a formar convicção atendendo a fatos e circunstâncias constantes
do processo, ainda que não arguidos pelas partes, e a considerar fatos públicos e notórios,
indícios e presunções, mesmo que não indicados ou alegados pelos envolvidos no conflito
de interesses.

Mesmo em se tratando de fatos públicos e notórios, o contraditório e a ampla


defesa devem ser deferidos às partes em respeito ao devido processo legal, não

“ Por tudo que conhecemos concernente às mazelas da política


e, em especial aos fatos atinentes à chapa Dilma-Temer, que, de
fato, não logramos um final feliz, não atingimos os anseios da
sociedade que clama por uma limpeza ética, porém não poderí-
amos, como operadores do direito, irresponsavelmente ludibriar,
manipular para o alcance dos nossos objetivos políticos, como vez
ou outra nos vemos incitados a demonstrar os malfeitos de um
Judiciário mais político que jurídico, para o nosso lamento.

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DIREITO ELEITORAL

podendo ser aceitos em qualquer fase do processo, ainda que em nome de uma
imaginável busca pela verdade real.
O Tribunal Superior Eleitoral decidiu, por quatro votos a três, pela impossibi-
lidade de apreciar os fatos relativos aos depoimentos prestados por executivos da
Odebrecht, já que representaria indevida ampliação do objeto da demanda, em
violação aos princípios da congruência, do devido processo legal, da ampla defesa
e do contraditório. Retiraríamos o princípio da congruência por força do art. 23,
mas inseriríamos o princípio da estabilização objetiva do processo cm melhor
fundamento para decisão do TSE.
De fato, a grande questão que possibilitou a absolvição da chapa Dilma-Temer
foi a ausência do necessário contraditório, da ampla defesa sobre os fatos enten-
didos como públicos e notórios, o que processualmente revelou ser a decisão de
direito mais acertada.
Se o Tribunal se encontrava, às claras, politicamente dividido, o lado que desde
o princípio tendia pela absolvição encontrou a barreira necessária para as razões
não prosperarem para a condenação, e mesmo que estivessem extra petita deveriam
ser, sim, aceitas pelo Tribunal, na forma do art. 23 da Lei nº 64/1990. Inobstante
ter passado por cima dos direitos processuais constitucionais que o Constituinte
elencou entre suas cláusulas pétreas, seria aniquilar alguns de seus mais impor-
tantes pilares, ou seja, o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.
Quando ficou demonstrado que os fundamentos para a cassação da chapa
revelavam-se porosos, pálidos, inconsistentes, sendo e que a consistência seria
revelada exatamente a partir dos depoimentos da Odebrecht, o Direito Proces-
sual Constitucional passou a figurar como inequívoco impeditivo de direito para
a dação da necessária robustez à tese condenatória.
Assim argumentou o nobre ministro Luiz Fux:

Fatos novos vieram à lume informando que nessa campanha houve cooptação do poder
político pelo poder econômico, que nessa campanha houve financiamento ilícito de cam-
panha, então no momento que vamos proferir a decisão, nós não vamos levar em conta
esses fatos?

Por todo o exposto, com as devidas maximas venias, ousamos discordar do


excelente ministro Fux, que com a sua expertise processual deve reconhecer que
o momento dos votos não se revelava suficientemente adequado para o contradi-
tório de fato superveniente, quando o que se tinha era o momento para instrução
probatória havia sido atingido por preclusão.
É consabido que nem toda a ação alcança sua verdade real, mas, por vezes, resta
apenas a verdade possível. Aos juízes cabe respeitar as questões levadas aos autos
no seu momento processual adequado, pois há uma ritualística processual a ser
seguida para que reste atendido o devido processo legal. A Lei nº 64/1990 (consti-
tucional, nos termos da decisão do STF) não ambiciona ignorar o devido processo
legal constitucional e ferir direitos individuais fundamentais da Constituição de
1988 – contraditório, ampla defesa e devido processo legal –, quando sabemos
que não existe Estado Democrático de Direito que atente contra a Constituição.
Faltou ao postulante – no caso, o PSDB – aguardar o momento ideal para a pro-
positura da ação a partir de maior maturação das circunstâncias probatórias, seu
robustecimento, para que a ação restasse bem fundamentada já na sua proposição,

32 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

capaz de cassar uma chapa presidencial por abuso de poder político e econômico,
algo que não pode, em qualquer hipótese, demonstrar-se banal.
Assim, por mais que entendamos que a justiça de fato não foi feita, insofis-
mavelmente a Constituição restou respeitada pela decisão do TSE nos lindes dos
fundamentos possíveis de serem enfrentados. Uma decisão com pechas de incons-
titucionalidade revelar-se-ia política e, portanto, indesejável. Aqui, tratamos de
impeachment, com os votos dos senhores legisladores juridicamente leigos e dis-
pensados de fundamentar seus votos. No caso em tela, falamos de um Tribunal
Superior composto por sete ministros de notório saber jurídico e que estão cons-
titucionalmente obrigados a fundamentar suas decisões. A vontade popular, que
é símbolo da mais legítima soberania, deve atender ao pacto social que confere
normatividade e supremacia à Constituição.
No tocante a recorribilidade da decisão do TSE para o STF, em se tratando de
questão constitucional é perfeitamente possível.

Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos
juízes de direito e das juntas eleitorais.
[...]
§ 3º São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que contrariarem
esta Constituição e as denegatórias de habeas-corpus ou mandado de segurança.

É importante a Súmula nº 72 do STF, que assim dispõe:

No julgamento de questão constitucional, vinculada a decisão do Tribunal Superior Eleito-


ral, não estão impedidos os ministros do Supremo Tribunal Federal que ali tenham funcio-
nado no mesmo processo, ou no processo originário.

Por último, entendemos, sim, que a Rede Sustentabilidade tem legitimidade


para recorrer ao STF, em se tratando de questão controversa constitucional, mesmo
não tendo participado da ação originária no TSE.
Asseveramos que, por tudo que conhecemos concernente às mazelas da política
e, em especial aos fatos atinentes à chapa Dilma-Temer, que, de fato, não logramos
um final feliz, não atingimos os anseios da sociedade que clama por uma limpeza
ética, porém não poderíamos, como operadores do direito, irresponsavelmente
ludibriar, manipular para o alcance dos nossos objetivos políticos, como vez ou
outra nos vemos incitados a demonstrar os malfeitos de um Judiciário mais polí-
tico que jurídico, para o nosso lamento.
Sem contorcionismos jurídicos e pautados na boa técnica precisamos defender
o direito posto com boa-fé, independentemente de que lado se revele nossa mais
intima preferência ou “torcida”. Nós, que estudamos para ser técnicos, não podemos,
discricionariamente, nos tornarmos leigos sempre que convier. Temos a responsa-
bilidade social de, como operadores do direito, nos aprofundarmos suficientemente
para, só então, nos posicionarmos, de modo que não conduzamos os leigos a erros
cognitivos em suas democráticas participações no destino político-social do país.
ARQUIVO PESSOAL

LEONARDO SARMENTO é professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista de


diversas revistas e portais jurídicos. Pós-graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial
e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.

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DIVULGAÇÃO
POLÍTICA ECONÔMICA

O mundo em gradual
recuperação
Armando Castelar

“ O FMI está mais pessimista que a maioria do mercado fi-


nanceiro brasileiro quanto ao nosso PIB tanto neste como no
próximo ano: expansão de 0,2% em 2017, acelerando para
1,7% em 2018. O mercado trabalha com taxas de 0,4% e
2,5%, respectivamente. Ainda que os números divirjam, os
fundamentos da recuperação são os mesmos nos dois casos:
queda na incerteza política, relaxamento monetário e avanço
no programa de reformas.

D
uas vezes ao ano, em abril e outubro, o FMI revê suas projeções para
a economia global, com grande detalhamento em termos de países
e indicadores. Simultaneamente, o Fundo elenca os principais riscos
globais e recomendações de políticas para evitar esses riscos e surpre-
ender positivamente em termos de crescimento.
Em abril de 2017, o FMI publicou suas mais recentes previsões, pintando um
quadro mais positivo para a economia global. A expectativa agora é que o PIB
mundial cresça 3,5%, acelerando em relação a 2015 e 2016. Tanto os países desen-
volvidos como os emergentes devem melhorar seu desempenho.
Entre os primeiros, o destaque são os EUA, que neste ano deve crescer 2,3%,
depois de ter tido expansão um terço menor do que a previsão do Fundo no ano
passado. Entre os emergentes, o maior crescimento se deve em grande parte ao
fim das recessões na Rússia e no Brasil. Para a Ásia emergente, que deve responder
por 57% da expansão do PIB mundial este ano, a expectativa é de alta sustentada
do PIB, de 6,4% neste e no próximo ano.
Outro aspecto a destacar é o maior aumento do volume de comércio interna-
cional de bens e serviços, para o qual o FMI projeta expansão de 3,8% este ano e

34 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

3,9% em 2018. Se confirmadas essas taxas, esse será o ritmo mais forte de alta do
comércio internacional desde 2011.
Outro indicador positivo é a aceleração da inflação de preços ao consumidor
nas economias avançadas, de 0,8% em 2016 para 2,0% este ano e 1,9% em 2018. Vai
contribuir para isso a forte valorização das commodities. A inflação mais alta vai
ajudar a reduzir o endividamento de famílias e empresas e permitir uma gradual
normalização da política monetária, em especial nos EUA, que está mais avançado
nesse processo. A expectativa é que a taxa de juros no interbancário de Londres
(Libor), em dólar, suba de 1,1% em 2016 para 1,7% este ano e 2,8% em 2018. A
Libor em euro deve permanecer levemente negativa e em iene constante em zero.
Este é um cenário externo bastante favorável à América Latina: PIB mundial
crescendo mais rápido, altas no preço das commodities e no ritmo de expansão
do volume de comércio internacional, juros reais com média negativa nos princi-
pais centros financeiros globais e, de forma geral, uma gradual normalização da
economia mundial, que pode ser reforçada pela vitória de Emmanuel Macron,
na França.
Não obstante, o FMI está mais pessimista com a América Latina e Caribe este
ano, tendo reduzido a projeção de crescimento da região em 0,5 ponto percentual
(pp), para alta de apenas 1,1%; menos de um terço, portanto, do ritmo de expansão
global. Para 2018, o Fundo projeta alta de 2,0%, 0,2 pp a menos que seis meses atrás.
Um pior cenário para o México, por conta da deterioração das relações com os EUA
após a eleição de Donald Trump, explica a maior parte dessa revisão.
O Fundo está mais pessimista que a maioria do mercado financeiro brasileiro
quanto ao nosso PIB tanto neste como no próximo ano: expansão de 0,2% em
2017, acelerando para 1,7% em 2018. O mercado trabalha com taxas de 0,4% e
2,5%, respectivamente. Ainda que os números divirjam, os fundamentos da recu-
peração são os mesmos nos dois casos: queda na incerteza política, relaxamento
monetário e avanço no programa de reformas.
O Fundo enxerga vários riscos para seu cenário, a maioria no sentido de reduzir
o crescimento. Os dois mais importantes, da nossa perspectiva, são um aumento
do protecionismo, liderado pelos países ricos, em especial os EUA, e uma alta
mais pronunciada da curva de juros americanos, que penalizaria os países e as
empresas com maior endividamento externo. O Fundo também vem alertando há
bastante tempo para o risco que representa o crescente endividamento corporativo
na China, que tem sido um instrumento fundamental a que o país tem recorrido
para manter um forte ritmo de crescimento.
Nos últimos anos, o FMI tem errado por se mostrar muito otimista com a recu-
peração da economia mundial, que tem decepcionado seguidamente. Mas há
motivo para mais otimismo desta vez. De um lado, porque a retomada está mais
disseminada entre países e setores. De outro, em razão de o risco político aparente-
mente estar diminuindo, em que pese o acirramento de alguns conflitos militares.
Há bons motivos, portanto, para que estejamos finalmente deixando para trás os
piores momentos da crise internacional iniciada em 2007.

ARMANDO CASTELAR PINHEIRO é Coordenador de Economia Aplicada do IBRE/FGV e Professor do Instituto


ARQUIVO PESSOAL

de Economia da UFRJ. Anteriormente, ele trabalhou como analista na Gávea Investimento, pesquisador do IPEA e
chefe do Departamento Econômico do BNDES. Castelar é Ph.D em Economia pela University of California, Berkeley,
Mestre em Administração pela COPPEAD/UFRJ e em Estatística pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA),
e Engenheiro Eletrônico pelo Insituto Teconológico de Aeronáutica (ITA).

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DIVULGAÇÃO
ENFOQUE

O detetive particular e a
hipótese da equiparação
a funcionário público na
investigação criminal
Eduardo Luiz Santos Cabette

“ O detetive particular não é funcionário público, ainda que


atuando em investigação criminal de forma oficial, seja para
fins penais ou, pior ainda, para fins administrativos. Dessa for-
ma, em caso de cometimento de infrações penais durante a
atividade em questão será punido de acordo com os crimes
comuns, e não crimes funcionais, a não ser que atue em con-
curso de agentes com funcionário público no exercício ou em
razão da função.

A
Lei nº 13.432/2017 veio regular a atividade de “detetive particular” ou
“detetive profissional” em solo brasileiro (art. 2º, § 1º).
Em regra, a atuação do detetive particular será vinculada a questões de
“interesse privado do contratante” (art. 2º, caput, da Lei nº 13.432/2017).
Entretanto, permite o art. 5º que o profissional investigador atue em colaboração

36 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

com a Polícia Judiciária em “investigação policial em curso”, desde que autorizado


expressamente por seu cliente.
Isso é, sem dúvida, um avanço na chamada “investigação criminal defensiva”,
pois não há óbices legais a qualquer pessoa poder investigar crimes, sendo a segu-
rança “responsabilidade de todos”, nos termos do art. 144, caput, da CF. Não obs-
tante, é claro que o particular não tem os mesmos atributos que os órgãos oficiais
de investigação criminal (PRUSSAK, online, 2017).
Há, porém, outras balizas que limitam a atividade do detetive particular na
investigação criminal. Ele necessita, por exemplo, de aceite por parte do delegado
de Polícia1, o qual, discricionariamente, poderá admitir ou rejeitar a qualquer tempo
sua participação (art. 5º, parágrafo único, da Lei nº 13.432/2017). Também deverá
cumprir os requisitos exigidos por outras leis e regulamentos que regem sua ati-
vidade e que não foram expressamente revogados pela nova Lei nº 13.432/2017 e,
portanto, continuam em vigor naquilo que não houver conflito, sendo os dois prin-
cipais diplomas referentes à matéria a Lei nº 3.099/1957 e o Decreto nº 50.532/1961.
Finalmente, insta observar que ao detetive particular é vedada a participação direta
em diligências policiais, nos estritos termos do art. 10, IV, da Lei nº 13.432/2017
(CABETTE, online, 2017).
O objeto deste trabalho é esclarecer se o detetive profissional, ao ser habilitado
no inquérito policial ou mesmo na investigação criminal promovida pelo Ministério
Público, de acordo com os requisitos legais acima delineados, passa a ser equiparado
a funcionário público e responder criminalmente por crimes próprios funcionais.
Para tanto, será feita uma breve análise do conceito de funcionário público para
fins penais, bem como, especialmente, dos casos de equiparação. A partir daí, será
possível concluir se o detetive particular pode ou não ser equiparado a funcionário
público e responder por eventuais crimes funcionais, e não crimes comuns, no
exercício de sua atividade de investigação criminal. A questão é relevante, pois tem
reflexos na tipificação penal de condutas e na reação penal estatal frente a deslizes
perpetrados pelo detetive no curso de uma investigação criminal.

O CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS

É no art. 327 do CP que se encontra o conceito de funcionário público para


fins penais, o qual considera todo aquele que “embora transitoriamente ou sem
remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”.
Evidentemente, o detetive particular, mesmo atuando na investigação criminal
com o beneplácito do presidente das investigações, não se adequaria a este con-
ceito de funcionário público que, embora mais amplo do que o da seara adminis-
trativa, não chegaria a abranger a situação enfocada. Na verdade, o próprio nome
da função, adjetivado de “particular”, está a afastar a configuração da condição de
funcionário público, ainda que somente para fins penais.
Ocorre que o § 1º do art. 327 do CP promove uma equiparação a funcionário
público, sendo de se indagar se, neste caso, poderia haver tal atribuição ao detetive
particular que oficialmente atue na investigação criminal. Novamente, a resposta
somente pode ser negativa. O § 1º do referido artigo do CP faz menção àqueles que
exercem “cargo, emprego ou função” em entidades paraestatais ou àqueles que
trabalham para empresas contratadas ou conveniadas para a execução de ativi-
dade típica da Administração Pública”. Ora, o detetive particular, embora atuando

www.zkeditora.com.br 37
ENFOQUE

na investigação criminal, juntamente com os órgãos estatais, defende interesses


particulares (do investigado ou da vítima de um crime) que o contratou. Ele não
é empregado, não tem cargo ou função pública. Não é contratado ou conveniado
pelo Estado, e, principalmente, não lhe é dado exercer “atividade típica da Admi-
nistração Pública”, uma vez que a própria Lei nº 13.432/2017 impede, como já visto,
sua participação direta em diligências policiais.
O que o detetive particular faz é defender interesses privados, “particulares”, na
investigação criminal, quais sejam, os interesses do seu contratante. Assim sendo,
sua atuação se adequa perfeitamente não ao conceito de funcionário público
para fins penais ou administrativos (muito menos), mas ao exercício do chamado
“múnus” público.
Exerce um “múnus” público todo aquele que atua em defesa de interesses par-
ticulares, no cumprimento de uma função publicamente relevante. São exemplos
o advogado constituído, o curador, o tutor, o inventariante, o administrador judi-
cial etc.
É ensinamento de Rogério Greco (2016, p. 1102) que:

O exercício de uma função pública, ou seja, aquela inerente aos serviços prestados pela
Administração Pública, não pode ser confundido com múnus público, entendido como
encargo ou ônus conferido pela lei e imposto pelo Estado em determinadas situações, a
exemplo do que ocorre com tutores, curadores etc.

Arthur Cogan (2003, p. 112) também tem entendimento semelhante. É enten-


dimento corrente que a prevalência do interesse privado é incompatível com o
conceito de funcionário público ou mesmo com sua equiparação. Também Cezar
Roberto Bitencourt (2009, p. 1066-1067) leciona que não se podem admitir como
atividades típicas de Administração Pública aquelas que, em verdade, são “típicas
da iniciativa privada”, por exemplo, “a indústria, o comércio, prestação de serviços
em geral etc.”.
O detetive particular é certamente um prestador de serviços que exerce ativi-
dade empresarial individual ou societária, tanto é fato que a Lei nº 3.099/1957 e o
Decreto nº 50.532/1961 exigem o registro do detetive particular individual ou do
estabelecimento de coleta de informações no órgão comercial do Estado.
Dessa maneira, se no exercício da atividade de investigação criminal perpetrar
crimes responderá como particular, por exemplo, por extorsão, violação de segredo
informático ou telemático ou interceptação telefônica ilegal, roubo, ameaça, furto,
violação de domicílio, lesão corporal, tortura sem o aumento de pena pelo fato de
ser agente público etc. Não responderá, a não ser em concurso de agentes com
efetivo funcionário público (inteligência dos arts. 29 e 30, CP), por crimes como
peculato, concussão, corrupção passiva etc. No que tange aos crimes de abuso
de autoridade, previstos na Lei nº 4.898/1965, também não há possibilidade de
subsunção do detetive particular ao conceito de funcionário público similar ao
do Código Penal, exposto no art. 5º. Além disso, no caso específico do abuso de
autoridade, o funcionário público há que ser enquadrável também no conceito de
“autoridade”, ou seja, deve ser daqueles que detêm poder de mando, “capacidade
de determinar, de subordinar ou de se fazer obedecer”, conforme a lição de Gil-
berto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas (1997, p. 86). Ora, como visto,
o detetive particular atua sob contrato, prestando serviços privados, bem como

38 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

somente tem autorização limitada pelo poder discricionário do delegado de Polícia


ou outra autoridade estatal que presida a investigação criminal. Inexiste poder de
determinação, subordinação ou de impor obediência a quem quer que seja. Muito
ao reverso, o detetive particular está subordinado intensamente ao delegado de
Polícia ou outro presidente do feito investigativo, até mesmo para poder ali atuar,
não sendo dotado sequer de autonomia ou independência.

CONCLUSÃO

Constatou-se inicialmente que a Lei nº 13.432/2017 é um marco para a atuação


do detetive particular na investigação criminal e, especialmente, para o desenvol-
vimento da chamada “investigação criminal defensiva”.
Porém, a atividade do detetive profissional é limitada pela legislação, tendo
em conta a reserva de atribuições típicas de Estado, inclusive pelo monopólio
do emprego da força e das restrições legal e proporcional de direitos individuais.
Foi possível estabelecer os conceitos legal e doutrinário de funcionário público,
bem como os casos de equiparação, concluindo-se que o detetive particular não é
funcionário público, ainda que atuando em investigação criminal de forma oficial,
seja para fins penais ou, pior ainda, para fins administrativos.
Dessa forma, em caso de cometimento de infrações penais durante a atividade
em questão será punido de acordo com os crimes comuns, e não crimes funcionais,
a não ser que atue em concurso de agentes com funcionário público no exercício
ou em razão da função, ciente disso, já que, então, o liame subjetivo permitirá que
as elementares pessoais se transmitam, de acordo com o disposto nos arts. 29 c/c
30 “in fine”, do Código Penal.

NOTA

1 Acaso a hipótese de investigação seja um PIC do Ministério Público, também, obviamente,


poderá atuar e necessitará de anuência do promotor oficiante. A Lei nº 13.432/2017, embora
faça menção expressa somente ao delegado de Polícia, em seu art. 5º, parágrafo único, trata
no caput da “investigação criminal”, usando uma expressão ampla e não a expressão restrita
“Inquérito Policial”, como não poderia ser diverso.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O detetive particular na Investigação Criminal. In: Revista Conceito
Jurídico, ano I, junho de 2017, n. 06.
COGAN, Arthur. Crimes contra a Administração Pública. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.
FREITAS, Gilberto Passos de, FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de Autoridade. 7. ed. São Paulo:
RT, 1997.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 10. ed. Niterói: Impetus, 2016.
PRUSSAK, Jucineia. Lei nº 13.432/2017, detetive particular e investigação criminal defensiva. Dis-
ponível em www.jusbrasil.com.br. Acesso em 13 abr. 2017.
ARQUIVO PESSOAL

EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE é delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós-graduado em Direito
Penal e Criminologia, professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual
Penal Especial na graduação e na pós-graduação do Unisal e membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos
Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

www.zkeditora.com.br 39
DIVULGAÇÃO
DIREITO ADMINISTRATIVO

Direito Administrativo
sancionador versus Direito
Administrativo dialógico
Thaís Boia Marçal

D
iversas são as notícias a respeito de penalidades pecuniárias aplica-
das às sociedades empresárias por falhas na prestação de serviço. Em
geral, aquelas que alcançam valores de alta monta conseguem ser re-
duzidas por intervenção do Judiciário, que se vale do argumento da
razoabilidade/proporcionalidade. Aquelas de pouca monta diante de sua reite-
ração impactam sobremaneira o orçamento da instituição.
Sem embargo, não se pode chancelar o descumprimentos de normativas legais
e regulatórias sem a resposta estatal adequada, sob pena de tornar letra morta as
obrigações de qualidade exigidas das prestadoras de serviços.
O que se discute é o (des)acerto na aplicação de penalidades financeiras para
tais falhas. Em resumo, será efetuado o pagamento (seja imediatamente ou após

40 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

“ Investir em regulações
adequada e técnica, bem
como no acompanhamento
de seu cumprimento é hábil
a produzir resultados mais
eficientes do que punir por
falhas que já ocorreram.
Punição e eficiência não
são (e não devem pretender
ser) conceitos imbricados,
enquanto accountability e
compliance parecem ser a
duas facetas da eficiência.

extensa discussão judicial) integral (ou reduzido, em caso de intervenção judicial1),
fato este que em nada obriga a melhora efetiva na qualidade do serviço prestado.
Caso haja reiteração da conduta, normalmente aplica-se a acréscimo pecu-
niário e, novamente, o serviço segue sem melhoria. Eventualmente, o Ministério
Público pode ajuizar ação coletiva para pleitear que o Judiciário obrigue a melhora
na prestação do serviço.
Contudo, não seria mais razoável encurtar o caminho? Em vez de aplicar pena-
lidades pecuniárias, não seria mais adequado determinar que a falha individual-
mente identificada fosse coletivamente corrigida? A resposta positiva parece ser
a que melhor atende ao princípio da eficiência. Todavia, ressalte-se que a simples
determinação de a falha ser corrigida já seria decorrência do próprio dever de
cumprimento das normas aplicáveis ao setor.
A fim de tornar eficaz a determinação, parece interessante a determinação da
adoção de um programa de integridade (compliance) pela sociedade empresária,
a fim de: (i) implementar a cultura de conformidade da gestão empresarial com as
determinações legais e regulamentares – muitas vezes complexas e contraditórias;
(ii) gerir o risco de possíveis inconformidades, prevendo meios para eliminá-los; (iii)
capacitar os setores internos para o cumprimento das normativas setoriais atualizadas.
Assim, a existência e a operacionalização efetiva de um programa de compliance
mostram-se mais eficazes para implementar a cultura de governança corporativa
de conformidade do que simplesmente a aplicação de multa pecuniária por falhas
pontuais, que, em verdade, representam falhas sistêmicas.

www.zkeditora.com.br 41
DIREITO ADMINISTRATIVO

Do mesmo modo como o Direito Penal é considerado a última ratio para as


ciências jurídicas, o Direito Administrativo sancionador deve ser considerado a
última alternativa para o poder público.
O importante é empreender os meios necessários para que a sociedade empre-
sária entenda a importância de inserir em sua cultura de governança que o custo
do cumprimento das normas tem mais valor do que apenas contabilizar eventuais
multas pecuniárias em seu orçamento de gestão.
É preciso conceber o compliance como necessidade a ser incorporada no orça-
mento de investimento, pois viabilizará o ganho de confiabilidade daqueles que
contratam com a instituição, além de credibilidade com a sociedade civil.
Nesse contexto, a intervenção do poder público deverá ser pautada na siste-
mática dialógica de interação, e não meramente punitivista.
A própria concepção do compliance implica o dever de interação entre agentes
privados e públicos de maneira salutar e transparente, o que torna desnecessária
a ação meramente sancionadora da administração.
O accountability (sintetizada pelo sinalagma responsabilização-ética), que é
inerente a implementação de um código de ética no bojo de programa de com-
pliance, é tônica de que carecem as instituições envolvidas com práticas corruptas,
de modo a permitir a sua reabilitação, bem como cumprir a função social para
com a sociedade civil.
Amartya Sen, em diversos estudos, trabalha com a noção de ética nos negócios,
a fim de que o lucro, per si, não seja o fator que justifique a existência da atividade
empresarial. A partir dessa concepção, passa-se a incorporar com mais afinco no
ambiente privado o conceito de probidade.
A regulação deve ser orientada pela consensualidade, a fim de: (i) incorporar
as melhores práticas existentes no mercado; (ii) eliminar as falhas da autorregu-
lação; (iii) orientar que o desenvolvimento da sociedade da empresária cumpra
sua função social.
A transparência do diálogo entre os atores envolvidos é imprescindível, a fim
de gerar o debate com a sociedade civil lastreado por argumentações técnicas,
permitindo o que se convencionou denominar “governo da razões”.
Investir em regulações adequada e técnica, bem como no acompanhamento
de seu cumprimento é hábil a produzir resultados mais eficientes do que punir
por falhas que já ocorreram.
Punição e eficiência não são (e não devem pretender ser) conceitos imbricados,
enquanto accountability e compliance parecem ser a duas facetas da eficiência.

NOTA

1 Intervenções judiciais na mudança do patamar fixado a título de penalidade pecuniária deve


ser analisado com parcimônia, pois a atividade legiferante pressupõe a análise de diversas
variantes para fixação de valores, bem como considera uma aplicação sistêmica e comple-
mentar dos dispositivos, sendo certo que alterações pontuais poderão ensejar desequilí-
brios sistêmicos.
ARQUIVO PESSOAL

THAÍS BOIA MARÇAL é mestranda em Direito da Cidade pela UERJ. Especialista em Direito Público pela UCAM.
Pós-graduada pela EMERJ. Bacharel em Direito pela UERJ. Advogada Associada no Lobo & Ibeas Advogados.

42 ano I - nº 04 - abril/2017
POLÍTICA EDUCACIONAL

Educação e trabalho
Arnaldo Niskier

O
professor José Pastore pertence aos quadros da Universidade de São Pau-
lo e da Academia Paulista de Letras. Veio ao Rio de Janeiro para falar em
seminário da Academia Brasileira de Letras sobre o tema “Educação e tra-
balho: o futuro da juventude no Brasil”.
Fez muito sucesso. Começou abordando a espantosa velocidade de mudança que
marca os tempos atuais. Segundo ele, as grandes transformações baseiam-se na revo-
lução digital, que vem provocando profundas mudanças na produção e na vida coti-
diana. Atualmente, o Google, o smartphone, o Uber e os gigantescos sites de busca
que se baseiam na inteligência artificial dominam as relações comerciais e pessoais
desconhecidas há 10 anos.
A produção industrial moderna, cada vez mais, tem maior participação no abstrato
do que no concreto. Abstrato é o que se aprende na escola. Em suma, a educação de boa
qualidade virou peça fundamental para acompanhar a evolução tecnológica, para os
processos produtivos e para as pessoas. O mercado de trabalho é cada vez mais exigente.
Muitas entrevistas de emprego são mais difíceis e concorridas do que exames vestibulares.
As empresas modernas procuram recrutar profissionais que dominem a Linguagem, a
Matemática, os Conhecimentos Gerais e a Ética, tanto no trabalho como na profissão.
Os profissionais precisam ser polivalentes, multifuncionais e abertos para novas funções.
Projeções sobre o mercado de trabalho indicam que, em 2050, cerca de 60% das pes-
soas estarão sendo demandadas para exercer profissões desconhecidas, que não existem
nos dias atuais. É preciso preparar as escolas e os jovens para as novas características do
mercado de trabalho, nas quais terão mais chances de se empregar quem pensa bem. A
segurança no emprego depende da capacidade de aprender de modos rápido e contínuo.
Recentemente, a lei brasileira que obriga os pais a matricularem seus filhos na
escola a partir dos quatro anos de idade foi aprovada. Nos Estados Unidos, uma lei
semelhante foi aprovada em 1650! Daí pode-se perceber o atraso do nosso país na
questão educacional.
Um ministro da Índia explica o sucesso daquele país no campo tecnológico com
uma expressão bastante simples: “English, engineering and education!” A educação
está diretamente ligada à produtividade e aos ganhos pessoais se for de boa qualidade.
A História mostra que países que passaram por fortes crises conseguiram se recu-
perar investindo na boa educação. Nos EUA, a depressão de 1929 quebrou mais de
cinco mil bancos. O desemprego disparou e, mesmo com tantos cortes no orçamento,
o governo expandiu as bibliotecas públicas e ainda criou bibliotecas itinerantes para
atender ao interior e zonas rurais.
Aqui no Brasil vivemos uma grave crise, são quase 12 milhões de desempregados,
e pior, sem qualificação adequada, já que apenas 17% dos empregados brasileiros
completou o ensino superior e menos de 50% têm o curso médio completo. Cerca
de 1,7 milhões de jovens estão fora da escola, outros dois milhões não estudam, nem
trabalham. Como resolver essa equação? Com educação, enfatizando o papel da Lin-
guagem. As empresas procuram candidatos com potencial para aprender, que gostem
de estudar, que leiam bastante, que tenham o vírus da curiosidade.
ARQUIVO PESSOAL

ARNALDO NISKIER é Doutor em Educação. Membro da Academia Brasileira de Letras. Presidente do Centro de
Integração Empresa-Escola (CIEE) no Rio de Janeiro.

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DIVULGAÇÃO
PROCESSO ADMINISTRATIVO

“ Improbidade é figura que, nas áre-


as Penal, Civil ou Administrativa exige
a essencial intencionalidade delitiva, a
vontade ativa e efetiva de praticar ato
sabidamente não admitido pelo Direito.
Trata-se da má-fé plenamente caracte-
rizada, é a má intenção do agente. De
tal sorte, ausente o elemento volitivo,
então improbidade alguma jamais po-
derá ser imputada a ninguém.

Novo tipo de ato de


improbidade administrativa
Gina Copola

A
Lei Complementar nº 157/2016 classificou um novo tipo de ato como
sendo de improbidade administrativa ao inserir o art. 10-A na Lei nº
8.429, de 2 de junho de 1992, que, conforme se observa, foi acrescido
aos três tipos de atos de improbidade administrativa que já existiam, a
saber, enriquecimento ilícito (art. 9º), lesão ao erário (art. 10) e afronta aos prin-
cípios da Administração (art. 11).

44 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

É de império ter presente, desde já, que o novo tipo de ato de improbidade
administrativa somente produzirá efeitos após o decurso do prazo referido no art.
6º, da LC nº 157/16, que é de um ano.
Vejamos o que reza o novel dispositivo da LIA: “Art. 10-A. Constitui ato de
improbidade administrativa qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou
manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõem o caput e o §
1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.”
O art. 8º-A, da LC nº 116, de 2003, o qual foi incluído pela Lei Complementar
nº 157, de 2016, a seu turno, dispõe que: “Art. 8o-A. A alíquota mínima do Imposto
sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento)”.
Já o §§ 1o, 2º e 3º do artigo 8-A, também incluídos pela LC nº 157, de 2016,
determinam que:

§ 1o O imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tribu-


tários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou
outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga
tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida no caput,
exceto para os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta
Lei Complementar.
§ 2o É nula a lei ou o ato do Município ou do Distrito Federal que não respeite as disposi-
ções relativas à alíquota mínima previstas neste artigo no caso de serviço prestado a to-
mador ou intermediário localizado em Município diverso daquele onde está localizado o
prestador do serviço.
§ 3o A nulidade a que se refere o § 2o deste artigo gera, para o prestador do serviço, perante
o Município ou o Distrito Federal que não respeitar as disposições deste artigo, o direito à
restituição do valor efetivamente pago do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza
calculado sob a égide da lei nula.

Tem-se, de tal sorte, que o mais recente tipo de ato de improbidade administrativa
visa punir o administrador municipal ou do Distrito Federal – o imposto citado é de
competência dos municípios e do Distrito Federal apenas – que conceder, aplicar
ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõe a citada Lei.
O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, repita-se, é de competência dos
municípios e do Distrito Federal, e com alíquota mínima de 2% (dois por cento),
tendo como fato gerador a prestação dos serviços previstos de forma expressa no
Anexo da LC nº 116/2003, com a redação que lhe foi dada pela LC nº 157/2016.
Conforme a determinação do § 2º do art. 8º-A da LC nº 116/2003, os municípios
e o Distrito Federal estão obrigados a respeitar a alíquota mínima de 2% (dois por
cento), sob pena de prática de ato de improbidade administrativa.
As penas previstas para o mais recente ato de improbidade administrativa
constam do inc. IV, que foi acrescido ao art. 12 da Lei nº 8.429/1992, e podem ser
as seguintes:

Art. 12 Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legis-


lação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes comina-
ções, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade
do fato: [...]

www.zkeditora.com.br 45
PROCESSO ADMINISTRATIVO

IV – na hipótese prevista no art. 10-A, perda da função pública, suspensão dos direitos
políticos de 5 (cinco) a 8 (oito) anos e multa civil de até 3 (três) vezes o valor do benefício
financeiro ou tributário concedido.

Sobre a pena de multa civil já dissemos em manifestações pretéritas que a con-


sideramos inconstitucional em razão de ser pena não prevista no art. 37, § 4º, da
Constituição Federal, o qual estabelece que:

Art. 37 [...]
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos,
a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na
forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

O art. 12 da LIA, conforme se lê, prevê a pena de multa civil, sendo que o art.
37, § 4º, da Constituição Federal não prevê tal pena.
Com todo efeito, cabia à Lei nº 8.429/1992 apenas graduar as sanções previstas
pelo art. 37, § 4º, da Constituição Federal, e nada mais que isto, conforme ensina
Mauro Roberto Gomes de Mattos (MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite
da improbidade administrativa, 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p. 487).
Assim sendo, as penas acima citadas e não previstas na Constituição Federal
restam absolutamente inconstitucionais por extrapolarem o contido no indigitado
dispositivo constitucional.
No mesmo diapasão é a lição de Toshio Mukai, em célebre artigo intitulado
“Fantasmagórica ameaça das ações de improbidade administrativa”, publicado
no Boletim de Direito Administrativo (São Paulo: Editora NDJ, março/00, pp.
191/192), de onde se lê o seguinte excerto: “Em matéria de sanções, a interpre-
tação há de ser restritiva, não cabendo ao legislador criar sanções não previstas
para o caso, na Constituição. Em Direito Público, o que não está autorizado,
está proibido”.
Ademais, também foi incluído um novo parágrafo ao art. 17 da LIA (§ 13),
para introduzir nova pessoa legitimada a propor ação de improbidade adminis-
trativa, “que terá o rito ordinário, dentro de trinta dias da efetivação da medida
cautelar”, que é “o ente tributante que figurar no pólo ativo da obrigação tribu-
tária de que trata o art. 8º-A, da Lei Complementar nº 116/03”, ou seja, agora
têm legitimidade para propor a ação o Distrito Federal e os municípios que
forem prejudicados com as “isenções, incentivos ou benefícios tributários ou
financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou
outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente,
em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima
estabelecida no caput [do art. 8º-A]”.
Por fim, é de império tecer alguns comentários sobre o elemento subjetivo neces-
sário à configuração do tipo mais recente de ato de improbidade administrativa.
Nosso entendimento é que o ato previsto no art. 10-A da LIA só se configura se
existir o elemento subjetivo do dolo.
É o que temos defendido enfaticamente.
Tem-se, conforme reiteradamente dissemos, que a configuração do ato de
improbidade administrativa necessita, obrigatoriamente, da ocorrência do dolo,

46 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito Jurídico
Administrativo e Político

não bastando, portanto, a culpa do agente, sendo que tal posicionamento doutri-
nário e jurisprudencial é o majoritário.
Com todo efeito, sem a figura do dolo é virtualmente impossível a caracterização
de improbidade administrativa, porque o ímprobo é aquele que teve a vontade, a
intenção, ou o animus de causar lesão ou prejuízo ao erário, bem como aos prin-
cípios constitucionais que norteiam a Administração.
Tanto na doutrina quanto, sobretudo, na jurisprudência é majoritário o entendi-
mento segundo o qual nas ações de improbidade administrativa deve ser demons-
trado que o agente público – ou os terceiros que tiverem concorrido para a prática
do ato – utilizou-se de expediente que possa ser caracterizado como sendo de
má-fé, com a nítida intenção de prejudicar o interesse público e o erário e, apenas
assim, portanto, poderá ser alegada a improbidade administrativa.
O elemento subjetivo dos tipos contidos na LIA é o dolo e apenas o dolo, decor-
rente da vontade do agente público causar dano ou prejuízo à Administração
pública. Sim, porque a intenção do ímprobo é alcançar benefício próprio ou de
terceiro, em detrimento do interesse público.
Com efeito, “a lei alcança o administrador desonesto, não o inábil”, conforme
já decidiu o e. STJ, relator Ministro Garcia Vieira, RESP nº 213994/MG, 1ª T., DJ de
27.09.99, p. 59.
Ninguém, portanto, é ímprobo por acaso, nem desonesto por imperícia, nem
velhaco por imprudência, nem inidôneo se não quiser sê-lo ostensiva e propo-
sitadamente. Com todo efeito, sem o elemento volitivo presente; sem a vontade
de delinquir, de lesar, de tirar ilegítimo proveito, de locupletar-se indevidamente,
de enriquecer ilicitamente, ninguém pode ser inquinado de improbidade, uma
vez que essa pecha somente tem sentido técnico-jurídico, e mesmo lógico, se e
quando imputada ao mal-intencionado, ao desonesto de propósitos, ao golpista,
ao escroque. Quem não se enquadrar n’alguma dessas infames categorias será
tudo no planeta, menos praticante de ato de improbidade.
Improbidade é figura que, nas áreas Penal, Civil ou Administrativa exige a
essencial intencionalidade delitiva, a vontade ativa e efetiva de praticar ato sabi-
damente não admitido pelo Direito. Trata-se da má-fé plenamente caracterizada,
é a má intenção do agente.
De tal sorte, ausente o elemento volitivo, então improbidade alguma jamais
poderá ser imputada a ninguém.
A improbidade não pode ser atribuída a quem apenas esquece de mera for-
malidade, ou comete pequenas irregularidades, sendo que tais atos não têm, nem
poderiam ter, o condão de causar lesão aos cofres públicos ou aos princípios cons-
titucionais que devem reger a Administração, e, por isso, não podem ser reputados
como atos ímprobos.
Tem-se, portanto, e conclusivamente, que o ato de improbidade administrativa
que está previsto no aqui comentado art. 10-A da LIA só se configura se compro-
vado o dolo do agente.
É nosso entendimento.

GINA COPOLA é advogada militante em Direito Administrativo. Pós-graduada em Direito Administrativo pela
ARQUIVO PESSOAL

FMU. Ex-professora de Direito Administrativo na FMU. Autora dos livros “Elementos de Direito Ambiental”; “Deses-
tatização e terceirização”; “A lei dos crimes ambientais, comentada artigo por artigo”; “A improbidade administra-
tiva no Direito Brasileiro”; “Comentários ao Sistema Legal Brasileiro de Licitações e Contratos Administrativos”; e
autora de mais de uma centena de artigos sobre temas de Direitos Administrativo e Ambiental publicados em
periódicos especializados.

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OPINIÃO

Pedro Puttini Mendes

ARQUIVO PESSOAL
Cadastro Ambiental Rural
e áreas indígenas

U
m recente levantamento do Serviço Florestal Brasileiro divulgou que
11.569 cadastros ambientais rurais estariam sobrepostos a terras in-
dígenas homologadas de forma “parcial” ou completa. Os dados re-
fletem certa insegurança jurídica na situação.
A notícia trouxe a preocupação de que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) impli-
caria reconhecimento de posse de pessoas declarantes, citando, inclusive, enten-
dimentos judiciais. Entretanto, não indicou a fonte de consulta. Seria o problema
apenas o CAR e o suposto direito de posse dos declarantes?
A primeira correção que se faz resolve-se com o próprio Código Florestal, o qual
determina que “O cadastramento não será considerado título para fins de reconhe-
cimento do direito de propriedade ou posse [...]” (art. 29, § 2º, Lei nº 12.561/2012).
Portanto, o direito de propriedade continuará sendo exercido pelas matrículas
imobiliárias e não pelo CAR, como também o direito de posse será exercido por
meio dos direitos neste sentido (usucapião, usufruto, arrendamento, etc.).

48 ano I - nº 04 - abril/2017
Conceito
Conceito Jurídico
Jurídico
Administrativo e Político
Administrativo e Político

A segunda observação, e não correção, é um pouco mais preocupante, já


que se, de fato, a sobreposição de tantas áreas tituladas e demarcadas preva-
lecer até depois do prazo estabelecido para o Cadastro Ambiental Rural, prestes
a encerrar-se em 31 de dezembro deste ano, uma grande insegurança jurídica
irá se perpetuar.
O Ministério do Meio Ambiente, ao editar a Instrução Normativa nº 02 de
06/05/2014, garantiu que, se “Constatada a sobreposição, ficarão pendentes os
cadastros dos imóveis sobrepostos no CAR, até que os responsáveis procedam à
retificação, à complementação ou à comprovação das informações declaradas,
conforme demandado pelo órgão competente”, o que inclui áreas indígenas (art.
42, IX). Neste ponto, ao falar em “responsáveis” a normativa ambiental é preocu-
pante. Quem é o responsável pelas áreas em processo de demarcação? E como está
o andamento dos processos de demarcação pendentes?
De acordo com a Constituição Federal, é a União! Isto porque o art. 231 descreve
claramente que compete “[...] à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
os seus bens”. Mais especificamente, o Decreto nº 1.775/1996, que regulamenta
os processos de demarcação de terras indígenas, atribui tal responsabilidade ao
órgão federal de assistência ao índio, a Funai.
O processo demarcatório só termina com a homologação da área demarcada
por “decreto”, depois de longo trâmite chancelado pelo ministro da Justiça (art.
5º, Decreto nº 1.775/1996). Assim, o que se define por portaria do ministro da Jus-
tiça é parte do processo demarcatório, ou seja, apenas os limites da terra indígena
(art. 2º, § 10º, I).
É visível a insegurança jurídica, portanto, pois manter o Cadastro Ambiental
Rural de um proprietário em situação de “pendência” por território indígena em
processo de demarcação ainda não concluído por decreto, tão somente com limites
estabelecidos em portaria, representa ameaça à direitos líquidos e certos, sujeitos
à mandado de segurança, já que, além da ameaça ao direito de propriedade, modi-
ficado apenas após o devido processo legal, pode até mesmo haver responsabili-
zação ambiental do declarante irregular no CAR.
Recomenda-se toda a cautela nesses casos, pois a segurança jurídica das ativi-
dades agrárias depende de fatores fundiários, contratuais, ambientais, trabalhistas,
tributários e demais aspectos legais que demonstrem um momento de atenção
quanto à gestão, no caso do CAR, já que é considerado instrumento de mercado
nas negociações de propriedades de compra e venda, arrendamentos, parcerias
e demais investimentos.

PEDRO PUTTINI MENDES é consultor jurídico no agronegócio, palestrante e professor de Direito do Agronegócio, membro e
representante da UBAU – União Brasileira de Agraristas, membro fundador da UBAA – União Brasileira da Advocacia Ambiental,
ex-presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS, tutor de Legislação Agrária; Políticas Públicas para
o Agronegócio e Responsabilidade Socioambiental no Senar/MS. Coordenador de cursos de extensão em Direito Aplicado
ao Agronegócio. Graduado em Direito, Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil, extensão em Direito Agrário, Licencia-
mento Ambiental e Gestão Rural, Mestrando em Desenvolvimento Local com ênfase em Governança Colaborativa de Políticas
Públicas para o Agronegócio.

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ANIMAIS
BIOÉTICA E DIREITO
Tereza Rodrigues Vieira
Camilo Henrique Silva
Coordenadores

R$ 45,00
FRETE GRÁTIS

Os artigos compilados nesta obra retratam algumas das infindáveis dis-


cussões acerca da relação entre os seres humanos e os animais, enfren-
tando os principais desafios bioéticos e jurídicos oriundos dessa delicada
convivência. Instiga ainda, o leitor a realizar reflexões acerca de temas
polêmicos e que necessitam de uma análise mais acurada para que o
Poder Judiciário tenha subsídios no julgamento de litígios que versem
sobre os temas abordados.

Telefone (61) 3225-6419

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