Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Autor
Geraldo Magela dos Santos
Direção Geral
Patricia Pereira Silva
Fotógrafo Oficial
Tadeu Gomes
Projeto beneficiado pela Lei de Incentivo à Cultura
Tratamento das Imagens
LIC nº 3.648 Decreto 132/2005
Deskprint
Capa
Foto de Rafael Aquino
Orientadora Pedagógica
Roseli Aparecida Silva
Revisora
Esther Rosado
Impressão
Jac Editora
Contato
magborbagatto@gmail.com.br
O objetivo deste catálogo didático e
informativo é divulgar o tema paulistinha
sobretudo entre o público estudantil e
popular.
O presente material que agora temos em mãos é fruto Tantos anos depois é uma alegria poder ver o aprofunda-
do trabalho laborioso, cuidadoso e amoroso de Magela mento do artista nas pesquisas relativas às Paulistinhas.
Borbagatto. Conheci-o na década de 1990, quando residia O seu gesto revela compromisso. Coeso com seus princí-
na cidade de Jacareí; era o “Magela”, como todos diziam pios, com sua postura, com suas crenças. Ele crê na arte, na
e ainda dizem. Aquele! Um misto de muitos títulos, cultura e na educação enquanto força motriz do humano.
habilidades, artista visual autodidata, pintor, ceramista e A publicação deste catálogo assume uma importância
conhecedor dos santos e da cultura da sua terra. Conhecedor imensa, pois, ao trazer a público esse acervo de Paulistinhas
e fazedor de cultura, homem das artes, arte-educador no do Museu de Antropologia do Vale do Paraíba (MAV),
sentido mais amplo da palavra, íntegro, inteiro, “santeiro Magela faz cumprir um dos grandes propósitos das instituições
desbravador dos mistérios e saberes” do seu lugar, da sua culturais que diz respeito à disseminação.
terra, dos espaços por onde anda e andou fazendo arte e
fazendo educação. Transformando pessoas, dando outros Ao tornar público esse acervo, ele possibilita que nos
rumos e destinos por meio dos conhecimentos possíveis de religuemos à parte da nossa cultura, da nossa história, da
cada um que fazia e faz emergir. nossa presença no mundo. O Mestre da Cultura, fazedor
de cultura, arte e educação faz-nos conhecer uma parte de
Foi trabalhando conjuntamente com formação de nós mesmos, talvez esquecida, empoeirada nos conjuntos
educadores na Rede Municipal de Educação de Jacareí de bens do esquecimento. Ao contemplarmos uma dessas
que Magela e Sílvia Bigareli nos colocaram no universo das Paulistinhas, poderemos reencontrar a energia das mãos,
Paulistinhas. Vivemos ali a possibilidade de unir as heranças muitas vezes anônimas, que moldaram o barro, fazendo-se
culturais do Vale do Paraíba com o universo da arte nacional fé em forma de imagem. O catálogo em muito irá contribuir
e internacional. Praticamos ali uma formação intercultural, para ações educativas, para a mediação cultural, assim como
em que imagens do século 19 puderam ser relacionadas a para trabalhos com arte educação e educação patrimonial.
imagens da arte moderna e contemporânea. Uma aluna/ Muito irá ganhar o ensino de arte, pois a pesquisa do artista
educadora participante do curso revelou: possibilita a todos nós acessar um tanto de nós próprios, uma
parte daquilo que foi modelado pelos que vieram antes de
“Dois momentos importantes no curso foram: nós e que agora se desvela pelas mãos do Mestre da Cultura
a redescoberta das Paulistinhas e a modelagem Magela Borbagatto.
com a argila que retomava a história e a
Prof. Drº Ronaldo Alexandre de Oliveira
curiosidade, possibilitando questionamentos”. Depto de Arte Visual | Universidade Estadual de Londrina
7
Santo Antônio h
São José h
Nascidas nas terras de Mogi das Cruzes, desceram a Se comparada às províncias do Nordeste brasileiro e de
Serra e vieram fazer morada no grande Vale do Paraíba. Minas Gerais, onde havia riqueza, artes e letras, a Província
Companheiras das preces dos caboclos nas aflições de São Paulo foi a que por último despertou e se desenvolveu.
da vida diária, viveram entre nós durante 120 anos, E, talvez, pela escassez de entalhadores, ou pela presença
aproximadamente, chegando até a cidade de Silveiras, ou um de bom barro ao longo do Rio Paraíba, é que os primeiros
pouco mais além. Mas também foram ficando pelo caminho, santeiros optaram por essa matéria prima.
9
10 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
MAV
Museu de Antropologia do Vale do Paraíba – Jacareí/SP
Elas, que nasceram para as “casas dos caboclos”, O museu nasce sob propósito de ser um ponto de
hoje moram no Solar do Coronel Gomes Leitão, residência convergência e diálogo dos valeparaibanos. Tem por meta
desse antigo escravagista e influente senhor em Jacareí, pesquisar, divulgar e acolher as manifestações ancestrais e
no século 19. atuais dessa gente e, considerando-se as Paulistinhas uma
presença viva no cotidiano desse povo, podem ser entendidas
Tal casarão foi também escola durante algum tempo, para aqui como um traço de identidade daquele momento
depois ser dedicado a sediar o MAV e é ali que vamos histórico.Essas imagens, exemplares da arte popular religiosa
encontrar o rico acervo de Paulistinhas, desde as mais daquele tempo, aguardam o momento em que estarão
antigas, no final do século 18, até as últimas já do início plenamente expostas e estudadas pelos novos “caboclos” do
do século 20. Vale do Paraíba.
11
Peças dentro do forno para queima a lenha
12 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
O santeiro e suas tecnologias
Voltemos ao século 19, a fim de que possamos imaginar as E depois de tudo isso, entregar as encomendas e fazer as
dificuldades encontradas por um santeiro que quisesse viver vendas, nas feiras locais ou, ainda, contando com a ajuda
a aventura de produzir uma imagem do gênero Paulistinha. de um mascate.
Esse “caboclo” precisava ter conhecimentos variados: Esse santeiro foi, portanto, um ser humano que destacou-se
UÊ Saber do barro e de seus mistérios; daqueles com os quais conviveu.
UÊ Dominar as suavidades da modelagem;
Transformou o barro em sonho, o sonho em mercadoria, a
UÊ Conhecer o santo e seus detalhes;
mercadoria em algo sagrado e o sagrado em arte.
UÊ Construir um bom forno à lenha;
UÊ Entender de tintas e pincéis, e provavelmente fazê-los;
UÊ Equilibrar o poder do fogo;
13
14 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
O barro e seus mistérios
O barro é a grande mãe da Paulistinha, assim como o fogo é com os pés ou socadores até que se torne uma massa fina
seu pai! ... E o santeiro? ... Bem, é ele quem promove o parto, e homogênea).
fazendo nascer do barro e batizando no fogo as criações que
estavam adormecidas em cada partícula de argila... Feito isso, o santeiro retirava um pedaço dessa argila e
levava para o seu local de trabalho e, mais uma vez, fazia
Cada tipo de barro gera um objeto diferente. Existe o o processo de sovar (bater e bater aquela massa para que
barro para fazer telhas, para modelar tijolos, para tornear ficasse o mais modelável possível, eliminando também as
potes e panelas e outros, ainda mais flexíveis, para as bolhas de ar do barro, evitando, assim, rachaduras e perdas
criações artísticas. O barro bom para modelar imagens fica das peças ao irem ao forno).
escondido a certa profundidade. Está ali à espera de quem
o encontre, de quem o traga à tona e que saiba com ele A partir daí, iniciava-se a modelagem que, após ser feita,
conversar, pois a modelagem é uma conversa silenciosa das ia para a secagem à sombra até atingir uma resistência ao
mãos com o barro. toque chamada de “ponto de couro”. Era nesse momento
que o santeiro dava alguns retoques e fazia o alisamento da
Depois de tirá-lo de seu esconderijo, é necessário decantá-lo peça, tornando-a oca para que recebesse a queima. Após
(processo de colocar o barro em buraco raso para diminuir a secagem na sombra, era colocada ao sol até que grande
seus terrões em pedaços bem pequenos e, depois, amassá-lo parte da umidade evaporasse.
15
16 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
A modelagem
Modelar um objeto qualquer pressupõe tê-lo gravado na Existem diferenças e simbologias importantíssimas para
memória, ou, ainda, ter em mãos um modelo, uma figura identificar uma imagem de santo, conhecimento denominado
que possa servir de inspiração. iconografia. Naqueles tempos, o santeiro poderia contar
apenas com descrições mais ou menos apuradas por parte
Aqueles santeiros, diante das encomendas feitas e firmadas, do devoto que fazia a encomenda, a orientação de algum
precisavam saber dos símbolos que fazem um “santo” ser padre ou religioso, quando existia, ou, ainda, uma estampa
diferente do outro, pois cada um deles traz consigo um que lhe tivesse chegado às mãos.
atributo que conta um pouco de sua história, algo que o
tornou um ser humano santificado . Pode ser uma roupagem Em nossos tempos, isso seria tão fácil: um simples teclar
diferente, um ramo de folhas ou de flores em uma das ou toque e teríamos todas as informações necessárias sobre
mãos, um livro, uma espada, um menino ao colo ou nos o santo em questão. Haveria uma enxurrada de imagens,
braços. Precisava saber desses detalhes, para poder atender textos, pesquisas feitas; mas, no ainda adormecido Vale do
com qualidade o pedido de um devoto ou uma demanda Paraíba do século 19, seria necessário consultar a intuição,
comercial. a inteligência e parcas informações para modelar as figuras.
Resolvidos esses detalhes, usaria ferramentas simples:
E onde buscava essas informações? Como saber se um santo estiletes de madeira ou bambu, facas velhas ou canivetes,
era franciscano ou beneditino? Como distinguir uma Nossa espátulas obtidas a partir de pequenas tábuas e outras,
Senhora do Rosário de uma Nossa Senhora do Bom Parto? informais, encontradas no uso e ao acaso.
Como saber a diferença entre São Bento (Benedetto) e São
Benedito?
17
18 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
A queima
Se existe poesia no processo da modelagem, com certeza se evaporado junto com a água. Nas primeiras horas do fogo,
há muita paixão no processo da queima. Construir o forno, ele é fraco, tímido, alimentado com gravetos e palhas; depois,
arrumar a lenha e domar o fogo é algo como um processo de lenha mais grossa até que a fumaça que sai pela chaminé
domesticação das labaredas, conduzindo-as lentamente à possa ser vista junto com as labaredas e, nesse momento, as
temperatura certa, para que aquele barro se torne cerâmica, peças de dentro do forno assumem a mesma cor da brasa.
deixando de ser frágil para ser imortal. A magia contida no O barro deixou de ser argila para se tornar cerâmica. A partir
barro- de se transformar para sempre ao contato do fogo - é dos 600°C , a argila se despede de sua antiga maleabilidade
algo que deve ter impressionado muito aos primitivos seres para assumir outra condição de existência.
humanos quando perceberam, por acaso, que a argila era
capaz de se tornar firme e estável após a queima. Nossas Paulistinhas passaram por isso, chegando prova-
velmente perto dos 800°C. Deixaram de ser vulneráveis
Tal procedimento é demorado e pode levar de 6 a 8 horas de e chegaram até nós pelo simples fato de terem passado
fogo, do brando ao intenso, até que todas as impurezas tenham pelo fogo.
rego
19 Bor
triz
: Bea
Foto
20 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
A pintura e demais acabamentos
O santeiro, desbravador dos mistérios e saberes, deu ao nos chumaços de algodão atados à ponta de algum palito.
barro uma forma, uma identidade; depois infligiu-lhe ainda Os traços finíssimos dos olhos e da boca, poderiam ter sido
a transformação pelo fogo, e agora chega ao maior desafio: pintados com pontas de espinhos ou graveto preparado a
dar a ele a vida por meio das cores das tintas, tão escassas e canivete para esse uso.
de difícil variedade.
Ao observarmos a delicadeza do traço desses olhos e
Nossas Paulistinhas foram encarnadas (pintadas) com dessas bocas, não há como não se encantar com tamanha
poucas cores, sendo elas: o azul, o vermelho alaranjado, segurança e domínio de linhas tão finas e harmonizadas,
o preto, o branco, o ocre, e qualquer outra cor que pudesse dando à imagem um quase sorriso, um olhar que conversa,
nascer dessa pequena família de pigmentos. Possivelmente um olhar que compreende aquele com quem interage.
as tintas disponíveis eram em pó, sendo diluídas em cola Algumas poucas imagens possuem acabamento com
vegetal ou animal, ou na forma de têmpera (tinta obtida pequenos retângulos de ouro de baixa qualidade, um
misturando-se o pigmento com gema de ovo). verdadeiro luxo em se tratando de objetos de culto para
camadas populares.
Após ser queimado, o barro cinzento torna-se quase branco;
sobre essa superfície era aplicada algum tipo de base, que A maioria apresenta ornamentos florais: um ponto central
poderia ser um líquido levemente espesso feito com tabatin- circundado por cinco ou seis pontos formando ,assim, uma
ga (barro branco usado pelos caboclos para pintar as paredes flor estilizada como as que crianças gostam de desenhar
de suas casas de pau a pique), ou com cal diluída em água. em sua infantil simplicidade. Tais flores podem ter sido
Estaria, assim, pronto para receber as cores. Na ausência herança de nossos indígenas, mestres nos padrões
de pincéis que pudessem ser comprados, surgiam pontas de geométricos e pontilhados; outras imagens, bem poucas,
penas macias, pincéis improvisados ou, ainda, peque- apresentam pequenos ramalhetes coloridos.
21
Maria Benedita Vieira
São José dos Campos/SP
22 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
O santeiro e a figureira
23
Paulistinhas encontradas
km 318
347 peças SP
Itajuba Lavrinhas 058 Itatiaia
Poços de Caldas
Cruzeiro Queluz
BR SP
km 18
459 058
SP
183 SP
058
Cachoeira Paulista SP
068
Canas
Rodovia
Silveiras dos Tropeiros
Lorena
Guaratinguetá
km 51
Aparecida
SP
062
Pindamonhangaba Roseira
Rodovia
SP
km 87
171 Cunha Parati
Rodovia Floriano
km 99
R. Pinheiro Taubaté
Campinas é
São Luís do
Paraitinga Parati
km 165
RJ
SP 165
Rodovia 103 SP
km 180
121
dos Tamoios
km 182
Arujá
á Paraibuna
SP
070
Santa Branca
Guarulhos
Presidente Dutra
Rodovia
Natividade
km 230
Caraguatatuba
Resende
km 258
RJ
Barra Mansa 141
RJ
161
Segundo Eduardo Etzel (Imagens Religiosas de São Paulo,
RJ RJ
o núcleo de onde irradiavam as imagens; portanto, o centro
157 155
p.109) “a proveniência das imagens, evidencia com de sua confecção. Acreditamos que este centro mantivesse
segurança
SP
064 a presença145 e a frequência
RJ
RJ
km 206 relativa das viva a tradição paulistinha, passando a arte da sua feitura
SP
068
Paulistinhas; pode-se
139
concluir por seu exame, que a de geração para geração, com a sucessão dos santeiros
km 166
Bananal
SP
zona de 155maior frequência foi, com muita probabilidade,
RJ
da região.”
247
Início da Rodovia
Bocaina Presidente Dutra – km 163
RIO DE JANEIRO
WĂƵůŝƐƟŶŚĂƐĞŶĐŽŶƚƌĂĚĂƐĞŵĐĂĚĂĐŝĚĂĚĞ
25
26 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
O oratório
O oratório era a “casa dos santinhos” de devoção familiar. Na capela, abria o sorriso e a esperança, acompanhando as
Aquela caixa com portas era um coração aberto para acolher “rezas” feitas por um igual de sua comunidade, o “rezador
as súplicas e os agradecimentos de todos. capelão”, para depois de a reza feita, junto com os vizinhos
em festa, contar os causos, arrematar as prendas do leilão e
Pintado ou rústico, era ali que as Paulistinhas se instalavam quem sabe dançar e cantar umas modinhas de viola.
para se tornarem silenciosas ouvintes, intermediárias entre
o devoto e Deus. No oratório, abria o coração, iluminado pela fé simples e por
um toco de vela ou de uma lamparina fumarenta. Diante
A igreja, a capela e o oratório são três momentos distintos daquele pedaço do céu, pedia pela saúde, pela colheita, pelas
na vida do caboclo: criações, e por tudo o mais que lhe fizesse doer a alma...
27
Molde de vulto.
28 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
Os moldes
Nesse trecho da conversa, fica um grande enigma: os senso de medida e proporção dentro da memória da mão que
santeiros de Paulistinhas teriam usado moldes para facilitar modela. Ela sente o quanto de barro é necessário, o quanto
a modelagem das imagens? E de que material teriam sido se deve esticar a massa, e os repuxos a serem feitos. E a
feitos tais moldes? produção segue o mesmo padrão, quase a mesma medida,
todos parecidos em forma e tamanho, se observados no
Etzel (Imagens Religiosas de São Paulo, p.104-131) e outros conjunto.
estudiosos do tema nos informam a respeito da existência de
moldes grosseiros, usados apenas para dar um vulto geral da No interior do Vale do Paraíba, a palavra “molde”, pode
imagem, a fim de que recebesse acabamento individual em representar para o “caboclo” uma peça que vai servir de
seguida. Nada sabemos sobre a matéria prima utilizada na referência para se olhar e copiar outra, por observação.
fabricação desses possíveis moldes. Poderiam ser de barro cru Nossos santeiros podem ter se inspirado em outras imagens
ou queimado, sebo ou cera endurecida, chumbo ou até mesmo existentes; no entanto, seu talento e dedicação fizeram com
o gesso que normalmente se usa para moldar peças de barro. que ficassem parecidas umas com as outras, sem que fosse
necessário usar moldes para a produção em grande número.
É sabido que, ainda hoje, o artesão ou o artista popular cria Embora haja afirmações por parte de Lázaro, filho de Dito
e recria suas obras, por vezes em série. A habilidade manual Pituba (santeiro de Santa Isabel/SP) de que o pai havia
das figureiras e figureiros, permite que muitos pavões e comprado uns moldes, nenhum chegou até nós, fazendo
galinhas sejam modeladas sem o uso de moldes. Existe um com que a dúvida permaneça.
29
30
Fonte: Acervo do MAV
DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
Eduardo Etzel
As imagens de nossos antepassados são as testemunhas de uma vida dura, mas cheia
de ação e de fé dos nossos primeiros, a enriquecer, hoje, a imaginação dos paulistas,
cônscios de um passado de lutas, de pobreza e de confiança, fundamentos dos dias de
progresso e de riqueza que ora usufruímos. (Etzel. Imagens Religiosas de São Paulo, p.298).
Médico que veio ao Vale do Paraíba para curar, visitou Inspiração Sagrada e Religiosa - Sincretismos, p.104-109) situa
aquelas gentes que precisavam do seu saber e do seu como sendo a cidade de Estremoz, berço de influência dessa
auscultar. Nas andanças como médico, em meio a pessoas tipologia.
simples, descobre, além da dor e dos males do corpo, uma
beleza em forma de fé: as Paulistinhas. Etzel aprofundou-se nessa busca, apurou os sentidos e
graças a ele temos uma boa abordagem a respeito da riqueza
Foi seu olhar sensível, científico e de colecionador curioso, encontrada nas igrejas, capelas e oratórios do Vale do
que nos revelou a arte religiosa existente nas casas, sítios e Paraíba.
fazendas da região.
Como médico curou a muitos. Como pesquisador da arte
Chamou nossa atenção para a possível origem de estilo religiosa brindou-nos com publicações e acervos que
como sendo portuguesa, o que Carlos A. C. Lemos (A Divina mostram beleza e história.
31
Fonte: Estremoz
32 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
Estremoz
A presença do Homem no concelho de Estremoz é verifi- No ano 1383, estava o Castelo nas mãos dos partidários de
cável desde pelo menos o Paleolítico Superior (Monte da D. Beatriz, quando o povo se rebelou e fez cair a fortaleza
Faínha Evoramonte). Do período Neolítico há mais de uma para as mãos do Mestre de Aviz, em episódio que se repetiu
dezena de Antas no concelho, designadamente em Evora- por diversas povoações alentejanas.
monte e Glória.
Também aqui ficaram D. João I, que fez Cortes em Estremoz
A presença romana no concelho deixou igualmente a sua em 1416, bem como D. Duarte, que aqui se encontrou com
marca no território. Destacam-se a villa de Santa Vitória um enviado do Papa que lhe trazia uma Bula de Cruzada
do Ameixial e uma estrutura hidráulica popularmente de- contra os infiéis.
signada de “Tanque dos Mouros”. Dos Visigodos, o vestígio
de maior relevo é a necrópole na Herdade da Silveirona, Durante a Restauração da Independência (1640-1668), a
freguesia de Santo Estevão. Coroa adaptou o velho paço medieval, o qual estaria pro-
vavelmente já parcialmente em ruína, a armazém de guerra.
D. Afonso III, rei que atribuiu foral a Estremoz no ano de Aqui se recolheram os fantásticos despojos das vitoriosas
1258, refundou o Castelo de Estremoz por esta data. Já na e decisivas batalhas do Ameixial (1663) e Montes Claros
época de D. Dinis o Paço deste Castelo estaria concluído, (1665), os quais infelizmente se perderam quando se deu
tendo daqui mesmo este monarca enviado emissários a Ara- a explosão deste mesmo armazém em 1698, a qual fez com
gão para pedir a mão em casamento da infanta Isabel, futura que o imóvel ficasse num estado de destruição tal, que não
Rainha Santa. mais era possível utilizá-lo.
Nos aposentos deste Paço faleceu esta Rainha em 1336, Reinando D. João V, no ano de 1736 o Conselho da Coroa
cujos restos mortais, segundo vontade testamentada, foram decidiu instalar em Estremoz, no antigo paço medieval, en-
posteriormente transladados para o Convento de Santa tão em grande ruína pela explosão de 1698, uma das mais
Clara, a Velha, da cidade de Coimbra. significativas Armarias Reais em solo nacional, tendo esta
capacidade para armazenar cerca de 40.000 peças. A obra
Em Estremoz habitaram por alguns períodos, D. Afonso III, foi finalizada no ano de 1742, tendo sido dirigida pelo enge-
D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro I, o qual faleceu em Estre- nheiro António Carlos Andreis.
moz em 1367 e D. Fernando.
33
Em 1808, quando se deram as invasões francesas, esta Ar- O Regimento aqui sediado, em 25 de Abril de 1974, toma
maria foi totalmente saqueada e o recheio destruído pela parte na Revolução dos Cravos que derrubou o regime dita-
soldadesca napoleónica. Já no século 20, em 1926, Estremoz torial do Estado Novo.
é elevada à categoria de cidade.
Hugo Guerreiro
Responsável do Museu Municipal de Estremoz
34 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
Breve história dos bonecos de Estremoz
As primeiras referências ao figurado de Estremoz são de prin- apenas sabia modelar “Assobios”, a ensinar o que sabia da
cípios do século 18. Em 1770, sabemos de umas “boniquei- arte e a participar no processo de “ressuscitar” as figuras que
ras”, mulheres que faziam curiosidades de barro e figuras e já ninguém modelava desde a década passada.
que tinham um trabalho não reconhecido enquanto ofício.
Deste feliz encontro de saberes, nasce o gosto da família
Os bonecos tiveram certamente início na necessidade espi- oleira Alfacinha, nomeadamente Mariano da Conceição
ritual, ou seja, o povo queria ter em casa os santinhos da sua pelos bonecos, que o transmite a alguns empregados da
devoção. Comprá-los em talha era impossível dadas as dificul- Olaria e a familiares diretos.
dades do quotidiano, pelo que, supomos, uma mulher habitua-
da a lidar com o barro se terá atrevido a modelar pela primeira Em Estremoz, hoje, ainda se modelam bonecos, sejam os
vez um santinho da sua devoção particular e daqui terá nasci- de gosto local, ou até os de índole contemporânea, graças
do a tradição numa terra onde o barro era abundante. à ação desta Escola.
Dos santinhos, e dada a expansão do gosto presepista da Modelam bonecos actualmente as Irmãs Flores, Fátima
setecentista Escola de Mafra, passou-se às cenas de nativi- Estróia, Afonso e Matilde Ginja, Duarte Catela e Ricardo
dade. Os Presépios eruditos, observados nos Conventos e Fonseca. Utilizando as técnicas tradicionais, mas modelan-
casas abastadas, depressa foram adaptados à mundividência do com formas contemporâneas e locais, temos Isabel Pires,
popular das bonequeiras. Assim, na cena envolvente à da Jorge da Conceição e Célia Freitas/Miguel Gomes.
Sagrada Família nasceram os Reis Magos, os Ofertantes re-
gionais, e um vasto repertório como o “Pastor a comer”, o
“Pastor a dormir”, a “Mulher das Galinhas”, o “Pastor com
o cabrito às costas”, entre outros. Hoje estas figuras “sobre-
vivem” fora do Presépio. Em oitocentos, homens começam
a intrometer-se na arte, segundo sabemos através da barrista
Georgina, que confirmou a Sebastião Pessanha, no princípio
do século 20, ter aprendido por intermédio de seu esposo.
35
36 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
O acervo do MAV
O acervo de tímido nascimento ganhou força nova Vieram pratarias, santos de capela e igreja, mas, acima de
quando chegaram as coleções do Dr. Eduardo Etzel. Novas tudo, vieram ter conosco as Paulistinhas de todos os tama-
cores e novas histórias passam a fazer morada nos armários nhos e de todas as partes do Vale do Paraíba, dos formatos
do MAV; cada imagem veio de uma casa, de um lugar, de mais eruditos aos mais populares; dentre eles , os “pitubas”.
uma gente diferente.
E vieram muitos santos: Santas Anas, Piedades, Beneditos
Há um antes e um depois da chegada dessas coleções: e Bentos, Josés de Botas e Luzias. O céu do Museu de
a partir delas, o acervo fica mais rico, mais robusto e Antropologia está completo e repleto. Em silêncio, o acervo
diversificado. aguarda o momento de ser enaltecido e reconhecido.
37
^ĆŽ:ŽĆŽĂƟƐƚĂ
Santa Isabel
38 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
Dito Pituba
“Pituba, o santeiro”, assim era conhecido na cidade de Antigos relatos revelam que enquanto conversava, ficava
Santa Isabel/SP, onde nasceu e viveu. Onde sonhou, sempre a esculpir com um canivete, uma pequena imagem de
modelou, esculpiu e pintou. santo. Criava incessantemente. Amava o que fazia. Parecia
ter pressa em fazer tudo, de experimentar os limites de sua
Homem de muitas artes e saberes, veio ao mundo em 1848 criatividade e habilidade.
sob o nome de Benedito Amaro de Oliveira.
Pôr do sol do longo dia dos santeiros profissionais e devotados
Aprendeu com o pai a fazer as “escrituras de mão” (contratos ao ofício, Dito Pituba já percebia o fim daqueles tipos de
de compra e venda para os moradores da região). Fazia telhas santos feitos em barro e madeira, pois a produção industrial
enfeitadas com desenhos, datadas, pois lhe agradava colocar chegava para ficar. Vieram as imagens de gesso oco e de
datas nas coisas que fazia. Esculpiu imagens de grande gesso maciço, com formas mais definidas e clássicas. Novas
porte, para igrejas do Vale do Paraíba e região. São muito cores e brilhos.
conhecidas as imagens que fez do Senhor Morto, usadas nas
cerimônias de Semana Santa. A nova estética se impôs! Não havia mais espaço para as ima-
gens feitas sob encomenda, uma a uma, como era de costume.
Fez e pintou muitos oratórios, santos para mastros de festas,
modelou Paulistinhas, esculpiu em madeira e desenhou a Em 1926, Pituba sobe ao mundo dos santos! Santos que
lápis os ex-votos (objetos que são oferecidos em devoção e fez brotar por tantas vezes de suas mãos. Sobe ao grande
agradecimento por uma graça alcançada, por intermédio de oratório, acompanhado de toda tradição dos velhos
um santo). Aceitou todo o tipo de encomenda sacra de que santeiros, e com ela leva também as últimas Paulistinhas
pudesse dar conta. de que se têm registro.
39
Fonte: Acervo do MAV
Essas palavras tão lindas e tristes, do nobre poeta e luminar Para essas pequenas testemunhas que chegaram até nós,
português, podem muito bem servir de explicação ao fim dediquemos respeito, estudo e curiosidade científica, senso
e ao destino que muitas imagens religiosas, inclusive as de preservação.
Paulistinhas, tiveram desde que caíram em desuso. Muitas
foram abandonadas em capelas e santas cruzes à margem Paulistinhas: pequenas no tamanho e grandiosas em
das estradas. Outras, quebradas por já não serem mais sua importância. Traço de um povo que viveu à
interessantes ou, talvez, por uma mudança de opinião sombra dos casarões e de seus barões assinalados,
religiosa, e algumas foram dadas aos colecionadores em vestígio e memória do jeito “caipira” dos habitantes do
troca de dinheiro ou de outras mais bonitas e modernas. Vale do Paraíba.
41
São José de Botas
Santa Luzia
Final do século 19
42 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
As Paulistinhas e o olhar do caboclo
Com o passar do tempo, as primeiras Paulistinhas (feitas Esse interioriano que sabe dos ciclos da terra, que enfeita
possivelmente por mãos mais eruditas) deram lugar ao seus altares e arraiais, que cultiva plantas e lida com
jeito de ser do “caboclo”. Os santeiros que foram surgindo, animais, passa a se ver representado na Paulistinha.
imprimiram sua cultura nos santinhos que produziam.
As vestimentas dessas imagens são aquilo que têm que ser,
No rosto, o sorriso existe mas não é aberto e o olhar sem panos em demasia. É como o paletó surrado e apertado
inspeciona com delicadeza, tal como o caboclo que dos homens e como o vestido estampadinho das mulheres,
naturalmente escuta e assunta, antes de se entregar a uma de funcional elegância e mais nada.
empreitada. Sorriso que espera e se mantém até o momento
de dizer e de falar algo que tenha importância. A Paulistinha não quer seduzir com os volumes do Barroco,
contenta-se em ser um santinho simples, legítimo e verdadeiro,
A postura rígida indica espera, aguardo e paciência, maneira de poucas palavras, presente junto ao seu público devotado.
como o caboclo observa o horizonte a fim de receber um
conselho. Percebe o vento, sente o cheiro da chuva, escuta E como citado anteriormente: vazia por dentro para ser
os silêncios ao redor. Há força de caráter e simplicidade. preenchida de fé!
43
iIndício de
má qualidade na queima
iIndício de
excesso de temperatura
h
Fragmento de
São Joaquim com boa queima
44 DĂŐĞůĂŽƌďĂŐĂƩŽ
Fragmentos...
Conhecimento e arte
naquilo que sobrou de uma Paulistinha
Ainda que despida de sua função, de suas cores e até trincas na superfície da imagem, indicando a fragilidade
mesmo de partes importantes daquilo que foi um dia um do barro para suportar tal temperatura ou a proximidade
objeto de culto,os fragmentos das imagens guardam beleza muito grande à abertura na grelha interna do forno por
e informações fundamentais sobre o fazer e seus caminhos. onde o fogo passou.
Na foto ao lado, a imagem central revela o belo rosto do As Paulistinhas querem falar... Querem falar do caboclo
que deve ter sido uma imagem de São Joaquim. Percebemos valeparaibano do século 19, da sua importância que lhes
o cuidado do santeiro em definir olhos, cabelos e elegância cabe como objeto de arte, da sua função antropológica na
simples da vestimenta. História do Vale do Paraíba, da sua contribuição humilde na
História da Imaginária Religiosa do Brasil.
À esquerda, uma imagem rompida pela má qualidade da
queima, denunciada pelas manchas escuras no interior das Querem falar com você, leitor, que chega ao final desse
paredes da peça, indício da pressa ou inabilidade do santeiro catálogo sendo apresentado a essas belezas de olhar terno,
no domínio da temperatura ideal. À direita, temos a situação de postura rígida mas com toda a graciosidade que um
oposta, quando a temperatura foi tão alta que gerou finas santeiro, caboclo ou não, poderia lhes imprimir.
45
Bibliografia Instituições foco de pesquisa
A Divina Inspiração Sagrada e Religiosa - Sincretismos Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo
Emanoel Araújo/Carlos A. C. Lemos. Museu Afrobrasil-SP 2007; p.104-109. São Paulo/SP
Arquitetura e Urbanismo no Vale do Paraíba do Colonial ao Eclético Museu Nossa Senhora Aparecida
Percival Tirapeli. UNESP, Edições SESC -2014; p.135-136. Aparecida/SP
A Imaginária Paulista
Carlos A. C. Lemos. Pinacoteca do Estado - Imprensa Oficial do Estado - Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho
1999; p.101-113. Estremoz/Portugal
ƌƟƐƚĂƉůĄƐƟĐŽĂƵƚŽĚŝĚĂƚĂĚĞĚĞƐƚĂƋƵĞŶŽŵƵŶŝĐşƉŝŽĚĞ:ĂĐĂƌĞşͬ^W͘
DĞƐƚƌĞĚĂƵůƚƵƌĂWŽƉƵůĂƌƌĂƐŝůĞŝƌĂ
WƌġŵŝŽĐŽŶĐĞĚŝĚŽƉĞůŽDŝŶŝƐƚĠƌŝŽĚĂƵůƚƵƌĂĐŽŵŽƌĞĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽƉĞůĂĐŽŶƚƌŝďƵŝĕĆŽăĐƵůƚƵƌĂĚŽƉĂşƐ͘
ŵĂŐďŽƌďĂŐĂƩŽΛŐŵĂŝů͘ĐŽŵ
Viva a Paulistinha!
&hEKh>dhZ>:Z,z:K^DZ/Zh
/EEd/sKDhE//W>h>dhZEKϮϬϭϱ
>ĞŝDƵŶŝĐŝƉĂůŶǑϯ͘ϲϰϴĞĐƌĞƚŽϭϯϮͬϮϬϬϱ