Você está na página 1de 14

OLHARES PLURAIS - Artigos 83

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

BIOPOLÍTICA E SELETIVIDADE PENAL: PARA ALÉM DOS CORPOS


DISCIPLINARES

1
Marcos Eugênio Vieira Melo

Artigo submetido em: out./2015 e aceito em: fev./2016

RESUMO

O presente artigo analisa a questão da seletividade do sistema penal no contexto da biopolítica


de Michel Foucault e Giorgio Agamben. Neste sentido, faz-sefaz se referência à formação de uma
sociedade neoliberal capitalista que visa majoritariamente o lucro e que qu exclui aqueles que
não conseguem entrar no mercado de consumo, tornando-os
tornando os descartáveis. Deste modo, a
produção da vida nua (homohomo sacer)
sacer) é colocada nos dias atuais e as classes dominantes
criminalizam os setores considerados desnecessários e irrelevantes da sociedade enquanto os
crimes mais danosos a coletividade são blindados dentro do sistema. Por fim, revela-se
revela a
gestão da vida humana pelo biopoder e pela biopolítica, preservando-a
preservando quando útil e
abandonando-aa quando inútil.

Palavras-chave: seletividade
seletividad penal; vida nua; biopolítica.

BIOPOLITICS AND CRIMINAL SELECTIVITY: BEYOND THE DISCIPLINE OF


BODIES

ABSTRACT

This article examines the question of selectivity of the penal system in the context of
biopolitics of Michel Foucault and Giorgio Agamben.
Agamben. In this regard, reference is made to the
formation of a neoliberal capitalist society which aims mainly profit and that excludes those
who can not get into the consumer market, making them disposable. Thus, the production of
bare life (homo sacer) is placed
placed in the presents days and the ruling classes criminalize sectors
considered unnecessary and irrelevant in society as the most damaging crimes the community
are shielded within the system. Finally, it proves to be the management of human life by
biopower and biopolitics, preserving it as useful and abandoning her as useless.

Keywords: criminal selectivity; bare life; biopolitics.

INTRODUÇÃO

Os dispositivos de poder trazidos pela biopolítica na atualidade, fazem presumir que a


vida humana tornou-se
se não mais o objetivo último da intervenção política, mas um tipo de
instrumento de governo para gerir populações. A biopolítica, mais do que as disciplinas,
disc
enquanto gestão coletiva da vida, reformula a relação entre a vida e a política, colocando a

1
Pós-Graduando
Graduando em Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Instituto de
Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Graduado
em Direito pelo Centro Universitário Tiradentes
Tiradente (UNIT – Maceió-AL); Advogado.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 84
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

vida como um método de administração de governos e determinando quais sujeitos serão


incluídos e excluídos no seio social, a depender de sua função na sociedade
soc neoliberal
contemporânea.
Este artigo pretende demonstrar, brevemente, como esta questão supra exposta está
dentro do sistema penal brasileiro, que é totalmente seletivo e disposto a favorecer os
incluídos e a desfavorecer os excluídos, no contexto trazido e desenvolvido principalmente
por Michel Foucault e Giogio Agamben.
Tratar-se-á,
á, primeiramente, de analisar qual o estágio que se encontra a segregação
dentro do sistema penal no Brasil, considerando as políticas criminais utilizadas na contenção
dos
os crimes, bem como a questão da criminalização primária e secundária, que aumenta ainda
mais a exclusão e o estigma de alguns setores da população.
Diante disto, passar-se-á
passar á a analisar uma breve transmutação do pensamento
foucaultiano, desde o poder disciplinar
disci até a biopolítica, percebendo--se que o conceito de
disciplina não está abandonado, porém foi colocada em outra perspectiva, ou seja, na
biopolítica a disciplina tem um novo papel, o de gerir massas em um nível minucioso, no
detalhe.
Através, principalmente,
almente, do pensamento de Agamben em relação à biopolítica,
investigar-se-áá a forma com que a governabilidade passa a gerir as massas e a entrar na vida
dos indivíduos, através do que ele chamou de passagem do princípio do poder soberano de
“fazer morrer e deixar viver” para o princípio do “fazer viver e deixar morrer”, ponto crucial
para entender a biopolítica e as relações contemporâneas entre os poderes.

1 SISTEMA PENAL BRASILEIRO E SELETIVIDADE

Entende-se
se aqui, Sistema Penal, no mesmo sentido que Eugênio
nio Raul Zaffaroni, como
um
controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando
se detecta ou supõe detectar-se
detectar se uma suspeita de delito até que se impõe e executa
uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei le que institucionaliza o
procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta
atuação. Esta é a idéia geral de “Sistema Penal” em um sentido limitado, englobando
a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores
pro e
funcionários e da execução penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 63 e 64).

No Brasil, existem inúmeras estatísticas2 afirmando o nível de seleção e segregação no


âmbito do sistema penal. Isto é, o perfil das pessoas que cumprem pena ou que estão
est sujeitas a

2
De acordo com o DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional – Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias INFOPEN,, junho 2014: em uma população carcerária total de 607.731, 75% são de jovens de 18
a 34 anos, 68,2% são negros, 80% tem apenas o ensino fundamental completo e sua grande maioria envolvida
em tráfico de drogas (66.313) e crimes contra o patrimônio (97.206).

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 85
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

um processo criminal se concentra em indivíduos hipossuficientes3 e advindos de elevada


privação econômica e social.
Pode-se
se atribuir isto, as políticas de segurança pública do tipo “tolerância zero” e do
movimento da “lei e ordem”, trazidas
trazidas para solo nacional da experiência americana, que tratam
de uma consequência (penal) do afastamento do Estado do setor social, onde há menos do
Estado-providência
providência e mais do Estado-penal
Estado penal para conter a decorrente marginalização social
(WACQUANT, 2001).
Esse Estado-penal
penal define-se
define se pelo agravamento das leis penais, da repressão policial,
bem como, do aumento de prisões no lugar do investimento em políticas públicas de
benefícios sociais. Isto é, a lógica dessa nova forma de Estado é simples: abandona de investir
in
naqueles que necessitam do Estado para colocá-los
colocá nas prisões.
Assim, identifica-se
se um processo de criminalização da pobreza em que o discurso da lei e
ordem acarreta que aqueles que não possuem capacidade para estar no jogo econômico sejam
detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível (LOPES JR., 2011,
p.17).
Trata-se,
se, portanto, de uma forma de disfarçar os efeitos de uma determinada política,
dessa vez uma política econômico-social
econômico social que marginaliza uma parcela da população. Da
mesma forma, é também um modo de reeducar as frações mais baixas do mercado de trabalho
para suas novas regras econômicas. Deste modo, o crescimento do Estado-penal
Estado acompanha a
junção de três elementos: ampliação do sistema penal, liberalização econômica
econômi e abandono ou
redução das políticas sociais. Isto fez parte, primeiramente, de um programa que, a partir do
thatcherismo britânico e do governo Ronald Reagan nos Estados Unidos, se desenvolveu na
América do Norte, para depois se estabelecer na Europa e, principalmente, na América Latina
(WACQUANT, 2001).
É o que afirma Wacquant (2001, p. 7) quando diz que:

(...) a penalidade neoliberal é ainda mais sedutora e mais funesta quando aplicada
em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições
c e de
oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições
capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo
no limiar do novo século.

Com isso, em um cenário de total ausência de políticas públicas sociais que garantam
o mínimo existencial de parte da população (que é o caso da América Latina e, mais
especificamente, do Brasil), essa questão continua sendo vista como uma questão policial,
reforçando ainda mais o entendimento de que a repressão
repressão do crime tem como alvo,

3
Termo jurídico que significa que a pessoa tem condições econômicas e técnicas desfavoráveis e depende
depe de
ajuda (na maioria dos casos do Estado) para sobreviver com o mínimo possível.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 86
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

especialmente, as classes trabalhadoras e as que sofrem repressão política, fazendo com que
estes setores sofram constantemente violência e ilegalidades da polícia (CALDEIRA, 2000).
Como assevera Augusto Jobim (AMARAL; ROSA, 2014,
2014, p. 14) “não é nenhuma
novidade que a punição desempenha uma função social complexa,, que a sanção pelo crime
não é simplesmente o seu único elemento essencial”. Assim:

A economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento das economias


capitalistas.
pitalistas. A ilegalidade mais suscetível às classes populares, agora ditas
perigosas, foi a dos bens; de outro, à burguesia ascendente, então, se reserva a
ilegalidades de direitos. Sabemos para qual delas se guardou o caminho ordinário do
castigo (AMARAL;
(AMARAL ROSA, 2014, p. 15).

Portanto, pode-se
se entender que existe um certo tipo de “controle social” de quais atos
que serão ou não mais propensos a punição. É o que diz Zaffaroni (2004, p. 60), ao afirmar
que “o certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura
estrutura de poder, com grupos que
dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos
centros de decisão”, consequentemente “de acordo com essa estrutura, se controla socialmente
a conduta dos homens, controle que não só se exerce
exerce sobre os grupos mais distantes do centro
do poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar
sua própria conduta para não debilitar-se”.
debilitar
Entende-se,
se, com isto, que são esses grupos que dominam, que escolhem quais
condutas
tas que podem ser consideradas criminalizadas ou criminalizáveis. Deste modo, este
processo de criminalização é dividido em dois: criminalização primária e secundária. Segundo
Baratta (1999, p. 61), o mecanismo da produção das normas é conhecido por criminalização
crimin
primária, enquanto o mecanismo da aplicação das normas, isto é, o processo penal,
compreendendo a ação dos órgãos de investigação e culminando com o juízo, é conhecido por
processo de criminalização secundária.
Segundo Zaffaroni (2003, p. 43), criminalização
criminalização primária "é o ato e o efeito de
sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas" e a
criminalização secundária "é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece
quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se
se tenha praticado certo ato
criminalizado primariamente".
Destarte, compreende-se
compreende se que, apesar da criminalização primária ser também um modo
de controle social4, sua atuação é mais limitada, pois é realizada pelos legisladores
legislador no

4
Verifica-se
se isso por exemplo com a seleção criminalizadora, que ocorre mediante as diversas formulações
técnicas dos tipos penais, aliadas as espécies de conexão que eles determinam com o mecanismo das
agravantes/atenuantes, qualificadoras/efeitos privilegiadores. “Veja-se,
“Veja se, por exemplo, que o furto simples,
tipificado no artigo 155, caput do Código Penal é capitulação rara nas peças acusatórias do nosso país. Quase
sempre esse crime é qualificado por uma daquelas situações apresentadas no parágrafo 4º.
4º Esse tipo de delito é,

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 87
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

processo de criação de normas de condutas tipificadas, não tendo o poder de aplicá-las,


aplicá ao
passo que a criminalização secundária tem uma atuação mais efetiva, sendo, assim, o
verdadeiro instrumento de controle social e quem efetivamente realiza o processo
pro de seleção
de quem será o potencial criminoso.
Assim, o sistema repressivo está estruturalmente arquitetado para que as leis efetivas
não operem, mas, sim, que permitam uma discricionariedade seletiva e controlada, dirigida
aos setores sociais mais vulneráveis, o que explica as razões pelas quais os presos são, na sua
maioria absoluta, oriundos de setores sociais economicamente frágeis ou de segmentos
discriminados e vulneráveis.
Portanto, essa estratégia policial-penal
policial penal não é precisamente um meio de garantir o
cumprimento das regras para o bom funcionamento da sociedade, como se poderia imaginar
em uma perspectiva essencialmente talhada no caráter normativo dos fenômenos sociais.
Porém, trata-se
se de uma ferramenta de construção de uma determinada política
polí de
criminalização da miséria para excluir os indesejáveis, aliada à defesa da ideia de que
qualquer emprego é melhor que nenhum (o que contribui para conformação do trabalho a uma
situação de precariedade).
Deste modo, como na sociedade capitalista neoliberal
neoliberal o que importa é a acumulação
de capital e a concorrência, os setores considerados sem utilidade (em sua maioria pessoas das
camadas hipossuficientes) são os que sofrem com a criminalização secundária e a
discricionariedade seletiva, sendo assim segregados
segregados e estigmatizados pela política de
segurança pública que controlam os “permanentes suspeitos”5.

notadamente, praticado por pessoas pobres, razão pela qual a aplicação de qualificadoras que majoram a pena
vem bem a calhar. Percebe-se, se, também, que asas malhas dos tipos penais são, em geral, mais sutis no caso dos
delitos próprios de “colarinho branco”. Analisemos o art. 16 do mesmo diploma legal, que trata do instituto do
arrependimento posterior: “Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o
dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será
reduzida de um a dois terços”. Refere-se
Refere se aos crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça à
pessoa.. O agente é beneficiado com uma redução de pena quando, por ato voluntário, repara o dano ou restitui o
objeto do delito. Em sua grande maioria, pessoas dos baixos extratos sociais são beneficiados por esse instituto,
pois são elas que, geralmente, praticam
praticam delitos contra o patrimônio Em sentido inverso, realizamos a análise da
Lei n. 8.137/90, que dispunha no artigo 14, que os crimes previstos em seus artigos 1.º, 2º e 3.º teriam extinta sua
punibilidade quando o agente (contribuinte ou servidor público) promovesse o pagamento do tributo ou
contribuição social antes do recebimento da denúncia. Não bastasse tamanho benefício, com o advento da Lei n.
10.684/2003, a extinção da punibilidade passou a ocorrer em qualquer fase do processo, e não antes do
recebimento
ento da denúncia. Vale lembrar que os crimes de sonegação fiscal afetam o Estado de forma drástica, vez
que o dinheiro que deixou de ser arrecadado poderia ter sido utilizado na realização de projetos sociais e outras
finalidades de efeito coletivo. Não há como negar, dessa forma, que a extinção da punibilidade do agente em
qualquer fase do processo transforma a justiça penal em mero instrumento de coação ao pagamento de impostos”
(JUNIOR & MENDES).
5
Foi neste sentido que Zaffaroni (1986, p. 59) fez crítica aos ordenamentos jurídicos penais, pois, destacou que a
lei penal estabelece tratamento diferenciado de censura de pessoas dependendo de sua estrutura social e
econômica e seu poder de consumo, afirmando que é uma clara violação ao princípio da igualdade reprovar com
a mesma intensidade pessoas que ocupam situações de privilégio e outras que se encontram em situações de
extrema pobreza.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 88
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Assim, enquanto o olhar se dirige aos segmentos pobres da população, permanecem sob
tranquila obscuridade os crimes perpetrados pelas classes hegemônicas,
hegemônicas, ou, nas palavras de
Foucault, “c’est
c’est que tout avait été amenagé, du haut en bas du système, pour que
fonctionnement les illégalismes et que les délinquances les plus profitables se multiplient”
multiplient -
“é tudo arranjado, de alto a baixo do sistema, para que funcionem os ilegalismos e os
delinquentes mais lucrativos se multipliquem” (FOULCAULT, 1975, p. V).

2 DO PODER DISCIPLINAR À BIOPOLÍTICA DE FOUCAULT

O pensamento da genealogia de Michel Foucault tem como ponto de partida a


descoberta dos micro-poderes
poderes disciplinares, que visavam a administração do corpo individual,
surgidos no século XVII em consonância com a gradativa formação de um conjunto de
instituições
ições sociais como o exército, a escola, a fábrica, o hospital etc. (DUARTE, p. 3).
Assim, preocupado como os poderes funcionam em um nível mais baixo (ou mais
habitual), num funcionamento micro, Foucault pôde descobrir uma transmutação nas formas
de poder
er que ocorreram, principalmente, entre os séculos XVIII e XIX, e inauguraram o que
podemos chamar de sociedade disciplinar (VALERIO, 2013, p. 176).
Em análise sobre a prisão em Vigiar e Punir, Foucault (2010, p. 170) constatou que
este poder disciplinar faz com que o corpo seja dócil até em suas mínimas operações e tem
como função “adestrar” para retirar e se apropriar ainda mais e melhor, o que o permite ser
absolutamente indiscreto, já que “está em toda parte e alerta, pois em princípio não deixa
nenhumaa parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de
controlar; e absolutamente ‘discreto’, pois funciona permanentemente e em grande parte em
silêncio”.
Nesta mesma obra, examinou que a pena privativa de liberdade revela que seu
se
surgimento verifica-se
se diretamente relacionada à produção e disciplinamentos de corpos
dóceis, ou seja, na prisão, o corpo passaria por uma maquinaria de poder com o único objetivo
de acomodar o comportamento humano na tentativa de atender aos interesses políticos e
econômicos hegemônicos da época, afinal de contas, o corpo dócil, efeito das disciplinas, é o
mesmo corpo útil do operário da fábrica (FOUCAULT, 2010, p. 133).
Observou que as técnicas disciplinares responsáveis pelos controles dos indivíduos em
nível corporal e molecular aparecem, primeiramente, por um problema econômico
característico do século XVIII: de um lado, o grande crescimento populacional, de outro, o
surgimento de aparelhos de produção em grande escala.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 89
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Houve, com isso, uma necessidade


necessidade de ordenar os indivíduos, tornando-se
tornando necessário
diminuir os custos da população que se tornou cada vez maiores, enquanto os aparelhos de
produção (v.g. fábricas) tornaram-se
tornaram se mais complexos com a necessidade de, impostas pelo
capital, fazê-los prosperar
ar e gerar lucros. Assim, as disciplinas respondem a esses processos,
ou, sem dúvida, à necessidade de ajustar sua correlação, o que ajudou, ainda, a levar a
burguesia à classe dominante (FOUCAULT, 2010, p. 164).
Nesse aspecto, as classes políticas dominantes
dominantes precisavam conter as revoluções sociais
que as ameaçavam desde a Revolução Francesa e ao mesmo tempo produzir ilegalismos que
fossem lucrativos. Foi aí que fabricou-se
fabricou se a delinquência como este novo ilegalismo e o
aprisionamento se mostrou como o meio mais adequado para produzi-la,
la, pois são sempre os
mesmos delinquentes que retornam a prisão, o que torna-se
torna se um fator de produção de
insegurança dentro da sociedade.
Em outras palavras, para Foucault (2010, p. 241), o cárcere fabrica e normaliza o
delinquente
nte para enfraquecer a luta política entre as classes e ainda gerar lucro para as classes
dominantes, fazendo portanto com que o delinquente não seja o efeito negativo do fracasso da
prisão, mas uma forma lucrativa para a burguesia, além de uma forma gerar insegurança
social, que serve de justificativa para atuações excessivas por parte dos aparelhos estatais (v.g.
(
polícia).
Porém, “mudanças significativas e paradigmáticas acompanharam o decurso histórico
da aplicação das penas, e a fabricação de corpos dóceis
dóceis deram origem à gestão política da vida
humana em nível macro (corpo da população), fenômeno que se materializa na biopolítica”
(ASSIS & WERMUTH, 2015).
Nas aulas proferidas no Collège de France,, Foucault desenvolveu o problema da
biopolítica, vista como
omo “a nova tecnologia que (...) se dirige a multiplicidade dos homens”
(1999, p. 289), tecnologia que ao mesmo tempo se diferencia e é complementar às técnicas
disciplinares.
Nas palavras de Foucault:

A disciplina também não é eliminada; é certo que sua su instauração – todas as


instituições no interior da qual ela se desenvolveu no século XVII e início do século
XVIII, a escola, as oficinas, os exércitos, etc. – só se compreende a partir do
desenvolvimento da grande monarquia administrativa. Mas nunca a disciplina
d foi
tão importante, tão valorizada quanto a partir do momento em que procurou gerir a
população. E gerir a população não quer dizer simplesmente gerir as massas
coletivas dos fenômenos ou geri-los
geri los somente ao nível de seus resultados globais.
Geri a população significa geri-la
Gerir la em profundidade, minunciosamente, no detalhe.
A ideia de um governo da população torna ainda mais agudo o problema do
fundamento da soberania e ainda mais aguda a necessidade de desenvolver a
disciplina. Devemos compreender as coisas não em termo de substituição de uma
sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma sociedade de
governo. Trata-se
Trata de um triangulo: soberania-disciplina-gestão
gestão governamental, que

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 90
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

tem na população seu alvo principal e nos dispositivos


dispositivos de segurança seus
mecanismos essenciais (1979, p. 291).

Portanto, o poder disciplinar já não é mais exercido sobre os corpos individualizados,


nem se encontra em instituições sociais, mas se concentra na figura do Estado e se exerce a
título de política estatal que objetiva a administração da vida e do corpo da população
(FOULCAULT, 1985, p. 145).
De acordo com ele, não é possível compreender as relações de poder a partir de uma
teoria da soberania, pois esta teoria pressupõe a existência de um sujeito submetido a outro
sujeito, ou seja, um poder unitário. Ao contrário, trabalha com o que ele chama de
“operadores de dominação”: não são os poderes que derivam da soberania, mas da própria
relação de poder, da relação de dominação. Portanto, o que interessa
interessa para Foucault são as
relações de sujeição efetivas que fabricam sujeitos e não procurar o fundamento pelo qual os
sujeitos se submetem à sujeição (FOUCAULT, 1999, p. 51).
Trata-se,
se, então, de um mecanismo de poder que procura dar conta de problemas
problema
relacionados à população e às massas. Assim, pode-se
pode se dizer que por um longo período de
tempo um dos privilégios do poder soberano era o direito de decidir sobre a vida e a morte
(“fazer morrer e deixar viver”).
viver”). Porém, a partir do momento em que a vida passou
pa a se
constituir como elemento político por excelência, houve a inversão do princípio soberano
(“fazer
fazer viver e deixar morrer”):
morrer”): “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi
substituído por um poder de causar a vida ou de devolver à morte” (FOUCAULT,
(FO 1985, p.
130).
Então, para Foucault, o poder está agora situado e exercido ao nível da vida. Neste
nível mais geral tem-se
se o conceito de biopoder, que “serve para trazer à tona um campo
composto por tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir
intervir sobre a características vitais
da existência humana”, bem como a biopolítica, que compreende “todas as estratégias
específicas e contestações sobre as problematizações da vitalidade humana coletiva,
morbidade e mortalidade, sobre as formas de conhecimento,
conhecimento, regime de autoridade e práticas
de intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes”6 (RABINOW & ROSE, 2006, p. 28).

6
A essa relação de poder (biopoder) e a prática política de governar (biopolítica) Foucault chama de
governamentalidade. Entendida, em suma, “como conjunto de instituições, procedimentos, análises, reflexões,
cálculos, táticas que permitem exercer uma forma complexa de poder sobre a população,
população por uma forma de
saber que é a economia política e por instrumentos técnicos essenciais que são os dispositivos de segurança.
segurança (...)
pode ser vista como resultado de um processo através do qual o Estado de Justiça da Idade Média (uma
‘sociedade da lei’) foi convertido em Estado Administrativo (nascido de uma territorialidade correspondente
corresponden a
uma ‘sociedade de regramento e disciplina’) durante os XV e XVI e finalmente se ‘governamentalizou’ pouco a
pouco, ou seja, passou a ser definido não mais por um território, mas por uma superfície ocupada por uma
massa: a população,, instrumentalizada por um saber econômico e controlada por dispositivos de segurança”
segurança
(AMARAL; ROSA, 2014, p. 28), deste modo, esse governo não é exercido sobre o Estado, o território ou uma
estrutura política, mas sim sobre as pessoas, os indivíduos, os homens e as coletividades
coletividades (Segurança, Território,

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 91
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

3 BIOPOLÍTICA E A GESTÃO DA VIDA

Enquanto aparelho de gestão da vida (política e social), a biopolítica tende a


estabelecer o controle
ntrole social afirmando os sujeitos incluídos no espaço político e segregando
parcelas da população que não correspondem aos padrões sociais e normativos vigentes
(ASSIS & WERMUTH, 2015).
Porém, diante da expressão característica da biopolítica “fazer viver e deixar morrer”,
questiona Foucault: “como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata
essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas
possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas
suas deficiências?” (1999,
p. 304). Em resposta, traz a ideia de racismo7, que surge como o mecanismo de quem deve
morrer e quem deve viver. Assim, “não há, portanto, contradição entre o poder de gerência e
incremento da vida e o poder de matar os milhões para
para garantir as melhores condições vitais
possíveis” (DUARTE, p. 5).
Deste modo, assinala Foucault (1999, p. 129 e 130):
As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se
travam em
nome da sobrevivência de todos; populações inteiras são levadas
l a destruição mútua
em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornam vitais. Foi como gestores
da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar
tantas guerras, causando a morte de tantos homens. (...) se o genocídio
geno é, de fato, o
sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente ao velho direito de
matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e
dos fenômenos maciços da população. (...) São mortos legitimamente aqueles
aqu que
constituem uma espécie de perigo biológico para os outros.

Neste sentido, com fundamento no pensamento político de Foucault, Giorgio


Agamben baseia sua análise de biopoder e biopolítica de uma maneira particular8. Ele
sustenta que todo poder repousa
repousa em última instância sobre a capacidade de um de tomar a
vida do outro – é um poder sobre a vida, fundamentado na possibilidade de reforço da morte.
Agamben caracteriza este poder por referência à metáfora do homo sacer – figura na lei
romana cujos crimes
mes tornaram seu sacrifício impossível, mas que poderia ser morto
impunemente. Como esta figura, que é reduzida do bíos – basicamente, o modo de vida

População FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977- (1977
1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 164).
7
Para Foucault, o termo racismo não é empregado somente na sua concepção étnica, étnica, mas deve ser entendido
como todo e qualquer mecanismo de exclusão do diferente para assegurar a vida.
8
Inspirado em Foucault, mas também em Walter Benjamin, Hannah Arendt e Carl Schmitt, Agamben pensa a
biopolítica no entrecruzamento de quatro conceitos
conceitos da política ocidental: poder soberano, vida nua (homo
( sacer),
estado de exceção e campo de concentração. Sua reflexão estabelece uma nítida correlação entre o caráter
rotineiro dos assassinatos em massa dos séculos XIX e XX e a normalização do estado de d exceção entre o
mesmo período de tempo. No cerne desta correlação está o princípio político da soberania, que, segundo
Agamben, seria a instância que, ao traçar o limite entre a vida protegida e a vida exposta à morte, politiza o
fenômeno da vida ao excluí-la la e incluí-la
incluí la simultaneamente da esfera jurídica, motivo pelo qual o regime
biopolítico pode garantir tanto o incentivo quanto o massacre da vida (DUARTE, p. 9).

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 92
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

próprio a um indivíduo ou grupo em uma comunidade política – ao zöé – “vida nua” -, ele
sugere que o nascimento
mento do biopoder na modernidade marca o ponto no qual a vida biológica
dos sujeitos entra na política e pertence inteiramente ao Estado (RABINOW; ROSE, 2006, p.
33).
Portanto, a importância de Agamben está, não apenas na continuidade ao pensamento
de Foucault
cault sobre a biopolítica, mas no estabelecimento de uma relação íntima entre o poder
jurídico e o poder biopolítico, pois esta relação não foi mencionada nos trabalhos de Foucault,
que separava poder soberano e biopolitica9.
Com isso, a biopolítica exclui
exclui do contexto social parte da população considerada
desnecessária para atender aos padrões de consumo da sociedade capitalista neoliberal. Neste
sentido, para a lógica neoliberal, “só tem valor e utilidade para o sistema aqueles sujeitos que,
de certa forma,
a, se ajustam aos padrões impostos e contribuem com a acumulação de capital”.
Os demais “são considerados ‘desajustados’ e redundantes, portanto, não merecedores do
convívio social” (ASSIS & WERMUTH, 2015).
Igualmente, estes problemas são inseridos na ordem
ordem do direito penal, que não mais se
limita a dizer quais condutas devem ser consideradas crimes e como puni-las,
puni uma vez que
trata-se
se agora de uma gestão da criminalidade, ou questão de penalidade, isto é, gerir quais
delitos que devem ser permitidos e a quantidade de pessoas que devem ser deixadas impunes
(FOUCAULT, 2008, p. 350).
De tal modo, é bom ressaltar que, como visto anteriormente, a “clientela” do direito
penal é em sua grande maioria de pessoas de classes baixas, ou seja, pessoas que estão
ridas na margem da sociedade moderna e podem ser consideradas “estranhos”10 ao
inseridas
mundo. Estranhos, estes, que não podem viver em conjunto com os detentores do saber/poder
e devem ser banidos dos limites do “mundo ordeiro” e impedidos de se comunicar com os do
lado de dentro.
Em outras palavras, deve-se
deve se “confinar os estranhos dentro das paredes visíveis do
gueto”, bem como “expulsar os estranhos para além das fronteiras do território administrado
ou administrável; ou quando nenhuma das duas medidas fosse factível,
factível, destruir fisicamente os
estranhos” (BAUMAN, 1998, p. 29).

9
Importante ressaltar que, distintamente de Foucault, Agamben refere a biopolítica não à modernidade,
m mas à
tradição do pensamento político do ocidente, pois a instituição do poder soberano é correlata à definição do
corpo político em termos biopolíticos.
10
Palavra utilizada por Zygmunt Bauman em seu livro O Mal-Estar da Pós-Modernidade
Modernidade, ao se referir as pessoas
que são excluídas dos padrões do mundo atual: “[...] os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa
cognitivo, moral, ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos os três; [...] Os estranhos
exalaram incerteza ondee a certeza e a clareza deviam ter impetrado” (BAUMAN, 1998, p. 27 e 28).

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 93
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Assim, para Agamben, a antiga declaração ritual do homo sacer permanece presente
hoje na capacidade do Estado soberano de estabilizar o estado de exceção, para alocar aqueles
expropriados dos direitos do bíos para aquelas zonas, e para torturar ou matar aqueles
reduzidos ao status de zöé – vida nua – sem constrangimento legal.
Do mesmo modo, a partir da modernidade e, sobretudo na contemporaneidade, quando
o estado de exceção passa a tornar-se
tornar e regra, o espaço da vida nua, situado originalmente à
margem do ordenamento, vem a coincidir com o espaço político e, assim, exclusão e inclusão,
zöé e bíos,, direito e fato entram em uma zona amorfa e tornam-se
tornam se indistinguíveis. Este espaço
Agamben chama dee campo de concentração, que é o espaço biopolítico por excelência, pois
ao embaralhar estas categorias, o poder soberano tem diante de si uma vida nua sem qualquer
mediação, totalmente desqualificada, à mercê de um poder que no limite, é um poder de morte
(AGAMBEN, 2004, p. 16).
Portanto:
A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da
norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é
excluído não está, por causa disso, absolutamente fora de relação
relaç com a norma; ao
contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspenção. A norma
se aplica a exceção desaplicando-se,
desaplicando retirando-se
se desta. O estado de exceção não é,
portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão
su
(AGAMBEM, 2004, p. 25).

Assim, na sociedade contemporânea alguns segmentos podem ser comparados à figura


do homo sacer romano, detentor da vida nua,, fazendo o Estado invocar o estado de exceção
(que se torna regra) com o pretexto de proteger a vida.
vida. Estes segmentos podem ser apontados
como os excluídos, ou aqueles que não tem função dentro do sistema capitalista neoliberal11.
Neste sentido, o direito (principalmente o penal) se encaixa perfeitamente no discurso
moderno da biopolítica. Por exemplo, a teoria do bem jurídico, “que atribui ao direito penal a
função de tutela dos bens jurídicos, delineia estratégia punitiva alicerçada na necessidade de
punir para proteger”” (mesmo com o argumento da “bondade” do poder punitivo) faz com que
se justifique a “implementação dos mecanismos biopolíticos” (COSTA, 2015).
Com efeito, esta teoria legitimadora da punição tenta encobrir a violência intrínseca do
sistema penal, simplesmente porque foi (teoricamente) elaborada racionalmente em
conformidade com os princípios
cípios do direito penal e do processo penal. Mais além, quando a
ciência penal tenta impor limites à sua atuação, visto que o estado de direito não tem como

11
Para Bauman, estes segmentos são considerados “refugos” da sociedade, e por não poderem mais ser
removidos para depósitos de lixo distantes e fora dos limites da “vida normal”, precisam ser lacrados em
contêineres fechados - fornecido pelo sistema penal como prisão, que serve para depositar estes sujeitos
irrelevantes (BAUMAN, 2005).

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 94
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

conter o estado de exceção (que se verifica no exercício do poder punitivo) porque o estado de
exceção
ção sustenta o estado de direito.
Em outras palavras, não é possível pensar hoje o estado de direito sem o exercício do
poder punitivo, o que faz concluir que as figuras do criminoso, desviante ou inimigo, não são
privilégio de um Direito Penal de Exceção,
Exceção, mais são também essenciais para o Direito Penal
do Estado Democrático de Direito, ou que “permanecerá a possibilidade de criação de um
espaço de exceção constituinte do estado de direito, permitindo que a vida nua,
nua a partir desse
espaço indiscernível de atuação soberana, possa ser morta”, bem como que “a morte ocorre
sob os auspícios do Estado de Direito, e não fora dele” (COSTA, 2015).
Assim, a biopolítica dá novo sentido ao poder punitivo, já que permite que a vida
possa ser controlada sob a justificativa
justificativa de segurança/proteção de bens jurídicos (criados pelos
grupos dominantes), conferindo com isso, um “espaço legítimo” de atuação do poder punitivo
(criminalização secundária), partindo de um discurso que assegura e aniquila a vida a
depender se incluídoo ou excluído – homo sacer – na sociedade neoliberal.

CONCLUSÃO

Considerando o exposto neste trabalho, constata-se


constata se que o sistema penal brasileiro é
completamente seletivo, atuando através de um processo de criminalização da pobreza, desde
a criação da norma (criminalização primária) até uma eventual ação punitiva concreta sobre
determinada pessoa (criminalização secundária).
O Estado, através das classes dominantes, qualifica determinados seguimentos da
população como os mais propensos à prática de crimes
crimes (hipossuficientes e excluídos do
mundo neoliberal) no grupo de “eternos suspeitos” que a qualquer momento poderão cometer
algum crime contra os “cidadãos de bem” e por isso deverão ser constantemente monitorados
e vigiados.
Com isso, a antiga política praticada nos Estados se transforma em biopolítica e a vida
natural passa a ocupar o núcleo dos problemas políticos, fazendo com que nos dias atuais o
estado de exceção se torne regra e o poder soberano tenha pra si a possibilidade de determinar
entre a vida
ida ou a morte de seus membros, a depender de seus interesses hegemônicos.
Neste contexto, a biopolítica constitui, além de uma maneira de justificar a
seletividade do sistema penal, uma forma de poder que ratifica as práticas punitivas hodiernas,
descrevendo
endo um discurso que se coaduna com o moderno Direito Penal e Processual Penal,
em que a exceção se confunde com a regra e a “vida nua”, que se encontra na margem, passa
a se misturar com a vida política, fazendo com que o soberano punitivo tenha o poder sobre
s
ela.
OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 95
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Portanto, pode-se
se dizer que a função principal dos discursos jurídicos-penais
jurídicos
contemporâneos é o controle das massas populacionais, fazendo com que os dispositivos de
segurança atuem no limite da legalidade/não-legalidade,
legalidade/não legalidade, para colocar “cada um no seu devido
lugar”.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer:


Sacer o poder soberano e a vida nua.. Volume I. Tradução de
Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

AMARAL, Augusto Jobim do; ROSA, Alexandre Morais da. Cultura da Punição:
Punição a
ostentação do horror.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

ASSIS, Luana Rambo; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A Seletividade Punitiva no


Contexto daa Biopolítica e a Produção da Vida Nua (Homo
( Sacer)) no Sistema Carcerário
Brasileiro:: A Relevância de Políticas Públicas Comprometidas
Comprometidas com a Qualidade de Vida e a
Dignidade do Apenado.. Disponível em
<http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/13137/2242
http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/13137/2242 Acesso em
http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/13137/2242>.
17 de agosto de 2015.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:


Pen introdução à
Sociologia do Direito Penal.
Penal Rio de Janeiro: Revan, 1999.

BAUMAN, Zigmunt, 1925. O mal-estar da pós-modernidade.. Tradução Mauro Gama,


Claudia Martinelli Gamaç revisão técnica Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
______. Vidas Desperdiçadas.
Desperdiçadas Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

CALDEIRA, Teresa Rio do Pires. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São
Paulo.. São Paulo: Editora 34, 2000.

COSTA, Fabricio Martianatto. Controle Punitivo e Contexto Biopolítico:


Biopolítico Revisitando o
Realismo
lismo Marginal de Eugênio Raul Zaffaroni.
Zaffaroni Disponível em
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=2575c857df983996
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=2575c857df983996>.
>. Acesso em 12 de
agosto de 2015.

DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações


Penitenciárias: INFOPEN,, junho, 2014.

DUARTE, André. Sobre a biopolítica:


biopolítica de Foucault ao século XXI.. Disponível em
<http://www.revistacinetica.com.br/cep/andre_duarte.htm
http://www.revistacinetica.com.br/cep/andre_duarte.htm>.
>. Acesso em 15 de agosto de 2015.

FOUCAULT, Michel. “Préface”. In: Leurs Prisons: Autobiographies de prisonniers et


d’ex-détenus américains.. JACKSON, Bruce. Traduit de L’anglais par Maurice Rambaud.
Paris: Plon, 1975.

______. Em defesa da sociedade:


sociedade curso no Collège de France (1975-1976)
1976). 2. ed. Rio de
Janeiro: Editora Graal, 1999.

______. História da Sexualidade I:


I A vontade de saber.. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora
Graal, 1985.
OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249
OLHARES PLURAIS - Artigos 96
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

______. Microfísica do Poder.


Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 22ª ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979.

______. Segurança, território, população:


população: curso dado no Collège de France (1977-1978).
(1977
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões.
prisões. 38ª ed. Rio de Janeiro: Vozes,
2010.

OR, Airto Chaves; MENDES, Marisa Schmitt Siqueira. A criminalização primária e a


JUNIOR,
norma penal brasileira:: considerações acerca da sua seletividade.
seletividade. Disponível em
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?artigo_id=5944&n_link=revista_artigos_l
http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?artigo_id=5944&n_link=revista_artigos_l
eitura#_ftn15>.
>. Acesso em 15 de agosto de 2015.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional.


constitucional 7.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. v. 1.

RABINOW, Paul; ROSE Nikolas. O Conceito de Biopoder Hoje. Política & Trabalho –
Revista de Ciências Sociais,
Sociais nº 24, Abril de 2006 – p. 27-57.

VALERIO, Raphael Guazzelli. Sobre a Biopolítica de Giorgio Agamben: Entre Foucault


F e
Arendt. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil,, v. 8, n. 2, dezembro de
2013.

WACQUANT, Loic. As prisões da miséria.


miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Sistemas Penales y Derechos Humanos.. Buenos Aires;


Depalma, 1986.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal


brasileiro: parte geral.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 6ª edição, 2006.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl et. al. Direito penal brasileiro:: teoria geral do direito penal.
penal Rio
de Janeiro: Ed. Revan, 2003 vol. 1.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249

Você também pode gostar