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2 | nº 2
Apoio: Realização:
Março de 2019
Suplemento Gratuito
ISSN 2596-1373
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
04 05 06
presidência
Raymundo Netto
gestão de projetos
ARTIGO Flores de Açucena Crônicas
Emanuela Fernandes
Troféu Hqmix Spes Unica! Educados para Ler análise de projetos
passou dos trinta Quintino Cunha Ana Miranda
José Alberto Lovetro (JAL) MARACAJÁ
Cabaret
Raymundo Netto
Franklin Nascimento
curadoria, pesquisa e edição geral
Emanuela Fernandes
assistência editorial
08 10 11
José Alberto Lovetro (JAL), Ana Miranda,
Lia Leite, Carlos Carvalho, Daniel Brandão,
Raymundo Netto, Lene Chaves, J.J. Marreiro
e Klévisson Viana colaboraram nesta edição
com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da
seção “Radiadora”)
chapuletadas GENTE ILUSTRADA CRISTALEIRA
Guabiras
Os símbolos da resistência Klévisson Viana Francisco Carvalho: ilustrações
poética de Dércio Braúna o poeta das coisas como as
Lia Leite coisas não são Amaurício Cortez
Carlos Carvalho editor de design
Giselle Fernandes
projeto gráfico e editoração eletrônica
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Karlson Gracie
tipografia Maracajá
revistamaracaja@gmail.com
contato
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Do Alpendre
Mas, se vier ao leitor o arrependimento, ponha-o Nesta edição, continuamos a abrir a Cristaleira afetiva, por Carlos
na cesta de suas tolices. A redação de Maracajá Carvalho, trazendo à luz outro poeta: Francisco Carvalho, que, como outros
não é culpada. autores cearenses, mesmo com elevada qualidade literária, pela falta de um
[...] mercado editorial atento, tem a sua obra acolhida apenas em livros publica-
É muita tripa por um vintém. dos em vida. Há quem jure de pés juntos: quem morre por aqui, corre o risco
Outra cousa: devido à grande remessa de Maracajá, de morrer “de com força”. Daí, já prenunciava o Carvalho: “Quando os poetas
feita hoje, para o Sul e para o Norte, talvez as cen- morrem/os seus versos os acompanham.//[...] Quando os poetas morrem/ as
tenas que ficaram para Fortaleza não cheguem suas almas fecham todas as portas/ e as metáforas se calam.”
para ser vendidas na rua. Quem souber ler deve
Também nessa edição, a participação da escritora Ana Miranda e de José
procurar Maracajá nas agências de jornais.
Alberto Lovetro (JAL). O microfone aberto de nossa Radiadora está tinindo e,
Quem não souber ler não gaste o seu cruzado com
aqui, outros mimos aos, esperamos, fiéis leitores.
a revista.
Não nos esqueçam e não se esqueçam de compartilhar o nosso sítio eletrôni-
Maracajá não é para todo mundo, não.
co e lancem a Maracajá (revista e videoentrevista) ao mundo: fdr.org.br/maracaja
(*) Na época o jornal O POVO era composto de
8 páginas. Localizava-se na rua Barão do Rio
Branco, 239. O diretor era Demócrito Rocha e
Raymundo Netto
Paulo Sarasate seu redator-secretário. Curador e Editor
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Artigo
Artigo
Troféu Hqmix
passou dos trinta
izem que quando um even- A importância de haver uma premiação anual no Brasil
to passa dos cinco anos já não é apenas para valorizar o trabalho de milhares de artistas,
está em bom caminho para mas também pela força na linguagem popular. São cerca de
continuar por pelo menos 20 milhões de leitores de quadrinhos ativos no Brasil, conside-
mais uma década. Passamos rando que quase toda a população do país já leu algum gibi na
em 2018 dos 30 anos e chegamos agora aos 31 com o reconhe- infância ou em algum momento na vida.
cimento dos profissionais da área e da mídia, em geral. Não foi Serginho Groisman, nosso padrinho desde o nascimento
uma fácil caminhada por esse tempo todo não fosse o apoio de do evento em seu programa TV MIX 4, na TV Gazeta (SP), nos
instituições como o Sesc, em particular o Sesc Pompeia, que anos de 1980, todos os que participaram até hoje da Comissão
possibilitou a grandiosidade de enaltecer autores, editores e Organizadora e os jurados especializados nos levaram a esses
profissionais desse importante segmento da cultura no Brasil. mais de 30 anos de amor à causa dos quadrinhos. Valeu a pena
Nesses 30 anos, foram 1.271 troféus entregues aos ven- e sempre estaremos tentando aprimorar mais e mais o nosso
cedores por uma votação nacional entre os próprios autores, Troféu HQMIX.
editores e pesquisadores da área dos quadrinhos. Nesse período Um agradecimento a todos que entenderam que não im-
houve muitas mudanças acompanhando o movimento dinâ- porta quem vença ou quem perde, o que importa é mostrarmos
mico do mercado editorial. Foi o primeiro troféu no mundo a para todos e para a mídia que existimos, que somos muitos pro-
reconhecer os trabalhos universitários de pesquisa e a premiar fissionais e que produzimos quadrinhos da melhor qualidade.
publicações digitais. Isso, além de mudar, a cada ano, a estatue-
ta onde homenageia um personagem brasileiro de destaque na José Alberto Lovetro (JAL)
história de nossa produção, desde Angelo Agostini com o seu
“As Aventuras de Nhô Quim” de 30 de janeiro de 1869.
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Flores de Açucena
Quintino Cunha
Verve Cearense, de Renato Sóldon, Rio de Janeiro, 1969
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Crônicas
Educados
para Ler
ui uma adolescente rebelde, so-
fria com a falta de liberdade que
a ditadura impunha a minha
vida e a todo o país. Participei da
luta dos estudantes em Brasília, escolas públicas, na cidade onde residem os meus netos, Santa
recordo os comícios relâmpagos, as palavras de ordem, as reu- Mônica, encostada a Los Angeles.
niões secretas, os olhos que ardiam e derramavam lágrimas ao E um dos aspectos que mais me encantam na educação
sentirem gases, as noites sem lua passadas em alguma peque- das crianças é o valor dado à leitura. Em todas as salas de aula
na sala a rodarmos num mimeógrafo as nossas ideias escritas há uma estante de livros, e quando as crianças chegam, antes
com entusiasmo e fervor. Lembro de juntar-me a colegas de do início das atividades, elas sentam num tapete com almofa-
escola diante de alguma instituição para gritarmos que fos- das, pegam algum livro na estante e o leem, ou, quando ainda
sem embora os “gringos”, considerados nossos inimigos. Por não sabem ler, passam as suas páginas, olhando as imagens e
uma ironia da vida, talvez uma lição, meus netos nasceram as letras. A professora senta com os alunos, lê o texto, aponta
nos Estados Unidos. as figuras, comenta, e participam todos de alguma forma de
Dessa forma, passei a viajar todos os anos a aquele país, leitura. Dessa maneira, as crianças aprendem desde pequenas
e passei a amar a cidade dos meus netos. Eles nasceram em o que é um livro, sabem reconhecê-lo, sabem o que existe den-
Los Angeles, na Califórnia, um dos estados americanos que tro dele, tomam intimidade com ele, adquirem o hábito e ex-
mais se parecem com o Brasil, talvez pela forte influência perimentam a sua convivência prazerosa. Por diversas vezes
latina dos mexicanos que ali residem, numa terra que já foi vi um de meus netos tomar distraidamente um de meus livros
mexicana, talvez pelo cosmopolitismo que se expressa numa e passar as páginas, mesmo sem compreender as palavras em
convivência amigável entre nacionalidades e línguas. Mesmo outra língua ali contidas.
com as experiências de minha adolescência, pude reconhecer Nas escolas há inúmeras atividades relacionadas aos li-
aspectos formidáveis nessa sociedade que se guia pelo direito vros, como feiras, quando livrarias se instalam por alguns dias
à liberdade. Um desses aspectos é a educação oferecida pelas dentro da sala, e os pais são sempre chamados a participar, a
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Crônica
comprar, a doar exemplares, o que es- de meus netos e comentei como era di-
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Chapuletadas
Chapuletadas
Os símbolos da
resistência poética
de Dércio Braúna
poeta Dércio Braúna es- A pedra, cuja simbologia fixa um signo permanente na po-
treou a sua jornada literária esia de Braúna, enleva a labuta do escritor que constrói sua obra
em 2005, com o premiado martelando duramente o material bruto da linguagem, até trans-
O pensador do jardim dos formá-lo em beleza. A pedra novamente aparece em Selvagem
ossos. Nele a sua veia de his- língua do coração das coisas (2005), mas em outra esfera, a dos
toriador deixa transbordar uma linguagem plena de materia- encarcerados que escrevem com pedras nas paredes do cativeiro,
lidade social, em que os sujeitos principais são o “trabalhador”, aludindo ao aprisionamento da alma e do próprio corpo que se
o “inventor” e o “operário” como agentes da transformação do vê oprimido pelas instâncias do poder, resistindo na busca por
“caos” e da miséria social. O autor transpassa duas vozes prin- liberdade através da força da expressão artística e política.
cipais: uma intimista, voltada para a subjetividade e o aspecto O peso dos “destroços” do rumo desastroso a que a humani-
ontológico; e outra engajada, externalizando tanto o pesar de dade chegou, é confessado em Metal sem húmus (7Letras, 2008).
uma perspectiva distópica quanto um convite à mudança so- Num relato sobre o “tumulto da existência pequena/ no meio do
cial. Assim, mesmo que ao primeiro lançar de olhos seja ten- mundo imenso”, a solidão cósmica está por todos os lados e se
tador cair na angústia e na disforia, a realidade é que nesse mostra com mais notoriedade numa sequência de poemas me-
jardim de “cinzas”, a esperança é tão perene quanto a relva que tafísicos, que diante da desolação não se resignam e convocam à
ressurge em “novas e titânicas flores”. resistência: “Cantem./ Sob o sol férrico do mundo/ cantem!”.
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A poesia de Braúna envolve-se Assim, em seu quinto livro de poemas,
com a busca constante por alteridade, lançado em 2017, Como cavalos fatiga-
marcada pelo verbo “milagrar”, referin- dos abrindo um mar, Braúna demonstra
do-se não propriamente a uma ligação que a língua, apesar de exaurida pelo
mística, mas ao movimento solidário da esgarçamento operado pela cultura, é
humanidade que realiza o que o deses- forte e ainda muito resiste.
pero nomina impossível. Em seus ver- Seus poemas percorrem um traje-
sos, a integração também compreende to que parte da simbologia inorgânica da
a união entre os amantes, um porto de pedra ao organismo vivo e impactante
salvação “contra o aniquilamento da do cavalo bravio; vem do puro concreto
beleza”, presente em “A tarde” (Selvagem e vai para a abstração da alta erudição
língua do coração das coisas) e “Sobre a de seus dois últimos títulos. Uma poesia
tarde, a erva” (O pensador do jardim dos existencialista, forte e combativa, erudi-
ossos). O momento crepuscular é evo- ta em suas trocas com grandes pensado-
cado para os amantes como uma fron- res, sem derrocar em pedantismos que
teira no tempo, uma ponte entre o dia e esvaziam o lirismo. A congregação de
a noite, um atravessamento que aponta pensadores e símbolos libertários pro-
para a transcendência do sofrimento movida por Dércio Braúna revigora a
pela experiência erótica. grande voz do mundo, e sua resistência
Já Aridez lavrada pela carne disto em prol de uma vida mais poética.
(Confraria dos Ventos, 2015) é revesti-
do pelo diálogo com inúmeros autores, Lia Leite
indicando o sujeito referenciado nas Editora da revista Entrelaces (Revista
vozes dos intelectuais que conversam de Literatura da UFC) e editora-che-
com Braúna numa série homônima de fe da revista Propulsão. Mestranda
poemas e solilóquios, estabelecendo em Literatura Comparada pela
um grande discurso poético, dissolven- Universidade Federal do Ceará (UFC).
do o ícone do autor para reverenciar lia.leite@outlook.com.
a palavra, e desfazer a ideia de que
“não há força nos nomes que susten-
tam a ordem das coisas”. Elucidando Para ler o autor:
as ordens, as instâncias do poder e Metal sem húmus (Editora
as suas reverberações na poesia. Em 7Letras, 2008).
Selvagem..., Braúna já tematizava a Aridez lavrada pela carne disto
força dos nomes, metaforizando a pa- (Confraria dos Ventos, 2015).
lavra como cavalos selvagens, tal a Como Cavalos Fatigados Abrindo
impossibilidade de apreender esse uni- o Mar (Moinhos, 2017).
verso indômito através da linguagem.
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Gente Ilustrada
Klévisson Viana
Quixeramobim – 1972
Ceará | Brasil
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Cristaleira
Francisco Carvalho:
o poeta das
coisas como as
coisas não são
poeta Francisco Carvalho, nascido em Russas (CE),
no ano de 1927, partiu para outras paragens no ano
de 2013. Durante seus oitenta e seis anos de vida
escreveu mais de trinta livros de poesia e alguns
outros de exercícios literários. Passados quase seis
anos da sua morte, sua obra poética continua despertando interesse tanto do leitor
comum quanto dos leitores especializados. Desse segundo grupo, cito especificamen-
te os trabalhos Três dimensões da poética de Francisco Carvalho (1996), de Ana Vládia
Mourão Aires, e Francisco Carvalho: uma poesia de Tanatos e Eros (2000), de Maílma
de Sousa. Mas ainda é muito pouco, quando levamos em consideração a amplitude
poética da obra do autor, a qual se constitui como um verdadeiro argos de cem olhos
no universo da literatura produzida em língua portuguesa.
A obra de Francisco Carvalho alcança a mesma qualidade poética daquela produ-
zida por gigantes como T.S. Eliot, Seamus Heaney e Konstantinos Kavafis, por exemplo.
Contudo, como se pode constatar, é mais fácil encontrar um livro do poeta grego Kavafis
do que um Carvalho nas livrarias do Brasil, especificamente do Ceará. Isso não impede, no
entanto, que a poesia de Francisco Carvalho se mantenha como uma das mais perfeitas
representações da poesia em língua portuguesa, impactando aqueles que deitam olhos
sobre seus poemas. Por outro lado, a ausência dos seus livros nas livrarias brasileiras im-
possibilita que mais leitores e pesquisadores possam se debruçar sobre tão rica obra.
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Cristaleira
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Cristaleira
Discurso da ira Gravura
Os pobres estão se evaporando
Nordestina
à vista de todos. A Eduardo Campos
O tempo vai passando
os pobres vão se decompondo Este sol é um deus feroz Os bichos magros cochilam
seus rostos são apagados pelo vento que dardeja e que incendeia à sombra dos juazeiros
e da memória dos computadores os esqueletos dos bois. à espera de alguma brisa.
até que ninguém se lembre
mais de suas caveiras sorridentes As redondas oiticicas O canto da juriti
afugentando os parasitas dos burocratas são carpideiras de luto trespassa as almas dos homens
nas repartições públicas. chorando a morte dos brutos. com seu punhal de vizir.
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Radiadora
Radiadora
Cama de Gato
O tio tinha dedos ágeis e uma cabeça engenhosa. Consertava importa o calor? Era branca com florezinhas cor de rosa. Mas
tudo o que via pela frente: a torneira do banheiro, o ventila- ficou apertada, marcando o que seriam os seios. Ele olhou de-
dor, a fechadura. Uma vez ajudou a menina a fazer uma tige- morado, procurando o efeito. Que importa?
linha de barro. Seria para o gato beber leite, se gato houvesse. E os doces, a melhor surpresa, espalhados displicente-
Então nasceu a promessa. mente sobre a cama. Só pra você, ele disse, como se cochilasse,
E tinha propósito. Trouxe um gatinho tão bonitinho... já colocando um beijo em sua boca. Brigadeiro, pirulito, chi-
Tão inocente... Gostoso o contato com a pele morna, macia. Tão clete, maria maluca, suspiros. A porta gemeu, fechou-se. Os
frágil... Cautela! lábios rosados de k-suco de groselha, azedo de doer. A bala de
Depois do gato, a cama de gato. Trouxe o cordão, pren- gengibre entrou queimando, a baba viscosa acridoce, a nódoa
deu as duas pontas com um nó cego e começou a urdir a rede na saia, indelével.
entrelaçando o fio entre os dedos. Ela não levava jeito para a Lá fora, o barulho da televisão abafava tudo. O gato dor-
brincadeira, mas ele tinha dedos hábeis. E muita paciência. mia no sofá. No chão, a tigelinha, quebrada, o leite derramado.
Nem era Natal nem nada, e ele chegou com a televisão. Onde estava a mãe que não via aquilo? Ora, havia o bebê
De segunda mão, catorze polegadas. Arrumou a mesinha, re- e seus cueiros, os menores e seus narizes emporcalhados, o
gulou a antena e os canais. Desenho animado, novela, prega- tanque e sua montanha de roupas sujas, o fogão e suas panelas
ção, programa de auditório no domingo. Uma diversão para os cozinhando confiança em banho-maria que fumegavam, dei-
sobrinhos, um descanso para a cunhada. Um atenuante. xando tudo coberto de fumaça.
O tio era mesmo generoso. Trouxe uma prenda conse-
guida em meio às doações vindas da América para os irmãos Zélia Sales
da Assembleia de Deus. Era uma camisolinha de flanela. Que zelia.rib.sales@gmail.com
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Radiadora
Vingança
As duas semanas de Myckey Ronney abrindo picada para hora da partida para a segunda viagem ao Piauí. Momento em
levantamento topográfico sob o escaldante sol do Piauí não que o motorista da empresa o aguardava impacientemente
podia mesmo ter deixado seu único par de meias em outras na calçada e Karynny Keytty se mantinha em pé de guerra.
condições. Com o suor descido corpo abaixo e nada de água e E assim, enquanto jogava de modo aleatório a pouca baga-
sabão durante toda a jornada, o chulé era de arrancar vômito gem num saco, Myckey Ronney ouviu a cantilena da mulher.
em urubu. Já no meio daquela semana, ela seria submetida à cesaria-
Até que Karynny Keytty se esforçou, mas, depois de gas- na para trazer a filha à luz do mundo. Precisava de dinheiro
tar quatro baldes de água, uma barra de saponáceo “Pavão” e para, entre outros gastos, comprar as fraldas. Afinal, não iam
mantê-las um quarto de hora mergulhadas em água ferven- bem com o “k”, os “ipsilones” e a consoante dobrada do belo
te com extrato de limão, bicarbonato de sódio e detergente, nome Shakyra Ayshylla cueiros engendrados com saco de fa-
ela concluiu: “Como dizia meu pai, quando era motorista do rinha ou de açúcar...
Coronel Zenon Pedreira, catinga aqui é igual a grilo em rural Intuitivamente o marido ainda coçou os bolsos e logo se
velha: não tem quem acabe nem deixe pouco!”. certificou de que tinha gasto todo o saldo da quinzena na farra
Com esse pensamento e os músculos fatigados de tanto daquele fim de semana. Então, fez cara de pasmo e depois des-
puxar água do cacimbão para aquele e outros afazeres da casa conversou: “Onde estava o seu par de meias?”.
e as munhecas cansadas do esfrega-esfrega, a mulher resolveu Prontamente informado de que as famigeradas peças já
descartar o par de meias na lixeira, donde esticou a visão até embrulhavam o estômago de catadores do lixão da cidade, ele
o bar da esquina mais próxima e avistou o marido. Rodeado não pensou duas vezes: sacou do cós da bermuda a navalha
de parceiros, ele era pura faceirice. Bebia e contava vantagens caprichosamente afiada e, bufando de raiva, correu até a mu-
sobre o seu trabalho interestadual. lher, arrancou-lhe das mãos o coelhinho de pelúcia (presente
Indignada com a situação, ali mesmo da calçada, ela sol- dos futuros compadres, Mayara Kelly e Kennedy Krystyno)
tou o verbo em alto e bom som para a vizinhança ouvir e co- e pôs fim à discussão. Primeiro transformou em caneleiras as
mentar: “Venha já fazer o almoço, seu vagabundo, que eu não orelhas do falso leporídeo. E desse modo, certo de que, pelo
aguento mais ficar em pé! Vou me deitar com as pernas pra menos na etapa seguinte do desbravamento da mata piauien-
cima pra ver se Shakyra Ayshylla sossega. A peste da menina se, suas tíbias e adjacências estariam protegidas contra carra-
não para de chutar meu bucho”. pichos, espinhos e insetos, ele resolveu outro problemas que
Para mostrar aos companheiros de copo que não lhe caía tanto afligia a mulher. Pois, com a perícia de um cirurgião,
bem ser mandado pela esposa, o desafiado cônjuge não deixou abriu o abdome do desorelhado animal, estendeu-o em forma-
por menos. Estendeu sua pândega por outros bairros da cida- to de fralda, lançou-o no colo da esposa e partiu como se nada
de, só retornando para casa na segunda-feira seguinte, ocasião tivesse acontecido.
em que réstias do sol nascente penetravam pelas frestas da Bernivaldo Carneiro
janela, aquecendo a rede de sua grávida e lembrando-lhes a bernivaldo@gmail.com
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Radiadora
Inhamuns: prelúdio
Sugou-me a alma pelo meio das pernas. Era uma festa! O cigar- sobre a toalha amassada, provocando hematomas que só se-
ro já queimando a boca e, na alumiada escuridão, valsavam riam sentidos depois. Chutei o para-choque do carro à minha
sombra, vento e fumaça; e a chama engolia a erva e o papel, frente e atrás dele e falei, muito alto e muito longe, sobre o des-
movendo-se rapidamente em direção aos meus lábios. fecho que se aproximava.
Ele dizia que me amava. Eu só escutava. Que me amava, que me amava, que me amava, ele dizia,
Da metade para lá, o céu se estirava feito uma caverna enquanto eu gozava. Eu só escutava.
comprida onde se escondiam estrelas tristes sobre aquele campo Então eu observei as estrelas uma última vez, na tenta-
sem nuvens, madrugada plena e sertaneja à beira da CE-020. tiva de tornar inesquecível aquele encontro fora do tempo e
E a língua vasculhava as reentrâncias. Re. En. Trân. Cias. da dimensão em que vivíamos e na qual eu tinha me tornado
Que palavra bonita, cheia de lugares para umedecer, pensei, jornalista e ele motorista.
junto com os anjos caídos. Agarrei com uma das mãos os Faltava pouco para que chegássemos em casa e eu revi-
cabelos dele, recém-cortados, e levei o cigarro a terra com a sitasse os fantasmas da minha – da nossa – infância e que eu
outra, gemendo alto com a morte que se aproximava. Naquela tinha enterrado ao pé do poço profundo, onde minha vó dizia
noite, nenhum mal nos encontrou. E eu compreendi, sem que dava sorte se eu jogasse uma pedrinha polida e desejasse.
medo, nem vergonha, que aquele era um homem a ser amado. Nós dois desejamos. Eu fui embora, consegui diploma, salário
Depois de dar ouvido a mais um dos meus pedidos e des- e passaporte carimbado. E ele? Ele dizia que me amava. Mas
bravar uma estrada desconhecida de poeira estelar, uniduni- eu só escutava.
tê, coroou-me também rainha dos Inhamuns, com frio, terra Partimos em silêncio e com o peito esmagado pelo de-
e saliva. Foi a primeira vez que fui amada no sertão de onde safortunado reencontro. Crianças pequenas esperavam em
fugi na adolescência. E foi a primeira vez que fui tomada por casa. Amores não morriam. Desejos se concretizavam, mas
um homem que mal sabia ler, mas que dizia, num português faltava. Onde estavam os deuses que tinham escolhido quais
nítido, forte e silabado, eu amo você, ele dizia. Eu só escutava. sonhos realizar?
Eu já não sentia mais frio, porque não havia temperatura Kah Dantas
fora de mim. Tremiam as pernas e os pés; o resto se contorcia akdantas2703@gmail.com
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Radiadora
Dois iguaizinhos
Não passo um dia sobre a terra sem me lembrar de Tobias. Ele cidade de merda. Não teria esperado que o destino o ferrasse.
teria andado comigo, nadado, saltado da ponte e soletrado a Teria concluído o curso de Direito, para alegria do papai, e jamais
mesma cartilha burra da professora Dolores. Ele teria cresci- teria abandonado a Beatriz Loreto, filha do banqueiro carcama-
do comigo e principalmente estudado no patronato, e sería- no, para desespero da mamãe. E por falar na mamãe, descobri
mos dois iguaizinhos sob o paletó de formatura das primeiras que depois do meu nascimento e da morte do meu irmão, ela
letras. A dulcíssima irmã Salete nos exibiria como atração à ficou debilitada e selada para a maternidade. Por isso investiu
parte. Em vez de uma, seriam duas gravatas borboletas e dois tanto na minha formação, esquecendo-se de si mesma.
miquinhos de primeira fila com o missal na ponta da língua. Será que o outro Tobias teria permitido a ruína dos ne-
Aos domingos, na capela, encarnaríamos dois anjinhos a au- gócios do papai? O velho terminou seus dias fitando os bicos
xiliar o padre Cosmo na celebração da novena. Tocaríamos as sine- dos sapatos, sem dizer palavra. Mamãe comentava, em dias de
tas e prepararíamos as hóstias. Ele jamais descobriria que os bolsos visita ao asilo, ou me jogava na cara, não sei ao certo.
de nossos casacos estariam cheios delas para dividirmos, lá fora. Não passo um dia sem me lembrar de Tobias, e dos ir-
Eu não seria um solitário na arena da vida. Brincaríamos mãos Tedesco, e do sorriso da Mariana, e do olhar do nosso pai.
e brigaríamos em par. Seríamos dois contra os irmãos Tedesco, Será que o outro Tobias teria experimentado cocaína, vendido
que me partiram a cara e me legaram a chance de descobrir na faculdade, visitado o inferno e ressuscitado para a monoto-
que a fúria não teme a ruína. nia da existência? Duvido. Certamente ele não amargaria esta
Eu não teria me ferrado sozinho quando fui visto que- solidão perpétua, fumando e cuspindo e bocejando tédio. Ele
brando as vidraças do coronel Gondim ou escalando o campa- não teria nem motivo para atormentar a mente com pensa-
nário da matriz para bater o grande sino à meia-noite. mentos vadios assim, de quem joga paciência com as paredes e
Todos os dias me lembro de Tobias. Qual de nós teria rabisca tolices num pedaço de papel.
conquistado primeiro o coração da Mariana, filha da vizinha? O outro Tobias, a esta hora de uma sexta-feira, estaria
Poderíamos ter brigado por ela, disputado seu amor numa sentado ainda na cadeira giratória da diretoria, delegando as
memorável partida de porrinha ou no porrete. O que não evi- últimas ordens da semana, ou na poltrona do avião, vendo
taria que ela se precipitasse no vazio, como fez. o mundo lá de cima e pensando em se apoderar de uma fatia
Meu nascimento se seguiu à morte de Tobias. O que serviu dele. Não, o outro Tobias seria mais humano. E mais família.
de consolo para o papai, que queria pelo menos um filho varão. Provavelmente estivesse voltando para casa, para a companhia
E eu ganhei o nome do morto. O que mais terei roubado dele, da esposa e dos filhos. Atiraria a valise sobre a cama, abraçaria a
além do nome? O peito materno, o berço, o lugar à mesa, a temí- companheira e, sem falar, diria o quanto a ama. Desta vez, pos-
vel cadeira do dentista? Teria a Danusa se casado comigo, se ele sivelmente dissesse isso após o jantar em Lisboa ou Paris.
existisse? E teriam acaso se desquitado? Ai, perguntas. Hoje sou Todos os dias me lembro de Tobias. Talvez ele não entras-
duplo, gêmeo com um morto que vive em mim. O outro Tobias se em negócios escusos. Se por acaso o fizesse, e tudo indica
com certeza teria sido um pai mais dedicado, menos egoísta, mais que seria por minha causa, teria procurado soluções mais pa-
preocupado com o lar do que com as coisas fugidias. Em vez de catas, recuaria um passo, não sairia logo puxando o gatilho
manifestos e poemas inúteis, escreveria petições e memoran- uma, duas, três vezes contra os irmãos Tedesco.
dos e saberia dar nó em gravata. Acho até que ele não dançaria
tão bem quanto eu, mas certamente seria um gênio da bola e do Carlos Vazconcelos
xadrez. Algo me diz que ele teria ido embora mais cedo daquela carlosvazconcelos@hotmail.com
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Radiadora
O corpo que ao espaço se atira para Cláudio de Oliveira Não o assustava o grito absurdo
É a silhueta em voo do tempo, Do vento em preparo de vendavais
A matéria tornada vento I Não o assustava o pio desesperado
Que em seu bailado se eterniza. caminhando na de rasgas mortalhas
É o segundo visto em suspenso meruoca: meu silêncio Em noites escuras sem luar
No tenso gesto de criar, conversa com teu Não o assustava o silêncio vazio
Do fecundo nada que há, silêncio. das catacumbas
O ávido haver do movimento Após o enterro derradeiro
II Não o assustava o farfalhar das folhas
Ricardo Kelmer meruoca em silêncio. Nas madrugadas frias de inverno
ricardokelmer@gmail.com o espiríto de bashô Não o assustava o grito de buzinas
repousa nos galhos Estremecendo avenidas corrompidas
dessas árvores verdes – ao meio-dia
Só o assustava o bramido de homens
III Engomados de poder.
céu em nuvens:
a sombra de deus caminha Rosa Morena
pelo ceará – rosa_mariasousa@hotmail.com
Léo Prudêncio
prudencioleo@hotmail.com
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Radiadora
Metafísica Enquanto Anúncio
a Morte se Atrasa Necessitamos de defensores da causa da nossa existência
Gente interessada no que façamos, apenas pela autoria
jazem, em placas, pelas esquinas, Urgem seres que enterneçam ao som do nosso nome
amontoados entre a poeira e as traças, Semeadores do mérito que não percebemos em nós
munir-se até aos dentes com suas farpas; Torcedores da desgraça embrulhados em compaixão
forjar outra matéria (ainda língua) depois de tudo, Amigos não enxugam lágrimas; arrancam sorrisos
dependurado ao alto E nos carreguem para onde a ternura do amor do amigo aponta
Dércio Braúna
derciobrauna@gmail.com
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Radiadora
Curatela
E aí, meu amor, vamos mexer com coisas sagradas?
O que há de mais puro dentro de nós.
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amor, iv Limítrofe Crase
Radiadora
pra bruna e yasmin Quem sabe Ameaçam-me
O arriscar palavras atear fogo
um dia o amor bate em sua porta Todas à beira às vestes e às paixões
um dia o amor te beija a cara De uma linha torta
um dia o amor bate com a porta na sua cara Bamba, talvez morta se não calo o canto
se não sigo as setas
uma música toca no rádio Quem sabe se não cesso os beijos
o galo que cacareja galinha choca Escorregar filetes
é o homem que grita menina histérica Poças de tinta isso quando mais ardem
Cores chamuscadas fora e dentro de mim
lembro os versos dos anjos Nenhuma perspectiva as vestes e as paixões.
o beijo amigo é a véspera do escarro
e só um homem louco perguntou Quem sabe Jogo meu corpo
Nenhum sentido faça em praça pública,
pra onde vai a porra do amor E todo significado tenha jogo minha alma
quando o amor acaba Sem promessas em graça pública.
a saudade de nós sufoca Totalmente adormeça...
Por isso,
lavo a boceta em busca do amor Ângela Escudeiro dobro o canto,
e ele está de abraços com o talarico escudab@gmail.com e bêbado de beijos,
que me canta apalpa e geme não me dobro às setas.
Nina Rizzi
ninarizzi@gmail.com
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Mala de Romances
Mala de Romances
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Mala de Romances
Na Vespa mesmo mijou Ora, o peru era o prato E vendo a coisa tão feia
A mãe se preocupou Que José admirava Zé Pornô dizia assim:
E perguntou nessa hora: Mas como ele comeria — Oh! Mamãe, reze por mim
— Valha-me, Nossa Senhora, Se o transporte não parava? Me livre dessa “cadeia”.
Adonde foi que ele entrou? Quanto mais a mãe gritava
Nesta voz ele passou Mais o transporte corria Encontrou com Frei Cornélio
Mesmo em frente do portão De fome José morria Que vinha no seu motor
Rezando pra São Francisco Porém por falta de sorte Esse frade ao encontrá-lo
São Raimundo e São João O diabo do transporte Foi bastante inquisidor:
Sua mãe mostrou-lhe um pão Nem parava, nem caia. — Muito bonito, doutor,
E uma xícara de café Não foi ajudar na missa?
Dizendo: — Vem cá, José, Desde cedo em jejum Um sacristão com preguiça
Vem ao menos merendar José Pornô só lamenta Frade nenhum aguenta
Cadê a moto parar? E disse consigo mesmo: Foi bem atrás de jumenta
O Pornô perdeu a fé... — Que saudade da jumenta, No roçado das maliça!
Santo-acode, ou cão-atenta Neste momento o Pornô
Nisto a fome apertou Tô de barriga a roncar Puto, com fome e com sede,
O Pornô quase se acaba Estou doido pra jantar Pensou de parar a moto
Porém, por sorte passou É grande meu embaraço, Abarcando na parede
Sob um pé de goiaba S. Francisco, que é que eu faço Disse ele: — Eu sou é home,
A fome já estava braba Para esta porra parar? Num vou é morrer de fome
Conseguiu pegar só duas Nesse instante ela parou
Caminhou mais duas ruas Igualmente o Fred Flintstone Sem que ele fizesse nada.
Em busca de outro pé Arrastava os pés no chão Sabem o que foi, negrada?
E a mãe dizia: José Cadê a moto parar? A GASOLINA ACABOU.
A janta vai ser perua! Como para a condução?
Nessa hora, o carrilhão FIM
Já tocava nove e meia
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Tiragostos
artista
da capa Os FitoManos de Raymundo Netto
Guabiras
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