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A leitora submissa de René Magritte espanta-se com o que

lê - uma leitura erótica, ensaiaram críticos da tela. Mas não há


correspondência entre a imagem e o título, pois texto e imagem
são representações. Vemos uma mulher espantada, mas lemos
uma mulher submissa. Entre o espanto e a submissão a um texto
é onde nós, leitores, nos localizamos. As leituras nos movem por
diferentes descobertas e emoções. Mas alguns livros nos obrigam
a repousar antes de retomá-los.

O espanto da leitora submissa se mantém - seus olhos não se


afastam das palavras. Suas mãos permanecem firmes no livro,
mas seu rosto não é capaz de conter a inquietação. Não serão as
mesmas obras que nos provocarão paixão e irrespeito. Este livro
é sobre uma forma particular de irrespeito, aquele provocado pela
mentira textual quando o leitor descobre que não há correspondência
entre assinatura e texto: o plágio.

palavras escondidas
EDITORA

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FIOCRUZ
Ana Terra
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M l l ~ e ude Arqueologia e Etnologia
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Q Debora Diniz e Ana Terra

Tiragem: 13 edição - 2014 - 2000 exeniplares


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Inipresso no Brasil.
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Esta publica~áopossui versáo digira1 (ISBN 978-85-98070-37-7). 4 a '-A

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Reuisáo de Lí~zguaPortuguesa
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Capa, Editorapio Eletrônica e Layour
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A leitora submissa
René Magritte, 1928
O Photothèque R. Magritre, Magritte, RenélLiceiiciado por AUTVIS. Brasil, 2013.
O uso de imagens ao longo desta obra olirdccemcrtal~lecidona Lei de Direitos Autorais (Lei no 9.61011998). Algumas estáo em doniínio
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Diniz, Debora
Plágio : palavras escondidas 1 Dehora Diniz, Aiia Terra. - Brasilia : LetrasLivres ; Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2014.
196 p.
ISBN 978-85-98070-36-0
1. Plágio. 2. Propriedade intelectual. 3. Traballio acadêmico. I. Terra, Ana. 11. Titulo

CDD 342.28
C D U 347.78

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Arroclaçáo Brasileira
das Edltoras Universltárlas
"Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a
cabeça?" - uma suspeita de Roland Barthes sobre as leituras
apaixonadas (2004, p. 26, grifo no original).
A leitora submissa de René Magritte espanta-se
com o que lê - uma leitura erótica, arriscaram
A leitora
críticos da tela. Mas náo há correspondência
rbmissa
entre a imagem e o título. Desafiando a ,lené Magritte,
imagem da tela pelas palavras, suspende-se 1928
também a ansiedade de quem busca o real na
imagem. Texto e imagem sáo representaçóes.
Vemos uma mulher espantada, mas lemos
uma mulher submissa. Entre o espanto e a submissáo a um texto
é onde nós, leitores, nos localizamos. As leituras nos movem por
diferentes descobertas e emoçóes.

Ler e levantar a cabeça - é como ler e acalmar a leitura.


Alguns livros nos obrigam a repousar antes de retomá-los.
Como descreveu Barthes (2004), sáo as leituras irrespeitosas
e apaixonadas que inspiram essas rupturas. A leitora submissa
mantém seu espanto com o texto - seus olhos náo se afastam das
palavras. Suas máos permanecem firmes no livro, mas seu rosto
não é capaz de conter a inquietaçáo. Náo sabemos o que lê, e isso
tem pouca importância para a experiência da leitura. Náo seráo
as mesmas obras que nos provocaráo paixáo e irrespeito. E sobre Este livro é sobre o plágio, uma forma de enganaçáo textual
esse último afeto que falaremos neste livro - mas uma forma em que um pseudoautor assume como suas as palavras de um
particular de irrespeito, aquele provocado pela mentira quando autor, Intencional ou descuidado, o pseudoautor mente para o
o leitor descobre que náo há correspondência entre assinatura e leitor: substitui assinaturas em um texto e náo informa sobre a
texto. anterioridade da criaçáo. O plagiador pode ser um ladráo para
alguns; para nós, é um sujeito tolo, um sebastiáo das letras e
Alguns textos nos afastam da leitura. Eles nos causam jamais um criador de textos. Poderia ser só um potoqueiro da
um espanto diferente do apaixonado e irrespeitoso descrito praça, se náo falasse em nome da ciência e do conhecimento -
por Barthes (2004). Há textos que nos angustiam pelo que a importância dos atos do plagiador depende do que ele copia ou
escondem. Se a leitora submissa de Magritte representa um adultera. O plágio nos faz ler e levantar a cabeça, mas por razóes
real que desconhecemos, para nós, simboliza quem se perturba bem menos nobres que a paixáo provocada pela descoberta dos
ao encontrar um plágio. É assim que imaginamos uma autores fortes.
leitora ao descobrir que a assinatura da obra náo é verdadeira: seus
dedos se mantêm firmes nas páginas, como se náo permitissem a
fuga; seus olhos resistem a crer no que leem; seu rosto é puro
descontentamento. A mulher de Magritte poderia ter outro título:
A kitora enganada. Talvez Magritte não estivesse de acordo com
nossa apropriaçáo tardia da tela, mas sua intençáo como artista
náo é mais capaz de controlar os usos de sua obra.

O plágio é um engano para quem o lê e uma mentira para


quem o assina como autor. Ao mudar o título da tela de Magritte,
o que fazemos é uma espécie de paráfrase - interpretamos sua
obra segundo um novo contexto argumentativo e pictórico. Náo
assumimos a tela de Magritte como nossa criaçáo. Poderíamos
ter acrescentado um bigode à mulher submissa e tê-la nominado
A leitora enganada, tal qual o retoque genial de Marcel Duchamp
à Mona Lisa de Leonardo da Vinci. O u ainda poderíamos ter
representado sua rejeiçáo A descoberta do plágio por meio do
afastamento do livro - um pastiche artístico, fosse pelo bigode
ou pelo gesto. Optamos por uma citaçáo literal, com o uso
licenciado pela Associaçáo Brasileira dos Direitos de Autores
Visuais (Autvis). Mas fizemos da obra uma peça de argumentação
para nosso texto. É uma cita~áoartística.
PLÁGIO
... papéis ... arqueologias . . . dicionários . .. verbete

...papéis
O plágio é uma preocupaçáo de estudantes, professores,
pesquisadores, autores, revisores e editores. Há uma sobreposiçáo
entre essas figuras na divisáo do trabalho acadêmico: é como se
um mesmo ator assumisse diferentes papéis em uma única peça -
professor, pesquisador, autor, revisor e editor compóem o teatro da
comunicaçáo acadêmica. O papel de estudante é o único vivido
por todos nós em algum momento da carreira acadêmica, por isso
uma reflexáo sobre o plágio deve ser condiçáo para a iniciaçáo
ao posto de neófito pesquisador. H á uma falsa crença de que os
interditos sobre o plágio sáo devidamente conhecidos por todos
aqueles que ingressam no ambiente acadêmico. Esse nos parece
um triste equívoco - é preciso que o plágio saia do esconderijo da
vergonha e assuma a cena. Talvez só assim possamos conhecer as
desmotivaçóes dos plagiadores para a criaçáo acadêmica.

A ambiçáo de um professor é que os jovens pesquisadores


naturalizem a ética acadêmica. Os estudantes devem aprender
como ser íntegros no teatro acadêmico e, por isso, conhecer
precocemente as sançóes para o plágio: atividades pedagógicas
ingênuas, se plagiadas, seráo reprimidas. Como pesquisador,
o compromisso é pessoal - um pesquisador deseja ser confiável Este livro se dedica a pensar o plágio textual e suas
em sua comunidade. Do desenho do projeto h escrita dos implicações éticas para dois personagens da vida acadêmica:
resuicados, as práticas de pesquisa devem obedecer a prindpios o autor e o leitor. Editores, revisores e professores sáo bem-
éticos compartilhados e a normas de integridade academia. vindos nesta jornada, mas somente como aqueles que cruzam
Como editor, o olhar se volta para a comunidade de pesquisa: o caminho de nossos leitores e autores. O universo acadêmico
os autores precisam estar cientes de seus deveres, e o editor atua é vasto e suas formas de expressáo são criativas e diversas. Há
como um maestro que mantém as regras em circulaçáo. Nada patentes de medicamentos, fórmulas matemáticas com novas
mais triste para um editor que retratar uma peça publicada soluçóes, roteiros de filmes ou registros de espécies de plantas
sob sua supervisáo. Mas a atividade do editor depende de um recém-descobertas - cada área do conhecimento comunica a
personagem central na divisáo do trabalho acadêmico - o criaçáo intelectual à sua maneira e, consequentemente, lança
parecerista ou revisor de originais. Esse é um lugar ainda questóes particulares sobre a integridade acadêmica. Nossa ênfase
pouco explorado quanto aos aspectos &os, porém essencial na será as humanidades, que privilegiam o texto escrito como forma
dinâmica da integridade acadbica. Os editores niio sáo capazes de comunicaçáo.
de identificar rodos os sinais de fumaça sobre o plágio ou outras
infrações éticas; eles dependem da sabedoria e do oihar arento
dos revisores.
... arqueologias
Além desses lugares situados e reconhecidos pela
engrenagem acadêmica, há outro, silencioso e permanente, que Há uma dificuldade em descrever o plágio, suas açóes e
todos habitamos - o de leitores das peças acadêmicas. Para ser seus personagens. Uma extensa literatura o define em termos
um leitor, náo é preciso ocupar o posto iurídico-penais: "crime", "estupro", "roubo", "sequestro",
de estudante, professor, autor ou editor. "pilhagem", "furto", "falsifi~a~áo","pirataria", "fraude" e
E é para o leitor, iniciado ou náo no "empréstimo clandestino" sáo algumas das expressóes mais
A leitora (jovem ofício da pesquisa acadêmica, que o usadas (Green, 2002; Howard, 2000; Marsh, 2007b; Posner,
sentada) plágio é uma prática desconcertante. 2007). O conto de origem do plágio como roubo de ideias
Pierre-Auguste O plágio confunde o leitor, pois perturba remonta ao século I com o poeta latino Marco Valério Marcial:
Renoir, plagiario seria seu desafeto literário Fidentino, que lhe roubava os
a confiança na ciência. Náo se esperam
1887
dos acadêmicos peças literárias, mas epigramas (McCormick, 1989).' Uma traduçáo contemporânea
textos ordinários que comuniquem teses ' O termo "plagiário" preserva essa forma etimológica. Ao longo deste livro, optamos por
ou resultados de pesquisa com clareza "plagiador", palavra de uso mais corrente no léxico ativo da língua portuguesa. Em latim,
. . plagiarius designava aquele que roubava escravos, ou que vendia pessoas livres como escravas.
e honestidade. Porém, se podemos nos
Esse sentido foi estendido ao longo do tempo até chegar ao de plágio como apropriação
perdoar pela simplicidade estética, náo podemos faltar com a literária. Embora menos comum, a acepção original persiste - equivale ao crime de redução
lealdade aos leitores, que buscam nos textos acadêmicos respostas a condiçáo análoga à de escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal brasileiro.
É provável que a revisáo em curso do Código Penal adote o termo "plágio intelectual" para
para suas inquietaçóes existenciais ou cotidianas.
o plágio literário.
descreveria o personagem do plagiador como alguém que comete É muito comum a confusão entre plágio e violaçáo da
um crime, sendo o mais comum o de violaçáo da propriedade propriedade intelectual. Porém, assim como nem toda violaçáo
intelectual. Outro caminho seria descrevê-lo de direitos autorais envolve plágio, nem todo plágio infringe
EL I N C E N I O S O
XOTB
O DON
D B Li. MANCHA,
,. em termos morais ou psíquicos: o plagiador direitos autorais. É possível uma obra estar em domínio público,
DIRI~IDO
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VUDRRIIAI.
seria um sujeito fraco e inautêntico, porém como é o caso dos livros de Machado de Assis, e mesmo assim
P,,eim edicno , I,,,*, mid.i E ambicioso; alguém em busca do sucesso se reclamar o plágio em caso de cópia indevida. Uma obra passa
de Dom Quixote literário sem esforço (Marsh, 2007b). a ser considerada de domínio público setenta anos após a morte
de Ia M a n c h a C . Há, por fim, um pseudodiagnóstico em de seu autor (Brasil, 1998).' O sentido de cópia para uma obra
Juan de Ia e
,

Cuesta, 1605
uma abordagem medicalizante do plágio: em domínio público é um pouco diferente: o livro pode ser
criptomaníaco de textos, um servo da própria
A L
impresso e distribuído por diferentes vias sem necessidade de
OOYPntvILmeIo,
pulsáo pelas palavras alheias. Alguém como autorizaçáo ou remuneraçáo, pois o prazo de proteçáo aos direitos
#W AiJDiI0 hiun&ban,
Pierre Menard, personagem borgiano que se patrimoniais já expirou. A autoria da obra, no entanto, jamais se
propôs escrever Dom Quixote, desejoso de altera: Machado de Assis será sempre o autor de O alienista, náo
.
"[. .] produzir páginas que coincidissem - palavra por palavra importa por qual meio a obra for divulgada. O direito moral de
e linha por linha - com as de Miguel de Cervantes" (Borges, ser reconhecido como autor náo muda com o domínio público
197% p. 51-52). de uma obra. Assim, uma cópia de O alienista por um escritor
I contemporâneo poderá ser avaliada como plágio, mesmo a obra
'I' Esses sáo caminhos interpretativos concorrentes e estando em domínio público. A obra em domínio público tem
alternativos à rota que seguiremos neste livro. Nossa escolha livre circulaçáo, mas náo há um direito de desapropriaçáo de
é circunscrever o rema do seus persoiiagrns e siias práticas sua autoria.
no caiiipo da :rica e da integridade acadêmicas. Há sobreposicóes
pcrrrianeiites aos sabcres jurídicas e sociopsíquicos, inas essas Entender o plágio como violaçáo da propriedade privada
interfaces srráo apenas brevcniciirc exploradas. O caiiipo jriridico parece ter sido a escolha da Coordenaçáo de Aperfeiçoamento
está eiii çoiistaiiie mutaçiio e abre iiin ariiplo Icque de acordos c de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgáo para a promoçáo,
dissensris sobre o pligio: o entcndjinetito comum o circuiiscievc à consolidaçáo e avaliaçáo dos programas de pós-gaduaçáo no
ordein cnpitalisra da propriedade privada e resolve as çoiitrovCrsias Brasil, ao fazer mençáo à propriedade intelectual no primeiro
pela razão ccoii6mica do capital gerado pela produ@o iiialecrual documento público sobre o tema. As orientaçóes divulgadas
(Posner, 2007). Ourras inccrpretaçcícs susceiitam a inexistêiicia pela Capes (Brasil, 2011) endossam as recomendaçóes de
de propriedade privada violada pelo pldgio, pois náo Iiavrria uma proposiçáo anterior do Conselho Federal da Ordem
inveiqiio geiiiiilin iio campo das ideias. iil;~ssempre recriaqáo a dos Advogados do Brasil (2010), que visava estimular a
parrir de aproprhçSes (Howard, 1995): a inspiraqáo nasceria "dos conscientizaçáo sobre a propriedade intelectual e coibir o
ombros dos gigantes", uma metifora para a cri;q~oincelecrual
cterilizada por Isaac Ncwtot~. ' O prazo de proteçáo patrirnonial varia internacionalmente. A Convençáo de Berna, da
qual o Brasil é signatário, estabeleceu um período mínimo de cinquenta anos após a morte
do autor (Brasil, 1975).
plágio entre estudantes e pesquisadores, além de problematizar a integridade acadêmica sejam pouco comuns. A maioria dos
o comércio de trabalhos prontos. Como forma de controle das pesquisadores acredita nos princípios éticos de uma boa prática
infraçóes digitais de estudantes, tanto a Capes quanto a OAB acadêmica e, voluntariamente, submete-se a eles. Entre os que
sugerem a adoçáo de softwdres caça-plágios em instituiçóes de cometem desacertos, há muitos que o fazem por desconhecer as
ensino e comissóes para examinar os resulrados mostrados pelas regras. Ingenuamente se supóe que as normas de funcionamento
máquinas. Nas instituições públicas de pesquisa no Brasil, órgãos e os princípios éticos da atividade acadêmica sejam autoevidentes.
já instituídos por decretos e leis sáo responsiveis pelo julgamento O resultado sáo rumores que animam seu principal interdito,
das denúncias de plágio ou outras infraçóes éticas - comissóes o plágio - em termos profanos, uma prática também descrita
disciplinares permanentes e comissóes de ética (Brasil, 1990, como "pecado náo originaln (Clark, 1983, s.p.).
1994, 1998, 1999,2007, 2008).

Algumas universidades brasileiras já adotaram políticas


internas de informaçáo e enfrentamento do plágio, mas a
..
, dicionários
frequência e a soluçáo dos casos sáo desconhecidas (PUC-SP, 201 1;
Plágio: [Do gr. plágios, 'trapaceiro'; 'oblíquo', pelo lar.
PUC-RS, 2007; UFF, 2012; Unesc, 2011). Falsamente se poderia tard. plagiu.] S.m. Ato ou efeito de plagiar; ~lagiato.
imaginar que as principais universidades do país sejam centros [Cf.plagio, do v. plagiar.] (Ferreira, 2010, p. 1650).
de plagiadores, uma vez que as notícias na imprensa nacional
ou as controvérsias em editoriais sáo relacionadas a estudantes,
pesquisadores, professares e reitores dessas instituiçóes.
Pelo menos duas razões explicam esse viés de concentraçáo.
Plágio: s.m. (1789) 1 ato ou efeito de plagiar. 2 JUR
A primeira é que importa saber o que é feito nos principais centros apresentação feita por alguém, como de sua própria
públicos de pesquisa do país: boa ou má propaganda converte-se autoria, de trabalho, obra intelectual etc. produzido
rapidamenre em notícia. Uma nova descoberta ou um escândalo por outrem. ETIM gr. plágios, a, on 'oblíquo, que náo
siio igualmente interessantes para a imprensa. A segunda está em linha reta, que está de lado'. SIN/VARplagiato.
razáo é que há uma concentraçáo da publicação de circulaçáo PAR plagio (fl. plagiar) (Houaiss; Villar, 2009b,

internacional nesses e em outros poucos centros de referência para p. 1505).


a pesquisa no país. Os periódicos acadêmicos internacionais sáo
os que reagem mais duramente ao plágio, declarando a retrataçáo
do artigo, isto é, sua retirada de circulaçáo. ...verbete
Náo se sabe o quão frequente é o plágio ou outras expressões Plágio: apropriação indevida e não autorizada de
de má-conduta acadêmica no Brasil, como a falsificação ou criação literária, que viola o direito de atribuição
a adulteraqáo de dados de pesquisa. Talvez esta seja uma de crédito do autor e a expectativa de sinceridade
liipótese otimista, mas acreditamos que atos desleais e danosos no leitor.
O plágio é uma apropriaçúo indevida e núo autorizada de permanece na estante do autor com sua assinatura na capa.
criaçáo literária.' Isso significa que um pseudoautor se apossa
O plágio é uma duplicaçáo dessa geografia do livro, com
de um texto, ou de partes dele, e o apresenta como seu. Náo há dois
a diferença de que outra assinatura acompanhará o texto.
autores genuínos, mas um autor e um pseudoautor. O embaraço
Por isso, náo seria correto descrevê-lo como roubo - náo há
é que o plágio engana o leitor, que desconhece o encobrimento
efetivamente uma perda de propriedade, e sim uma espécie de
textual feito pelo plagiador: lê como se a assinatura do texto
compartilhamento de bens; porém, essa é uma comunalidade náo
falseado fosse do autor origiiial. Há estilos literários em que a
consentida e, algumas vezes, desconhecida pelo autor. O tipo de
sombra do texto origina! é o jogo estilistico a ser provocado -
desapropriaçáo mais comum é o de partes de um texto original:
como a paródia, uma forma de ironia textual. Umberto Eco,
um fatiamento do tecido textual que o mutila em sua harmonia
ao desvendar alguns de seus segredos de escrita, descreve as
original, por isso o plágio pode ser percebido por um bom leitor.
alusóes irônicas como "piscadelas adicionais" (2013, p. 31).
No passado, houve casos de plágio de obras inteiras, uma prática
O leitor que náo as perceber fará outro percurso na leitura,
cada vez mais difícil de ser encoberta com os meios eletrônicos de
mas náo reclamará de ter sido enganado pelo parodiador. Se
divulgaçáo da informaçáo.
no universo ficcional a paródia é uma forma de duplicaçáo de
obras originais ou de flutuaçáo de personagens entre partituras Em finais dos anos 1990, dois químicos brasileiros
textuais, mas com criaçáo autoral pelo parodiador (Eco, 2013), publicaram um estudo sobre o controle de qualidade da cachaça
na escrita acadêmica, os estilos argumentativos sáo mais pobres. (Kuchler; Silva, 1999). Quase uma década depois, outros dois
Para o exercício da repetiçáo, o autor acadêmico tem basicamente pesquisadores, com um método bem
dois recursos textuais: a citaçáo literal e a paráfrase. Se escrever menos aceitável na ciência - o copia- Pequena rnoenda
sem recorrer a um deles para referenciar suas fontes, correrá o cola -, apropriaram-se integralmente portútil
risco de ser acusado de plágio. do artigo e o publicaram em outro Jean-Baptis te
periódico (Moura; Pinto, 2007). Debret,
O plágio é um ato de apropriaçáo paradoxal, pois o texto Para náo ser táo rapidamente 1835
original continua sendo propriedade do autor que o criou.
descoberta pelos leitores, a dupla do
Em uma descriçáo geográfica das evidências, o livro original
copia-cola alterou o título e a seçáo
de agradecimentos, trocou uma das palavras-chave e adulterou
Eni "C:iipia c pasticlic: plágio ri;^ coriiriiii~n~úri cieritific~",dcfitiiiiios l,llgici ciiiiio "I...]
iiriia :il>ropria<;ioiridevida dc cri:içáo lirctiria, quc viol;~(i tlircito tir rccorilicciniciitii o período da coleta de dados. Texto e imagens ficaram idênticos.
autor c a cxpcctarivn de inediris~riodo I~iroi"(I'linia; Tcri*:i,201 1 , p. 14). Acreditamos O caso teve repercussáo nacional e foi anunciado pela Sociedade
sei prcciso ttilcreiiciar os tipos dr aprnpriaçio da criiçío lircrdria ,>ar;ihatrr plipia. ptrr
isso acr~sc~nta~iios :I tio B I I ~ O I ' ~ U I ~ I ~d;i
O C C S S ~ O .1)nrcce-rias.airitla, ninis atiçiltifidi>rcflerir
Brasileira de Química como uma questão jurídica. Para apimentar
sohrr o direito de ~ i w i [ l t i i ~ t de
i o C Y ~ I ~ ~<In
I U cliie sobrc o dirciro dc rccr>iiliccinicnrr~ do aliror. a controvérsia, um dos autores do estudo original responsabilizou
O j)l;igici náo altera o rccoiilicciniciito ( 1 1 1 ~~ ~siitor n i j$ tciilia cotiqiiisrado critrc lcitorcs, também o editor da revista que aceitou a versáo adulterada do
iiias 1)crt~trbao direitci de arribuiçio dc çrr'tliiopor sua cri:ii;;ío. I'or tini, o iiicdiiismu í. iini:)
crpcciariva cxagratlíi dos leitores cni iclac;.íoaos rcstcis acn<ii.inicoç. kior isso oprimos Iior artigo, pois "acho que houve negligência dos editores. Se você
i o uiiin rrrlirurn do viiiç~iluriiornl do Iciror coni a tibr;i - Lima fnllin
dcscrcvcr o ~ I i ~ corno pega as palavras-chave do meu artigo - cachaça, determinaçáo de
tlc ai/rcridc/fcn~ltord.
cobre, etc. - encontra na internet facilmente" (Garcia, 2009, s.~.).
PALAVRAS ESCONDIDAS

A Sociedade Brasileira de Química defendeu o periódico, partes dela, rompe um longo circuito de criaçáo autoral. Uma
informando que a varredura do artigo contra plágio ainda publicaçáo acadêmica é resultado de uma trajetória que tem
náo era uma prática de r ~ t i n a .Hoje,
~ o softwdre caça-plágio início na escritura de um projeto de pesquisa e náo se encerra
é como um clínico generalista para um artigo: seu papel é em um único texto. O crédito de uma obra acadêmica náo
oferecer um diagnóstico de sobrevivência do texto aos eventuais expressa apenas o reconhecimento da criaçáo, mas a delegaçáo
alertas de duplicaçáo. de responsabilidade pelo que é apresentado sob a rubrica de
pesquisa científica. Essa responsabilidade se estende no tempo:
Em nossa definiçáo de plágio, mencionamos a apropriaçáo
passado e futuro do autor estáo envolvidos em cada texto.
da criaçáo literária. Mas como definir uma criaçáo literária
Diferentemente dos escritores de ficçáo, os acadêmicos não sáo
se nos inspiramos em leituras comuns, em vozes e estilos de
livres para inventar fatos, dados ou resultados em seus textos - a
outros autores? "Criativo", "inédito", "original" ou "novo" sáo
história de um personagem náo é fruto da criatividade do escritor,
adjetivos que qualificam as fronteiras tênues da expressáo literária
mas de documentos e acontecimentos que fundamentam a tese
acadêmica. Poucos de nós seremos "fundadores da discursividade",
sustentada pelo historiador. Isso náo quer dizer que a narrativa
como Michel Foucault descreveu figuras como Sigmund Freud
acadêmica seja única ou definitiva: ela é sempre transitória,
e Karl Marx (2006, p. 280). Se náo somos "fundadoras da
passível de contestaçáo e revisáo - por isso, autoral.
discursividade", o que permite nos apresentarmos como autoras
deste livro sobre plágio, um tema sobre o qual já se publicou Todo autor acadêmico sustenta teses em seus textos.
vastamente? A verdade é que náo sáo os autores que respondem a Assim, quando falamos em direito de atribuiçáo de crédito,
essa pergunta, mas os leitores. Seremos descobertas como autoras náo se trata apenas das honrarias conquistadas pela autoria de
verdadeiras por aqueles que nos lerem. Dependemos de nossos uma peça acadêmica, mas também das responsabilidades pelo
leitores para ascender ao rebanho dos autores acadêmicos: sáo eles que é dito em nome da ciência. O estudo sobre o controle de
que diráo se nossa obra tem algo de criativo, inédito, original ou qualidade da cachaça tem repercussóes para a comercializaçáo e o
novo. Ou, simplesmente, se vale a pena lê-la. consumo da bebida. Os autores propuseram um novo método e
o chancelaram em nome da ciência com a publicaçáo acadêmica,
O plágio viola o direito de atribuiçáo de crédito quando
por isso podem ser responsabilizados caso o método se mostre
um texto é indevidamente duplicado por um pseudoautor.
ineficaz. Publicar é arriscar-se, expor-se publicamente à crítica e à
Apresentar-se falsamente como autor de uma obra, ou de
contestaçáo. As comunidades acadêmicas têm suas próprias regras
Foi plagiado também um segundo artigo, pelos mesmos pseudoautores e no mesmo sobre o que consideram boa prática argumentativa, exigindo dos
periódico. Na época, a Sociedade Brasileira de Química divulgou boletim em que declarou
autores um árduo percurso de aprendizado e disciplinamento.
que "fatos desta ordem são deploráveis e ferem a credibilidade do sistema de pesquisa e de
seus meios de publicaçáo" (2009, s.p.). Em carta ao periódico, reproduzida no boletim, a O plagiador viola mais do que essas regras de reconhecimento
Sociedade solicitou providências contra os plagiadores e conclamou a conscientizaçáo da do crédito como honraria e responsabilidade; viola modos de
comunidade científica. Além disso, solidarizou-se com a revista: "acreditamos também que
a editoria da Revista Analytica [onde foram publicados os plágios] foi vítima desta fraude,
socializaçáo compartilhados em que o respeito ao crédito
na medida em que desconhecia a originalidade dos artigos que já haviam sido publicados da autoria é aprendido.
em Quimica Nova, caracterizando crime editorial grave" (2009, s.p.).
PALAVFGIS
ESCONDIDAS

No leitor, o plágio provoca uma desilusáo. Ele perturba a era aquela "sem cera". Sincera, portanto, era uma escultura cujas
confiança no texto acadêmico, na legitimidade da ciência como falhas não haviam sido encobertas com cera pelo escultor. Mas
discurso sobre a verdade ou sobre as melhores soluçóes para as esse é um exemplo de pseudoetimologia; outra versáo sobre a
inquietaçóes da vida. Há uma expectativa de sinceridade que diacronia da palavra explica que sua origem remonta ao adjetivo
é rompida quando um leitor se descobre diante de um texto latino sincerus e seu substantivo correspondente, sinceritas: puro,
plagiado. O leitor se inquieta com a descompostura textual - intacto, sem mistura, íntegro (Faria,
texto e pseudoautor passam a sobreviver sob suspeiçáo. Richard 2003). Independente do testemunho
Posner diz que o plágio engana o leitor quanto à "identidade arqueológico, o plágio consiste em
Cerbmica
autoral" (2007, s . ~ . )Posner
.~ está preocupado em pensar o plágio uma prática textual insincera - as siciliand
no universo jiiridico, ein parricular no texto de juizes, e nas falhas de criaçáo do pseudoautor sáo autoria
sobreposiçócs entre o plágio e a propriedade intelectual. Há tanto preenchidas com a cera da criação desconhecida,
uma identidade civil na autoria quanto unia singularidade criativa textual de outro autor. Assim como
no texto, ou seja, uma ideiitidnde de estilo, em particular para os ocorria na escultura romana, é
autores forres. Se, por uin lado, identidade remete à personalidade possível que olhares desavisados Y
jurídica de uin aiitor concreto, por outro, rhiceridadr pressupóe náo percebam o truque, mas
o compromisso ético que todo autor deve assumir para se postular basta um bom admirador da arte para que a cera se revele do
como confiável na comunicaçáo acadsniica. É o pressuposto mármore. Com a cera, irá o encanto pela obra; com o plágio,
da sinceridade que faz com que os leitores se apropriem de irá o respeito pelo pseudoautor acadêmico.
um texto acadêmico como uma verdade, prova, evidência ou,
simplesmente, como um bom argumento para as questóes que os Mesmo instável, o texto plagiado percorre as próprias rotas
inquietam. na comunicaçáo acadêmica. Se for lido, o plágio será descoberto
e a máscara do pseudoautor cairá. O plágio sobrevive à sombra
As palavras ganham sentidos ao serem apropriadas pela do mutismo do plagiador - é importante que ele seja um sujeito
história e pelos contextos, por isso as origens etimológicas insignificante para a troca acadêmica, pois, se suas ideias forem
podem náo explicar seus usos contemporâneos. Além disso, nem consideradas seriamente, a farsa será fatalmente revelada. Isso
sempre a alegada genealogia de um termo reverbera o seu mito torna o plagiador um personagem curioso: é a fragilidade de sua
de origem. No caso de "sinceridade", a ecimologia popular nos capacidade criativa que o faz adulterar a assinatura de um texto,
rende uma lúdica descriçáo da desilusáo que o plágio provoca mas ele náo pode ter a expectativa de ser reconhecido como autor,
nos leitores: conta-se que na escultura romana unia prática de pois um bom leitor descortinará o engano. Os pseudoautores do
encobrimento de imperfeiçóes era utilizar cera - uma obra pura artigo sobre a cachay copiaram um texto de uma década anterior,
mas em poucos meses foram desmascarados publicamente. Por
Em tom dramático, Marcel LaFollette também relaciona o crédito por um trabalho isso, o plágio é sempre um jogo arriscado de sobrevivência para
à identidade do pesquisador e escritor: "roube minhas palavras e assim roubará minha
autoria. Roube minha ideia e assim roubará minha identidade como cientista' (2000, o plagiador - a cada leitura, aumentam as chances de a duplicaçáo
p. 212, traduçáo nossa). ser descoberta.

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