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VOL.

2 | nº 2
Apoio: Realização:
Março de 2019
Suplemento Gratuito
ISSN 2596-1373
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Neto

04 05 06
presidência

André Avelino de Azevedo


direção administrativo-financeira

Raymundo Netto
gestão de projetos
ARTIGO Flores de Açucena Crônicas
Emanuela Fernandes
Troféu Hqmix Spes Unica! Educados para Ler análise de projetos
passou dos trinta Quintino Cunha Ana Miranda
José Alberto Lovetro (JAL) MARACAJÁ
Cabaret
Raymundo Netto
Franklin Nascimento
curadoria, pesquisa e edição geral

Emanuela Fernandes
assistência editorial

08 10 11
José Alberto Lovetro (JAL), Ana Miranda,
Lia Leite, Carlos Carvalho, Daniel Brandão,
Raymundo Netto, Lene Chaves, J.J. Marreiro
e Klévisson Viana colaboraram nesta edição
com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da
seção “Radiadora”)
chapuletadas GENTE ILUSTRADA CRISTALEIRA
Guabiras
Os símbolos da resistência Klévisson Viana Francisco Carvalho: ilustrações
poética de Dércio Braúna o poeta das coisas como as
Lia Leite coisas não são Amaurício Cortez
Carlos Carvalho editor de design

Giselle Fernandes
projeto gráfico e editoração eletrônica

14 22 24
Karlson Gracie
tipografia Maracajá

revistamaracaja@gmail.com
contato

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução


RADIADORA mala de romances Tiragostos sem autorização prévia e escrita. Todas as
Aprendeu andar de moto, J.J. Marreiro informações e opiniões são de responsabilidade dos
Zélia Sales mas não sabia parar respectivos autores, não refletindo a opinião deste
Raymundo Netto suplemento ou de seus editores.
Bernivaldo Carneiro Arievaldo Vianna
e Jota Batista Daniel Brandão
Este suplemento literário mensal é parte integrante
Kah Dantas
Lene Chaves do Projeto Maracajá: Vida & Arte, em decorrência do
Carlos Vazconcelos Contrato de Patrocínio celebrado entre a Fundação

Ricardo Kelmer Artista da capa Demócrito Rocha e a Assembleia Legislativa do


Estado do Ceará, sob o nº 69/2018.
Guabiras
Léo Prudêncio
ISSN 2596-1373
Rosa Morena
Todos os direitos desta edição reservados à:
Dércio Braúna
Lia Sanders
Frederico Régis
Bruno Paulino
Nina Rizzi Fundação Demócrito Rocha
Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
Ângela Escudeiro
Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Nirton Venâncio Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271
fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br

2
Do Alpendre

Maracajá, a publicação modernista, suplemento


literário do O POVO, vai circular amanhã.
Jornal O POVO* nº 356, Ano II, página 1,
Fortaleza, Ceará, 6 de abril de 1929
Deve circular amanhã Maracajá. É um suplemen-
to literário do O POVO.
Maracajá é propaganda do nosso valor mental
modernista. É publicação feita para outros cen-
tros, onde a cultura intelectual e a leitura da pla-
teia tenham passado das baladas de Rostand. Ou
mais: dos romances de Camilo com os seus estu-
dos de genealogia. oje, nós podemos dizer – graças à inven-
Como se vê, Maracajá saiu antes do tempo, para o
ção estapafúrdia e impensável em outros
Ceará.
tempos: a internet – que a Maracajá é, sim,
Por isto mesmo, aconselhamos que não a com-
PARA TODO MUNDO!
prem: nem o menino entusiasta do cowboy, nem
Você, leitor(a), tem em suas mãos o
a melindrosa, nem o almofadinha, nem o velho
segundo número dessa ousada publicação que não sofre de Alzheimer e, por-
viciado da francesinha.
tanto, tem boa memória, sendo capaz de lembrar-se e de reconhecer a todos:
Entretanto, se algum mortal quiser se arriscar, leia
Maracajá.
dos mais longevos aos talentos contemporâneos.

Mas, se vier ao leitor o arrependimento, ponha-o Nesta edição, continuamos a abrir a Cristaleira afetiva, por Carlos
na cesta de suas tolices. A redação de Maracajá Carvalho, trazendo à luz outro poeta: Francisco Carvalho, que, como outros
não é culpada. autores cearenses, mesmo com elevada qualidade literária, pela falta de um
[...] mercado editorial atento, tem a sua obra acolhida apenas em livros publica-
É muita tripa por um vintém. dos em vida. Há quem jure de pés juntos: quem morre por aqui, corre o risco
Outra cousa: devido à grande remessa de Maracajá, de morrer “de com força”. Daí, já prenunciava o Carvalho: “Quando os poetas
feita hoje, para o Sul e para o Norte, talvez as cen- morrem/os seus versos os acompanham.//[...] Quando os poetas morrem/ as
tenas que ficaram para Fortaleza não cheguem suas almas fecham todas as portas/ e as metáforas se calam.”
para ser vendidas na rua. Quem souber ler deve
Também nessa edição, a participação da escritora Ana Miranda e de José
procurar Maracajá nas agências de jornais.
Alberto Lovetro (JAL). O microfone aberto de nossa Radiadora está tinindo e,
Quem não souber ler não gaste o seu cruzado com
aqui, outros mimos aos, esperamos, fiéis leitores.
a revista.
Não nos esqueçam e não se esqueçam de compartilhar o nosso sítio eletrôni-
Maracajá não é para todo mundo, não.
co e lancem a Maracajá (revista e videoentrevista) ao mundo: fdr.org.br/maracaja
(*) Na época o jornal O POVO era composto de
8 páginas. Localizava-se na rua Barão do Rio
Branco, 239. O diretor era Demócrito Rocha e
Raymundo Netto
Paulo Sarasate seu redator-secretário. Curador e Editor

3
Artigo

Artigo

Troféu Hqmix
passou dos trinta
izem que quando um even- A importância de haver uma premiação anual no Brasil
to passa dos cinco anos já não é apenas para valorizar o trabalho de milhares de artistas,
está em bom caminho para mas também pela força na linguagem popular. São cerca de
continuar por pelo menos 20 milhões de leitores de quadrinhos ativos no Brasil, conside-
mais uma década. Passamos rando que quase toda a população do país já leu algum gibi na
em 2018 dos 30 anos e chegamos agora aos 31 com o reconhe- infância ou em algum momento na vida.
cimento dos profissionais da área e da mídia, em geral. Não foi Serginho Groisman, nosso padrinho desde o nascimento
uma fácil caminhada por esse tempo todo não fosse o apoio de do evento em seu programa TV MIX 4, na TV Gazeta (SP), nos
instituições como o Sesc, em particular o Sesc Pompeia, que anos de 1980, todos os que participaram até hoje da Comissão
possibilitou a grandiosidade de enaltecer autores, editores e Organizadora e os jurados especializados nos levaram a esses
profissionais desse importante segmento da cultura no Brasil. mais de 30 anos de amor à causa dos quadrinhos. Valeu a pena
Nesses 30 anos, foram 1.271 troféus entregues aos ven- e sempre estaremos tentando aprimorar mais e mais o nosso
cedores por uma votação nacional entre os próprios autores, Troféu HQMIX.
editores e pesquisadores da área dos quadrinhos. Nesse período Um agradecimento a todos que entenderam que não im-
houve muitas mudanças acompanhando o movimento dinâ- porta quem vença ou quem perde, o que importa é mostrarmos
mico do mercado editorial. Foi o primeiro troféu no mundo a para todos e para a mídia que existimos, que somos muitos pro-
reconhecer os trabalhos universitários de pesquisa e a premiar fissionais e que produzimos quadrinhos da melhor qualidade.
publicações digitais. Isso, além de mudar, a cada ano, a estatue-
ta onde homenageia um personagem brasileiro de destaque na José Alberto Lovetro (JAL)
história de nossa produção, desde Angelo Agostini com o seu
“As Aventuras de Nhô Quim” de 30 de janeiro de 1869.

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Flores de Açucena

Spes Unica! Cabaret


Morto, dentro da fria sepultura, Quando eu cheguei no salão sonoro,
Sem te poder falar? Aparatoso, à noveau-riche,
E tu que me amas, boa criatura,  A orquestra ria um riso violento de cascata:
Indo me visitar...  Caracolava um maxixe.

Banhada de suspiros, de soluços,  E homens vestidos de piche,


Desmaiada, talvez... E mulheres com vestígios de vestes sobre si,
Muita vez reclinada, até de bruços,  Pulavam no soalho de borracha.
Na altura dos meus pés... (Ainda há pouco pisavam sobre brasas
Em charlestonizações epiléticas de cabritos monteses...)
Pedindo a Deus o meu viver eterno
Junto das glórias suas; Elas tinham olheiras fumarentas,
Que me livre das penas do inferno,  Olheiras de tardes londrinas
E a chorar continuas, E olhos de polimento...

Lembrando nossa vida, a todo instante, Franklin Nascimento


Repassada de dor... O Canto Novo da Raça, 1927
A lembrar-te que fui o teu amante 
— O teu único amor!
 
Mal pensando na horrífica caveira, 
Em que me transformei,
Exausto de fadiga, de canseira, 
Imaginar não sei...
 
Para evitar essa hora amargurada, 
Esse quadro de dor, tão verdadeiro, 
Deus há de ser servido, minha amada, 
Que tu morras primeiro!...

Quintino Cunha
Verve Cearense, de Renato Sóldon, Rio de Janeiro, 1969
 

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Crônicas

Educados
para Ler
ui uma adolescente rebelde, so-
fria com a falta de liberdade que
a ditadura impunha a minha
vida e a todo o país. Participei da
luta dos estudantes em Brasília, escolas públicas, na cidade onde residem os meus netos, Santa
recordo os comícios relâmpagos, as palavras de ordem, as reu- Mônica, encostada a Los Angeles.
niões secretas, os olhos que ardiam e derramavam lágrimas ao E um dos aspectos que mais me encantam na educação
sentirem gases, as noites sem lua passadas em alguma peque- das crianças é o valor dado à leitura. Em todas as salas de aula
na sala a rodarmos num mimeógrafo as nossas ideias escritas há uma estante de livros, e quando as crianças chegam, antes
com entusiasmo e fervor. Lembro de juntar-me a colegas de do início das atividades, elas sentam num tapete com almofa-
escola diante de alguma instituição para gritarmos que fos- das, pegam algum livro na estante e o leem, ou, quando ainda
sem embora os “gringos”, considerados nossos inimigos. Por não sabem ler, passam as suas páginas, olhando as imagens e
uma ironia da vida, talvez uma lição, meus netos nasceram as letras. A professora senta com os alunos, lê o texto, aponta
nos Estados Unidos. as figuras, comenta, e participam todos de alguma forma de
Dessa forma, passei a viajar todos os anos a aquele país, leitura. Dessa maneira, as crianças aprendem desde pequenas
e passei a amar a cidade dos meus netos. Eles nasceram em o que é um livro, sabem reconhecê-lo, sabem o que existe den-
Los Angeles, na Califórnia, um dos estados americanos que tro dele, tomam intimidade com ele, adquirem o hábito e ex-
mais se parecem com o Brasil, talvez pela forte influência perimentam a sua convivência prazerosa. Por diversas vezes
latina dos mexicanos que ali residem, numa terra que já foi vi um de meus netos tomar distraidamente um de meus livros
mexicana, talvez pelo cosmopolitismo que se expressa numa e passar as páginas, mesmo sem compreender as palavras em
convivência amigável entre nacionalidades e línguas. Mesmo outra língua ali contidas.
com as experiências de minha adolescência, pude reconhecer Nas escolas há inúmeras atividades relacionadas aos li-
aspectos formidáveis nessa sociedade que se guia pelo direito vros, como feiras, quando livrarias se instalam por alguns dias
à liberdade. Um desses aspectos é a educação oferecida pelas dentro da sala, e os pais são sempre chamados a participar, a

6
Crônica
comprar, a doar exemplares, o que es- de meus netos e comentei como era di-

esse grande esforço que


a educação de meus netos
fez em favor de criar
neles o gosto e o amor
pelo livro, pela leitura
tende a eles o interesse e a convivência ferente aquele livro, com quase apenas
com os livros. Também são chamados a ilustrações, e eles se surpreenderam de
ler para os filhos pequenos, e a preen- eu achar que era um livro. “Isto é um gibi,
cher entrevistas sobre a leitura realiza- vovó”, disseram. O gibi deles tem o forma-
da pelas crianças, anotando suas obser- to de livro, com lombada, capa dura e vo-
vações, e isso os leva a também lerem lume de páginas. No Brasil, ao contrário,
os livros indicados a seus filhos. Claro, procuramos dar outros formatos ao que
em todas as escolas há uma biblioteca deveria ser livro, como os livros curricu-
e as crianças são levadas a frequentá-la lares, que são transformados em aposti-
para emprestar livros ou para o silen- las. Nas universidades a leitura também
cioso ambiente de leitura. é intensa, lembro-me de uma estudante
Durante as férias as crianças de literatura de língua portuguesa em
devem ler. Lembro que meus netos, bem Stanford, onde fui visitante, que tinha
pequenos, traziam livros de quatrocen- apenas dois ou três meses para ler e es-
tas, seiscentas páginas para serem lidas crever uma monografia sobre o Grande
nos dias de férias, e precisávamos pla- sertão: veredas, de nosso Guimarães
nejar o tempo e negociar, entre piscina, Rosa. Ela já havia percorrido as páginas
praia, jogos e leitura. Além dos livros de maravilhosas de alguns dos nossos clás-
leitura obrigatória, temas de perguntas sicos literários, como Memórias do cárce-
posteriores, meus netos traziam um re, de Graciliano Ramos, e Os sertões, de
livro para a leitura de prazer, mas que Euclides da Cunha.
também eram depois comentados em Seriam inúmeros os relatos que
sala, ou em formulários. Aos poucos os eu poderia fazer sobre esse grande es- Não posso, infelizmente, dizer
alunos iam sendo ensinados a escrever forço que a educação de meus netos fez que meus netos se tornaram leitores
pequenos ensaios sobre os livros lidos, em favor de criar neles o gosto e o amor ávidos, nem que são apaixonados por
textos que eles chamam de projetos. pelo livro, pela leitura, pela literatura, livros como a vovó que, por amor aos li-
Observei que naquele país há um pela ficção. Embora seja um estado que vros, tornou-se escritora. Mas vejo que
imenso valor dado aos “tijolões”, como se fundamenta na força da imagem, eles, quando precisam ler algum texto,
aqui chamamos os livros com mais de com a presença profunda do cinema compreendem perfeitamente os sig-
quatrocentas páginas. Imagino que isso em todos os aspectos da conformação nificados, e o leem sem hesitação, sem
tenha uma origem religiosa, os protes- social, é a terra do cinema, eles amam esforço. Adquiriram uma escrita muito
tantes cultivam o amor pela Bíblia, e a cinema, respiram cinema, vivem o ci- bem construída, são capazes de escre-
Bíblia é o modelo de livro para eles. Esse nema, o estado tem um índice de leitu- ver textos primorosos. E aprenderam
amor pelo livro os leva a darem forma ra bastante elevado, sem comparação a pensar, organizando as ideias, conec-
de livro a todas as publicações em que com os nossos discretos números de tando-as, expressando-se com clareza.
isso seja possível. Certa vez vi um livro livros lidos por brasileiros. São os efeitos da leitura.
Ana Miranda

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Chapuletadas

Chapuletadas

Os símbolos da
resistência poética
de Dércio Braúna
poeta Dércio Braúna es- A pedra, cuja simbologia fixa um signo permanente na po-
treou a sua jornada literária esia de Braúna, enleva a labuta do escritor que constrói sua obra
em 2005, com o premiado martelando duramente o material bruto da linguagem, até trans-
O pensador do jardim dos formá-lo em beleza. A pedra novamente aparece em Selvagem
ossos. Nele a sua veia de his- língua do coração das coisas (2005), mas em outra esfera, a dos
toriador deixa transbordar uma linguagem plena de materia- encarcerados que escrevem com pedras nas paredes do cativeiro,
lidade social, em que os sujeitos principais são o “trabalhador”, aludindo ao aprisionamento da alma e do próprio corpo que se
o “inventor” e o “operário” como agentes da transformação do vê oprimido pelas instâncias do poder, resistindo na busca por
“caos” e da miséria social. O autor transpassa duas vozes prin- liberdade através da força da expressão artística e política.
cipais: uma intimista, voltada para a subjetividade e o aspecto O peso dos “destroços” do rumo desastroso a que a humani-
ontológico; e outra engajada, externalizando tanto o pesar de dade chegou, é confessado em Metal sem húmus (7Letras, 2008).
uma perspectiva distópica quanto um convite à mudança so- Num relato sobre o “tumulto da existência pequena/ no meio do
cial. Assim, mesmo que ao primeiro lançar de olhos seja ten- mundo imenso”, a solidão cósmica está por todos os lados e se
tador cair na angústia e na disforia, a realidade é que nesse mostra com mais notoriedade numa sequência de poemas me-
jardim de “cinzas”, a esperança é tão perene quanto a relva que tafísicos, que diante da desolação não se resignam e convocam à
ressurge em “novas e titânicas flores”. resistência: “Cantem./ Sob o sol férrico do mundo/ cantem!”.

8
A poesia de Braúna envolve-se Assim, em seu quinto livro de poemas,
com a busca constante por alteridade, lançado em 2017, Como cavalos fatiga-
marcada pelo verbo “milagrar”, referin- dos abrindo um mar, Braúna demonstra
do-se não propriamente a uma ligação que a língua, apesar de exaurida pelo
mística, mas ao movimento solidário da esgarçamento operado pela cultura, é
humanidade que realiza o que o deses- forte e ainda muito resiste.
pero nomina impossível. Em seus ver- Seus poemas percorrem um traje-
sos, a integração também compreende to que parte da simbologia inorgânica da
a união entre os amantes, um porto de pedra ao organismo vivo e impactante
salvação “contra o aniquilamento da do cavalo bravio; vem do puro concreto
beleza”, presente em “A tarde” (Selvagem e vai para a abstração da alta erudição
língua do coração das coisas) e “Sobre a de seus dois últimos títulos. Uma poesia
tarde, a erva” (O pensador do jardim dos existencialista, forte e combativa, erudi-
ossos). O momento crepuscular é evo- ta em suas trocas com grandes pensado-
cado para os amantes como uma fron- res, sem derrocar em pedantismos que
teira no tempo, uma ponte entre o dia e esvaziam o lirismo. A congregação de
a noite, um atravessamento que aponta pensadores e símbolos libertários pro-
para a transcendência do sofrimento movida por Dércio Braúna revigora a
pela experiência erótica. grande voz do mundo, e sua resistência
Já Aridez lavrada pela carne disto em prol de uma vida mais poética.
(Confraria dos Ventos, 2015) é revesti-
do pelo diálogo com inúmeros autores, Lia Leite
indicando o sujeito referenciado nas Editora da revista Entrelaces (Revista
vozes dos intelectuais que conversam de Literatura da UFC) e editora-che-
com Braúna numa série homônima de fe da revista Propulsão. Mestranda
poemas e solilóquios, estabelecendo em Literatura Comparada pela
um grande discurso poético, dissolven- Universidade Federal do Ceará (UFC).
do o ícone do autor para reverenciar lia.leite@outlook.com.
a palavra, e desfazer a ideia de que
“não há força nos nomes que susten-
tam a ordem das coisas”. Elucidando Para ler o autor:
as ordens, as instâncias do poder e Metal sem húmus (Editora
as suas reverberações na poesia. Em 7Letras, 2008).
Selvagem..., Braúna já tematizava a Aridez lavrada pela carne disto
força dos nomes, metaforizando a pa- (Confraria dos Ventos, 2015).
lavra como cavalos selvagens, tal a Como Cavalos Fatigados Abrindo
impossibilidade de apreender esse uni- o Mar (Moinhos, 2017).
verso indômito através da linguagem.

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Gente Ilustrada

Klévisson Viana

Quixeramobim – 1972
Ceará | Brasil

Klévisson Viana é cordelis-


ta, cartunista, xilogravador,
produtor cultural e editor
da Tupynanquim Editora.
Como autor, publicou 30 li-
vros e quase 200 folhetos de
Literatura de Cordel, sendo
ganhador do Prêmio Jabuti.
Além dos quadrinhos, seus tra-
balhos grassam pela televisão
e em adaptações para o teatro.
Destaca-se o folheto A Quenga
e o Delegado, transformado em
episódio da série Brava Gente
da Rede Globo. Tem trabalhos
publicados em diversas edito-
ras nacionais e internacionais
e ganhou 3 Troféus HQMIX.
A ilustração aqui apresentada
pertence à obra As Aventuras
de Dom Quixote: em versos de
cordel (2005). Uma adaptação
quadrinizada e cordelizada da
obra original de Cervantes.

10
Cristaleira

Francisco Carvalho:
o poeta das
coisas como as
coisas não são
poeta Francisco Carvalho, nascido em Russas (CE),
no ano de 1927, partiu para outras paragens no ano
de 2013. Durante seus oitenta e seis anos de vida
escreveu mais de trinta livros de poesia e alguns
outros de exercícios literários. Passados quase seis
anos da sua morte, sua obra poética continua despertando interesse tanto do leitor
comum quanto dos leitores especializados. Desse segundo grupo, cito especificamen-
te os trabalhos Três dimensões da poética de Francisco Carvalho (1996), de Ana Vládia
Mourão Aires, e Francisco Carvalho: uma poesia de Tanatos e Eros (2000), de Maílma
de Sousa. Mas ainda é muito pouco, quando levamos em consideração a amplitude
poética da obra do autor, a qual se constitui como um verdadeiro argos de cem olhos
no universo da literatura produzida em língua portuguesa.
A obra de Francisco Carvalho alcança a mesma qualidade poética daquela produ-
zida por gigantes como T.S. Eliot, Seamus Heaney e Konstantinos Kavafis, por exemplo.
Contudo, como se pode constatar, é mais fácil encontrar um livro do poeta grego Kavafis
do que um Carvalho nas livrarias do Brasil, especificamente do Ceará. Isso não impede, no
entanto, que a poesia de Francisco Carvalho se mantenha como uma das mais perfeitas
representações da poesia em língua portuguesa, impactando aqueles que deitam olhos
sobre seus poemas. Por outro lado, a ausência dos seus livros nas livrarias brasileiras im-
possibilita que mais leitores e pesquisadores possam se debruçar sobre tão rica obra.

11
Cristaleira

O primeiro livro de Francisco Carvalho, Cristal da memória, foi publi-


Poema para escrever
cado no ano de 1995. Desde lá, o poeta passou a publicar praticamente um
livro a cada ano. Embora alguns desses trabalhos ainda possam ser encon-
no asfalto
trados, outros já se tornaram raros, como é o caso de Canção atrás da esfinge
Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração 
(1956), Do girassol e da nuvem (1960), Rosa geométrica (1990), Flauta de barro
e o quanto sobra do naufrágio 
(1992) e O tecedor e sua trama (1992).
das nossas utopias.
As temáticas observáveis na poesia de Francisco Carvalho abarcam
aspectos populares e eruditos, resultando num fazer poético de altíssimo
Agora eu sei o que significa a fala dos mortos 
nível literário. Os próprios títulos dos livros do poeta já podem ser consi-
e esta parábola soterrada 
derados verdadeiros poemas. Como: O silêncio é uma figura geométrica (s/d),
que jorra das veias da pedra.
Barca dos sentidos (1989), Girassóis de barro (1997), Romance da nuvem pás-
saro (1998) e A concha e o rumor (2000).
Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras 
Como se iniciar na obra de Francisco Carvalho? Uma boa forma é
e este pacto de sangue 
se deixar abduzir pela leitura de Memórias do espantalho: poemas esco-
com as metáforas do tempo.
lhidos (2004), uma seleção feita pelo próprio autor, englobando poemas
do livro Os mortos azuis, de 1971, até Centauros urbanos, de 2003. Ao final
Agora eu sei o que se passa no coração de treva 
da leitura, o leitor compreenderá, então, a razão de se afirmar que a obra
e do homem que morre mendigando 
de Francisco Carvalho se erige como uma obra poética de qualidade uni-
a própria liberdade.
versal, prenhe de palavras, que pulsam no peito e escorrem pelas veias.

Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido 


Carlos Carvalho
com a nossa pobreza 
Professor de literaturas de língua inglesa na Faculdade de
e com a solidão de ninguém.
Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (Feclesc) da
Universidade Estadual do Ceará (Uece). Autor de Memória
Agora eu sei que é preciso agarrar a vida 
de peixe (crônicas).
como se fosse a última dádiva 
carlos.oak@hotmail.com.br
colocada em nossas mãos.

Para conhecer Francisco Carvalho


Francisco Carvalho
Nascido em Russas – CE (11.06.1927) e falecido em Fortaleza
– CE (04.03.2013), Carvalho é um dos maiores nomes da po-
esia do estado, com profícua produção e merecedor de prê-
mios, como o Nestlé de Literatura, em 1982, com Quadrante
solar, e o da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
em 1997, com Girassóis de barro. Autor de mais de 30 livros,
nunca trabalhou com editoras comerciais, sendo a sua vasta
e original obra desconhecida ainda por muitos. Sugestão de
Leitura: Memórias do espantalho: poemas escolhidos, 2004,
Imprensa Universitária, Fortaleza – CE.

12
Cristaleira
Discurso da ira  Gravura
Os pobres estão se evaporando 
Nordestina
à vista de todos.  A Eduardo Campos
O tempo vai passando 
os pobres vão se decompondo  Este sol é um deus feroz  Os bichos magros cochilam
seus rostos são apagados pelo vento  que dardeja e que incendeia  à sombra dos juazeiros
e da memória dos computadores  os esqueletos dos bois. à espera de alguma brisa.
até que ninguém se lembre 
mais de suas caveiras sorridentes  As redondas oiticicas O canto da juriti
afugentando os parasitas dos burocratas  são carpideiras de luto trespassa as almas dos homens
nas repartições públicas.  chorando a morte dos brutos. com seu punhal de vizir.

Os pobres estão sumindo  Em voos rasantes, ao léu, O balido das ovelhas 


aos olhos de todos.  os urubus mais parecem  assusta as aves e os ninhos 
O tempo os vai tornando  anjos expulsos do céu. que elas fizeram nas telhas.
cada vez mais parecidos com a morte. 
Enquanto isso, os poderosos  Gaviões roçam de esguelha  Entre esquivâncias e astúcias 
sacodem suas nádegas fotogênicas as asas martirizadas  jumenta se entrega ao macho 
nas costelas das ovelhas. que entorna o vinho das núpcias.
fazem belos discursos para a distinta plateia 
e afagam avidamente as orquídeas.  Cigarra, ali, devaneia.  Ao mugido de uma rês 
Morre de tanto cantar  percorre toda a paisagem 
Francisco Carvalho em sua concha de areia. um clamor de viuvez.

Uma rajada de vento Nas varandas das fazendas 


sacode os gonzos das portas as redes brancas desenham 
como se fosse um lamento. corpos que são oferendas.

Os leitos secos dos rios  Ninguém que ouse ou que vá 


são tumbas de faraós  toldar os sonhos de linho 
ou de monarcas fenícios. das moças no copiá.

Quando o sol chega no vértice  Francisco Carvalho


os mandacarus acendem 
os seus fanais de quermesse.

13
Radiadora

Radiadora

Cama de Gato
O tio tinha dedos ágeis e uma cabeça engenhosa. Consertava importa o calor? Era branca com florezinhas cor de rosa. Mas
tudo o que via pela frente: a torneira do banheiro, o ventila- ficou apertada, marcando o que seriam os seios. Ele olhou de-
dor, a fechadura. Uma vez ajudou a menina a fazer uma tige- morado, procurando o efeito. Que importa?
linha de barro. Seria para o gato beber leite, se gato houvesse. E os doces, a melhor surpresa, espalhados displicente-
Então nasceu a promessa. mente sobre a cama. Só pra você, ele disse, como se cochilasse,
E tinha propósito. Trouxe um gatinho tão bonitinho... já colocando um beijo em sua boca. Brigadeiro, pirulito, chi-
Tão inocente... Gostoso o contato com a pele morna, macia. Tão clete, maria maluca, suspiros. A porta gemeu, fechou-se. Os
frágil... Cautela! lábios rosados de k-suco de groselha, azedo de doer. A bala de
Depois do gato, a cama de gato. Trouxe o cordão, pren- gengibre entrou queimando, a baba viscosa acridoce, a nódoa
deu as duas pontas com um nó cego e começou a urdir a rede na saia, indelével.
entrelaçando o fio entre os dedos. Ela não levava jeito para a Lá fora, o barulho da televisão abafava tudo. O gato dor-
brincadeira, mas ele tinha dedos hábeis. E muita paciência. mia no sofá. No chão, a tigelinha, quebrada, o leite derramado.
Nem era Natal nem nada, e ele chegou com a televisão. Onde estava a mãe que não via aquilo? Ora, havia o bebê
De segunda mão, catorze polegadas. Arrumou a mesinha, re- e seus cueiros, os menores e seus narizes emporcalhados, o
gulou a antena e os canais. Desenho animado, novela, prega- tanque e sua montanha de roupas sujas, o fogão e suas panelas
ção, programa de auditório no domingo. Uma diversão para os cozinhando confiança em banho-maria que fumegavam, dei-
sobrinhos, um descanso para a cunhada. Um atenuante. xando tudo coberto de fumaça.
O tio era mesmo generoso. Trouxe uma prenda conse-
guida em meio às doações vindas da América para os irmãos Zélia Sales
da Assembleia de Deus. Era uma camisolinha de flanela. Que zelia.rib.sales@gmail.com

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Radiadora
Vingança
As  duas semanas de Myckey Ronney abrindo picada para hora da partida para a segunda viagem ao Piauí. Momento em
levantamento topográfico sob o escaldante sol do Piauí não que o motorista da empresa o aguardava impacientemente
podia mesmo ter deixado seu único par de meias em outras na calçada e Karynny Keytty se mantinha em pé de guerra.
condições. Com o suor descido corpo abaixo e nada de água e E assim, enquanto jogava de modo aleatório a pouca baga-
sabão durante toda a jornada, o chulé era de arrancar vômito gem num saco, Myckey Ronney ouviu a cantilena da mulher.
em urubu. Já no meio daquela semana, ela seria submetida à cesaria-
Até que Karynny Keytty se esforçou, mas, depois de gas- na para trazer a filha à luz do mundo. Precisava de dinheiro
tar quatro baldes de água, uma barra de saponáceo “Pavão” e para, entre outros gastos, comprar as fraldas. Afinal, não iam
mantê-las um quarto de hora mergulhadas em água ferven- bem com o “k”, os “ipsilones” e a consoante dobrada do belo
te com extrato de limão, bicarbonato de sódio e detergente, nome Shakyra Ayshylla cueiros engendrados com saco de fa-
ela concluiu: “Como dizia meu pai, quando era motorista do rinha ou de açúcar... 
Coronel Zenon Pedreira, catinga aqui é igual a grilo em rural Intuitivamente o marido ainda coçou os bolsos e logo se
velha: não tem quem acabe nem deixe pouco!”. certificou de que tinha gasto todo o saldo da quinzena na farra
Com esse pensamento e os músculos fatigados de tanto daquele fim de semana. Então, fez cara de pasmo e depois des-
puxar água do cacimbão para aquele e outros afazeres da casa conversou: “Onde estava o seu par de meias?”.
e as munhecas cansadas do esfrega-esfrega, a mulher resolveu Prontamente informado de que as famigeradas peças já
descartar o par de meias na lixeira, donde esticou a visão até embrulhavam o estômago de catadores do lixão da cidade, ele
o bar da esquina mais próxima e avistou o marido. Rodeado não pensou duas vezes: sacou do cós da bermuda a navalha
de parceiros, ele era pura faceirice. Bebia e contava vantagens caprichosamente afiada e, bufando de raiva, correu até a mu-
sobre o seu trabalho interestadual. lher, arrancou-lhe das mãos o coelhinho de pelúcia (presente
Indignada com a situação, ali mesmo da calçada, ela sol- dos futuros compadres, Mayara Kelly e Kennedy Krystyno)
tou o verbo em alto e bom som para a vizinhança ouvir e co- e pôs fim à discussão. Primeiro transformou em caneleiras as
mentar: “Venha já fazer o almoço, seu vagabundo, que eu não orelhas do falso leporídeo. E desse modo, certo de que, pelo
aguento mais ficar em pé! Vou me deitar com as pernas pra menos na etapa seguinte do desbravamento da mata piauien-
cima pra ver se Shakyra Ayshylla sossega. A peste da menina se, suas tíbias e adjacências estariam protegidas contra carra-
não para de chutar meu bucho”. pichos, espinhos e insetos, ele resolveu outro problemas que
Para mostrar aos companheiros de copo que não lhe caía tanto afligia a mulher. Pois, com a perícia de um cirurgião,
bem ser mandado pela esposa, o desafiado cônjuge não deixou abriu o abdome do desorelhado animal, estendeu-o em forma-
por menos. Estendeu sua pândega por outros bairros da cida- to de fralda, lançou-o no colo da esposa e partiu como se nada
de, só retornando para casa na segunda-feira seguinte, ocasião tivesse acontecido.
em que réstias do sol nascente penetravam pelas frestas da Bernivaldo Carneiro
janela, aquecendo a rede de sua grávida e lembrando-lhes a bernivaldo@gmail.com

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Radiadora

Inhamuns: prelúdio
Sugou-me a alma pelo meio das pernas. Era uma festa! O cigar- sobre a toalha amassada, provocando hematomas que só se-
ro já queimando a boca e, na alumiada escuridão, valsavam riam sentidos depois. Chutei o para-choque do carro à minha
sombra, vento e fumaça; e a chama engolia a erva e o papel, frente e atrás dele e falei, muito alto e muito longe, sobre o des-
movendo-se rapidamente em direção aos meus lábios. fecho que se aproximava.
Ele dizia que me amava. Eu só escutava. Que me amava, que me amava, que me amava, ele dizia,
Da metade para lá, o céu se estirava feito uma caverna enquanto eu gozava. Eu só escutava.
comprida onde se escondiam estrelas tristes sobre aquele campo Então eu observei as estrelas uma última vez, na tenta-
sem nuvens, madrugada plena e sertaneja à beira da CE-020. tiva de tornar inesquecível aquele encontro fora do tempo e
E a língua vasculhava as reentrâncias. Re. En. Trân. Cias. da dimensão em que vivíamos e na qual eu tinha me tornado
Que palavra bonita, cheia de lugares para umedecer, pensei, jornalista e ele motorista.
junto com os anjos caídos. Agarrei com uma das mãos os Faltava pouco para que chegássemos em casa e eu revi-
cabelos dele, recém-cortados, e levei o cigarro a terra com a sitasse os fantasmas da minha – da nossa – infância e que eu
outra, gemendo alto com a morte que se aproximava. Naquela tinha enterrado ao pé do poço profundo, onde minha vó dizia
noite, nenhum mal nos encontrou. E eu compreendi, sem que dava sorte se eu jogasse uma pedrinha polida e desejasse.
medo, nem vergonha, que aquele era um homem a ser amado. Nós dois desejamos. Eu fui embora, consegui diploma, salário
Depois de dar ouvido a mais um dos meus pedidos e des- e passaporte carimbado. E ele? Ele dizia que me amava. Mas
bravar uma estrada desconhecida de poeira estelar, uniduni- eu só escutava.
tê, coroou-me também rainha dos Inhamuns, com frio, terra Partimos em silêncio e com o peito esmagado pelo de-
e saliva. Foi a primeira vez que fui amada no sertão de onde safortunado reencontro. Crianças pequenas esperavam em
fugi na adolescência. E foi a primeira vez que fui tomada por casa. Amores não morriam. Desejos se concretizavam, mas
um homem que mal sabia ler, mas que dizia, num português faltava. Onde estavam os deuses que tinham escolhido quais
nítido, forte e silabado, eu amo você, ele dizia. Eu só escutava. sonhos realizar?
Eu já não sentia mais frio, porque não havia temperatura Kah Dantas
fora de mim. Tremiam as pernas e os pés; o resto se contorcia akdantas2703@gmail.com

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Radiadora
Dois iguaizinhos
Não passo um dia sobre a terra sem me lembrar de Tobias. Ele cidade de merda. Não teria esperado que o destino o ferrasse.
teria andado comigo, nadado, saltado da ponte e soletrado a Teria concluído o curso de Direito, para alegria do papai, e jamais
mesma cartilha burra da professora Dolores. Ele teria cresci- teria abandonado a Beatriz Loreto, filha do banqueiro carcama-
do comigo e principalmente estudado no patronato, e sería- no, para desespero da mamãe. E por falar na mamãe, descobri
mos dois iguaizinhos sob o paletó de formatura das primeiras que depois do meu nascimento e da morte do meu irmão, ela
letras. A dulcíssima irmã Salete nos exibiria como atração à ficou debilitada e selada para a maternidade. Por isso investiu
parte. Em vez de uma, seriam duas gravatas borboletas e dois tanto na minha formação, esquecendo-se de si mesma.
miquinhos de primeira fila com o missal na ponta da língua. Será que o outro Tobias teria permitido a ruína dos ne-
Aos domingos, na capela, encarnaríamos dois anjinhos a au- gócios do papai? O velho terminou seus dias fitando os bicos
xiliar o padre Cosmo na celebração da novena. Tocaríamos as sine- dos sapatos, sem dizer palavra. Mamãe comentava, em dias de
tas e prepararíamos as hóstias. Ele jamais descobriria que os bolsos visita ao asilo, ou me jogava na cara, não sei ao certo.
de nossos casacos estariam cheios delas para dividirmos, lá fora. Não passo um dia sem me lembrar de Tobias, e dos ir-
Eu não seria um solitário na arena da vida. Brincaríamos mãos Tedesco, e do sorriso da Mariana, e do olhar do nosso pai.
e brigaríamos em par. Seríamos dois contra os irmãos Tedesco, Será que o outro Tobias teria experimentado cocaína, vendido
que me partiram a cara e me legaram a chance de descobrir na faculdade, visitado o inferno e ressuscitado para a monoto-
que a fúria não teme a ruína. nia da existência? Duvido. Certamente ele não amargaria esta
Eu não teria me ferrado sozinho quando fui visto que- solidão perpétua, fumando e cuspindo e bocejando tédio. Ele
brando as vidraças do coronel Gondim ou escalando o campa- não teria nem motivo para atormentar a mente com pensa-
nário da matriz para bater o grande sino à meia-noite. mentos vadios assim, de quem joga paciência com as paredes e
Todos os dias me lembro de Tobias. Qual de nós teria rabisca tolices num pedaço de papel.
conquistado primeiro o coração da Mariana, filha da vizinha? O outro Tobias, a esta hora de uma sexta-feira, estaria
Poderíamos ter brigado por ela, disputado seu amor numa sentado ainda na cadeira giratória da diretoria, delegando as
memorável partida de porrinha ou no porrete. O que não evi- últimas ordens da semana, ou na poltrona do avião, vendo
taria que ela se precipitasse no vazio, como fez. o mundo lá de cima e pensando em se apoderar de uma fatia
Meu nascimento se seguiu à morte de Tobias. O que serviu dele. Não, o outro Tobias seria mais humano. E mais família.
de consolo para o papai, que queria pelo menos um filho varão. Provavelmente estivesse voltando para casa, para a companhia
E eu ganhei o nome do morto. O que mais terei roubado dele, da esposa e dos filhos. Atiraria a valise sobre a cama, abraçaria a
além do nome? O peito materno, o berço, o lugar à mesa, a temí- companheira e, sem falar, diria o quanto a ama. Desta vez, pos-
vel cadeira do dentista? Teria a Danusa se casado comigo, se ele sivelmente dissesse isso após o jantar em Lisboa ou Paris.
existisse? E teriam acaso se desquitado? Ai, perguntas. Hoje sou Todos os dias me lembro de Tobias. Talvez ele não entras-
duplo, gêmeo com um morto que vive em mim. O outro Tobias se em negócios escusos. Se por acaso o fizesse, e tudo indica
com certeza teria sido um pai mais dedicado, menos egoísta, mais que seria por minha causa, teria procurado soluções mais pa-
preocupado com o lar do que com as coisas fugidias. Em vez de catas, recuaria um passo, não sairia logo puxando o gatilho
manifestos e poemas inúteis, escreveria petições e memoran- uma, duas, três vezes contra os irmãos Tedesco.
dos e saberia dar nó em gravata. Acho até que ele não dançaria
tão bem quanto eu, mas certamente seria um gênio da bola e do Carlos Vazconcelos
xadrez. Algo me diz que ele teria ido embora mais cedo daquela carlosvazconcelos@hotmail.com

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Radiadora

Aerocorpo Meruanhos Medo

O corpo que ao espaço se atira para Cláudio de Oliveira Não o assustava o grito absurdo
É a silhueta em voo do tempo, Do vento em preparo de vendavais
A matéria tornada vento I Não o assustava o pio desesperado
Que em seu bailado se eterniza. caminhando na de rasgas mortalhas
É o segundo visto em suspenso meruoca: meu silêncio Em noites escuras sem luar
No tenso gesto de criar, conversa com teu Não o assustava o silêncio vazio
Do fecundo nada que há, silêncio. das catacumbas
O ávido haver do movimento Após o enterro derradeiro
II Não o assustava o farfalhar das folhas
Ricardo Kelmer meruoca em silêncio. Nas madrugadas frias de inverno
ricardokelmer@gmail.com o espiríto de bashô Não o assustava o grito de buzinas
repousa nos galhos Estremecendo avenidas corrompidas
dessas árvores verdes – ao meio-dia
Só o assustava o bramido de homens
III Engomados de poder.
céu em nuvens:
a sombra de deus caminha Rosa Morena
pelo ceará – rosa_mariasousa@hotmail.com

Léo Prudêncio
prudencioleo@hotmail.com

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Radiadora
Metafísica Enquanto Anúncio
a Morte se Atrasa Necessitamos de defensores da causa da nossa existência
Gente interessada no que façamos, apenas pela autoria

Os poetas estão dóceis. Procuramos correligionários de nossa ínfima missão

Os mortos, Cúmplices, aliados, comparsas

jazem, em placas, pelas esquinas, Urgem seres que enterneçam ao som do nosso nome

dando nome aos chãos Desinteresses puros e gratuitos

do passar de cada dia; Caros de tão baratos

os vivos, Buscamos jardineiros da alma

amontoados entre a poeira e as traças, Semeadores do mérito que não percebemos em nós

mal respiram – ainda. Acolhemos astigmatas amorosos


Que nos vejam necessariamente mais belos do que somos

Que destino: Precisamos de emissários de nossos melhores prognósticos irreais

travar-se com a língua, Capazes de nos lembrar de nosso destino

(o que é dizer com um corpo, Para que não desmereçamos a fé

latente coisa) Dispensamos os remetentes de pêsames

munir-se até aos dentes com suas farpas; Torcedores da desgraça embrulhados em compaixão

lacerar a couraça em seus gumes, Prescindimos de carpideiras, de reformadores morais

espatifar a lira, Também rejeitamos secadores de pranto

forjar outra matéria (ainda língua) depois de tudo, Amigos não enxugam lágrimas; arrancam sorrisos

e findar Que os detentores da candura se nos apresentem

dependurado ao alto E nos carreguem para onde a ternura do amor do amigo aponta

no triste afazer de nomear o onde


os homens Lia Sanders

não se vêem, não se olham, lia_sanders@hotmail.com


não se tocam
senão por trinta dinheiros!

Dércio Braúna
derciobrauna@gmail.com

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Radiadora

Curatela
E aí, meu amor, vamos mexer com coisas sagradas?
O que há de mais puro dentro de nós.

Por estes dias não posso viajar para Barcelona,


Tenho que cuidar das fraldas de papai.
E mamãe anda meio perdida com suas plantas e gatos. canto drummondiano
Quanto àquele projeto de trocar de apartamento,
Vamos deixar para os outros; quixeramobim é minha Itabira
A grana do fundo de garantia já está acabando seus diabos também são melancólicos
E não tenho mais nem para o cotidiano. e os homens vão devagar
pois nada sabem do trem de ferro
Ei, meu amor, sabe aquele projeto de deitar cedo, que da estação já não parte.
Dormir até as nove e ir para academia antes do almoço? é preciso crer em deus,
Vamos deixar descansar por uns tempos, mas sou torto, caduco, poeta
Que a barra não tem me permitido dormir todo dia. não entro na matriz,
É que essas enfermeiras cobram horrores. fantasmas não existem lá?
Então, amorzinho, me perdoe pelos cochilos o sino não bate... o sino é um fantasma?
No percurso do trabalho para o posto de saúde. escuto, no entanto, distante o apito de alguma fábrica.
a vida é besta!
Pois é, querida, peço mil desculpas, pois não é desta vez vez em quando uma interditada me sussurra:
Que experimentarei bacalhau com vinho do Porto. “não mandei matar ninguém!”
Preciso recolher para a sopa as sobras do almoço. mas quem ainda hoje a acusa de crime?
Fique você com a fruta e dê as cascas aos pobres, quixeramobim é um retrato na parede
Que eu fico por aqui mesmo roendo o caroço. lá onde eu existo.

Frederico Régis Bruno Paulino


frederico@bnb.gov.br bruno_enxadrista@hotmail.com

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amor, iv Limítrofe Crase

Radiadora
pra bruna e yasmin Quem sabe Ameaçam-me
O arriscar palavras atear fogo
um dia o amor bate em sua porta Todas à beira às vestes e às paixões
um dia o amor te beija a cara De uma linha torta
um dia o amor bate com a porta na sua cara Bamba, talvez morta se não calo o canto
se não sigo as setas
uma música toca no rádio Quem sabe se não cesso os beijos
o galo que cacareja galinha choca Escorregar filetes
é o homem que grita menina histérica Poças de tinta isso quando mais ardem
Cores chamuscadas fora e dentro de mim
lembro os versos dos anjos Nenhuma perspectiva as vestes e as paixões.
o beijo amigo é a véspera do escarro
e só um homem louco perguntou Quem sabe Jogo meu corpo
Nenhum sentido faça em praça pública,
pra onde vai a porra do amor E todo significado tenha jogo minha alma
quando o amor acaba Sem promessas em graça pública.
a saudade de nós sufoca Totalmente adormeça...
Por isso,
lavo a boceta em busca do amor Ângela Escudeiro dobro o canto,
e ele está de abraços com o talarico escudab@gmail.com e bêbado de beijos,
que me canta apalpa e geme não me dobro às setas.

eu li os diários xexelentos da maria Nirton Venâncio


eu escrevi os seus cadernos-goibada nirtonvenancio@gmail.com
o seu medo é um lugar seguro

— a mais alta literatura prescinde a vida real


— é uma transcendência é uma metafísica
o poema é uma alegria!

com as mãos tão bonitinhas


as mãos que foram minhas
um dia o amor corta a sua aorta

Nina Rizzi
ninarizzi@gmail.com

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Mala de Romances

Mala de Romances

Aprendeu andar de moto,


mas não sabia parar
Arievaldo Vianna | Jota Batista

Frei Policarpo Cornélius De dia era na igreja Acompanhava essa VESPA


Veio lá da Alemanha E de noite na cerveja Um manual de instrução
Trouxe uma motocicleta Bebendo e dizendo: — Figa! Porém o José Pornô
Que parecia uma aranha Só atrás de rapariga Na sua sofreguidão
Não para pegar piranha Ora mais e ora veja! Saiu varando o sertão
Que ele era Capelão, Cai aqui, cai acolá
Vigário de profissão, Um dia José Pornô Sem saber como parar
Mas o transporte abafou Já de posse do transporte O transporte condutor
Tanto até que despertou Saiu vagando no mundo Coitadinho do Pornô
Inveja no sacristão. Como quem foge da morte Como isso vai acabar?
Porém ao passar num corte
Quando o vigário passava Sem ganhar uma menina Acontece que o Pornô
No seu transporte bonito Lamentou a sua sina Circulava o quarteirão
Muita mulher suspirava Porque ia empurrando A sua mãe, dedicada,
E renegava o “bendito” Disse alguém: — Só vai botando Já botara a refeição
Oh! tentação do maldito Um pouco de gasolina. E a véia no portão
Mulher loura, mulher crespa... Gritava: — Vem cá, Pornô!
Fez empréstimo na BOVESPA Meu amigo, o sacristão, Ele dizia: — Já vou!
O sacristão invejoso Daquilo nada entendia Sem saber pra onde ia
E andava todo garboso Antes, o seu transporte, Diz ela: — O almoço esfria!
Amontado numa VESPA. Era uma jumenta arredia E o transporte não parou.
Para as capoeiras ia
Esse dito sacristão Munido de um cabresto O problema é que Pornô
Era José Bianor E pra não mudar o texto Só aprendeu pilotar
Porém por não respeitar Da bichinha ele era fã Já dava queda de asa
Os princípios do pudor Se a jumenta é nossa irmã Mas não sabia parar,
Só lhe chamavam “Pornô” Acho que isso é incesto. Deu vontade de mijar

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Mala de Romances
Na Vespa mesmo mijou Ora, o peru era o prato E vendo a coisa tão feia
A mãe se preocupou Que José admirava Zé Pornô dizia assim:
E perguntou nessa hora: Mas como ele comeria — Oh! Mamãe, reze por mim
— Valha-me, Nossa Senhora, Se o transporte não parava? Me livre dessa “cadeia”.
Adonde foi que ele entrou? Quanto mais a mãe gritava
Nesta voz ele passou Mais o transporte corria Encontrou com Frei Cornélio
Mesmo em frente do portão De fome José morria Que vinha no seu motor
Rezando pra São Francisco Porém por falta de sorte Esse frade ao encontrá-lo
São Raimundo e São João O diabo do transporte Foi bastante inquisidor:
Sua mãe mostrou-lhe um pão Nem parava, nem caia. — Muito bonito, doutor,
E uma xícara de café Não foi ajudar na missa?
Dizendo: — Vem cá, José, Desde cedo em jejum Um sacristão com preguiça
Vem ao menos merendar José Pornô só lamenta Frade nenhum aguenta
Cadê a moto parar? E disse consigo mesmo: Foi bem atrás de jumenta
O Pornô perdeu a fé... — Que saudade da jumenta, No roçado das maliça!
Santo-acode, ou cão-atenta Neste momento o Pornô
Nisto a fome apertou Tô de barriga a roncar Puto, com fome e com sede,
O Pornô quase se acaba Estou doido pra jantar Pensou de parar a moto
Porém, por sorte passou É grande meu embaraço, Abarcando na parede
Sob um pé de goiaba S. Francisco, que é que eu faço Disse ele: — Eu sou é home,
A fome já estava braba Para esta porra parar? Num vou é morrer de fome
Conseguiu pegar só duas Nesse instante ela parou
Caminhou mais duas ruas Igualmente o Fred Flintstone Sem que ele fizesse nada.
Em busca de outro pé Arrastava os pés no chão Sabem o que foi, negrada?
E a mãe dizia: José Cadê a moto parar? A GASOLINA ACABOU.
A janta vai ser perua! Como para a condução?
Nessa hora, o carrilhão FIM
Já tocava nove e meia

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Tiragostos

Lucy & Sky de J.J. Marreiro

artista
da capa Os FitoManos de Raymundo Netto

Guabiras

Carlos Henrique Santos, o Guabiras,


é cartunista e jornalista do jornal O
POVO (Fortaleza/CE) desde 1998.
Criador de histórias em quadrinhos
e de muitos personagens, já publi-
cou mais de 6 mil tirinhas em jor-
nais, fanzines, livros e internet. Em Os Mundos de Liz de Daniel Brandão
2003, publicou no EXTRA de Nova
York (EUA). Em 2015, junto com a
Equipe de Arte do O POVO, ganhou
o prêmio Esso de Jornalismo (Criação
Gráfica). Em janeiro de 2017, recebeu
o Prêmio Angelo Agostini de “Melhor
Cartunista”. Também em 2017, con-
tribuiu em Marcatti 40, homenagem
da UGRA (SP) para ao maior quadri-
nista brasileiro. Em 2018, foi finalis- Tiras de Lene Chaves
ta do Festival de Humor Gráfico de
Pernambuco (cartum), do Salão de
Humor de Piracicaba (cartum e char-
ge), do Salão de Humor Medplan (car-
tum), do Salão e do Prêmio Vladmir
Herzog de Direitos Humanos (charge).

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