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Expediente
Editor
Amaral Cavalcante
Produção
Cândida Oliveira
Design Gráfico
Germana Araújo
Clara Macedo
Gabi Etinger
Liz Carvalhal
Revisão
Yuri Gagarin
Cândida Oliveira
Coordenador de Pré-impressão
Marcos Nascimento
Gerente Editorial
Jeferson Melo
Governador Diretor-Presidente
Belivaldo Chagas Silva Ricardo José Roriz Silva Cruz
A Revista Cumbuca não se responsabiliza por conceitos emitidos nas matérias assinadas.
2019 Cumbuca | 1
Cumbuca conta com o apoio da Secretaria de Comunicação Social do Governo do Estado de Sergipe.
Tototós: Transporte, cultura e tradição
carta ao leitor
Início do terceiro trimestre do ano 2019 está
quase acabando e uma nova revista Cumbuca che-
fluvial de Sergipe
Charlotte Borges
ga a suas mãos, caro leitor. Nesta edição partimos
para o rio Sergipe e ‘matamos’ a saudade do To-
ToTo. Era bem mais singelo chegar à Barra dos
Coqueiros nessas embarcações. Confesso ser bem
mais prazeroso tocar a água salgada e sentir no ros-
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to a brisa leve durante a travessia. O ToToTo ainda
existe, mas é pouco procurado pela população.
Conhece o grupo teatral Boca de Cena? Criado
no conjunto Bugio em Aracaju, utiliza a linguagem
do teatro popular para alcançar o grande público.
Durante a leitura deixe a vibração do grupo Bu-
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rundanga Percussivo acelerar seu coração. Pedri-
nho Mendonça é o maestro desse sortimento de
vivências e batuques.
Germana Araújo trata do processo criativo e a
representação feminina no cenário do design gráfi-
co. O jornalista Jozailto Lima gentilmente cedeu a
entrevista que fez com Mário Britto para seu portal
JLPolítica. O mercado sergipano de artes plásticas
é tema do pingue-pong. A rádio Aperipê AM com-
pleta 80 anos e sua história está registrada nas pró-
Rian Santos
‘lenda da prata de Itabaiana’ tira o foco do ouro da
Princesa da Serra. A revista encerra homenagean-
do o centenário (se vivo estivesse) de Renato Mazze
Lucas, o contador de histórias baiano que escolheu
Sergipe para construir uma bela história de vida.
Boa leitura
Capa:
As cores do espelho
vivências e batuques
(barcos em Pirambu)
Arthur Leite
Antonio Passos
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38
Rádio Aperipê AM chega aos 80 anos Mário Britto e o Mercado Sergipano de
Camila Santos Artes Plásticas
Jozailto Lima
design editorial
Germana de Araujo
A personalidade artística no
62
52
56
de história
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400 anos de lendas e mitos: a construção Poesias
Clóvis Barbosa
da sergipanidade e a prata de Itabaiana Raimundo Sotero de Menezes
José de Almeida Bispo
O centenário de um contador
Arquivo do Jornal de Sergipe
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As tototós, como as conhecemos hoje, rápida e eficiente para chegar à capital era
são o resultado das transformações atravessando o rio Sergipe. O transporte
provocadas pela introdução de novas era feito não somente pelas canoas tototós,
estruturas nas canoas. Como o motor mas existia as lanchas da Sergiportos,
de popa, cujo barulho repetitivo deu que possuíam um horário rigoroso de
origem ao próprio nome tototó, e a saída dos atracadouros. Paralelo a essa
cabine ampliada, que proporcionou mais opção, as tototós ficavam de maneira
conforto para os passageiros, protegendo- mais disponível, quanto a horário, saindo
os do sol e da chuva. quando completava a sua lotação. Era
comum os passageiros perceberem que
Com o desenvolvimento do comércio a lancha demoraria mais de 10 minutos
e o crescimento da empregabilidade para sair, muitos se apressavam e lotavam
local em Aracaju, o número de canoas a canoa que saia antes da lancha”.
atravessando o rio Sergipe levando e
trazendo trabalhadores era expressivo. Na Atualmente, com a construção da ponte
década de 1980, essas canoas começaram construtor João Alves Filho, ligando
a concorrer com as lanchas maiores da os municípios de Aracaju-Barra, as
empresa Sergiportos, que eram m ais tototós deixaram de ser as protagonistas
rápidas, mais estruturadas e que possuíam como o único meio de transporte nesse
capacidade para conduzir um número trajeto, perdendo lugar para o transporte
maior de passageiros. Mas a disputa não urbano, principalmente os ônibus.Essas
durou muito tempo. Com o término dos mudanças geraram fortes impactos às
serviços prestados pela antiga Sergiportos, tototós, seja no aspecto do fluxo de
as lanchas tanto para a Barra do Coqueiros pessoas até a manutenção da sua tradição
como para a Atalaia Nova foram retiradas, sem qualquer investimento por parte dos
deixando assim o transporte fluvial apenas órgãos governamentais.
para as tótótós.
Assim como relata Mary Almeida,
O professor e historiador Marcos Vinícius, fundadora e coordenadora da A stototós
morador na época da Barra dos Coqueiros (A ssociação de Canoeiros e Usuários das
,vivenciou todo esse processo de mudanças Tototós do Estado de Sergipe) “Depois
e relata: “Eu tive a oportunidade de da presença da ponte eu comecei a ver
morar na Barra dos Coqueiros, mais que isso de fato financeiramente afetou
precisamente no conjunto Prisco Viana não só minha família, mas toda as outras
no final da década de 1980 e início dos famílias, e ao ver meu pai chorando, ao
anos 1990. Como não existia transporte ver a situação em que ele se encontrava
coletivo rodoviário para Aracaju, até financeiramente e a questão também da
porque não existia a Ponte Construtor estrutura familiar afetada, eu disse pra
João Alves, e excetuando a via fluvial, mim que já que eu podia fazer trabalhos
a única saída da Ilha de Santa Luzia, se voluntários na minha cidade, na minha
dava através da rodovia estadual que liga comunidade eu tinha por obrigação
até o município de Santo Amaro das também lutar por aquilo que me fez
Brotas. Dessa forma, a maneira mais chegar até onde eu cheguei”.
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como Associação das Tototós, foi fundada
em 18 de dezembro de 1989. P orém tinha
uma estrutura bastante frágil e apresentava
vários conflitos. Foi
através do Projeto
de Lei N.° 20/2018, que a associação foi
declarada de utilidade pública, o projeto
foi aprovado pela Câmara Municipal da
Barra dos Coqueiros.
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As Tototós são embarcações simples,
tendo como material predominante a
madeira, com cabine para seus passageiros
que viajam obrigatoriamente sentados.
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Fonte: Tototós embarcações tradicionais do estuário do rio Sergipe.
Se dá início a construção do casco. A maioria das
Tototós possui um formato “encavernado” — onde
o casco recebe partes inteiras das madeiras e o
formato côncavo é moldado posteriormente.
Ofício de cunho puramente artesanal. Os
detentores do conhecimento e executores desse 3
ofício são os carpinteiros navais que, de forma É o fechamento do casco mediante a utilização
semelhante à dos canoeiros, herdam de seus das madeiras de louro, maracatiara, angico ou
antepassados o conhecimento associado ao compensado naval. Para o isolamento do casco
modo de fazer a embarcação. Os carpinteiros o carpinteiro faz uso de materiais como nauticola,
navais trabalham sozinhos ou auxiliados por resina e manta de fibra Materiais responsáveis pela
um ajudante e residem em sua maioria na Barra impermeabilização e durabilidade do casco.
dos Coqueiros. Em média, necessitam de 3 a 4
4
A realidade dos barqueiros continua não tem condições” diz Valdemir Lima,
necessitando de melhorias, tanto salarial dono de embarcação.
como de benefícios previdenciários, além
de maior reconhecimento e divulgação Apesar das exigências para navegação, os
do trabalho naval dos totozeiros. A saída canoeiros não possuem nenhum tipo de
encontrada após a perda de espaço para seguro: “Olha, eu lembro que até antes da
os transportes terrestres, foi a redução ponte eles tinham, era obrigatório, só que
do valor da passagem para um preço aí depois que se tornou um patrimônio
menor ao que é cobrado pelos ônibus, “A reconhecido não existe mais um órgão que
média aqui é mais de um salário por mês. queira de fato apostar no patrimônio como
Trabalho em dias alternados, se trabalha algo que pudesse gerar seguro”, afirma
13 dias no mês, mas dá para se manter, Mary. Outra dificuldade encontrada se dá
com alimentação, pagar as contas. Mas pela ausência de formação por parte dos
para manter uma embarcação como essa canoeiros.
Valdemir Lima
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Contudo, não há um reconhecimento
das tototós por parte do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), como um Patrimônio de cunho
Nacional e Imaterial, é o que explica a
Diante da fragilidade e dificuldades historiadora representante do Iphan Flávia
enfrentadas pelo ofício dos canoeiros da Gervásio: “Para se tornar patrimônio pelo
foz do rio Sergipe, em 2011, as tototós Iphan você tem que ter uma continuidade
receberam o título de Patrimônio Cultural histórica de no mínimo três gerações,
e Imemorial do Estado de Sergipe pelo que aí já não é o caso deles, aí entra uma
Decreto de Lei N.° 7.320/11, sancionado série de procedimento que os próprios
pelo governador do estado de Sergipe, detentores tem que entrar com um pedido,
Marcelo Déda. O reconhecimento é feito que ter essa continuidade histórica e aí
por parte da câmara de vereadores, ou de depois tem o processo de documentação
deputados e é de cunho declaratório, não e de pesquisa sobre o bem que é todo feito
havendo assim uma política pública. com os detentores e depois disso passa-se
pelo conselho, que é a câmara técnica que
analisa tanto os casos de tombamento
quanto os de registro, ele vai ver também
essa questão, se tem uma ressonância
nacional, você tem um patrimônio que
ele tem um aspecto local que eu acho que
é muito o caso das tototós. Eu acho que
foi o caminho que foi um pouco buscado,
apoiar com ações de salvaguarda, porque
mesmo que não tenha reconhecimento
pode-se buscar as ações de salvaguarda
para os bens que se tem valor, que são
ações de fusão dos bens, que são ações
de conhecimento, ações para tentar ter a
continuidade do bem, então no caso de
bens de patrimônio imaterial que o valor
está muito nas pessoas, no conhecimento,
são ações para você poder tá garantindo a
transmissão, garantindo esse tipo de bem,
mas não teve reconhecimento. O que se
tem o reconhecimento do valor, mas não
tem, não poderia pelos critérios do Iphan
entrar como patrimônio imaterial”.
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acontecem nos municípios de Aracaju,
Laranjeiras, Nossa Senhora do Socorro,
Pedra Grande. Outro festejo tradicional
é o chamado “Forrótototó”, que teve sua
primeira edição em 2017 onde grupos
A ligação direta dos canoeiros com as
tradicionais de forró pé de serra tocam
demais atividades de bens culturais
dentro das Tototós durante a travessia.
relacionadas a Barra dos Coqueiros e ao
Rio Sergipe como os grupos folclórico do
Assim as tototós desenha-se na história
samba de coco, catadoras de mangaba,
como marca registrada e de fundamental
pescadores, traduzem um modo de vida
importância, não somente dos moradores
ainda pouco conhecido. A presença do
da Barra, mas do povo sergipano. A ssim,
sincretismo religioso Católico é bastante
não é mais possível falar de Aracaju e de
presente na tradição dos canoeiros, como
Sergipe sem lembrar do papel fundamental
por exemplo as procissões luviais da
cumprido pelas Tototós.
festa de Bom Jesus dos Navegantes que
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Rian Santos
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“O Bugio foi um bairro com uma
efervescência cultural muito forte na
década de 80, é habitado por diversos
artistas populares. Infelizmente, o
Bugio apresentado na mídia é apenas
um bairro periférico de Aracaju com
índices altíssimos de criminalidade.”
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2017
Ar
te:
G ab
iE
tin
g er
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Salvador. E lá, no Corredor da Vitória,
lhes impôs a leitura do Dom Quixote.
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Não por acaso, ‘Os cavaleiros da triste figura’
ganhou o País inteiro. Contemplado pelo
projeto Palco Giratório, do Departamento
Nacional do Sesc, dedicado ao mapeamento
e a circulação teatral, o grupo Boca de
Cena se apresentou em dezenas de cidades
brasileiras, percorreu o País de cabo a rabo.
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Antonio Passos
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Burundanga na Atalaia (2016) Foto: Igor Azevedo
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Pedro Mendonça estudava trompete no Amorosa e Rogério. Em certo momento,
Conservatório de Música de Sergipe e foi conta o maestro, não o contentava mais
passar uns dias em Salvador para ter aulas apenas tocar. Diz que passou a sentir
no Teatro Castro Alves com um aclamado um desejo incontornável de transmitir o
instrumentista e professor. No intervalo conhecimento musical adquirido e formar
dos estudos, ele viu ensaios do Balé grupos a partir da prática do ensino.
Folclórico da Bahia (BFB) e ficou fascinado
– tanto pela dança quanto pelo som dos No Centro de Criatividade iniciou um
atabaques. Essa é a primeira imagem primeiro curso do qual participaram
relacionada por Pedrinho à concepção do Betinho Caixa D’Água, Tonico De
Burundanga. Ele afirma que, anos depois, Ogum, Saci, Bidui e Pedro Luiz (o Pedão).
quando veio a vontade de realizar o bloco, Entretanto, a metodologia de ensino
lembranças das movimentações cênicas empregada, aprendida no Conservatório
e das sonoridades vistas e ouvidas nos de Música, não agradava ao maestro. Foi
ensaios do BFB emergiram da memória quando ocorreram algumas descobertas
compondo a inspiração. diretamente ligados ao nascimento do
Burundanga. A produtora cultural e
No Conservatório de Música Pedrinho amiga Suzana Vasconcelos falou com
conheceu e tornou-se aluno do professor Pedrinho sobre a existência de um método,
e percussionista pernambucano Wallace desenvolvido no Rio de Janeiro, que
Patriarca. A partir de então dedicou- estava sendo utilizado para a formação de
se à percussão e alcançou destacada grandes blocos de percussão e presenteou
desenvoltura, atuando tanto no ambiente o maestro com CDs de dois desses blocos:
da música erudita quanto acompanhando Bangalafumenga e Monobloco. O método
artistas da música popular, entre os era “O Passo”, criado pelo músico Lucas
quais: Antônio Carlos du Aracaju, Ciavatta.
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Pedrinho Mendonça
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Num lampejo diz ter vindo o título de
um livro que havia ganhado recentemente
do escultor Augusto Gustô: “Brefaias
e Burundangas do folclore sergipano”,
de autoria de Carvalho Déda (lançado
originalmente em 1967). Pronto! O nome
era este: Burundanga – uma palavra que
soa quase como um bater de tambor.
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Apresentação na Reciclaria (2017)
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Foto: Igor Azevedo
com Pífano de Pife, Patrícia Polayne, informação sobre a agenda nas redes sociais
Jaque Barroso, Dudu Prudente, Ananda e e comparecer a um dos encontros. Mais
Meire Barreto, Nadir da Mussuca, Kleber que ambiente de aprendizado e prática
Melo, Sandyalê, Heitor Mendonça, Bruna musical, a comunidade Burundanga é
Ribeiro, Bento Adami, Lula Ribeiro, aconchego para novas chegadas, idas e
Saulo Fernandes, Sylvia Patricia, Jeca, vindas, partidas e retornos – no calor do
entre outras e outros. sortimento de vivências e batuques.
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Páginas da obra “(RE)invenção da pai-
sagem doméstica: Fábio Sampaio”
(2018), organizado por Mário Britto.
Figuras das obras do artista foram
extraídas e utilizadas para compor a
visualidade da página.
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Fragmento de desenho elaborado
para a obra “Estrela-D’Alma” (2018)
de Ilton Marques.
fazer (manual/material), na histó- tiva” (Ibdi., 2011, p. 12). Quer dizer que
Imagens de
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Conversando com a jornalista e autora da
obra “Tempo bom, tempo ruim” (2019) Ilma
Fontes. Para melhor compreender quais
são os aspectos visuais que devem ser
considerados para o desenvolvimento do
projeto gráfico do livro, além de ler o tex-
to, é importante perceber as preferências
artísticas dos autores.
Foto de Márcia Guimarães
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Obra “Bonita Maria do Capitão” (2011). O
projeto gráfico desse livro, após três anos
de pesquisa, foi desenvolvido em seis me-
ses. Os elementos gráficos passeiam por
todos as páginas e estabelecem diálogo
com os conteúdos dos autores-colabora-
dores. É certo que para desenhar os ele-
mentos gráficos do livro tive como inspi-
ração os objetos do cangaço. Contudo, os
desenhos são parte de meu processo de
interpretação, ou seja: o modo como eu
senti ser possível representar aspectos
do cangaço para inserir o público-leitor
no cenário.
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Produzir Para compreender a minha relação Elaborava os textos e as ilustra-
livros tem com a produção de livros, dou rele- ções, mas, sinceramente, meu
a ver com vância que sou filha de professores prazer maior estava em produzir
gostar de e costumava presenciar meus pais o objeto-livro em si. É pena que,
livros! em constante prática de estudo e desde essa época, em casa ou na
escrita. Nos anos de 1980, semanal- escola, eu comecei a compreender
mente, talvez reproduzindo minha que o interesse das pessoas estava
mãe, sentava à frente da máquina na história e não como eu conse-
de escrever Olivetti dela e começa- guia compor visualmente a página
va uma nova história, preocupada e montar um livro; como se a ati-
principalmente com a composição vidade intelectual apenas estives-
dos elementos em uma página. se na escritura de um texto! Mais
adiante, meados dos anos de 1990,
Aos 12 anos de idade, eu já compu-
já no Curso de Desenho Industrial
nha livros em formato de códice1,
na Universidade Federal da Paraí-
elaborava capa e encadernava-os
ba, coincidentemente, também me
com grampo.
debruçava mais na composição das
páginas da apresentação do que no
projeto em si.
Era notório como a experimenta-
ção gráfica fazia parte da minha
Na foto: eu e 1 Mesmo sem afirmar a origem do uso do ter- narrativa projetual e, desta vez,
minha irmã mo, Miguel León-Portilla explicita que a pala-
vra códice apenas foi utilizada com frequên- a visualidade proposta chamava
Paula lendo no
jardim de casa cia pelos europeus em meados do século XIX. bastante atenção dos outros. Per-
(LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 7-8). O códice é ob-
em um sábado cebi que as tarefas de representar
jeto-livro, que além de ser fácil de portar, tor-
ensolarado,
1979.
nava possível inserir conteúdos nas duas faces graficamente objetos e compor
da página; foi uma invenção revolucionária e
duradoura na produção de livros; tinha páginas páginas seriam os meus desafios
Foto: Arquivo
pessoal individuais unidas por costura de um lado (ge- de sempre. Nesta época, não tínha-
ralmente o esquerdo).
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mos o auxílio do computador como pergunta constante. Penso que a
ferramenta de execução gráfica. interpretação visual do conteúdo
Todo o trabalho era manual. verbal do autor deve gerar diálogos
Fora da academia, passei a atuar e nunca hierarquizar. E neste sen-
profissionalmente mais na área do tido, o autor deve sentir-se parte
Design Gráfico do que em Projetos desse processo criativo, assumin-
de Produto. Desenvolvia marcas co- do também, ou tão bem, as esco-
orporativas, embalagens, catálogos lhas do designer. Quero dizer que a
e Revistas, e somente em 2009, eu proposição do designer é uma en-
fiz o primeiro projeto de livro; foi a trega e, por isso, deve estabelecer
obra de poesias intitulada “A Casa afetividades, seja com o universo
das Ausências” de Ezio Déda. Um simbólico acerca do tema e as pos-
início bem complexo já que para re- sibilidades de representações, ou
presentar com desenhos a poesia é mesmo com as técnicas de experi-
preciso compreender e se sensibi- mentação gráfica. Na obra “A casa
lizar com a semântica do texto. A das ausências” (2009), cada poe-
dificuldade está na interpretação sia foi interpretada com desenhos
de um gênero literário que expõe configurados a partir de elementos
aspectos pessoais de um autor e, da arquitetura de Sergipe. A arqui-
sendo assim, temos que desenvol- tetura foi pensada como objeto de
ver aproximação emocional com o estudo e inspiração por causa da
texto, ou experimentação estética, semântica dos textos e da forma-
para poder se envolver. ção do autor; Ezio Déda é arquite-
E como não se sentir invasiva se o to e expõe, em suas poesias, sua
desenho que eu fiz era a minha ver- “casa” e os engendramentos das
são da poesia do autor? Essa é uma relações familiares dele.
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Capa da obra “Barcelona: Guel Silveira” (2017), organizada
por Mário Britto. Imagens de arquivo pessoal.
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A tarefa de compor a visualidade de de códices, desde as oficinas mo-
uma página, utilizando para isso os násticas da Idade Média, a confecção
elementos de outros artistas, é bas- de livros é uma atividade exercida
tante recorrente em meu processo por homens; geralmente por mon-
criativo. Debruço-me na relação de ges experientes. Na atualidade algu-
sentido proposta por eles, porém mas designers já aparecem no ce-
construo outras possibilidades de nário da produção de livros, como a
composição visual; recorto da arte paulistana Eliana Ramos, que atuou
deles elementos que me inspiram a na editora Cosac Naify, mas a figu-
construir outros arranjos, sem que ra profissional do homem ainda é
eu precise desapropriar o sentido de agressivamente preponderante. Em
origem. Nesta obra, as composições Sergipe, temos como referência o
de minha autoria misturam elemen- trabalho da designer Gabi Etinger, o
tos de todas as quatro artes e, desta qual apresenta componentes artísti-
maneira, tento ampliar a interação cos sem igual. O que estou tentan-
do leitor com as composições dos ar-
do dar relevância é o quão oportuno
tistas, já que fragmentos das propos-
está sendo apresentar o meu pro-
tas visuais deles migram para outras
cesso criativo aqui na Revista Cum-
partes do livro.
buca para estabelecer representati-
Para concluir esse ensaio, penso
vidade feminina no cenário do Design
que seja importante dar relevo à Editorial, já que a literatura específi-
questão de gênero no campo do ca ainda não se ocupa em apresen-
Design Editorial. Deve-se ter em tar, com proporcionalidade, a desig-
vista que na história da produção ner que produz livros.
REFERÊNCIAS
gedesenhadora.wordpress.com
Cumbuca || 37
2019 Cumbuca
2019 37
Mário Britto e o
Mercado Sergipano
de Artes Plásticas
“Sergipe não fica a dever ao Brasil em artes visuais”
Por Jozailto Lima
A
s artes plásticas em Sergipe, as ar- Augusto da Silveira, o sergipano de Aracaju
tes visuais, de alguns anos para cá – que muitos pensam ser de Lagarto – e que,
não podem se dizer órfãs de um na década de 1940, se mudou para a Bahia
olhar zeloso, crítico, estudioso, depois de pintar os painéis do Cacique Chá.
potencializador e protetivo. Este, porém, sem De lá, a partir de Salvador, fez uma revolução
ser paternalista. Esse olhar vem de Mário Bri- no âmbito do Nordeste no tocante à pintura
tto, 55 anos, um sujeito que joga, generosa- modernista, emparelhando-se a Di Cavalcan-
mente, em uma dezena de posições quando ti e a Cândido Portinari. Ultimamente, Mario
estão escaladas as atividades das artes visuais Britto se ocupa da edição do livro “A Vida
– pinturas, fotografias, esculturas – conce- Me Quer Bem” do cronista Amaral Caval-
bidas por sergipanos, além de atividades da cante.
memória ligadas a elas. Do alto dessa atalaia de observação da vida
Mário Britto tanto fez e faz pela área que das artes plásticas sergipanas, Mário Britto
hoje é nome de galeria, a mais diversa e ba- não tem medo de errar em sua conclusão:
dalada de Sergipe, localizada na Rua Villa “Sergipe não deixa a dever ao Brasil em artes
Cristina (ao lado da Semear). A galeria Mário visuais”, diz.
Britto expõe uma das maiores e mais expres-
sivas coleções de artes plásticas de Sergipe. Mário Britto – de certa forma, até diferen-
Ele monta exposições, envolve-se com sa- temente das outras expressões artísticas, na
lões e, até, e sobretudo, com trâmites que co- parte das artes visuais há um bom trilho sen-
locam artistas plásticos sergipanos em conta-
to com o mundo, em eventos internacionais.
É, às vezes, caçado nas ruas e em eventos por
quem garatuja um traço aqui e outro ali e quer
chancela para ser artista plástico.
A ponta maior do iceberg protetivo e poten-
cializador das artes plásticas em que se trans-
formou esse tal Mário Britto, um advogado
e procurador do Estado de Sergipe com for-
mação pela Universidade Federal de Sergipe,
está no arsenal de livros que escreveu sobre
o tema: nada menos que 22 ao todo. Entre
estes, quatro sobre a vida e a obra de Jenner
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tista, ministra cursos de pintura no seu ateliê
JLPolítica – Nós somos nostálgicos ao e tem uma geração acontecendo, que estuda,
ficarmos evocando nomes como Jordão que sabe que o talento é nato, mas que tam-
de Oliveira, Horácio Hora, Álvaro Santos, bém é preciso ter técnica e conhecimento
Florival Santos, J. Inácio, Jenner Augus- técnico. Nesse cenário, Elias tem sido muito
to ou não existe o apelo suficiente entre os importante.
contemporâneos?
MB – O nostálgico existe na medida em JLPolítica – Quais são os nomes contem-
que desperta hoje, em Sergipe, um interesse porâneos daqui que hoje pontuariam bem
em resgatar esses grandes artistas do passado. numa coletiva nacional?
Eles permenecem no desejo dos coleciona- MB - Fábio Sampaio é o nome que já pon-
dores, que, hoje, querem tê-los em suas cole- tua muito bem. Eu já tive oportunidade, como
ções. Isso é muito gratificante, porque a ideia curador de Fábio Sampaio, de levar quadros
do colecionismo vem muito desse trabalho dele, para fora do país – França, Áustria—
particular que eu venho fazendo como cole- por ocasião de eventos culturais importantes.
cionador e como incentivador, dizendo a eles O livro dele que eu organizei e editei, foi feito
que não é apenas bacana ter uma parede com em português, francês e inglês, com o inte-
quadros, e sim ter uma parede com histórias. resse de internacionalizar a obra dele. E o que
E os quadros desses artistas contam histórias. você vê nas galerias do mundo hoje é exa-
tamente o que Fábio Sampaio está fazendo
JLPolítica – Quem é que de novo e novi- aqui em Sergipe.
dadeiro levanta o crachá, e arma bem o ca-
valete hoje nesse setor, além desses nomes JLPolítica – Qual é o papel do Estado no
contemporâneos que o senhor citou? fomento às artes plásticas?
MB – Na fotografia, por exemplo, tem MB – Eu acho que o Estado não tem que
muita gente boa. Temos Gilton Rosas, que é ser paternalista. Ele não pode ter essa coisa do
um arquiteto e tem feito fotografias de reper- assistencialismo, mas precisa criar as oportu-
cussão; Fábio Pamplona e Leonardo Santana. nidades. Por exemplo, no âmbito municipal,
A fotografia passa por um preconceito mui- a Galeria Álvaro Santos é um local importan-
to grande, como se ela fosse uma subarte. E te para o fomento da arte, é a primeira galeria
quando eu digo que não há hierarquia é no pública de Sergipe. Lá é realizado o “Salão
sentido mais absoluto: a arte não pode sofrer dos Novos”, que é um importante evento, no
nenhum tipo de hierarquia, muito menos de qual muitos nomes das artes são revelados.
preconceito. Então, na esfera municipal, eu citaria a Gale-
ria Álvaro Santos como um bom palco para a
JLPolítica – Qual o limite da arte para manifestação das artes visuais.
ser chamada de tal?
MB – Ela tem que apenas ser boa. Tem que JLPolítica – Qual foi o papel da antiga
ter essência. Na pintura, Elias Santos é hoje Secretaria de Estado da Cultura frente às
um grande protagonista, porque além de ar- artes plásticas?
40 | Cumbuca 2019
MB – Eu estive na Secretaria durante qua- facilita a comunicação. Mas espero que,
se dois anos, convidado pelo então secretário mesmo transformando-a em Fundação, as
Elber Batalha, que montou uma equipe com ideias que foram colocadas em prática e
pessoas de conhecimento em áreas específi- que deram bastante resultado e visibilida-
cas. Representei as artes visuais e continuo, de, sigam existindo. Até porque como os
de certa forma, a representá-las como mem- editais eram públicos, tivemos exposições
bro do Conselho Estadual de Cultura. En- de artistas de diversos lugares. Também é
quanto estive lá, houve o resgate do Corredor importante, que o ente público foque, no
Cultural, que nada mais é do que um corre- artista sergipano, mas não somente dentro
dor transformado em galeria de arte, no qual, da matriz sergipana. A forma de você tor-
mensalmente, realizávamos exposições. Era nar o sergipano conhecido é tirá-lo da re-
uma oportunidade para convidar o pessoal doma do Estado e levá-lo para fora e trazer
novo para participar de exposições coletivas, o de fora para cá. Não tenho dúvida: é esse
o que já trazia uma amplitude de possibili- intercâmbio cultural, que fomenta e valori-
za as artes visuais.
dades que iam além das artes visuais. Tínha-
mos espaço para outras expressões artísticas,
JLPolítica – Quem consome artes plás-
como o teatro, a dança e a música. Era um ticas em Sergipe, sempre e hoje?
momento muito importante. Foi dado o nome MB – De certa forma, a gente tem que
de Irmão (Wellington dos Santos), um grande desconstruir um pouco o discurso de que
artista sergipano, economista, ex-funcionário consumir arte significa ter dinheiro. Claro
da SECULT. Na verdade, o Corredor Cultu- que qualquer relação de consumo passa
ral Irmão, que já existia no passado, foi res- pelo financeiro, mas consumir arte não é
gatado exatamente nesse período em que eu só no sentido de comprar. Consumir arte é
estive na Secretaria. Como, também, foram apreciar, é também ir a uma exposição.
reconquistados dois outros importantes luga-
res: o Espaço Cultural Leonardo Alencar, no JLPolítica – Quantos quadros o senhor
foyer da Biblioteca Pública, e a antiga Galeria tem pessoalmente?
J. Inácio, que estava há anos sem atividade, MB – Tenho oficialmente uma coleção,
mas que passou a ter exposições periódicas, que é um recorte que resultou em um livro,
selecionadas mediante editais. É dessa forma “Um sentir sobre as Artes Visuais em Ser-
que eu entendo ser o papel do Estado. gipe”. Quando da comemoração dos meus
50 anos, eu elegi, sem nenhum critério mais
JLPolítica – Ficar sem esta Secretaria específico, 50 artistas sergipanos ou artisti-
de Cultura fez falta? camente considerados como tais; desses,
MB – A questão não é a Secretaria fisi- escolhi 120 obras. Hoje, eu vou às escolas
camente em si. É a gestão. Não é a nomen- falar sobre esses artistas, que transitam do
clatura ou o espaço físico que definem as século XIX ao século XXI, nas suas mais
ações e as políticas de cultura. Evidente- variadas manifestações: pinturas, escultu-
mente que uma Secretaria, com o seu status, ras, desenhos, fotografias e arte popular.
2019 Cumbuca | 41
JLPolítica – Os resgates e registros que o o histórico dele: órfão de pai aos seis meses
senhor tem feito em livros de grandes no- de idade, criado por uma mãe professora pri-
mes, como de Jenner Augusto da Silveira, mária, perseguida pela política da época, que
têm que poder de fixação do status das ar- além de sustentar seus dois filhos – o Jenner e
tes plásticas de Sergipe? o Junot –, tinha mais quatro irmãs dependen-
MB – Já são 22 livros. Acho que eles con- tes de seu salário. A condição de pobreza de
tribuíram muito para a valorização das artes Jenner infante e adolescente era muito gran-
visuais em Sergipe, na medida em que retra- de. A família contava com favores da igreja.
tam, em sua essência, os artistas sergipanos. A mãe dele era envolvida com questões reli-
Isso cria um sentimento de pertencimento, de giosas e políticas, o que oportunizava a seus
querer ter uma obra catalogada, de querer sa- filhos a serem coroinhas. Jenner namorou
ber a importância daquele artista. Quem con- uma sergipana de classe média, da família
ta essas histórias são os livros... Esses livros Mendonça, de Laranjeiras. Ele foi para Sal-
resgatam um sentimento de pertença, que é vador, mas ela não pôde acompanhá-lo. Não
muito importante para valorizar o que se tem, poderia visitá-la, por isso casaram-se por pro-
é muito gratificante chegar em casa e di- curação. Luíza foi a única mulher dele.
zer: “Eu não vou sair hoje à noite, ficarei
em casa contemplando a minha coleção”. JLPolítica – Essa pobreza também al-
Tem livro de várias tiragens. Por exemplo, cança J. Inácio...
o primeiro de Jenner Augusto teve quatro MB – De certa forma, sim. Mas a de Jen-
mil exemplares e foi esgotado. Teve uma ner teve a questão de ter saído de Aracaju. Ele
segunda edição, a convite do Banco do chega em Salvador muito pobre e consegue
Brasil, de mais 2.500 livros. O que posso se firmar no cenário nacional das artes. Não
afirmar, e com muito orgulho, é que eu sei se Sergipe teria dado essa oportunidade
nunca ganhei um centavo com esses li- a ele. Jenner volta a Sergipe para inaugurar
vros. Eles nunca tiveram como finalidade o o Museu Histórico de Sergipe, em São Cris-
lado comercial. Um detalhe: eu coloco nos tóvão, que ele realizou com o prestígio que
meus livros a inscrição “venda proibida”. tinha e através de amizade pessoal com im-
É como a mulher de Cesar: não basta ser portantes artistas nacionais. Consegue fazer o
honesta. Tem que parecer. que é hoje o museu, resgatando, inclusive, as
obras de Horácio Hora.
JLPolítica – Se Jenner Augusto da Sil-
veira tivesse se mantido em Sergipe, não JLPolítica – Tirando Caã, de J. Inácio,
ido para a Bahia, ele seria esse Jenner Au- não é tradição gerar descendentes nos pin-
gusto da Silveira que se tornou? tores de Sergipe?
MB – Infelizmente e provavelmente, não. MB – Veja, Jenner tem um filho, o Guel, e o
Não podemos comentar sobre uma situação neto, Zeca Fernandes, que são artistas conhe-
que não aconteceu. O que posso afirmar é que cidos. Guel é nacional e internacionalmente
a ida para a Bahia foi decisiva para Jenner celebrado. Eu já fiz exposições dos dois fora
Augusto ser Jenner Augusto. Considerando do país. Eles seguiram a tradição.
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JLPolítica – Aquela lei de que só se JLPolítica – Como se encontram os
inaugura prédios, mesmo que da inicia- espólios deixados por mortos recentes
tiva privada, com quadros de artistas e notáveis, como J. Inácio e Leonardo
locais nos halls, está valendo e sendo Alencar?
cumprida? MB – No caso de J. Inácio não houve es-
MB – Está valendo, sendo cumprida, pólio. Ele fez uma pintura de sobrevivên-
mas não considero a melhor forma. Ela cia. Era uma pintura do dia a dia. Isto não
é cumprida por uma imposição legal que tira dele o mérito de ser um grande artista,
é a necessidade de se ter uma obra nos mas o prejudicou. E os filhos dele, com os
prédios. Tem um quadro, está resolvido o quais eu tenho uma relação de convivência,
problema. A melhor forma seria fazer as não ficaram com esse espólio. Já no caso de
aquisições por editais, com escolhas que Leonardo Alencar, Cida, que era a mulher
valorizassem os artistas, sem a preocupa- dele, conseguiu ainda preservar algumas
ção de colocar no hall de um prédio, que obras.
tem apartamentos que valem R$ 1 milhão
de reais, uma obra que custa R$ 100 reais JLPolítica – Já foram vendidas?
no mercado. MB – Sim, uma parte. Não tenho acom-
panhado, mas como frequentador da casa
JLPolítica – O senhor questiona, en- posso lhe dizer: ele deixou uma razoável
tão, a qualidade das obras? quantidade de obras de arte, assim como
MB – Sim, essencialmente a qualidade. fez o Jenner. O Jenner, literalmente, fez o
Porque se atende ao requisito legal da pre- que a gente chamou de “coleção da viúva”.
sença da obra, mas não se tem o cuidado Ele tinha esse cuidado. Como ele nunca
de que sejam obras representativas. O que trabalhou com carteira assinada, a cada co-
é muito ruim, porque talvez essas constru- leção que fazia, reservava alguns quadros
toras, que vendem tão caros esses aparta- como sendo espólio da futura viúva, por-
mentos, deveriam lançar editais para ad- que ele sabia que ele morrendo, a família
quirir obras mais representativas. teria pelo menos esse patrimônio.
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JLPolítica – Como o senhor recebeu fato preservados?
a polêmica desenvolvida em torno da MB – Sim. Eles são a maior obra de Jen-
montagem do Largo da Sergipanidade ner, felizmente preservadas depois de 10
ano passado? anos de abandono. São a maior referência
MB – Como qualquer assunto relacio- do artista por vários motivos. Do ponto de
nado à cultura, a polêmica é inevitável. vista artístico, por marcarem o modernis-
Jamais se pode falar em unanimidade. A mo no Nordeste – a disposição do dese-
arte por si só questiona, provoca, agrega e nho, essa ausência de preocupação com
desagrega; é exatamente a função dela. Se a escola clássica, acadêmica, uma coisa
a arte não inquietar, ela não cumpriu sua de Di Cavalcanti e Cândido Portinari – é
função. Na questão do Largo, acho que tudo muito mais importante do que o que
alguns questionamentos são procedentes, você está vendo. Isso é muito significati-
outros não. A ideia do projeto é fantásti- vo para as artes visuais e para um artista.
ca! É um espaço que se criou. Uma forma A Monalisa não é a obra mais bonita de
de mostrar a cara sergipana. Com relação Leonardo da Vinci, mas ela é, definitiva-
aos questionamentos, principalmente com mente, a obra mais importante do mundo.
relação à autoria das obras, do porquê não Ela marca a mudança de uma era. Então,
ter sido feita por sergipano, será mesmo uma obra que tem o poder de marcar uma
que em Sergipe não tem artista? Talvez época, como é o caso dos painéis de Jen-
sim, talvez não. Eu acho que poderia ter ner, por si só, é muito importante.
sido discutida melhor essa questão da con-
fecção das obras. E a representatividade? JLPolítica – E marca também uma
Se tivessem 10 estátuas, estaria faltando; diáspora, já que ele pinta no ano em
se tivessem cem, estaria faltando. Então, que vai embora...
não tem jeito. Ali tem que ser entendido MB – Sim. Ele teve aquela visão de que
como um momento, um recorte. o Cacique Chá já era um espaço de dis-
cussão política e palco de acontecimentos
JLPolítica – Mas soma? sociais relevantes. Um local de eferves-
MB – Eu acho que ele agrega muito cência nas décadas de 1950 e 1960, onde
mais do que qualquer outra coisa. Ques- mulheres não frequentavam em um pri-
tiona-se: é prioridade? Claro. Se só tiver- meiro momento, e que depois passou a ser
mos uma obra de arte pública quando não o lugar mais chique de Aracaju. Era um
tivermos mais problemas em hospitais, na lugar que questionava! O “Cacique Chá”
segurança, na educação, a cultura nunca está para Aracaju assim como o “Anjo
vai ter absolutamente nada. O que tem que Azul” esteve para Salvador. O da Bahia
ter é seriedade: dinheiro da cultura para a não existe mais, mas era exatamente o lu-
cultura, dinheiro da educação para a edu- gar que Jenner frequentava, assim como
cação, dinheiro da segurança para a segu- Dorival Caymmi, Jorge Amado, Carlos
rança. Bastos, Mário Cravo e todos os demais ar-
tistas modernistas daquela geração, assim
JLPolítica – Os painéis de Jenner, como acontecia, guardadas as proporções,
recuperados no Cacique Chá, estão de com o nosso Cacique. O nosso tinha uma
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Ambientes da galeria Mário Britto
cozinha de vanguarda, tinha uma pegada porque, para ele, o que importava era a
diferente. Então esses painéis marcam a força. E, além desses painéis, Jenner tem
introdução do modernismo no Nordeste, outros, como o que está no foyer do Teatro
Atheneu (antes ficava no restaurante do
através da pintura de Jenner, porque que- Hotel Palace); o do Edifício Walter Fran-
bram paradigmas, por terem sido feitos co; e mais dois que estavam no aeroporto,
num lugar que conta a história de Sergipe, um continua lá em uma sala sem visitação,
com seus questionamentos e inquietudes; o que é um crime, porque uma arte que
porque resgata o Cacique como protago- não é visitada, é uma arte assassinada; o
nista da história do Brasil e do Estado. outro, que foi resgatado e transferido pela
Energisa para a sede da empresa. Esses
JLPolítica – Mas sociologicamente o painéis vieram da cultura muralista, e
painel sinaliza também algo forte da Jenner, por ser um homem de vanguarda,
história do Estado, no embate entre ín- trouxe-os para Sergipe. Tempos depois, na
dios e brancos. década de 1960, dois importantes painéis
foram pintados aqui por Jordão de Olivei-
MB – Sim. São importantes pela histó- ra, que são os painéis que ornam o hall do
ria, pelo conteúdo, pelo resgate. São de Palácio-Museu Olímpio Campos. Eles re-
uma importância extraordinária. Você vê tratam a economia da época. E o próprio
que a visão do branco retrata o cacique Jenner, assim como Leonardo Alencar,
com cérebro pequeno e ombros largos, ajudaram na montagem.
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Rádio Aperipê AM
chega aos 80 anos
Emissora pública marca a história da radio-
difusão sergipana se reinventando
Camila Santos
A radiodifusão em Sergipe começou do interior numa mesma sintonia.
na Aperipê AM, e ela está completando Nela, relevantes comunicadores cons-
80 anos em 2019. Inaugurada em 30 de truíram suas trajetórias, como o jorna-
junho de 1939, a primeira emissora de lista Raimundo Macedo, que atualmente
rádio do Estado se mantém firme no ar, comanda o programa Show Esportivo,
alcançando ouvintes além-fronteirasom que em setembro completará 40 anos e
um conteúdo que incorpora o regiona- já foi apresentado também pelos radia-
lismo nordestino e a radiofonia falada, listas Paulo Lacerda e César Cabral. O
caracterizada pela abertura dos seus mi- noticiário esportivo e as transmissões,
crofones para a grande participação de ao vivo, dos jogos dos times locais de
ouvintes, como a aposentada Edilene futebol, são atrativos característicos da
Bastos, 59 anos. Diariamente sintoniza- rádio Aperipê AM.
da na frequência 630kHz, ela simplifica
esta característica da emissora: “a rádio
AM fala da importância dos ouvintes,
digo que é falar com o seu vizinho, é no
pé do ouvido”, classifica.
Chegar deste modo às oito décadas
marca não somente a idade da emis-
sora, mas, sobretudo, a história da ra-
diodifusão sergipana. Também a his-
tória política, cultural, econômica e
social, que a emissora ajudou a contar
e construir junto com o sentimento de
sergipanidade que sempre propagou.
Por isso, tão importante data deve ser
lembrada. A emissora foi a primeira a
Raimundo Macedo
unir a capital Aracaju e os municípios
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O professor e radialista Vilder Santos
acompanha parte significativa desta his-
tória, tendo uma relação próxima com a
emissora. “Eu comecei a ouvir a Aperi- “Daí a impor-
pê quando eu tinha seis anos, em 1950. tância da gente
Naquele tempo pouca gente em Sergipe compreender o pa-
possuía o receptor de rádio e a gente até pel da AM e, por isso mesmo,
se deslocava para as bodegas, famosas, a gente vem a Aperipê, faz o nosso pro-
para ouvir as transmissões radiofônicas. grama Papo Reto prestigiando a emisso-
A Aperipê era a única do nosso Estado ra e sendo prestigiando por ela, utilizan-
e a gente ouvia, muitas vezes a retrans- do-se, portanto, desse espaço que entra
missão pelos potentes projetores das na casa de todo cidadão sergipano e
empresas de publicidade, transmitindo a além-fronteiras, para a gente se dirigir à
programação da Aperipê. Então foi as- população e levar portanto a nossa men-
sim que eu tomei conhecimento e logo sagem. Eu acho que o papel da Rádio
me apaixonei”, relatou. AM foi e é importante, em que pese a
gente hoje ter progredido, se é que isso é
progresso, para o sistema de frequência
80 anos e modulada, mas a rádio que funcionou
em ondas médias, a famosa AM, foi que
renovando-se primeiro chegou, que era e ainda é ou-
vida desde o cidadão que está lá na sua
Integrando o sistema de comunicação roça, àquele que vai tirar o seu leite, é o
pública, juntamente com a rádio Aperipê banquinho para tirar o leite, o balde e o
FM e a Aperipê TV, ela faz parte da nova radinho, e isso aconteceu a vida toda e
Fundação de Cultura e Arte Aperipê de portanto, oitenta anos. Eu fico aqui pen-
Sergipe (Funcap/SE), instituída em 2019 sando e olhando para Conceição e sen-
pelo governador Belivaldo Chagas, após tindo nela o mesmo desejo que eu tenho,
a fusão da Fundação Aperipê de Sergipe da gente chegar também aos 80 anos”,
com a secretaria de Estado da Cultura. O comentou o governador.
gestor estadual fala desse novo momen- Para a presidente da Funcap, Concei-
to da emissora pioneira, que integrada ção Vieira, esse é um momento de felici-
numa transmissão crossmedia, na veicu- dade para o Governo de Sergipe, e para
lação do Papo Reto, inova na radiodifu- aqueles que fazem o sistema Aperipê
são mais uma vez.
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Francisco Carlos - Paradinha do Chicão
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Gerivaldo Peixoto
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Clenaldo e Clemilda Professor Adriano
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Nazaré Carvalho
Álvaro Macedo
Luciano Reis
Manoel Silva
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Poesia
FOTO
POETA
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POEMA TRISTE SAUDADE
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FOLHAS MORTAS
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ERA UMA NOITE
CURA
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400 ANOS
DE LENDAS E MITOS:
a construção da sergipanidade
e a prata de Itabaiana
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Teria havido Sergipe sem a até automobilísticas multinacionais como
a Volkswagen nos anos 1970-1980, para
lenda da prata? criar gado. E esse modo de rastreio mineral
não vem de hoje: ele foi testado, primeiro
É fato minimizado ou simplesmente em Itabaiana, desde o fim do século XVI
ignorado por quase todos os estudiosos ao século XVII, com resultados pífios;
que a expansão pecuarista na Amazônia e a partir de 1664 na Jacobina, onde foi
e Centro-Oeste tem obedecido a fatores descoberto ouro em 1710. Curiosamente
econômicos e climáticos – baixo preço das foi nas terras supostamente vasculhadas
terras e chuvas abundantes – mas também por Melchior Dias Moreia, entre o rio
a algo bem mais cobiçado: a busca Paraguaçu e o São Francisco – Itabaiana
por minérios, especialmente os raros e e todo o Sergipe, obviamente; e Jacobina
preciosos como o ouro. Daí o interesse de - onde mais se concedeu sesmarias no
grandes corporações, incluindo bancos e século XVII.
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Prata mais importante
que ouro?
Ouro e prata são velhos conhecidos da Vivia-se a fantasia do El Dorado em todo
humanidade e usados como depósitos de o continente americano, e, mormente no
valores, dinheiro; todavia, politicamente, Brasil, com o encontro da mina de Cerro
o ouro só assume grande importância nos Rico em Potosi, hoje Bolívia, em 1534, is-
jogos de poder quando Nathan Rotschild so passou a ser uma mania daqueles tem-
acumula fartas somas do metal na pode- pos. O caminho natural da prata de Potosi
rosa Inglaterra com vistas a uma guerra para a Espanha passava por toda a costa
longa contra Napoleão Bonaparte, que, brasileira. Isso incensava ouvidos recepti-
porém, surpreendentemente é derrotado vos em seus portos, desde Cananeia-SP a
por Wellington em Waterloo, em 18 de Olinda-PE. Como centro do Brasil, Sal-
junho de 1815. Antes disso impérios como vador era onde se concentrava mil boatos
o assírio foram construídos ou destruídos de prata. Ali, Melchior Dias Moreia, um
financiados pela prata; e assim se seguiu, neto de Diogo Álvares Correia, o Cara-
desde o primeiro tirano ateniense, Peisis- muru e já senhor de terras no Recôncavo,
tratus (546 a. C.), enriquecido com a prata em Tobias Barreto e Itabaiana foi nomea-
de Laurium, aos embates entre Atenas e do escrivão da Câmara em 6 de feverei-
Esparta, corrompidas pela prata persa; dos ro de 1597, e a seguir, da Alfândega so-
romanos, ao nascer da república, indeni- teropolitana, então a mais importante das
zando os celtas (390 a. C.), ao poderosís- Américas, por onde passavam quase todos
simo exército de Aníbal Barca a derrotar a os navios em direção Índia e à China; e
mesma Roma; exército financiando com a ponto de apoio as corvetas espanholas car-
prata das minas da Espanha, à época co- regadas de prata da Bolívia em direção à
lônia cartaginesa. E, 1750 anos mais tarde Espanha.
veio a formação do maior império da his-
tória humana, o luso-espanhol dos tem- Melchior Dias Moreia vinha de avulta-
pos filipinos, com a prata sendo sempre o da aventura de entradista aos sertões do
principal financiador do poder. Urubu, como assim era conhecido todos
os sertões para além do Recôncavo, quer
para o norte, quer para o oeste. Vem daí o
nome original de Propriá, Sertão do Uru-
Nasce uma lenda bu de Baixo, ou Sertão de Baixo, em con-
traposição ao Sertão de Cima, hoje norte
Há exatos 400 anos, em 16 de julho de baiano. Sucedia ele aos dois desafortuna-
1619, provavelmente numa colina ordi- dos irmãos e seus parentes, João Coelho
nária do povoado Gandu II, próximo ao de Souza e depois o historiador Gabriel
atual Parque dos Falcões, no pé da serra de Soares de Souza, mortos ao tentar achar
Itabaiana, no mesmo município teve lugar a mítica prata.
o desfecho de uma história que já há três
décadas alvoroçava as cabeças dos poucos Não ficou claro se os cargos de governo já
imigrantes europeus que por aqui aporta- o foram como sinal boas intenções do rei
ram a partir de 1500, em todo o Brasil. Felipe III, já de posse da sua carta, comu
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Numa simples colina ao pé da grande serra, os destinos de um homem, de um lugar e de um
país viraram lenda em 16 de julho de 1619.
nicando o achado, ou não; mas o fato é quês almejado. De fato, garantias nulas;
que um dos pedidos de compensações de até mesmo no “Regimento que S. M. D.
Melchior por entregar as minas de prata ao Filipe II mandou passar sobre as minas do
rei se referia a um título de Marquês das Brasil,” de 8 de agosto do mesmo ano.
Minas, e que foi dado a D. Francisco de
Souza em 1606, deixando-o a ver navios. Em 1619 D. Luís foi nomeado governador
Além de três cartas enviadas ao rei, esteve geral na Bahia. Marcada a posse, D. Luís
pessoalmente em Madri; mas depois dessa de Souza se fez acompanhar na passagem
nomeação se fechou em si mesmo. de mais dois governadores de capitanias e
veio com numeroso séquito de soldados
O governo de D. Francisco de Sousa no ao encontro de Melchior, na barra do rio
Rio de Janeiro malogrou em encontrar Real, em 15 de julho. Ali encontraram-se,
minérios, contudo, atiçou a curiosidade e Melchior pôs-se a testar se realmente es-
do seu sobrinho, D. Luiz de Souza, no- tava sendo passado para trás, ludibriado.
meado governador de Pernambuco em 25 Somente no dia seguinte, ao chegar ao pé
de maio de 1616, que passou a trocar cor- da serra de Itabaiana deu-se a contenda
respondências frequentes com Melchior, que sepultou a mina de São Pedro para
conseguindo em 28 de fevereiro de 1618 sempre, e fez nascer a lenda de que a prata
uma carta da corte espanhola nomeando estaria em Itabaiana. Melchior pediu pe-
Melchior como descobridor da prata; po- las mercês requeridas em troca da entrega
rém nada de o conceder o título de mar- da mina e o governador negaceou. Como
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Melchior teimasse em não dizer onde se
achava a mina foi preso. Sob tortura apon-
tou para uma colina, oito quilômetros a
oeste, hoje o povoado Serra das Minas no
município de Campo do Brito. Como ob-
viamente nenhuma prata foi lá encontra-
da conduziram o prisioneiro pra Salvador,
ali ficando até a saída do governador geral
do cargo e consequente retorno a Portu-
gal, quando então, mediante polpuda so-
ma indenizatória ao governo Melchior foi
solto, morrendo logo a seguir quando de
sua volta ao Jabiberi, hoje Tobias Barreto.
E levando para o túmulo o seu segredo.
Virou lenda.
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Renato Mazze Lucas
O centenário de um
contador de histórias
Clóvis Barbosa
E
le nas- ta), Jacob Gorender (historiador e cientista
ceu em social), Luiz Viana Filho, Odorico Tavares,
Poju- Walter da Silveira, Dias da Costa (irmão de
ca, região metropolita- Dias Gomes), Jorge Amado, além de vários
na de Salvador, capital da nomes nacionais que colaboravam com arti-
Bahia, em 16 de abril de 1919. Mas gos e crônicas para a revista, como Rubem
lá sua vida foi efêmera. Após dois anos de Braga, Carlos Lacerda (sob o pseudônimo de
nascido já estava em Sergipe. Voltou a Sal- Marcos Pimenta), Carlos Drummond de An-
vador para estudar medicina na sua adoles- drade, Ledo Ivo, Leôncio Basbaum, Murilo
cência, onde, entre idas e vindas, passaram-se Mendes e outros. De Sergipe, José Sampaio,
oito anos. O resto de sua vida – até 13 de Enoch Santiago Filho, Aluysio Mendonça
dezembro de 1985, quando morreu de aci- Sampaio, Abelardo Romero, Joel Silveira e
dente vascular cerebral – foi em Aracaju e
Itabaiana, torrões que ele amou e onde cons-
truiu uma bela história de vida. O Lucas é do
seu avô paterno, que veio da Itália radicar-se
em Mangue Seco; o Mazze, do avô materno,
também italiano, que veio morar nas proxi-
midades de Terra Caída, às margens do rio
Indiaroba, pequeno afluente do Piauitinga.
Essas viagens a Mangue Seco, Terra Caída
e adjacências, o contato com os avós e suas
histórias de luta, sofrimento e saudades da
pátria distante, influenciaram no seu lado in-
telectual e na vontade, mais tarde, de contar
histórias.
Ainda na Bahia, como estudante, Mazze
Lucas aproximou-se dos intelectuais baianos
de então, que se reuniam em torno da publi-
cação da “Seiva” – a primeira revista do Par-
tido Comunista Brasileiro – numa espécie
de bunker da esquerda baiana, onde estavam
alojadas figuras como João Falcão (jornalis-
62 | Cumbuca 2019
Jenner Augusto, também contribuíram para o nasceram em
sucesso da revista que, apesar de sediada na Aracaju. Na
Bahia, tinha circulação nacional. Princesa da
Com essa influência da capital baiana, Serra, apro-
Mazze filiou-se ao Partidão logo após a re- ximou-se
democratização do país, com o fim da Segun- de um gru-
da Grande Guerra Mundial. Foi candidato a po ligado à
Deputado Estadual Constituinte em 1947, cultura e às letras, onde se destacavam José
tendo como colegas de cha- Crispim, Tenisson Oliveira, José Silveira e
pa Percílio de Oliveira, Antônio Oliveira.
Ofenísia Freire, Franco A sua formação cultural ganhou força
Freire, Carlos Garcia, em Itabaiana, onde, ao lado da sua mi-
Hernani Prata e Armando litância política – sempre direcionada
Domingues, este último eleito para a construção de um mundo me-
por ter sido o mais votado do lhor, mais solidário e igualitário
Partido Comunista. Após o – conheceu figuras exponenciais
casamento com uma paripi- daquele município. As suas his-
ranguense que conheceu em tórias, transformadas em contos,
Carira quando ali clinicava, geralmente curtos, são fruto da
Helena Rabelo, foi residir vivência com homens rudes e
em Itabaiana, local de nas- simples, como pescadores, mo-
cimento dos seus primei- toristas, soldados, loucos, feiran-
ros dois filhos, Vladimir e tes, carregadores, peões, etc. A sua
Anísio Dário. O primeiro experiência como médico psiquia-
para lembrar a figura de tra, cuidando da prevenção, diag-
Vladimir Ilitch Ulianov, nóstico, tratamento e reabilitação
o Lênin, e o segundo em das mais diferentes formas de
homenagem a um líder sofrimentos mentais, fez dele
operário sergipano um observador acurado do
morto pela polícia. comportamento humano, for-
Os dois filhos mais jando uma aptidão incomum
novos, Raimun- na arte de recriar as coisas
do e Tânia, que viu ou ouviu.
2019 Cumbuca | 63
Ilustração:
64 | Cumbuca 2019
cura não suprisse as pessoas de um ímpeto
vital irracional e incoerente? Não é mérito
da loucura haver no mundo laços de amizade guntando se eu conhecia Renato Mazze
que nos ligam a seres perfeitamente imper- Lucas. Disse que sim e, em resposta, fez os
feitos e defeituosos? Aliás, a Bíblia diz que mais largos elogios à obra Mazzeana e à for-
o número de loucos é infinito, e que todo ma narrativa dos seus contos. Esse encontro
homem se torna louco por sua sabedoria, e fez-me adquirir Anum Branco e Anum Pre-
ainda que no coração dos sábios há tristeza; to, mas somente os li por volta de 2009 ou
no coração dos loucos, a alegria. Essa ex- 2010. Fiquei embasbacado com o tratamen-
periência como alienista, aliada ao interesse to de solidariedade do narrador aos perso-
pelos seus semelhantes, faz de seus contos, nagens, sempre explorando os pontos posi-
unidos em duas obras principais – Anum tivos, humanos, seus sonhos, suas angústias,
Branco e Anum Preto – uma leitura simpá- numa linguagem marcada pela intensidade
tica e bem recebida pelo leitor, tal é o trata- da narração. Não seria exagero afirmar que
mento de compreensão e humanização com estamos tratando de um escritor regionalis-
que visualiza a loucura. ta, como explicitado por Nelson Werneck
Nos anos 80 do século passado estava no Sodré, marcado por um pequeno realismo,
Instituto Goethe, em Salvador, numa jorna- preocupado em retratar as minúcias do ves-
da de cinema, quando fui apresentado ao tuário, da linguagem, dos costumes, das
jornalista e escritor baiano Guido Guerra. paisagens e em valorizar o caráter exótico e
Ao saber que era de Sergipe, foi logo per- grandioso da natureza brasileira.
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ficcionistas põem em seus personagens um
pouco de si mesmos, dos seus sentimentos,
de suas volições, de suas alegrias e tristezas,
então em todos os que desfilam pelas páginas
de ‘Anum Preto’, ao contar-nos suas vidas,
vamos encontrar o Dr. Renato Lucas, que no
seu contato diuturno com os seus irmãos no
mundo, ‘bebeu o leite da bondade humana’,
de que nos fala Shakespeare”.
Uma desavença familiar – fruto de um ro-
mance extraconjugal – levou à destruição o
terceiro livro de contos que pretendia lançar,
mas os seus escritos esparsos, através de pu-
blicações em jornais e revistas de Sergipe e
de fora do Estado, estão a merecer uma ga-
rimpagem, proporcionando o conhecimento
da sua vasta obra pelas novas gerações. A sua
opção política pelo Partido Comunista o le-
vou à prisão várias vezes, sendo a de maior
tempo aquela ocorrida em 1952, quando, du-
Nesse ambiente, Anum Branco nos apre- rante onze meses, esteve detido na Peniten-
senta vinte e duas histórias, entre contos e ciária de Aracaju ao lado de diversos intelec-
crônicas, de conteúdo intensamente huma- tuais sergipanos, como Osório Ramos, José
nista, às vezes coadjuvados pelo humor de Rosa de Oliveira Neto, Otávio Dantas, Ro-
alguns dos personagens. Como diz Nestor de bério Garcia e outros. Esse período propor-
Holanda, ao analisar a sua obra (Rio de Ja- cionou a Mazze Lucas a leitura de clássicos
neiro, Diário Carioca, 10. ago.1961), Renato da literatura e a produção dos seus primeiros
Mazze Lucas interessa-se pelos seus seme- contos, que seriam lançados posteriormente
lhantes, gosta da humanidade. E sabe emo- na imprensa de Sergipe. Embora se afastasse
cionar o leitor. Sobre os vinte contos do seu do Partidão nos anos seguintes, nunca aban-
segundo livro, Abdon Lima, em Anum Preto donou as ideias socialistas.
(Renato Mazze Lucas. Rio de Janeiro, Edito- Numa terra onde a memória do seu povo
ra Leitura, 1967), diz: “Se é verdade que os é esquecida pelos órgãos oficiais, neste cen-
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Anum branco
tenário de
Renato Ma-
zze Lucas e de
tantos outros em
2019 – a romancista
Alina Paim, o poeta
Santo Souza e o escri-
tor Enoch Santiago Fi-
lho – resta a esperança nas
entidades culturais privadas,
Instituto Histórico e acade-
mias de letras, para que a cultura
sergipana não seja esquecida no
labirinto do tempo. Que os nossos
pesquisadores, a exemplo de Marcelo
Ribeiro e Gilfrancisco, continuem nas
suas ousadas garimpagens à procura de ou-
tros tesouros dos nossos literatos e dos nomes
que elevam a história do Estado. Enfim, Re-
nato Mazze Lucas poderia ser colocado entre
os clássicos contadores de histórias da vida
real, com atenção aos que estão no andar de
baixo do nicho social. A imaginação e o bom
humor estão contidos na sua narrativa, unin-
do a fantasia com elementos grotescos.
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‘‘A EDISE tem a grande
satisfação em fazer