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com ano IV abril/2020 no 40

ISSN 2526-9577

9 772526 957717

A união homoafetiva e sua


recepção no ordenamento
brasileiro em face aos
direitos humanos

Enfoque Vade Mecum Forense Visão Jurídica


A utilização do sistema de registro
Coronavírus: O crime de infração de
de preços nas contratações de
preferência pelo leito de UTI medida sanitária preventiva
serviços de natureza continuada
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Eudes Quintino de Oliveira Júnior Marinês Restelatto Dotti Fernando Brandini Barbagalo
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Prevalência do acordo individual
ano IV
IV l l fevereiro
abril dede2020
2020 ll nº
nº 38
40
nas relações de trabalho e as
emergências da pademia – Pág. 8
Fátima Nancy Andrighi, Fernando Tourinho Filho, Fernando da Costa
Tourinho Neto, Georgenor de Souza Franco Filho, Geraldo Guedes,
ISSN 2526-8988
Gilmar Ferreira Mendes, Gina Copola, Gustavo Filipe B. Garcia, Hum-
9 772526 898881

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TENDÊNCIAS DO
MUNDO JURÍDICO
PRIMEIRA PÁGINA

ARQUIVO PESSOAL
POR Luciana Temer

Coronavírus e violência
sexual infantil

“ A situação de confinamento gerada pelo coronavírus tem


agravado algumas formas de violência e, sem sombra de dú-
vida, o abuso e a exploração sexual infantil. Não dá para es-
perarmos passar a pandemia para falar desse assunto.”

U
m único assunto toma praticamente todos os espaços das mídias tra-
dicionais e digitais: o coronavírus. Isso não é só compreensível como
necessário; afinal, estamos no meio de uma pandemia. Mas assun-
tos conexos – como a questão da vulnerabilidade social agravada (e o
medo da violência a partir daí) e o aumento da violência doméstica (em razão do
confinamento) – começam a despontar.
Quero propor aqui um outro, urgente! O risco de aumento da violência sexual
contra crianças e adolescentes. Explico.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 3


PRIMEIRA PÁGINA

Em 2018, escrevi sobre o perigo de se admitir o ensino domiciliar no Brasil.


Citava um estudo da Universidade de Wisconsin que constatou que 76% das
crianças vítimas de violência intrafamiliar grave nos EUA não frequentavam a
escola. Tratava-se, à época, de risco iminente e excepcional, mas agora estamos
todos em um isolamento absolutamente necessário e não há escolas nem outros
espaços de convívio onde crianças possam pedir socorro.
Meninas estão isoladas em casa, em muitos casos com seus violadores. Estou
exagerando? Dados do boletim epidemiológico nº 27 do Ministério da Saúde
apontam que entre os anos de 2011 e 2017 foram registrados 141.105 casos de
violência sexual contra crianças e adolescentes, o que configura 76,5% de todos
os casos registrados. Importante chamar a atenção para o fato de que a maior
parte das notificações é da região Sudeste, o que obviamente explicita o enorme
índice de subnotificação. Dentre as vítimas, 74,2% são meninas, e 71,2% dos casos
ocorrem nas residências.
Bom, mas alguém pode pensar: “Mas as mães estão em casa, nada pode acontecer
com suas filhas”. Errado. Mães em casa não são garantia de que a violência sexual
não ocorra. Quem lida com essa questão sabe muito bem que muitas mulheres
chegam a culpar as filhas pelo que lhes aconteceu ou então se omitem por medo
dos companheiros. Medo este que não é descabido, em especial neste momento.
Basta ver os dados sobre violência contra a mulher em tempos de confinamento.
Números recentes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
indicam um aumento de 9% de denúncia pelo canal do telefone 180, e a Justiça
do Rio de Janeiro uma alta de 50% nos registros de casos de violência doméstica.
Esse quadro é mundial, tanto que o secretário-geral da ONU, António Guterres,
fez um apelo para que os Estados incluam programas especiais de proteção para
as mulheres em suas respostas contra a Covid-19.
Até o momento falamos da violência intrafamiliar, mas falemos de violência sexual
infantil pela internet. O recurso aos sites pornográficos como forma de entreteni-
mento em tempos de confinamento está caracterizado pelo aumento do número
de usuários. Só para exemplificar, a produtora de vídeos Brasileirinhas duplicou o
número de assinaturas por dia, enquanto o site Sexy Hot aumentou em 25% o número
de usuários. Estamos falando de diversão adulta, feita por adultos e para adultos?
Em tese sim, mas a experiência tem demonstrado que é mais complicado que isso.
Primeiro porque crianças e adolescentes (que já viviam na internet e agora estão
legitimados pela situação) têm livre acesso aos conteúdos gratuitos desses sites,
o que já é ruim por si só. Mas é pior que isso, pois pela rede mundial de computa-
dores estão extremamente vulneráveis às situações de exploração sexual.
Relatório da Europol, inteligência policial da União Europeia, publicado no dia 3
de abril, demonstra que as organizações criminosas estão se adaptando aos novos
tempos. Houve diminuição nas atividades de tráfico e contrabando e aceleração
em outras – dentre as quais, a produção e distribuição de pornografia infantil. Na
Espanha, por exemplo, entre os dias 17 e 24 de março, houve um aumento de 25%
no download de material pornográfico infantil, tendência que, segundo o relatório,
se verifica em outros países europeus.
Enfim, a situação de confinamento gerada pelo coronavírus tem agravado
algumas formas de violência e, sem sombra de dúvida, o abuso e a exploração sexual
infantil. Não dá para esperarmos passar a pandemia para falar desse assunto.

LUCIANA TEMER é Advogada; Professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e da Faculdade Uninove; Presidente do Instituto Liberta.

4 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 5
SUMÁRIO

3 Primeira Página
8 Especial
Coronavírus e
violência sexual infantil A união homoafetiva e sua
recepção no ordenamento
Luciana Temer brasileiro em face aos
direitos humanos

Pedro Hoffmann Hass,


Matheus Caetano Barros e
Cristiane Feldmann Dutra

23 Destaque
24 Gestão Empresarial
O risco de subnotificação:
O receio do fenômeno do Obrigatoriedade de
Iceberg de antigravidade compliance para
contratação pública
Ana Cristina Marques Martins e
Marcus Vinicius de Azevedo Braga Wilson De Faria e
Camila Chizzotti

28 Planejamento Financeiro 30 Como Decidem os Tribunais

Diversifique sem sair da STF e MP nº 936/2020.


renda fixa. Não é preciso Sopesamento entre
investir em ações para realidade e legalidade
diversificar os investimentos em tempos de COVID-19
em busca de melhor retorno
Aline Cruvinel
Marcia Dessen

32 Saiba Mais
35 Expressões Latinas
Ab irato [impulsu]
A pandemia do novo
coronavírus e os impactos Vicente de Paulo Saraiva
causados nos contratos de
locação não residencial

Leonardo Hayao Aoki

38 Visão Jurídica 40 Know How


O crime de infração Dignidade da
de medidad sanitária pessoa humana
preventiva
Hélida Crosara
Fernando Brandini Barbagalo

6 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


42 Fichário Jurídico
Interrupção da prescrição
em acórdão que confirma
48 Processos e Procedimentos
ou reduz a pena Da ilegalidade da pena de
censura prescrita no Código
Líbero Penello de Carvalho Filho de Ética Profissional do
Servidor Público Civil do
Poder Executivo Federal

Rocco Antonio Rangel Rosso Nelson e

58
Walkyria de Oliveira Rocha Teixeira

Enfoque
Coronavírus: preferência pelo
leito de UTI

Eudes Quintino de Oliveira Júnior 60 Vade Mecum Forense


A utilização do sistema
de registro de preços nas
contratações de serviços de
natureza continuada

70 Prática Jurídica Marinês Restelatto Dotti

Prisão temporária em crimes


associativos (organização
criminosa, associação
criminosa entre outros):
A desestabilização associativa

Breno Eduardo Campos Alves e


Joaquim Leitão Júnior 78 Questões de Direito
Contrapartidas inadequadas

81
da ANS aos Planos de Saúde
Prática de Processo Fernando Bianchi

Conciliação e Mediação
pré-processuais em disputas
empresariais. Projeto-piloto
da Corregedoria do TJ/SP para
disputas derivadas da Covid-19

Luís Rodolfo Cruz e Creuz

84 Prática de Processo
88 Espaço Aberto O estado democrático de
direito e a necessidade
Covid-19 e seus efeitos da fundamentação das
nos setores do turismo e decisões judiciais
da cultura
Rômulo de Andrade Moreira
Gustavo Milaré Almeida e
João Pedro Alves Pinto

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 7


ESPECIAL

A união homoafetiva e sua


recepção no ordenamento
brasileiro em face aos
direitos humanos

POR Pedro Hoffmann Hass, Matheus Caetano Barros e Cristiane Feldmann Dutra

“ Toda e qualquer forma de amor e afeto deve pre-


valecer nas relações socias, afinal a sociedade se mo-
difica e por isso evolui a partir se não de toda e qual-
quer relação existente.

8 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020
DIVULGAÇÃO
A
família muda conforme a sociedade evolui. Essa metamorfose familiar
necessita de proteção e amparo jurídico. Pensando nesta evolução o di-
reito de família deve se desenvolver para acompanhar a família moderna.
É de grande objeto social que a formação familiar possa ocorrer de
maneira livre, sendo exclusiva das partes que compõem o relacionamento, inde-
pendentemente da opção sexual dos adotantes.
O objetivo deste trabalho é demonstrar como o ordenamento jurídico brasi-
leiro recebe e protege as uniões homoafetivas, o reconhecimento da paridade que
constroem os ambientes familiares em comparação com as uniões heteroafetivas,
amparadas pelos direitos e garantias já existentes às famílias heterossexuais.
É claro que este tipo de formação familiar nasce a partir de uma ruptura social,
as denominadas famílias homoafetivas, pessoas do mesmo sexo que se atraem a
partir do afeto existente entre as partes.
Pretende-se demonstrar as garantias jurídicas que existem e amparam esse
tipo de formação familiar.
Nesta pesquisa é usada a metodologia de verificação doutrinária, sendo expostos
diferentes pontos de vista e as mudanças históricas dos entendimentos jurispru-
denciais que demonstraram a evolução social amparada juridicamente.

A UNIÃO HOMOAFETIVA E SUA RECEPÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

Nota-se que a união homoafetiva no Código Civil de 2002 não cuidou da união
de pessoas do mesmo sexo, mas os magistrados do Rio Grande do Sul na época, pio-
neira e corajosamente, foram reconhecendo alguns dos efeitos da relação homos-
sexual, principalmente no que se refere ao patrimônio adquirido durante a cons-
tância da união, utilizando-se de princípios constitucionais, como o da igualdade
dos sexos, da proibição da discriminação, da vedação do enriquecimento ilícito,
etc., dando, muitas vezes, “status” de família à união de duas pessoas do mesmo
sexo (MADERS 2003, p. 49).
Maria Berenice Dias em sintonia com o reconhecimento das uniões de pessoas
do mesmo sexo no âmbito do Poder Judiciário ensejou que:

O surgimento de um novo ramo do direito: Direito Homoafetivo. Não é mais possível


aceitar que em um Estado livre, democrático e laico, como o Brasil, líderes religiosos influen-
ciem a atividade política para impor comportamentos considerados como “adequados”
(DIAS, 2014, p. 162).

A autora continua expondo e destacando alguns princípios que fundamentam


e ditam esse novo ramo do direito da seguinte forma:

Os princípios da liberdade e da igualdade devem presidir a sistematização deste novo


ramo do direito. Afinal, o respeito à dignidade humana impõe o respeito à diversidade. Não
mais se concebe conviver com a exclusão e com o preconceito de um Estado que se quer
Democrático de Direito. (DIAS, 2014, p. 162).

Sendo assim é possível extrair a necessidade de haver uma normatização, ser-


vindo como um guia ao Poder Judiciário, estabelecendo segurança à sociedade e
permitindo um maior debate da disciplina na sociedade.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 9


ESPECIAL

Nessa corrente de evoluções e mudanças ocorridas a partir das decisões do


Superior Tribunal de Justiça com o Recurso Especial 889.852-RS (2006/0209137-4);
Relator Min. Luis Felipe Salomão, DJ 10/08/2010, julgamento 27 de abril de 2010
e pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277
e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 as igualdades
foram expostas e assim as uniões homoafetivas obtiveram uma concreta recepção
ao ordenamento jurídico brasileiro.
Rolf Madaleno destaca no julgamento do STF que:

Tese consagrada pelo STF ao reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo,
e não obstante este julgamento, ainda podem ser encontradas manifestações pessoais con-
trárias e favoráveis às uniões homoafetivas, mas, diante do efeito erga omnes da decisão do
Supremo Tribunal Federal, sem mais nenhuma repercussão que pudesse impedir o reco-
nhecimento judicial da união entre pessoas do mesmo sexo (MADALENO, 2018, p. 1438).

Sendo assim não podendo mais prevalecer pensamentos anteriormente mani-


festados por Guilherme Calmon Nogueira da Gama no sentido de que:

A Constituição Federal de 1988 expressamente introduziu, ao reconhecer a ‘união estável’


como entidade familiar, o requisito objetivo de que somente a união entre o homem e a mulher
pode configurar união fundada no companheirismo, excluindo, portanto, a possibilidade de
se reconhecerem as uniões entre homossexuais, mesmo que desimpedidos, convivendo com
lapso de tempo razoável, com o objetivo de constituição de família. [...] Ainda que o rol consti-
tucional em matéria de entidades familiares não seja exaustivo, nesse particular é imperativa
a edição de lei regulando o tema das uniões homoafetivas. (GAMA, 2008, p. 155).

A possibilidade da união homoafetiva no ordenamento jurídico brasileiro observa-


se que atualmente não se diferencia mais as famílias pela ocorrência de casamento,
inclusive nem mesmo a existência de filhos, que é objeto essencial para que a convi-
vência de duas pessoas seja admirável de proteção constitucional e reconhecimento.
Conforme destaca Angelita Maders:

Com a transformação da sociedade as estruturas familiares ou família natural se modi-


ficaram e surgiram novos modelos, como o casamento religioso, o civil, a união estável, a
entidade familiar e, entre essas, podemos incluir aquela decorrente de relações homosse-
xuais. (GAMA, 2008, p. 155).

Conclui-se, portanto que mesmo tendo ocorrido um reconhecimento tardio,


hoje é possível a existência, a paridade e o reconhecimento da união homoafetiva
junto do ordenamento jurídico brasileiro, mesmo que ainda não exista direito posi-
tivado em forma legislativa, o efeito erga omnes da decisão do Supremo Tribunal
Federal tratou do assunto de forma efetiva.

A UNIÃO HOMOAFETIVA COMO UNIDADE FAMILIAR

A família é o elemento identificador do indivíduo em sociedade. E com a evo-


lução natural da sociedade, novas estruturas familiares surgiram, dentre eles a
família homoafetiva objeto específico do trabalho.

10 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


É necessário dispor a respeito das conjunções familiares anteriores a família
homoafetiva, tendo seu início na família matrimonial, ou seja, o casamento entre
homem e mulher como destaca Rolf Madaleno:

O casamento identifica a relação formal consagrada pelo sacramento da Igreja, ao unir


de forma indissolúvel um homem e uma mulher e cujos vínculos foram igualmente soleni-
zados pelo Estado, que, durante largo tempo, só reconheceu no matrimônio a constituição
legítima de uma entidade familiar, marginalizando quaisquer outros vínculos informais.
(MADALENO, 2018, p. 47).

Já para Maria Berenice Dias:

O casamento gera o que se chama de estado matrimonial, no qual os nubentes ingressam


por vontade própria, por meio da chancela estatal. Historicamente a família nasce quando
da celebração do casamento, que assegura direitos e impõe deveres no campo pessoal e
patrimonial. (DIAS, 2016, p. 232).

Este tipo de estrutura familiar por muito tempo “foi a única forma reconhecida
de família, independentemente da existência de amor e afeto entre os integrantes.”
(AZAMBUJA, 2018, p. 11).
Sendo assim, a família matrimonial foi a base da sociedade e configurando a
partir dela, novos arranjos familiares.
Dentre suas ramificações está à família monoparental que caracteriza pela pos-
sibilidade de existir uma unidade familiar composta pela figura do pai ou da mãe
e sua prole, decorrente de diversas possibilidades como destaca Rolf Madaleno:

A monoparentalidade, no entanto, não decorre exclusivamente da natalidade de mães


solteiras e dos divórcios e dissensões conjugais e afetivas, sendo também identificada no
processo unilateral de adoção, ou na inseminação artificial de mães carentes de parceiros
ou descompromissadas, na separação de fato, na chamada inseminação post mortem e no
caso de tutela realizada por uma única pessoa.
Outro fator responsável pela disseminação do modelo monoparental de família certa-
mente origina do reconhecimento constitucional da igualdade da filiação, encerrando o
execrável ciclo da legitimidade da prole em razão do casamento e discriminando os filhos
do amor, porque adotivos, naturais, incestuosos ou extraconjugais.
A monoparentalidade também pode ter uma causa acidental com o falecimento de um
dos cônjuges ou parceiros, ou fatores de ordem econômica, temor pela perda de benefí-
cios previdenciários e descrença em novos relacionamentos, mães solteiras que assumem a
produção independente e ainda as relações de concubinato, nas quais as mulheres cuidam
sozinhas dos filhos que tiveram com seu amante, que é casado e vive com sua esposa.
(MADALENO, 2018, p. 84).

Maria Berenice Dias destaca a previsão junto da Constituição Federal previsto


no art. 226 § 4º como:

Constituição Federal, ao alargar o conceito de família, elencou como entidade familiar


uma realidade que não mais podia deixar de ser arrostada (CF 226 § 4º): a comunidade

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 11


ESPECIAL

formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Esses núcleos familiares foram cha-
mados pela doutrina de famílias monoparentais, para ressaltar a presença de somente um
dos pais na titularidade do vínculo familiar.
A expressão é pertinente, pois não se pode negar caráter familiar à união de afeto que
caracteriza as entidades com somente uma parentalidade.( DIAS, 2016, p. 469/470).

Ou seja, a relação monoparental é protegida pelo vínculo de parentesco de


ascendência e descendência, ocorrendo assim à interrupção da triangulação nas
relações como aduz Maria Berenice Dias:

A família deste novo século não se define mais pela triangulação clássica, pai, mãe e
filho. O critério biológico, ligado aos valores simbólicos da hereditariedade, deve ceder
lugar à noção de filiação de afeto, de paternidade social ou sociológica.( DIAS, 2016, p. 469).

Sendo assim, independente de como a família monoparental se origine, sempre


será uma família, merecedora da proteção do Estado.
Dando continuidade aos arranjos, obtivemos dentre suas variações o denomi-
nado concubinato, ou seja, advinha das “uniões de pessoas que não eram casadas”
(AZAMBUJA, 2018 jun./jul. p. 14), tendo sua previsão no Código Civil de 2002 no
art. 1.727 em que “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos
de casar, constituem concubinato.” (BRASIL. Lei nº 10.406/2002).
Maria Dias Berenice destaca que “o vocábulo concubinato carrega consigo o
estigma do preconceito. Historicamente, sempre traduziu relação escusa e peca-
minosa, quase uma depreciação moral.” (DIAS, 2016, p. 388/389).
Sendo assim, de forma clara concubinato se caracterizada por dispor da seguinte
maneira:

Eram chamados de concubinos aqueles que viviam juntos, sem contrair matrimônio,
mesmo que não houvesse nenhum tipo de impedimento para tanto. Apenas por opção,
preferiam não casar. De outro lado, também eram chamados de concubinos aqueles que,
mesmo casado, estabeleciam união com outra pessoa paralelamente.( AZAMBUJA, 2018,
jun./jul. p. 14).

Ainda no seu pensamento, a autora Mariana Menna Barreto Azambuja continua:

Para estabelecer diferença entre esses dois tipos de união, uma plenamente legal e
pública e a outra, em regra, furtiva e clandestina, a doutrina se encarregou de fazer a dife-
renciação. A primeira ficou conhecida como concubinato puro, enquanto a segunda, con-
cubinato impuro. (AZAMBUJA, 2018 jun./jul. p.14).

Outro ponto importante é que mesmo com o advento do Código Civil de 2002
e suas diversas inovações, o legislador ainda manteve uma névoa nos tratamentos
das relações paralelas, o já exemplificado concubinato, sendo conceituado pelo
autor Fernando Rene Graeff:

No entanto, uniões paralelas ao casamento (ou a uma união estável), chamadas pela dou-
trina e pela jurisprudência de concubinato impuro ou adulterino, e atualmente denominadas

12 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


simplesmente de concubinato, jamais receberam tratamento legal que lhes tenha atribuído
efeitos, cuidando o legislador civilista apenas de diferenciá-las das uniões estáveis. Nem
mesmo as diversas inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 na esfera do Direito de
Família e das Sucessões foram suficientes para conferir mínimo tratamento legal às rela-
ções paralelas, permanecendo, nesse tocante, uma grande lacuna na legislação brasileira.
(GRAEFF, 2012, p. 3).

Neste tipo de relacionamento, “por não ser reconhecida como família, as


dissoluções de casais concubinos eram realizadas no âmbito do direito obri-
gacional, por meio de ação de dissolução de sociedade de fato.” (AZAMBUJA,
2018 jun./jul. p.14).
O entendimento de que concubinato não se configura entidade familiar, mas o
de sociedade da fato, decorre da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, editada
no ano de 1964, na qual dispõe que se “comprovada a existência de sociedade de
fato entre concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com partilha do patri-
mônio adquirido pelo esforço comum.”
Outro fenômeno comum da época, eram as ações por indenização por serviços
prestados pelas mulheres.( TJ-RS – AC: 70047754296 RS 20/03/2013),
Segundo Mariana Menna Barreto Azambuja, esse fenômeno decorria:

Já que não eram reconhecidas como esposas, requeriam ao Judiciário que, a título
indenizatório, recebessem um montante em dinheiro pelo tempo e cuidado despendidos
à relação amorosa, nela incluindo serviços domésticos e, inclusive sexuais.( AZAMBUJA,
2018 jun./jul. p.14).

Sendo assim, o concubinato evoluiu com o advento da Constituição Federal de


1988, dando a matéria acento junto da legislação pátria. Mariana Menna Barreto
Azambuja destaca o art. 226, § 3º que agora o denomina de união estável, adqui-
rindo assim seu espaço na esfera das relações familiares.( AZAMBUJA, 2018 jun./
jul. p.15.)
O artigo prevê “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua con-
versão em casamento.”
A autora ainda destaca que:

A carta Magna de 1988 é reconhecida até hoje pelo seu condão de valorização do
“ser” em detrimento do “ter”, isto é, deixa-se de lado a patrimonialização das relações,
para dar lugar à repersonalização. O preconceito é deixado de lado e o direito à igual-
dade entre gêneros é concretizado. Assim, passa-se a valorizar o sentimento humano,
o afeto. A partir daí, o concubinato puro deixa de existir e dá lugar à união estável,
agora reconhecida como entidade familiar junto ao casamento. ( AZAMBUJA, 2018
jun./jul. p. 15.)

Podendo adentrar de fato nas denominadas uniões estáveis que é a relação


entre homem e mulher que não tenham impedimento para o casamento. A grande
característica é a informalidade e, em regra, não há registro, embora possa obter
oficialidade. No art. 1.723, o Código Civil o define:

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 13


ESPECIAL

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os
impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa
casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2º As causas suspensivas do art. 1.523
não impedirão a caracterização da união estável.

Para Álvaro Villaça de Azevedo, a união estável é:

A convivência não adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de


um homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se casados
fossem, sob o mesmo teto ou não, constituindo, assim, sua família de fato. (AZEVEDO,
Março/2000).

A Lei nº 9.278/1996 pressupõe, contudo, que, para ficar configurada a existência


de união estável, “é reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura,
pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de
constituição de família”, ou seja, variedade de sexos e demonstrando as condições
de estabilidade, continuidade e publicidade.
Ainda no sentido, Mariana Menna Barreto Azambuja anota que a união
depende apenas da relação entre homem e mulher e traz algumas caracterís-
ticas da relação como “a necessidade de convivência pública, contínua e dura-
doura, facilitando, assim, o reconhecimento de uniões que já existiam há anos
e que esperavam somente a titularidade de família.” (AZAMBUJA, 2018 jun./jul.
p. 16).
Antes de adentar nos arranjos homoafetivos, é necessário dispor sobre as famí-
lias Eudemonistas refere à família que buscam a realização plena de seus mem-
bros, caracterizando-se pela comunhão de afeto recíproco, princípio de destaque
no decorrer do trabalho e a consideração e o respeito mútuos entre os membros
que a compõe, independente do vínculo biológico.
Para Maria Berenice Dias família Eudemonista é:

A busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejam o reco-


nhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da
vida. As relações afetivas são elementos constitutivos dos vínculos interpessoais. A possi-
bilidade de buscar formas de realização pessoal e gratificação profissional é a maneira de
as pessoas se converterem em seres socialmente úteis. Para essa nova tendência de iden-
tificar a família pelo seu envolvimento afetivo surgiu um novo nome: família eudemonista,
que busca a 2016. p. 222).

Rolf Madaleno complementa:

O termo família eudemonista é usado para identificar aquele núcleo familiar que busca
a felicidade individual e vive um processo de emancipação de seus membros. O Direito de
Família não mais se restringe aos valores destacados de ser e ter, porque, ao menos entre
nós, desde o advento da Carta Política de 1988 prevalece a busca e o direito pela conquista
da felicidade a partir da afetividade.( MADALENO, 2018, p. 69).

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Encerra-se este tipo de família enfatizando que este tipo de arranjo altera a
proteção jurídica da família como um núcleo, emanando a proteção para o sujeito
como aduz Maria Berenice Dias.

Eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido da busca pelo sujeito de sua felicidade.
A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento legal altera o sentido da proteção
jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira
parte do § 8º do art. 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram. (DIAS. 2016, p. 222).

A partir dos tipos de família expostos, surgem naturalmente os arranjos for-


mados por homossexuais, a denominada família homoafetiva.
Para demonstrar o panorama nacional, o Brasil tem enfrentado mudanças
demográficas visíveis nas últimas décadas como demonstra o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística no Censo Demográfico de 2010 onde constatou:

Entre 2004 e 2013, a participação na população das famílias formadas por casal hetero-
afetivo com filhos caiu de 50,9% para 43,9%, ao mesmo tempo em que cresceu a presença
de outros arranjos familiares. No censo demográfico de 2010, o IBGE identificou quase 60
mil famílias homoafetivas vivendo em um mesmo domicílio. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS. ONU. 2015, p. 2).

O tema demonstra barreiras, característica do surgimento de novos tipos de


família, mas que o tema aponta crescente formalização dessas uniões na socie-
dade Brasileira.
A autora Mariana Menna Barreto Azambuja caracteriza o surgimento das novas
uniões da seguinte forma:

O problema que surge, então, é superar o conservadorismo que anda mantém a expressão
“desde que entre homem e mulher” como requisito essencial para fins de reconhecimento
de novas uniões. É nesse aspecto que se faz necessário o estudo das relações homoafe-
tivas. (AZAMBUJA, 2018 jun./jul.p.16). Rolf Madaleno destaca que os vínculos precisam ser
oficialmente reconhecidos:
Vínculos forjados em foro íntimo precisam ser oficialmente reconhecidos, pois seus inte-
grantes desejam organizar socialmente suas vidas e fortalecer, sob os auspícios legais e jurí-
dicos, os seus laços homoafetivos, que sempre estiveram presentes na sociedade, contudo
só não eram reconhecidos pela lei, não obstante a natureza não se cansasse de contrariar
o legislador, que ainda reluta em reconhecer entidade familiar que não seja formada por
um homem e uma mulher.( MADALENO, 2018, p. 69).

Podendo assim adentrar aos núcleos familiares homoafetivos, tipo de família


que é constituído por pessoas do mesmo sexo, unidas por vínculos afetuosos, enti-
dade familiar que não é formada por um homem e uma mulher.
Por muito tempo, pessoas do mesmo sexo não podiam ser consideradas como
família, já que a proibição existente advém de legislação constitucional no art.
226, § 3º da Constituição Federal de 1988 e infraconstitucional nos arts. 1.514
e 1.723 do Código Civil de 2002, havendo assim a necessidade de configurar

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ESPECIAL

a instituição familiar apenas entre homem e mulher. (AZAMBUJA, 2018jun./


jul.p. 16).
Neste ponto, é necessário que os dispositivos da Magna Carta, são vinculados
aos direitos e garantias fundamentais, independente de lei ordinária que a regu-
lamente sua aplicabilidade de forma diferente como destaca Pedro Lenza:

Parece, então, que a união homoafetiva, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III – regra-matriz dos direitos fundamentais), do direito à intimidade (art. 5, X), da
não discriminação, enquanto objetivo fundamental do Estado (art. 3º, IV), da igualdade em
relação ao tratamento dado à união estável entre um homem e uma mulher (art. 5º, caput),
deva ser considerada entidade familiar e, assim, ter o tratamento e proteção especial por
parte do Estado, exatamente como vem sendo conferido à união estável entre um homem
e uma mulher. (LENZA, 2010, p. 951).

Muito embora as relações homoafetivas sempre existissem, Mariana Menna Bar-


reto Azambuja destaca o tratamento que era configurado nas relações homoafetivas:

As uniões homoafetivas existiam, mas não eram consideradas como relação familiar,
sendo que todos direitos e deveres oriundos de tal relacionamento eram resolvido no
âmbito do direito das obrigações e não do direito de família, demonstrando total descaso
por parte da sociedade e do Estado com milhares de pessoas que viviam em tal realidade.
(AZAMBUJA, 2018, jun./jul.p.16).

A autora ainda destaca que “diante dos inúmeros casos envolvendo relaciona-
mentos com pessoas do mesmo sexo” (AZAMBUJA, 2018, jun./jul. p. 17). a dou-
trina e a jurisprudência, foi colocada na obrigação de deixar o conservadorismo
que embasava as relações de lado, “em nome do direto, das solução aos casos.”
(AZAMBUJA, 2018, jun./jul. p. 17).
No Brasil a legislação ainda exige que exista diversidade de sexo no casamento
conforme está previsto no art. 1514 do Código Civil da seguinte forma “O casa-
mento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante
o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”
estabelecendo assim pensamento diverso sobre está previsão legal.
Cumpre destacar que não existe legislação vigente que trate da família homo-
afetiva, mesmo sendo uma realidade latente dos tempos atuais, sendo discutida
apenas na esfera jurisprudencial e doutrinal.
No panorama atual, século 21, em virtude de vivermos em um País laico “Carac-
terística do que ou daquele que não faz parte do clero; que não pertence à insti-
tuição ou ordem religiosa: empresa laica; escola laica; Estado laico,” é encontrado
diversas dificuldades para seu reconhecimento, pois ainda paira uma mescla entre
os valores da sociedade e os valores pregados pela religião.
Pela inexistência de uma legislação para dar garantias legais a essa nova modali-
dade de família, estão sendo violados assim os mais diversos princípios fundamen-
tais contidos em nossa Constituição Federal, como traduz Roberta Carvalho Vianna:

[...] Entre princípios fundamentais que regem a sociedade brasileira, contida nos pri-
meiros artigos da Constituição Federal, estão as normas que protegem a dignidade da

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pessoa humana, a busca de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da margi-
nalização dos indivíduos e a promoção do bem estar de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação [...]. (VIANNA 2018 p. 526).

A não existência de previsão legal da união homossexual no Direito Brasileiro


deve ser amplamente discutida, já que a existência da família homoafetiva é uma
realidade em nossa sociedade, sendo de fundamental importância a existência
de garantias legais.
O tempo avança e a sociedade muda. A legislação deve incorporar a evolução
social, harmonizando-se com a realidade da sociedade. O direito resulta da von-
tade social, devendo se adequar com a forma em que vive a sociedade. (NADER,
1998, p. 21).
O art. 226 da Constituição Federal é o que permite classificar como entidade
familiar qualquer união que possua efetividade, estabilidade e ostentabilidade.
Com isso, o princípio protegido pelo art. 226 que é a proteção das famílias afetivas,
combinado com os princípios da dignidade humana e isonomia.
Os indivíduos quando constituem uma união heterossexual ou uma união
homoafetiva, possui o mesmo objetivo, qual seja constituir uma família com base
no afeto, buscando a realização pessoal através da vida em comum, mútua assis-
tência, existindo a convivência pacífica e duradoura.
Neste sentido muito embora seja perceptivo que grande parte da população
ainda não reconheça o caráter familiar de casais homoafetivos, há algum tempo
a jurisprudência difusa realizou tal reconhecimento através do Supremo Tribunal
Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e
Arguição de Descumprimento de Preceito Formal (ADPF) 132, de relatoria do
Ministro Ayres Britto, que, pelo efeito vinculante que lhe carrega, deve se sobres-
sair perante o ordenamento jurídico.
Além disso, o Conselho Nacional de Justiça emitiu no ano de 2012 a resolução
nº 175 (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 175) que determinou
“é vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de
casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de
mesmo sexo. Dessa forma os casais homossexuais, além do reconhecimento da
união estável, obtiveram a possibilidade de contrair casamento, podendo assim
ignorar o disposto no art. 1.565 do Código Civil na tocante exigência de pluralidade
para efetivação do casamento. ( AZAMBUJA, 2018 jun./jul. p. 19).
Rolf Madaleno elenca ainda a corrente trazida a partir da resolução do Con-
selho Nacional de Justiça como:

A Resolução nº 175/2013 do CNJ dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento


civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo, tor-
nan-do-se incontroversa a possibilidade do casamento direto dos casais homoafetivos ou
pela conversão em matrimônio da precedente união estável. O tempo tratou de norma-
lizar sua prática, sinalizando inclusive para o casamento direto, como antes da Resolução
nº 175/2013 vinha sendo noticiado pela imprensa, a partir de decisões judiciais de São
Paulo, de Sergipe, ou do Provimento 06/2012 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado
de Sergipe, e bem assim o Provimento Conjunto nº CGC/CCI 12/2012 da Corregedoria-
Geral da Justiça da Bahia, cujo art. 44 introduziu regras para lavrar a certidão de casamento

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ESPECIAL

civil para pessoas do mesmo sexo, não obstante projetos do legislativo, em especial a
Proposta de Emenda Constitucional e do Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual,
que demoradamente buscam a liberação do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo,
tendo tais iniciativas expurgado esse ranço de preconceito que ainda se fazia presente nas
decisões que relutavam teimosamente em conceder a efetiva igualdade constitucional.
(MADALENO, 2018, p. 72).

Atualmente em decorrência dos avanços, a jurisprudência tratou do assunto,


inserindo em âmbito nacional as discussões que abordam a família homoafetiva,
iniciando assim a busca pela proteção jurídica que tanto dependem as uniões
homoafetivas e muito embora avanços no tema tenham acontecido, Mariana
Menna Barreto Azambuja destaca que infelizmente:

Mesmo com as tentativas de avanço por parte da legislação, doutrina e jurisprudência,


permanece uma resistência por parte da sociedade, que insiste em fechar os olhos para a
realidade/felicidade alheia (AZAMBUJA, 2018, jun./jul. p. 20).

Conclui-se que embora tenha ocorrido um ganho de espaço na sociedade as


uniões homoafetiva, ainda que a passos curtos se comparado as uniões heterosse-
xuais é necessário enfatizar que a importância do afeto na noção atual de família,
embasando assim a tão almejada igualdade de uniões.

A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS E OS DIREITOS HU-


MANOS

É indispensável fazer uma ampla proteção jurídica das uniões homoafetivas,


sendo importante destacar as mais diversas posições doutrinárias quanto ao assunto.
É normal existir posições favoráveis e contrarias aos mais variáveis assuntos e a
união homoafetiva não poderia ser diferente.
É notável destacar de inicio o posicionamento de Débora Brandão quanto os
aspectos da união matrimonial.

É a sociedade do homem e da mulher que se unem para perpetuar sua espécie, para
se ajudar, por assistência mútua, a suportar o peso da vida e para compartilhar do mesmo
destino. No direito brasileiro, [...] “casamento é um ato solene pelo qual duas pessoas de
sexos diferentes se unem, [...] sob promessa recíproca de fidelidade no amor e da mais
estreita comunhão de vida.” [...] Mais recentemente somam-se aos conceitos de Silvio Rodri-
gues, Caio Mário da Silva Pereira e Maria Helena Diniz, respectivamente: “o casamento é o
contrato de Direito de Família que tem por fim promover a união do homem e da mulher,
de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole
comum e se prestarem mútua assistência.” O casamento é a união de duas pessoas de sexo
diferente, realizando uma integração fisiopsíquica permanente. “É o vínculo jurídico entre
homem e mulher que visa ao auxílio mútuo e espiritual, de modo que haja uma integração
fisiopsíquica e a constituição de uma família legítima.” [...] A doutrina ensina que para haver
casamento é preciso que haja a diversidade de sexos, a celebração solene e a manifestação
do consentimento dos nubentes. [...] Assim, a análise da teoria da inexistência se impõe.
(BRANDÃO, 2002, p. 62-71).

18 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


Aduz também os artigos da declaração de Direitos Humanos nos seus artigos:
Artigo I - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade. (Declaração Universal dos Direitos Humanos p. 4); Artigo
II – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades esta-
belecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (Declaração Universal
dos Direitos Humanos p. 5). Verificamos que não poderá existir conforme a legis-
lação internacional, nenhum tipo de discriminação.
Contudo, não sendo corrente unitário o não reconhecimento da união homo-
afetiva traz o posicionamento de acordo com Guilherme Nogueira da Gama da
seguinte forma:

Não fora o acaso que demovera o legislador constituinte a inserir por expresso na Carta
Política ser passível de configurar uma entidade familiar, somente a união entre o homem e
a mulher, excluindo, induvidosamente, o reconhecimento como família, das uniões homos-
sexuais, sendo inexistentes na legislação civil o casamento e a união estável entre pessoas
do mesmo sexo (arts. 1.514, 1.517, 1.565, 1.723, 1.726 e 1.727 do Código Civil brasileiro e
art. 226, § 3º, da Constituição Federal). E, concluía Guilherme Calmon Nogueira da Gama,
que: “com maior razão, portanto, não é possível o reconhecimento da união estável entre
pessoas do mesmo sexo, já que, tradicionalmente, o casamento entre elas é inexistente, no
Direito.”( MADALENO, 2018, p. 1438-1439).

Percebe-se então uma resistência quanto à previsão legal do reconhecimento


das uniões homossexuais pela simples tradição de não haver garantias na legis-
lação civil que fundamente e de origem a proteção jurídica na família homoafetiva.
Encontra-se corrente contrária ao principio da afetividade familiar como caráter
principal na formação das novas modalidades de união conforme se posiciona
Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves: (CHAVES, 2004. p. 382).

Para quem a família está adiante da mera união livre de duas pessoas de sexos diferentes
ou iguais, e verifica que o afeto também pode envolver pessoas casadas em uma relação adul-
terina, e disso a Constituição Federal não trata ao conferir proteção estatal à entidade familiar.
A família constitucional foi concebida como sendo a base do edifício social, em um ambiente
natural e próprio para a procriação e desenvolvimento da prole, sem comportar a abrangência
atribuída por alguns juristas, pois também não encontrava o desembargador Sérgio Chaves
nenhum resquício de núcleo familiar na união de dois homens ou de duas mulheres, apenas
pelo fato de nutrirem afeto entre si, observando que o fato jurígeno a demandar a especial pro-
teção do Estado é a constituição de uma família, e sua função social. (MADALENO, 2018, p.1439).

Sendo assim, é possível considerar que atualmente o conceito de família deixou


de ser apenas entre homens e mulheres, pois a procriação deixou de ser elemento
essencial passando a vigorar a relação afetiva entre as partes como destaca Silvio
Neves Baptista “A base da família deixou de ser procriação, a geração de filhos, para
se concentrar na troca de afeto, de amor, é natural que mudanças ocorressem na
composição dessas famílias.” (BAPTISTA, 2014, p. 30).

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ESPECIAL

Paulo Lôbo corrobora em que união homoafetiva deve ser tratada como uni-
dade familiar da seguinte maneira: “a união homoafetiva é reconhecidamente uma
entidade familiar, desde que preenchidos os requisitos de afetividade, estabilidade
e ostensibilidade e a finalidade de constituição de família.” (LÔBO, 2015, p. 79).
Outro ponto fundamental é o fato de que a Constituição Federal não vedar o
relacionamento entre pessoas do mesmo sexo com finalidades familiares já que
no caput do art. 226 da Constituição Federal diz que: “A família, base da sociedade,
tem especial proteção do Estado”.
Não há qualquer menção a respeito de quem compõe a unidade familiar, ou
seja, qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade e estabilidade
deve ser considerada família. Dessa forma, a tutela trazida pelo artigo demonstra
proteção às famílias afetivas, permitindo assim uma tutela do constitucional para
as uniões homoafetivas.
A Constituição Federal não estabeleceu em seu art. 226 nenhum significado
jurídico restritivo. Desta forma, não há qualquer tipo de vedação prevista na
Constituição que impossibilite à equiparação dos casais homoafetivos as uniões
estáveis, devendo considerar também a aplicação dos princípios já abordados,
que emanam equidade entre os seres humanos, gerando tratamentos igualitários
entre todos, sem distinção.
Em que pese até então, não ser possível reconhecer uma união estável homo-
afetiva já que a mesma era rejeitada por se opor ao que era previsto no art.
1.723 do Código Civil em que os companheiros deveriam ser de sexos opostos
gerando assim o indeferimento de todo e qualquer pedido conforme jurispru-
dências existentes.
Vê-se então a necessidade de que haja uma proteção jurídica das relações
homoafetivas, o que só ocorreu quando sobreveio decisão paradigma do Supremo
Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277
que estabeleceu um marco para as relações homoafetivas como destacou o ex-
ministro Ayres Britto relator da decisão na seguinte forma:

Argumentou que o art. 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de
sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função
de sua preferência sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta
para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação
da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do art. 3º da CF. (BRASIL. STF
– SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo Reconhece união homoafetiva).

Em análise ampla da decisão é possível perceber que tal veredito proferida em


âmbito nacional veio para garantir os direitos e deveres já previstos, lutando desta
maneira contra interpretações diferentes das decisões que depreciavam a união
homoafetiva independente da descriminação nela contida.
Destacam-se alguns dos demais posicionamentos dos ministros na ocasião
como do ministro Celso de Mello que às uniões homoafetivas deve receber o
mesmo tratamento atribuído às uniões heterossexuais. “Toda pessoa tem o direito
de constituir família, independentemente de orientação sexual ou identidade de
gênero” (STF – Supremo Tribunal Federal Stf – Ação Direta De Inconstitucionali-
dade 4.277, Distrito Federal, p. 256).

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O ministro Luiz Fux evidenciou que se a homossexualidade é um traço da perso-
nalidade, caracterizando assim a humanidade de determinadas pessoas. “Homos-
sexualidade não é crime. Então porque o homossexual não pode constituir uma
família?”, questionou o ministro, respondendo que “Por força de duas questões
abominadas pela Constituição Federal, que são a intolerância e o preconceito”.
Segundo Fux, todos os homens são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza. Assim, “nada justifica que não se possa equiparar a união homoafetiva à
união estável entre homem e mulher”. O ministro ainda ressaltou que “se o legis-
lador não o fez, compete ao tribunal suprir essa lacuna” (STF – Supremo Tribunal
Federal Stf – Ação Direta De Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal. p.78).
Considerando-se possível a união estável entre as pessoas do mesmo sexo,
verifica-se ser plenamente possível reconhecer o direito de estes indivíduos ado-
tarem em conjunto.
Tratar da união homoafetiva com o manto do direito de família impõe pro-
porcionar aos homossexuais o direito à paternidade/maternidade. (BARANOSKI,
2016, p. 94).

A pertinência em se tratar de homossexualidade quando o tema é família não tem uma


resposta simples. É fato que hoje homossexuais ocupam não apenas o lugar de filhos, mas
o de pais, na estrutura familiar. A discussão a respeito não inaugura essa realidade social, dá
apenas visibilidade a tal condição e a inclui na pauta da conquista de direitos, concorrendo
para a extensão da concepção de entidade familiar [...] (UZIEL, 2007, p. 197).

A Constituição Federal de 1988, em conjunto com o Estatuto da Criança e do


Adolescente e o Novo Código Civil, fornecem instrumentos a serem utilizados
como norteadores da adoção, visando sempre consagrar o princípio do melhor
interesse da criança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o advento dos novos arranjos familiares passou-se a trabalhar e considerar


em especial a união homoafetiva como unidade familiar dentro do ordenamento
jurídico brasileiro, possibilitando assim a equiparação e proteção jurídica dessa
nova modalidade familiar.
Esse ponto é de repercussão geral a partir do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 4277, deixando assim, qualquer omissão legislativa
de lado, concedendo direitos aos casais que buscam a criação de uma família
homoafetiva.
A partir disso foi possível vincular as famílias homoafetivas ao instituto da
adoção, bem jurídico de grande relevância para esse novo arranjo familiar, já que
enfrentam grande dificuldade de formar e criar uma família, ou seja, descendência
a partir dar barreiras genéticas, possibilitando assim àqueles que motivarem inte-
resse em formar uma família com direito e deveres como qualquer outra, existindo
assim viabilidade jurídica.
Enfatiza-se que toda e qualquer forma de amor e afeto deve prevalecer nas
relações socias, afinal a sociedade se modifica e por isso evolui a partir se não de
toda e qualquer relação existente.

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ESPECIAL

REFERÊNCIAS

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envolvendo as relações familiares. Revista Síntese: Direito de Família, São Paulo, v. 19, n. 108, jun./
jul. 2018.
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Março/2000.
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Tribunais, 2002. p. 62-71. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=re-
vista_artigos_leitura&artigo_id=9264&revista_caderno=14. Acesso em: 13 mar. 2020.
BAPTISTA, Silvio Neves. Manual de direito de família. 3. ed. Recife: Bagaço, 2014.
BARANOSKI, MCR. A adoção em relações homoafetivas [online]. 2nd ed. rev. and enl. Ponta Grossa:
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CHAVES, Sérgio Fernando de Vasconcellos. A família e a união estável no novo Código Civil e na
Constituição Federal. In: Direitos fundamentais do Direito de Família. WELTER, Belmiro Pedro e
MADALENO, Rolf Hanssen (Coord.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
DIAS, Maria Berenice, 4. ed. em e-book baseada na 11. ed impressa. Manual de Direito das Famílias.
São Paulo: Livraria RT. 2016.
DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tri-
bunais, 2014.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil família. São Paulo: Atlas. 2008.
GRAEFF, Fernando René. Uniões paralelas e direito das sucessões. Revista da Faculdade de Direito
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LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
MADALENO, Rolf. Direito de família. 8. ed., rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2018. Livro
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MADERS, Angelita Maria. Regulamentação da União Homossexual no Brasil. 2003.
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NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense. 1998.
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source=web&cd=8&cad=rja&ved=0CEwQFjAH&url=http://revista.esmesc.org.br/re/article/
download/41/45&ei=QYZsUOSzL4am8QTryYGwBg&usg=AFQjCNH1SSftEzhEWE4-NQOE_
qykaTdnvA. Acesso em: 13 mar. 2020.
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

PEDRO HOFFMANN HASS é Advogado. Gra- MATHEUS CAETANO BARROS é Advogado.


duado em Direito pela faculdade CESUCA-RS. Graduado em Direito pela faculdade CESUCA-RS.

CRISTIANE FELDMANN DUTRA é doutoranda em Educação na instituição Unilasalle. Mestre em Direito na UniRitter
ARQUIVO PESSOAL

– Laureate International Universities-RS. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e Especialista


em Direito Civil e Processo Civil no Instituto de Desenvolvimento – IDC-RS. Especialista em metodologia e ensino
á distância na Instituição Anhanguera Valinhos-SP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa GPDH- Grupo de pesquisa
em Direitos Humanos na Faculdade CESUCA. Docente de Direito de Graduação e Pós-Graduação.

22 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


DESTAQUE

O risco de subnotificação:
O receio do fenômeno do
Iceberg de anti gravidade
POR Ana Cristina Marques Martins e Marcus Vinicius de Azevedo Braga

O
autor inglês John Adams, no seu livro “Risco” (SENAC Ed., 2009), ao tratar da
confiabilidade dos registros de acidentes de trânsito, traz o conceito de “Ice-
berg de gravidade”, uma constatação de que eventos com mais vítimas fatais
apresentam informações coletadas mais precisas, por haver o envolvimento de
vários atores, mais qualificados, e a sensibilização das famílias e da imprensa.
O óbito é um evento extremo e sem ambiguidades, o que tem como consequência a
maior precisão do seu registro, mas o mesmo pode não se dar com as suas causas, se diluindo
estas em variáveis afetas a localização, idade, e outras que podem gerar o fenômeno da
subnotificação em relação a um determinado diagnóstico, em especial na situação atual da
pandemia da Covid-19, que assombra o mundo pela velocidade e pela incerteza nos efeitos.
Dada a inovação do evento, os agentes responsáveis pelo registro têm dificuldades de
enquadramento, e faltam testes em todos os rincões do país, e quando existem, o prazo de
resposta é por vezes demasiado, além de pela contaminação se demandar um processo de
velório e cremação mais expedito, fatores citados e que favorecem a subnotificação, agra-
vado pelo fato de que quanto mais a situação se agrava, mais profissionais de saúde são
necessários na linha de frente, e o registro pode assumir um papel secundário.
A medida que a pandemia avança, apesar da gravidade crescente, pode-se ter o risco de
subnotificação de óbitos relacionados ao novo vírus também aumentando, podendo, no
exemplo citado, se gerar um “Iceberg de anti gravidade”, com menos informações de eventos
mais graves, o que pode afetar medidas estratégicas epidemiológicas e socioeconômicas,
favorecendo também o risco moral (compensação de risco) dos cidadãos, ao serem menos
cuidadosos por desconhecerem o real cenário da ameaça.
Como dar conta do risco de subnotificação, por ser um ato tão técnico e específico? Busca
ativa de suspeitos, regras claras e explícitas, capacitação, uso de tecnologia da informação e
testes amplos, confiáveis, baratos e de retorno rápido. Sabe-se que parte desses óbitos serão
perdidos e futuramente estimados por meio de análises nos bancos de dados oficiais, pois
embora se espere uma subnotificação de casos relacionadas à Covid-19, ao mesmo tempo o
registro de óbitos, ação já consolidada no país, manterá essas informações que poderão ser
usadas para que se faça no futuro estimativas mais confiáveis do perfil de mortes pela Covid-19.
Contudo, esforços precisam ser feitos para que se identifique o máximo possível de
óbitos relacionados hoje, pois num cenário de pouco conhecimento sobre o perfil da doença,
essa informação é útil para o subsídio das ações de prevenção de morte pelo novo Coro-
navírus. Pode parecer um esforço secundário face a necessidade de controle e do manejo
da doença, mas cada óbito identificado adequadamente trará informações essenciais para
enfrentamento da Covid-19. A notificação adequada também salva vidas, agora e depois.
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

ANA CRISTINA MARQUES MARTINS é Doutora MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA é


em Epidemiologia (Ensp/Fiocruz). Doutor em Políticas Públicas (UFRJ).

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GESTÃO EMPRESARIAL

Obrigatoriedade de
compliance para
contratação pública
POR Wilson De Faria e Camila Chizzotti
DIVULGAÇÃO

“ Existe uma tendência clara para que a implemen-


tação de um Programa de Compliance efetivo seja
requisito para a contratação com o setor público em
todas as unidades da Federação. As empresas que
não se adequaram já estão perdendo espaço para as
empresas que investem em um Programa de Com-

24
pliance e uma equipe dedicada a sua manutenção.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020



A
Lei Anticorrupção (Lei nº 12.864/2013) estabelece sanções para em-
presas envolvidas em atos de corrupção. A Lei estabelece, entre outras
determinações, que companhias com interesse em se valer das atenu-
antes às penas previstas na lei adotem programas de integridade (ou
Programa de Compliance). O Decreto nº 8420/2015, regulamenta diversos aspec-
tos da lei, tais como critérios para o cálculo da multa, regras para a celebração
dos acordos de leniência, disposições sobre os cadastros nacionais de empresas
punidas, mas principalmente parâmetros para avaliação de Programas de Com-
pliance.
Assim, ficou definido no Decreto regulamentador o estabelecimento dos pilares
para um Programa de Compliance efetivo, que são:
• Suporte da alta administração: A alta administração deve apoiar e se envolver
no planejamento e na execução das ações.
• Avaliação de riscos: A avaliação de riscos permite que se conheça todos os
riscos potenciais e seus impactos para a companhia.
• Código de conduta e políticas de Compliance: A adoção de um código de
conduta ética é essencial, de forma que se estabeleça todas as políticas a serem
adotadas na empresa, para manter a conformidade com as leis e garantir uma cul-
tura de integridade e valorização de comportamentos éticos. Ex: Política Anticor-
rupção, Política de Due Diligence de Terceiros, Política de Relacionamento com o
Poder Público, Política de Conflito de Interesses, etc.
• Controles internos: A empresa deve criar mecanismos de controle para mini-
mização de riscos internos e externos.
• Treinamento e comunicação: Para que ocorra o aculturamento de Compliance
na empresa, é necessário que os colaboradores entendam os objetivos, as regras e
o papel de cada um, para que ele seja bem-sucedido. A forma de obter esta fami-
liarização dos colaboradores com o programa, é investir em treinamentos e na
comunicação interna.
• Canais de denúncia: Para garantir a conscientização dos colaboradores quanto
à importância do programa, será necessário implantar canais de denúncia ativos
para alertar sobre violações ao Código de conduta, que pode ser feito por forma de
e-mail, telefone e outras formas de comunicação à disposição dos colaboradores.
• Investigações internas: Quando recebidas denúncias, a empresa precisa
investigar qualquer indício de comportamento antiético e ilícito que tenha sido
noticiado. Em seguida, deve-se tomar as providências necessárias, com as devidas
correções e, conforme o caso, punições.
• Due diligence: Fornecedores, representantes, distribuidores e outros par-
ceiros devem ser submetidos a uma rigorosa due diligence, avaliando o histórico
de cada um deles antes de se estabelecer uma relação contratual, de forma a pro-
teger também as relações dos prestadores externos à companhia, no âmbito de
Compliance.
• Auditoria e monitoramento: O monitoramento deve ser contínuo, avaliando
a correta execução do programa, o funcionamento de cada um dos pilares e o com-
prometimento da companhia com as normas.
Ficou ainda estabelecido nestas normas que a infração administrativa à lei de
licitação sujeitará a pessoa jurídica “a sanções administrativas que tenham como
efeito restrição ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos com
a administração pública”.

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GESTÃO EMPRESARIAL

No âmbito da Administração Pública, os estados e municípios também tem


implantado Programas de Compliance, por meio de leis e decretos próprios, que
se adaptam ao disposto na Lei Anticorrupção.
O Estado do Rio de Janeiro foi pioneiro no estabelecimento da obrigatoriedade
de Programas de Compliance e regras anticorrupção para a contratação com a
Administração Pública. A Lei nº 7.753/17, em seu art. 1º, estabelece a exigência de
implantação de Programa de Integridade nas empresas que celebrarem contrato,
consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privada com a Administração
Pública em contratos superiores aos de licitação por concorrência, sendo estes R$
1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de enge-
nharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços
e cujos contratos sejam iguais ou superiores a 180 (cento e oitenta) dias.
Neste mesmo sentido, outros estados brasileiros estabeleceram suas próprias
leis ou decretos, utilizando os mesmos termos da legislação do estado do Rio de
Janeiro, adaptando apenas a questão acerca dos valores dos contratos acima dos
quais se exige a implantação dos programas de integridade, sendo:
• Amazonas: nos contratos superiores a R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos
mil reais), para obras e serviços de engenharia, e R$ 1.430.000,00 (um milhão, qua-
trocentos e trinta mil reais), para compras e serviços.
• Distrito Federal: nos contratos de valor estimado entre R$ 80.000,00 (oitenta
mil reais) e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais).
• Goiás: nos contratos superiores a R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos
mil reais) para obras e serviços de engenharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cin-
quenta mil reais) para compras e serviços.
• Rio Grande do Sul: nos contratos superiores a R$ 330.000,00 (trezentos e trinta
mil reais) para obras e serviços de engenharia, e acima de R$ 176.000,00 (cento e
setenta e seis mil reais) para compras e serviços.
No Estado do Espírito Santo, todos os fornecedores de bens e prestadores de
serviço estão sujeitos ao Código de Conduta e Integridade. O mesmo ocorre no
Estado de Mato Grosso, onde há exigência de que todos que possuam Programa
de Integridade sejam avaliados pelo Poder Público antes da contratação.
Os Estados de São Paulo, Tocantins, Bahia e o município de Goiânia – GO (PL
236/18) tem Projetos de Lei para instituição de Programas de Integridade para
empresas que contratarem com a Administração Pública.
Os estados que já possuem lei que estabelece a obrigatoriedade do Programa
de Integridade em contratações públicas, como Rio de Janeiro, Distrito Federal e
Amazonas, expõem que existem diferentes formas pelas quais a empresa contra-
tada poderá comprovar a existência e efetividade do programa, tais como docu-
mentos oficiais (políticas, manuais, procedimentos internos, código de conduta,
etc.), canais denúncias, memorandos, atas de reunião, relatórios, fotografias, gra-
vações audiovisuais, ordens de compra, notas fiscais, registros contábeis, entre
outros. Ainda, a autoridade competente para receber o material de comprovação da
conformidade do programa, no momento da contratação, poderá eventualmente
realizar entrevistas e até mesmo solicitar novos documentos para fins de validação.
Por fim, a autoridade competente de auferir a documentação deverá ser o Gestor
do Contrato na administração pública estadual correspondente.
Existe uma tendência clara para que a implementação de um Programa de
Compliance efetivo seja requisito para a contratação com o setor público em todas

26 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


as unidades da Federação. As empresas que não se adequaram já estão perdendo
espaço para as empresas que investem em um Programa de Compliance e uma
equipe dedicada a sua manutenção.
Na tabela abaixo, é possível verificar de forma mais visual e objetiva os estados
que possuem regulamentação ou projetos de lei quanto à exigência do Programa
de Integridade:

ESTADO REGULAMENTAÇÃO TEOR

Institui a exigência do Programa de Inte-


Amazonas Lei Estadual 4.730/18 gridade nas empresas que contratarem
com a Administração Pública do Estado.

Institui a exigência do Programa de lnte-


Bahia PL 23.327/2019 gridade nas empresas que contratarem
com a Administração Pública do Estado.

Obriga a implementação do Programa de


Integridade em todas as empresas que
Distrito Federal Lei Estadual 6.112/18
contratem com a Administração Pública
do Distrito Federal

Determina que as empresas que firma-


rem contrato com a Administração Públi-
Espírito Santo Lei Estadual 10.793/17 ca Estadual deverão seguir o novo Código
de Conduta e Integridade a ser observa-
do pelos fornecedores de bens e serviços.
Cria Programa de Integridade a ser apli-
cado nas Empresas que contratarem com
Lei Estadual 20.489/19
a Administração Pública do Estado de
Goiás Goiás
Obriga implantação do plano de integri-
PL 236/18 (Município de dade nas empresas que contratarem com
Goiânia) o município de Goiânia.

Institui a exigência do Programa de Inte-


Mato Grosso Decreto Estadual 522/16 gridade nas empresas que contratarem
com a Administração Pública do Estado.
Exige a implantação de Programa de In-
tegridade às empresas que celebrarem
Rio de Janeiro Lei Estadual 7.753/17
contrato ou convênio com a Administra-
ção Pública
Lei Anticorrupção e Programa de Integri-
Rio Grande do Sul Lei Estadual 15.228/18 dade em contratos com Administração
Pública
Dispõe sobre a exigência de “Compliance”
São Paulo PL Estadual 498/18 às empresas que contratarem com a Admi-
nistração Pública do Estado do São Paulo.

Exige programa de integridade para em-


Tocantins PL Estadual 8/18 presas que contratem com a administra-
ção pública do Estado.
 
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

WILSON DE FARIA é sócio do WFaria Advogados. CAMILA CHIZZOTTI é Advogada do WFaria


Advogados.

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DIVULGAÇÃO
PLANEJAMENTO FINANCEIRO

Diversifique sem sair


da renda fixa
Não é preciso investir em
ações para diversificar os
investimentos em busca
de melhor retorno

POR Marcia Dessen

“ Invista aos poucos, a tempestade ainda não passou


e pode piorar antes de melhorar.

A
queda acentuada da taxa básica de juros forçou, de cer-
ta forma, os investidores a buscar alternativas de investi-
mento mais rentáveis. Muitos fizeram uma mudança mui-
to abrupta, indo de um extremo, taxa pós-fixada de juros,
para o outro extremo, o mercado de ações.
Saíram de ativos sem nenhuma volatilidade, como o Tesouro Selic,
considerado livre do risco de crédito, para um mercado extremamente
volátil, ações, fundos de ações ou fundos multimercado que investem
em ações.
Entre os dois extremos existem alternativas, dentro do segmento da
renda fixa, que permitem uma diversificação interessante.

28 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


No mercado de renda fixa, o investidor empresta dinheiro, por um prazo pre-
determinado, em troca de rendimentos também predefinidos. Torna-se credor do
emissor do título, sendo o risco de crédito o principal risco da operação.
Os juros são negociados entre as partes, podendo ser pós-fixados, prefixados
ou atrelados a índices de inflação.
A taxa pós-fixada, a mais conservadora delas, acompanha a variação da taxa
básica de juros. O investidor não sabe quanto vai ganhar, em termos absolutos, mas
sabe que ganhará um percentual da taxa de juros, seja ela qual for. Dois exemplos
práticos: o Tesouro Selic paga 100% da Selic, ou seja, 4,25% ao ano, e a poupança
nova paga 70% da Selic, ou seja, 2,97% ao ano, isenta de imposto.
Se a Selic mudar, para cima ou para baixo, a rentabilidade desses investidores
seguirá positiva, pagando a nova taxa a partir da data da alteração. Não existe
chance de perda no caso de venda antecipada dos títulos, por isso são recomen-
dados para investir a reserva financeira.
A taxa prefixada define, na data da compra, o valor de resgate do investidor
na data do vencimento do título. O Tesouro Prefixado, por exemplo, vencimento
1º/1/2026, valor de resgate R$ 1.000, podia ser comprado em 13/3 por R$ 656, ofe-
recendo ao investidor taxa de 7,54% ao ano.
O Tesouro Prefixado com juros semestrais, vencimento 2031, pagava taxa de
8,20% ao ano na mesma data.
É importante lembrar que o que é fixo não é a taxa de juros, mas o valor de res-
gate, na data do vencimento. Antes disso, o valor do título flutua e pode ser maior
ou menor do que o valor de aquisição no caso da venda antecipada.
O Tesouro IPCA+ paga a variação do IPCA mais taxa prefixada de juros. Prazos
longos e recomendados a quem procura taxa real de juros, acima da inflação. Os
juros podem ser pagos no vencimento ou semestralmente. Em 13 de março, o
Tesouro IPCA+ Principal com vencimento em 15/5/2035 pagava juros de 4,05%
ao ano acima do IPCA.
Quem investiu há 12 meses ganhou dinheiro. Simulando compra em 13 de
março de 2019, com as taxas vigentes na época, a rentabilidade acumulada até 13
março de 2020 foi:
– Tesouro Selic 2021 = 5,54%
– Tesouro Prefixado 2025 = 14,30%
– Tesouro IPCA+ 2035 = 9,03%
Mas nem tudo é alegria. Em 12 meses a rentabilidade foi ótima, bem acima da
Selic, beneficiada pela queda nos juros.
Entretanto, nos últimos 30 dias, em razão dos mesmos fatores que derrubaram
a Bolsa, os juros subiram e a rentabilidade dos prefixados ficou negativa, prejudi-
cando somente quem vender antecipadamente os ativos.
– Tesouro Selic 2021 = 0,30%
– Tesouro Prefixado 2025 = -5,28%
– Tesouro IPCA+ 2035 = -13,24%
Invista aos poucos, a tempestade ainda não passou e pode piorar antes de
melhorar.
ARQUIVO PESSOAL

MARCIA DESSEN é Planejadora financeira CFP (“Certified Financial Planner”).

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DIVULGAÇÃO
COMO DECIDEM OS TRIBUNAIS

STF e MP nº 936/2020
Sopesamento entre realidade e
legalidade em tempos de COVID-19

POR Aline Cruvinel

“ O direito está longe de resolver tudo, a justiça é ins-


trumental e não aquela ideal utópica e inatingível, a
conciliação das partes ganhou protagonismo único de
todos para um fim comum. Deve o ato conciliatório ser
encorajado e amplamente amparado pela segurança
jurídica, observadas a boa-fé e o espírito da MP 936.

O
Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 17 de abril, por
maioria, decidiu não referendar a liminar concedida pelo
ministro Ricardo Lewandowski, que dava (devolvia) po-
der aos sindicatos, para questionar acordos individuais
de redução de salário, firmados entre empregados e empregadores,
e autorizados pela Medida Provisória nº 936/2020. A referida MP 936
instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da
Renda, com aplicação durante o estado de calamidade pública reco-
nhecido pelo Decreto Legislativo nº 6/2020.
O Supremo, como guardião da Constituição Federal, por muitas
vezes não se curvou à literalidade das palavras constitucionais, dando
interpretação diversa aos dispositivos claros que ali constam. E esse
foi o caso do art. 6º, inciso IV, que define pontualmente “são direitos
dos trabalhadores (...) irredutibilidade de salário salvo disposto em
convenção ou acordo coletivo”.
Muitos artigos geram dúvidas de interpretação, porém não é o caso
deste que é cristalino. O caminho é claro: “é irredutível o salário salvo
acordo coletivo ou convenção coletiva”.
O acordo individual, como permitido pela MP 936/2020, não se
encaixa nesta disposição constitucional (na prática estaria lhe afron-
tando). Mas sua aplicação prática, em meio à pandemia, empresas,
escritórios e muitos dos próprios sindicados fechados, necessitava de
um certo grau de segurança jurídica. E aí, o resultado do voto do ministro
gerava grande ansiedade por este raciocínio. Todavia, os ministros
Barroso, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Marco
Aurélio, Fux, e Toffoli, trilharam outras concepções, apresentaram

30 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


pontuais e necessários esclarecimentos e considerações, respeitando a nua e dura
realidade dos fatos.
O princípio da primazia da realidade é um princípio forte do direito do trabalho
que imputa à realidade dos fatos um peso soberano acima das provas documentais
construídas por departamentos jurídicos de empresas. Não há folha de ponto que
sobreviva a um depoimento testemunhal que diz que o empregado sempre saiu
3 (três) horas depois de seu expediente. O que vale é o real e, em nosso ponto de
vista, assim foi na análise do Supremo Tribunal Federal, que andou bem ao pre-
venir um desastre jurídico.
Mais de 3 milhões de acordos foram cadastrados no Ministério da Economia
desde a publicação da MP 936. Acordos emergenciais e essenciais, de empresas e
empresários que viram seu fluxo de caixa reduzir a zero. E, ainda que a alocação
do risco seja integral do empregador – sem empresa não há trabalho. O acordo
individual não visava atribuir vantagem ao empregador em desfavor ou prejuízo
do empregado. Pelo contrário, idealizou-se a própria função social da empresa
enquanto feixe de direitos e obrigações e garantidora de empregos – e sua con-
tinuidade. Sujeitar essas negociações, fruto de solidariedade entre empregado e
empregador em um período de crise, ao crivo dos poucos participativos sindicatos
seria um caos impregnado de insegurança jurídica.
A legalidade às vezes esbarra na realidade, como dito pelo ministro Fux, e por
este motivo temos um sistema jurídico aberto herança do pós-positivismo que
permite ao intérprete da norma integrá-la ao fato social. A própria constituição e
legislação infraconstitucional posterior é integralmente impregnada por princípios
socializantes (de função social), como é a função social da terra, do emprego, da
proteção a consumidores, do contrato e da recuperação de empresas, dentre outros
exemplos. Isto porque durante regimes totalitaristas mundo afora (especialmente
em situações de guerra) já observamos que normas foram aplicadas cegamente,
formando uma imensa e cruel aberração “conforme” as leis.
Desde então os princípios gerais (como da função social) e a boa-fé iluminam
o sistema jurídico, dando luz à difíceis interpretações e fazendo com que a digni-
dade da pessoa humana seja o pilar de cada decisão tomada em um estado demo-
crático de direito.
Entre manter o maior número de empregos de forma mais simples, rápida e
eficiente (e porque não possível) e criar entraves às negociações, chamando à mesa
integrantes que há muito tempo não tem lugar. Os ministros do STF entenderam
que manter empregos e facilitar negociações é a regra número 1. E mais, frise-se
que a norma é absolutamente temporária, com prazo de inicio e término deter-
minado – ou seja, não se deixou ao véu da irresponsabilidade quaisquer práticas
em prejuízo a trabalhadores, e sim, fechou-se um brevíssimo espaço temporal
para uma prática em absoluto estado excepcional. Tudo volta à normalidade no
momento seguinte – e aqueles empregos que certamente seriam cortados foram
preservados.
O direito está longe de resolver tudo, a justiça é instrumental e não aquela ideal
utópica e inatingível, a conciliação das partes ganhou protagonismo único de
todos para um fim comum. Deve o ato conciliatório ser encorajado e amplamente
amparado pela segurança jurídica, observadas a boa-fé e o espírito da MP 936.
ARQUIVO PESSOAL

ALINE CRUVINEL é Advogada em São Paulo. Advogada Associada de Cruz & Creuz Advogados. Pós-Graduanda
em Direito Corporativo e Compliance pela Faculdade Escola Paulista de Direito – EPD; Bacharel em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

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SAIBA MAIS

A pandemia do novo
coronavírus e os
impactos causados nos
contratos de locação
não residencial
POR Leonardo Hayao Aoki 

“ O mercado de locações comerciais deve ser for-


temente impactado, com a gradativa adequação dos
preços e, nesse aspecto, cabe aos proprietários e aos
locatários,  terem em consideração, neste momento
de incerteza, que a renegociação extrajudicial dos
contratos é a solução mais adequada e justa.

É
fato público e notório que em razão da pandemia do novo
coronavírus (COVID-19), as empresas em seus diversos seg-
mentos estão impedidas de exercer suas atividades comer-
ciais, notadamente pelo Decreto Estadual que reconheceu o
estado de calamidade pública em São Paulo e pelo Decreto Municipal

32 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


DIVULGAÇÃO
que determinou o fechamento da maioria dos estabelecimentos comerciais que
não exercem atividade essencial.
Essas medidas, embora importantes, são insuficientes para evitar a destruição
de empresas e negócios em geral, especialmente se as medidas estatais que deter-
minam a interrupção da atividade econômica, perdurarem por longos períodos, o
que é bastante provável diante das orientações e recomendações da Organização
Mundial de Saúde, do Ministério da Saúde e da Secretaria de Saúde de São Paulo,
para a manutenção do distanciamento social,  especialmente no mês de abril,  em
que doença deve atingir estágio ainda mais grave de disseminação.
Por conta disso, as  empresas que alugam imóveis para o exercício de suas ati-
vidades e, que neste momento estão impedidas em razão da COVID-19,  estão
socorrendo-se ao Poder Judiciário,  buscando a suspensão da  exigibilidade de todas
as obrigações pecuniárias do contrato de locação, enquanto perdurarem as determi-
nações de suspensão das atividades comerciais e restrição à circulação de pessoas.
Os argumentos jurídicos propostos pelas empresas locatárias estão fincados no
art. 566 do Código Civil que disciplina “O locador é obrigado a garantir, durante o
tempo do contrato, o uso pacífico da coisa”  e no art. 22 da Lei nº 8.245/91 (Lei de
Locações) que prevê “O locador é obrigado a garantir, durante o tempo da locação,
o uso pacífico do imóvel locado”,  bem como na Teoria da imprevisão  e da One-
rosidade Excessiva que foi construída a fim de que mitigar o princípio “pacta sunt
servanda”, autorizando o seu afastamento quando ocorrer alteração brusca e sig-
nificativa das condições existentes no momento da contratação.
Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, no primeiro grau de juris-
dição, em sede de tutela antecipada em caráter antecedente, tem concedido a
tutela (liminar), em favor dos locatários,  para reduzir em 20%, 30% e até 40%, o
valor dos alugueres dependendo do caso examinado.
Numa decisão proferida no dia 03/04 p.p., onde foi concedida a redução em
40% do valor locativo, o magistrado assim consignou:

“Em primeiro lugar, registre-se que a judicialização de questões como a aqui exposta,
que tendem a se repetir na realidade presente, não pode ser caracterizada com outro papel
senão o da pacificação, prezando pela manutenção de relações duradouras e exercendo,

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 33


DIVULGAÇÃO
SAIBA MAIS

caso a caso, a esperada ponderação a fim de encontrar melhor termo para que todos possam
superar um momento de crise.
[...]
A pandemia do coronavírus e as condutas estatais disso decorrentes amoldam-se, com
precisão, ao que se desenha na teoria da imprevisão, autorizadora da revisão dos contratos
ou, em vez disso, de uma modulação temporária voltada à continuidade. Trata-se de evento
externo (a que não se deu causa, pois), fortuito e de força maior, modificando a realidade
prevista no início da contratação e fazendo do seu objeto excessivamente oneroso (ainda
que provisoriamente, repita-se).
[...]”.
 
E, em outra decisão proferida no dia 02/04 p.p., que deferiu a tutela de urgência
para autorizar o pagamento de 30% do valor original do aluguel, o magistrado
assim ressaltou:
 
“[...]
Este é o caso dos autos, na medida em que a pandemia instaurada pela disseminação
rápida e global de vírus até então não circulante entre os seres humanos acabou por levar
as autoridades públicas a concretizar medidas altamente restritivas de desenvolvimento
de atividades econômicas, a fim de garantir a diminuição drástica de circulação de pessoas
e dos contatos sociais.
Tal situação ocasionou a queda abrupta nos rendimentos da autora, tornando a pres-
tação de alugueres nos valores orginalmente contratados excessivamente prejudicial a sua
saúde financeira e econômica, com risco de levá-la à quebra.
Desse modo, cabível a revisão episódica dos alugueres, com a finalidade de assegurar
a manutenção da base objetiva, para ambas as partes, gerando o menor prejuízo possível
a elas, dentro das condições de mercado existentes.
[...]”
 
Nota-se pelas recentes decisões proferidas em sede de tutela de urgência e, que
estão sujeitas a interposição de recursos pelo proprietário/locador para a segunda
instância que poderá revogar(cassar) ou manter as decisões de primeiro grau,
que a temática dos aluguéis está sendo levada em alta quantidade ao Poder Judi-
ciário, gerando até decisões de suspensão de pagamento, como determinou um
magistrado no Distrito Federal autorizando um lojista de shopping a suspender
o pagamento do aluguel.
É certo que os efeitos mais nefastos da crise econômica ocasionada pelo coro-
navírus ainda estão por vir e são imprevisíveis. O que é certo é que o mercado de
locações comerciais deve ser fortemente impactado, com a gradativa adequação
dos preços e, nesse aspecto, cabe aos proprietários e aos locatários,   terem em
consideração, neste momento de incerteza, que a renegociação extrajudicial dos
contratos é a solução mais adequada e justa, em estrita observância ao princípio
da boa-fé contratual. E juntos, de forma colaborativa, todos superarão o período
de crise provocada pela COVID-19.
ARQUIVO PESSOAL

LEONARDO HAYAO AOKI é Advogado do Contencioso Cível do escritório Briganti Advogados.

34 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


EXPRESSÕES LATINAS

DIVULGAÇÃO
Ab irato [impulsu]
POR Vicente de Paulo Saraiva

“ Se justifica o uso da expressão ab irato em face


das citadas hipóteses e circunstâncias, visto como a
indignação (emoção) pode converter-se em paixão,
uma vez cristalizada no ódio.

P
or um [impulso] irado. Ou seja: Por efeito de [um impul-
so] da ira. (Diz-se daqueles atos praticados sob intensa
emoção de revolta, donde se originaram.) Normalmente
diz-se apenas ab irato, omitindo-se o substantivo impul-
so: por isso, irato acha-se no abl. sg. m., por força da preposição ab,
devendo considerar-se no gênero masculino por estar concordando
com o substantivo subentendido [impulsu] (que é desse gênero), em
razão de ser uma forma adjetiva, como particípio passado/perfeito

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 35


EXPRESSÕES LATINAS

que é do verbo irasci. O conjunto – ab irato impulsu – está formando uma locução
adverbial que denuncia um adjunto adverbial de causa.
A expressão tem sido utilizada a propósito da deserdação ou preterição injusta
do herdeiro legítimo em favor de outrem.
No direito romano, pelos idos finais da república pelo menos, a lilberdade de
testar passou a sofrer restrições, visto como certos herdeiros legítimos (os sui o
eram desde o jus antiquum) obtiveram o direito de serem instituídos herdeiros
testamentários – fazendo jus à portio legitima/debita (= quota legítima/devida) –,
a menos que viessem a ser deserdados por justa causa. Porquanto, testar era um
officium pietatis (= uma obrigação moral de ternura): logo, a deserdação era inno-
ficiosa (= ao arrepio desse dever moral), se o testador não tivesse motivos justos
para privar os ditos herdeiros da quota legítima – motivos esses não propriamente
explicitados nas fontes, mas que a Novela 115 veio a arrolar (quatorze motivos para
os descendentes, e oito, para os ascendentes): mas o testador não era obrigado a
mencioná-los. Se o herdeiro, entretanto, considerasse falsos tais motivos ou ine-
xistentes, tinha a seu dispor a querela inofficiosi testamenti (= a queixa/demanda
do [= contra o] testamento [lavrado] ao arrepio do dever de afeição), que devia
ser proposta dentro de cinco anos a partir do falecimento do testador, sob pena
de prescrição. Se procedente a querela (discute-se se era uma ação ou mero inci-
dente da hereditatis petitio [= petição de herança]), seus efeitos retroagiriam, Quia
plerumque parentes sine causa liberos suos exheredant vel omittunt,... hoc colore,
quasi non sanae mentis fuerint [Instas. 2, 18, par.] (= Porque muitas vezes os pais/os
ascendentes deserdam ou preterem seus filhos/descendentes sem [justa] causa,...
[e] sob tal aspecto era como se não estivessem de mente sã). Entre esses estados de
insanidade, inserem-se evidentemente a ira ou o ódio contra o legítimo herdeiro,
em prol de um terceiro.
Nas legislações modernas, a querela praticamente foi banida, acusando-lhe
Clóvis Beviláqua o caráter odioso (como expressão hostil de castigo por parte do
falecido) e inútil (porque a indignidade é suficiente parfa excluir da herança os
que não a merecem).
É verdade que, ainda nas Ordenações Filipinas (L. IV, Tít. 82), se continuava
a fazer referências ao “testamento inoficioso”, considerando-o rescindível, nas
pegadas do direito romano: somente que, a teor do § 2º do mesmo título, a querela
do testamento inoficioso era inútil, porquanto “ao herdeiro instituído... incumbe
provar a causa da desherdação,... para que sêjão excluídos os legítimos. (...) e, ainda
mêsmo que o herdêiro legitimo não estivesse na posse da herança, não seria util uzár
da Querela, porque tem outra Ação mais proficua que [é] a de Petição da Herança”
– consoante pondera GOUVÊA PINTO.
Nomeadamente em nosso direito atual, tanto no Código anterior quanto no
CC/02, se não existia nem existe mais especificamente a querela, não se pode negar,
como sua substituta, a ação ordinária de nulidade – que prescreve em quatro anos,
“contados da abertura da sucessão” (CC, art. 1.815, par. único), ou “a contar da data
da abertura do testamento” (CC, art. 1.965, par. único), com base nos arts. 1.961-1.965
do CC/02. Adverte, entretanto, o caput do art. 1.965 caber ao herdeiro instituído ou a
quem aproveitar a deserdação, “provar a veracidade da causa alegada pelo testador”.
Partindo do pressuposto de que “Os herdeiros necessários podem ser privados
de sua legítima, ou deserdados em todos os casos em que podem ser excluídos da
sucessão” (art. 1.961), acham-se sujeitos à deserdação, em todas as hipóteses do

36 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


art. 1.814, aqueles: “I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de
homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu
cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; II – que houverem acusado calu-
niosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra sua honra,
ou de seu cônjuge ou companheiro; III – que, por violência ou meios fraudulentos,
inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato
de última vontade.”
Por sua vez, os arts. 1.962 e 1.963 prevêem respectivamente a deserdação dos
descendentes por seus ascendentes e vice-versa, verbis:
Art. 1.962. ...
I – ofensa física;
II - injúria grave;
III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;
IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
Art. 1.963. ...
I – ofensa física;
II – injúria grave;
III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou
com o marido ou companheiro da filha ou o da neta;
IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.
Adverte, todavia, o art. 1.964:
Somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada
em testamento.
Talvez, por isso, é que hodiernamente a expressão ab irato é de referência quase
exclusiva a temas do direito penal, devido às consequências decorrentes da pertur-
bação dos sentidos e da inteligência do agente delituoso, Ira furor brevis est (= A ira
é uma loucura breve/passageira) – já a qualificara HORÁCIO (65-8 a.C.) [Epistulae
1, 2, 62). Nosso Código Penal, em seu art. 28, I, não exclui, todavia, a culpabilidade,
nem, portanto, a imputabilidade de quem comete um crime impelido seja pela
emoção (excitação subitânea violenta, mas passageira), seja pela paixão (“emoção
em estado crônico, perdurando, surdamente como um sentimento profundo e
monopolizante”) – no dizer de HUNGRIA.
Condescende, todavia, o mesmo diploma, como circunstância atenuante, em
sendo o crime cometido “sob a influência de violenta emoção [ou paixão], provo-
cada por ato injusto da vítima” (CP, art. 65, III, c); e acata, como causa de dimi-
nuição da pena, nos casos de homicídio e lesão corporal privilegiados, se o crime for
cometido “sob o domínio de violenta emoção [ou paixão], logo em seguida a injusta
provocação da vítima” (id., arts. 121, § 1º e 129, § 4º). Se, entretanto, a emoção ou
a paixão houverem atingido o clímax da patologia, a hipótese deverá ser enqua-
drada no caput do art. 26 (carreando a exclusão da imputabilidade do agente) ou
sua semi-responsabilidade, reduzindo-se-lhe a pena (id., ib., par. único).
E assim se justifica o uso da expressão ab irato em face dessas hipótese e cir-
cunstâncias, visto como a indignação (emoção) pode converter-se em paixão, uma
vez cristalizada no ódio.
ARQUIVO PESSOAL

VICENTE DE PAULO SARAIVA é Subprocurador-Geral da República (aposentado) e autor da obra Expressões Latinas
Jurídicas e Forenses (Saraiva, 1999, 856 p.)

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VISÃO JURÍDICA

O crime de infração de
medida sanitária preventiva
POR Fernando Brandini Barbagalo

É
fácil notar que não são convergentes as posições dos gover-
nantes sobre a melhor estratégia pública a ser adotada para
evitar a propagação da doença e, concomitantemente, mini-
mizar as suas consequências no plano econômico.
Em tempos de pandemia do novo Coronavírus, muito se comenta sobre
o crime de infração de medida sanitária preventiva, previsto no art. 268
do Código Penal. O delito consiste em “infringir determinação do poder
público, destinada a impedir a introdução ou propagação de doença con-
tagiosa” e possui pena de detenção de um mês a um ano além de multa.
Doutrinariamente, trata-se de crime comum, podendo ser praticado
por qualquer pessoa; de perigo abstrato, pois o prejuízo ao bem jurí-
dico “Saúde Pública” é presumido; de mera conduta por prescindir de
qualquer resultado naturalístico tangível aos nossos sentidos.
Não bastasse, cuida-se de um tipo penal que depende de complemen-
tação para sua exata definição, chamado, pela doutrina, de norma penal
em branco, tal norma possui conteúdo indefinido e apenas esboça o con-
teúdo do injusto que estará na dependência de complementação por outro
ato normativo pertencente ao ordenamento jurídico. A lei penal, nesses
casos, deve ser interpretada em conjunto com o ato normativo comple-
mentar para permitir sua exata compreensão e produzir efeitos jurídicos.
A caracterização do crime descrito pelo art. 268 do Código Penal é
dependente de um ato normativo que complemente a elementar nor-
mativa “determinação do poder público, destinada a impedir introdução
ou propagação de doença contagiosa”. 
Atualmente, pensamos que o ato normativo complementar que esta-
belecerá a conduta incriminada não pode ficar, em tese, a cargo de todos
os entes federativos brasileiros e necessita de definição por meio de ato
normativo de abrangência nacional a ser editado pelo Ministério da
Saúde, ou por outro órgão público de caráter nacional, como a ANVISA.
Não se pode permitir que cada município e Estado brasileiro possa
editar um ato normativo (lei ou decreto) relacionado à situação da
pandemia atual e assim, valendo-se do disposto no art. 268 do Código
Penal, ameaçar com pena criminal – e todas as suas nefastas conse-
quências – os seus habitantes e eventuais visitantes, sob pena de vio-
lação do princípio da legalidade e sua consectária segurança jurídica. 
Além do que, “a determinação do poder público” local pode ser alte-
rada ou simplesmente inexistir em outro município contíguo, ou ainda
possuir conotação contrária à de outro ente federativo, configurando
comando penal indeterminado, com vigência territorial limitada (even-
tualmente, limitadíssima) e, por vezes, contraditório.

38 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


“ Relevando os
princípios da legalidade e da
ultima ratio, pensamos ser incabível
a utilização das normas relacionadas à
Pandemia do Coronavírus, editadas pelos diversos
municípios, Estados ou Distrito Federal, como integradoras
da figura típica do art. 268 do Código Penal.

DIVULGAÇÃO
É fácil notar que não são convergentes as posições dos governantes sobre
a melhor estratégia pública a ser adotada para evitar a propagação da doença
e, concomitantemente, minimizar as suas consequências no plano econômico.
Em decorrência disso, diversas leis e decretos dispares podem ser editados acerca
do tema e a população não merece ficar à mercê do entendimento do gover-
nante local sobre a melhor forma de proceder em relação à pandemia e seus efeitos
para pautar seu comportamento e não ser punido criminalmente.
Observe-se que a Constituição Federal consagra “privativamente à União”
a competência para legislar sobre direito penal (art. 22, I), não estando autori-
zados os demais entes federativos (Estados e municípios) a complementar um ato
normativo próprio do poder federal que implique em reflexos na legislação penal.
Evidente que o julgamento cautelar do Supremo Tribunal Federal, que refe-
rendou a medida cautelar implementada pelo Ministro Marco Aurélio e reco-
nheceu a legitimação concorrente da União, Estados e municípios para legislarem
sobre aspectos relacionados à Pandemia do Coronavírus (ADIn 6341-DF, Rel. Min.
Marco Aurélio), não permitiu a incriminação direta ou indireta de comportamentos
por atos normativos locais (leis, decretos etc).
Cediço que a responsabilização criminal exige comprovação de elemento sub-
jetivo por parte do agente criminoso, no caso o dolo, além de demonstração
da consciência da ilicitude do comportamento o que impediria, por certo, conde-
nações abusivas. Porém, ainda assim, muitas pessoas seriam detidas – não presas,
pois o delito do art. 268 do Código Penal enquadra-se no conceito de infração de
menor potencial ofensivo – e constrangidas a comparecer à presença de autori-
dade policial para adoção dos procedimentos relacionados à apuração criminal.
Igualmente, sabe-se que o Direito Penal é considerado a ultima ratio do ordena-
mento jurídico, com aplicação subsidiária. Neste sentido, cabe destacar a previsão de
punição administrativa (advertência ou multa) aos comportamentos que impeçam
ou dificultem a aplicação de medidas sanitárias relativas às doenças transmissíveis
(art. 10, VII, da Lei nº 6.437/1.977). Punição que se apresenta, em nosso sentir, mais
adequada e proporcional do que a rigidez de uma resposta penal. 
Em síntese, relevando os princípios da legalidade e da ultima ratio, pensamos ser
incabível a utilização das normas relacionadas à Pandemia do Coronavírus, edi-
tadas pelos diversos municípios, Estados ou Distrito Federal, como integradoras
da figura típica do art. 268 do Código Penal.
ARQUIVO PESSOAL

FERNANDO BRANDINI BARBAGALO é Juiz Criminal no Distrito Federal (TJ/DF), Professor de Direito Penal e
Processo Penal.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 39


DIVULGAÇÃO
KNOW HOW

Dignidade da
pessoa humana
POR Hélida Crosara

“ O fato de confiar em alguém vai muito além do


que heterogeneidades econômicas, sociais e cultu-
rais, trata-se também de uma interação social, ligada
às bases biológicas para a formação de elos sociais e
afetivos entre indivíduos.

F
alando em meios históricos, a concepção da dignidade da pessoa
humana passou por um processo de racionalização e laicização,
mas manteve o seu foco primordial que era o conhecimento fun-
damental da igualdade de todos os homens em dignidade, bem
como, liberdade e esta por sua vez seria a opção pelo modo de viver, pensar
e agir conforme os seus próprios desígnios.
Sobre esta concepção sabiamente afirma Imanuel Kant1 dizendo que
esta dignidade parte da autonomia ética do ser humano, tendo ela como
fundamento da dignidade do homem, ou seja, não podendo ele ser tratado
como objeto nem por ele mesmo, e, que o “Homem, e, duma maneira geral,
todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não como meio para
o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas
ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a
outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente
como um fim. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir
pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende
não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, tem contudo, se são
seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chama
coisas, ao passo, que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua
natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo
que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte,
limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).”
Kant simplesmente reconhece o verdadeiro valor do ser humano de
forma fantástica, reafirmando de forma exaustiva que nós somos seres
de respeito e que temos dignidade mesmo que seja pela nossa própria
essência ou existência, até mesmo quando confrontado com certa “tec-
nologia”, páginas sociais, grupos e outras tantas formas de manifestação,
associada ao comportamento, devendo jamais ser violada.
Esta dignidade é de certa forma irrenunciável e inalienável, mesmo
quando se tratando de confiança, voltada ainda mais para o âmbito da

40 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


boa-fé, e querendo ou não irá qualificar o homem de modo geral perante toda a socie-
dade em que vivemos independentes da época ou período histórico-evolutivo.
Não sabemos ao certo qual será todo o conteúdo devido ao seu vasto significado,
não existindo, portanto, em nenhuma constituição nem mesmo na nossa Suprema
Carta um rol taxativo, pois, basta apenas que haja um reconhecimento desta digni-
dade2 inerente intrínseca e extrinsecamente à pessoa humana e protegida por uma
determinada ordem maior (ordenamento Constitucional3), cuja finalidade estará em
solucionar adequadamente os casos concretos existentes e os que irão por alguma
situação constrangedora, vir a existir.
A dignidade existe basicamente para que o indivíduo, possa realizar total ou par-
cialmente as suas necessidades básicas que tanto precisa, agregado ao seu elemento
mutável (comunidade e Estado).
Ingo Wolgang Sarlet, conceitua dignidade da pessoa humana como sendo uma
“qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sen-
tido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar
e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência
e da vida em comunhão com os demais seres humanos4”.
Em meu entendimento, a dignidade da pessoa humana não é apenas isso, embora
este “apenas” dê um significado de algo pequeno e restrito, mas não é. Ele é muito mais
abrangente do que este conceito, pois, engloba também a confiança, uma vez que ela
não se delega de forma alguma.
O fato de confiar em alguém vai muito além do que heterogeneidades econômicas,
sociais e culturais, trata-se também de uma interação social, ligada às bases biológicas
para a formação de elos sociais e afetivos entre indivíduos mesmo que estes sejam
presenciais ou não. E é por esse motivo que a confiança está intimamente ligada à
dignidade da pessoa humana.
E ela é primordial em todas as relações jurídicas, inclusive naquela que envolve o
consumidor em si, nos contratos de forma geral, até mesmo nas relações interpessoais,
independente do meio ou do local.

NOTAS

1 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Fede-
ral de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001 p. 32.
2 Gonçalves Peres, diz que a “dignidade é tida como intangível pelo fato de que assim foi decidido,
na medida e no sentido em que se decidiu, o que demonstra como se pode chegar a resultados tão
dispares e até mesmo conflitantes entre si, na aplicação concreta da noção de dignidade da pessoa”
– destaca ainda de forma curiosa- “que este princípio serve ao mesmo tempo, para justificar o res-
peito à vida humana e até mesmo o seu fim, como ocorre nos casos em que se reconhece o direito
de morrer com dignidade (eutanásia).
3 No nosso ordenamento jurídico, foi adotado pelo poder Constituinte de 1988, ao referir-se à digni-
dade da pessoa humana como fundamento da Republica e do nosso Estado democrático de Direito,
ou seja, ele reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e
não o contrário, já que o ser humano constitui finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.
4 Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal
de 1988, p. 60.
ARQUIVO PESSOAL

HÉLIDA CROSARA é Bacharel em Direito. Advogada e Especialista em Processo Civil.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 41


FICHÁRIO JURÍDICO

Interrupção da prescrição
em acórdão que confirma
ou reduz a pena

POR Líbero Penello de Carvalho Filho

DIVULGAÇÃO

“ A polêmica reinante sobre o tema, com diver-


gência jurisprudencial entre cortes e mesmo in-
ternamente entre turmas de uma corte, demanda
um entendimento vinculante por parte da corte
constitucional brasileira, como forma de uniformi-
zação, segurança jurídica e celeridade recursal.

O
art. 117, inciso IV do Código Penal sempre gerou dis-
cussões e polêmica, no tocante à sua real abrangência,
seu alcance, sua correta interpretação e aplicação. Re-
cente divergência jurisprudencial entre o Superior Tri-
bunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal avivou ainda mais a
questão. Tal divergência jurisprudencial ainda guarda o particular
de existir internamente, entre duas turmas julgadoras do STF. E
a indagação sobre as bases adequadas para uma interpretação o
mais correta possível do mencionado inciso do art. 117 fazem-se
presentes.

42 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


O iter de uma análise coerente do problema envolvendo a prescrição em
acórdãos confirmatórios ou que reduzem quantum condenatório firmado por
instância inferior deve envolver a abordagem de conceitos determinados e essen-
ciais, tais como: a) função da prescrição; b) função da interrupção da prescrição;
c) delimitação da expressão “decisão condenatória” e sua aplicabilidade prática;
d) natureza jurídica do acórdão.
Com base no estudo destes conceitos e tópicos será possível concluir se o
art. 117, inciso IV do Código Penal aplica-se aos acórdãos que confirmam ou
reduzem uma pena arbitrada em instância originária.

O ART. 117, INCISO IV DO CÓDIGO PENAL

A primeira medida é a leitura do dispositivo citado:

Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se:


I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa;
II – pela pronúncia;
III – pela decisão confirmatória da pronúncia;
IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis;
V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena;
VI – pela reincidência (grifo nosso)

O art. 117 foi transcrito acima com todos os incisos de forma intencional.
É necessária uma contextualização do ambiente onde está inscrito o inciso IV,
assim como fixar desde logo a localização tópica do referido dispositivo. Não é
possível efetuar análise de um dispositivo legal isolado, sem a visão periférica
ampliada que forneça a dimensão topográfica onde se encontra inserido.
Apesar da necessária leitura prévia do dispositivo legal e do título e capítulo
onde se situa, é certo que a interpretação literal não deve ser a primeira e muito
menos a única a guiar os passos do hermeneuta. Notadamente num país onde
o processo legislativo é marcado por notórias deficiências técnicas na redação
das normas, a interpretação gramatical e literal seria, a princípio, inadequada.
O art. 117 situa-se no título VIII, “Da extinção da punibilidade”. A exposição
de motivos do Código Penal, referente às alterações ocorridas no ano de 1984, é
lacônica a respeito não só do artigo 117 e incisos, como também em relação ao
tema da prescrição em geral. O trecho mais esclarecedor da referida exposição
de motivos afirma:

99. Estatui o art. 110 que, uma vez transitada em julgado a sentença condenatória,
a prescrição regula-se pela pena aplicada, verificando-se nos prazos fixados no art. 109,
os quais são aumentados de um terço, se o condenado é reincidente. O § 1º dispõe que
a prescrição se regula pela pena aplicada, se transitada em julgado a sentença para
a acusação ou improvido o recurso desta. Ainda que a norma pareça desnecessária,
preferiu-se explicitá-la no texto, para dirimir de vez a dúvida alusiva à prescrição pela
pena aplicada, não obstante o recurso da acusação, se este não foi provido. A ausência
de tal norma tem estimulado a interposição de recursos destinados a evitar tão-somente

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 43


FICHÁRIO JURÍDICO

a prescrição. Manteve-se, por outro lado, a regra segundo a qual, transitada em julgado
a sentença para a acusação, haja ou não recurso da defesa, a prescrição se regula pela
pena concretizada na sentença.

No anteprojeto do Código Penal de 1940, o artigo 110, ao tratar da interrupção


da prescrição, era mais simples:

Art. 110. ...


5º O curso da prescrição da ação penal interrompe-se:
I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa;
II – pela pronúncia;
In – pela decisão confirmatória da pronúncia;
IV – pela sentença condenatória recorrível. (grifo nosso)

A exposição de motivos do Código Penal de 1940 trata da matéria de forma


ligeira, superficial, genérica, sendo que o máximo de especificidade que con-
segue alcançar está neste trecho:

Nos arts. 116 e 117, respectivamente, cuida-se das causas suspensivas e interruptivas
da prescrição. É expressamente fixada a regra de que, interrompida a prescrição, o prazo
começa a correr ex novo et ex integro do dia da interrupção. Por último, é determinada
a absorção da pena mais leve pela mais grave, para o efeito da prescrição, ressalvada
a pena acessória imposta na sentença ou resultante da condenação.

Já a exposição de motivos do anteprojeto de Código Penal de 1969, apesar


de tão genérica e superficial sobre o tema quanto a exposição de 1940, traz um
trecho curioso:

36. Às causas de extinção da punibilidade previstas expressamente pelo Código


vigente acrescenta o projeto o perdão judicial. É sabido que nem todas as causas de
extinção da punibilidade estão mencionadas nessa passagem expressamente.

É curiosa esta passagem porque, muito embora não tenha vingado o Código
Penal de 1969, fica sua exposição de motivos como peça de caráter doutrinário.
Como tal, afirma que “É sabido que nem todas as causas de extinção da puni-
bilidade estão mencionadas nessa passagem expressamente.”
Ora, a referida exposição de motivos considera numerus apertus as hipó-
teses de extinção da punibilidade. E incumbe perquirir por qual razão assim o
considera, ao invés de adotar o entendimento de serem numerus clausus tais
disposições. Aqui, voltemos à topografia do código: o artigo 117 está localizado
no Título referente à extinção da punibilidade. Quer parecer, então, que o artigo
117 está inserido num contexto hipotético de benesses ao condenado.

A FUNÇÃO DA PRESCRIÇÃO

Neste contexto, o mote é a concessão de benefício a condenado, benefício


este configurado na prescrição da pretensão punitiva. O norte deste raciocínio

44 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


é a função social da prescrição, a qual não foi pensada e criada com o fito de
eternizar litígios ou penas. Pelo contrário, foi feita para evitar tornar-se o acu-
sado, requerido ou apenado um escravo eterno da vontade ou do bel prazer da
vítima, do credor ou do Estado.
Dentro desta função social da prescrição estão dois importantes instrumentos
destinados a regular e equilibrar o uso e aplicação do instituto prescricional: a
suspensão e a interrupção da prescrição. Se, de um lado, não se pode eternizar
a submissão jurídica de uma parte devedora à outra credora, por outro não se
pode também premiar artifícios da parte devedora para escapar da responsabi-
lidade decorrente de seu débito, seja ele de natureza criminal ou civil.
Assim determinados atos apenas suspendem a prescrição ou mesmo a inter-
rompem não por mera filigrana jurídica, mas sim como autênticos “freios e con-
trapesos” a mediar a pretensão punitiva ou executória e os limites temporais
desta pretensão. São instrumentos de equilíbrio entre o abuso na persecução
penal e o abuso na defesa criminal.
Houve avanço entre o Código Penal de 1940 e a reforma de 1984. Em 1940, a
interrupção da prescrição tinha como uma das causas a sentença condenatória
recorrível. Em 1984, este dispositivo foi alterado, passando a ser causa de inter-
rupção da prescrição a sentença ou acórdão condenatórios recorríveis.
O problema, porém, ainda persistia: tal dispositivo alcançaria também acór-
dãos confirmatórios ou redutores da pena aplicada em instância inferior? O
laconismo das exposições de motivos e a divergência doutrinária apenas con-
tribuíram para a manutenção da discussão.

A DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL E A NATUREZA JURÍDICA DO ACÓRDÃO

No Supremo Tribunal Federal, para sua 1ª Turma, o acórdão que confirma ou


reduz a pena interrompe a prescrição. Para esta Turma, a interpretação do art.
117 deve ser sistemática, de forma que se demonstre, sempre, não estar inerte o
Estado ao buscar a pretensão punitiva ou executória. Para a 1ª Turma, o Código
Penal não distingue entre acórdão condenatório inicial e acórdão condena-
tório confirmatório de decisão. Assim, o acórdão confirmatório da condenação
demonstra que o Estado está atuando, não está inerte, daí resultando a neces-
sária interrupção da prescrição (STF. 1ª Turma. RE 1237572 AgR, Rel. Min. Marco
Aurélio, Relator p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 26/11/2019;
STF. 1ª Turma. RE 1241683 AgR/RS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/o ac.
Min. Alexandre de Moraes, julgado em 04/02/2020 (Info 965).
A este entendimento da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal pode ser
acrescido o seguinte raciocínio: muito embora haja a clássica denominação das
decisões em condenatórias, declaratórias e absolutórias, é evidente que toda
decisão, seja ela condenatória ou absolutória, é declaratória. Em toda conde-
nação ou absolvição há uma declaração de direito. Em primeiro lugar, portanto,
há que se deixar claro que uma decisão pode ser declaratória-condenatória, ou
declaratória-absolutória ou declaratória própria.
A decisão declaratória própria é aquela que se limita a declarar a existência de
uma relação jurídica. Assim, uma sentença proferida em juízo federal, declarando
que a parte interessada trabalhou em atividade rwural para fins previdenciários,

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 45


FICHÁRIO JURÍDICO

por exemplo, apenas declara direito, sem condenar ou absolver. O que o inte-
ressado poderá obter daí para frente com uma tal sentença é outro problema.
E este tipo de sentença não está alcançado pela regra do inciso IV do art. 117 do
Código Penal, pois não é de natureza condenatória.
A decisão declaratória-absolutória é a antítese da decisão declaratória-con-
denatória. Ao absolver o réu, extingue sua punibilidade. Confirmada em ins-
tâncias superiores, os acórdãos daí decorrentes serão igualmente confirmató-
rios absolutórios. Fica claro que este tipo de sentença não diz respeito, sequer
minimamente, ao inciso IV do art. 117 do Código Penal.
O que parece ser o verdadeiro objeto de estudo sob a ótica do art. 117 mencio-
nado são os acórdãos confirmatórios condenatórios. Tais acórdãos são, como toda
decisão, declaratórios de um direito. Se confirmam uma sentença absolutória,
são igualmente absolutórios, e deles não cuida o dispositivo penal em comento.
Se, porém, um acórdão confirma uma decisão condenatória, ele não é somente
declaratório, é igualmente condenatório, tal qual a sentença confirmada. O
acórdão que confirma condenação também é condenatório. Ambos, a sentença
condenatória e o acórdão que a confirma, trazem uma imposição de obrigação,
de dever, de pena, imposta pelo Estado.
O acórdão que confirma a sentença condenatória, porém reduz seu quantum,
também é condenatório. A redução da pena não significa sua extinção, nem traz
absolvição, a qual não pode ser implícita, e sim deve ser expressa. Deste modo,
até por exclusão, o raciocínio é: o acórdão que confirma, mas reduz a pena, é
meramente declaratório? Não, porque traz consigo a carga impositiva de pena
imposta pela sentença confirmada. Pode ser tal acórdão ainda considerado abso-
lutório? Não, porque confirmou uma sentença condenatória. Deste modo, por
exclusão, o acórdão confirmatório de decisão, mas que reduz a pena, só pode
ser igualmente condenatório.
O único requisito estabelecido pelo inciso IV do art. 117 do Código Penal que
parece ser desprovido de dúvida ou questionamento é o de ser o acórdão recor-
rível. Se já não cabe nenhum recurso do referido acórdão, toda a discussão perde
o sentido. Aqui, o fundamento é simples: transitada em julgado a decisão, não
mais se fala na pretensão punitiva, e sim da pretensão executória.
Todo este entendimento até agora exposto deixa claro que a posição da 2ª
Turma do Supremo Tribunal Federal, da 5ª Turma e Corte Especial do Superior
Tribunal de Justiça, tem menos possibilidade de prosperar. É que estas Turmas
e Corte entendem que o acórdão que apenas confirma ou reduz a pena imposta
não pode interromper a prescrição. Ora, este entendimento parece considerar
que o acórdão confirmatório da sentença ou que reduz a pena não seria con-
denatório ( STF. 2ª Turma. RE 1238121 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em
06/12/2019; STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 1557791/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, jul-
gado em 06/02/2020; STJ. Corte Especial. AgRg no RE nos EDcl no REsp 1301820/
RJ, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 16/11/2016).
Ocorre aqui um problema técnico: para este entendimento, o acórdão não é
alcançado pelo inciso IV do art. 117 do Código Penal porque: a) apenas confirma
a sentença condenatória; e b) apenas reduz a pena imposta originariamente. É
um entendimento confuso, pois:

46 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


– com relação à letra “a” retro: seria o mesmo que afirmar que o acórdão
nestas condições seria apenas declaratório, o que não soa tecnicamente viável,
pois o acórdão confirmatório de sentença condenatória não se limita a declarar
a existência de uma relação jurídica, ele é a manifestação do Estado, prestando
a tutela jurisdicional em 2ª. Instância ou em tribunal constitucional, com clara
carga condenatória em seu dispositivo, o acórdão em si. O Estado que confirma
a condenação está condenando;
– com relação à letra “b” retro: este item é ainda mais desprovido de técnica e
juridicidade. A operação mental é muito simples: o acórdão que confirma uma
sentença condenatória evidentemente não é absolutório. E, se não é absolutório
e não se limita a declarar a existência de uma relação jurídica, é condenatório.
O fato de reduzir a pena imposta originariamente não torna o acórdão absolu-
tório, pois apenas a reforma da decisão originária e consequente absolvição do
réu poderia fazê-lo. Portanto, um acórdão que confirma uma sentença conde-
natória é condenatório, mesmo que reduza a pena. Ao decidir pela redução da
pena e arbitrar nova pena, o acórdão está diretamente se revestindo de natu-
reza condenatória.
Com esta análise, fica mais fácil entender por que a exposição de motivos do
anteprojeto de Código Penal de 1969 entendeu serem as hipóteses de extinção
de punibilidade elencadas de forma aberta, não taxativa. As razões do Ministro
Gama e Silva eram mais consistentes do que as do Ministro Francisco Campos
e as expostas em 1984.

CONCLUSÃO

O que resulta daí é que:


– apesar de localizado topograficamente de modo a supor sua intenção de
benesse para o réu, o inciso IV do artigo 117 do Código Penal, na verdade, regula
a ação estatal, a punibilidade, a segurança jurídica, de forma a equilibrar a pre-
tensão punitiva do Estado e a capacidade de defesa do réu, tornando o sistema de
persecução penal justo e adequado à realidade concreta da aplicação do Direito;
– o acórdão que confirma a decisão condenatória ou que, confirmando-a,
reduz a pena, é de natureza condenatória, por exclusão: não se limitando a
declarar existência de uma relação jurídica e não sendo absolutório, só pode ser
condenatório. Portanto, tal tipo de acórdão interrompe a prescrição;
– a polêmica reinante sobre o tema, com divergência jurisprudencial entre
cortes e mesmo internamente entre turmas de uma corte, demanda um enten-
dimento vinculante por parte da corte constitucional brasileira, como forma de
uniformização, segurança jurídica e celeridade recursal.

LÍBERO PENELLO DE CARVALHO FILHO é Servidor público no estado do Espírito Santo. Graduado em Direito.
ARQUIVO PESSOAL

Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires – Argentina. Especialista em Direito e
Processo do Trabalho. Especialista em Direito e Processo Penal. Pesquisador. Professor universitário de graduação
em Direito, Ciências Políticas e de pós-graduação em Direito e em Gestão Pública. Membro da Sociedade Inter-
nacional de Direito Criminal (International Criminal Law Society – Berlim – Alemanha. Sócio efetivo do Instituto
Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior – São Paulo (Seção brasileira da Société Internationale de Droit du Travail et de la
Sécurité Sociale – SIDTSS – Suíça). Membro da Société Française pour le Droit International – Université Paris Ouest Nanterre
La Défense – Paris – França. Membro do Institut des Hautes Études sur la Justice – IHEJ – Paris, França. Membro do Instituto
Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário – IBRAJUS. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 47


PROCESSOS E PROCEDIMENTOS

Da ilegalidade da pena
de censura prescrita
no Código de Ética
Profissional do Servidor
Público Civil do Poder
Executivo Federal1
POR Rocco Antonio Rangel Rosso Nelson e Walkyria de Oliveira Rocha Teixeira

“ Todas penas de censuras aplicadas pela Administra-


ção Pública Federal nos termos do Código de Ética Pro-
fissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo
Federal devem ser anuladas, seja judicialmente, seja de
ofício pela própria Administração em exercício do poder
de autotutela, bem como extinto o banco de sanções
das referidas comissões e invalidados todos os atos ad-
ministrativos prejudicais ao servidor público motivados
em decorrência da aplicação da pena de censura.

48 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


DIVULGAÇÃO
P
or meio do Decreto nº 1.171/94, baixado pelo ex-presidente Itamar Fran-
co, tem-se a inserção do Código de Ética Profissional do Servidor Público
Civil do Poder Executivo Federal, o qual especifica um rol de regras de-
ontológicas, deveres e vedações ao servidor público federal.
O referido Código de Ética tem aplicação no seio da Administração Pública Federal
direta e indireta (autárquica e fundacional) e seus respectivos órgãos, devendo ser
constituída uma comissão de ética, no bojo de suas estruturas organizacionais, com
o desiderato de “orientar e aconselhar sobre a ética profissional do servidor, no tra-
tamento com as pessoas e com o patrimônio público, competindo-lhe conhecer
concretamente de imputação ou de procedimento susceptível de censura”.2
No que tange ao processo ético disciplinar a única pena prescrita em caso de
violação dos tipos éticos postos no Código alhures é a sanção de censura:

XXII – A pena aplicável ao servidor público pela Comissão de Ética é a de censura e sua fun-
damentação constará do respectivo parecer, assinado por todos os seus integrantes, com
ciência do faltoso. (Grifos nossos)

Em uma interpretação sistemática pode-se determinar que a censura seria uma


forma de advertência agravada como se afere, por exemplo, na Lei Complementar
nº 75/93 que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério
Público da União:

Art. 240. As sanções previstas no artigo anterior serão aplicadas:


I – a de advertência, reservadamente e por escrito, em caso de negligência no exercício
das funções;
II – a de censura, reservadamente e por escrito, em caso de reincidência em falta anterior-
mente punida com advertência ou de descumprimento de dever legal;
(...). (Grifos nossos)

Tem-se essa percepção, também, quando da análise da Lei Complementar nº


35/79 que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional:

Art. 43. A pena de advertência aplicar-se-á reservadamente, por escrito, no caso de


negligência no cumprimento dos deveres do cargo.
Art. 44. A pena de censura será aplicada reservadamente, por escrito, no caso de reite-
rada negligência no cumprimento dos deveres do cargo, ou no de procedimento incorreto,
se a infração não justificar punição mais grave.
(...)

O objeto do presente trabalho é a pena de censura prevista no Código de Ética


Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, não se vindo a tratar
da censura prevista na legislação da Magistratura e do Ministério Público Federal.

DA ESTRUTURAÇÃO FORMAL DO CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO SER-


VIDOR PÚBLICO CIVIL DO PODER EXECUTIVO FEDERAL

É importante esclarecer que o anexo do Decreto nº 1.171/94 que Código de Ética


Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal não se encontra

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 49


PROCESSOS E PROCEDIMENTOS

estruturado formalmente como prescrito na Lei Complementar nº 95/98 que


dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, con-
forme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece
normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.
O Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo
Federal ao invés de seguir a estrutura padrão da legislação brasileira, conforme
o art. 10 Lei Complementar nº 95/98 é estruturado, apenas, com incisos numa
sequência única.

Art. 10. Os textos legais serão articulados com observância dos seguintes princípios:
I – a unidade básica de articulação será o artigo, indicado pela abreviatura “Art.”, seguida
de numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste;
II – os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os parágrafos em incisos,
os incisos em alíneas e as alíneas em itens;
III – os parágrafos serão representados pelo sinal gráfico “§”, seguido de numeração
ordinal até o nono e cardinal a partir deste, utilizando-se, quando existente apenas um, a
expressão “parágrafo único” por extenso;
IV – os incisos serão representados por algarismos romanos, as alíneas por letras minús-
culas e os itens por algarismos arábicos;
V – o agrupamento de artigos poderá constituir Subseções; o de Subseções, a Seção;
o de Seções, o Capítulo; o de Capítulos, o Título; o de Títulos, o Livro e o de Livros, a Parte;
(...)

É sabido que a Lei Complementar nº 95/98 é posterior ao Decreto nº 1.171/94,


todavia, a lógica formal de estruturação da legislação brasileira contida na Lei Com-
plementar nº 95/98 já era seguida, não justificando a razão de adotar-se, apenas,
incisos para estruturar Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do
Poder Executivo Federal, o que lhe deixa confuso a sua leitura.
Esse é o primeiro ponto que demonstra a falta de cuidado e mesmo pressa na
elaboração e publicação do referido Código de Ética.

DA VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COM A APLICAÇÃO DA


PENA DE CENSURA

Da pena de censura e desobediência ao princípio da legalidade

O princípio da legalidade é sem dúvida uma das maiores conquistas decor-


rentes da revolução francesa de 1789 (inspirada nos pensamentos iluministas),
sendo uma das bases jurídicas estruturantes da Constituição do Estado Liberal
e da formação de um Estado de Direito,3 configurando-se em um dos pilares
fundantes da limitação do arbítrio estatal na esfera dos direitos fundamentais
do cidadão.

A lei, no pensamento liberal iluminista, era um produto da razão, emanada dos represen-
tantes da sociedade e capaz de regular todo e qualquer assunto relevante, constituindo-se
na mais importante fonte do direito, notadamente na Europa, onde o constitucionalismo
só tomou força após a Segunda Grande Guerra.4

50 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


O referido princípio teve por desdobramento garantir liberdade, pois cidadãos
poderiam fazer tudo aquilo que a lei não proibisse, e ao mesmo tempo ser o filtro
da atuação estatal, tendo em vista que o mesmo só poderia atuar dentro dos limites
determinados pelo manto da lei.
Lapida José dos Santos Carvalho Filho:

Não custa lembrar, por último, que, na teoria do Estado moderno, há duas funções esta-
tais básicas: a de criar a lei (legislação) e a de executar a lei (administração e jurisdição). Esta
última pressupõe o exercício da primeira, de modo que só se pode conceber a atividade
administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legisferante. Por isso é
que administrar é função subjacente à de legislar. O princípio da legalidade denota exata-
mente essa relação: só é legítima a atividade do administrador público se estiver condizente
com o disposto na lei.5

Falar em princípio da legalidade é falar em segurança jurídica, pois tem-se a


previsibilidade e a dimensão do atuar do Estado em relação ao povo, fornecendo,
assim, um sistema de garantia na esfera de liberdade (de ir e vir; de expressão; de
associação; de contratar; de votar; de ofício, etc.) do cidadão.
Lembra Rafael Carvalho Rezende que do princípio da legalidade tem-se o desdo-
bramento da supremacia da lei, o qual determina a prevaleçam da lei em relação a
atos da administração pública, e na reserva de lei, o qual certas matérias só devem
ser formalizadas via legislação, excluídos outros instrumentos normativos.6
Destaca-se que o art. 5º, II, da Constituição Federal determina que “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”,
bem como no art. 37 “A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade (...)”.
Em síntese o princípio da legalidade obriga que a administração pública só atue
secundum legem e não contra ou praeter legem.7
Afere-se, assim, de forma palmar, afronta ao princípio da legalidade, e assim a
própria Constituição, a pena de censura estatuída Código de Ética Profissional do
Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal posto que a mesma é inserida
via decreto no sistema jurídico brasileiro.
Já sobreleva Celso Antonio Bandeira de Mello:

(...). Evidencia-se, destarte, que mesmo os atos mais conspícuos do Chefe do Poder
Executivo, isto é, os decretos, inclusive quando expedem regulamentos, só podem ser pro-
duzidos para ensejar execução fiel da lei. Ou seja: pressupõem sempre uma dada lei da qual
sejam os fiéis executores.8

No que tange ao princípio da legalidade especificamente a matéria de direito


administrativo sancionador disserta Rafael Munhoz de Mello:

No campo do direito administrativo sancionador, o princípio da legalidade exige que o


ilícito administrativo e a respectiva sanção sejam criados por lei formal. Apenas o legislador
pode tipificar uma conduta como ilícito administrativo e imputar à sua prática uma sanção
administrativa. Trata-se de aplicação, no direito administrativo, do princípio nullum crimen,
nulla poena sine lege, previsto no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 51


PROCESSOS E PROCEDIMENTOS

(...)
Assim, tanto a infração administrativa como a sanção administrativa devem ter previsão
expressa em lei formal. Não basta mera autorização à autoridade administrativa, dispondo
genericamente sobre o poder de punir. É preciso que a lei descreva a conduta ilícita e a res-
pectiva sanção.” Isso significa, em outros termos, que a lei formal deve veicular a hipótese
de incidência e o mandamento da norma punitiva. (...)9

Fábio Medina Osório explicita sobre as sanções disciplinares, as quais seriam


um desdobramento do direito administrativo disciplinar,10 quando a necessidade
de obediência dos princípios constitucionais:

Nenhuma sanção, ainda que de caráter disciplinar, pode ser aplicada ao total arrepio
da legalidade, da tipicidade, da culpabilidade, da pessoalidade, da individualização da
pena, da presunção de inocência, da proporcionalidade, da razoabilidade e da interdição
de arbitrariedade sem o respeito ao direito de defesa. Nenhuma medida disciplinar pode
prescindir dessas fundamentais garantias porque sua submissão aos princípios constitucio-
nais do Direito Administrativo Sancionador é imperiosa. Lamentavelmente, nem sempre tais
comandos são observados pela Administração Pública, que confunde relação de especial
sujeição com arbítrio.11

Já Marçal Justen Filho coloca como elemento do conceito de sanção adminis-


trativa funcional a previsão em lei:

Sanção administrativa funcional é uma punição consistente na restrição a direitos ou na


aplicação ode deveres, cominados em lei como decorrência da prática de infração funcional
reprovável e imposta por meio de processo administrativo.
(...).
O que se afigura inconstitucional é a ausência de previsão da sanção por lei ou a inexistência
de padrões delimitadores de sua aplicação.12 (Grifos nossos)

Destarte, todas as penas de censura aplicadas pelas comissões de ética


dos órgãos e entidades públicas do Poder Executivo Federal, bem como pela
Comissão de Ética Pública da Presidências da República são ilegais, sendo pas-
síveis de anulação via controle do Poder Judiciário, por ausência de previsão
em lei da sanção de censura, bem como das condutas antiéticas vedadas ao
servidor público federal.
Além disso possíveis atos administrativos que tenha negado promoção ao
servidor público de carreira fundamentado, exclusivamente, no registro de pena
de censura dado pela Comissão de Ética do órgão ou entidade da administração
pública do Poder Executivo Federal13 torna-se passível de anulação face o reconhe-
cimento da ilegalidade da pena de censura com direito ao retroativo dos valores
referente ao subsídio do nível ou classe negada.
Por fim, é bom frisar que há decisão do Tribunal Regional Federal da 1º Região
reconhecendo a ilegalidade da definição de infrações administrativas, e conse-
quentemente suas sanções, via instrumento diverso de lei:

ADMINISTRATIVO.  IBAMA. CÓDIGO FLORESTAL. CONTRAVENÇÃO PENAL.


AUTO DE INFRAÇÃO. IMPOSIÇÃO DE MULTA. PORTARIA Nº 267 -P/88.

52 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


ILEGALIDADE. ESTIPULAÇÃO DE INFRAÇÕES E PENALIDADES. DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA 
INSUBSISTENTE. 
1. A estipulação prevista no art. 26 da Lei nº 4.771, de 15/9/65 (Código Florestal), cons-
titui contravenção penal. A aplicação da multa ali prevista é privativa do Juiz, não podendo
ser feita pelo IBAMA. 
2. A definição de infrações administrativas (e a cominação de penalidades) somente pode
ocorrer por lei, em sentido formal. Portaria da Administração não é instrumento adequado a
essa finalidade, sem que lei anterior o tenha autorizado. 
3. A delegação de competência prevista no Decreto-lei nº 289, de 28/02/67, perdeu a
sua validade (ressalvados os efeitos dos atos já praticados) com a EC nº 11, de 13/10/78 (art.
3º). Efeitos análogos decorrentes do art. 25 do ADCT/88. 
4. A Portaria nº 267-p, de 05/9/88 – IBDF, não pode subsistir, quando dispõe sobre pena-
lidades administrativas, posto que fundada em delegação de competência contida em
diploma legal não recepcionado pela Constituição de 1988. 
5.Improvimento da apelação e da remessa. Manutenção da sentença.14 (Grifos nossos)

Da inadequação da pena de censura no que tange ao princípio da vedação do


“bis in idem”

Outra garantia fundante do cidadão espraia-se no princípio do non bis in idem,


o que veda mais de uma punição pelo mesmo fato. A respectiva norma não está
contida expressamente na Constituição Federal, sendo considerada derivada do
princípio da legalidade, constituindo-se um princípio constitucional implícito.15
Este princípio tem o desdobramento no aspecto processual, onde ninguém
pode ser processado mais de uma vez pelo mesmo fato; material, o qual não se
pode punir por uma segunda vez em face do mesmo fato; e execucional, onde são
se pode executar a sanção, mais de uma vez, pela mesma razão fática.
Destaca-se, ainda, que esse princípio veda a aplicação simultânea da sanção
penal e das sanções administrativas pelo mesmo fato, devendo o processo admi-
nistrativo sancionador ser suspenso quando da intervenção da justiça penal.

Do ponto de vista substantivo, o princípio non bis in idem também impede que se apli-
quem conjuntamente penas e sanções administrativas pelo mesmo fato. Tomando como
ponto de partida a unidade do ordenamento jurídico, é o próprio Estado aquele que deve
organizar e dirigir coordenadamente o arsenal punitivo de que dispõe. Do contrário, o sujeito
se veria obrigado a defender- -se permanentemente em todas as frentes, o que se apresenta
como arbitrário, considerando-se uma reiteração inadmissível do exercício do jus puniendi.
Na aplicação do princípio non bis in idem, as normas procedimentais devem estabelecer a
paralisação de qualquer procedimento administrativo sancionador no momento em que
comece a intervir a Justiça penal. Esse procedimento administrativo poderá ser reaberto
em caso de suspensão ou absolvição em sede penal. Na hipótese de ocorrer condenação
em sede judicial, deverá se respeitar a coisa julgada e a pena será a única consequência
jurídica a ser aplicada.16

Há hipóteses que justificam a dupla imputação, penal e administrativa, em


situações extraordinárias, como no caso de delito perpetrado por servidor público
civil ou militar. Todavia, são situações excepcionais e devem ser devidamente
justificadas.17

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 53


PROCESSOS E PROCEDIMENTOS

Quanto a dimensão do presente princípio no direito administrativo sancionador


explicita Rafael Munhoz de Mello:

O princípio do non bis in idem impede a Administração Pública de impor uma segunda
sanção administrativa a quem já sofreu, pela prática da mesma conduta, uma primeira. É
dizer, uma vez imposta a sanção administrativa, esgota-se a competência punitiva atribuída
à Administração Pública, não sendo lícita a imposição de nova sanção pelo mesmo fato.18

Destaca-se a súmula nº 19 do STF19 que reconhece a incidência do princípio do


non bis in idem no seio do processo administrativo disciplinar:

É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em


que se fundou a primeira.

De tal sorte, vislumbra-se de forma clarividente que o princípio do non bis in


idem é vilipendiado duplamente, no aspecto processual, quando da instauração
simultânea do processo administrativo disciplinar, nos termos da Lei nº 8.112/90
e do processo administrativo por falta ética, conforme Resolução nº 10/2008 da
Comissão de Ética Pública (CEP), e no aspecto material, com aplicação de pena
disciplinar (advertência, suspenção, demissão ou cassação de aposentadoria ou
disponibilidade), fundamentado no art. 127 da Lei nº 8.112/90, e a aplicação da
pena de censura nos termos do inciso XXII do Decreto nº 1.171/94.
Entendemos que o principal desiderato da comissão de ética é de fito consul-
tivo e educativo, de sorte que a função punitiva quedar-se inviável, podendo, no
máximo, os feitos, no bojo da comissão de ética, constituir-se de investigação prévia
para subsidiar a instauração de sindicância ou processo administrativo disciplinar
e a mesma propor Acordo de Conduta Pessoal e Profissional – ACPP.20

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do desenvolvimento exposto pode-se extrair diversas premissas.


Primeiramente, que a pena de censura aplicada no seio de um processo de apuração
de falta ética imposta por uma comissão de ética na esfera da administração pública
do Poder Executivo Federal vilipendia o princípio da legalidade administrativa escul-
pido no art. 37, caput, da Constituição Federal, posto sua previsão em sede de decreto.
Em outra dimensão, as comissões de ética perdem legitimidade quanto a função
punitiva, sobrelevando as funções consultivas e educativa destas, visto que o des-
cumprimento de regras éticas previsto no Código de Ética Profissional do Servidor
Público Civil do Poder Executivo Federal podem acarretar processo administrativo
disciplinar, nos termos da Lei nº 8.112/90, no que tange ao dever do servidor em
observar normas regulamentares (art. 116, III da Lei nº 8.112/90), cujo descum-
primento pode gerar a sanção disciplinar de advertência.
De tal maneira, a instauração do processo por falta ética e de processo admi-
nistrativo disciplinar pelo mesmo fato consubstanciaria violação do princípio
constitucional implícito do non bis in idem, o qual impede de que o servidor seja
processado e punido duplamente pelo mesmo fato. Afere-se que toda falta ética
corresponde, necessariamente, em uma falta administrativa disciplinar, o que
inviabiliza por completo a função punitiva das comissões de ética.

54 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


Em face das razões esposadas, entende-se que todas penas de censuras apli-
cadas pela Administração Pública Federal nos termos do Código de Ética Profis-
sional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal devem ser anuladas,
seja judicialmente, seja de ofício pela própria Administração em exercício do
poder de autotutela, bem como extinto o banco de sanções das referidas comis-
sões e invalidados todos os atos administrativos prejudicais ao servidor público
motivados em decorrência da aplicação da pena de censura.

NOTAS

1 Artigo de investigação elaborado de estudo desenvolvido na linha de pesquisa “Democracia,


Cidadania e Direitos Fundamentais”, inscrito no Grupo de Estudo e Pesquisa em Extensão e
Responsabilidade Social, do Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN, Brasil.
2 Inciso XVI do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Fe-
deral.
3 “Do Estado de Direito em sentido forte, que é aquele próprio da doutrina liberal, são parte
integrante todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício
arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal
do poder. Desses mecanismos os mais importantes são: 1) o controle do Poder Executivo
por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe o Poder Exe-
cutivo, por parte do parlamento, a quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a
orientação política; 2) o eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo
ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucio-
nalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em
seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder
político”. (BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.
19). “(...). Por isso mesmo é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, já que o
Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado
de Direito: é uma conseqüência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É, em suma: a
consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade
da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, con-
sistente na expedição de comandos complementares à lei”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira
de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 100). Cf. DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 64.
4 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2008, p.
126.
5 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas,
2012, p. 20
6 REZENDE, Rafael Carvalho. Curso de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Método, 2015,
p. 60. “O princípio da legalidade da administração foi erigido, muitas vezes, em «cerne es-
sencial» do Estado de direito. Ele será objecto de maiores desenvolvimentos em sede das
fontes de direito constitucional. Aqui limitar-nos-emos a algumas considerações básicas. O
princípio da legalidade postula dois princípios fundamentais: o princípio da supremacia ou
prevalência da lei (Vorrang des Gesetzes) e o princípio da reserva de lei (Vorbehalt des Geset-
zes). Estes princípios permanecem válidos, pois num Estado democrático-constitucional a
lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do princípio democrático (daí a sua supre-
macia) e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas matérias,
sobretudo dos direitos fundamentais e da vertebração democrática do Estado (daí a reserva
de lei) 24. De uma forma genérica, o princípio da supremacia da lei e o princípio da reserva de
lei apontam para a vinculação jurídico- constitucional do poder executivo (...)”. (CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 256)
7 Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, p. 150

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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS

8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros,
2010, p. 103.
9 MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as
sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 120-
121.
10 “Com efeito, o regime disciplinar se insere no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.
(...)”. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 3. ed. São Paulo: RT, 2009, p.
227.
11 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 3. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 228.
12 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 1050.
13 Decreto nº 1.171/94. XVIII – À Comissão de Ética incumbe fornecer, aos organismos encarre-
gados da execução do quadro de carreira dos servidores, os registros sobre sua conduta ética,
para o efeito de instruir e fundamentar promoções e para todos os demais procedimentos
próprios da carreira do servidor público.
14 TRF 1º região, terceira turma, Apelação Civil nº 1998.01.00.056844-8/MG, relator desembarga-
dor Olindo Menezes, data do julgamento em 01/12/1998, DJ 21/05/1999, p. 145.
15 “(...). Apesar do princípio ne bis idem não ter recebido uma conformação expressa no texto
constitucional, há acordo quase unanime na doutrina e na jurisprudência constitucional em
considera-lo implícito no princípio da legalidade (...)”. (FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (co-
ords). Código penal e sua interpretação. 8. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 39).
16 OLIVÉ, Juan Carlos Ferré; PAZ, Miguel Ángel Núnez; OLIVEIRA, Willian Terra de; BRITO, Alexis
Couto de. Direito Penal Brasileiro – parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 90.
17 “Os requisitos antes enunciados devem estar presentes (identidade de pessoa, identidade de
objeto e identidade de causa). Todavia, ainda que comprovados ditos elementos, é possível
manter a dupla responsabilidade. A exceção surge a partir de um requisito negativo: a inexis-
tência de uma relação de sujeição especial. Trata-se de hipóteses extraordinárias de especial
supremacia da Administração, nas quais cabe a aplicação de duas sanções. É o caso de delitos
cometidos por servidores públicos ou militares, que podem merecer uma sanção penal e outra
acrescida pela ordem disciplinar, fruto da especial relação que os une à Administração Públi-
ca. Idêntica situação pode acontecer no âmbito penitenciário, no qual cabe a coexistência da
pena com uma medida de natureza disciplinar. Entretanto, as hipóteses de sujeição especial
devem ser excepcionais e contar com uma justificação muito fundamentada”. (OLIVÉ, Juan Car-
los Ferré; PAZ, Miguel Ángel Núnez; OLIVEIRA, Willian Terra de; BRITO, Alexis Couto de. Direito
Penal Brasileiro – parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 90).
18 MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as
sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 210.
19 Aprovada na sessão plenária de 13/12/1963, publicada no 0DJ de 26/04/1962.
20 Resolução nº 10/2008 da CEP. Art. 2º Compete às Comissões de Ética:
(...)
XV – aplicar a penalidade de censura ética ao servidor e encaminhar cópia do ato à unidade de
gestão de pessoal, podendo também:
(...)
d) adotar outras medidas para evitar ou sanar desvios éticos, lavrando, se for o caso, o Acordo
de Conduta Pessoal e Profissional – ACPP
(...)

REFERÊNCIAS

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2008.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: atualizada até a Emenda Constitucional
n° 105. Brasília, DF, 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 20 de janeiro de 2020.

56 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


_______. Lei Complementar nº 35 de 14 de março de 1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da
Magistratura Nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 14 de março de 1979. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp35.htm>. Acesso em: 20 de janeiro
de 2020.
_______. Lei Complementar nº 75 de 20 de maio de 1993. Dispõe sobre a organização, as atribui-
ções e o estatuto do Ministério Público da União. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 21 de maio
de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp75.htm>. Acesso
em: 20 de janeiro de 2020.
_______. Lei Complementar nº 95 de 26 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a elaboração, a re-
dação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art.
59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos
que menciona. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 27 de fevereiro de 1998. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp95.htm>. Acesso em: 20 de janeiro de
2020.
_______. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servido-
res públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diário Oficial
da União. Brasília, DF, 12 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/LEIS/L8112cons.htm>. Acesso em: 20 de janeiro de 2020.
_______. Decreto nº 1.171, de 22 de junho de 1994. Aprova o Código de Ética Profissional do Ser-
vidor Público Civil do Poder Executivo Federal. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 23 de junho
de 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1171.htm>. Acesso
em: 20 de janeiro de 2020.
_______. Decreto nº 6.029, de 01 de fevereiro de 2007. Institui Sistema de Gestão da Ética do Poder
Executivo Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 02 de fevereiro
de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/
d6029.htm>. Acesso em: 20 de janeiro de 2020.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Editora
Atlas, 2012.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros,
2010.
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as san-
ções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Foren-
se, 2014.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 3; ed. São Paulo: RT, 2009.
REZENDE, Rafael Carvalho. Curso de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Método, 2015.

ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON é Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do
ARQUIVO PESSOAL

Rio Grande do Norte – UFRN. Especialista em Ministério Público, Direito e Cidadania pela Escola Superior do Minis-
tério Público do Rio Grande do Norte. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Potiguar.
Ex-professor do curso de direito e de outros cursos de graduação e pós-graduação do Centro Universitário FACEX.
Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Extensão e Responsabilidade Social, vinculado a linha de pesquisa “Demo-
cracia, Cidadania e Direitos Fundamentais” do Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN, campus Natal-Central. Professor
efetivo de Direito do Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN, campus Natal-Central. Articulista e poeta. Autor do livro
Curso de Direito Penal – Teoria Geral do Crime – Vol. I (1. ed., Curitiba: Juruá, art. 2016); Curso de Direito Penal – Teoria Geral da
Pena – Vol. II (1. ed., Curitiba: Juruá, 2017).

WALKYRIA DE OLIVEIRA ROCHA TEIXEIRA é Mestre em educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
ARQUIVO PESSOAL

Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN. Especialista em Jurisdição e Direito Privado pela ESMARN/UNP, especia-
lista em Ministério Público, Direito e Cidadania pela FESMP. Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Extensão
e Responsabilidade Social, vinculado a linha de pesquisa “Democracia, Cidadania e Direitos Fundamentais” do
Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN, campus Natal-Central. Auditora Federal, Advogada, Chefe da
Auditoria Geral do IFRN.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 57


DIVULGAÇÃO
ENFOQUE

Coronavírus:
preferência pelo leito de UTI

POR Eudes Quintino de Oliveira Júnior

“ É tão complexa a situação que os médicos no Bra-


sil estão buscando auxílio na inteligência artificial e
algoritmos para, com base na idade, doenças preexis-
tentes e quadro geral de saúde, encontrar o paciente
com mais chance de sobrevivência e uma razoável ex-
pectativa de alta mais rápida.

C
om o avanço ainda não controlado da pandemia do coronavírus
e se as internações hospitalares continuarem se avolumando, ou-
tra inevitável crise se desenha à frente: demanda de leitos de UTI.
Tanto é verdade que, tentando minorar o quadro, várias cida-
des brasileiras, a toque de caixa, estão se desdobrando e mobilizando para
construir mais leitos de observação e de Unidades de Terapia Intensiva, até
mesmo em estádios de futebol e espaços de grande frequência de público.
O recado dado pelos países europeus mais afetados pela pandemia
é que grande parte dos óbitos ocorreram em razão da ausência de local
médico adequado para o pronto e eficaz atendimento e, principalmente,
desprovido de ventilação mecânica.
Assim, supondo-se que a evolução do coronavírus vá atingir um nível insu-
portável, mesmo com a entrega dos leitos previstos, poderá ocorrer situação
em que vários pacientes graves, ao mesmo tempo, necessitem da utilização
de leitos de UTI, que serão diminutos em razão da exorbitante quantidade
de contaminados. O que fazer e qual o critério de seleção a ser adotado?
Em primeiro lugar, não há qualquer recomendação médica, quer seja
do Ministério da Saúde ou do Conselho Federal de Medicina, a respeito do
assunto, que passa a ser eminentemente ético. Não se trata aqui de um sis-
tema de livre mercado em que as oportunidades são iguais e nem mesmo
de saber quem é mais merecedor em razão de privilégios conquistados ou
decidir simplesmente quem será atirado aos leões, como os antigos cristãos.
Se todos são iguais perante a lei, a igualdade deve predominar, em
qualquer circunstância, com exceção, é claro, se ocorrer fato impeditivo da
realização do direito individual. Pessoas iguais devem receber tratamentos

58 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


iguais. Mas nem sempre é possível aplicar a correta medida do justo. A lei, em razão
da omissão e da peculiaridade do caso, deixa por conta do intérprete a manifestação
a respeito, desde que a decisão seja refletida em princípios que correspondam a uma
communis opinio doctorum e que possam solucionar a contento o impasse.
A título de exemplo, concorrendo ao mesmo tempo a um leito de UTI uma pessoa
jovem e uma mais velha, qual delas teria preferência na seleção? Seria o primeiro deles
que, em razão da sua juventude teria muita vida pela frente e daí merece um inves-
timento maior, ou o mais idoso, por ter até então colaborado com seu esforço para o
engrandecimento social e até mesmo com a unidade hospitalar e agora se encontra em
situação de vulnerabilidade? Trata-se de questionamento possível e fincado em uma rea-
lidade objetiva, merecendo, portanto, uma resposta que seja satisfatória e convincente.
No campo da saúde, mais especificamente na preferência de atendimento, o idoso goza
de certos direitos projetados em seu estatuto próprio e em políticas públicas protetivas. Na
campanha governamental da vacinação da gripe Influenza, por exemplo, o idoso acima
de 60 anos, marco fincado legalmente, lidera o ranking de preferência sobre os demais.
No caso específico da indagação feita, trata-se de uma situação emergencial e que
necessita de resposta pronta e adequada. O critério a ser adotado deve obedecer às regras
não só da igualdade, mas a que promove a própria vida, no sentido de sobrevivência.
Não se deve apontar o desigual, que pode acarretar grandes problemas sociais negativos,
mas sim, dentre os iguais, o que atende mais de perto o critério da continuidade da vida.
Não haveria, de acordo com este critério, diferença entre o mais novo e o mais velho.
A condição de ancianidade, por si só, não irá estabelecer o critério de menos-valia social
nem o da geração mais nova irá ditar a regra preferencial. O que iria distingui-los seria
uma circunstância diferenciada entre eles, localizada exclusivamente nas chances de
retornar à vida com mais sucesso, derrubando de vez o princípio utilitarista de que
investir na vida do mais jovem é o mais recomendado, em razão exclusivamente da
idade e de que trará, consequentemente, dividendos favoráveis ao Estado.
Prevalecem, nesta linha de raciocínio, os princípios da equidade e justiça, em pres-
tígio ao secular brocardo salus suprema lex. Explica Stepke, com a acuidade que lhe
é particular: “O conceito de equidade, não implica um igualitarismo cego. Supõe, na
verdade, uma diferenciação individualizadora, atenta às necessidades, às demandas
e às prioridades das pessoas”.1
É tão complexa a situação que os médicos no Brasil estão buscando auxílio na
inteligência artificial e algoritmos para, com base na idade, doenças preexistentes e
quadro geral de saúde, encontrar o paciente com mais chance de sobrevivência e uma
razoável expectativa de alta mais rápida. As ferramentas, desta feita, de forma clara e
transparente, seguindo rigorosamente o critério proposto, substituirão os médicos e
ficarão responsáveis pela tomada de decisão a respeito do paciente mais indicado para
ocupar o leito de UTI, na pandemia que assola o país.2

NOTAS

1 STEPKE, Fernando Lolas; DRUMOND, José Geraldo de Freitas. Fundamentos de uma antropologia bio-
ética: o apropriado, o bom e o justo. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007, p. 109.
2 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/algoritmos-e-inteligencia-artificial
-podem-ajudar-brasil-a-decidir-sobre-leitos-de-uti.shtml.
ARQUIVO PESSOAL

EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR é Promotor de Justiça aposentado, Mestre em Direito Público, Pós-Dou-
torado em Ciências da Saúde, Reitor da Unorp e Advogado.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 59


VADE MECUM FORENSE

A utilização do sistema
de registro de preços nas
contratações de serviços
de natureza continuada
DIVULGAÇÃO

POR Marinês Restelatto Dotti

“ O sistema de registro de preços foi criado para


atender a diversas necessidades da administração no
intuito de simplificar os procedimentos para a aqui-
sição de serviços frequentes e diminuir o tempo ne-
cessário para a efetivação dessas aquisições, por isso
que sua utilização não se harmoniza com as contra-
tações de serviços contínuos cuja necessidade é ime-
diata, os quantitativos são certos e determinados e
a prestação não pode ser interrompida, sob pena de
resultarem comprometidos os objetivos institucio-

60
nais do órgão ou entidade.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020
O
que caracteriza o caráter contínuo de um serviço é a sua essenciali-
dade para assegurar a integridade do patrimônio público de forma
rotineira e permanente, ou para manter o funcionamento das ativida-
des finalísticas do órgão ou entidade, de modo que a sua interrupção
possa comprometer a prestação do serviço público.
A índole contínua do serviço demanda análise casuística, cujos vetores são:
(a) se a execução do serviço a ser contratado constitui atividade cuja interrupção
possa comprometer os objetivos institucionais; (b) se a prestação deva ocorrer em
período indefinido ou definido e longo, para a satisfação de necessidade pública
permanente; e (c) se a atividade é de apoio à realização das atividades essenciais
do órgão ou entidade.
Disto conclui-se que serviços contínuos são aqueles que constituem necessi-
dade permanente da contratante, que se repetem periódica ou sistematicamente,
ligados ou não a sua atividade fim, ainda que sua execução seja realizada de forma
intermitente ou por diferentes trabalhadores. A título ilustrativo, configuram ser-
viços de natureza contínua: telefonia, vigilância, limpeza e conservação, recepção
e manutenção de elevadores e de veículos.
No âmbito da jurisprudência do Tribunal de Contas da União colhe-se que: [...]
as características necessárias para que um serviço seja considerado contínuo são:
essencialidade, execução de forma contínua, de longa duração, e possibilidade
de que o fracionamento em períodos venha a prejudicar a execução do serviço.
(Acórdão nº 766/2010 – Plenário, Rel. Min. José Jorge, Processo nº 006.693/2009-3).
Serviços continuados, segundo a Instrução Normativa SEGES nº 5, de 2017,
do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (atual Ministério da
Economia), são aqueles que, pela sua essencialidade, visam atender à necessi-
dade pública de forma permanente e contínua, por mais de um exercício finan-
ceiro, assegurando a integridade do patrimônio público ou o funcionamento das
atividades finalísticas do órgão ou entidade, de modo que sua interrupção possa
comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão
institucional.
De outro lado, segundo a referida Instrução Normativa, consideram-se serviços
não continuados ou contratados por escopo aqueles que impõem ao contratado
o dever de realizar a prestação de um serviço específico em um período predeter-
minado, podendo ser prorrogado, desde que justificadamente, pelo prazo neces-
sário à conclusão do objeto, observadas as hipóteses previstas no § 1º do art. 57
da Lei nº 8.666/1993. No contrato por escopo o que se tem em vista é a obtenção
de seu objeto concluído, operando o prazo como limite de tempo para a entrega
da obra, do serviço ou da compra.
Se o serviço não for classificado como de natureza continuada, a duração do
termo de contrato (prazo de vigência) deverá observar a regra do art. 57, caput,
da Lei nº 8.666/1993, ou seja, estará limitada ao exercício financeiro em que
celebrado. O art. 167, II, da Constituição Federal veda a realização de despesas
ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou
adicionais. O art. 57, caput, da Lei nº 8.666/1993, em cumprimento ao comando
constitucional, dispõe que a duração dos contratos por ela regidos deve ficar
adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, os quais são fixados,
anualmente, por meio de lei orçamentária (art. 165, § 5º, da Constituição Federal).

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 61


VADE MECUM FORENSE

A finalidade da lei orçamentária é estimar a receita e fixar a despesa para o exer-


cício financeiro.
Sendo o serviço classificado como de natureza continuada, repercutirá na
duração do termo de contrato, a qual poderá alcançar o limite de sessenta meses
conforme previsto no art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993.

DIPLOMAS QUE ALUDEM À UTILIZAÇÃO DO SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS

Consoante dispõe o art. 11 da Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), as compras


e as contratações de bens e serviços comuns, no âmbito da União, dos estados,
do Distrito Federal e dos municípios, quando efetuadas pelo sistema de registro
de preços previsto no art. 15 da Lei nº 8.666/1993, poderão adotar a modalidade
pregão, conforme regulamento específico.
O diploma citado alude à possibilidade de processamento do sistema de registro
de preços por meio da modalidade pregão, nas contratações que visem a prestação
de serviços comuns, sem especificá-los. Significa, pois, não haver impedimento à
utilização do sistema de registro de preços para a contratação de serviço, de natu-
reza contínua ou não contínua, desde que classificado como comum.
O art. 2º do Decreto Federal nº 7.892/2013 define o sistema de registro de preços
como o conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à pres-
tação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras. Também o decreto
não especifica a natureza dos serviços que podem ser licitados para o registro de
preços, deduzindo-se que podem ser de natureza contínua ou não.
Em julgado recente, a Corte de Contas federal expediu a seguinte recomen-
dação à Advocacia-Geral da União acerca da utilização do sistema de registro
de preços:

[...] 9.6. determinar à Secretaria-Geral de Controle Externo desta Corte que, em reforço
ao constante do item 9.3 do Acórdão 757/2015-Plenário, oriente suas unidades sobre a
necessidade de sempre avaliar os seguintes aspectos em processos envolvendo pregões
para registro de preços: [...]
9.6.2. a hipótese autorizadora para adoção do sistema de registro de preços, indicando
se seria o caso de contratações frequentes e entregas parceladas (e não de contratação e
entrega únicas), ou de atendimento a vários órgãos (e não apenas um), ou de impossibili-
dade de definição prévia do quantitativo a ser demandado (e não de serviços mensurados com
antecedência) – art. 3º do Decreto nº 7.892/2013 e Acórdãos 113 e 1.737/2012, ambos do
Plenário; (grifei) [...]
9.7. recomendar à Advocacia-Geral da União (AGU) que oriente seus membros quanto
à importância de se observarem os aspectos do item 9.6 supra, quando da avaliação de
minutas de editais de pregões para registro de preços; (Acórdão nº 2037/2019 – Plenário,
Rel. Min. Augusto Sherman, Processo nº 014.760/2018-5).

A impossibilidade de definição prévia do quantitativo a ser demandado, citado


no julgado, traduz-se na impossibilidade de previsão do número de demandas ao
fornecedor registrado durante o prazo de validade da ata de registro de preços e
não na indefinição do quantitativo total do objeto. A totalidade do serviço deve ser
previamente definida no planejamento da licitação, em cumprimento ao disposto

62 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


no art. 8º da Lei nº 8.666/1993, verbis: “A execução das obras e dos serviços deve
programar-se, sempre, em sua totalidade, previstos seus custos atual e final e con-
siderados os prazos de sua execução.”

SERVIÇOS CUJA PRESTAÇÃO NÃO PODE SER DISSOCIADA OU FRAGMENTADA

Há serviços em que inexiste demanda por itens isolados, ou seja, os ser-


viços não podem ser dissociados, afastando, por conseguinte, a utilização do sis-
tema de registro de preços que foi criado para atender a diversas necessidades
da administração no intuito de simplificar os procedimentos para a aquisição de
serviços frequentes e diminuir o tempo necessário para a efetivação dessas aqui-
sições, aproximando a administração pública a conceitos modernos de logística,
como o “Almoxarifado Virtual” e o “Just-in-Time”.
Quando a execução do conjunto de ações/tarefas não pode ser dissociada, ou
seja, requer unidade na execução, seja em razão da natureza dos serviços seja em
razão do nível de qualificação exigível para sua execução, impondo ao contratado
o dever de realizar a prestação de um serviço específico o qual não pode ser frag-
mentado, afasta-se a utilização do sistema de registro de preços. Ilustra-se com
a reforma de um prédio, contratada pelo regime de empreitada por preço global,
cuja execução esgota-se com a conclusão dos trabalhos.

CONTRATAÇÃO ÚNICA E INTEGRAL DO OBJETO REGISTRADO

A contratação única e integral do objeto registrado, ocasionando a extinção


do item da ata na primeira contratação, também afasta a utilização do sistema de
registro de preços.
Relembre-se que a utilização do sistema de registro de preços visa a simplificar
os procedimentos para a aquisição de serviços frequentes e diminuir o tempo
necessário para a efetivação dessas aquisições. Não há sentido em utilizar-se o sis-
tema de registro de preços quando a execução do item da ata de registro de preços
esgota-se numa única contratação.

AUSÊNCIA DO DEVIDO DETALHAMENTO DO SERVIÇO

Há serviços que se caracterizam pela impossibilidade de detalhamento prévio


acerca de sua execução, quer dizer, não é possível estimar/detalhar, previamente,
a especificidade do serviço a ser executado, os componentes (peças/acessórios) a
incorporar, o prazo exato para a execução e o correspondente custo do serviço a
ser realizado. Ilustra-se com a manutenção corretiva (conserto) de equipamentos
e de veículos específicos.
Quando a descrição dos serviços não puder ser detalhada no termo de refe-
rência ou projeto básico em razão de o órgão licitante desconhecer suas especifi-
cidades, resulta indevida a utilização do sistema de registro de preços, a atrair, com
maior segurança, a contratação de empresa especializada na prestação de serviço
(in casu, de manutenção) por meio de pregão tradicional ou comum (sendo o ser-
viço de natureza comum) ou outra modalidade licitatória convencional da Lei nº
8.666/1993 (caso a prestação do serviço seja de natureza especial), de que poderá

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 63


VADE MECUM FORENSE

decorrer a celebração de ajuste com prazo de vigência por até sessenta meses, ou
seja, na forma preconizada pelo art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993, caso o serviço seja
considerado de natureza continuada. Surgindo a demanda, ou seja, a necessidade
de encaminhar o equipamento ou veículo para manutenção corretiva (conserto)
este será encaminhado à sociedade empresária vencedora da disputa (contratada)
para a prestação do serviço durante o prazo de vigência do termo de contrato (e não
durante o prazo de validade da ata de registro de preços), o qual poderá alcançar
o limite de sessenta meses, efetivando-se o pagamento em conformidade com o
serviço prestado (atestado pela fiscalização) e o critério de julgamento previsto
no edital da licitação.

AUSÊNCIA DE QUALQUER INDICATIVO DE PADRONIZAÇÃO

De acordo com o Decreto nº 7.892/2013, o sistema de registro de preços poderá


ser adotado quando for conveniente a contratação de serviços para atendimento
a mais de um órgão ou entidade. Tal medida favorece a economia de escada (a
contratação de pequenas quantidades tende a obter preços maiores que a aqui-
sição de maiores quantidades) em razão do maior quantitativo de serviço que será
prestado pelo mesmo fornecedor.
Contudo, não se mostra razoável a utilização do sistema de registro de preços
quando os órgãos participantes da licitação, em função de suas particularidades,
demandem “pacote fechado” de serviços, ou seja, quando os serviços não podem
ser padronizados e, portanto, não podem atender a todos os órgãos participantes,
igualitariamente, em razão de suas próprias funcionalidades/especificidades/
peculiaridades. Apropriado, neste caso, que cada órgão realize licitação própria,
atendendo suas particulares demandas de serviços.

CONTRATAÇÕES PARCELADAS DE UNIDADES DE SERVIÇOS

Contratações parceladas de unidades de serviços, que podem ser dissociadas/


fragmentadas e remuneradas por unidade de medida (como, a título ilustra-
tivo, o pagamento por hora trabalhada ou por metro linear ou metro quadrado
de serviço realizado), ou a demanda incerta do quantitativo de unidades de
serviços, que também podem ser dissociadas e remuneradas por unidade de
medida, durante o prazo de validade da ata de registro de preços, autoriza a
adoção do sistema de registro de preços. Ilustra-se com a prestação de serviço de
pintura de parede em que a administração, no edital, estabelece o quantitativo
total de metros quadrados de pintura a ser realizada no prazo de validade da ata
de registro de preços, remunerando-se a prestação do serviço por unidade de
medida (metro quadrado de pintura realizada), na proporção em que o serviço for
solicitado e executado.

SERVIÇOS CONTÍNUOS PRESTADOS DE FORMA ININTERRUPTA

Há serviços contínuos que se caracterizam por: (a) inexistir contratação futura,


ou seja, a contratada deverá iniciar a prestação do serviço a partir da celebração
do termo de contrato, cuja vigência poderá alcançar sessenta meses; e (b) inexistir

64 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


contratações ou demandas frequentes ou fornecimentos parcelados de serviços,
que dizer, deve haver unidade na execução, caracterizada, ainda, pela ininter-
rupção dos serviços, como, a título ilustrativo: a prestação de serviços de telefonia,
limpeza e conservação, vigilância e de apoio administrativo.
Portanto, há serviços contínuos cuja contratação efetiva-se de forma imediata
(a partir da celebração do termo de contrato), com quantitativos certos e deter-
minados (apurados na fase de planejamento da licitação, com base em exercícios
anteriores), não havendo parcelamento1 das entregas (há unidade na execução),
frequentemente demandados (rotina na prestação) e necessários ininterrupta-
mente, características essas que não se coadunam com a utilização do sistema de
registro de preços que, como já mencionado neste texto, foi criado para atender a
diversas necessidades da administração no intuito de simplificar os procedimentos
para a aquisição de serviços frequentes e diminuir o tempo necessário para a efe-
tivação dessas aquisições.
Veja-se o seguinte precedente da Corte de Contas Federal, autorizador da adoção
do sistema de registro de preços na contratação de serviço contínuo:

Voto do Ministro Relator


[...]
Após exame detalhado da questão, com as devidas vênias do Parquet e da secretária
em exercício da Serur, alinho-me ao exame empreendido pela auditora da unidade técnica,
pelos motivos que passo a expor.
Preliminarmente, registro que é pacífico no âmbito desta Corte e do Judiciário que o
sistema de registro de preços, antes restrito a compras, pode ser utilizado na contratação
de prestação de serviços, notadamente em face das modificações normativas introduzidas
pela Lei nº 10.520/2002.
Um dos impedimentos apontados pelas instâncias precedentes para utilização do SRP
para contratação de serviços contínuos é a possibilidade de mensuração, no caso concreto,
dos quantitativos a serem contratados. Isso resultaria em não enquadramento da situação
de fato à condição estabelecida no inciso IV do decreto normatizador do sistema.
Para melhor compreensão do assunto, transcrevo o art. 2º do Decreto nº 3.931/2001,
que regula o SRP na esfera federal:
Art. 2º Será adotado, preferencialmente, o SRP nas seguintes hipóteses:
I – quando, pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contrata-
ções frequentes;
II – quando for mais conveniente a aquisição de bens com previsão de entregas par-
celadas ou contratação de serviços necessários à Administração para o desempenho
de suas atribuições;
III – quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para aten-
dimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; e
IV – quando pela natureza do objeto não for possível definir previamente o quantitativo
a ser demandado pela Administração.
Uma das hipóteses delimitadas no citado dispositivo aduz que o SRP deve ser preferen-
cialmente adotado nos casos em que o montante a ser contratado não puder ser definido
antecipadamente.
É fato que os serviços de natureza continuada devem ser objeto de programação tal
que permita a definição prévia dos quantitativos a serem contratados e, portanto, em regra

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 65


VADE MECUM FORENSE

não se enquadram na exigência disposta no inciso IV transcrito acima. Entretanto, não vejo
óbices para que eventuais contratações atendam a um dos demais incisos do referido dis-
positivo, pois a subsunção da situação de fato a apenas uma dessas condições pode tornar
regular a utilização do sistema de registro de preços.
A proibição apenas em razão de não haver incerteza nos quantitativos a serem con-
tratados resultaria em interpretação tal que condicionaria a adoção do registro de preços
aos casos de preenchimento cumulativo de todas as hipóteses elencadas no art. 2º do
Decreto, o que considero limitar o SRP excessivamente e extrapolar os limites legalmente
estabelecidos.
Vislumbro a importância da utilização do SRP nos casos enquadrados no inciso III, por
exemplo, onde, a partir de uma cooperação mútua entre órgãos/entidades diferentes,
incluindo aí um planejamento consistente de suas necessidades, a formação de uma ata
de registro de preços poderia resultar em benefícios importantes. Também nos casos de
contratação de serviços frequentemente demandados, mas que não sejam necessários inin-
terruptamente, a ata poderia ser uma solução eficaz e que se coaduna com a eficiência e a
economicidade almejadas na aplicação de recursos públicos (grifei) (Acórdão nº 1.737/2012
– Plenário, Processo nº 016.762/2009-6, Rel. Min. Ana Arraes).

De acordo com a Corte de Contas federal, serviços frequentemente demandados,


ou seja, de natureza contínua, e necessários ininterruptamente não se coadunam
com a utilização do sistema de registro de preços.
Há órgãos e entidades da administração pública que justificam a utilização
do sistema de registro de preços que vise a contratação de serviço contínuo em
razão da “impossibilidade de estabelecer-se uma previsão de quantitativos a serem
contratados”. Ocorre que deve haver estimativa prévia e precisa2 da demanda por
serviços contínuos, cujo levantamento tomará por base as contratações realizadas
em exercícios anteriores e o disposto no art. 8º da Lei nº 8.666/1993.
Dispõe o Decreto nº 7.892/2013 que:

Art. 3º O Sistema de Registro de Preços poderá ser adotado nas seguintes hipóteses:
[...]
IV – quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantita-
tivo a ser demandado pela Administração.

O disposto no art. 3º, IV, do Decreto traduz a impossibilidade de previsão do


número de demandas ao fornecedor registrado durante o prazo de validade da ata
de registro de preços, e não na indefinição da quantidade total do objeto. A tota-
lidade deve estar devidamente demonstrada no processo licitatório, ou seja, deve
ser previamente definida no planejamento da licitação. As demandas, quando
efetuadas no prazo de validade da ata, estarão limitadas a essa totalidade, previa-
mente fixada no edital da licitação.
O Tribunal de Contas da União assentou, ainda, o entendimento de que esse dis-
positivo do Decreto Federal não se aplica a serviços contínuos, porque, nesses objetos,
os quantitativos dos serviços devem ser mensurados com antecedência. Assim:

25. Nos termos do art. 2º, inciso I, do Decreto 7.892/2013, o sistema de registro de preços
é “conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços

66 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


e aquisição de bens, para contratações futuras”. A utilização da ata tem por objetivo permitir
sucessivas contratações independentes, a serem formalizadas ao longo do ano com base
em quantitativos definidos de acordo com a necessidade da administração.
26. Para utilização do sistema de registro de preços no caso de serviços contínuos, os quanti-
tativos dos serviços devem ser mensurados com antecedência. Isso impede o enquadramento de
casos dessa natureza à hipótese prevista no inciso IV do art. 3º do Decreto 7.892/2013 (acórdão
1.737/2012 – Plenário). (grifei) (Acórdão nº 1.391/2014 – Plenário, Rel. Min. Ana Arraes, Pro-
cesso nº 002.627/2014-0).

O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS NO NOVO MARCO DAS LICITAÇÕES

O Projeto de Lei nº 1292, de 1995, que almeja revogar a Lei nº 8.666/1993, a Lei
nº 10.520/2002 e, também, a Lei nº 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Con-
tratações Públicas – RDC), assim dispõe a respeito da utilização do sistema de
registro de preços:

Art. 6º [...]
XLV – sistema de registro de preços: conjunto de procedimentos para realização, mediante
contratação direta ou licitação nas modalidades pregão ou concorrência, de registro formal
de preços relativos a prestação de serviços, a obras e a aquisição e locação de bens para
contratações futuras;
[...]
Art. 81 [...]
§ 5º O sistema de registro de preços poderá ser usado para a contratação de bens e
serviços, inclusive de obras e serviços de engenharia, e observará as seguintes condições:
[...]
Art. 84. A Administração poderá contratar a execução de obras e serviços de engenharia
pelo sistema de registro de preços, desde que atendidos os seguintes requisitos:
I – existência de projeto padronizado, sem complexidade técnica e operacional;
II – necessidade permanente ou frequente de obra ou serviço a ser contratado.

Veja-se que no novo marco legal das licitações será possível a utilização do
sistema de registro de preços para futuras contratações de serviços, inclusive de
engenharia, obras e aquisições e locações de bens.
Nas contratações de serviços de engenharia e obras, o sistema de registro de
preços somente será admitido se existir projeto padronizado, sem complexidade
técnica e operacional, e necessidade permanente ou frequente da obra ou ser-
viço a ser contratado, requisito esse que se compatibiliza com o atual sistema de
registro de preços o qual privilegia sua utilização quando necessária a realização
de contratações frequentes de um mesmo objeto (contratações de um mesmo
objeto que podem ser dissociadas ou fragmentadas), com o propósito de diminuir
o tempo necessário para a efetivação das aquisições necessárias ao atendimento
das demandas da administração.
O Projeto de Lei mantém a utilização das modalidades pregão e concorrência
para o processamento do sistema de registro de preços, nos moldes do atual regime
de licitações. Veja-se, contudo, que não há sentido em manter-se a previsão dessas
duas modalidades no novo marco legal, aplicáveis para o processamento do sistema

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 67


VADE MECUM FORENSE

de registro de preços, quando o rito procedimental é o mesmo para ambas as moda-


lidades (preparatória; divulgação do edital de licitação;
 apresentação de propostas
e lances, quando for o caso; julgamento; habilitação;
 recursal;
 e homologação).
Isso acarretará dúvidas por parte dos agentes públicos que atuam nos processos
de licitação, ou seja, dúvidas sobre qual modalidade licitatória será a adequada
para o caso específico, ensejando apontamentos pelos órgãos de controle quando
a solução adotada não for a acertada.
Ideal que o novo marco legal não contemplasse modalidades licitatórias,
mantendo-se o rito procedimental ordinário previsto no seu texto para o proces-
samento das licitações, inclusive para o sistema de registro de preços.
A novidade no Projeto de Lei é a possibilidade de utilização do sistema de
registro de preços por meio de contratação direta, ou seja, por meio de dispensa
ou inexigibilidade de licitação, mas, unicamente, para a aquisição de bens ou para
a contratação de serviços por mais de um órgão ou entidade. Tal possibilidade não
terá aplicabilidade imediata, quer dizer, dependerá de regulamentação específica.

CONCLUSÃO

É inegável as vantagens produzidas pelo sistema de registro de preços, tais como:


(a) redução da quantidade de licitações, em virtude da desnecessidade de realizar
certames seguidos com objetos semelhantes; (b) eliminação do fracionamento de
despesa, visto que o registro de preços deve ser precedido de procedimento licita-
tório; (c) não há obrigação de a administração adquirir o quantitativo registrado;
e (d) possibilidade de maior economia de escala, uma vez que diversos órgãos e
entidades podem participar da mesma ata de registro de preços, adquirindo em
conjunto produtos ou serviços para o prazo de até um ano.
Consoante estabelece o art. 2º do Decreto Federal nº 7.892/2013, o sistema de
registro de preços constitui-se no conjunto de procedimentos para registro formal
de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações
futuras. Já o art. 11 da Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), estabelece que as com-
pras e as contratações de bens e serviços comuns, no âmbito da União, dos estados,
do Distrito Federal e dos municípios, quando efetuadas pelo sistema de registro
de preços previsto no art. 15 da Lei nº 8.666/1993, poderão adotar a modalidade
pregão, conforme regulamento específico. Ambos os diplomas aludem à possibili-
dade de utilização do sistema de registro de preços para a contratação de serviços,
sem especificar sua natureza (contínua ou não contínua).
Há, contudo, determinados serviços cuja prestação não se coaduna com a
utilização do sistema de registro de preços, por configurarem: serviços que não
podem ser dissociados ou fragmentados; serviços em que a contratação efetiva-se
de forma única e integral, ou seja, esgotam-se numa única contratação; serviços
caracterizados pela ausência de detalhamento; e serviços em que inexiste indica-
tivo de padronização necessária a atender diversos órgãos e/ou entidades.
O sistema de registro de preços foi criado para atender a diversas necessidades
da administração no intuito de simplificar os procedimentos para a aquisição de
serviços frequentes e diminuir o tempo necessário para a efetivação dessas aquisi-
ções, por isso que sua utilização não se harmoniza com as contratações de serviços
contínuos cuja necessidade é imediata, os quantitativos são certos e determinados

68 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


e a prestação não pode ser interrompida, sob pena de resultarem comprometidos
os objetivos institucionais do órgão ou entidade.
A dúvida quanto à adequação do sistema de registro de preços no caso con-
creto de prestação de serviço de natureza continuada é atraente da utilização do
pregão comum ou tradicional, aplicável, segundo o art. 1º da Lei nº 10.520/2002,
à contratação de qualquer serviço, desde que de natureza comum. A utilização do
pregão, comum ou tradicional, constitui-se em alternativa segura para a concre-
tização do negócio jurídico, por meio da celebração de termo de contrato entre a
administração e o vencedor da disputa, cuja vigência poderá alcançar o limite de
sessenta meses, na forma preconizada pelo art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993. Ante
eventual necessidade de acréscimo3 do objeto, durante a execução do contrato,
quer dizer, eventual alteração da demanda de serviço, aplicar-se-á o disposto no
art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/1993, formalizando-se a modificação pretendida por
meio de termo aditivo.
 
NOTAS

1 O Tribunal de Contas da União deu ciência a uma prefeitura municipal de que em licitação rea-
lizada por meio de pregão eletrônico foi detectada a utilização do sistema de registro de pre-
ços para contratação imediata de serviços continuados e específicos, com quantitativos certos
e determinados, não havendo parcelamento de entregas do objeto, em descumprimento ao
disposto no art. 3° do Decreto Federal nº 7.892/13 (Acórdão nº 1.604/2017 – Plenário, Rel. Min.
Vital do Rêgo, Processo nº 017.311/2016-3).
2 A Lei nº 8.666/1993 (art. 6º, IX) define o projeto básico como sendo o conjunto de elementos
necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço,
ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos
estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento
do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a
definição dos métodos e do prazo de execução. Já o art. 3º, II, da Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pre-
gão) estabelece que na fase preparatória do pregão o objeto da licitação deverá ser definido
de forma precisa, suficiente e clara, vedadas especificações que, por excessivas, irrelevantes ou
desnecessárias, limitem a competição.
3 Veja-se que de acordo com o art. 12, § 1º, do Decreto nº 7.892/2013, é vedado efetuar acrésci-
mos nos quantitativos fixados pela ata de registro de preços, inclusive o acréscimo de que trata
o § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666/1993. Já o termo de contrato decorrente da ata de registro de
preços admite alterações, consoante estabelece o § 3º do art. 12 do referido diploma.

MARINÊS RESTELATTO DOTTI é Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia
ARQUIVO PESSOAL

pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora da seguinte obra: Governança nas
contratações públicas – Aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência – Inter-relação com o
direito fundamental à boa administração e o combate à corrupção. Coautora das seguintes obras: (a) Políticas
públicas nas licitações e contratações administrativas; (b) Limitações constitucionais da atividade contratual da
administração pública; (c) Convênios e outros instrumentos de Administração Consensual na gestão pública do século XXI.
Restrições em ano eleitoral; (d) Da responsabilidade de agentes públicos e privados nos processos administrativos de licitação
e contratação; (e) Gestão e probidade na parceria entre Estado, OS e OSCIP; (f ) Microempresas, empresas de pequeno porte
e sociedades cooperativas nas contratações públicas; (g) Comentários ao RDC integrado ao sistema brasileiro de licitações e
contratações públicas; (h) 1000 perguntas e respostas necessárias sobre licitação e contrato administrativo na ordem jurídica
brasileira; e (i) Comentários à lei das empresas estatais: Lei nº 13.303/16. Colaboradora nas obras: (a) Direito do estado: Novas
tendências; (b) Direito Público do Trabalho – Estudos em homenagem a Ivan D. Rodrigues Alves; (c) Contratações públicas –
Estudos em homenagem ao professor Carlos Pinto Coelho Motta; (d) Licitações públicas – Estudos em homenagem ao jurista
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes; (e) Comentários ao sistema legal brasileiro de licitações e contratos administrativos; e (f ) Temas
Atuais de Direito Público. Professora nos cursos de: Pós-Graduação em Direito Público com ênfase em Direito Administrativo
da UniRitter – Laureate International Universities e em Direito Administrativo e Gestão Pública da Fundação Escola Superior do
Ministério Público no Estado do Rio Grande do Sul. Professora nos seguintes cursos de extensão: “Capacitação em Licitações
e Contratos Administrativos” da Escola da Magistratura no Estado do Rio Grande do Sul, “Prática em Licitações e Contratações
Públicas” e “Prática em Licitações e Contratações das Empresas Estatais” da Escola Superior da Magistratura Federal do Estado
do Rio Grande do Sul. Conferencista na área de licitações e contratações da administração pública

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PRÁTICA JURÍDICA

Prisão temporária em
crimes associativos
(organização criminosa,
associação criminosa entre outros):
A desestabilização associativa
DIVULGAÇÃO

POR Breno Eduardo Campos Alves e Joaquim Leitão Júnior

“ É possível sustentar que a prisão temporária cabe-


ria à associação criminosa, como argumento de plano
lógico-indutivo, sendo positiva a ação do legislador
(ente) no intuito de modernizar a Lei de Prisão Tem-
porária, visando atingir em maior raio seu objetivo de
ser apoio, caminho, meio, para avanço do conteúdo
de uma investigação e evitar argumentos defensivos
em direção oposta.

A
prisão temporária é determinada pela doutrina jurídi-
co-penal como sendo uma espécie de prisão cautelar, a
qual detém seus contornos legais insculpidos nas normas
penais da Lei nº 7.960 de 1989. Por ser cautelar, pressu-
põe uma ampla conceituação e delimitação, visto não ser uma prisão
definitiva (prisão-condenação). Assim, a conceituação desta espécie
de prisão advém da própria lei que a institui, tendo em vista que a
sua delimitação é, também, a sua definição, ou seja, a resposta de
qual a sua finalidade, sua aplicabilidade e sua duração.

70 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


A Lei de Prisão Temporária já se inicia, em seu primeiro artigo, estabelecendo
quando esta será cabível, ou seja, suas hipóteses legais de existência, sendo assim,
após verificarmos estas proposições é que será possível retirar o seu cerne existencial.
Essa espécie de prisão cautelar prevê seu cabimento (i) quando imprescindível
para as investigações do inquérito policial; (ii) quando o indiciado não tiver resi-
dência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identi-
dade; (iii) quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida
na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:
a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2º); b) sequestro ou cárcere privado
(art. 148, caput, e seus §§ 1º e 2º); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1º, 2º e 3º);
d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1º e 2º); e) extorsão mediante sequestro (art.
159, caput, e seus §§ 1º, 2º e 3º); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com
o art. 223, caput, e parágrafo único); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput,
e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); h) rapto violento (art.
219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único); i) epidemia com
resultado de morte (art. 267, § 1º); j) envenenamento de água potável ou substância
alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com
art. 285);l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts.
1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956), em qualquer de sua formas
típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976); o)
crimes contra o sistema financeiro (Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986); p) crimes
previstos na Lei de Terrorismo. (Incluído pela Lei nº 13.260, de 2016).
Retiramos em primeira exegese que a referida modalidade de prisão não se
aplica a qualquer crime, ninguém pode ser preso temporariamente por crime de
ameaça, descrito na norma penal do art. 147 do CPB, ou por crime de dano, pre-
visto na norma penal do art. 163 do CPB. Por outro lado, mas no mesmo norte,
percebe-se que a referida legislação previu, em critério de taxatividade, o rol de
crimes onde as investigações policiais podem lançar mão desta modalidade de
prisão, sendo apenas em alguns crimes graves e gravíssimos.
Nota-se que dentro de um universo magnânimo – sobretudo o da legislação
penal brasileira – temos uma limitação de apenas 15 estirpes de crimes nos quais
a medida de prisão temporária é cabível. O professor-doutor Leonardo Yarochesky
descreveu que “atualmente no Brasil há 1.688 tipos penais (modelos de comporta-
mento proibido) previstos no Código Penal e em diversas leis especiais ou extra-
vagantes como, por exemplo, o Código de Trânsito Brasileiro, a Lei de Drogas, a
Lei dos crimes contra ordem tributária e tantas outras” (2016).
Para entabular um parâmetro de comparação legislativa, a Lei de Crimes
Hediondos (Lei nº 8.072/90) prevê como tal o magote de 16 (dezesseis) estirpes
de crimes rotulados pela hediondez ou equiparados a tal. Diante deste quadro,
demonstra-se o caráter reduzido de abrangência e aplicabilidade do instituto jurí-
dico penal em comento no presente trabalho depurativo.
Avançamos assim quanto à sua definição, a qual além de ser uma espécie de prisão
cautelar, somente o é possível ser decretada/utilizada (utilitarismo) no decorrer
de investigações de inquérito policial aptos a apurar pequenas famílias de crimes.
Seguimos.
Além da previsibilidade taxativa da qual tergiversamos, temos – uma ou outra
(para alguns doutrinadores), as duas (para outros doutrinadores) – a existência de
elementos a serem preenchidos para cabimento/implementação (aqui usamos o

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 71


PRÁTICA JURÍDICA

termo implementação em virtude de ser medida com finalidade específica e com


duração redigida pela lei), tais sejam: (i) quando imprescindível para as investi-
gações do inquérito policial; (ii) quando o indicado não tiver residência fixa ou
não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade. Desta
forma, para o intento lógico desenhado neste ensaio, faremos referência somente
ao elemento (i), o qual detém o cerne da questão aqui proposta.
A medida – prisão temporária –, então, é cabível quando imprescindível para as
investigações do inquérito policial, sendo termo aberto em virtude das enésimas
diligências que uma investigação policial possa ter em seu bojo, não sendo possível,
obviamente, pela contextualização fática que a vida humana tem, taxar as condutas
e as modalidades indutivas ou dedutivas de se encontrar elementos que a eviden-
ciem como uma ocorrência fática no mundo real; ou, em termos simples: não é
possível taxar todas as formas de se demonstrar algo junto ao inquérito policial.
Diante disso, temos, também em síntese, que a imprescindibilidade evidencia-
se quando a medida se torna necessária, referencial, com a qual a investigação
avançará sobre o seu objeto.
Antes de concluirmos a análise deste instituto jurídico-penal, vamos escla-
recer conceitualmente dois outros institutos – investigação criminal e concurso de
agentes (crimes associativos) – para conseguirmos chegar a uma conclusão lógica
e sustentável dentro do panorama legal.
Primeiro, adiantemos quanto ao conceito moderno de investigação criminal,
o qual extraímos junto ao professor Celio Jacinto dos Santos:

“De maneira singela e objetiva, podemos afirmar que a investigação criminal ampla
consiste em procedimento metódico e regulado empregue no conhecimento de um
evento criminal, que proporciona ao sujeito cognoscente informações sobre o mesmo, e
que lhe permite o encaminhamento de uma solução, seja ela parcial provisória ou defini-
tiva” (SANTOS, 2020, p. 67).

Segundo, adiantemos quanto ao conceito de concurso de pessoas (crimes


associativos), o qual extraímos junto ao professor Cleber Masson, o qual descreve:

“Na redação original da Parte Geral do Código Penal, isto é, anteriormente à entrada em
vigor da Lei nº 7.209/1984, o instituto era denominado simplesmente de “coautoria”, de forma
pouco abrangente e imprecisa, por desprezar a figura da participação. Atualmente, o Código
Penal fala em “concursos de pessoas”. (...) É a colaboração empreendida por duas ou mais pes-
soas para a realização de um crime ou de uma contravenção penal” (MASSON, 2016, p. 564).

Ressalvamos que, apesar de mencionarmos o concurso de pessoas no contexto


acima, optamos pela descrição no presente ensaio do termo “crimes associativos”,
pois este termo engloba de forma ampla qualquer crime que tenha por base o ajuste
prévio de execução por parte de dois ou mais indivíduos, sejam eles quem for, não
sendo somente quando da conclusão, mas também quando seja uma hipótese a
ser confirmada (parcial provisória).
Pois bem, após entabularmos os parâmetros da prisão temporária; conceitu-
armos a investigação criminal e os crimes associativos; vamos produzir a síntese,
qual seja, uma definição técnico-jurídica de uma hipótese de cabimento de prisão
temporária em crimes associativos.

72 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


Raciocinemos que uma investigação policial está em curso tendo o objeto da
investigação uma espécie de crime previsto na lei de prisão temporária, sendo que
o referido delito se tratou de um crime associativo (que teve a participação de dois
ou mais autores), e, até este ponto hipotético, a investigação chegou a elementos
mínimos de autoria e materialidade em desfavor de um dos autores, ou parte deles.
Pois bem, neste ponto, estamos diante da possibilidade de utilizarmos a técnica
da desestabilização, ou seja, apenas com a utilização desta técnica investigativa
se avançaremos sobre o objeto de apuração, sendo imprescindível (sob pena do
objeto não ser totalmente descortinado).
Sendo a atuação investigativa no âmbito de um Inquérito Policial considerada
técnico-jurídica, alinham-se, a dogmática jurídica de hipóteses legais de cabimento
de determinada medida à sua natureza técnica apontada pela “imprescindibilidade
das investigações”, alcançada pela formulação de ser elemento de desestabilização
da associação em sentido amplo. Explicamos:
A segregação temporária dos já identificados poderá ser capaz de desestabilizar
os demais asseclas, propiciando um ambiente investigativo onde mais elementos
probatórios poderão ser encontrados. A desestabilização é técnica apta em inves-
tigações de crimes associativos, sendo fonte de elementos probatórios e, assim,
principal razão de interrupção em ciclos de violência sob dois víeis: (1) associação
permanente; (2) associação não-permanente.
Na associação permanente (conceituação da investigação criminal) temos: cri-
minosos agrupados que se estabilizam em atividades rotineiras de ganho com o
crime, os quais só terão suas ações prejudicadas/desalinhadas/desestabilizadas se
houver ação estatal em seus esteios. Desta forma, a segregação de alguns autores de
crimes associados já gera, por si só, do ponto de vista policial-investigativo, aber-
tura do ciclo criminoso (antes ocupado pelo sigilo dos participantes do crime) e
um ambiente apto a maiores coletas de dados e elementos de informação.
Por outro lado, a medida de desestabilização será apta a demonstrar, também,
se estar-se-á diante de uma associação não-permanente (conceituação da inves-
tigação criminal), mas gerará, da mesma forma e do mesmo ímpeto, por vezes até
maior, a possibilidade de adentrar no ambiente de maior coleta de informações
e elementos probatórios.

DA ANÁLISE DO CABIMENTO EM ESPECIAL DA MEDIDA CAUTELAR DE PRISÃO


TEMPORÁRIA FRENTE AO DELITO DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA, EM VISTA
DAS ÚLTIMAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS

A doutrina capitaneada por, Jayme Walmer de Freitas, leciona que:

“Por ter vida própria dentro do inquérito policial, a prisão temporária é cautelar des-
tinada a legitimar, imediatamente (tutela-meio) a investigação policial e mediatamente
(tutela-fim), angariar substrato material ao órgão acusador para ajuizamento da ação penal”.
(FREITAS, 2004, p. 99).

É notável que a imprescindibilidade da medida excepcional de prisão tempo-


rária para as investigações do inquérito policial deve ser concretamente demons-
trada, para seu acolhimento.
O art. 282, incisos I ‘usque’ § 6º, todos do Código de Processo Penal disciplina que:

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 73


PRÁTICA JURÍDICA

“Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: 
I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal
e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; 
II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pes-
soais do indiciado ou acusado.
§ 1º As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente. 
§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das
partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade poli-
cial ou mediante requerimento do Ministério Público. 
§ 3º Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao
receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompa-
nhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo.
§ 4º No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício
ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá
substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão pre-
ventiva (art. 312, parágrafo único). 
§ 5º O juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta
de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a
justifiquem. 
§ 6º A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição
por outra medida cautelar (art. 319)”.

Já o art. 283, do mesmo diploma adjetivo penal, reza que:

“Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença conde-
natória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de
prisão temporária ou prisão preventiva.”

A prisão temporária deve então a um só tempo amoldar ao trinômio exigido


com advento da Lei Federal nº 12.403/2011 nas vertentes da: necessidade, ade-
quação e proporcionalidade.
Como já dito, para a decretação da medida cautelar de prisão temporária é
necessário observar se estão preenchidos os seus fundamentos, de acordo com o
que prescreve o artigo 1º, da Lei nº 7.960/89, in verbis:

“Art. 1º Caberá prisão temporária:


I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
II – quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários
ao esclarecimento de sua identidade;
III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legis-
lação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:
(...)
l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; [grifos nossos]
(...)”

A maioria da doutrina entende que para a decretação dessa prisão de natureza


cautelar é necessária a presença da situação contida, ou no inciso I ou no II, em
concomitância com a do inciso III.

74 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


Nesse sentido, Damásio Evangelista de Jesus e Antonio Magalhães Gomes Filho:

“Segundo Damásio E. de Jesus e Antonio Magalhães Gomes Filho, a prisão temporária


só pode ser decretada naqueles crimes apontados pela lei. Nestes crimes, desde que con-
corra qualquer uma das duas primeiras situações, caberá a prisão temporária. Assim, se a
medida for imprescindível para as investigações ou se o endereço ou identificação do indi-
ciado forem incertos, caberá a prisão cautelar, mas desde que o crime seja um dos indicados
por lei.” (CAPEZ, p. 234/235).

Há a discussão doutrinária se à modificação legislativa do antigo crime de


formação de quadrilha ou bando – que estaria previsto na lei de prisão tempo-
rária – para associação criminosa teria retirado a possibilidade deste importante
instrumento, já que este nomen iuris não consta expressamente na Lei de Prisão
Temporária.
Calha salientar neste ponto que, houve o princípio da continuidade normativo-
típica, o que em outras palavras traduz que a antiga conduta não foi revogada pela
nova roupagem, onde apenas o nomen iuris e a quantidade de agentes para fins
de configuração por si só é que alteraram, restando viva a higidez dessa alínea “l”
para os fins de decretação da prisão temporária. Nesse diapasão, nos valemos dos
ensinamentos do professor, Renato Brasileiro de Lima:

“Por consequência, por força do princípio da continuidade normativo-típica, o art. 1º,


III, “l”, da Lei nº 7.960/89, continua válido. Todavia, onde se lê “quadrilha ou bando”, deverá
se ler, a partir da vigência da Lei nº 12.850/13, “associação criminosa” (LIMA,2014, pág. 655).

Nesse quadrante, é possível sustentar que a prisão temporária caberia ainda ao


crime de associação criminosa, pelo princípio da continuidade normativo-típica,
como argumento, já que em essência houve apenas a modificação do “nomen iuris”
ao crime em si. Ora, se podia a prisão temporária na antiga infração penal deno-
minada de “formação de quadrilha ou bando”, os mesmos motivos permanecem
na sucedida “associação criminosa” (pelo princípio da continuidade normativo-
típica). Em nosso pensar, houve então uma singela alteração apenas do “nomen
juris”, onde esta formalidade não tem força hercúlea para impedir o uso da prisão
temporária ao crime de “associação criminosa” ainda que sob o argumento do
princípio da taxatividade, porquanto se cuida de uma nova modalidade daquilo
que se tinha antes denominado de “quadrilha ou bando” de forma ampliada.
O fato de a Lei da Prisão Temporária ainda não ter sido atualizada e positivada
nesta direção até o momento, deveria sofrer uma “interpretação corretiva” para se
ler crime de “associação criminosa” em substituição ao antigo crime de “formação
de quadrilha e bando”, em vista do princípio da continuidade normativo-típica.
No que toca à possibilidade de prisão temporária apenas e tão somente à orga-
nização criminosa, a mesma sorte não assiste, sendo apenas possível se houver o
concurso de outros crimes que caibam à prisão temporária (como no exemplo de
crime de tráfico de drogas em concurso de crime com organização criminosa). Nas
palavras pontuais do delegado de polícia, Eduardo Luiz Santos Cabette, este ensina que:

“[...] Enquanto isso não se opera, a única hipótese de decreto de temporária em casos
de “Organização Criminosa” ou “Constituição de Milícia Privada” será por meio dos crimes

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 75


PRÁTICA JURÍDICA

a serem eventualmente perpetrados pelos respectivos grupos delinquentes para os quais


caiba expressamente o decreto da temporária. Por exemplo: se uma organização criminosa
se dedica ao tráfico de drogas, à extorsão, ao roubo, à extorsão mediante sequestro etc. Em
suma, a Prisão Temporária nesses casos somente será cabível por reflexo e não independen-
temente para a investigação específica da “Organização Criminosa” ou da “Constituição de
Milícia Privada” (CABETTE, 2013, p. 1).

Neste sentido aponta o Projeto de Lei nº 3.764/2019, o qual tramita na Câmera


dos Deputados, onde se intenta a modernização da Lei de Prisão Temporária, aper-
feiçoando o rol taxativo para o novo nomen iuris do crime de associação crimi-
nosa e incluindo na taxatividade os crimes específicos de organização criminosa
(Lei nº 12.850, de 2013) e os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e
valores (Lei nº 9.613 de 1998).

DA FUNDAMENTAÇÃO DA PRISÃO TEMPORÁRIA E DA LEI DE ABUSO DE


AUTORIDADE

A nova Lei de Abuso de Autoridade – Lei nº 13.869/19 – gerou desde sua publi-
cação enésimas discussões sobre a atuação de juízes, promotores e delegados de
polícia, criando um espectro de incertezas quanto ao entendimento do movimento
de fundamentação de decisões administrativas e judiciais que detenham relação
com a prática penal-processual. Frisa-se que a lei de abuso de autoridade deu nova
redação e alterou a Lei de Prisão Temporária nos seguintes termos:

§ 4º-A O mandado de prisão conterá necessariamente o período de duração da prisão


temporária estabelecido no caput deste artigo, bem como o dia em que o preso deverá
ser libertado.
§ 7º Decorrido o prazo contido no mandado de prisão, a autoridade responsável pela
custódia deverá, independentemente de nova ordem da autoridade judicial, pôr imedia-
tamente o preso em liberdade, salvo se já tiver sido comunicada da prorrogação da prisão
temporária ou da decretação da prisão preventiva.
§ 8º Inclui-se o dia do cumprimento do mandado de prisão no cômputo do prazo de
prisão temporária.

Entretanto, a correlação entre esta nova normativa e o propósito do presente


ensaio se dá no tocante à figura típica criada abaixo, vejamos:

Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com


as hipóteses legais:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Neste ponto, uma decisão que decreta a prisão deve ter em si fundamentos
para tanto, ou seja, devem ser encaixadas às hipóteses legais que se estruturaram
em todo ordenamento jurídico, criando um lastro de legalidade. Assim, torna-se
imperioso a estruturação de forma técnica – e sua relação com a doutrina jurídica
– do termo “imprescindíveis para as investigações do inquérito policial”, tendo,
na presente proposta, uma das hipóteses legais de cabimento quando diante de
crimes associativos.

76 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em arremate, a prisão temporária pode ser – a critério de aplicabilidade da


autoridade policial que conduz a investigação – imprescindível para investiga-
ções de crimes previstos na lei que regula a matéria, se estes crimes associativos,
que foram cometidos por ajustes de dois ou mais autores, pois a desestabilização
gerada com a prisão deste(s) indivíduo(s) gerará um ambiente propício ao avanço
da investigação e identificação de mais elementos probatórios, de autoria e de
co-autoria, de partícipes e de quaisquer concorrentes.
Temos assim, uma construção lógica de raciocínio técnico-jurídico para apli-
cação da prisão temporária da qual encapamos sob o nome de técnica da deses-
tabilização associativa (técnica do abalo).
Ademais, entendemos também que, é possível sustentar que a prisão tempo-
rária caberia à associação criminosa, como argumento de plano lógico-indutivo,
sendo positiva a ação do legislador (ente) no intuito de modernizar a Lei de Prisão
Temporária, visando atingir em maior raio seu objetivo de ser apoio, caminho,
meio, para avanço do conteúdo de uma investigação e evitar argumentos defen-
sivos em direção oposta.
Em tom derradeiro, entendemos que a prisão temporária não seria possível ao
crime de organização criminosa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Câmera dos Deputados. Projeto de Lei PL 3764/2019. Altera a Lei nº 7.960, de 21 dezem-
bro de 1989, que dispõe sobre prisão temporária.. Disponível em: <https://www.camara.leg.
br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1770513> . Acesso em: 18 abr. 2020. Texto
Original.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Organização criminosa, milícia privada e associação criminosa: pri-
são temporária. Publicado em 09 de dezembro de 2013 no site do JusBrasil. Disponível em:
<https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/121938026/organizacao-criminosa-milicia
-privada-e-associacao-criminosa-prisao-temporaria>. Acesso em 18 de abril de 2020.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10. ed. Saraiva.
FREITAS, Jayme Walmer de. Prisão temporária. São Paulo: Saraiva, 2004
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 2. ed. revista, ampliada e atua-
lizada. JusPODIVM. Salvador, 2014.
MASON, Cleber. Direito Penal Esquematizado – Parte Geral – vol.1. 10. ed. São Paulo: Forense, 2016.
YAROCHESKY, Leonardo. Por uma política criminal responsável. Publicado em: 17 fev. 2016. Dispo-
nível em <https://www.brasil247.com/blog/por-uma-politica-criminal-responsavel>. Acesso
em: 13 abr. 2020.
SANTOS, Célio Jacinto dos. Teoria da Investigação Criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2020.
ARQUIVO PESSOAL

BRENO EDUARDO CAMPOS ALVES é Delegado de Polícia Civil do Estado do Tocantins. Pós-graduado em Direito
em Administração Pública; Pós-graduado em Ciências Criminais; Pós-graduado em Gestão em Segurança Pública;
Pós-graduado em Criminologia; Especialista em Medidas Operativas de Combate ao Tráfico Ilícito de Drogas

JOAQUIM LEITÃO JÚNIOR é Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Atualmente Assessor Institucional
ARQUIVO PESSOAL

da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Pós-gra-
duado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa
Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e
pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Com-
petências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colunista do site Justiça e Polícia,
coautor de obras jurídicas, autor de artigos jurídicos, palestrante e professor de cursos preparatórios para concursos públicos.

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QUESTÕES DE DIREITO

Contrapartidas
inadequadas da ANS
aos Planos de Saúde 
POR Fernando Bianchi

“No particular das “contrapartidas”, indicada pelo ór-


gão regulador como obrigatória, é lamentável que
se sustente que a liberação dos recursos de proprie-
dades das operadoras, em épocas de pandemia, seja
considerado como um “acordo que só gera vantagens
às operadoras”.”
DIVULGAÇÃO

78 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


A
ANS há algumas semanas vem trabalhando na implementação de
medidas para enfrentamento da crise provocada pela pandemia do
novo coronavírus. Uma delas, muito anunciada, tratou da liberação
de bilhões de reais para ajudar às operadoras de planos de saúde, res-
ponsáveis pela prestação de saúde suplementar no âmbito privado à milhares de
pessoas. Para tal, impôs contrapartidas, que deveriam ser formalizadas mediante
assinatura de termo de adesão. 
As contrapartidas não foram bem aceitas por grande parte das operadoras,
o que provocou a publicação, em 25.4.20, de nota, por parte do referido órgão
regulador, sustentando fundamentalmente que: (i) o termo de compromisso visa
proporcionar maior liquidez para operadoras e equilíbrio ao setor; (ii) a não assi-
natura do termo indica que as operadoras não signatárias não têm necessidade
de recorrer às reservas técnicas para o enfrentamento da pandemia e (iii) os não
signatários não estariam engajados para mitigação das graves consequências da
pandemia para saúde das pessoas e da situação sócio-econômica do país.   
Não obstante o respeito que merece a laboriosa ANS, à luz do bom debate, tal
nota merece um contraponto. 
Inicialmente, é importante que o leitor tenha o esclarecimento que a ANS não
está com tais medidas, subsidiando ou dando qualquer valor para as operadoras
de planos de saúde privado, já que os bilhões anunciados já são de propriedade
das próprias operadoras, que à duras penas, há décadas, vem constituindo tal
fundo, seja oriundo de seus resultados mensais, seja através de aportes periódicos
e sucessivos de seus sócios e acionistas. Portanto, a ANS não está dando nada que
já não seja das operadoras! 
Outro ponto que merece destaque é o fato de que o Governo, incapaz de cuidar
da saúde pública, seja por sua má gestão histórica do SUS, e ora pelas caracterís-
ticas da pandemia, tem no setor da saúde suplementar privado um aliado essen-
cial, sem o qual jamais teria condições de combater a pandemia.  
Portanto, seria o momento do Governo e do órgão regulador, de fato auxiliarem
a saúde suplementar de verdade.
Logo, o próprio momento atual – a maior pandemia do século - já justificaria
a excepcional liberação dos recursos, repita-se, de propriedade das próprias ope-
radoras sem qualquer contrapartida, mas tão somente para fortificar as empresas
a sobreviver a pandemia e à grave crise econômica. 
Aliás, nos termos da legislação de planos de saúde, a obrigação de constituição
de tais recursos também se deu para fazer frente a eventos assistenciais inespe-
rados, como no caso presente. 
Se assim fosse, teríamos de fato: (i) uma real injeção de recursos no caixa das
operadoras e (ii) equilíbrio do setor de saúde privada.  
É importante lembrar o momento de substituição da metodologia de consti-
tuição de ativos por parte das operadoras da quantitativa pela qualitativa, o que
contribui para a liberação dos recursos. 
Com todo respeito, a forma como foram impostas as contrapartidas para libe-
ração de tais recursos não traz nem um nem outro. 
Isso porque, não é possível proteger beneficiários de planos de saúde privado,
sem antes proteger a própria manutenção das atividades das operadoras e con-
sequentemente do setor. 

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 79


QUESTÕES DE DIREITO

A imposição por parte do órgão regulador de manutenção de contratos ina-


dimplentes sem a possibilidade de rescisão, num cenário de majoração, de utili-
zação e consequente despesas assistenciais, e, ainda, em perspectiva e tendência
de congelamento de reajustes, não é medida de equilíbrio do setor e muito menos
de proteção de beneficiários e prestadores de serviços de saúde. 
Em verdade, o órgão regulador “dá com uma mão e tira com a outra”. 
E isso não representa “injeção de caixa” para melhorar a liquidez das opera-
doras, mas sim, na melhor hipótese, tão somente fazer com que as operadoras com
seus próprios recursos resolvam um problema social e de saúde pública, a bem da
verdade, de responsabilidade do governo. 
Se disse na melhor hipótese, porque na maior parte do mercado, o nível de ina-
dimplência crescerá de tal modo, que ultrapassará as margens que o mercado e a
operadoras operam, representando não uma redução de lucro, mas sim, a invia-
bilidade de permanecer no mercado, pois na maioria dos casos, com as contra-
partidas indicadas pelo órgão regulador, “a conta não fecha”.
Em termos de direito coletivo, tal fato significa: (i) desproteger milhares de
beneficiários que pagam seus planos de saúde e ficarão sem cobertura quando as
respectivas operadoras encerrarem suas atividades; (ii) majorar enormemente o
risco de inadimplência com o mercado dos prestadores de serviços médicos e (iii)
enfraquecer o sistema de saúde do país como um todo, totalmente dependente
da saúde suplementar. 
Portanto, acusar as operadoras que não aderirem ao Termo de Compromisso,
de: (i) falta de engajamento ao combate da pandemia e (ii) falta de preocupação
com os beneficiários, com todo respeito, não é apropriado, pois justamente o que
se pretende com tal medida é justamente preservar a operação e a possibilidade
de honrar os compromissos contratuais tanto com seus beneficiários como com
seus prestadores. 
Pelas mesmas razões, não é apropriado que o órgão regulador se posicione no
sentido de presumir que aquelas operadoras não signatárias do Termo de Adesão
não precisem recorrer às suas reservas técnicas para o enfrentamento da pandemia,
em evidente represália, e já se adiantando aos naturais indeferimentos de pedidos
nesse sentido, já que, como dito, a liberação dos recursos das próprias operadoras
pela situação da pandemia para atendimento de sua carteira de beneficiários adim-
plentes, já deveria ser liberado independentemente de contrapartidas, devido ao
seu caráter e natureza excepcionais. 
E no particular das “contrapartidas”, indicada pelo órgão regulador como obri-
gatória, é lamentável que se sustente que a liberação dos recursos de propriedades
das operadoras, em épocas de pandemia, seja considerado como um “acordo que
só gera vantagens às operadoras”. 
Em verdade, quem classificou equivocadamente a liberação de tais recursos como
“acordo” foi o próprio órgão regulador,  já que, em realidade, a liberação das reservas
técnicas não decorre de acordo e sim de direito das operadoras também previsto
na Lei nº 9.656/98 e que, em última análise, representa uma contrapartida natural
aos consumidores, notadamente, quanto à preservação de seus planos de saúde.
ARQUIVO PESSOAL

FERNANDO BIANCHI é sócio do Miglioli e Bianchi Advogados.

80 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


PRÁTICA DE PROCESSO
DIVULGAÇÃO

Conciliação e mediação
pré-processuais em
disputas empresariais
Projeto-piloto da Corregedoria
do TJ/SP para disputas
derivadas da Covid-19
POR Luís Rodolfo Cruz e Creuz

“ O Provimento CG nº 11/2020 ressalta importân-


cia do resguardo da segurança jurídica, previsibilida-
de, estabilidade do mercado e força vinculante dos
contratos, sendo vital estabelecer na crise uma via
pré-processual de autocomposição, complementar
às já existentes (sistema “multiportas”).

O
Provimento CG nº 11/2020, da Corregedoria Geral de Jus-
tiça do Estado de São Paulo, publicado pelo Desembarga-
dor Ricardo Mair Anafe, trata da criação de projeto-piloto
de conciliação e mediação pré-processuais para disputas
empresariais decorrentes dos efeitos da Covid-19. A gênese de sua
necessidade é a declaração pública de pandemia e de estado de cala-
midade pública no Brasil. Considera, ainda, a suspensão do trabalho
presencial e dos prazos processuais, e a instituição do Sistema Re-
moto de Trabalho pela Resolução CNJ nº 313/2020 e pelo Provimen-
to CSM nº 2.549/2020.

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 81


PRÁTICA DE PROCESSO

O PROJETO-PILOTO VISA A CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO PRÉ-PROCESSUAL


PARA EMPRESÁRIOS E SOCIEDADES EMPRESÁRIAS PARA DISPUTAS RELA-
CIONADAS AOS EFEITOS DA COVID-19

A norma representa uma via de autocomposição para formalização e homolo-


gação judicial de acordos, com força de título executivo (art. 9º, Provimento CG nº
11/2020). O procedimento, destinado a empresários e sociedades empresárias, nos
termos do artigo 966 do Código Civil, e demais agentes econômicos, envolvidos
em negócios jurídicos relacionados à produção e circulação de bens e serviços.
Para dar início, a parte interessada deve formular requerimento escrito dire-
cionado ao e-mail institucional (cerde@tjsp.jus.br), devendo conter: (i) o pedido
e a causa de pedir, relacionada às consequências da pandemia da COVID-19; (ii)
a qualificação completa das partes; (iii) os documentos pessoais e/ou atos cons-
titutivos atualizados da requerente; (iv) os e-mails de contato e (v) demais docu-
mentos essenciais ao conhecimento da demanda, para que seja possível permitir
a adequada identificação dos envolvidos e aferição da legitimidade.
Após o recebimento do pedido através do e-mail institucional supra indicado,
será designada audiência de conciliação, intimando-se as partes pelos e-mails indi-
cados no requerimento inicial, sendo a parte autora do requerimento responsável
por providenciar o devido encaminhamento e ciência à parte contrária.
A audiência será designada para no máximo 7 (sete) dias a partir do protoco-
lamento do pedido e será instalada por juiz de direito participante do projeto,
que identificará individualmente cada uma das partes a partir dos documentos,
apresentará o objetivo do procedimento pré-processual e iniciará o procedimento
visando primeiramente a conciliação entre as partes.
As audiências serão realizadas conforme cronograma a ser estabelecido con-
sensualmente pelos próprios magistrados responsáveis, preferencialmente no
período matutino, a fim de não prejudicar as atividades regulares dos participantes
em suas respectivas varas judiciais.

A AUDIÊNCIA OCORRERÁ NO MÁXIMO 7 (SETE) DIAS A PARTIR DO PROTO-


COLAMENTO DO PEDIDO

Se infrutífera a conciliação, o expediente será encaminhado para mediação.


Um mediador será escolhido de comum acordo pelas partes, ou designado pelo
magistrado, caso não obtido consenso.
O mediador designado será escolhido entre aqueles devidamente cadastrados
e habilitados para a função, com experiência na matéria objeto do litígio empre-
sarial, devendo integrar o Cadastro de Mediadores e Conciliadores de 1ª Instância
do Portal dos Auxiliares da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
devendo ser notificado por e-mail da nomeação. A nomeação observará os termos
da legislação vigente, devendo o mediador informar, antes da aceitação da função,
qualquer fato ou circunstância que possa suscitar dúvida em relação à sua impar-
cialidade para mediar o conflito, podendo, se for o caso, ser recusado por qualquer
das partes ou substituído por decisão do juiz responsável.
Tanto a audiência de conciliação quanto eventual sessão de mediação serão
realizadas por meio do sistema Microsoft Teams, disponibilizado pelo Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. Em ambos casos, será lavrada ata da audiência ou

82 REVISTA PRÁTICA FORENSE - Nº 40 - ABRIL/2020


sessão, que deverá ser assinada de forma digital pelo juiz responsável, pelo mediador
designado, se for o caso, bem como pelos procuradores das partes.
O acordo homologado pelo juiz, constituindo título executivo judicial, que será
disponibilizado às partes, no prazo de até 3 (três) dias da realização da audiência.
Esquematicamente, destacamos os seguintes pontos do Provimento CG nº
11/2020, a saber:

Empresários e sociedades empresárias (art. 1º, Provimento CG nº 11/2020)


A quem se destina Não se aplica a sociedades não-empresárias (Sociedades Simples e Cooperativas,
p.ex.)
Atuar diretamente para redução ou minimização dos efeitos da judicialização em
Finalidade massa das disputas envolvendo contratos empresariais e demandas societárias
diretamente relacionadas à pandemia
Entrada em vigor 17 de abril de 2020 (art. 13, Provimento CG nº 11/2020).
Competência Competência das Varas Empresariais e de Conflitos de Arbitragem da Capital/SP
Requerimento por e-mail institucional (cerde@tjsp.jus.br), contendo o pedido e
Formalização
a causa de pedir, relacionada às consequências da pandemia da Covid-19.
Será designada para no máximo 7 (sete) dias a partir do protocolamento do
pedido, sendo que a parte autora deverá providenciar o devido encaminhamento
Audiência e ciência à parte contrária – a Audiência será realizada por um juiz de direito
A audiência de conciliação ou sessão de mediação serão realizadas por meio do
sistema Microsoft Teams, disponibilizado pelo TJ-SP
Se houver acordo na audiência de conciliação, o juiz formaliza e homologa a
Conciliação
transação, com força de título executivo
Se infrutífera, o pedido será encaminhado para mediação.
Um mediador será escolhido dentre aqueles cadastrados no Portal dos Auxiliares
Mediação da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e o procedimento de
mediação observará o disposto nos artigos 14 e seguintes da Lei nº 13.140/2015,
bem como a Resolução nº 809/2019 do Órgão Especial do TJ-SP

O Provimento CG nº 11/2020 ressalta importância do resguardo da segu-


rança jurídica, previsibilidade, estabilidade do mercado e força vinculante dos
contratos, sendo vital estabelecer na crise uma via pré-processual de autocom-
posição, complementar às já existentes (sistema “multiportas”), mas que seja
adaptada ao perfil específico das demandas empresariais e de funcionamento
integralmente remoto.
Por fim, o projeto-piloto funcionará por até 120 (cento e vinte) dias após o
encerramento do “Sistema Remoto de Trabalho” (Provimento CSM nº 2.549/2020).
Encerrado tal período, será avaliada pela Corregedoria Geral da Justiça a via-
bilidade de sua prorrogação, com integração e submissão ao sistema já exis-
tente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos
– NUPEMEC.
Recomendamos, sempre, buscar orientação legal quando diante de um caso
concreto. Permaneceremos atentos ao desenrolar dos fatos e ficamos a postos para
qualquer ajuda ou orientação.

LUÍS RODOLFO CRUZ E CREUZ é Advogado e Consultor em São Paulo, Brasil. Sócio de Cruz & Creuz Advogados.
ARQUIVO PESSOAL

Doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP (2019); Certificate
Program in Advanced Topics in Business Strategy University of La Verne – Califórnia (2018); Mestre em Relações
Internacionais pelo Programa Santiago Dantas, do convênio das Universidades UNESP/UNICAMP/PUC-SP (2010);
Mestre em Direito e Integração da América Latina pelo PROLAM – Programa de Pós-Graduação em Integração da
América Latina da Universidade de São Paulo – USP (2010); Pós-graduado em Direito Societário – LLM – Direito Societário, do
INSPER (São Paulo) (2005); Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.Bacharel em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

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PRÁTICA DE PROCESSO

O estado democrático de
direito e a necessidade
da fundamentação das
decisões judiciais

POR Rômulo de Andrade Moreira

“ Nula, portanto, será a decisão que apenas citar um


mero precedente judicial ou mesmo um enunciado
sumular como causa de decidir, sendo necessário que,
expressamente, justifique-se a pertinência daquele
ou deste ao caso penal que está se julgando.

DIVULGAÇÃO

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A
Lei nº 13.964/19 alterou o art. 315 do Código de Processo Penal, acres-
centando-se-lhe dois parágrafos, um dos quais passou a exigir, ex-
pressamente, e sob pena de nulidade (conforme o novo inciso V do
art. 564) –, que qualquer decisão judicial – interlocutória, sentença ou
acórdão – seja fundamentada, não podendo se limitar “à indicação, à reprodução
ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a ques-
tão decidida.”
Do mesmo modo, considerar-se-á sem motivação idônea – nula, portanto –
aquela decisão que “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar
o motivo concreto de sua incidência no caso ou que invocar motivos que se pres-
tariam a justificar qualquer outra decisão.”
Deverão, outrossim, ser enfrentados, obrigatoriamente, “todos os argumentos
deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo
julgador”, não podendo a decisão limitar-se “a invocar precedente ou enunciado
de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que
o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.”
Por fim, impõe-se que o Magistrado, ao decidir, observe “enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado pela parte”, salvo se “demonstrar a exis-
tência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.” 
Evidentemente, um dispositivo legal com estas exigências seria, a princípio, até
despiciendo, considerando-se o disposto no art. 93, IX da Constituição Federal,
segundo o qual “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.”1
Aqui reside, rigorosamente, a legitimidade do Poder Judiciário, afinal, como afirma
Ferrajoli, “la legitimidad de la función judicial, que reside en los vínculos que le impone la
ley en garantía de su carácter cognoscitivo y para tutela de los derechos de los ciudadanos,
es siempre parcial e imperfecta.”2 (grifei).
Aliás, conforme Gomes Filho, a motivação das decisões judiciais responde,
muito especialmente, a duas garantias: uma política e outra de natureza pro-
cessual. Para ele, “nos regimes democráticos a legitimação dos membros do
Judiciário – que não resulta da forma de investidura no cargo – só pode derivar
do modo pelo qual é exercida sua função.” Logo, “a motivação das decisões judi-
ciais adquire uma conotação que transcende o âmbito próprio do processo para
situar-se, portanto, no plano mais elevado da política, caracterizando-se como
o instrumento mais adequado ao controle sobre a forma pela qual se exerce a
função jurisdicional.”
Por outro lado, e na esteira do mesmo autor, como garantia processual “a fun-
damentação constitui um dos requisitos formais das decisões (ou de determinadas
decisões) e, como tal, vem tratada nos códigos e leis processuais que, com essa
exigência, buscam atender a certas necessidades de racionalização e eficiência da
atividade jurisdicional.”3 Ainda neste aspecto, acresce-se que a motivação das deci-
sões judiciais decorre “de las garantias del debido proceso, especialmente de la presunción
de inocência”, conforme a lição de Fernando Díaz Cantón.4
De toda maneira, em um País em que a (grande) maioria dos atores jurídicos só
cumpre algum dispositivo constitucional quando este está repetido em lei ordi-
nária (veja-se os casos, por exemplo, do direito ao silêncio e da proibição da prova
ilícita e da condução coercitiva), esta alteração foi importante. Quem atua na Jus-
tiça criminal brasileira sabe o que estou dizendo. Não é incomum, muitíssimo pelo

REVISTA PRÁTICA FORENSE - WWW.ZKEDITORA.COM 85


PRÁTICA DE PROCESSO

contrário, usar-se de lugares-comuns para decretar alguma medida de natureza


cautelar (especialmente as prisões) ou para condenar o réu.
Entre nós, por exemplo, quem já não leu dezenas e dezenas de decisões decre-
tando a prisão preventiva para (supostamente) garantir a ordem pública ou a apli-
cação da lei penal, sem nenhuma base nos elementos contidos nos autos da inves-
tigação criminal ou do processo? Quem já se deparou nos autos de um processo
criminal no qual a decisão que recebeu a denúncia ou a queixa não se limitou a
um simples despacho, como se fora um mero encaminhamento?5
E o que dizer das nossas sentenças condenatórias recheadas de fórmulas repi-
sadas, tais como “conduta social reprovável”, “personalidade voltada para o crime”,
e outras trivialidades do gênero. É o caso também dos standards (ou critérios de
decisão) para a decretação de medidas de natureza cautelar, como, por exemplo,
“fundadas razões de autoria” (para a decretação da prisão temporária), “indício
suficiente da autoria” (para a prisão preventiva), “indícios veementes de prove-
niência ilícitas dos bens” (em relação ao sequestro), e tantos outros.
Doravante, é preciso – ainda que se trate de uma mera decisão interlocutória
– que o Magistrado, ao decidir, enfrente “todos os argumentos” levantados pelo
Ministério Público, pelo Assistente do Ministério Público (se houver) e pela Defesa,
digam respeito ao mérito propriamente dito (relativas ao fato, à autoria, à punibili-
dade, à licitude, etc.), sejam de natureza estritamente processual ou procedimental
(como as nulidades, competência, pressupostos processuais, etc.).
Nula, portanto, será a decisão que apenas citar um mero precedente judicial
ou mesmo um enunciado sumular como causa de decidir, sendo necessário que,
expressamente, justifique-se a pertinência daquele ou deste ao caso penal que está
se julgando. A propósito, diga-se o mesmo, e com muito mais razão, sobre aqueles
conhecidos enunciados que, vez por outra, são divulgados a partir de encontros
de Magistrados e membros Ministério Público.6
O mesmo se diga, a fortiori, a respeito da chamada fundamentação per reta-
tionem, “quando o juiz, ao invés de dar a sua motivação e as suas razões, limita-se
a repetir os argumentos alheios, quando se restringe a fazer uma mera remissão
ou referência aos argumentos alheios.”7
Portanto, como já foi consignado, desde um ponto de vista político, a motivação
das decisões judiciais cumpre um papel fundamental para legitimar a própria
função jurisdicional, pois permite que haja uma transparência das decisões judi-
ciais, bem como um democrático controle por parte dos jurisdicionados, sejam
(imediatamente) as partes no processo, seja o cidadão. Neste sentido, Julio Maier
acentua que “el control público de la sentencia judicial, significa, políticamente,
otro mecanismo que procura lograr la independencia judicial a través de la crítica
popular, incluida la prensa, en un Estado democrático.”8
Assim, dispositivos legais como este novo § 2º, do art. 315, são importantes
para que se crie uma cultura no sentido de se exigir no processo penal uma moti-
vação idônea – e não algo meramente decorativo – para todas as decisões judiciais.
Afinal, “o juiz recebe do povo, através da Constituição, a legitimação formal de suas
decisões, que muitas vezes afetam de modo extremamente grave a liberdade, a
situação familiar, o patrimônio, a convivência na sociedade e toda uma gama de
interesses fundamentais de uma ou de muitas pessoas. Essa legitimação deve ser
permanentemente complementada pelo povo, o que só ocorre quando os juízes
estão cumprindo seu papel constitucional, protegendo eficazmente os direitos

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e decidindo com justiça. Além de tudo, é o povo, de quem ele é delegado, quem
remunera o trabalho do juiz, o que acentua a sua condição de agente do povo.”9
Para concluir, uma última observação: o dever de motivar a decisão judicial,
previsto no 93, IX da Constituição Federal corresponde, rigorosamente, e também
por um imperativo constitucional, ao dever do Ministério Público de fundamentar
adequadamente os seus pronunciamentos e pareceres, sejam judiciais, sejam
administrativos, nos termos do art. 315, § 2º, do Código de Processo Penal (mutatis
mutandis). Aqui, lembra-se de dois dispositivos constitucionais bem claros, a saber:
art. 129, VIII (parte final) e o seu § 4º, este último com a redação determinada pela
Emenda Constitucional nº 45, em 2004.

NOTAS

1 “A garantia constitucional estatuída no art. 93, IX, da Constituição Federal é exigência inerente ao
Estado Democrático de Direito e, por outro, é instrumento para viabilizar o controle das decisões
judiciais e assegurar o exercício do direito de defesa. A decisão judicial não é um ato autoritário,
um ato que nasce do arbítrio do julgador, daí a necessidade da sua apropriada fundamentação.”
(Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 540.995-RJ).
2 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 3. ed.,
1998, p. 547.
3 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, páginas 79, 80 e 95.
4 CANTÓN, Fernando Díaz. La motivación de la sentencia penal y otros estudios; Buenos Aires:
Editores del Puerto, 2005, p. 107.
5 A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, julgando o pedido de Habeas Corpus nº. 90.509,
decidiu anular o recebimento de uma denúncia, e os atos que lhe foram subsequentes, sob o
argumento de que, “embora não se exija fundamentação exaustiva quando o juízo afasta ar-
gumentos de resposta à acusação, é necessário que o ato seja minimamente motivado, permi-
tindo ao acusado conhecer os elementos que levaram o juiz a decidir pelo prosseguimento da
ação penal.” Para o relator do processo, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, no caso concreto,
“o Juiz limitou-se a negar a pretensão do acusado, de forma genérica – e em decisão padroni-
zada, inclusive com a utilização de parênteses na decisão –, sem a mínima manifestação acerca
das teses defensivas.”
6 Veja-se, por todos: https://www.amb.com.br/fonaje/?p=32 e http://www.mpsp.mp.br/portal/
page/portal/Assessoria_Juridica/sumulas_de_entendimento, acessados em 16 de fevereiro de
2020.
7 LOPES JR., Aury e MORAES, Alexandre de, disponível aqui: https://www.conjur.com.br/2019-
set-13/voce-sabe-fundamentacao-per-relationem, acessado em 14 de setembro de 2019. Para
os autores, este tipo de fundamentação, “no processo penal, manifesta-se pela simples remis-
são ou transcrição por parte do julgador, ao alegado pelo Ministério Público. Sim, porque não
há noticias de fundamentação per relationem dos argumentos defensivos. A defesa, como re-
gra, não tem essa legitimidade toda, ao contrário do MP, cuja íntima relação e interação com os
julgadores já faz parte da tradição histórica do primitivo processo penal brasileiro, agudizando
ainda mais a diferença de tratamento. Então o julgador, ao invés de dar conta do seu dever de
fundamentar, adota os argumentos alheios, um recorta e cola. Inacreditavelmente, os tribunais
superiores foram coniventes com essa prática vergonhosa.” Eles têm toda a razão!
8 MAIER, Julio. Antología – El Proceso Penal Contemporáneo. Peru: Palestra Editores, 2008, p. 750.
9 DALARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 2. ed., 2002, p. 89/90.
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RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA é Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor
de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.

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ESPAÇO ABERTO

Covid-19 e seus efeitos


nos setores do turismo
e da cultura
POR Gustavo Milaré Almeida e João Pedro Alves Pinto

N
o dia 8 de abril, foi editada a Medida Provisória nº 948 (MP 948), que
dispôs sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos
dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade
pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março
de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional de-
corrente do novo coronavírus (Covid-19). A MP 948 foi publicada em edição
extra do Diário Oficial da União (DOU) na mesma data de sua edição e tem
validade imediata pelos próximos 60 dias, embora ainda precise ser aprovada
pelo Congresso Nacional.
Na hipótese de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, inclu-
sive shows e espetáculos, a MP 948 previu que o prestador de serviço ou a
empresa não serão obrigados a reembolsar o consumidor pelos valores pagos
se (i) assegurarem a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos can-
celados; (ii) disponibilizarem o crédito para uso ou o respectivo abatimento na
compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nessas empresas;
ou (iii) celebrarem outro acordo com o consumidor.
Na impossibilidade do oferecimento dessas alternativas, o consumidor deverá
ter o valor da compra restituído, atualizado monetariamente pelo Índice Nacional
de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), no prazo de 12 meses, con-
tado da data de encerramento do estado de calamidade pública.
Assim sendo, as empresas e os prestadores de serviços devem comunicar os
seus consumidores com a maior brevidade eventuais alterações nos seus ser-
viços, reservas e eventos agendados, recomendando-se que busquem, já nessa
oportunidade, minimizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus (Covid-
19) em seus negócios.
Além disso, de modo geral, recomenda-se a empatia e a colaboração para
todos os envolvidos: empresas, prestadores de serviços e consumidores, a fim
de que trabalhem em conjunto em soluções satisfatórias para a realidade eco-
nômica de cada um, evitando futuros conflitos. 
ARQUIVO PESSOAL

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GUSTAVO MILARÉ ALMEIDA é Advogado; JOÃO PEDRO ALVES PINTO é Advogado asso-
Mestre e doutor em Direito pela Universidade ciado de Meirelles Milaré Advogados.
de São Paulo (USP) e sócio de Meirelles
Milaré Advogados.

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