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“Design Constitucional & Política Econômica”

Jorge Vianna Monteiro


29/01/2018
I.Introdução
O debate sobre a economia brasileira tem sido sistematicamente conduzido
contornando-se a explicitação das regras constitucionais do “jogo de política
econômica” (MONTEIRO, 2000, 2003 – 3ª. Edição). Observa-se isso na corrente
proposta da reforma previdenciária (2017-2018), assim como nos enfrentamentos
recentes (2017) entre o Judiciário, Executivo e Congresso Nacional.
Por um lado, perde-se rigor na definição e operacionalização de políticas e, por
outro, deixa-se à margem o muito necessário aperfeiçoamento institucional da
economia brasileira – tema que parece não encantar mesmo as áreas acadêmicas .
A Figura abaixo é uma idealização da política econômica (MONTEIRO, 2007,
2009 – 2ª. reimpressão: 40) nos termos da public choice (BUCHANAN & TULLOCK,
1962).

A política econômica pode ser considerada por sua perspectiva de escolha


dentre regras – “jogo constitucional” e, correspondentemente, a política econômica
constitucional. É nesse âmbito que se decidem os grandes procedimentos que irão
guiar a formulação da política econômica propriamente dita. São exemplo de
escolhas no jogo constitucional: a definição do grau de independência da
Autoridade Monetária, o BREXIT, e, na atualidade brasileira, a recente PEC 287-
2016 da reforma previdenciária.
Passada essa primeira etapa inicia-se o jogo de política propriamente dito (em
seu sentido mais habitual, dentro da moldura de regras já estabelecida)1. Portanto
eeses são jogos vinculados e que aqui são apresentados como estritamente
separados meramente para efeitos de análise. Em certos casos, o efeito da escolha
de regras pode ser tão expressivo que ele se manifesta mais diretamente nos
resultados finais da política (seta (3) na Figura).
As seções II e III seguintes detalham parte desse jogo de políticas, justamente
no que diz respeito à sua moldura maior: as regras constitucionais.

1 Ou seja, como representado na Figura emoldura-se e discute-se política econômica pela


sequência {(2) → (4)}. A inovação metodológica promovida pela public choice está no conceito
de jogos vinculados, como mostrado na Figura.
1
II.Uma Referência Analítica
A imparcialidade que se atribui como desejável à decisão quanto às regras
constitucionais no jogo de políticas é relacionada à incerteza decorrente do “véu
rawlsiano” (RAWLS, 1971; BUCHANAN & TULLOCK, 1962). Assim, na deliberação
constitucional – empreendida antes do jogo de políticas se iniciar – a incerteza
quanto à situação em que se encontrará um determinado indivíduo ou agente
econômico, após uma sequência de jogadas, fará com que sua racionalidade o leve
a preferir regras constitucionais que sejam mais equânimes ou justas. Esse é o
cenário analítico já rotulado de uma democracia não-discricionária (BUCHANAN &
CONGLETON, 1998).
Na fase seguinte a tais escolhas (ou deliberações pós-constitucionais),
predominam os processos majoritários e o cabo-de-guerra movido por interesses
individualistas e paridários. Esse é o caso das decisões em uma legislatura.
Enquanto o individualismo no design constitucional é restringido pela incerteza, a
decisão política majoritária segue regras de votação2 e condicionantes diretamente
estabelecidas na Constituição3.
Em decorrência, esses véus na Constituição poderiam ser considerados uma
estratégia geral que promove decisões imparciais? Elas se aplicam uniformemente
aos três Poderes?
A tendenciosidade da ação judicial no âmbito do Supremo Tribunal Federal, por
exemplo, é, à princípio, neutralizada em função da vitaliciedade do mandato de
seus juízes. Com isso, estaria dispensado o véu. Porém, como lembra VERMEULE
(2001: 401), nesse caso o Presidente da República – que de todos os políticos é o
que tem o seu mandato previamente restrito a um máximo de oito anos contínuos –
deveria estar sujeito a inúmeros véus, especificados constitucionalmente. Todavia,
isso na realidade não ocorre4.
O preço de reduzir a tendenciosidade decisória pelo véu de ignorância vem,
todavia, acompanhado da contração do conjunto de informações considerado pelo
agente de decisão: há um tradeoff de informação e neutralidade decisória. Ou, dito
de outro modo, a supressão de informação operaria de modo análogo à motivação
imparcial desse agente. Contudo, tal supressão pode ser excessiva, de modo a
eliminar até mesmo a informação que leve a uma decisão eficiente, por exemplo.
Haveria um comprometimento em adotar deliberadamente regras constitucionais
que resultem em neutralidade, pagando-se, por isso, o custo da ineficiência.
Outra perspectiva, mais moderna, concentra a atenção nas consequências
indiretas das regras constitucionais que atuem como véus de ignorância. A troca
relevante não envolve informação por neutralidade, mas informação por motivação,
uma vez que ao suprimir informação ao tomador de decisão, esse tipo de véu pode
igualmente comprometer o ímpeto de atuar e, assim afetar a escala de atividade do
agente público.
Esse condicionamento ramifica a estratégia constitucional em (VERMEULE,
2001: 408-419):

2 Tais como as que constam especialmente dos Regimentos Internos da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal e do Regimento Comum do Congresso Nacional.
3 São exemplos o arranjo legislativo bicameral, o sistema de separação de Poderes, e a

atribuição de first mover ao Presidente da República, no jogo orçamentário da União, isto é,


não compete ao Congresso, mas ao Presidente dar partida à negociação orçamentária anual
da União. Em VERMEULLE, 2001: 400, é feita uma distinção da incerteza acarretada pelo véu
de ignorância, como um mecanismo para se induzir a escolha hipotética de regras
constitucionais imparciais, na tradição da public choice.
4 Relembro ainda ao leitor a extensa prática legislativa brasileira da emissão de medidas

provisórias, especialmente nos anos de 1990 (MONTEIRO, 2004: 111-145).

2
 prospectividade – os agentes de decisão criam regras legais sem saber a
identidade de quem irá infringí-las (o que, por certo, mina a formação de
alianças de legisladores, de vez que torna difícil identificar potenciais
ganhadores e perdedores).

 Generalidade – os agentes de decisão antecipam que a decisão que


empreendem em t gera ocorrências positivas e negativas em t+1, o que
os impede de saber se a implementação da regra ajudará ou prejudicará
sua facção (BUCHANAN & CONGLETON, 1998).

 Durabilidade – as regras que tornam as decisões relativamente duráveis


fazem com que os agentes dessa decisão antecipem que uma decisão
tomada hoje governará ocorrências em um futuro longínquo, ocorrências
cujos efeitos sobre os interesses futuros desses agentes são
correntemente imprvisíveis. As regras devem levar em conta seus efeitos
tanto de longo quanto de curto prazo. A inerente imprevisibilidade dos
interesses de longo prazo leva a que esse agentes não possam fazer
melhor do que escolher imparcialmente.

 Efetividade postergada – atrasar a data efetiva de uma regra que


restringe o âmbito da vigência de aplicação futura de uma decisão no
longo prazo, ao invés do curto prazo, na expectativa de que os interesses
de longo prazo dos agentes sejam inerentemente não-previsíveis. Ao
confinar o alcance da decisão apenas ao período (após a data
postergada) em que os interesses desses agentes são imprevisíveis,
tenta-se, igualmente, assegurar a imparcialidade de suas escolhas.

III.A Constituição como Comprometimento Social


Provavelmente, essa é a questão mais fundamental a ser respondida, de modo a
que os ganhos obtidos com a política econômica não venham a ser dissipados pela
vigência de uma ordem institucional de tanta imprecisão. Os chamados critérios Elster
(ELSTER, 1979) permitem detalhar essa questão:

 A durabilidade constitucional induz a que as maiorias coloquem


determinadas ações coletivamente além de seu alcance.

A auto restrição deve ser tal que empreender uma dada decisão em t(1) aumenta a
probabilidade de que se vá empreender uma outra decisão em t(2). Basta que o leitor
acompanhe a trajetória da proposta de reforma da previdência social no Governo
Temer que foi sucessivamente sendo reescrita em contextos mais limitados, para
entender a fugacidade dessa provisão em seu horizonte de validade e propósito
fundamental5.

 Se a regra no tempo inicial, t(1), tem o efeito de induzir uma mudança no


conjunto de opções que estará disponível num período mais á frente, t(2),
então isso não conta como auto-restrição, caso o novo conjunto viável
venha a incluir o anterior.

5
Outro exemplo mencionado em MONTEIRO, 2004 é a trajetória do FSE, Fundo Social de Estabilização
Fiscal, em 1993-1995, que deu lugar ao FEF, Fundo de Estabilização Fiscal, em 1996-1999, e em DRU,
Desvinculação dos Recursos da União (MONTEIRO em REZENDE & CUNHA, 2002: 74-75).
3
Uma variedade desses comprometimentos define limites ao exercício do poder de
governar. No entanto, tem sido possível expandir tais limites, segundo caminhos
bastante sutis, tais como a opção por viciar a tramitação legislativa de uma proposta
de emenda constitucional, como se tem assistido com a já mencionada PEC 287-2016
no Governo Temer. Desse modo, o significado da Constituição fica abalado em seu
âmago: as regras ficam subjugadas aos resultados politico-eleitorais almejados.

 O efeito de o governo tomar uma decisão em t(1) deve ser o de


estabelecer um processo causal que repercuta fora do governo.

Um Judiciário independente idealmente atua como esse mecanismo externo de


observância dos comprometimentos da coalizão majoritária. Com esse poder de
interpretação ficando a cargo de um grupo de agentes, com mandato vitalício,
diretamente não-eletivo e ambientado em um atuante sistema de separação de
Poderes, a coalizão majoritária coloca os comprometimentos além de sua habilidade
de renegá-los (LANDES & POSNER, 1975)6.

 A resistência que se ofereça a empreender uma decisão em t(1) deve ser


menor do que a resistência que seria oferecida a essa decisão em t(2),
caso não tivesse ocorrido a decisão em t(1).

Esse é a celebrado “véu de ignorância”, como introduzido na seção II deste texto:


se for viável predizer quem irá ganhar ou perder – ou a extensão de ganhos e perdas
– a resistência à implementação do comprometimento em t(1) será pelo menos tão
grande quanto em t(2).
São contra-exemplos perturbardores e constrangedores em nossa claudicante
democracia representativa (a) a passagem da PEC 16-1997 (“emenda da reeleição
presidencial”), tanto quanto (b) as tramitações de emendas constitucionais de algumas
“reformas”: previdenciária, em 1999 e, mais recentemente, em 2017, e tributária, em
2003 (MONTEIRO, 2004).

 É necessário que as regras constitucionais sejam um pré-


comprometimento de conduta7.

Ao longo dos anos de 1990, nenhum mecanismo constitucional caracteriza melhor


a incerta fronteira entre omissão e comissão quanto o Artigo 62 da Constituição, que
define as regras de emissão de medidas provisórias8. Então, a emissão de uma MP
tanto poderia sinalizar o apego a uma dada ordem legal quanto a transitoriedade
dessa mesma ordem que, ao final, foi sendo reconstruída ao sabor de interesses e

6
A frequente reação negativa do Executivo e de lideranças no Congresso Nacional a decisões judiciais
adversas aos interesses majoritários – como observado ao longo de 2017 – indica quão precária tem
sido a observância desse pilar constitucional.
7
O que a teoria de escolhas públicas caracteriza de modos alternativos. A Constituição coordena
expectativas e assim criam instituições que estabelecem regras legais em pról da vantagem coletiva;
limita a margem de manobra das maiorias protegendo-as de seus próprios excessos e patologias;
promove os direitos de minorias discretas e insularesndando-lhes condições efetivas de participarem do
processo político representativo; avançam os princípios de igualdade, liberdade e dignidade humana; e,
enfim “configuram a democracia” (VERMEULE, 2014: 1).
8
Já escreví extensamente sobre o tema das MP em seu uso e abuso na fundamentação da política
econômica no Brasil. Ver especialmente MONTEIRO, 2004 e MONTEIRO, 2000, 2002 – 3ª. edição, e
minha coluna aqui no Portal “Uma Outra Face do “Déficit de Democracia” na Economia Brasileira”,
27.10.2018.
4
preferências da alta gerência econômica do Executivo Federal ´MONTEIRO, 2004;
2000. O mecanismo básico da viabilização de emendas constitucionais – expresso
pelo Artigo 60 – pode, assim, ser amplamente contornado ou mesmo desativado.

IV.Conclusão
O debate econômico brasileiro é ambientado no pressuposto de que as instituições
ou são estáveis ou são determinadas por fora do raciocínio analítico em que as
políticas públicas são engendradas. Os modelos macroeconômicos em geral
incorporam a moldura institucional-constitucional de economias do Primeiro Mundo em
que o grau de estabilidade dessa moldura é muito elevado, diferentemente de
economias como a nossa. Por outro lado, o tratamento exógeno dessa moldura
impede que se possa inverter a causação analítica: qual o arranjo constitucional que
pode ser configurado para um dado conjunto de resultados macroeconômicos pré-
estabelecido? – o que, certamente, amplia significativamente o papel do economista
como designer constitucional.
A política econômica no Brasil ocorre em um ambiente de grande instabilidade
constitucional9 e, assim, o arranjo institucional-constitucional “pode ser robusto em
relação a lapsos e transgressões ocasionais, porém não a desregramentos em larga
escala” (CAIN, 2003:963), como se observa especialmente na atualidade de 2017-
2018. Desse modo, os bons resultados macroeonômicos que vêm sendo obtidos têm
sujacentes uma baixa precisão institucional.
Nesse campo analítico tudo é incerto e, pior, pouco estudado.

9 Uma métrica dessa instabilidade (MONTEIRO, 2007, 2009 – 2ª. reimpressão: 176) é que
cerca de 1/3 das emendas constitucionais aprovadas em 1992-2017 são de grande espectro,
ou seja, repercutem amplamente por todo o texto constitucional.

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