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Comissão Editorial

Camila Silva
Cyanna Missaglia de Fochesatto
Estela Carvalho Benevenuto
Jonathan Fachini da Silva
Lidiane Elizabete Friderichs
Priscilla Almaleh

Comissão Científica
Alba Cristina dos Santos Salatino Jonathan Fachini da Silva
Amilcar Jimenes Juliana Camilo
André do Nascimento Corrêa Juliana Maria Manfio
Bruna Gomes Rangel Letícia Rosa Marques
Camila Eberhardt Liane Susan Muller
Camila Silva Lidiane Friderichs
Carlos Eduardo Martins Torcato Marcelo Silva
Caroline Poletto Márcia Cristina Furtado Ecoten
Cláudio Marins de Melo Marcos Jovino Asturian
CyannaMissaglia de Fochessatto Mariana Couto Gonçalves
Daniela Garces de Oliveira Matheus Batalha Bom
Deise Cristina Schell Max Roberto Pereira Ribeiro
Dênis Wagner Machado Michele de Leão
Diego Garcia Braga Natália Machado Mergen
Douglas Souza Angeli Priscila Almalleh
Ficha Catalográfica Eduardo Gomes da Silva Filho Raul Viana Novasco
Elisa Fauth da Motta Rodrigo Luis dos Santos
C79 Estudos Históricos Latino-Americanos: conexões Brasil e América Latina. / Estela Carvalho Benevenuto Rodrigo Pinnow
Organizadores: Camila Silva, Cyanna Missaglia de Fochesatto, Estela Fabiane Maria Rizzardo Tatiane Lima
Carvalho Benevenuto, Jonathan Fachini da Silva, Lidiane Elizabete
Friderichs, Priscilla Almaleh. – Porto Alegre: Forma Diagramação, 2017.
Gabriele Rodrigues de Moura Tuane Ludwig Dihl
Helenize Soares Serres Site http://cehla-unisinos.weebl y.com/
ISBN 978-85-63229-17-5
Diagramação
1. História - América Latina. 2. Relações internacionais. I. Título.
Forma Diagramação

CDU 97/98 Realização


Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do
Bibliotecário Responsável: Thiago Ribeiro Moreira CRB 10/1610
Vale do Rio dos Sinos

Apoio
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
Banco do Estado do Rio Grande do Sul S.A. (BANRISUL)
Museu da História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM)
As Missões Jesuítico-Guaranis: o Patrimônio Histórico-Cultural e [...] Ofrecen un campo muy espacioso a la pluma: o processo de
a Integração Regional (1979-1987)......................................... 107 escrita do Segundo Tomo da obra Paraguay Natural Ilustrado de
Érico Teixeira de Loyola José Sánchez Labrador S. J.................................................. 227
Mariana Alliatti Joaquim
O contexto da emancipação político-administrativa e as
negociações com o passado reducional em São Miguel das Missões A historiografia jesuítica e suas práticas de escrita: os contatos
nas décadas de 1970 e 1980........................................................123 de Guillermo Furlong SJ com as correntes historiográficas da
Sandi Mumbach primeira metade do século XX................................................245
André Luis Ramos Soares Mariana Schossler

Cap. 4 - Dimensões e conexões da Nova História D o modelo aos modelos: “exempla ad imitandum” e “vidas
Indígena............................................................ 139 veneráveis” em António Franco............................................261
Schaiane Pâmela Bonissoni
Notas sobre a mobilização indígena no Brasil (1970-2000)...... 141
Amilcar Jimenes
Cap. 6 - Registros Escritos da Igreja Católica como
Contato interétnico e transculturação no rapto de hispano-
fontes de pesquisa: temas e métodos de estudos......275
criollos ................................................................................. 153 Filhos naturais ou filhos ilegítimos? Uma análise do impacto das
Marcelo Augusto Maciel da Silva outras formas de uniões na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-
1822).................................................................................. 277
História indígena e o casamento: revisitando a historiografia Denize Terezinha Leal Freitas
atual com objetivo de analisar as práticas matrimoniais no
aldeamento de Itapecerica (1733-1820)...................................171 O religioso e a pena, o rio e a água. O início da construção da
Marcio Marchioro fronteira no Vale Amazônico do Padre Cristóbal de Acuña (1639 -
1640)....................................................................................291
Cap. 5 - As práticas de escrita na Companhia de Maicon Alexandre Timm de Oliveira
Jesus: novos temas e abordagens de pesquisa.........189
O contexto político brasileiro na primeira metade do século xix e o
Illustres Varones: cronistas e historiógrafos da Província Jesuítica poder local.............................................................................309
do Paraguay.........................................................................191 Michele de Oliveira Casali
Gabriele Rodrigues de Moura
Los alcances de la visita pastoral como fuente para
“Llegamos al puerto más cercano”: a fronteira demarcada nos analizarlos procesos de territorialización del poder eclesiástico.
escritos do capelão José Quiroga S.J.*.................................... 209 Córdoba, Argentina 1875-1925............................................... 327
Maico Biehl Milagros Gallardo
Capítulo 03 - História e Memória Iconográfica dos Sete Povos das Missões

arquitetônicos dos Trinta Povos guarani jesuíticos. In: XXVIII Simpósio Nacio-
nal de História – Lugares dos Historiadores: Velhos e Novos Desafios. Flori-
O contexto da emancipação político-
anópolis: UFSC/UDESC/ANPUH, 2015. Disponível em: http://www.snh2015.
anpuh.org/resources/anais/39/ 1427746054_ARQUIVO_inscricaoXVIIISimpo-
administrativa e as negociações com o passado
sioNacionaldeHistoriaANPUH2015.pdf. Acesso em: 14 abr. 2016.
reducional em São Miguel das Missões nas
PARENT, Michel. Protection ET miseenvaleur Du patrimoine culturel brésilien
Dan slecadredu development touristique et économique. Paris: 1968. In: As décadas de 1970 e 1980
Missões da UNESCO no Brasil: Michel Parent (Org.: LEAL, Cláudia Feierband
Baeta). Rio de Janeiro: IPHAN, 2008.

PRATS, Llorenç. Antropología y patrimonio. Barcelona: Ariel, 1997. Sandi Mumbach*


André Luis Ramos Soares**
UNESCO. Campanha internacional em favor da preservação e da restauração
das Missões Jesuítico-Guaranis.In: GUTIERREZ, Ramon. As Missões Jesuíticas
dos Guaranis. Rio de Janeiro: UNESCO-SPHAN/FNPM, 1987. São Miguel das Missões localiza-se na região das missões
WILLIAMS, Daryle. Além da História-Pátria: As Missões Jesuítico-Guaranis, o do estado do Rio Grande do Sul, possuindo em seu território o
Patrimônio da Humanidade e Outras Histórias. Revista do Patrimônio Histórico
sítio arqueológico que se encontra em melhor estado de conser-
e Artístico Nacional. Brasília/DF: nº 34, p. 281-301, 2012
vação, dos sete povoados reducionais criados na região no final
do século XVII. Anualmente milhares de turistas visitam o lugar
buscando conhecer as ruinas da antiga redução de São Miguel
Arcanjo.
No início de século XX os remanescentes arqueológicos do
período reducional encontravam-se em situação de abandono
e sofriam consecutivas depredações, muitas delas, incentiva-
das até mesmo por parte de órgãos públicos. “Há registros no
Arquivo Histórico de Santo Ângelo, antigo município sede de
São Miguel das Missões, da venda, pela prefeitura de materiais
construtivos da antiga redução” (RAMOS, 2006 p.94).
Na década de 1920 ocorrem as primeiras ações de limpeza
no local, e na década de 1930 as primeiras ações de reparo e
preservação, empreendidas por parte do governo estadual. A
obra reducional apresentava, dentro das práticas políticas do
período, orientadas pelas ideias positivistas de Ordem e Pro-
gresso, a responsável pela evolução do guarani. Desta forma

*
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, bolsista
CAPES/DS.
**
Doutor em Arqueologia pela USP, professor adjunto da UFSM.

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Capítulo 03 - História e Memória Iconográfica dos Sete Povos das Missões

a região missioneira apresentava-se como um lugar a ser pre- No período que corresponde entre as décadas de 1930 e
servado, num projeto que pretendia demonstrar que o estado 1980, prevaleceu no Brasil a concepção de patrimônio históri-
viveu sob a égide da evolução desde o período missioneiro. co como patrimônio edificado, estreitamente vinculado às ma-
nifestações culturais de grupos e classes dominantes que se
De onde se conclui que a valorização do patrimônio histó-
rico das Missões, a partir da década de 1920, pode ser ex- representaram no Estado Nação em formação. Um estado que
plicada sob a ótica da necessidade do Governo Borgista em elegia seus patrimônios históricos com a finalidade de refor-
defender os ideais republicanos, em uma época de disputas
politicas no Rio Grande do Sul (POMMER, 2009, p. 87). çar a existência de uma identidade nacional. Desta forma os
elementos escolhidos para serem consagrados como elementos
A década de 1920 foi marcada pelo aumento significativo identitários da nação foram os relacionados ao passado colonial
de obras sobre o conhecimento histórico do Rio Grande do Sul, português, em detrimento de diversas outros grupos identitá-
e de maneira especial pela criação do Instituto Histórico e Ge- rios. Dentro desta ótica os elementos referentes ao passado
ográfico do Rio Grande do Sul, responsável por uma série de reducional no sul do país passaram a integrar as políticas de
ações no âmbito histórico e cultural. proteção do SPHAN, como representantes de um passado colo-
Já no final da década de 1930 teremos as primeiras ações nial, em destaque para a arte sacra e as edificações em estilo
por parte do governo federal na região. O Serviço do Patrimônio denominado barroco-missioneira.
Histórico e Artístico Nacional - SPHAN1, criado em novembro Desde o início de sua incorporação por parte de órgãos
de 1937, possuía a função de selecionar e proteger aquilo que estaduais e federais como patrimônio a ser protegido e valori-
deveria se tornar patrimônio histórico e artístico nacional. Neste zado o sitio arqueológico de São Miguel passou a receber aten-
período o governo de Getúlio Vargas empreendeu um esforço ção, recebendo ações de reparos e preservação. Estas ações
em torno da valorização de elementos que dessem sustenta- intensificaram-se ao longo do tempo, em especial, nas décadas
ção ao seu projeto de estabelecimento de identidade nacional. de 1970 e 1980, período em que foram desenvolvidas muitas
Neste período estabeleceram-se as primeiras politicas públicas ações visando a promoção e a divulgação dos patrimônios e do
destinadas à preservação dos patrimônios contidos em território turismo no lugar.
brasileiro. Em outubro de 1978 foi criado o espetáculo Som e Luz, o
Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional con- projeto foi promovido pela Secretaria Estadual de Turismo que
junto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja tinha como objetivo inicial ser apresentado durante 60 dias e
conservação seja do interesse público quer por sua vincu-
lação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por depois deslocar-se para outros municípios do Estado. Devido
seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, biblio- à grande procura por parte do público, resolveu-se manter o
gráfico ou artístico. (Decreto lei nº 25, de 30 de novembro
de 1937). espetáculo no local, até a atualidade. O espetáculo com dura-
1
O SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi criado por ção de uma hora, trazia vozes de atores consagrados, sendo
decreto presidencial assinado em 30 de novembro de 1937, estava subordina- dividido em 75 cenas, com texto de Henrique Grazziotin Gazza-
da ao Ministério da Educação. A instituição veio a ser posteriormente Depar-
tamento, Instituto, Secretaria e, de novo, Instituto do Patrimônio Histórico e
na, buscando narrar de forma teatral a história dos Sete Povos
Artístico Nacional (IPHAN), como se chama atualmente. das Missões e apresentar a saga de seus grandes heróis. Atu-

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almente a prefeitura municipal de São Miguel das Missões é a No dia 6 de dezembro de 1983 a proposta brasileira de
responsável pela manutenção do espetáculo, que passou uma elevação do sítio arqueológico de São Miguel das Missões à con-
revitalização no ano de 2016. dição Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade foi aceita
Em fevereiro de 1982 uma nova descoberta, foram en- pela UNESCO e anunciada pelo então Secretário de Cultura do
contrados os primeiros vestígios da fonte da antiga redução de MEC, Marcus Vilaça. A mesma foi intensamente comemorada
São Miguel Arcanjo. “A prefeitura preparava uma área camping nos municípios de Santo Ângelo e também no distrito de São
quando resolveu fazer algumas perfurações e sempre brotava Miguel. Em entrevista ao jornal “A Tribuna Regional” de Santo
água. Foram colocadas máquinas a trabalhar e notou-se que Ângelo, publicada no caderno especial da edição de 10 de de-
o piso era de pedra” (A Tribuna Regional, 10 de dezembro de zembro de 1983, o prefeito de Santo Ângelo, Mauro Azeredo
1983). Assim que descoberta a fonte, o SPHAN isolou a área, afirmava a importância do evento para o desenvolvimento eco-
e assumiu também a tarefa de manter e preservar o local, que nômico da região através do turismo, e destacou as comemora-
em seguida foi aberto ao público para que passasse também a ções realizadas:
integrar o roteiro turístico do lugar. Acreditamos que o município terá condições de receber
centenas de milhares de turistas, o que vai provocar uma
Em outubro de 1982 o Secretário de Cultura do MEC Mar- melhor imagem de Santo Ângelo e, ao mesmo tempo, dar
cus Vinicius Vilaça, em visita à cidade de Santo Ângelo, anuncia- oportunidades a todo o comércio. Ontem à noite, milhares
de pessoas estiveram reunidas na Praça Pinheiro Machado,
va que em dezembro daquele ano seria ele o representante que quando numa festa popular apresentaram-se shows e es-
entregaria a documentação de São Miguel das Missões para sua petáculos de artistas da região. Também ocorreu queima
de fogos de artifícios, mostrando o contentamento da co-
candidatura ao tombamento pela UNESCO. O secretário firmava munidade que recebia um dos maiores títulos que o muni-
também um termo de compromisso, pelo qual o MEC, através cípio sonhou conseguir. (A Tribuna Regional, 10 de dezem-
bro de 1983).
da Sub-Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
iniciava as obras de consolidação das ruinas de São Miguel. Percebe-se o protagonismo do poder público santo-ange-
Analisando artigos publicados pelo jornal A Tribuna Re- lense frente ao sítio arqueológico de São Miguel, o município
gional no início do ano de 1983 a região já esperava ansiosa tratou de tirar proveito da potencialidade turística do seu 3º
a concretização da declaração por parte da UNESCO, especial- distrito. A partir das afirmações do prefeito observa-se a preo-
mente o município de Santo Ângelo, o fato era dado como certo cupação com a imagem e com a situação econômica do muni-
na região e aguardado com grande expectativa. A população cípio de Santo Ângelo, que juntamente com toda a região das
acreditava que este traria inúmeros benefícios, possibilitando o missões enfrentava, nas décadas de 1970 e 1980, cenários de
desenvolvimento e progresso econômico da região. Além disso crise econômica.
nota-se também, através da análise de artigos do jornal A Tri-
buna Regional, que havia a expectativa de que a confirmação da A busca pela emancipação político-administrativa em
declaração por um órgão internacional de tamanha importância São Miguel
possibilitaria a vinda de verbas para a preservação adequada do
sítio, que pelo que se percebe não vinha sendo adequada. Para compreender o contexto em que ocorreu a emancipa-

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Capítulo 03 - História e Memória Iconográfica dos Sete Povos das Missões

ção político administrativa de São Miguel das Missões precisa-se do Espetáculo Som e Luz, por exemplo. É dentro deste movi-
compreender o processo de negociação com o passado colonial mento denominado Missioneirismo que São Miguel das Missões
que ocorreu na região nas décadas de 1970 e 1980, um mo- consolidou-se como atração principal do turismo da Região das
vimento complexo que buscava referenciais no passado redu- Missões, sendo ainda um distrito.
cional jesuítico-guarani, devido a necessidades impostas pelo Desta forma compreendemos a criação do espetáculo Som
presente. Este movimento é denominado por Pommer (2009) e Luz, a descoberta da fonte e a declaração do sítio arqueoló-
como Missioneirismo. gico como patrimônio da humanidade, como ações integrantes
Segundo Pommer (2009) a conjuntura econômica que a deste movimento, que buscavam preservar, divulgar e valorizar
Região das Missões enfrentava na década de 1980 exigiu que os patrimônios do passado reducional, bem como promover o
as comunidades negociassem com o passado reducional jesuí- turismo regional.
tico-guarani e encontrassem nesse passado, elementos para o O que temos buscado compreender em nossas pesquisas é
estabelecimento de uma unidade identitária que possibilitou a o fato de todas estas ações estarem ocorrendo em São Miguel,
produção da chamada identidade missioneira. Este movimen- sendo este ainda um distrito do município de Santo Ângelo, e
to surgiu como reação ao processo de uniformização cultural e tendo este município o protagonismo sobre estas ações rela-
econômica desencadeada em meados da década de 1970, pelo tivas ao patrimônio, e não os sujeitos do lugar e as lideranças
que se convencionou chamar de globalização. Destaca-se o pa- locais de São Miguel das Missões. A emancipação político-admi-
pel exercido pelas lideranças intelectuais e empresariais locais nistrativa do lugar ocorreu mais tarde, no ano de 1988.
descontentes com os rumos econômicos e culturais da região Buscando compreender o processo de emancipação polí-
das Missões. Na tentativa de produzir para si uma identidade tico-administrativa de São Miguel das Missões, nos deparamos
missioneira, vários monumentos antigos foram ressignificados com um contexto nacional em que haviam restrições quanto à
e novos foram construídos ao longo da Região das Missões, de emancipações político-administrativas municipais, compreender
maneira intencional, visando articular a memória local. este contexto se faz essencial para o desenvolvimento do traba-
lho. A ditadura civil militar teve início no ano de 1964 no Brasil,
Para lidar com as incertezas e fragmentações postas pelo permanecendo até o ano de 1985. Alegando estar o país sob
contexto de crise da década de 1980, algumas comunida-
des da região das Missões foram persuadidas a buscar no ameaça comunista, os militares dominaram as várias instâncias
passado, tido até então como sinônimo de ruina e decadên- do poder. Sob a população abatia-se a restrição de direitos e
cia, as certezas que a evocação dos mitos de origem e seus
referenciais de eras de ouro trarão para o enfrentamento supressão da liberdade civil, e a censura recaia sobre os órgãos
da realidade. (POMMER, 2009, p.30). de imprensa, restringindo as formas de manifestação cultural.
Estados e municípios mantinham eleições, mas estavam sujei-
São Miguel nos permite exemplificar as constatações reali- tos a intervenções por parte do governo federal.
zadas por estes autores, o município sede, Santo Ângelo buscou
Em 1966 ocorreram mudanças importantes na função ad-
ressignificar os patrimônios presentes em seu território, bem
ministrativa do estado gaúcho. Através do Ato Institucional
como construiu e edificou uma série de outros, como é o caso nº 3 (AI- 3), em 5 de fevereiro, a ditadura estabeleceu

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Capítulo 03 - História e Memória Iconográfica dos Sete Povos das Missões

a eleição indireta de governadores, por maioria absoluta Compreendemos então que as emancipações realizadas a
de votos das assembleias legislativas (já expurgadas de
quadros nocivos durante a “Operação Limpeza”). Tal me- partir da segunda metade da década de 1980 ocorreram por
dida era fundamental para a manutenção do controle dos que provavelmente houve abertura política para tal. Talvez hou-
maiores e mais importantes estados do Brasil. Por sua vez,
os prefeitos das capitais estaduais passaram a ser nome- vesse a vontade ou necessidade por parte das comunidades an-
ados pelos governadores, tornando-se interventores. Essa teriormente a isto, no entanto, a realidade imposta pela situa-
situação foi parcialmente alterada quando, em 1968, pro-
mulgou-se a lei que declarava de interesse da segurança ção política do país não permitia.
nacional vários municípios brasileiros. Nesse primeiro mo-
No dia 26 de maio de 1985 foi realizada uma assembleia
mento, 68 municípios foram declarados área de segurança
nacional, sendo quase um terço localizados no Rio Grande no Centro de Tradições Nativistas – (CTN) Sinos de São Miguel,
do Sul. Os prefeitos desses municípios continuariam sendo
que contou com a participação de 408 pessoas e foi presidida
indicados pelo governador, porém, neste caso, mediante
prévia autorização do presidente, podendo ser exonerados por Valdir Pedro Frizzo, presidente do Núcleo Comunitário local.
em caso de “decaírem da confiança do Presidente da Repú-
A assembleia visou eleger uma comissão para tratar do proces-
blica ou do Governador do Estado”. (PADRÓS, 2009, p.41).
so de emancipação político-administrativa do distrito.
Conforme menciona Padrós (2009), dos 68 municípios de-
Este encontro transformou-se em uma grande Assembleia
clarados área de segurança nacional, um terço localizava-se no Geral, tendo como local o Centro de Tradições Nativistas
Rio Grande do Sul, um número extremamente expressivo e que “Sinos de São Miguel”, entidade tradicionalista que serviu
para encontros e reuniões sobre a Emancipação de São
indicava a importância atribuída pelos militares à proteção das Miguel das Missões. [...] Nesta Assembleia foi nomeada e
fronteiras, principalmente nos municípios que faziam fronteira aprovada pela comunidade presente a Comissão Emanci-
pacionista sendo: Presidente – Valdir Pedro Frizzo; Vice-
com o Uruguai e Argentina. Nestes municípios o governo federal Presidete – Aparício Odil Ribas; 1º Secretário – Aparício
nomeava interventores para ocuparem os cargos de prefeitos. Eloi Ribas; Segundo Secretário – Joaquim Manoel Rolim de
Moura; 1º Tesoureiro – Julio Cesar Terra Dias; 2ºTesoureiro
Percebe-se que o movimento que deu início ao processo de – Nelson Eugenio Steinke. (SILVA, 2008, p. 21).
emancipação de São Miguel das Missões, ocorreu exatamente
no ano em que teve fim o período militar no país. Neste período Destaca-se que os membros da Comissão Emancipacio-
houveram restrições às emancipações municipais. nista eleitos em Assembleia, eram pessoas de destaque e influ-
ência na comunidade, comerciantes e agricultores, indivíduos
O início do processo de emancipação municipal no Brasil
ocorreu por volta da década de 1930. Esse processo se interessados no crescimento e no progresso econômico de São
intensificou nas décadas de 1950 e 1960 e foi restringido
Miguel das Missões. Alguns dos membros da comissão assumi-
pelos governos militares entre 1970 e 1980. Após o tér-
mino do regime militar, as emancipações se intensificaram ram cargos públicos no município nos anos que se seguiram à
novamente. Com a Constituição Federal de 1988, os mu-
emancipação, como é o caso de Valdir Pedro Frizzo que veio a
nicípios passaram a serem considerados entes federativos
e a desempenhar um papel mais relevante na administra- tornar-se prefeito de São Miguel das Missões em duas gestões.
ção pública brasileira. [...]. Em decorrência, os municípios
Esse foi também o caso de Eloi Aparício Ribas, outro membro
receberam extenso e detalhado tratamento constitucional,
com competências privativas ou em colaboração com o es- da comissão que se tornou o primeiro Secretário Geral da Ad-
tado e a União. Desde 1985, a intensa criação e instala-
ministração do novo município. “O primeiro Prefeito, eleito no
ção de municípios no Brasil têm sido parte de um processo
mais geral de descentralização. (MAGALHÃES, 2007, p.13). ano seguinte, foi o empresário Rural, Pedro Everling (PPB - atual

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Capítulo 03 - História e Memória Iconográfica dos Sete Povos das Missões

PP), seguido de Waldir Pedro Frizzo (PDT) e Mário Nascimento A justificativa utilizada pela comissão emancipacionista foi
(PP). Estes três prefeitos governaram nosso município por duas fato de o distrito de São Miguel ser o mais afastado da sede mu-
vezes cada um” (CARVALHO, 2014). nicipal. E devido a este distanciamento, e também a escassez
Em entrevista concedida a Silva (2008), um dos membros de recursos que lhes eram destinados, alguns serviços essen-
da comissão emancipacionista de São Miguel das Missões, Júlio ciais acabavam prejudicados, como a manutenção das estradas
Terra Dias afirmou que as despesas decorrentes do movimen- vicinais, a oferta de atendimento médico, serviços de telefonia,
to, teriam sido pagas pelos próprios membros. Isto por que, energia elétrica e saneamento. “As condições eram precárias na
segundo ele, grande parcela da comunidade de São Miguel não área, por que Santo Ângelo tinha responsabilidade de atendi-
acreditava que a emancipação poderia se efetivar. Desta forma, mento a vários distritos e os recursos financeiros eram escas-
90% dos recursos necessários ao processo de emancipação fo- sos”. (SILVA, 2008, p.23)
ram bancados pelos membros da comissão emancipacionista.
A declaração do Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo
A convocação para a Assembleia Geral através da qual a como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, e a poten-
população iria decidir sobre a emancipação, foi feita através cialidade turística que se apresentava ao lugar foram também
das emissoras de rádio de Santo Ângelo, pois assim como não
utilizadas como justificativas para a emancipação.
contava com mídia impressa em São Miguel, essa comunidade
também não dispunha de rádio local. A votação foi orientada e Pela importância histórica e cultural de São Miguel Arcanjo,
acompanhada pela Justiça Eleitoral. Realizada no CTN Sinos de sendo na época Patrimônio Cultural Nacional e Patrimônio
da Humanidade, considerado um potencial turístico, isto
São Miguel a mesma teve como resultado 5% dos votos contra veio a agregar fortemente um requisito para sua eman-
e 95% dos votos a favor da emancipação. Após a proclamação cipação juntamente com os demais setores econômicos a
agricultura e pecuária, que viabilizaram a formação do mu-
do resultado houve grande comemoração e, em data próxima,
nicípio. (SILVA, 2008, p. 22).
foi marcado um grande churrasco no CTN Sinos de São Miguel
dando seguimento às comemorações.
Outro fator que influenciou a luta pela emancipação foi
Após a votação ter resultado favorável à emancipação,
o fato de, na década de 1980, os municípios de Eugênio de
encaminhou-se a documentação necessária, juntamente com
Castro e Entre-Ijuís terem também iniciado seus processos de
as justificativas para o processo. No ano de 1986 o anseio da
emancipação. Em São Miguel das Missões alguns indivíduos co-
população de São Miguel foi submetido à Comissão de Constitui-
meçaram a demonstrar preocupação e questionamentos, pois o
ção e Justiça, a qual credenciou a Comissão Emancipacionista.
mesmo poderia vir a integrar-se como distrito de Entre-Ijuís e
A partir daí, São Miguel teve que atender a algumas exigências
não mais de Santo Ângelo, tornando ainda mais difícil a solução
e critérios para conseguir a sua autonomia, como possuir um
núcleo urbano constituído e contar com o atendimento de servi- para o atendimento às demandas da comunidade miguelina,
ços básicos como saúde, educação, transporte, comunicação e no momento em que passasse a integrar um município recém-
segurança. Por fim, a Assembleia Legislativa estadual aprovou a -constituído, no caso, Entre-Ijuís.
Lei Nº 8.584, que criou o município de São Miguel das Missões Ainda segundo Silva (2008), Santo Ângelo, o município
no dia 29 de abril de 1988. sede, não se opôs ao processo de emancipação de São Miguel,

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Capítulo 03 - História e Memória Iconográfica dos Sete Povos das Missões

isto por que a área do munícipio de Santo Ângelo era bastante mônio histórico do lugar são bastante complexas, buscaremos
extensa, sendo que a emancipação de São Miguel pouco iria in- elucida-las em trabalhos seguintes.
terferir neste quadro. Desta forma, Santo Ângelo teria apoiado Ao emancipar-se, São Miguel das Missões passou a gerir o
e fornecido o suporte necessário à emancipação de São Miguel patrimônio contido em seu território e os seus sujeitos passaram
das Missões, por possuir a percepção de que não poderia ofere- a articular a memória local. Diversas questões merecem ainda
cer a infraestrutura que o distrito necessitava, frente ao poten- uma abordagem maior e um olhar mais atento neste contexto,
cial turístico que o mesmo apresentava. principalmente o fato de percebermos que os descendentes de
Santo Ângelo teve três emancipações de distritos no ano imigrantes italianos, que povoaram São Miguel no início do sé-
de 1988: Entre Ijuís, Eugenio de Castro e São Miguel. O muni- culo XX, no processo de negociação com o passado ocorrido nas
cípio de Entre Ijuís foi criado em 13 de abril de 1988, apenas décadas de 1970 e 1980 terem aberto mão de aspectos do seu
alguns dias antes da criação de São Miguel das Missões. Confor- próprio, para afirmarem-se como missioneiros, incorporando
me os relatos trazidos por Silva (2008), todos estes três muni- um passado que não era o seu. Outra questão que percebemos
cípios conseguiram suas emancipações sem grandes problemas. latente e que merece ser melhor explicitada é o CTN Sinos de
A questão que gerou impasses foi a delimitação dos territórios São Miguel como um espaço simbólico para esta comunidade, e
dos mesmos, visto que se tratava de áreas bastante extensas. que no período de luta pela emancipação reunia a comunidade
Vários mapas teriam sido confeccionados, diversas negociações em decisões, festejos e comemorações. Lugar onde percebe-
teriam ocorrido, até que se chegou a um acordo. mos nitidamente a mescla de patrimônios e símbolos do passa-
do reducional com elementos do tradicionalismo gaúcho.
Considerações Finais Por fim, destacamos que Santo Ângelo, ao consolidar-se
a emancipação de São Miguel, acaba perdendo o território que
Com a emancipação político-administrativa São Miguel das continha a maior atração turística da região. A este município
Missões iniciou a construção da infraestrutura necessária para restou tentar atrair o olhar do turista para aquela que é conside-
o seu funcionamento enquanto município. Passou também ter rada a réplica da igreja da Antiga redução de São Miguel Arcan-
autonomia para lidar com o patrimônio histórico contido em seu jo, a Catedral Angelopolitana, bem como aos poucos vestígios
território, preservando-o e promovendo ações de divulgação e do período reducional contidos em seu território.
valorização do mesmo.
Quanto a aparente passividade demonstrada pelo municí-
Referências
pio sede Santo Ângelo ao perder o seu distrito afamado e reco-
nhecido mundialmente, temos percebido, aprofundando-se na Assembleia aprovou São Miguel e Eugenio de Castro. A Tribuna Regional.
pesquisa sobre o tema, que esta não teria ocorrido como apa- 23/04/1988.

renta. Temos compreendido que as relações que envolveram a BAIOTO, Rafael. QUEVEDO, Júlio. São Miguel das Missões. 2 ed. Porto Alegre.
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