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Expediente

Expediente
Editor
Amaral Cavalcante
Produção
Cândida Oliveira
Design Gráfico
Germana Araújo
Clara Macedo
Gabi Etinger
Liz Carvalhal

Revisão
Yuri Gagarin
Cândida Oliveira
Coordenador de Pré-impressão
Marcos Nascimento
Gerente Editorial
Jeferson Melo

Colaboradores - Neste Número


Charlotte Borges (jornalista) • Rian Santos (jornalista) • Antônio Passos (jornalista) • Germana Araújo (designer gráfico) • Jozailto Lima (jornalista) • Camila
Santos (jornalista) • Raimundo Sotero (poeta) • José de Almeida Bispo (acadêmico) • Clóvis Barbosa (colaborador)

Ano VII | Número 24


cumbuca@segrase.se.gov.br
(79) 3205-7421/7400
Rua Propriá, 227 - Centro
Aracaju - SE
CEP: 49010-020

Governo do Estado de Sergipe Serviços Gráficos de Sergipe

Governador Diretor-Presidente
Belivaldo Chagas Silva Ricardo José Roriz Silva Cruz

Secretário de Estado de Governo Diretor Industrial


José Carlos Felizola Soares Filho Mílton Alves

Secretário de Estado da Comunicação Diretora Administrativa Financeiro


José Sales Neto Maria das Graças Souza Garcez

A Revista Cumbuca não se responsabiliza por conceitos emitidos nas matérias assinadas.
2019 Cumbuca | 1
Cumbuca conta com o apoio da Secretaria de Comunicação Social do Governo do Estado de Sergipe.
Tototós: Transporte, cultura e tradição
carta ao leitor
Início do terceiro trimestre do ano 2019 está
quase acabando e uma nova revista Cumbuca che-

fluvial de Sergipe
Charlotte Borges
ga a suas mãos, caro leitor. Nesta edição partimos
para o rio Sergipe e ‘matamos’ a saudade do To-
ToTo. Era bem mais singelo chegar à Barra dos
Coqueiros nessas embarcações. Confesso ser bem
mais prazeroso tocar a água salgada e sentir no ros-

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to a brisa leve durante a travessia. O ToToTo ainda
existe, mas é pouco procurado pela população.
Conhece o grupo teatral Boca de Cena? Criado
no conjunto Bugio em Aracaju, utiliza a linguagem
do teatro popular para alcançar o grande público.
Durante a leitura deixe a vibração do grupo Bu-

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rundanga Percussivo acelerar seu coração. Pedri-
nho Mendonça é o maestro desse sortimento de
vivências e batuques.
Germana Araújo trata do processo criativo e a
representação feminina no cenário do design gráfi-
co. O jornalista Jozailto Lima gentilmente cedeu a
entrevista que fez com Mário Britto para seu portal
JLPolítica. O mercado sergipano de artes plásticas
é tema do pingue-pong. A rádio Aperipê AM com-
pleta 80 anos e sua história está registrada nas pró-

Teatro no olho da rua


ximas páginas.
Nas páginas da Cumbuca conheça também a
poesia de Raimundo Sotero. E em outro artigo a

Rian Santos
‘lenda da prata de Itabaiana’ tira o foco do ouro da
Princesa da Serra. A revista encerra homenagean-
do o centenário (se vivo estivesse) de Renato Mazze
Lucas, o contador de histórias baiano que escolheu
Sergipe para construir uma bela história de vida.

Boa leitura

Amaral Cavalcante -Editor


Burundanga Percussivo: Sortimento de

Capa:
As cores do espelho
vivências e batuques

(barcos em Pirambu)
Arthur Leite
Antonio Passos

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Rádio Aperipê AM chega aos 80 anos Mário Britto e o Mercado Sergipano de
Camila Santos Artes Plásticas
Jozailto Lima
design editorial
Germana de Araujo
A personalidade artística no

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56

de história

2019 Cumbuca | 3
400 anos de lendas e mitos: a construção Poesias

Clóvis Barbosa
da sergipanidade e a prata de Itabaiana Raimundo Sotero de Menezes
José de Almeida Bispo

O centenário de um contador
Arquivo do Jornal de Sergipe

Texto e fotos: Charlotte Borges

À s margens do rio e dos seus afluentes,


o vai e vem das tototós com suas
diversas cores configuram o cenário do
e a Capital Aracaju. Esse tipo de transporte
fluvial, assim como ​ canoas, barcos e
saveiros, eram na época a única ligação
Rio Sergipe no trajeto ​A racaju até Barra entre os municípios e fundamentais para
dos Coqueiros. É nas águas desse Sergipe as atividades socioeconômicas.
de rios de memórias e patrimônios que
vidas se entrelaçam cotidianamente, como Moradores da Barra do Coqueiros e da
os nós dados pelos popeiros ao atracar as atual Atalaia Nova vinham a Aracaju,
embarcações em seu leito. tanto para comercializar sua produção
agrícola e f​azer compras quanto para
Introduzidas na região estuaria do rio atividades de ​ lazer. ​
Em todas essas
Sergipe, em meados do século XX, as situações, as tototós possibilitaram que as
tototós resistem até hoje como o mais pessoas cruzassem ​as bacias hidrográficas
importante meio de transporte e tradição do Estado, garantindo-lhes a liberdade de
entre as localidades da Ilha de Santa Luzia ir e vir.
Arquivo do Jornal de Sergipe

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As tototós, como as conhecemos hoje, rápida e eficiente para chegar à capital era
são o resultado das transformações atravessando o rio Sergipe. O transporte
provocadas pela introdução de novas era feito não somente pelas canoas tototós,
estruturas nas canoas. Como o motor mas existia as lanchas da Sergiportos,
de popa, cujo barulho repetitivo deu que possuíam um horário rigoroso de
origem ao próprio nome tototó, e a saída dos atracadouros. Paralelo a essa
cabine ampliada, que proporcionou mais opção, as tototós ficavam de maneira
conforto para os passageiros, protegendo- mais disponível, quanto a horário, saindo
os do sol e da chuva. quando completava a sua lotação. Era
comum os passageiros perceberem que
Com o desenvolvimento do comércio a lancha demoraria mais de 10 minutos
e o crescimento da empregabilidade para sair, muitos se apressavam e lotavam
local em Aracaju, o número de canoas a canoa que saia antes da lancha”.
atravessando o rio Sergipe levando e
trazendo trabalhadores era expressivo. Na Atualmente, com a construção da ponte
década de 1980, essas canoas começaram construtor João Alves Filho, ligando
a concorrer com as ​lanchas maiores da os municípios de Aracaju-Barra, as
empresa Sergiportos, que eram m ​ais tototós deixaram de ser as protagonistas
rápidas, mais estruturadas e que possuíam como o único meio de transporte nesse
capacidade para conduzir ​ um número trajeto, perdendo lugar para o transporte
maior de passageiros. Mas a disputa não urbano, principalmente os ônibus.​Essas
durou muito tempo. Com o​ término dos mudanças geraram fortes impactos às
serviços prestados pela antiga Sergiportos, tototós, seja no aspecto do fluxo de
as lanchas tanto para a Barra do Coqueiros pessoas até a manutenção da sua tradição
como para a Atalaia Nova foram retiradas, sem qualquer investimento por parte dos
deixando assim o transporte fluvial apenas órgãos governamentais.
para as tótótós.
Assim como relata Mary Almeida,
O professor e historiador Marcos Vinícius, fundadora e ​coordenadora da ​A stototós
morador na época da Barra dos Coqueiros (​A ssociação de Canoeiros e Usuários das
,vivenciou todo esse processo de mudanças Tototós do Estado de Sergipe) “Depois
e relata: “Eu tive a oportunidade de da presença da ponte eu comecei a ver
morar na Barra dos Coqueiros, mais que isso de fato financeiramente afetou
precisamente no conjunto Prisco Viana não só minha família, mas toda as outras
no final da década de 1980 e início dos famílias, e ao ver meu pai chorando, ao
anos 1990. Como não existia transporte ver a situação em que ele se encontrava
coletivo rodoviário para Aracaju, até financeiramente e a questão também da
porque não existia a Ponte Construtor estrutura familiar afetada, eu disse pra
João Alves, e excetuando a via fluvial, mim que já que eu podia fazer trabalhos
a única saída da Ilha de Santa Luzia, se voluntários na minha cidade, na minha
dava através da rodovia estadual que liga comunidade eu tinha por obrigação
até o município de Santo Amaro das também lutar por aquilo que me fez
Brotas. Dessa forma, a maneira mais chegar até onde eu cheguei”.

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como Associação das Tototós, foi fundada
em 18 de dezembro de 1989. P ​ orém tinha
uma estrutura bastante frágil e apresentava
vários conflitos. Foi ​
através do Projeto
de Lei N.° 20/2018, que a associação foi
declarada de utilidade pública, o projeto
foi aprovado pela ​Câmara Municipal da
Barra dos Coqueiros.

De acordo com a Astototós atualmente


existem 20 embarcações em uso,
divididas em duas equipes, uma por dia
Mary Almeida – realizando o transporte pelo Rio Sergipe
das 5h45 até às 19h, no sábado até às 16h
e no domingo até meio dia. Para além
das atividades de transporte, os canoeiros
utilizam as tototós nos dias de inatividade
das embarcações para fazer passeios
turísticos e transportar cargas de pequeno
A associação “Astototós” vem atuando porte como uma forma de garantir um
como sinônimo de resistência, com o dinheiro extra.
objetivo da promoção socioambiental,
cultural e econômica, busca manter viva Os canoeiros também cumprem um
a tradição das tototós no desenvolvimento papel de carpinteiro n ​a manutenção
de suas atividades. A partir de projetos e das suas próprias embarcações​, elas s​ão
trabalhos com ONGs voltados à e​ ducação distintas em cores, tamanhos e ​modelo
ambiental, Mary Almeida junto aos naval. A embarcação nomeada de Sergipe
canoeiros, lutam pela valorização do Star tem um tamanho maior das demais
ofício, buscando por espaços físicos, e cor neutra, trazida das águas do Rio
como a construção de um ecomuseu São Francisco, já passou por várias
para a recepção de pesquisadores, alunos modificações.
e turistas, e a permanência física da
associação: “A gente alugou um espaço, Por ser um ofício transmitido de geração
mas antes eles não tinham uma sede, para geração existe uma relação afetiva,
a gente fazia reuniões dentro de uma eles conhecem as canoas pelos nomes, ​o
embarcação, na beira do rio, muitas vezes ser canoeiro é considerado como um modo
a gente conseguia um espaço dentro da de vida, saber adquirido e desempenhados
igreja Católica que sempre esteve de portas a partir de vivências cotidiana vinculadas
abertas para nos receber, por exemplo​”, à prática fluvial. Para exercer a função de
relata Mary. popeiro, os condutores obrigatoriamente
precisam ter a habilitação e registro
A antiga associação dos proprietários de exigido pela Capitania dos portos de
Canoas e Transporte de passageiros e fretes Sergipe.
de Barra dos Coqueiros, mais conhecida

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As Tototós são embarcações simples,
tendo como material predominante a
madeira, com cabine para seus passageiros
que viajam obrigatoriamente sentados.

Possuindo cerca de três metros de largura


e 15 metros de comprimento, batizadas com
este nome por causa do som característico
emitido pelo seu motor e popa.

Nome dado a Nome dado a Nome dado ao


parte dianteira da parte traseira da local de condução
embarcação. embarcação. da embarcação.

Cada embarcação possui


e um

É aquele que cuida da embarcação, da É o mestre da embarcação, quem guia a tototó, é


limpeza do “salão dos passageiros”, amarra aquele que tem mais responsabilidades, detentor
a navegação. É quem segura a mão do de mais saberes por já ter passado pela função de
passageiro no embarque e desembarque e proeiro. Verifica o nível de óleo e as condições da
faz as cobranças da passagem no trajeto. caixa de marcha a cada operação.

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Fonte: Tototós embarcações tradicionais do estuário do rio Sergipe.
Se dá início a construção do casco. A maioria das
Tototós possui um formato “encavernado” — onde
o casco recebe partes inteiras das madeiras e o
formato côncavo é moldado posteriormente.
Ofício de cunho puramente artesanal. Os
detentores do conhecimento e executores desse 3
ofício são os carpinteiros navais que, de forma É o fechamento do casco mediante a utilização
semelhante à dos canoeiros, herdam de seus das madeiras de louro, maracatiara, angico ou
antepassados o conhecimento associado ao compensado naval. Para o isolamento do casco
modo de fazer a embarcação. Os carpinteiros o carpinteiro faz uso de materiais como nauticola,
navais trabalham sozinhos ou auxiliados por resina e manta de fibra Materiais responsáveis pela
um ajudante e residem em sua maioria na Barra impermeabilização e durabilidade do casco.
dos Coqueiros. Em média, necessitam de 3 a 4
4

Fonte: Tototós embarcações tradicionais do estuário do rio Sergipe.


meses para construir uma tototó.
A construção das outras partes da embarcação
como a popa, proa, cabine, estrutura lateral com
1
safenas, base para receber o motor, convés,
Podendo variar em preço e qualidade, bancos e ferro. Todas estas partes são construídas
geralmente são usadas as madeiras do tipo com o mesmo tipo de madeira das demais partes
pequi, angico, sucupira e jaqueira. Pois não estão da embarcação.
dentre as espécies protegidas por lei.

2 Uma vez concluído o forro, na parte externa, este


São utilizados instrumentos como: serra circular ainda recebe o acabamento de manta de fibra
e elétrica, plaina, serrote, máquina de furar, com resina para o vedamento contra possíveis
lixadeira, trena, pregos galvanizados, parafusos infiltrações da chuva.
de fenda e rosca.
5
A compra é feita pelo proprietário da embarcação
8 | Cumbuca 2019 em estabelecimentos comerciais que oferecem
motores já utilizados.
Ao longo de toda sua história e apesar do
seu aspecto simples e rústico, as tototós
pautaram apenas um ​acidente que ocorreu
quando a embarcação estava atracando,
uma das embarcação bateu na janela
da outra, levando uma pessoa a óbito.
Valdemir Lima, dono de embarcação,
popeiro, morador nativo há 45 anos da
Barra dos Coqueiros, relata: “Em termos
de segurança, como o colete por exemplo,
a Marinha sempre está aqui fiscalizando,
tem que ter o documento da embarcação,
ele vale por cinco anos e é o título da
embarcação com a numeração e é um
transporte muito seguro. Eu estou aqui
esse tempo todo e só teve um acidente,
além de ser o único transporte que não
tem relato de assalto”.

A realidade dos barqueiros c​ontinua não tem condições” diz Valdemir Lima,
necessitando de melhorias​, tanto salarial dono de embarcação.
como de benefícios previdenciários, além
de maior reconhecimento e divulgação Apesar das exigências para navegação, os
do trabalho naval dos totozeiros. ​A saída canoeiros não possuem nenhum tipo de
encontrada após a perda de espaço para seguro: “​Olha, eu lembro que até antes da
os transportes terrestres, foi a redução ponte eles tinham, era obrigatório, só que
do valor da passagem para um preço aí depois que se tornou um patrimônio
menor ao que é cobrado pelos ônibus, “​A reconhecido não existe mais um órgão que
média aqui é mais de um salário por mês. queira de fato apostar no patrimônio como
Trabalho em dias alternados, se trabalha algo que pudesse gerar seguro”, afirma
13 dias no mês, mas dá para se manter, Mary. Outra dificuldade encontrada se dá
com alimentação, pagar as contas. Mas pela ausência de formação por parte dos
para manter uma embarcação como essa canoeiros.

Valdemir Lima
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Contudo, não há um reconhecimento
das tototós por parte do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Naciona​l
(IPHAN), como um Patrimônio de cunho
Nacional e Imaterial, é o que explica a
Diante da fragilidade e dificuldades historiadora representante do Iphan Flávia
enfrentadas pelo ofício dos canoeiros da Gervásio: “Para se tornar patrimônio pelo
foz do rio Sergipe, ​em 2011, as tototós Iphan você tem que ter uma continuidade
receberam o título de Patrimônio Cultural histórica de no mínimo três gerações,
e Imemorial do Estado de Sergipe pelo que aí já não é o caso deles, aí entra uma
Decreto de Lei N.° 7.320/11, sancionado série de procedimento que os próprios
pelo governador do estado de Sergipe, detentores tem que entrar com um pedido,
Marcelo Déda. ​O reconhecimento é feito que ter essa continuidade histórica e aí
por parte da câmara de vereadores, ou de depois tem o processo de documentação
deputados e é de cunho declaratório, não e de pesquisa sobre o bem que é todo feito
havendo assim uma política pública. com os detentores e depois disso passa-se
pelo conselho, que é a câmara técnica que
analisa tanto os casos de tombamento
quanto os de registro, ele vai ver também
essa questão, se tem uma ressonância
nacional, você tem um patrimônio que
ele tem um aspecto local que eu acho que
é muito o caso das tototós. Eu acho que
foi o caminho que foi um pouco buscado,
apoiar com ações de salvaguarda, porque
mesmo que não tenha reconhecimento
pode-se buscar as ações de salvaguarda
para os bens que se tem valor, que são
ações de fusão dos bens, que são ações
de conhecimento, ações para tentar ter a
continuidade do bem, então no caso de
bens de patrimônio imaterial que o valor
está muito nas pessoas, no conhecimento,
são ações para você poder tá garantindo a
transmissão, garantindo esse tipo de bem,
mas não teve reconhecimento. O que se
tem o reconhecimento do valor, mas não
tem, não poderia pelos critérios do Iphan
entrar como patrimônio imaterial”.

Salvaguardar os bens culturais relativos a


modos de fazer, a formas de sociabilidade,
religiosidade, relacionamentos com o
meio ambiente, entre outros, exige uma
abordagem especial. Em termos práticos,
isso somente é possível por meio de
ações de produção de conhecimento,
de documentação, de sensibilização da
sociedade, de promoção e de apoio às
condições sociais e materiais de existência.

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acontecem nos municípios de Aracaju,
Laranjeiras, Nossa Senhora do Socorro,
Pedra Grande. Outro festejo tradicional
é o chamado “Forrótototó”, que teve sua
primeira edição em 2017 onde grupos
A ligação direta dos canoeiros com as
tradicionais de forró pé de serra tocam
demais atividades de bens culturais
dentro das Tototós durante a travessia.
relacionadas a Barra dos Coqueiros e ao
Rio Sergipe como os grupos folclórico do
Assim as tototós desenha-se na história
samba de coco, catadoras de mangaba,
como ​marca registrada e de fundamental
pescadores, traduzem um modo de vida
importância, não somente dos moradores
ainda pouco conhecido. ​ A presença do
da Barra, mas do povo sergipano. ​A ssim,
sincretismo religioso Católico é bastante
não é mais possível falar de Aracaju e de
presente na tradição dos canoeiros, como
Sergipe sem lembrar do papel fundamental
por exemplo as procissões luviais da
cumprido pelas Tototós.
festa de Bom Jesus dos Navegantes que

A culinária está diretamente ligada


aos canoeiros, além dos pescados, o
cultivo da mangaba é bastante forte e
sinônimo de resistência de mulheres,
mais conhecidas como “catadoras de
mangaba”, usam as embarcações para
transportar e comercializar os doces e
derivados da fruta.

Há uma estreita ligação entre o O uso das embarcações


ofício dos canoeiros e o grupo para a procissão fluvial de
de Samba de Coco da Barra dos Bom Jesus dos Navegantes
Coqueiros, além da relação do tornou-se tradição e valor
ofício, muitas dessas mulheres não só na travessia Aracaju-
são casadas com canoeiros ou Barra, mas em outros
pertencem à família. municípios do Estado.

O “Forrótototó” teve sua Assim como as Tototós, Zé


primeira edição em 2017, onde Peixe fez história nas águas
grupos tradicionais de forró pé do Rio Sergipe e tornou-se
de serra locais tocaram dentro patrimônio do Estado.
das Tototós durante a travessia,
atraindo um vasto público,
principalmente turistas.

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Rian Santos

O s atores do Boca de Cena têm os pés


firmes no Bugio, periferia de Aracaju.
Mas jamais deixaram de amar o longe e
a miragem. Fundado em 2005, pelo ator
Rogério Alves, o grupo adotou a linguagem
do teatro popular com o fim de alcançar o
grande público. Hoje, quase duas décadas
depois, após conquistar uma sede própria
e a chancela do Departamento Nacional
do Sesc, o Boca de Cena continua o
mesmo e não perde oportunidade de se
apresentar no olho da rua.

É assim desde a montagem de ‘João


Grilo entre o céu e o inferno’, o primeiro
espetáculo a constar no repertório do
grupo, encenado a céu aberto. Deste Espetáculo ‘João Grilo Entre
começo, Rogério conserva a ciência de o Céu e o Inferno’ (2006)
uma identificação profunda entre o Boca
de Cena e a comunidade, um laço atado
desde o início do grupo.

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“O Bugio foi um bairro com uma
efervescência cultural muito forte na
década de 80, é habitado por diversos
artistas populares. Infelizmente, o
Bugio apresentado na mídia é apenas
um bairro periférico de Aracaju com
índices altíssimos de criminalidade.”

Rogério continua, agarrado ao papel


transformador do teatro:

“Neste sentido, a nossa atuação é buscando parcerias com grupos


muito consequente. Desde 2010, locais e de outros estados, artistas
quando o grupo se firma no Bugio, de renome nacional e internacional,
com a ocupação de um posto de apresentando a potência criativa
saúde desativado, tentamos reverter deste lugar para o Brasil inteiro. Se as
essa impressão sobre o bairro que nos periferias foram abandonadas pelo
viu nascer como grupo promovendo o poder público não foi com a nossa
exercício artístico dentro da periferia, colaboração.”
dialogando com a comunidade,

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2017
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G ab
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Engana-se quem vislumbra no teatro Tudo começou com uma ligação


popular e de rua uma linguagem interurbana. Após ser intimado por
engessada. ‘Os cavaleiros da triste figura’, telefone, o diretor Fernando Yamamoto
o espetáculo mais recente do Boca de (Clows de Shakespeare/RN), de quem
Cena, por exemplo, foi concebido em chão Rogério Alves se aproximou durante
impossível, entre um lugar e outro, como participação anterior no Festival de
um andarilho íntimo de todos os caminhos Guaramiranga (CE), convidou a trupe
que no próprio passo inventasse a estrada. para uma conversa olho no olho, em

14 | Cumbuca 2019
Salvador. E lá, no Corredor da Vitória,
lhes impôs a leitura do Dom Quixote.

O método sugerido por Yamamoto


consistia na leitura completa do livro.
Cada capítulo deveria ser vivido em ato.
Nesse processo, personagens acabaram
ganhando vida, à medida em que
situações foram transportadas para a
realidade do palco. Isso durou pouco mais
de um ano, um dia depois do outro, até
quando a experiência entre quatro paredes
exigiu a organização de uma dramaturgia
propriamente dita. Antes mesmo de deitar
a primeira palavra no papel, entretanto, o
escritor César Ferrário tratou de mergulhar
no frenesi coletivo. E o fez de peito aberto,
redigiu o texto durante a convivência com
o grupo, disposto a acompanhar a viagem.

Logo se nota, ‘Os cavaleiros da triste


figura’ reuniu profissionais do país inteiro,
uma equipe da maior competência e
diversos sotaques. Ator e produtor do
grupo, com a responsabilidade de fazer
as contas e viabilizar o impulso criativo
da turma, Rogério explica que o cartão
de crédito resolveu as questões práticas,
financiando hospedagem e passagens. Sem
a solidariedade dos artistas envolvidos,
contudo, o espetáculo não teria pernas
para chegar tão longe.

“Eles acreditaram em nosso sonho.


E, por isso, sempre lhes seremos muito
gratos”.
Foto: Pritty Reis

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Não por acaso, ‘Os cavaleiros da triste figura’
ganhou o País inteiro. Contemplado pelo
projeto Palco Giratório, do Departamento
Nacional do Sesc, dedicado ao mapeamento
e a circulação teatral, o grupo Boca de
Cena se apresentou em dezenas de cidades
brasileiras, percorreu o País de cabo a rabo.

Segundo Rogério, as trocas realizadas nesse


período,com o patrocínio do Sesc, a riqueza
de um processo desenvolvido ao longo de
tanto tempo, coroado pelo sucesso, impõem
novas metas e uma disciplina muito rigorosa
para o grupo. Ambição sem limites. A ideia é
mudar o mundo. Se o sonho é uma empresa
de doidos, como o espetáculo afirma com
todas as letras, não há por que conformar as
possibilidades da criação às circunstâncias
sempre tacanhas da realidade.

2019 Cumbuca | 19
Antonio Passos

O Burundanga Percussivo começou


como um desejo que tomou conta
da cabeça do percussionista Pedro
Um grito pela ampliação da diversidade
era o que diferenciava e dava encanto ao
Burundanga naquele contexto: variedade
Mendonça. Houve então um período de visual e gestual dos participantes – em
gestação, de preparação para transformar contraposição aos trajes e movimentos
aquela vontade concebida em realidade. sempre muito uniformizados – e os
No dia 08 de dezembro de 2006 o bloco dialetos musicais batucados e cantados –
foi parido nas ruas, de onde não saiu mais. oferecendo um contraponto ao monopólio
da “axé music” e outros modismos.
Eu vi e ouvi o Burundanga pela primeira
vez em um Pré-Caju. Um bloco de No ano de 2012 tive a oportunidade
percussão desfilando com o pé no chão, de me aproximar do Burundanga,
sem aparato eletrônico para propagar o ingressando como participante de uma
som, pipocou inusitado. Espremido entre oficina de percussão e aspirando vir a
trios elétricos e batucando ritmos vindos de integrar o bloco. De lá para cá pude
folguedos sergipanos, o coletivo percussivo perceber que o Burundanga vai muito
irradiou esperança na abertura de espaço além do que poderia ser definido como
para a criatividade artística, no meio um projeto estritamente musical. Trata-
de uma festa que era pura massificação. se de uma vivência comunitária ao redor

20 | Cumbuca 2019
Burundanga na Atalaia (2016) Foto: Igor Azevedo

do maestro Pedro Mendonça, incluindo enredo é o maestro Pedro Mendonça e ele


aprendizados artísticos, muitos diálogos tem um jeito muito próprio de tocar a vida
e encontros que se estendem para além – característica essa amiúde observada em
dos ensaios e das apresentações públicas. artistas. Agora, ao ser estimulado pelo
O Burundanga se constitui como uma editor da Cumbuca, o jornalista Amaral
escola aberta e um bloco percussivo que Cavalcante, e apresentar um texto sobre
identifica um coletivo flutuante. Gente o Burundanga Percussivo, procurei o
nova está sempre chegando. Há os que maestro para um papo que servisse de
já partiram desta existência e continuam arremate – mesmo que provisório – para
compartilhados em memória. Muitos se o que venha a ser publicado. Assim, em
afastam temporariamente e retornam. muitas conversas avulsas e nessa mais
Em todos os casos permanece a sensação recente foi onde colhi as informações que
coletiva de pertencimento. procuro articular neste relato.

No decorrer da minha caminhada no


Burundanga comecei a ter acesso a
narrativas sobre o nascimento e a história do
bloco – não de um modo sequencialmente
organizado. O contador primordial desse

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2017
Pedro Mendonça estudava trompete no Amorosa e Rogério. Em certo momento,
Conservatório de Música de Sergipe e foi conta o maestro, não o contentava mais
passar uns dias em Salvador para ter aulas apenas tocar. Diz que passou a sentir
no Teatro Castro Alves com um aclamado um desejo incontornável de transmitir o
instrumentista e professor. No intervalo conhecimento musical adquirido e formar
dos estudos, ele viu ensaios do Balé grupos a partir da prática do ensino.
Folclórico da Bahia (BFB) e ficou fascinado
– tanto pela dança quanto pelo som dos No Centro de Criatividade iniciou um
atabaques. Essa é a primeira imagem primeiro curso do qual participaram
relacionada por Pedrinho à concepção do Betinho Caixa D’Água, Tonico De
Burundanga. Ele afirma que, anos depois, Ogum, Saci, Bidui e Pedro Luiz (o Pedão).
quando veio a vontade de realizar o bloco, Entretanto, a metodologia de ensino
lembranças das movimentações cênicas empregada, aprendida no Conservatório
e das sonoridades vistas e ouvidas nos de Música, não agradava ao maestro. Foi
ensaios do BFB emergiram da memória quando ocorreram algumas descobertas
compondo a inspiração. diretamente ligados ao nascimento do
Burundanga. A produtora cultural e
No Conservatório de Música Pedrinho amiga Suzana Vasconcelos falou com
conheceu e tornou-se aluno do professor Pedrinho sobre a existência de um método,
e percussionista pernambucano Wallace desenvolvido no Rio de Janeiro, que
Patriarca. A partir de então dedicou- estava sendo utilizado para a formação de
se à percussão e alcançou destacada grandes blocos de percussão e presenteou
desenvoltura, atuando tanto no ambiente o maestro com CDs de dois desses blocos:
da música erudita quanto acompanhando Bangalafumenga e Monobloco. O método
artistas da música popular, entre os era “O Passo”, criado pelo músico Lucas
quais: Antônio Carlos du Aracaju, Ciavatta.

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Pedrinho Mendonça

2019 Cumbuca | 23
Num lampejo diz ter vindo o título de
um livro que havia ganhado recentemente
do escultor Augusto Gustô: “Brefaias
e Burundangas do folclore sergipano”,
de autoria de Carvalho Déda (lançado
originalmente em 1967). Pronto! O nome
era este: Burundanga – uma palavra que
soa quase como um bater de tambor.

De volta a Aracaju e inspirado por uma


ilustração que tinha visto na Bahia, de um
homem negro tocando timbau, Pedrinho
rascunhou uma nota musical com um
djimbe, apresentou a Augusto Gustô e
solicitou a finalização do desenho. O
escultor fez a arte preenchendo em preto
a nota musical. Dias depois, outro artista,
Vinícius Teiole, sugeriu um desenho
substituindo o preenchimento em uma só
cor e assim foi finalizada a marca do bloco
– a semicolcheia tocando djimbe.

Pedrinho enxergou no método “O Passo” Com o nome e a marca definidos o maestro


exatamente o que procurava e fez uma recebeu um convite de André Tunes (o
primeira experiência. Reuniu algumas Rato), para a realização das oficinas e
pessoas – entre as quais Ana Badyally, ensaios do futuro bloco em um casarão
Débora Bahia, Marcelo Rangel e Suzana antigo localizado no bairro Industrial.
Vasconcelos – e, durante uma semana, Além das pessoas que tinham participado
trabalharam com o novo método. O da primeira rodada de aplicação do método
resultado empolgou o grupo e a vontade de “O Passo”, o grupo foi encorpando e
realizar aquilo que veio a ser o Burundanga começaram os ensaios. Nessa nossa recente
estava concebida. No decorrer de 2006, o conversa – certo de ter esquecido outros
maestro foi ao Rio de Janeiro e fez um nomes – Pedrinho lembrou de algumas
curso voltado para a aplicação do método pessoas que passaram a frequentar os
“O Passo”, com o próprio Lucas Ciavatta. ensaios do bloco, no tempo do casarão
Daí pra frente, o desejo concebido não do bairro Industrial: José Carlos Mauá,
parou mais de pulsar. Em outra ida a Rosângela Rocha, Murilo Smith, Samuel
Salvador, na companhia de Ana Badyally Júnior, Lúcio Telles, Rogério (o cantor e
e do músico Júlio Rego, vieram mais compositor), Jorge Taioba, Hélder Dantas,
alguns elementos. Pedrinho conta que fora as irmãs Gabriela e Ana Paula Nicolau…
levado até a praia do Porto da Barra para O primeiro ritmo ensaiado foi o Ijexá, por
ver o pôr do sol. Lá, pouco interagia com ser bastante popular. Logo em seguida,
as companhias, tomado que estava pela foram introduzidas as sonoridades dos
ideia de criar e dar um nome ao bloco. folguedos sergipanos.
24 | Cumbuca 2019
Embora os ensaios no casarão do bairro véspera do aniversário do bloco não havia
Industrial tenham sido muito badalados uma informação precisa sobre a chegada
e atraído plateia, restou convencionado dele em Aracaju. Assim mesmo o coletivo
que o nascimento do bloco Burundanga compareceu ao local da comemoração.
Percussivo deu-se quando da primeira Por volta do meio dia lá chegou o maestro
apresentação em um espaço público. para comandar a festa.
Isso aconteceu na manhã do dia 08 de
dezembro de 2006, no Parque Teófilo Com os pés no chão ou sobre palcos
Dantas, no centro de Aracaju, durante as armados em locais abertos, o Burundanga
celebrações em homenagem à orixá Oxum. fez a maioria de suas apresentações nesses
De lá para cá, todos os anos, o aniversário quase 13 anos de existência. Seria um
do bloco é comemorado no mesmo local, trabalho muito exaustivo, minucioso
com uma apresentação. Pedrinho lembra e talvez irrealizável levantar e registrar
que até 2018 a comemoração não ocorreu cada uma dessas aparições públicas já
apenas uma vez. acontecidas. Quando os integrantes do
bloco tocam no assunto e começam a
Envolvido com alguns outros projetos relembrar apresentações memoráveis,
musicais além do Burundanga, desde de sempre surge uma lembrança nova e outras
2013 o maestro viaja com regularidade muitas vezes reiteradas: nas festas de
para a Bélgica, sempre no segundo semestre Oxum, no Pré-Caju (inicialmente no chão
do ano, onde desenvolve com outros e depois no trio elétrico), em Recife, na
músicos, sergipanos e belgas, o projeto posse de Marcelo Déda como governador,
“Anavantou”. Durante essas viagens o na Rua da Cultura, no carnaval do
Burundanga vem mantendo a agenda Rasgadinho e do bloco “Eu só se fico, se
de ensaios, sendo regido pelo músico se você não só se for”, no Festival de Artes
Gabriel Mendonça – um dos filhos do de São Cristóvão, no bar Maori na Coroa
maestro. Certa vez, o bloco foi avisado de do Meio e mais recentemente no Parati,
que Pedrinho, voltando da Europa, havia na Marcha das Vadias, no carnaval e na
desembarcado no Rio de Janeiro, onde festa de Iemanjá em Salvador, no Museu
acompanharia Patrícia Polayne em alguns da Gente e na inauguração do Largo da
shows. O tempo foi passando sem que aqui Gente Sergipana… Impossível relembrar
chegassem notícias mais detalhadas. Até a tudo de uma vez só.
Foto: Igor Azevedo

Cortejo no carnaval do Conjunto Inácio Barbosa (2017)

2019 Cumbuca | 25
Apresentação na Reciclaria (2017)

Atualmente o Burundanga Percussivo Maracatu e do Ijexá, mas, sobretudo, as


ensaia no Museu da Gente Sergipana. batidas vindas de folguedos sergipanos:
Periodicamente o bloco oferece oficinas de Bacamarteiros, Caceteira, Cacumbi,
percussão ou de instrumentos específicos. Marujada, Nagô de Laranjeiras, Pisa
Quem entra no bloco faz opção por um Pólvora, Samba de Pareia, São Gonçalo,
dos naipes de instrumentos disponíveis: Taieira…
alfaia, caixa, tamborim, agagô, xequerê
e pandeiro. O repertório inclui algumas Além dos cortejos nas ruas, o bloco tem
canções de origem variada, ritmos feito muitas apresentações em parceria
brasileiros mais tradicionalmente ligados com outros artistas. Mais recentemente,
a outros estados, e exemplo do Samba, do o Burundanga esteve em apresentações

26 | Cumbuca 2019
Foto: Igor Azevedo

com Pífano de Pife, Patrícia Polayne, informação sobre a agenda nas redes sociais
Jaque Barroso, Dudu Prudente, Ananda e e comparecer a um dos encontros. Mais
Meire Barreto, Nadir da Mussuca, Kleber que ambiente de aprendizado e prática
Melo, Sandyalê, Heitor Mendonça, Bruna musical, a comunidade Burundanga é
Ribeiro, Bento Adami, Lula Ribeiro, aconchego para novas chegadas, idas e
Saulo Fernandes, Sylvia Patricia, Jeca, vindas, partidas e retornos – no calor do
entre outras e outros. sortimento de vivências e batuques.

Sem muita formalidade, como é do


estilo dele, o maestro informa que para
acessar e participar do bloco é só buscar

2019 Cumbuca | 27
Páginas da obra “(RE)invenção da pai-
sagem doméstica: Fábio Sampaio”
(2018), organizado por Mário Britto.
Figuras das obras do artista foram
extraídas e utilizadas para compor a
visualidade da página.

28 | Cumbuca 2019
Fragmento de desenho elaborado
para a obra “Estrela-D’Alma” (2018)
de Ilton Marques.

Em uma sociedade pautada na di- gênio criativo foi colocado em um pe-


visão social do trabalho, estabe- destal pelo movimento romântico, é,
lecendo-se na separação entre o na verdade, apenas um dos elemen-
pensar (espiritual/intelectual) e o tos de uma complicada cadeia produ-
arquivo pessoal.

fazer (manual/material), na histó- tiva” (Ibdi., 2011, p. 12). Quer dizer que
Imagens de

ria da produção de livros os conte- o autor de um texto é visto como o


údos verbais e seus autores sempre único responsável pela produção inte-
tiveram maior significância do que lectual de um livro (sujeito pensante),
os profissionais que tornam os es- sendo que o objeto-livro consideran-
critos em livros. Poucas críticas são do, inclusive, a concepção dos ele-
encontradas sobre o fato de que mentos que o constitui para propor
“autores não escrevem livros; eles uma leitura amigável – como forma-
escrevem textos. Os textos são to, tipo de papel, tipografia, lingua-
moldados, transformados e inter- gem gráfica, leiaute e processos de
pretados por editores, designers e interação — é resultado do projeto, do
ilustradores” (LYONS, 2011, p. 12). pensar de um designer. Nesta pers-
O que Martyn Lyons, em sua obra pectiva, de compreender a função de
intitulada “Livro: uma história viva”, cada um dos profissionais necessá-
está tentando chamar atenção é rios para a produção de livros, busco
para a rede de profissionais neces- o meu lugar de fala que é a de uma
sária na produção de um livro. designer, especificamente do campo
Portanto, segundo ele, “o autor, cujo do Design Editorial.

2019 Cumbuca | 29
Conversando com a jornalista e autora da
obra “Tempo bom, tempo ruim” (2019) Ilma
Fontes. Para melhor compreender quais
são os aspectos visuais que devem ser
considerados para o desenvolvimento do
projeto gráfico do livro, além de ler o tex-
to, é importante perceber as preferências
artísticas dos autores.
Foto de Márcia Guimarães

As definições sobre o campo do De- O que parece contraditório é que as


sign Editorial não diferem muito na tais “correlações coerentes entre
literatura clássica. A maioria dos página de livro e mancha tipográ-
livros servem de guia prático, en- fica”, mencionadas por Jan Tschi-
fatizando uma atuação profissional chold, são resultados de estudos
a partir de conhecimentos técnicos realizados nos manuscritos da Ida-
e excluem a possibilidade de o de- de Média, e segundo Martyn Lyons,
signer atuar de modo artístico. O além de preocupar-se com clareza
tipógrafo e designer alemão Jan Ts- e legibilidade, o manuscrito medie-
chichold (1902-1974), em sua obra val era uma atividade desempenha-
intitulada “A forma do livro: ensaio da por especialistas; escribas que
sobre tipografia e estética do livro” além de executar a cópia com pre-
(2007), é explicitado que “quanto cisão técnica, também atribuíam
mais significativo é o livro, menos importância a um fazer artístico na
é o espaço para o artista gráfico se decoração da página. Como explici-
posicionar e documentar, por meio ta Albert Labarre (1927-2010), em
de seu ‘estilo’ [...]” (TSCHICHOLD, “História do livro” (1981), “a repu-
2007, p. 32). Segundo esse autor, tação dos manuscritos medievais
o designer ou “artista visual” preci- vem sobretudo da sua decoração,
sa se distanciar da sua própria per- a ponto de por vezes fazer esque-
sonalidade artística para manipular cer os outros aspectos” (LABAR-
dados técnicos e configurar um livro. RE, 1981, p. 27). Certamente, um
A partir desse pensamento, pode-se escriba era escolhido por seu co-
acreditar que fazer um livro é apenas nhecimento técnico, mas também,
diagramar páginas em vez de conce- por sua personalidade artística,
ber a arte dele como um todo. sua propriedade intelectual.

30 | Cumbuca 2019
Obra “Bonita Maria do Capitão” (2011). O
projeto gráfico desse livro, após três anos
de pesquisa, foi desenvolvido em seis me-
ses. Os elementos gráficos passeiam por
todos as páginas e estabelecem diálogo
com os conteúdos dos autores-colabora-
dores. É certo que para desenhar os ele-
mentos gráficos do livro tive como inspi-
ração os objetos do cangaço. Contudo, os
desenhos são parte de meu processo de
interpretação, ou seja: o modo como eu
senti ser possível representar aspectos
do cangaço para inserir o público-leitor
no cenário.

Consultando a bibliografia especí- Imagens de arquivo pessoal. Prêmio Aloísio


Magalhães
fica da atualidade, no geral acre-
da Fundação
dita-se que: Biblioteca
Nacional
em 2012.
O design de material editorial cumpre diferen-
tes funções, tais como dar expressão e per-
sonalidade ao conteúdo, atrair e manter os
leitores, estruturar o material de forma clara.
Essas funções têm de conviver e trabalhar jun-
tas de forma coesa para configurar algo que
seja agradável, útil e informativo [...] (ZAPPA-
TERRA; CADWELL, 2014, p. 10).

Essa definição aparenta ser me-


nos rígida, entretanto, ainda não
abre espaço para que o designer
possa propor uma experimenta-
ção estética para o leitor, a partir
de suas escolhas pessoais. E essa,
sob meu ponto de vista, é a tare-
fa mais complexa de um designer:
criar uma página que proponha um
diálogo visual entre o conteúdo de
um autor e sua personalidade ar-
tística, ainda considerando aspec-
tos de recepção de um determina-
do público leitor. De fato, não é
uma tarefa fácil.

2019 Cumbuca | 31
Produzir Para compreender a minha relação Elaborava os textos e as ilustra-
livros tem com a produção de livros, dou rele- ções, mas, sinceramente, meu
a ver com vância que sou filha de professores prazer maior estava em produzir
gostar de e costumava presenciar meus pais o objeto-livro em si. É pena que,
livros! em constante prática de estudo e desde essa época, em casa ou na
escrita. Nos anos de 1980, semanal- escola, eu comecei a compreender
mente, talvez reproduzindo minha que o interesse das pessoas estava
mãe, sentava à frente da máquina na história e não como eu conse-
de escrever Olivetti dela e começa- guia compor visualmente a página
va uma nova história, preocupada e montar um livro; como se a ati-
principalmente com a composição vidade intelectual apenas estives-
dos elementos em uma página. se na escritura de um texto! Mais
adiante, meados dos anos de 1990,
Aos 12 anos de idade, eu já compu-
já no Curso de Desenho Industrial
nha livros em formato de códice1,
na Universidade Federal da Paraí-
elaborava capa e encadernava-os
ba, coincidentemente, também me
com grampo.
debruçava mais na composição das
páginas da apresentação do que no
projeto em si.
Era notório como a experimenta-
ção gráfica fazia parte da minha
Na foto: eu e 1 Mesmo sem afirmar a origem do uso do ter- narrativa projetual e, desta vez,
minha irmã mo, Miguel León-Portilla explicita que a pala-
vra códice apenas foi utilizada com frequên- a visualidade proposta chamava
Paula lendo no
jardim de casa cia pelos europeus em meados do século XIX. bastante atenção dos outros. Per-
(LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 7-8). O códice é ob-
em um sábado cebi que as tarefas de representar
jeto-livro, que além de ser fácil de portar, tor-
ensolarado,
1979.
nava possível inserir conteúdos nas duas faces graficamente objetos e compor
da página; foi uma invenção revolucionária e
duradoura na produção de livros; tinha páginas páginas seriam os meus desafios
Foto: Arquivo
pessoal individuais unidas por costura de um lado (ge- de sempre. Nesta época, não tínha-
ralmente o esquerdo).

32 | Cumbuca 2019
mos o auxílio do computador como pergunta constante. Penso que a
ferramenta de execução gráfica. interpretação visual do conteúdo
Todo o trabalho era manual. verbal do autor deve gerar diálogos
Fora da academia, passei a atuar e nunca hierarquizar. E neste sen-
profissionalmente mais na área do tido, o autor deve sentir-se parte
Design Gráfico do que em Projetos desse processo criativo, assumin-
de Produto. Desenvolvia marcas co- do também, ou tão bem, as esco-
orporativas, embalagens, catálogos lhas do designer. Quero dizer que a
e Revistas, e somente em 2009, eu proposição do designer é uma en-
fiz o primeiro projeto de livro; foi a trega e, por isso, deve estabelecer
obra de poesias intitulada “A Casa afetividades, seja com o universo
das Ausências” de Ezio Déda. Um simbólico acerca do tema e as pos-
início bem complexo já que para re- sibilidades de representações, ou
presentar com desenhos a poesia é mesmo com as técnicas de experi-
preciso compreender e se sensibi- mentação gráfica. Na obra “A casa
lizar com a semântica do texto. A das ausências” (2009), cada poe-
dificuldade está na interpretação sia foi interpretada com desenhos
de um gênero literário que expõe configurados a partir de elementos
aspectos pessoais de um autor e, da arquitetura de Sergipe. A arqui-
sendo assim, temos que desenvol- tetura foi pensada como objeto de
ver aproximação emocional com o estudo e inspiração por causa da
texto, ou experimentação estética, semântica dos textos e da forma-
para poder se envolver. ção do autor; Ezio Déda é arquite-
E como não se sentir invasiva se o to e expõe, em suas poesias, sua
desenho que eu fiz era a minha ver- “casa” e os engendramentos das
são da poesia do autor? Essa é uma relações familiares dele.

2019 Cumbuca | 33
Capa da obra “Barcelona: Guel Silveira” (2017), organizada
por Mário Britto. Imagens de arquivo pessoal.

Nos últimos cinco anos, eu produ-


zi livros de artes, principalmente
de artistas sergipanos, em parce-
ria com o curador Mario Britto.
O curioso desses projetos é que,
quase como configurar texturas
visuais, eu utilizo da própria obra
Entre 2009 e 2019. já produzi o pro- do artista para construir minhas
jeto gráfico de mais de 50 livros de composições.
diversos gêneros e coordenei a pro- Em 2019, tive um desafio gran-
dução de outros mais 100 títulos. dioso: o projeto gráfico do livro
Mas sem dar importância ao quanti- “A vida me quer bem” de contos
tativo, relevo que em 10 anos de pro- do jornalista Amaral Cavalcante.
dução de livros, consegui estabelecer Ele convidou quatro artistas locais
um modo criativo que anuncia minha para interpretarem visualmente
personalidade artística. Acredito que o seu texto, suas histórias. Cada
um leiaute de página comprometido artista teve acesso a um capítulo
com uma abordagem extremamente e fez uma arte para ser inserida
numa das separatrizes; página de
funcional, como sugere o Jan Tschi-
abertura de capítulo. Após eu ter
chold, pode gerar rigidez; e, então,
recebido as artes, em um processo
penso que a rigidez contrapõe a flui-
de desconstrução gráfica, extraí
dez, interferindo, de maneira negati-
alguns elementos utilizados pelos
va na visualidade da página, desabili-
artistas em suas composições,
tando o que pode ser necessário para para configurar partes do livro.
propiciar uma relação de uma estima
positiva no processo de interação
entre leitura e leitor. Por isso, mes-
mo que eu utilize de uma malha (ou
grid) para orientar a disposição dos
elementos, tento configurar cada pá-
gina como sendo única. Meu mantra
é que a constância não é uma vanta-
gem, mas um prejuízo, limitando a
visualidade da página a um conjunto
previsível de soluções!

34 | Cumbuca 2019 Páginas da obra “A vida me quer bem” (2019), de


Amaral Cavalcante. À direita-inferior, obra do
artista e designer gráfico Felipe Xokó.
2019 Cumbuca | 35

Tipografia “Fitas” de Vitor Rodrigues.


Imagens de arquivo pessoal.
Páginas da obra “A vida me quer
bem” (2019), de Amaral Cavalcante.
Visualidade construída com frag-
mentos das obras de Gabi Etinger,
Um arranjo ou leiaute funciona Fábio Sampaio e Elias Santos.
quando o designer vai além
da uniformidade implícita
da estrutura e consegue
compor uma narrativa visual
dinâmica, possibilitando
manter o interesse do
leitor ao longo da página!

36 | Cumbuca 2019
A tarefa de compor a visualidade de de códices, desde as oficinas mo-
uma página, utilizando para isso os násticas da Idade Média, a confecção
elementos de outros artistas, é bas- de livros é uma atividade exercida
tante recorrente em meu processo por homens; geralmente por mon-
criativo. Debruço-me na relação de ges experientes. Na atualidade algu-
sentido proposta por eles, porém mas designers já aparecem no ce-
construo outras possibilidades de nário da produção de livros, como a
composição visual; recorto da arte paulistana Eliana Ramos, que atuou
deles elementos que me inspiram a na editora Cosac Naify, mas a figu-
construir outros arranjos, sem que ra profissional do homem ainda é
eu precise desapropriar o sentido de agressivamente preponderante. Em
origem. Nesta obra, as composições Sergipe, temos como referência o
de minha autoria misturam elemen- trabalho da designer Gabi Etinger, o
tos de todas as quatro artes e, desta qual apresenta componentes artísti-
maneira, tento ampliar a interação cos sem igual. O que estou tentan-
do leitor com as composições dos ar-
do dar relevância é o quão oportuno
tistas, já que fragmentos das propos-
está sendo apresentar o meu pro-
tas visuais deles migram para outras
cesso criativo aqui na Revista Cum-
partes do livro.
buca para estabelecer representati-
Para concluir esse ensaio, penso
vidade feminina no cenário do Design
que seja importante dar relevo à Editorial, já que a literatura específi-
questão de gênero no campo do ca ainda não se ocupa em apresen-
Design Editorial. Deve-se ter em tar, com proporcionalidade, a desig-
vista que na história da produção ner que produz livros.

REFERÊNCIAS

LABARRE, Albert. História do livro. Tradução de Maria Arman-


da Torres e Abreu. São Paul: Cultrix; Brasília: INL, 1981.
LEÓN-PORTILLA, Miguel. Códice: os antigos livros do novo
mundo. Tradução de Carla Carbone. Revisão técnica de Eduar-
do Natalino dos Santos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.
LYONS, Martyn. Livro: uma história viva. 1° Ed. Tradução de
Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2011.
TSCHICHOLD, Jan. A forma do livro: ensaio sobre tipografia e
estética do livro. Tradução de José Laurênio de Melo. Cotia/SP:
Ateliê Editorial, 2007.
ZAPPATERRA, Yolanda; CALDWELL, Cath. Design editorial:
Jornais e Revistas/mídia impressa e digital. Tradução de Edson
Furmankiewicz. 1. ed. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.

gedesenhadora.wordpress.com

Cumbuca || 37
2019 Cumbuca
2019 37
Mário Britto e o
Mercado Sergipano
de Artes Plásticas
“Sergipe não fica a dever ao Brasil em artes visuais”
Por Jozailto Lima

A
s artes plásticas em Sergipe, as ar- Augusto da Silveira, o sergipano de Aracaju
tes visuais, de alguns anos para cá – que muitos pensam ser de Lagarto – e que,
não podem se dizer órfãs de um na década de 1940, se mudou para a Bahia
olhar zeloso, crítico, estudioso, depois de pintar os painéis do Cacique Chá.
potencializador e protetivo. Este, porém, sem De lá, a partir de Salvador, fez uma revolução
ser paternalista. Esse olhar vem de Mário Bri- no âmbito do Nordeste no tocante à pintura
tto, 55 anos, um sujeito que joga, generosa- modernista, emparelhando-se a Di Cavalcan-
mente, em uma dezena de posições quando ti e a Cândido Portinari. Ultimamente, Mario
estão escaladas as atividades das artes visuais Britto se ocupa da edição do livro “A Vida
– pinturas, fotografias, esculturas – conce- Me Quer Bem” do cronista Amaral Caval-
bidas por sergipanos, além de atividades da cante.
memória ligadas a elas. Do alto dessa atalaia de observação da vida
Mário Britto tanto fez e faz pela área que das artes plásticas sergipanas, Mário Britto
hoje é nome de galeria, a mais diversa e ba- não tem medo de errar em sua conclusão:
dalada de Sergipe, localizada na Rua Villa “Sergipe não deixa a dever ao Brasil em artes
Cristina (ao lado da Semear). A galeria Mário visuais”, diz.
Britto expõe uma das maiores e mais expres-
sivas coleções de artes plásticas de Sergipe. Mário Britto – de certa forma, até diferen-
Ele monta exposições, envolve-se com sa- temente das outras expressões artísticas, na
lões e, até, e sobretudo, com trâmites que co- parte das artes visuais há um bom trilho sen-
locam artistas plásticos sergipanos em conta-
to com o mundo, em eventos internacionais.
É, às vezes, caçado nas ruas e em eventos por
quem garatuja um traço aqui e outro ali e quer
chancela para ser artista plástico.
A ponta maior do iceberg protetivo e poten-
cializador das artes plásticas em que se trans-
formou esse tal Mário Britto, um advogado
e procurador do Estado de Sergipe com for-
mação pela Universidade Federal de Sergipe,
está no arsenal de livros que escreveu sobre
o tema: nada menos que 22 ao todo. Entre
estes, quatro sobre a vida e a obra de Jenner

Portal JL Política (http://jlpolitica.com.br/)


38 | Cumbuca 2019
do percorrido em Sergipe. O Estado tem uma MB – Jamais. Eu defendo que não há hie-
tradição nas artes visuais, que remonta ao sé- rarquia na arte, nem temporal, nem técnica.
culo XIX, com Horácio Hora, que vai para A arte tem que ser boa, produzida por gente
Paris e denuncia, no bom sentido, a existência talentosa. Se a obra foi feita no século XIX,
de uma arte ainda no século XIX, início do XX e XXI, se é uma paisagem abstrata ou
século XX, acontecendo no Brasil e, particu- acadêmica, nada disso importa, todas têm o
larmente, em Sergipe, quando ele se torna um seu valor próprio.
dos importantes representantes do Roman-
tismo na cultura internacional. Isso já dá o JLPolítica – Há uma demanda interna
tom dessa tradição. Jordão de Oliveira, tam- ativa ou dormente em Sergipe?
bém no comecinho do século XX, vai para o MB – Ativa e crescente, e me sinto feliz,
Rio de Janeiro, recebe uma bolsa e vai para porque dentro das expressões da arte, na mi-
a Escola de Belas Artes, levando o nome de nha opinião, talvez por eu estar mais perto
Sergipe. Jordão era um bom anfitrião e rece- dela, a arte visual é a que mais aparece no ce-
bia os contemporâneos e conterrâneos mui- nário artístico nacional e internacional.
to bem, mantendo esse link de Sergipe com
o eixo Rio-São Paulo, que foi onde sempre JLPolítica – Qual foi o momento na his-
ocorreram os grandes eventos das artes plás- tória das artes plásticas em que o Estado
ticas. Diante disso, Sergipe não deixa a dever mais falou alto?
ao Brasil em artes visuais. MB – Tivemos alguns momentos e com
vários artistas, mas destaco Jenner Augusto,
JLPolítica – E no aspecto da contempo-
raneidade? quando ele pinta os painéis modernistas para
MB – Hoje, com os fóruns, os debates, os o Cacique Chá, e quando, em 1949, ele vai
festivais, a arte contemporânea tem alguns para a Bahia e se envolve com toda a efer-
protagonistas importantes em Sergipe, pelo vescência cultural que lá acontecia. Sergipe
menos o grupo liderado por Fábio Sam- sempre teve essa ligação com a Bahia e com
paio, Bené Santana, Elias Santos, Véio, que Jenner. Outro destaque importante de nossa
eu diria são artistas de vanguarda, que têm pintura é Jordão de Oliveira que, morando
a linguagem da contemporaneidade, da arte no Rio de Janeiro, desde a década de 1930,
conceitual, que envolve questões sociais, sempre recepcionou os artistas conterrâneos,
ecológicas. É uma arte que denuncia, questio-
como Antônio Maia, Zé de Dome, Gervásio
na e vai além de sua missão inicial: emocio-
Teixeira, Zé Lima, Leonardo Alencar, entre
nar. A arte contemporânea, essencialmente,
traz o conceito no desenvolvimento integral tantos outros. Ressalto aqui a importância
do cidadão. de Florival Santos, irmão de outro talentoso
artista, o Álvaro Santos, que fazia de sua re-
JLPolítica – O senhor está colocando os sidência, em Aracaju, ponto de encontro e de
contemporâneos como mais importantes fomento às artes, acolhendo tanto os artistas
do que os do passado, os canônicos? já consagrados como os novatos.

2019 Cumbuca | 39
tista, ministra cursos de pintura no seu ateliê
JLPolítica – Nós somos nostálgicos ao e tem uma geração acontecendo, que estuda,
ficarmos evocando nomes como Jordão que sabe que o talento é nato, mas que tam-
de Oliveira, Horácio Hora, Álvaro Santos, bém é preciso ter técnica e conhecimento
Florival Santos, J. Inácio, Jenner Augus- técnico. Nesse cenário, Elias tem sido muito
to ou não existe o apelo suficiente entre os importante.
contemporâneos?
MB – O nostálgico existe na medida em JLPolítica – Quais são os nomes contem-
que desperta hoje, em Sergipe, um interesse porâneos daqui que hoje pontuariam bem
em resgatar esses grandes artistas do passado. numa coletiva nacional?
Eles permenecem no desejo dos coleciona- MB - Fábio Sampaio é o nome que já pon-
dores, que, hoje, querem tê-los em suas cole- tua muito bem. Eu já tive oportunidade, como
ções. Isso é muito gratificante, porque a ideia curador de Fábio Sampaio, de levar quadros
do colecionismo vem muito desse trabalho dele, para fora do país – França, Áustria—
particular que eu venho fazendo como cole- por ocasião de eventos culturais importantes.
cionador e como incentivador, dizendo a eles O livro dele que eu organizei e editei, foi feito
que não é apenas bacana ter uma parede com em português, francês e inglês, com o inte-
quadros, e sim ter uma parede com histórias. resse de internacionalizar a obra dele. E o que
E os quadros desses artistas contam histórias. você vê nas galerias do mundo hoje é exa-
tamente o que Fábio Sampaio está fazendo
JLPolítica – Quem é que de novo e novi- aqui em Sergipe.
dadeiro levanta o crachá, e arma bem o ca-
valete hoje nesse setor, além desses nomes JLPolítica – Qual é o papel do Estado no
contemporâneos que o senhor citou? fomento às artes plásticas?
MB – Na fotografia, por exemplo, tem MB – Eu acho que o Estado não tem que
muita gente boa. Temos Gilton Rosas, que é ser paternalista. Ele não pode ter essa coisa do
um arquiteto e tem feito fotografias de reper- assistencialismo, mas precisa criar as oportu-
cussão; Fábio Pamplona e Leonardo Santana. nidades. Por exemplo, no âmbito municipal,
A fotografia passa por um preconceito mui- a Galeria Álvaro Santos é um local importan-
to grande, como se ela fosse uma subarte. E te para o fomento da arte, é a primeira galeria
quando eu digo que não há hierarquia é no pública de Sergipe. Lá é realizado o “Salão
sentido mais absoluto: a arte não pode sofrer dos Novos”, que é um importante evento, no
nenhum tipo de hierarquia, muito menos de qual muitos nomes das artes são revelados.
preconceito. Então, na esfera municipal, eu citaria a Gale-
ria Álvaro Santos como um bom palco para a
JLPolítica – Qual o limite da arte para manifestação das artes visuais.
ser chamada de tal?
MB – Ela tem que apenas ser boa. Tem que JLPolítica – Qual foi o papel da antiga
ter essência. Na pintura, Elias Santos é hoje Secretaria de Estado da Cultura frente às
um grande protagonista, porque além de ar- artes plásticas?

40 | Cumbuca 2019
MB – Eu estive na Secretaria durante qua- facilita a comunicação. Mas espero que,
se dois anos, convidado pelo então secretário mesmo transformando-a em Fundação, as
Elber Batalha, que montou uma equipe com ideias que foram colocadas em prática e
pessoas de conhecimento em áreas específi- que deram bastante resultado e visibilida-
cas. Representei as artes visuais e continuo, de, sigam existindo. Até porque como os
de certa forma, a representá-las como mem- editais eram públicos, tivemos exposições
bro do Conselho Estadual de Cultura. En- de artistas de diversos lugares. Também é
quanto estive lá, houve o resgate do Corredor importante, que o ente público foque, no
Cultural, que nada mais é do que um corre- artista sergipano, mas não somente dentro
dor transformado em galeria de arte, no qual, da matriz sergipana. A forma de você tor-
mensalmente, realizávamos exposições. Era nar o sergipano conhecido é tirá-lo da re-
uma oportunidade para convidar o pessoal doma do Estado e levá-lo para fora e trazer
novo para participar de exposições coletivas, o de fora para cá. Não tenho dúvida: é esse
o que já trazia uma amplitude de possibili- intercâmbio cultural, que fomenta e valori-
za as artes visuais.
dades que iam além das artes visuais. Tínha-
mos espaço para outras expressões artísticas,
JLPolítica – Quem consome artes plás-
como o teatro, a dança e a música. Era um ticas em Sergipe, sempre e hoje?
momento muito importante. Foi dado o nome MB – De certa forma, a gente tem que
de Irmão (Wellington dos Santos), um grande desconstruir um pouco o discurso de que
artista sergipano, economista, ex-funcionário consumir arte significa ter dinheiro. Claro
da SECULT. Na verdade, o Corredor Cultu- que qualquer relação de consumo passa
ral Irmão, que já existia no passado, foi res- pelo financeiro, mas consumir arte não é
gatado exatamente nesse período em que eu só no sentido de comprar. Consumir arte é
estive na Secretaria. Como, também, foram apreciar, é também ir a uma exposição.
reconquistados dois outros importantes luga-
res: o Espaço Cultural Leonardo Alencar, no JLPolítica – Quantos quadros o senhor
foyer da Biblioteca Pública, e a antiga Galeria tem pessoalmente?
J. Inácio, que estava há anos sem atividade, MB – Tenho oficialmente uma coleção,
mas que passou a ter exposições periódicas, que é um recorte que resultou em um livro,
selecionadas mediante editais. É dessa forma “Um sentir sobre as Artes Visuais em Ser-
que eu entendo ser o papel do Estado. gipe”. Quando da comemoração dos meus
50 anos, eu elegi, sem nenhum critério mais
JLPolítica – Ficar sem esta Secretaria específico, 50 artistas sergipanos ou artisti-
de Cultura fez falta? camente considerados como tais; desses,
MB – A questão não é a Secretaria fisi- escolhi 120 obras. Hoje, eu vou às escolas
camente em si. É a gestão. Não é a nomen- falar sobre esses artistas, que transitam do
clatura ou o espaço físico que definem as século XIX ao século XXI, nas suas mais
ações e as políticas de cultura. Evidente- variadas manifestações: pinturas, escultu-
mente que uma Secretaria, com o seu status, ras, desenhos, fotografias e arte popular.

2019 Cumbuca | 41
JLPolítica – Os resgates e registros que o o histórico dele: órfão de pai aos seis meses
senhor tem feito em livros de grandes no- de idade, criado por uma mãe professora pri-
mes, como de Jenner Augusto da Silveira, mária, perseguida pela política da época, que
têm que poder de fixação do status das ar- além de sustentar seus dois filhos – o Jenner e
tes plásticas de Sergipe? o Junot –, tinha mais quatro irmãs dependen-
MB – Já são 22 livros. Acho que eles con- tes de seu salário. A condição de pobreza de
tribuíram muito para a valorização das artes Jenner infante e adolescente era muito gran-
visuais em Sergipe, na medida em que retra- de. A família contava com favores da igreja.
tam, em sua essência, os artistas sergipanos. A mãe dele era envolvida com questões reli-
Isso cria um sentimento de pertencimento, de giosas e políticas, o que oportunizava a seus
querer ter uma obra catalogada, de querer sa- filhos a serem coroinhas. Jenner namorou
ber a importância daquele artista. Quem con- uma sergipana de classe média, da família
ta essas histórias são os livros... Esses livros Mendonça, de Laranjeiras. Ele foi para Sal-
resgatam um sentimento de pertença, que é vador, mas ela não pôde acompanhá-lo. Não
muito importante para valorizar o que se tem, poderia visitá-la, por isso casaram-se por pro-
é muito gratificante chegar em casa e di- curação. Luíza foi a única mulher dele.
zer: “Eu não vou sair hoje à noite, ficarei
em casa contemplando a minha coleção”. JLPolítica – Essa pobreza também al-
Tem livro de várias tiragens. Por exemplo, cança J. Inácio...
o primeiro de Jenner Augusto teve quatro MB – De certa forma, sim. Mas a de Jen-
mil exemplares e foi esgotado. Teve uma ner teve a questão de ter saído de Aracaju. Ele
segunda edição, a convite do Banco do chega em Salvador muito pobre e consegue
Brasil, de mais 2.500 livros. O que posso se firmar no cenário nacional das artes. Não
afirmar, e com muito orgulho, é que eu sei se Sergipe teria dado essa oportunidade
nunca ganhei um centavo com esses li- a ele. Jenner volta a Sergipe para inaugurar
vros. Eles nunca tiveram como finalidade o o Museu Histórico de Sergipe, em São Cris-
lado comercial. Um detalhe: eu coloco nos tóvão, que ele realizou com o prestígio que
meus livros a inscrição “venda proibida”. tinha e através de amizade pessoal com im-
É como a mulher de Cesar: não basta ser portantes artistas nacionais. Consegue fazer o
honesta. Tem que parecer. que é hoje o museu, resgatando, inclusive, as
obras de Horácio Hora.
JLPolítica – Se Jenner Augusto da Sil-
veira tivesse se mantido em Sergipe, não JLPolítica – Tirando Caã, de J. Inácio,
ido para a Bahia, ele seria esse Jenner Au- não é tradição gerar descendentes nos pin-
gusto da Silveira que se tornou? tores de Sergipe?
MB – Infelizmente e provavelmente, não. MB – Veja, Jenner tem um filho, o Guel, e o
Não podemos comentar sobre uma situação neto, Zeca Fernandes, que são artistas conhe-
que não aconteceu. O que posso afirmar é que cidos. Guel é nacional e internacionalmente
a ida para a Bahia foi decisiva para Jenner celebrado. Eu já fiz exposições dos dois fora
Augusto ser Jenner Augusto. Considerando do país. Eles seguiram a tradição.

42 | Cumbuca 2019
JLPolítica – Aquela lei de que só se JLPolítica – Como se encontram os
inaugura prédios, mesmo que da inicia- espólios deixados por mortos recentes
tiva privada, com quadros de artistas e notáveis, como J. Inácio e Leonardo
locais nos halls, está valendo e sendo Alencar?
cumprida? MB – No caso de J. Inácio não houve es-
MB – Está valendo, sendo cumprida, pólio. Ele fez uma pintura de sobrevivên-
mas não considero a melhor forma. Ela cia. Era uma pintura do dia a dia. Isto não
é cumprida por uma imposição legal que tira dele o mérito de ser um grande artista,
é a necessidade de se ter uma obra nos mas o prejudicou. E os filhos dele, com os
prédios. Tem um quadro, está resolvido o quais eu tenho uma relação de convivência,
problema. A melhor forma seria fazer as não ficaram com esse espólio. Já no caso de
aquisições por editais, com escolhas que Leonardo Alencar, Cida, que era a mulher
valorizassem os artistas, sem a preocupa- dele, conseguiu ainda preservar algumas
ção de colocar no hall de um prédio, que obras.
tem apartamentos que valem R$ 1 milhão
de reais, uma obra que custa R$ 100 reais JLPolítica – Já foram vendidas?
no mercado. MB – Sim, uma parte. Não tenho acom-
panhado, mas como frequentador da casa
JLPolítica – O senhor questiona, en- posso lhe dizer: ele deixou uma razoável
tão, a qualidade das obras? quantidade de obras de arte, assim como
MB – Sim, essencialmente a qualidade. fez o Jenner. O Jenner, literalmente, fez o
Porque se atende ao requisito legal da pre- que a gente chamou de “coleção da viúva”.
sença da obra, mas não se tem o cuidado Ele tinha esse cuidado. Como ele nunca
de que sejam obras representativas. O que trabalhou com carteira assinada, a cada co-
é muito ruim, porque talvez essas constru- leção que fazia, reservava alguns quadros
toras, que vendem tão caros esses aparta- como sendo espólio da futura viúva, por-
mentos, deveriam lançar editais para ad- que ele sabia que ele morrendo, a família
quirir obras mais representativas. teria pelo menos esse patrimônio.

JLPolítica – Os pintores de Sergipe JLPolítica – Ainda tem inédito dele


têm noção da importância e da unidade com a família?
de classe, ou são fratricidas? MB – Tem, exatamente nessas coleções.
MB – Dentro das manifestações artísti- Mas, com o falecimento de Luiza, a viú-
cas, ainda acho que a que melhor tem inter va de Jenner, eu trouxe essa coleção para
-relação são as artes visuais. Infelizmente, Aracaju. Essa coleção era de 102 quadros
você não vê muito show de um cantor ser- e eles resultaram em mais um livro. Eu já
gipano com outros cantores prestigiando, fiz quatro livros sobre Jenner. Então, essa
isso serve para o teatro e para a literatura. coleção voltou para Sergipe e vai perma-
Nas artes visuais, acho que há um pouco, necer em Sergipe. Ela está nas casas dos
mas muito aquém do que deveria. sergipanos.

2019 Cumbuca | 43
JLPolítica – Como o senhor recebeu fato preservados?
a polêmica desenvolvida em torno da MB – Sim. Eles são a maior obra de Jen-
montagem do Largo da Sergipanidade ner, felizmente preservadas depois de 10
ano passado? anos de abandono. São a maior referência
MB – Como qualquer assunto relacio- do artista por vários motivos. Do ponto de
nado à cultura, a polêmica é inevitável. vista artístico, por marcarem o modernis-
Jamais se pode falar em unanimidade. A mo no Nordeste – a disposição do dese-
arte por si só questiona, provoca, agrega e nho, essa ausência de preocupação com
desagrega; é exatamente a função dela. Se a escola clássica, acadêmica, uma coisa
a arte não inquietar, ela não cumpriu sua de Di Cavalcanti e Cândido Portinari – é
função. Na questão do Largo, acho que tudo muito mais importante do que o que
alguns questionamentos são procedentes, você está vendo. Isso é muito significati-
outros não. A ideia do projeto é fantásti- vo para as artes visuais e para um artista.
ca! É um espaço que se criou. Uma forma A Monalisa não é a obra mais bonita de
de mostrar a cara sergipana. Com relação Leonardo da Vinci, mas ela é, definitiva-
aos questionamentos, principalmente com mente, a obra mais importante do mundo.
relação à autoria das obras, do porquê não Ela marca a mudança de uma era. Então,
ter sido feita por sergipano, será mesmo uma obra que tem o poder de marcar uma
que em Sergipe não tem artista? Talvez época, como é o caso dos painéis de Jen-
sim, talvez não. Eu acho que poderia ter ner, por si só, é muito importante.
sido discutida melhor essa questão da con-
fecção das obras. E a representatividade? JLPolítica – E marca também uma
Se tivessem 10 estátuas, estaria faltando; diáspora, já que ele pinta no ano em
se tivessem cem, estaria faltando. Então, que vai embora...
não tem jeito. Ali tem que ser entendido MB – Sim. Ele teve aquela visão de que
como um momento, um recorte. o Cacique Chá já era um espaço de dis-
cussão política e palco de acontecimentos
JLPolítica – Mas soma? sociais relevantes. Um local de eferves-
MB – Eu acho que ele agrega muito cência nas décadas de 1950 e 1960, onde
mais do que qualquer outra coisa. Ques- mulheres não frequentavam em um pri-
tiona-se: é prioridade? Claro. Se só tiver- meiro momento, e que depois passou a ser
mos uma obra de arte pública quando não o lugar mais chique de Aracaju. Era um
tivermos mais problemas em hospitais, na lugar que questionava! O “Cacique Chá”
segurança, na educação, a cultura nunca está para Aracaju assim como o “Anjo
vai ter absolutamente nada. O que tem que Azul” esteve para Salvador. O da Bahia
ter é seriedade: dinheiro da cultura para a não existe mais, mas era exatamente o lu-
cultura, dinheiro da educação para a edu- gar que Jenner frequentava, assim como
cação, dinheiro da segurança para a segu- Dorival Caymmi, Jorge Amado, Carlos
rança. Bastos, Mário Cravo e todos os demais ar-
tistas modernistas daquela geração, assim
JLPolítica – Os painéis de Jenner, como acontecia, guardadas as proporções,
recuperados no Cacique Chá, estão de com o nosso Cacique. O nosso tinha uma

44 | Cumbuca 2019
Ambientes da galeria Mário Britto

cozinha de vanguarda, tinha uma pegada porque, para ele, o que importava era a
diferente. Então esses painéis marcam a força. E, além desses painéis, Jenner tem
introdução do modernismo no Nordeste, outros, como o que está no foyer do Teatro
Atheneu (antes ficava no restaurante do
através da pintura de Jenner, porque que- Hotel Palace); o do Edifício Walter Fran-
bram paradigmas, por terem sido feitos co; e mais dois que estavam no aeroporto,
num lugar que conta a história de Sergipe, um continua lá em uma sala sem visitação,
com seus questionamentos e inquietudes; o que é um crime, porque uma arte que
porque resgata o Cacique como protago- não é visitada, é uma arte assassinada; o
nista da história do Brasil e do Estado. outro, que foi resgatado e transferido pela
Energisa para a sede da empresa. Esses
JLPolítica – Mas sociologicamente o painéis vieram da cultura muralista, e
painel sinaliza também algo forte da Jenner, por ser um homem de vanguarda,
história do Estado, no embate entre ín- trouxe-os para Sergipe. Tempos depois, na
dios e brancos. década de 1960, dois importantes painéis
foram pintados aqui por Jordão de Olivei-
MB – Sim. São importantes pela histó- ra, que são os painéis que ornam o hall do
ria, pelo conteúdo, pelo resgate. São de Palácio-Museu Olímpio Campos. Eles re-
uma importância extraordinária. Você vê tratam a economia da época. E o próprio
que a visão do branco retrata o cacique Jenner, assim como Leonardo Alencar,
com cérebro pequeno e ombros largos, ajudaram na montagem.

2019 Cumbuca | 45
Rádio Aperipê AM
chega aos 80 anos
Emissora pública marca a história da radio-
difusão sergipana se reinventando
Camila Santos
A radiodifusão em Sergipe começou do interior numa mesma sintonia.
na Aperipê AM, e ela está completando Nela, relevantes comunicadores cons-
80 anos em 2019. Inaugurada em 30 de truíram suas trajetórias, como o jorna-
junho de 1939, a primeira emissora de lista Raimundo Macedo, que atualmente
rádio do Estado se mantém firme no ar, comanda o programa Show Esportivo,
alcançando ouvintes além-fronteirasom que em setembro completará 40 anos e
um conteúdo que incorpora o regiona- já foi apresentado também pelos radia-
lismo nordestino e a radiofonia falada, listas Paulo Lacerda e César Cabral. O
caracterizada pela abertura dos seus mi- noticiário esportivo e as transmissões,
crofones para a grande participação de ao vivo, dos jogos dos times locais de
ouvintes, como a aposentada Edilene futebol, são atrativos característicos da
Bastos, 59 anos. Diariamente sintoniza- rádio Aperipê AM.
da na frequência 630kHz, ela simplifica
esta característica da emissora: “a rádio
AM fala da importância dos ouvintes,
digo que é falar com o seu vizinho, é no
pé do ouvido”, classifica.
Chegar deste modo às oito décadas
marca não somente a idade da emis-
sora, mas, sobretudo, a história da ra-
diodifusão sergipana. Também a his-
tória política, cultural, econômica e
social, que a emissora ajudou a contar
e construir junto com o sentimento de
sergipanidade que sempre propagou.
Por isso, tão importante data deve ser
lembrada. A emissora foi a primeira a
Raimundo Macedo
unir a capital Aracaju e os municípios

46 | Cumbuca 2019
O professor e radialista Vilder Santos
acompanha parte significativa desta his-
tória, tendo uma relação próxima com a
emissora. “Eu comecei a ouvir a Aperi- “Daí a impor-
pê quando eu tinha seis anos, em 1950. tância da gente
Naquele tempo pouca gente em Sergipe compreender o pa-
possuía o receptor de rádio e a gente até pel da AM e, por isso mesmo,
se deslocava para as bodegas, famosas, a gente vem a Aperipê, faz o nosso pro-
para ouvir as transmissões radiofônicas. grama Papo Reto prestigiando a emisso-
A Aperipê era a única do nosso Estado ra e sendo prestigiando por ela, utilizan-
e a gente ouvia, muitas vezes a retrans- do-se, portanto, desse espaço que entra
missão pelos potentes projetores das na casa de todo cidadão sergipano e
empresas de publicidade, transmitindo a além-fronteiras, para a gente se dirigir à
programação da Aperipê. Então foi as- população e levar portanto a nossa men-
sim que eu tomei conhecimento e logo sagem. Eu acho que o papel da Rádio
me apaixonei”, relatou. AM foi e é importante, em que pese a
gente hoje ter progredido, se é que isso é
progresso, para o sistema de frequência
80 anos e modulada, mas a rádio que funcionou
em ondas médias, a famosa AM, foi que
renovando-se primeiro chegou, que era e ainda é ou-
vida desde o cidadão que está lá na sua
Integrando o sistema de comunicação roça, àquele que vai tirar o seu leite, é o
pública, juntamente com a rádio Aperipê banquinho para tirar o leite, o balde e o
FM e a Aperipê TV, ela faz parte da nova radinho, e isso aconteceu a vida toda e
Fundação de Cultura e Arte Aperipê de portanto, oitenta anos. Eu fico aqui pen-
Sergipe (Funcap/SE), instituída em 2019 sando e olhando para Conceição e sen-
pelo governador Belivaldo Chagas, após tindo nela o mesmo desejo que eu tenho,
a fusão da Fundação Aperipê de Sergipe da gente chegar também aos 80 anos”,
com a secretaria de Estado da Cultura. O comentou o governador.
gestor estadual fala desse novo momen- Para a presidente da Funcap, Concei-
to da emissora pioneira, que integrada ção Vieira, esse é um momento de felici-
numa transmissão crossmedia, na veicu- dade para o Governo de Sergipe, e para
lação do Papo Reto, inova na radiodifu- aqueles que fazem o sistema Aperipê
são mais uma vez.

2019 Cumbuca | 47
Francisco Carlos - Paradinha do Chicão

se tornar sergipanos de coração, aqui


residindo, aqui construindo sua vida,
mas especialmente para aquele homem
e mulher do rádio AM, que tem dado a
Chiquinho Ferreira sua contribuição através desse veículo.
Está de parabéns a Fundação de Cultura
e Arte Aperipê de Sergipe, aqueles que a
como um todo, pois esse marco revela constituem hoje e todos aqueles que por
a história de Sergipe contada pela antiga ali passaram. A cada um deles e à rádio
Difusora e atual Aperipê AM, por isso a Aperipê AM, o nosso agradecimento de
importância e a grandeza da primeira rá- coração, e continue cumprindo a sua ta-
dio de Sergipe e dos homens e mulheres refa de comunicadora mais antiga e ofi-
da comunicação que nela atuaram, pois cial, vamos dizer assim, por ser pública,
são oitenta anos, também, da história co- no Estado de Sergipe”, disse Vieira.
letiva do povo via comunicação. E neste 80º aniversário, a emissora
“Seja no esporte, na informação, no faz parte de um “experimento comuni-
noticiário da maneira geral, na diver- cacional” que reinventa a própria radio-
são e em tudo aquilo que diga respeito difusão. Ela transmite, simultaneamente
à construção do povo de Sergipe, a rádio com a rádio FM, a televisão e as plata-
Aperipê AM esteve à disposição e conti- formas de redes sociais digitais, o pro-
nua contando das mais variadas formas grama Papo Reto. Pilotado pelo próprio
e estilos dos seus comunicadores, do po- governador do Estado, ao vivo, o espaço
pular ao erudito, do mais sério e compe- aberto de interlocução com o cidadão
netrado ao mais relaxado e descontraído, sergipano se originou como uma live no
enfim, cada um com sua característica Facebook, mas agora, com essa cadeia
tem nesses oitenta anos mostrado uma que envolve telecomunicação e radiodi-
faceta da personalidade grandiosa do fusão, está inovando na forma de fazer
povo sergipano.E tem também acolhi- comunicação social pública com um
do as pessoas que aqui aportam para

48 | Cumbuca 2019
Gerivaldo Peixoto

modelo híbrido e inédito em Sergipe.


O atual diretor de Radiodifusão da
Funcap, Chiquinho Ferreira, destaca
que, além de toda a história na radio-
Sérgio Souza
fonia que a emissora carrega, ela foi o
berço de muitos nomes que começaram
ou fizeram carreira no rádio, um veículo
que se mantém firme mesmo com todas
as ferramentas e novas tecnologias da História
informação que estão à disposição do O rádio foi inventado em 1895 por
público. “Em nome de Silva Lima, em Guglielmo Marconi, que transmitiu
memória, e de Taiobinha, que ainda é mensagens a distâncias superiores a
nosso colaborador no programa ‘No pé 3km sem a utilização de fios. No Bra-
da serra’, eu homenageio os demais pro- sil, a primeira experiência ocorreria em
fissionais que passaram pelos estúdios 1922, no Rio de Janeiro, durante as co-
da 630 AM. E, como homem do rádio, memorações do centenário da indepen-
tenho orgulho e alegria de poder fazer dência. Por muitos anos foi um veículo
parte nesse momento do aniversário de restrito e elitizado, oferecendo músicas
80 anos, porque mesmo tendo adqui- clássicas e palestras, até os anos 1930,
rido outras habilidades e experiências quando começou a se modificar. A cria-
no Marketing e no Jornalismo, minha ção da Rádio Nacional, em 1936, foi
paixão, desde o início da minha car- outro marco nacional da radiodifusão.
reira, vem desse grande veículo que Essa passa a ser utilizada pelo governo
é o rádio”, revelou o diretor, que co- Getúlio Vargas, quatro anos após a sua
meçou a carreira na década de 80. Já inauguração, como instrumento para o
Taiobinha, cujo verdadeiro nome é ufanismo ideológico do Estado Novo.
Manoel Moacir de Jesus, desde a dé-
cada de 40 atua no rádio. Em Sergipe, o surgimento da radiodifu-

2019 Cumbuca | 49
Clenaldo e Clemilda Professor Adriano

são teve uma es- vam por ordem alfabética; em seguida, a


pécie de “prefácio”, classificação mudou para ZY, que inde-
quando ainda em 1936, pendia da data de criação.
no mês de novembro,
a Lei n.° 45 (artigo 1º), A Rádio Aperipê foi então instalada,
estabeleceu: “fica o Go- de forma provisória, no Palácio do Go-
verno do Estado autori- verno e posteriormente transferida para
zado a despender até a o Instituto Histórico e Geográfico de
quantia de duzentos con- Sergipe, com o seu transmissor instala-
tos de réis (200:000$000) para instalar, do na Av. Maranhão. A efetiva inaugu-
na cidade de Aracaju, uma estação de ração ocorreria somente em 30 de junho
radiodifusão, nos moldes da legislação de 1939, e é esta a data comemorada
federal”. (D.O. Aracaju 28 nov. 1936. oficialmente pelo Governo do Estado e
P.2625).Porém, somente em 7 de feve- pela Fundação de Cultura e Arte Aperipê
reiro de 1939, através do decreto de lei de Sergipe, que a administra.
n.° 171, a radiodifusão chegaria de fato
ao Estado, com a criação da Rádio Difu- O ano de 1942 representou outro mar-
sora Aperipê de Sergipe – PRJ-6. Como co para a Aperipê AM. Durante o go-
explica o histo- verno do último interventor federal, Au-
riador Dilson gusto Maynard Gomes, a emissora foi
Maynard, transferida para o Palácio Serigy e teve
em seu li- seu nome trocado para Rádio Difusora
vro Entre de Sergipe, nome que é ainda recordado
microfones por muitos, como o ex-governador do
e bastidores, Estado Jackson Barreto, que ainda se re-
inicialmen- fere à emissora como “antiga Difusora”.
te, as emis- No ano de 1972, quando o governador
soras Paulo Barreto de Menezes, através da
ope- Lei n.°° 1759 de 11 de dezembro deu
ra- origem à Fundação Aperipê, que passou
então a administrar o complexo de co-

50 | Cumbuca 2019

Nazaré Carvalho
Álvaro Macedo

municação de Rádio e Televisão, situado


à época anexo ao Instituto de Educação
Rui Barbosa. A Rádio voltou a ser a Ape-
ripê AM e a operar com o prefixo ZYJ-
Curiosidade
920, com frequência de 630 quilohertz, Antes da radiodifusão ser inaugurada,
e seu transmissor instalado no Parque dos funcionou em Aracaju uma espécie de
Faróis. Nos anos 80, nova mudança de circuito fechado de comunicação – a Rá-
endereço, para a rua Capela. Atualmen- dio Palácio do Governo (PYD-2) – cuja
te, as duas emissoras de rádio e uma de transmissão foi oficializada em outubro
TV, tem sede na rua Laranjeiras, 1837, no de 1938. Basicamente um serviço de al-
bairro Getúlio Vargas, que abriga a Dire- to-falantes que funcionava na faixa do
toria de Radiodifusão da Funcap/SE. exército.

Luciano Reis

Manoel Silva

2019 Cumbuca | 51
Poesia

Raimundo Sotero de Menezes Filho

FOTO
POETA

Nasceu em 15 de agosto de 1950, em Aracaju-


SE. Filho de Raimundo Sotero de Menezes e Vera
Maria Freire Sotero de Menezes, teve como pais
adotivos os tios Paulo Faro e Vanda Freire de
Faro. Formou-se pela Faculdade de Ciências Mé-
dicas em 1976 e pós graduou-se em Endocrino-
logia e Diabetes no Instituto de Diabetes e Endo-
crinologia Luiz Capriglione. Tornou-se uma figura
destacada mundialmente no estudo da diabetes,
participando de várias organizações internacio-
nais. É membro titular da Academia Sergipana de
Medicina, onde ocupa a cadeira Nº 40 que tem
como patrono o Dr. Israel Bonomo. Publicou o li-
vro de crônicas e poesias Só Sotero, já em 2ª Edi-
ção. E colabora com os jornais locais escrevendo
artigos de cunho científico.

52 | Cumbuca 2019
POEMA TRISTE SAUDADE

Errarei distâncias sem conta Saudade!


Atrás de um sopro de carinho e amor Saudade templo de refletir
Que tu possas jogar a meus pés Saudade vida e morte de emoção
Sem que te faças de rogada e renegues calor. Emoção vida e esperança de saudade.
Saudade é sentimento devido
Algumas vezes vou só Que se entranha na pele
Outras com a consciência E se espraia pelo corpo
Mas ainda não descobri apesar de tudo Docemente como o sol e o morno carinho da lua.
Apesar de tanto procurar, achar paciência. Saudade é esperança de carinho e de calor.
Que quem sabe chegue com o presente
Fulguras em meu brasão Ou que se afaste com o futuro
Qual rainha em seu Reino Amostrar que saudade é corda corroída
Qual bandeira e seu pavilhão De uma rede que queremos deitar
Dá-me portanto falar com meu jardim E que acabamos ficando em pé.
Rosa de meus encantos À espera do trem da vida e do amor.
Teu amor que tanto procuro, enfim.

És musa de minhas poesias


Julieta de minhas serenatas SEM MAIS
Amparo de minhas dores
De meu reino infantil és a fada Faz-se apagar toda a claridade diurna
Porém se esqueces que em troca Com uma nostalgia sem igual
Nem bobo da corte sou do seu reino Mostrando-se as feridas doloridas
Nem jardineiro de seu jardim De uma guerra entre o bem e o mal.
Mas mesmo assim eu teimo Para vencer o certo sobre o errado
E procuro teu amor nos caminhos sem fim. O bom sobre o ruim inconstantemente
Tempos que nunca querermos levar, para não
Um pouco de você pra mim sermos levados
Um pouco de tua voz pra mim Nem pretendermos enganar, para não
Um pouco de teu hálito pra mim sermos enganados
Um pouco de ti pra mim Por que aí é que acontecem as guerras
Concede-me amor, para que E tudo o mais de que tenho falado
Na aurora de minha existência A Morte, a peste, a fome, a miséria,
Por tua cousa não dê a minha vida um fim. Serão os primeiros participantes
E depois o sangue tanto escorrerá
Que ficará gravado em todos os semblantes.
FELICIDADE Deixando em cada corpo uma marca,
Em cada mente uma lembrança
Amizade é fruto do coração Em cada coração uma mágoa.
O coração é semente de vida E deixando também: em cada alma uma dor
A vida é tudo e nada. Fazendo com que toda essa história
Nada que vem com alguém Nos faça pensar antes de fazer
Que pensa que amigo Cogitar antes de agir e errar.
É adubo de Amor. Para que não venhamos a nos arrepender
Amor que, mesmo escondido, E quisermos atrás voltar,
Mostra a face da alegria Por que então será impossível
E a alegria da felicidade. E não haverá solução para o mal
Felicidade que chega Que não pode deixar de ser ruim
Que vem devagarinho Ou pretender se modificar
Que senta sem pedir licença Da mesma forma que a sorte
E fica sem precisar de ajuda: Que é algo natural assim também é
Pra se estabelecer onde menos se espera O azar um mal que sempre vem,
Pra esperar mais do que a Amizade demonstra. A morte...

2019 Cumbuca | 53
FOLHAS MORTAS

No chão das campinas


Nos campos, nas hortas
São sempre encontradas
COTIDIANO As infelizes folhas mortas.

A máquina moía café Folhas que caem, que rolam


o braço movia a máquina Voando, correndo indo
E a vontade movia o braço. Contando histórias passadas
Dos tempos de Apolo.
O café, de grão passava a pó
O espelho refletia uma imagem Nunca essas folhas
Que por infelicidade era uma pessoa só. Tão velhas, tão belas, haviam caído
Agora que caem, sofrendo um esgar
O pó se juntará à água Se tornam secas após terem morrido.
À água e ao pó se juntará o açúcar
Mas ninguém adoça a ti: mágoa. Sem beleza, sem cores
Encostando, batendo minha porta.
O efeito é fabuloso
O espiríto fica despertado Sentindo em sua pele luz
Mas o homem é pó... Que são simples folhas mortas.

54 | Cumbuca 2019
ERA UMA NOITE

Era uma noite,


Sem lua,
Sem amor,
Mas com você,
Pairava na noite uma cálida brisa
Qual seus braços sem vida a me envolver
Davam o prenúncio da vida
E o ar frio a penetrar-me no corpo
Era como teus lábios colados nos meus
E o amor?
Não sei do amor, porque eu só sabia
Que era uma noite.
E estava sem você...

CURA

Atalaia – 16:40 – 05/05/2000

Estava caminhando na praia,


era tarde, era paz, era eu e minha própria solidão.
A areia calçava os meus pés
e meus pés registravam meus passos
mas o pensamento, vil e traiçoeiro era distante, era duro em sua viagem!!!
O andar sereno dos pés, contrastava com as nuvens que cobriam a minha mente.
Aos poucos, a sensação de bem estar foi subindo pelas minhas pernas e se entranhando em meu corpo.
Aos poucos, a natureza foi se incorporando em mim,
Aos poucos as nuvens foram substituídas por raios de sol,
Aos poucos os passos tornaram-se mais suaves e o corpo estava sendo o que devia.
E devendo sero que podia, porque a paz era o que existia.
caminehri com desenvoltura, olhei meus passos e descobri que
a praia, o horizonte, as ondas, eram o medicamento que minha alma precisava.
Parei e encontrei a paz!!!

2019 Cumbuca | 55
400 ANOS
DE LENDAS E MITOS:
a construção da sergipanidade
e a prata de Itabaiana

José de Almeida Bispo

A humanidade pode ter a cabeça nas


nuvens; mas caminha mesmo é no
seu estômago, em primeiro lugar; seguido
de imediato pelo bolso. “Todo artista tem
de ir aonde o povo (o dinheiro) está”,
já afirma o poeta. A necessidade está
acima de tudo. Daí nascem os sonhos, os
devaneios, geram-se as quimeras.

Sergipe tem várias datas no seu calendário


cívico, com destaque para aquela que é o
feriado estadual de 8 de julho, certamente
uma das maiores, porém, a maior, referente
à sua data de nascimento, qual seja o 1º
de janeiro é literalmente ignorada. E uma
que a historiografia sergipana, quando
não a ignora, sequer a mencionando a
ridiculariza: 16 de julho: nascimento da
Lenda da Prata de Itabaiana.

56 | Cumbuca 2019
Teria havido Sergipe sem a até automobilísticas multinacionais como
a Volkswagen nos anos 1970-1980, para
lenda da prata? criar gado. E esse modo de rastreio mineral
não vem de hoje: ele foi testado, primeiro
É fato minimizado ou simplesmente em Itabaiana, desde o fim do século XVI
ignorado por quase todos os estudiosos ao século XVII, com resultados pífios;
que a expansão pecuarista na Amazônia e a partir de 1664 na Jacobina, onde foi
e Centro-Oeste tem obedecido a fatores descoberto ouro em 1710. Curiosamente
econômicos e climáticos – baixo preço das foi nas terras supostamente vasculhadas
terras e chuvas abundantes – mas também por Melchior Dias Moreia, entre o rio
a algo bem mais cobiçado: a busca Paraguaçu e o São Francisco – Itabaiana
por minérios, especialmente os raros e e todo o Sergipe, obviamente; e Jacobina
preciosos como o ouro. Daí o interesse de - onde mais se concedeu sesmarias no
grandes corporações, incluindo bancos e século XVII.

A enorme área compreendida entre os rios


Paraguaçu e São Francisco foi o teatro de
ação do entradista Melchior Dias Moreia.

2019 Cumbuca | 57
2017

Fonte: Anais, Bibl. Nacional, Rio, vol. 61, p. 315


Incógnita nada desprezível:
Por que a capitania de
Sergipe?
É fato que a conquista de Sergipe em 1º “Antes de ser agricultor, Sergipe foi pas-
de janeiro de 1590 liberou a comunicação tor”, disse com toda propriedade Felisbelo
terrestre entre Olinda e Salvador, e prin- Freire. É que até a invasão holandesa em
cipalmente reabasteceu o forte mercado Sergipe, especialmente nos entornos das
de escravos indígenas a sortir os engenhos serras de Itabaiana e dos Palmares, em
do Recôncavo baiano e principalmente o Tobias Barreto, em menor monta, Sergipe
moinho de homens que era a enorme frota foi o curral abastecedor de carne, couro
comercial portuguesa; mas, por que o sal- e força motriz das duas áreas mais desen-
to de 150 quilômetros entre o Recôncavo volvidas do Brasil no século XVII: Bahia
e Itabaiana para se criar gado? e Pernambuco. E, enquanto os bois pasta-
vam sob olhares e aboios, aventureiros e
enviados do governo vasculhavam o solo
em busca de algo mais valioso.

58 | Cumbuca 2019
Prata mais importante
que ouro?
Ouro e prata são velhos conhecidos da Vivia-se a fantasia do El Dorado em todo
humanidade e usados como depósitos de o continente americano, e, mormente no
valores, dinheiro; todavia, politicamente, Brasil, com o encontro da mina de Cerro
o ouro só assume grande importância nos Rico em Potosi, hoje Bolívia, em 1534, is-
jogos de poder quando Nathan Rotschild so passou a ser uma mania daqueles tem-
acumula fartas somas do metal na pode- pos. O caminho natural da prata de Potosi
rosa Inglaterra com vistas a uma guerra para a Espanha passava por toda a costa
longa contra Napoleão Bonaparte, que, brasileira. Isso incensava ouvidos recepti-
porém, surpreendentemente é derrotado vos em seus portos, desde Cananeia-SP a
por Wellington em Waterloo, em 18 de Olinda-PE. Como centro do Brasil, Sal-
junho de 1815. Antes disso impérios como vador era onde se concentrava mil boatos
o assírio foram construídos ou destruídos de prata. Ali, Melchior Dias Moreia, um
financiados pela prata; e assim se seguiu, neto de Diogo Álvares Correia, o Cara-
desde o primeiro tirano ateniense, Peisis- muru e já senhor de terras no Recôncavo,
tratus (546 a. C.), enriquecido com a prata em Tobias Barreto e Itabaiana foi nomea-
de Laurium, aos embates entre Atenas e do escrivão da Câmara em 6 de feverei-
Esparta, corrompidas pela prata persa; dos ro de 1597, e a seguir, da Alfândega so-
romanos, ao nascer da república, indeni- teropolitana, então a mais importante das
zando os celtas (390 a. C.), ao poderosís- Américas, por onde passavam quase todos
simo exército de Aníbal Barca a derrotar a os navios em direção Índia e à China; e
mesma Roma; exército financiando com a ponto de apoio as corvetas espanholas car-
prata das minas da Espanha, à época co- regadas de prata da Bolívia em direção à
lônia cartaginesa. E, 1750 anos mais tarde Espanha.
veio a formação do maior império da his-
tória humana, o luso-espanhol dos tem- Melchior Dias Moreia vinha de avulta-
pos filipinos, com a prata sendo sempre o da aventura de entradista aos sertões do
principal financiador do poder. Urubu, como assim era conhecido todos
os sertões para além do Recôncavo, quer
para o norte, quer para o oeste. Vem daí o
nome original de Propriá, Sertão do Uru-
Nasce uma lenda bu de Baixo, ou Sertão de Baixo, em con-
traposição ao Sertão de Cima, hoje norte
Há exatos 400 anos, em 16 de julho de baiano. Sucedia ele aos dois desafortuna-
1619, provavelmente numa colina ordi- dos irmãos e seus parentes, João Coelho
nária do povoado Gandu II, próximo ao de Souza e depois o historiador Gabriel
atual Parque dos Falcões, no pé da serra de Soares de Souza, mortos ao tentar achar
Itabaiana, no mesmo município teve lugar a mítica prata.
o desfecho de uma história que já há três
décadas alvoroçava as cabeças dos poucos Não ficou claro se os cargos de governo já
imigrantes europeus que por aqui aporta- o foram como sinal boas intenções do rei
ram a partir de 1500, em todo o Brasil. Felipe III, já de posse da sua carta, comu

2019 Cumbuca | 59
Numa simples colina ao pé da grande serra, os destinos de um homem, de um lugar e de um
país viraram lenda em 16 de julho de 1619.

nicando o achado, ou não; mas o fato é quês almejado. De fato, garantias nulas;
que um dos pedidos de compensações de até mesmo no “Regimento que S. M. D.
Melchior por entregar as minas de prata ao Filipe II mandou passar sobre as minas do
rei se referia a um título de Marquês das Brasil,” de 8 de agosto do mesmo ano.
Minas, e que foi dado a D. Francisco de
Souza em 1606, deixando-o a ver navios. Em 1619 D. Luís foi nomeado governador
Além de três cartas enviadas ao rei, esteve geral na Bahia. Marcada a posse, D. Luís
pessoalmente em Madri; mas depois dessa de Souza se fez acompanhar na passagem
nomeação se fechou em si mesmo. de mais dois governadores de capitanias e
veio com numeroso séquito de soldados
O governo de D. Francisco de Sousa no ao encontro de Melchior, na barra do rio
Rio de Janeiro malogrou em encontrar Real, em 15 de julho. Ali encontraram-se,
minérios, contudo, atiçou a curiosidade e Melchior pôs-se a testar se realmente es-
do seu sobrinho, D. Luiz de Souza, no- tava sendo passado para trás, ludibriado.
meado governador de Pernambuco em 25 Somente no dia seguinte, ao chegar ao pé
de maio de 1616, que passou a trocar cor- da serra de Itabaiana deu-se a contenda
respondências frequentes com Melchior, que sepultou a mina de São Pedro para
conseguindo em 28 de fevereiro de 1618 sempre, e fez nascer a lenda de que a prata
uma carta da corte espanhola nomeando estaria em Itabaiana. Melchior pediu pe-
Melchior como descobridor da prata; po- las mercês requeridas em troca da entrega
rém nada de o conceder o título de mar- da mina e o governador negaceou. Como

60 | Cumbuca 2019
Melchior teimasse em não dizer onde se
achava a mina foi preso. Sob tortura apon-
tou para uma colina, oito quilômetros a
oeste, hoje o povoado Serra das Minas no
município de Campo do Brito. Como ob-
viamente nenhuma prata foi lá encontra-
da conduziram o prisioneiro pra Salvador,
ali ficando até a saída do governador geral
do cargo e consequente retorno a Portu-
gal, quando então, mediante polpuda so-
ma indenizatória ao governo Melchior foi
solto, morrendo logo a seguir quando de
sua volta ao Jabiberi, hoje Tobias Barreto.
E levando para o túmulo o seu segredo.
Virou lenda.

Expedições oficiais e aventureiros tenta-


ram sem sucesso; desde o mais disfarçado
possível à grande expedição de D. Rodrigo
de Castelo Branco, de 1674, que, de con-
creto apenas deixou a fundação da Paró-
quia de Santo Antônio e Almas, em 30
de outubro de 1675, parte indissociável
na fundação da cidade. Se houvesse pra-
ta, obviamente. A sede paroquial, 22 anos
mais tarde, em 1697 transformou-se em
sede municipal, emancipada, portanto,
mas na condição de vila, que assim per-
maneceu até 28 de agosto de 1888 quando
ganhou o título de cidade.

A lenda da prata sergipana de Itabaiana


morreu lentamente, à medida que vieram
as descobertas de ouro, principalmente na
hoje Minas Gerais, na Jacobina e outros
campos auríferos brasileiros posterior-
mente. E ao encontro do ouro por aqui,
em 1695 veio imediatamente a proibição
de extrair. Facilmente confundido com a
lenda da prata, também sendo esquecido.

Disso, porém, consolidou-se a ocupação


da terra e a identidade do ser sergipano.

2019 Cumbuca | 61
Renato Mazze Lucas
O centenário de um
contador de histórias
Clóvis Barbosa

E
le nas- ta), Jacob Gorender (historiador e cientista
ceu em social), Luiz Viana Filho, Odorico Tavares,
Poju- Walter da Silveira, Dias da Costa (irmão de
ca, região metropolita- Dias Gomes), Jorge Amado, além de vários
na de Salvador, capital da nomes nacionais que colaboravam com arti-
Bahia, em 16 de abril de 1919. Mas gos e crônicas para a revista, como Rubem
lá sua vida foi efêmera. Após dois anos de Braga, Carlos Lacerda (sob o pseudônimo de
nascido já estava em Sergipe. Voltou a Sal- Marcos Pimenta), Carlos Drummond de An-
vador para estudar medicina na sua adoles- drade, Ledo Ivo, Leôncio Basbaum, Murilo
cência, onde, entre idas e vindas, passaram-se Mendes e outros. De Sergipe, José Sampaio,
oito anos. O resto de sua vida – até 13 de Enoch Santiago Filho, Aluysio Mendonça
dezembro de 1985, quando morreu de aci- Sampaio, Abelardo Romero, Joel Silveira e
dente vascular cerebral – foi em Aracaju e
Itabaiana, torrões que ele amou e onde cons-
truiu uma bela história de vida. O Lucas é do
seu avô paterno, que veio da Itália radicar-se
em Mangue Seco; o Mazze, do avô materno,
também italiano, que veio morar nas proxi-
midades de Terra Caída, às margens do rio
Indiaroba, pequeno afluente do Piauitinga.
Essas viagens a Mangue Seco, Terra Caída
e adjacências, o contato com os avós e suas
histórias de luta, sofrimento e saudades da
pátria distante, influenciaram no seu lado in-
telectual e na vontade, mais tarde, de contar
histórias.
Ainda na Bahia, como estudante, Mazze
Lucas aproximou-se dos intelectuais baianos
de então, que se reuniam em torno da publi-
cação da “Seiva” – a primeira revista do Par-
tido Comunista Brasileiro – numa espécie
de bunker da esquerda baiana, onde estavam
alojadas figuras como João Falcão (jornalis-

62 | Cumbuca 2019
Jenner Augusto, também contribuíram para o nasceram em
sucesso da revista que, apesar de sediada na Aracaju. Na
Bahia, tinha circulação nacional. Princesa da
Com essa influência da capital baiana, Serra, apro-
Mazze filiou-se ao Partidão logo após a re- ximou-se
democratização do país, com o fim da Segun- de um gru-
da Grande Guerra Mundial. Foi candidato a po ligado à
Deputado Estadual Constituinte em 1947, cultura e às letras, onde se destacavam José
tendo como colegas de cha- Crispim, Tenisson Oliveira, José Silveira e
pa Percílio de Oliveira, Antônio Oliveira.
Ofenísia Freire, Franco A sua formação cultural ganhou força
Freire, Carlos Garcia, em Itabaiana, onde, ao lado da sua mi-
Hernani Prata e Armando litância política – sempre direcionada
Domingues, este último eleito para a construção de um mundo me-
por ter sido o mais votado do lhor, mais solidário e igualitário
Partido Comunista. Após o – conheceu figuras exponenciais
casamento com uma paripi- daquele município. As suas his-
ranguense que conheceu em tórias, transformadas em contos,
Carira quando ali clinicava, geralmente curtos, são fruto da
Helena Rabelo, foi residir vivência com homens rudes e
em Itabaiana, local de nas- simples, como pescadores, mo-
cimento dos seus primei- toristas, soldados, loucos, feiran-
ros dois filhos, Vladimir e tes, carregadores, peões, etc. A sua
Anísio Dário. O primeiro experiência como médico psiquia-
para lembrar a figura de tra, cuidando da prevenção, diag-
Vladimir Ilitch Ulianov, nóstico, tratamento e reabilitação
o Lênin, e o segundo em das mais diferentes formas de
homenagem a um líder sofrimentos mentais, fez dele
operário sergipano um observador acurado do
morto pela polícia. comportamento humano, for-
Os dois filhos mais jando uma aptidão incomum
novos, Raimun- na arte de recriar as coisas
do e Tânia, que viu ou ouviu.

2019 Cumbuca | 63
Ilustração:

E é sa- de envelopes usados, tirava fotos com os ca-


bido que, de belos assanhados e mostrava a língua quando
todos os atribu- ia cumprimentar alguém? Noutras palavras,
tos humanos, o talento o talento traduz uma bomba. Mas nem sem-
certamente é o mais ex- pre. Às vezes ele propicia um saboroso e
cêntrico. Por quê? É que colorido espetáculo de pirotecnia. Especial-
ele, ordinariamente, não se mente quando o talentoso é, ao mesmo tem-
compatibiliza com outras qua- po, modesto, disciplinado, esmerado e, acima
lidades. de tudo, paciente.
A título de exemplo, e lançando Mazze Lucas tinha o atributo do talento,
mão do próprio discurso popular, é principalmente no trato com a loucura, uma
lícito afirmar que os homens talen- vez que, para ele, a insanidade está presente
tosos, no mais das vezes, não são em todos nós, sem exceção. Poderia ele per-
humildes, mas vaidosos. Não são quirir, como Erasmo em sua obra Elogio da
metódicos, mas intuitivos. Não são loucura: seria suportável a vida, com suas
organizados, mas extremamente desilusões e desventuras,
confusos em suas arrumações. Não se a lou-
são cautelosos, mas impaciente-
mente agoniados. Vê-se, por con-
seguinte, que o talento acaba por
espantar características igualmen-
te desejáveis como modéstia,
disciplina, esmero e paciência.
De que forma, por exemplo,
se poderia esquecer do
talentoso pai da rela-
tividade, ganhador
do Nobel, que, aqui
e ali, desafiava
Deus, fazia cál-
culos no verso

64 | Cumbuca 2019
cura não suprisse as pessoas de um ímpeto
vital irracional e incoerente? Não é mérito
da loucura haver no mundo laços de amizade guntando se eu conhecia Renato Mazze
que nos ligam a seres perfeitamente imper- Lucas. Disse que sim e, em resposta, fez os
feitos e defeituosos? Aliás, a Bíblia diz que mais largos elogios à obra Mazzeana e à for-
o número de loucos é infinito, e que todo ma narrativa dos seus contos. Esse encontro
homem se torna louco por sua sabedoria, e fez-me adquirir Anum Branco e Anum Pre-
ainda que no coração dos sábios há tristeza; to, mas somente os li por volta de 2009 ou
no coração dos loucos, a alegria. Essa ex- 2010. Fiquei embasbacado com o tratamen-
periência como alienista, aliada ao interesse to de solidariedade do narrador aos perso-
pelos seus semelhantes, faz de seus contos, nagens, sempre explorando os pontos posi-
unidos em duas obras principais – Anum tivos, humanos, seus sonhos, suas angústias,
Branco e Anum Preto – uma leitura simpá- numa linguagem marcada pela intensidade
tica e bem recebida pelo leitor, tal é o trata- da narração. Não seria exagero afirmar que
mento de compreensão e humanização com estamos tratando de um escritor regionalis-
que visualiza a loucura. ta, como explicitado por Nelson Werneck
Nos anos 80 do século passado estava no Sodré, marcado por um pequeno realismo,
Instituto Goethe, em Salvador, numa jorna- preocupado em retratar as minúcias do ves-
da de cinema, quando fui apresentado ao tuário, da linguagem, dos costumes, das
jornalista e escritor baiano Guido Guerra. paisagens e em valorizar o caráter exótico e
Ao saber que era de Sergipe, foi logo per- grandioso da natureza brasileira.

2019 Cumbuca | 65
ficcionistas põem em seus personagens um
pouco de si mesmos, dos seus sentimentos,
de suas volições, de suas alegrias e tristezas,
então em todos os que desfilam pelas páginas
de ‘Anum Preto’, ao contar-nos suas vidas,
vamos encontrar o Dr. Renato Lucas, que no
seu contato diuturno com os seus irmãos no
mundo, ‘bebeu o leite da bondade humana’,
de que nos fala Shakespeare”.
Uma desavença familiar – fruto de um ro-
mance extraconjugal – levou à destruição o
terceiro livro de contos que pretendia lançar,
mas os seus escritos esparsos, através de pu-
blicações em jornais e revistas de Sergipe e
de fora do Estado, estão a merecer uma ga-
rimpagem, proporcionando o conhecimento
da sua vasta obra pelas novas gerações. A sua
opção política pelo Partido Comunista o le-
vou à prisão várias vezes, sendo a de maior
tempo aquela ocorrida em 1952, quando, du-
Nesse ambiente, Anum Branco nos apre- rante onze meses, esteve detido na Peniten-
senta vinte e duas histórias, entre contos e ciária de Aracaju ao lado de diversos intelec-
crônicas, de conteúdo intensamente huma- tuais sergipanos, como Osório Ramos, José
nista, às vezes coadjuvados pelo humor de Rosa de Oliveira Neto, Otávio Dantas, Ro-
alguns dos personagens. Como diz Nestor de bério Garcia e outros. Esse período propor-
Holanda, ao analisar a sua obra (Rio de Ja- cionou a Mazze Lucas a leitura de clássicos
neiro, Diário Carioca, 10. ago.1961), Renato da literatura e a produção dos seus primeiros
Mazze Lucas interessa-se pelos seus seme- contos, que seriam lançados posteriormente
lhantes, gosta da humanidade. E sabe emo- na imprensa de Sergipe. Embora se afastasse
cionar o leitor. Sobre os vinte contos do seu do Partidão nos anos seguintes, nunca aban-
segundo livro, Abdon Lima, em Anum Preto donou as ideias socialistas.
(Renato Mazze Lucas. Rio de Janeiro, Edito- Numa terra onde a memória do seu povo
ra Leitura, 1967), diz: “Se é verdade que os é esquecida pelos órgãos oficiais, neste cen-

66 | Cumbuca 2019
Anum branco

tenário de
Renato Ma-
zze Lucas e de
tantos outros em
2019 – a romancista
Alina Paim, o poeta
Santo Souza e o escri-
tor Enoch Santiago Fi-
lho – resta a esperança nas
entidades culturais privadas,
Instituto Histórico e acade-
mias de letras, para que a cultura
sergipana não seja esquecida no
labirinto do tempo. Que os nossos
pesquisadores, a exemplo de Marcelo
Ribeiro e Gilfrancisco, continuem nas
suas ousadas garimpagens à procura de ou-
tros tesouros dos nossos literatos e dos nomes
que elevam a história do Estado. Enfim, Re-
nato Mazze Lucas poderia ser colocado entre
os clássicos contadores de histórias da vida
real, com atenção aos que estão no andar de
baixo do nicho social. A imaginação e o bom
humor estão contidos na sua narrativa, unin-
do a fantasia com elementos grotescos.

2019 Cumbuca | 67
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68 | Cumbuca 2019
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