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Política externa brasileira

a política das práticas


e as práticas da política
Política externa brasileira
a política das práticas
e as práticas da política

Leticia Pinheiro e Carlos R. S. Milani


(organizadores)
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Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

1a edição — 2011
Preparação de originais: Maria Lucia Leão Velloso
Revisão: Eduardo Carneiro Monteiro
Capa e diagramação: Leo Boechat

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
Aos estudantes que, junto conosco, procuram refletir sobre
as distintas práticas da política externa brasileira.
Sumário

Prefácio
Monica Hirst 9

Introdução
Leticia Pinheiro e Carlos R. S. Milani 13

PARTE I Direitos humanos

1. Atores e agendas no campo da política externa brasileira


de direitos humanos
Carlos R. S. Milani 33

2. O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas:


a participação social em ampliação
Thiago Melamed de Menezes 71

PARTE II Cultura

3. Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema: perspectivas


e desafios de uma diplomacia cultural no governo Lula
Mônica Leite Lessa, Miriam Gomes Saraiva e Dhiego de Moura Mapa 95

4. Mobilidade artística internacional e a política cultural


internacional da Bahia
Monique Badaró 121
PARTE III Educação

5. Política externa e educação: confluências e perspectivas


no marco da integração regional
Leticia Pinheiro e Gregory Beshara 149

6. Educação e política externa: por uma parceria


diplomacia-universidade
Alessandro Candeas 181

PARTE IV Saúde

7. Saúde pública, patentes e atores não estatais:


a política externa do Brasil ante a epidemia de aids
André de Mello e Souza 203

8. Brasil e saúde global


Paulo Marchiori Buss e José Roberto Ferreira 241

PARTE V Paradiplomacia

9. A dimensão subnacional da política externa brasileira:


determinantes, conteúdos e perspectivas
Mónica Salomón 269

10. Um olhar brasileiro sobre a ação internacional


dos governos subnacionais
Alberto Kleiman, com Gustavo de Lima Cezario 301

Conclusão
Leticia Pinheiro e Carlos R. S. Milani 331

Sobre os autores 347


Prefácio

Monica Hirst*

São tantos os caminhos temáticos e analíticos que este livro sugere que é
difícil decidir por onde começar. Talvez o ponto de partida mais adequado
seja a simples e acertada afirmação de Christopher Hill em seu livro The
Changing Politics of Foreign Policy: “Mudança é um desafio perpétuo para
a ciência social e a Análise de Política Externa não é exceção.” Este cons-
titui a primeira e, eu diria, mais importante mensagem transmitida pelo
conjunto de capítulos e pela própria concepção deste livro. Os tempos das
Relações Internacionais do Brasil e da Análise de Política Externa (APE)
são outros; tanto do ponto de vista do contexto internacional como dos
processos domésticos.
O que chama atenção, não obstante, é que o fator institucional que
supostamente seria responsável por conter as forças de transformação no
plano concreto da formulação e implementação da política externa — o
Itamaraty — represente no plano cognitivo a chave da compreensão do
processo de mudança em questão. Seria impossível elaborar uma narrativa
sobre a entrada em cena de atores, a inclusão de temas de interesse e de in-
terações interestatais e intersocietais, sem considerar em primeira instân-
cia esta agência, os limites e os alcances de suas capacidades para lidar com
questões que passaram a demandar ou mesmo a gerar espontaneamente

* Professora da Universidade di Tella e bolsista do Programa de Cooperação Internacional


do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea).
1
Christopher Hill, The Changing Politics of Foreign Policy. London: Palgrave, 2033, p. 15.
10 Política externa brasileira

dinâmicas descentralizadas de gestão e que se alimentam de expertises que


vão além do profissionalismo diplomático ensinado pela cartilha do Rio
Branco. É correta e generosa a ideia, transmitida na introdução assinada
por Pinheiro e Milani, de que este mesmo processo possa representar uma
fonte de oxigenação e aggiornamento, a ser percebido como um estímulo e,
por que não, como um desafio a ser compartilhado por uma das mais tra-
dicionais corporações do Estado brasileiro. Observa-se aqui certa duali-
dade: por um lado a “casa” deixou para trás a reação defensiva inicial, tão
presente nos anos 1980, aos novos temas da agenda global e, por conse-
guinte, ao surgimento de novas vozes e pressões, muitas vezes associados
ao aprofundamento do processo democrático doméstico; mas, por outro,
também perdeu-se a capacidade de centralização da agenda internacional
do país. A diversidade de vínculos intergovernamentais e intersocietais
superam a capacidade de gestão deste ator na condução cotidiana das re-
lações do país com o mundo. Seu desafio já não seria o de manter as rédeas
sob controle, mas sim o de evitar uma visão de mundo obsoleta.
Observa-se de fato um processo de crescente e veloz “internacionali-
zação” de segmentos da estrutura estatal brasileira; a configuração de no-
vos campos de interação externa por parte de agências ministeriais que
se dão muitas vezes de forma autonomizada.2 Este movimento estimula
novas capacidades técnicas alimentadas por dinâmicas interativas com a
agenda global. Dito de outra forma, a ampliação das capacidades do Esta-
do está vinculada à articulação do país com o processo de globalização, seja
em áreas como meio ambiente, direitos humanos, produção agrícola, saú-
de, cultura, entre outros. Além do aprimoramento de capacidades técnicas
canalizadas para a produção de bens públicos internos, a internacionaliza-
ção do Estado leva a novos vínculos com a comunidade internacional que
enriquecem e redimensionam a projeção externa do país. Estudos recen-
tes indicam que a lógica dispersiva deste processo é um efeito do perfil da
própria estrutura administrativa federal. Ainda neste contexto, soma-se o
caráter recente das funções desempenhadas no âmbito internacional de um
conjunto de agências estatais e paraestatais e de um número expressivo de

2
DA FRANÇA, Cassio Luiz; RATTON SANCHEZ BADIN, Michelle. Análises e Pro-
postas. A inserção internacional do poder executivo federal brasileiro, n. 40, São Paulo, Fundação
Friedrich Ebert, ago. 2010.
Prefácio 11

organizações sociais. Estes são temas tratados em vários dos textos reuni-
dos neste volume.
Como foi sublinhado pelos organizadores deste volume, uma conse-
quência crucial deste processo é a reconfiguração do campo de estudo da
política externa brasileira. Torna-se inevitável introduzir um viés inter-
disciplinar para abordar esta problemática que vá além das pontes já es-
tabelecidas em etapas anteriores com os campos da economia política, do
direito e da história. Tal como é apontado em alguns capítulos do livro,
nos tempos que correm, é preciso dialogar com a medicina, com as políti-
cas sociais e culturais, com as áreas de estudos ambientais e demográficos.
Se as práticas desenvolvidas nestes campos da gestão de bens públicos
constituem atualmente insumos que fertilizam a política externa brasi-
leira, é essencial que elas abram espaço para o seu enquadramento como
parte de um acervo comum de conhecimentos que enriquecem e condu-
zem a formas inovadoras do pensar local sobre a inserção internacional do
país. Esta constitui uma entre tantas das consequências cognitivas do pro-
cesso de globalização. Ao mesmo tempo, esta “interdisciplinaridade” re-
novada traz consigo um movimento virtuoso, já que estimula a ampliação
da gama de interesses a serem convocados na configuração de um debate
público sobre a política externa, uma faceta fundamental da democracia
brasileira no século XXI.
Por último, cabe fazer menção ao caráter fundacional deste livro. Não
há dúvida sobre o valioso sentido instrumental e político de organização
de uma comunidade epistêmica a partir da rede de APE. Esta iniciativa
abre caminho para o acompanhamento crítico de um novo campo de es-
tudos em Relações Internacionais e ao mesmo tempo cria condições para
o que se poderia chamar um “monitoramento analítico” de um processo de
mudança em plena gestação da política externa brasileira. Seu dinamismo
constitui em si uma fonte de reflexão de inestimável riqueza para novas sa-
fras de estudos, elaboração de teses e possíveis interações externas regionais
e globais. Este último ponto será um aspecto a ser perseguido no futuro
próximo; a comparação da experiência brasileira com outras, começando
com aquelas que se dão no entorno regional e no âmbito de outros círculos
do Sul, poderá enriquecer ainda mais os resultados desta iniciativa. Fica re-
gistrada a sugestão.
Introdução

Leticia Pinheiro
Carlos R. S. Milani

No campo de estudos da política externa brasileira já foi recorrente, quase


consensual, atribuir a um único indivíduo ou a uma única instituição a fon-
te das decisões de política exterior. Não que hoje seja impossível apontar
indivíduos e instituições que se destaquem nesse processo, mas há muito
ficaram para trás os tempos em que se acreditava que fatores como a pre-
sença de lideranças carismáticas ou o monopólio de agências pudessem ex-
plicar sozinhos a definição dos interesses do país no plano internacional.
Da mesma forma, se era comum atribuir à diplomacia brasileira somente o
trato de questões de alta sensibilidade política e estratégica, a chamada alta
política, atualmente tal atribuição sofre da própria dificuldade de distinção
entre o que seria alta e baixa política. Por fim, se a forte presença da agência
diplomática, o Itamaraty, na arena decisória de política externa e seu ale-
gado insulamento do debate público levaram alguns a adotar para o Brasil
a máxima de que a política exterior começaria onde terminasse a política
doméstica, essa hipótese está infinitamente distante da concepção de polí-
tica externa que compartilhamos neste livro.
Mas nem sempre o processo decisório, a diversidade temática e a di-
nâmica política estiveram presentes nos estudos da política externa bra-
sileira, ou mesmo da política externa de outros países. No entanto, desde
que se constituiu como subárea da disciplina “Relações Internacionais”,
após a publicação do trabalho seminal de Snyder, Bruck e Sapin (1954),
a Análise de Política Externa passou a considerar o plano doméstico, em
particular o processo decisório, como variável explicativa para o comporta-
mento dos Estados no plano internacional. Ao resgatar a contribuição da
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corrente liberal para o campo de reflexão das relações internacionais, em


especial o papel dos indivíduos e das instituições no processo de formula-
ção das políticas, a Análise de Política Externa afirmou o poder do agente
nas escolhas dos Estados. Convergindo com essa visão, Margaret e Harold
Sprout (1956) sublinharam a importância das percepções e interpretações
acerca do contexto internacional dos indivíduos e grupos que constituem
a arena decisória, de modo a melhor explicar a política externa.
O conflito do Vietnã (1965-1973) e as controvérsias geradas no Con-
gresso e junto à opinião pública nos Estados Unidos viriam se somar à
constatação de que a compreensão das motivações e das estratégias da po-
lítica externa norte-americana não poderia deixar de lado as variáveis do-
mésticas. Assim, com a publicação, em 1967, do clássico Domestic sources of
foreign policy, Rosenau reforçou a premissa de que atores e fatores domésti-
cos não eram menos relevantes para o conteúdo e a formulação da política
externa do que o contexto internacional, somando esforços à sua contribui-
ção de 1966, na qual já apontara para a necessidade de desenvolvimento de
uma teoria que considerasse os diferentes níveis de análise para explicar a
política externa dos Estados. Sem dúvida, a contribuição teórica dessa co-
letânea foi crucial para que os eventos políticos e as tendências sociais no
plano nacional não fossem mais desconsiderados nas análises sobre política
externa, mesmo em plena Guerra Fria.
Alguns anos depois, outro estudo seminal viria a contribuir para o
desenvolvimento da Análise de Política Externa e, portanto, para o for-
talecimento da tese de que era necessário “abrir a caixa-preta” do Estado,
como informalmente se diz, para uma melhor compreensão dos conteúdos
da política exterior. Trata-se do estudo de Graham Allison (1971) sobre a
crise dos mísseis soviéticos em Cuba, ocorrida em outubro de 1962. Desta
feita, talvez por força de uma característica da academia norte-americana,
onde a disciplina Relações Internacionais se institucionalizou sob o abrigo
da ciência política, essa contribuição foi por muito tempo associada mais
a esta última do que à primeira e à subárea da Análise de Política Externa.
Ainda assim, a Análise de Política Externa foi se robustecendo e desenvol-
vendo diferentes abordagens para o estudo do comportamento internacio-
nal dos Estados até o surgimento do realismo estrutural. Com a publicação
em 1979 — e grande aceitação — de sua obra Theory of international poli-
tics, Kenneth Waltz muito contribuiu para lançar a Análise de Política Ex-
terna numa zona de sombra.
Introdução 15

Em que pese esse momento de baixa visibilidade da Análise de Polí-


tica Externa, nos anos seguintes os pesquisadores com essa perspectiva de
análise não deixaram de oferecer importantes contribuições para o enten-
dimento da política externa dos Estados. Mesmo nos países periféricos,
como o Brasil, onde a disciplina “Relações Internacionais” foi tardiamen-
te desenvolvida (Hirst, 1992), estudiosos atentos às margens de manobra
e aos comportamentos desses Estados foram buscar nos modelos teóricos
sobre processos decisórios algumas ferramentas analíticas a fim de enten-
derem a atuação mais autônoma dos Estados periféricos, apesar da he-
gemonia norte-americana. De fato, as teses sistêmicas e estruturais eram
insuficientes, quando não totalmente equivocadas, para explicar tal fenô-
meno (Moura, 1980; Hirst, 1996).
Até chegarmos aos dias de hoje, em que há um inegável reconhe-
cimento das qualidades heurísticas da Análise de Política Externa, a su-
bárea absorveu e refletiu os efeitos dos processos internacionais em sua
institucionalização e desenvolvimento. Mas os acontecimentos das duas
últimas décadas do século XX foram sem dúvida fundamentais para que
houvesse um misto de resgate e renovação das teses da Análise de Políti-
ca Externa na área das Relações Internacionais. Foi nesse momento que
diversos analistas de relações internacionais e política externa começa-
ram a se referir ao surgimento de uma nova política externa (Hill, 2003;
Neack, 2003; Hudson, 2005). A simultaneidade de fatores, como o fim
da competição bipolar, as dinâmicas da diversificação de parcerias polí-
ticas daí decorrentes, os processos de globalização e liberalização econô-
mica, as crises financeiras de natureza sistêmica, a revolução tecnológica
na área da informação e a ação transnacional de redes de ativismo e mo-
vimentos sociais, teria produzido uma inflexão nas concepções contem-
porâneas do papel do Estado e em suas práticas no campo da política
externa. Teriam surgido novas possibilidades de ação internacional dos
Estados, mas também novos constrangimentos.
Esse diagnóstico complexo e paradoxal decorreu da constatação de
que as relações internacionais na atualidade não só englobariam um leque
mais amplo de questões — meio ambiente, direitos humanos, internacio-
nalização da educação, da saúde e da cultura etc. —, que demandam co-
nhecimentos e expertises particulares, como também implicariam, de forma
cada vez mais densa e institucionalizada, uma diversidade de atores agora
envolvidos em inúmeros assuntos internacionais. Empresas, organizações
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não governamentais, meios de comunicação social, movimentos sociais, or-


ganismos públicos da esfera municipal ou estadual, por exemplo, teriam
passado a atuar internacionalmente de maneira mais orgânica e articulada,
agindo em muitas ocasiões à revelia do próprio Estado, em nome de interes-
ses privados ou ainda na defesa de causas políticas as mais diversas. Parafra-
seando Bertrand Badie (2009:49), a arena de formulação e implementação
das políticas teria sido “povoada de atores sociais de toda espécie”.
Disso tudo resulta que, nos dias de hoje, se tenha tornado inegável e
ainda mais presente a conexão entre problemas internacionais e temas de
natureza doméstica. As crises financeiras globais afetam o cotidiano dos
cidadãos, a difusão midiática do aquecimento planetário influencia com-
portamentos no âmbito local, a defesa dos direitos humanos em países
distantes mobiliza pessoas de inúmeras nacionalidades, pondo em xeque
a própria crença na distinção entre o doméstico e o internacional e, nes-
se sentido, abalando um dos pilares de sustentação do realismo como cor-
rente teórica hegemônica nas relações internacionais durante quase todo
o século XX.
De fato, separar o interno do externo facilitava aos teóricos realistas a
defesa, filosófica e epistemológica, da construção de um sentido do Estado
como uma casa de portas e janelas sempre fechadas, cuja realidade domésti-
ca das relações econômicas, sociais, culturais e políticas não deveria merecer
a atenção dos analistas de sua política externa. Embora essa casa chamada
Estado tenha, em muitas ocasiões, mantido suas janelas e portas na verda-
de bem abertas — migrações, trocas econômicas, intercâmbios educativos
e cooperações as mais diversas —, a concepção realista logrou por muitas
décadas conquistar as percepções e motivar a construção de marcos inter-
pretativos de estadistas, diplomatas, militares e, de certa forma, da própria
sociedade no sentido de que a política externa seria um campo distante do
cotidiano dos cidadãos. Hoje, mais de 50 anos após a publicação dos livros
de Snyder, Bruck e Sapin (1954) e dos Sprout (1956), quase 45 anos depois
da publicação de Rosenau (1967) e 40 após a análise de Allison (1971), essa
realidade mudou, tanto do ponto de vista teórico quanto na perspectiva em-
pírica e histórica de muitos países, inclusive do Brasil.
Como corolário dessas evidências que ilustram e sustentam a hipóte-
se da natureza constitutiva dos assuntos internacionais na atualidade, tor-
na-se imperativo adotar um ângulo de observação distinto, a partir do qual
se possa desenhar um conjunto renovado de categorias teóricas e marcos
interpretativos, a fim de melhor compreender e analisar a política externa
Introdução 17

dos Estados e, mais particularmente, a política externa brasileira. Referimo-


nos à revitalização do campo de Análise de Política Externa no âmbito das
Relações Internacionais, ou seja, ao retorno dos pressupostos analíticos que
concebem a política externa como resultado de iniciativas tomadas por di-
ferentes atores — principalmente, mas não exclusivamente, o Estado —,
em interação com o ambiente internacional. Para ser compreendida, a po-
lítica externa necessita de parâmetros que incorporem os diversos atores no
estudo de seu processo decisório. Assim, como afirma outro conhecido es-
pecialista da área, Christopher Hill (2005), apesar de sua perene relevância,
o campo de reflexão sobre o que é e como se formula a política externa ga-
nhou um novo despertar.
Fica claro que os fundamentos do realismo, ao reificarem a noção de
interesse nacional sem proporem uma teoria abrangente do Estado, não lo-
gram abarcar concepções sobre essas transformações contemporâneas no
campo da política externa. As premissas que aqui anunciamos de fato dia-
logam diretamente com uma série de desafios lançados por especialistas
em Análise de Política Externa. Por exemplo, Hill (2003:15-17) afirma
que a política externa permanece um lócus importante, porém transfor-
mado, de agência nas relações internacionais. Para além dos Estados, ele se
pergunta, que outros atores seriam dotados de agência em política exter-
na? Se os planos doméstico e externo das relações de poder foram diluídos,
como então se integrariam as políticas e os mecanismos? Como pensar a
política como um continuum entre o nacional e o internacional? Na tenta-
tiva de distinguir o conteúdo da política externa do das relações exteriores,
tudo o que se projeta política e estrategicamente para além das fronteiras
do Estado seria definido como política externa? Nesse sentido, o autor lan-
ça a interrogação: não seria necessário distinguir política externa de ação
externa? Em termos normativos, considerando-se que a política externa
envolve valores, identidades e princípios, ela deveria ser transparente aos
cidadãos? Seria relevante prestar contas, publicamente, sobre temas de po-
lítica externa? Como lidar com a noção de responsabilidade no campo da
política externa? O Estado e seus agentes deveriam ser considerados res-
ponsáveis perante quem?
Se esse conjunto de questões já é bastante visível nos países centrais
do Ocidente sob regimes representativos, não é menos verdadeiro em paí-
ses em desenvolvimento e periféricos, muito embora a sua adesão — ou
seu retorno — a regimes democráticos de governo seja relativamente mais
18 Política externa brasileira

recente. Ademais, a combinação entre a condição de jovens democracias


e a implementação recente de programas de liberalização econômica ge-
rou nesses países o aumento do número de atores e uma significativa di-
versificação de interesses, em um contexto que poderíamos rotular de de-
manda reprimida. Como explica Lima (2000:295) sobre o caso brasileiro,
a coincidência entre os dois movimentos — liberalização política e aber-
tura econômica — deu início a uma nova fase da política externa do país,
chamada pela autora de “integração competitiva”. Nesta, assiste-se a uma
nova realidade, uma vez que a política externa antes caracterizada pela
condução de políticas sem efeitos distributivos passou a ter que contem-
plar interesses setoriais, que se refletiram na alegada histórica autonomia
relativa do Itamaraty na condução da política externa.1
No Brasil, sabe-se que a década de 1980 testemunhou um movimento
de êxodo de diplomatas para outras agências governamentais,2 ao passo que
a década de 1990 foi palco de um movimento distinto, embora não antagô-
nico ao anterior: a incorporação crescente de temas de política externa por
outras agências do governo. A nosso ver, embora esse segundo movimen-
to tenha ocorrido principalmente em função da mudança na natureza das
questões domésticas — que, com os efeitos da globalização sobre a política,
a economia e a cultura, foram se tornando, dia após dia, mais próximas dos
temas internacionais —, a presença, nas agências, de pessoal formado nos
quadros do Instituto Rio Branco em muito colaborou para que se atentasse
para a potencialidade, as articulações e as tensões desses temas “domésticos”
com as agendas da política externa brasileira. Como resultado, passou-se a

1
A esse respeito, gostaríamos de sublinhar que, embora correta a afirmação de que a agência
diplomática brasileira, em função de suas características institucionais, foi fortemente preserva-
da de injunções políticas ao longo de sua história, não seria correto postular sua completa auto-
nomia ou insulamento. Se em seus primórdios, como instituição de um Estado independente,
os interesses públicos em muito se confundiam com os interesses privados em função do patri-
monialismo que caracterizava a política nacional de um modo geral (Cheibub, 1985), passado
esse período, interesses setoriais sempre tiveram acesso à arena de formulação das políticas pú-
blicas, inclusive a política externa. A diferença estaria fundamentalmente na ausência de canais
regulares de transmissão das demandas dos interesses sociais para as agências do Estado, assim
como, et pour cause, na possibilidade de essas agências absorverem seletivamente as demandas
da sociedade.
2
Conforme Cheibub (1985:130), esse movimento teve como causa principal os baixos salá-
rios percebidos pelos diplomatas quando em serviço na Secretaria de Estado. Deve-se subli-
nhar, entretanto, que a absorção dos diplomatas de carreira por outras agências só foi pos-
sível graças ao reconhecimento por parte dessas agências da alta qualidade de sua formação
profissional.
Introdução 19

questionar o que antes parecia ser senso comum, ou seja, a relativa autono-
mia e insulamento burocrático do Itamaraty no processo de formulação e
condução da política externa. De fato, porta-vozes da própria instituição
(Oliveira, 1999; Amorim, 2009) reafirmam em diversos veículos a necessi-
dade de essa agência buscar conhecimento especializado em outras instân-
cias, haja vista a complexidade crescente e a multidisciplinaridade evidente
das relações exteriores. Da mesma forma, porém, há quem lembre a neces-
sidade de preservar sua capacidade de coordenação (Barros, 1996).
Toda essa discussão diz respeito ao perfil e ao papel das agências di-
plomáticas em alguns países como o Brasil, à renovação das ideias no cam-
po da política externa, à relação entre política doméstica e política externa,
à disputa interburocrática, bem como às relações Estado-sociedade. No en-
tanto, em parte devido à ainda reduzida dimensão da comunidade acadê-
mica dedicada a estudos de política externa nos países periféricos (Tickner,
2002), ao contrário do que se percebe no mundo universitário dos países
centrais, em que os estudos de política externa vêm incorporando essas no-
vas realidades, a investigação dos efeitos desses vetores simultâneos sobre o
conteúdo da política externa de países em desenvolvimento ainda é bastan-
te tímida. É certo que no Brasil, por exemplo, encontramos estudiosos que
procuram entender a política externa sem a rigidez com que o realismo cos-
tuma engessar algumas pesquisas, ainda que seja necessário reconhecer que
muitos trabalhos realizados através do prisma realista tenham contribuído
para a compreensão de diversos movimentos da política externa brasileira.
No entanto, ainda são escassas as iniciativas e, a nosso ver, carecem de um
esforço que as reúna em torno de um eixo comum de investigação que per-
mita um intercâmbio mais regular e profícuo de ideias.
Foi com base nesses questionamentos teóricos e empíricos que a Rede
Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas e Atores da Política
Externa (doravante chamada Rede AAPE3) foi concebida e lançada em
2006, tendo obtido, para o seu desenvolvimento, o apoio do CNPq, por
meio do Programa Renato Archer de Apoio à Pesquisa em Relações In-
ternacionais.4 As pesquisas desenvolvidas no âmbito da Rede AAPE com-
partilham uma premissa comum, segundo a qual, a fim de compreender a

3
http://agendasdepoliticaexterna.com.br/.
4
Ver Edital MCT/CNPq/CTInfra/CTVerde Amarelo no 29/2006.
20 Política externa brasileira

política externa dos Estados, é fundamental integrar o olhar sobre os dife-


rentes atores, a análise de distintos temas e uma pluralidade de perspectivas
teórico-metodológicas. Cabe ainda esclarecer que, embora voltada prefe-
rencialmente para a realidade brasileira, a Rede AAPE tem contemplado
o estudo da realidade de outros países periféricos, seja como objeto princi-
pal, seja a partir de uma perspectiva comparada com a realidade brasileira,
seja, finalmente, em decorrência do fato de que, em sua grande maioria, os
temas contemplados pelas pesquisas tocam, direta ou indiretamente, ações
de cooperação internacional entre países em desenvolvimento.
Por meio da Rede AAPE, pretendeu-se abrir um viés de pesquisa
ainda pouco explorado nas relações internacionais no Brasil, em que pese
a sua importância para as relações exteriores contemporâneas: a identifica-
ção de nichos de ação tradicionalmente não associados às agendas de po-
lítica externa, bem como de agências governamentais (vinculadas ou não
ao Poder Executivo) e de atores não estatais cujo campo de atuação não se
volte diretamente para a política internacional. Ao adotar esse caminho
metodológico, pretendeu-se avaliar se e como esses novos temas são trazi-
dos para a agenda de política externa pela agência classicamente respon-
sável por sua condução ou em que medida se trata de iniciativas tomadas
por outras agências governamentais ou organizações não governamentais.
Em ambos os casos, as pesquisas da Rede AAPE visam avaliar o impacto
dessas ações não tradicionais sobre os conteúdos da política externa, uma
vez que esses atores promovem novos campos de atuação para o Estado
no exterior. Por oposição, pretende-se verificar se essa tendência de expan-
são tem sido, ao mesmo tempo, responsável por causar inconsistências na
linha de atuação internacional do Estado, haja vista que, eventualmente,
pode fragmentar seus interesses e suas estratégias de ação internacional.
Portanto, pretende-se entender como as agências tradicionalmente respon-
sáveis pela condução da política externa vêm reagindo a esses movimen-
tos, buscando compreender sua capacidade de adaptação institucional, sem
perder sua capacidade de controle e manutenção da coerência e da consis-
tência da política externa.
A Rede AAPE defende, teórica e metodologicamente, que não só
é possível, mas recomendável, trabalhar com diferentes arenas decisórias e
suas competências substantivas. Assim, não se trata apenas de examinar as
consequências ou repercussões internacionais de temas nas áreas de saúde,
educação, cultura, ciência e tecnologia etc., mas também de vê-los como
Introdução 21

temas de relações internacionais e como formas distintas de cooperação/


conflito cuja promoção e estímulo, nos planos doméstico e internacional,
causam efeitos significativos, embora nem sempre explorados, na relação
entre os Estados no sistema internacional. A esse respeito vale mencionar
as iniciativas tomadas por distintos tipos de atores, em grande parte não
vinculados à burocracia responsável pela formulação e execução da política
externa, no campo da cooperação internacional, por exemplo, com vistas ao
combate a doenças infectocontagiosas, à defesa dos direitos humanos em
seu sentido amplo, ao combate ao analfabetismo e à defesa do acesso a bens
culturais, à formação de redes de pesquisa, ao acesso livre a softwares livres
e à defesa do conhecimento tradicional e de recursos biológicos (genes, se-
mentes, medicamentos), todas essas iniciativas exemplos do que estamos
nos referindo.
O objetivo indireto da Rede AAPE, em parte concretizado neste livro,
é trazer para o campo de investigação sobre a formulação e os conteúdos da
política externa questões que, embora já tenham chegado às áreas de estu-
dos de economia política internacional, de gênero e de desenvolvimento,
entre outras, ainda não conseguiram vencer a barreira daqueles que pensam
a política externa como área de pesquisa sobre as relações tradicionais en-
tre os Estados (Smith, 2004:509). Da mesma forma, trata-se de enfrentar
a questão da politização da política externa, como veremos ao longo dos
capítulos deste livro, uma vez que os interesses que a constituem inevita-
velmente partem de atores distintos, sendo, portanto, passíveis de contra-
dizerem ou de por em xeque os interesses considerados mais permanentes
da política externa.
As perguntas gerais que orientam o desenvolvimento das pesquisas
abrigadas neste livro são de duas ordens. A primeira diz respeito à possibi-
lidade de que a diversificação das agendas e dos atores de política externa
gere contradições na linha geral de atuação internacional do Estado, tendo
em vista as disputas de natureza política e burocrática. A segunda tem sen-
tido mais ou menos inverso, ou seja, o de que essa diversificação de temas e
atores também pode provocar renovação e “oxigenação” no campo da polí-
tica externa, fazendo com que temas, áreas, nichos antes não identificados
como recursos ou instrumentos de política externa comecem, assim, a se
tornar temas da agenda pública de debates.
Para atingir tais objetivos, este livro compreende dois tipos distintos e
complementares de contribuição. Cada parte temática — direitos humanos,
22 Política externa brasileira

cultura, educação, saúde e paradiplomacia — contém uma primeira aborda-


gem de caráter mais acadêmico, em linguagem clara, concisa e evitando os
jargões excessivamente herméticos do mundo universitário, além de um se-
gundo tipo de contribuição de autoria de operadores responsáveis por prá-
ticas e estratégias, e que elaboraram suas reflexões a partir de experiências e
análises de sua própria atividade profissional. A presença desses dois tipos
de reflexão em uma mesma publicação busca ensejar um diálogo entre o
mundo da produção de conhecimento em política externa e o campo polí-
tico das práticas, da diplomacia e da negociação. Busca igualmente promo-
ver o debate já existente entre as políticas públicas de caráter doméstico e o
campo da política externa brasileira.
É importante salientar, porém, que não são poucas as dificuldades
metodológicas e teóricas enfrentadas principalmente pelos acadêmicos
quanto ao uso de diferentes denominações para conceituar fenômenos
iguais, ou de denominações idênticas ou muito semelhantes para concei-
tuar objetos distintos. Tal dificuldade não foi superada, permanecendo o
desafio, nas Relações Internacionais e na Análise de Política Externa —
como em muitas áreas do conhecimento em ciências sociais e humanas —,
de construção de categorias do social que traduzam e permitam ler a com-
plexidade da política externa na atualidade. Acreditamos que essa diver-
sidade expressa em grande medida o estágio atual da discussão, revelando
interpretações distintas sobre a natureza da política externa. Afinal, é par-
te da pesquisa que gerou os capítulos que se seguem a indagação sobre o
que atualmente definimos como política externa. Tal foi inclusive a prin-
cipal razão que nos desestimulou a incluir um glossário de conceitos nes-
ta publicação. Acreditamos que, neste momento, nossa contribuição seria
mais rica se, em vez de avançarmos na direção de consensos mínimos, aco-
lhêssemos a pluralidade em direção a uma reflexão posterior sobre a nova
configuração da política externa.
A primeira parte temática diz respeito aos direitos humanos. Em
“Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos hu-
manos”, Carlos R. S. Milani reflete sobre a mudança de concepção e de
tratamento político dos direitos humanos nas agendas da política exter-
na brasileira, com foco nos governos FHC e Lula. O autor discute alguns
dos arranjos institucionais que resultam, no plano doméstico, do processo
de democratização do Estado e das relações de cooperação e conflito entre
distintas agências governamentais e organizações da sociedade civil, mas
Introdução 23

também analisa as influências das transformações institucionais ocorridas


no próprio regime multilateral de direitos humanos. Parte da hipótese de
que as mudanças de ênfase e de posicionamento advindas nesse capítulo
temático da política externa brasileira ocorrem principalmente em função
de três ordens de fatores: a) a securitização da ordem internacional pós-
11/9 e a retomada das estratégias de seletividade no uso das medidas de
denúncia e condenação dos Estados violadores dos direitos humanos; b) a
transnacionalização dos direitos humanos e a judicialização da política ex-
terna; e c) no plano doméstico, a emergência de demandas de atores não
governamentais favoráveis ao estabelecimento de canais de diálogo e con-
sulta no campo da política externa. Por conseguinte, o capítulo procura,
conceitualmente, contribuir para o desenvolvimento da concepção de po-
lítica externa enquanto política pública e, empiricamente, renovar alguns
dos marcos interpretativos sobre as mudanças recentes da política externa
brasileira de direitos humanos.
Em “O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas:
a participação social em ampliação”, Thiago Melamed de Menezes relem-
bra que muito vem se falando sobre a participação do Brasil no Conselho
de Direitos Humanos da ONU, em contexto no qual os temas de política
externa ganham, pouco a pouco, importância inédita no debate político bra-
sileiro. A ênfase, porém, recai, no mais das vezes, sobre os votos do Brasil e
as atitudes que o país toma em relação às violações aos direitos humanos co-
metidas em outros países. O capítulo procura relatar, a partir da experiên-
cia funcional do autor na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República, como incide sobre o plano interno o sistema de proteção dos
direitos humanos da ONU. São examinadas as dificuldades intraburocráti-
cas para garantir a implementação das resoluções emanadas pelo conselho,
bem como analisadas as relações entre Estado e sociedade civil no campo
dos direitos humanos. O autor reflete sobre o funcionamento dos mecanis-
mos existentes de controle social sobre a política externa.
A segunda parte temática trata da cultura nas agendas de política ex-
terna. Em “Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema: perspecti-
vas e desafios de uma diplomacia cultural no governo Lula”, Mônica Leite
Lessa, Miriam Gomes Saraiva e Dhiego de Moura Mapa apresentam um
panorama geral da política externa brasileira no campo da cultura, enfati-
zando a participação do Ministério da Cultura (Minc) e de outros atores
não estatais na diplomacia cultural do Ministério das Relações Exteriores
24 Política externa brasileira

(Itamaraty), principalmente no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Os


autores partem da hipótese de que o papel de destaque dado à cultura no
governo Lula visou a ampliar a projeção do Brasil no cenário internacio-
nal, por meio de uma diversificada agenda internacional articulada à agen-
da de países com proeminência no mundo em desenvolvimento. Refletem
partindo da perspectiva de que a colaboração entre a corporação diplomá-
tica e outros atores é um fenômeno mundial crescente, influenciado princi-
palmente pelos processos de globalização e pelo desenvolvimento acelerado
nos meios de comunicação e na circulação de bens e pessoas. Além disso, no
caso específico da política externa do Brasil no campo da cultura, pode-se
observar uma notável carência na formação do corpo diplomático brasilei-
ro, tradicionalmente preparado para tratar dos temas clássicos das relações
internacionais, como as esferas política, econômica e militar. Em quatro se-
ções, os autores discutem os desafios da diplomacia cultural e seu destaque
no governo Lula, o processo de formulação e implementação das políticas
culturais no âmbito externo, destacando a participação do MinC e de ou-
tros atores, além da atuação do Brasil na arena internacional dos chamados
negócios culturais.
Monique Badaró, em “Mobilidade artística internacional e a política
cultural internacional da Bahia”, procura apresentar a política cultural in-
ternacional baiana, seus objetivos, formas e resultados, mostrando como a
mobilidade artística pode se configurar como um instrumento estratégico
de política externa. A autora caracteriza a mobilidade artística internacio-
nal e a atuação internacional dos estados federados no âmbito da cultura,
conceituando a mobilidade das artes como uma das formas pelas quais os
entes subnacionais se utilizam da cultura para projetar sua imagem exter-
na. Também procura verificar de que maneira se dá a inserção da mobili-
dade das artes nas agendas públicas de cultura e política externa. Por fim,
o capítulo apresenta o caso do programa de apoio à mobilidade da Bahia
e delineia as limitações e os desafios do apoio à mobilidade artística tendo
como pano de fundo a realidade baiana.
Na parte temática sobre educação, em “Política externa e educação:
confluências e perspectivas no marco da integração regional”, Leticia Pi-
nheiro e Gregory Beshara abordam como educação e política externa se
encontram no campo das relações internacionais contemporâneas, as ori-
gens desse encontro e algumas de suas implicações. Para tanto, o capítulo
examina o envolvimento do Ministério da Educação (MEC) na política
Introdução 25

externa brasileira, como um exemplo particular de uma nova configuração


da arena decisória de política externa, na qual outros ministérios, além do
Itamaraty, vêm se engajando com assuntos externos. A título de conclusão,
os autores sugerem que os projetos de natureza educacional examinados
buscaram contribuir com as iniciativas de integração e coesão em direção
à formação e à consolidação de novas comunidades políticas imaginadas, um
instrumento da política externa brasileira em direção à construção de
um novo ente político e de uma identidade regional. Além disso, os auto-
res postulam que, embora a participação do MEC não desfrutasse o grau
de autonomia necessário para ser caracterizado como uma unidade deci-
sória de política externa, isso não impediu o reconhecimento do impacto
substantivo da sua presença sobre o conteúdo da política.
Alessandro Candeas, em “Educação e política externa: por uma par-
ceria diplomacia-universidade”, defende uma agenda positiva no campo da
diplomacia acadêmica, intelectual e científica, a partir, principalmente,
da cooperação Sul-Sul. O autor argumenta que a elevação do Brasil a pa-
tamares mais importantes de poder e influência no cenário internacional,
além do prestígio externo da agenda educacional do Brasil, resultam na
afirmação do país como agente impulsionador de cooperação e intercâm-
bio nesse campo, respondendo dessa forma a uma demanda cada vez maior
de seus parceiros, notadamente países em desenvolvimento. Reflete tam-
bém sobre o fato de que o sucesso dessa agenda depende, além da própria
produção brasileira, da ruptura de um certo “paroquialismo epistemológi-
co” anglo-saxônico e do mundo desenvolvido, que tende a minorar a quali-
dade da ciência produzida de forma mais ampla no Hemisfério Sul.
A parte temática sobre saúde é introduzida por André de Mello e
Souza. Em “Saúde pública, patentes e atores não estatais: a política ex-
terna do Brasil quanto à epidemia de aids”, o autor trata da influência de
atores não estatais, nacionais e estrangeiros, na política externa brasileira
para a aids. O argumento parte da apreciação da resposta brasileira à epi-
demia, especificamente da política de acesso gratuito e universal, desde
1996, às terapias antirretrovirais, fato que, devido ao seu sucesso, permitiu
ao Brasil ocupar lugar de destaque em negociações bilaterais, regionais e
multilaterais relativas ao comércio, à propriedade intelectual, à saúde e aos
direitos humanos. O autor desenvolve seu argumento em quatro seções,
abordando desde a participação de ONGs domésticas e governos muni-
cipais, estaduais e federais no programa de tratamento da aids no Brasil,
26 Política externa brasileira

sob influência de uma visão de saúde pública proveniente do movimento


sanitarista, passando pela disputa do Ministério da Saúde com empresas
farmacêuticas multinacionais sobre a quebra do monopólio de patentes e
a redução nos preços dos antirretrovirais. No âmbito das iniciativas do go-
verno brasileiro no tratamento da aids no país, o autor destaca o contencioso
entre o Brasil e os Estados Unidos relativo às patentes, demonstrando como
o apoio de ONGs e redes de ativismo domésticas, estrangeiras e transna-
cionais, ao Brasil contribuiu para a decisão dos Estados Unidos de retirar
sua queixa contra o país na OMC quase que incondicionalmente. Por fim,
a última seção do capítulo trata das consequências das políticas brasileiras
para a aids, e de como esse processo condicionou o Brasil a atuar em fóruns
regionais e multilaterais.
Paulo Marchiori Buss e José Roberto Ferreira, em “Brasil e saúde glo-
bal”, analisam a cooperação internacional do Brasil no campo da saúde,
considerando o papel de relevo assumido pela política externa brasileira
nos últimos 10 anos, notadamente no âmbito da cooperação Sul-Sul. Os
autores analisam esse processo a partir de quatro componentes: a) neces-
sidades de cooperação internacional em saúde; b) modelo dominante de
cooperação internacional em saúde; c) alternativas ao modelo dominan-
te; e d) experiência da cooperação Sul-Sul do Brasil na África de língua
portuguesa e na América do Sul. Refletem sobre a assimetria nas ativi-
dades relacionadas à saúde internacional, reflexo da própria ordem polí-
tica e econômica internacional, na qual os países ricos e industrializados
são provedores de assistência técnica aos países pobres e subdesenvolvi-
dos. Apontam como alternativa ao modelo tradicional de cooperação em
saúde a cooperação Sul-Sul e a cooperação regional, destacando o Plano
Estratégico de Cooperação em Saúde no âmbito da CPLP, e a Agenda
Sul-Americana de Saúde no âmbito da Unasul.
Na quinta e última parte temática, Mónica Salomón, em “A dimensão
subnacional da política externa brasileira: determinantes, conteúdos e pers-
pectivas”, aborda a ação externa dos governos subnacionais como atividade
planejada e institucionalizada, também conhecida como “paradiplomacia”,
que está cada vez mais generalizada no mundo. No Brasil, a autora argu-
menta que a paradiplomacia começou a se desenvolver já nos anos 1980 e
atualmente está presente em boa parte dos estados e das grandes cidades.
Sem dúvida, a atual política externa brasileira tem uma dimensão subna-
cional. Explica como a paradiplomacia se desenvolveu no Brasil, com que
Introdução 27

especificidades, e como ela se encaixa no quadro mais amplo da política ex-


terna nacional. A autora destaca ainda as características peculiares que fa-
zem da paradiplomacia brasileira uma “paradiplomacia do Sul”.
Alberto Kleiman, com a colaboração de Gustavo de Lima Cezario,
em “Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacio-
nais”, discute a cooperação internacional descentralizada a partir de uma
ótica que compreende os governos subnacionais (entendidos como todas as
unidades governamentais infraestatais, como municípios, estados, provín-
cias, departamentos, aglomerações urbanas, regiões etc.) inseridos em sua
dinâmica sócio-político-econômico-cultural nacional, diferente da pers-
pectiva tradicional (eminentemente europeia), que interpreta a cooperação
descentralizada a partir de uma posição de aparente neutralidade, como se
esse tipo de cooperação fosse uma atividade uniforme em todos os con-
textos, acessível da mesma forma a todos os governos locais do mundo. Os
autores desenvolvem sua análise tomando o caso do Brasil como exemplo,
levando em conta sua posição de país em desenvolvimento e ex-colônia
portuguesa, sendo importador não só de produtos e tecnologias, mas, so-
bretudo, de conhecimento, o que dificultaria a compreensão das especifici-
dades da cooperação internacional descentralizada no Brasil.
Os capítulos analisam algumas das distintas dimensões hoje presen-
tes no campo da política externa brasileira. Por um lado, contemplam a
investigação sobre a atuação das agências diplomáticas em áreas que tra-
dicionalmente fogem (ou fugiam) ao campo da política externa; por outro,
fazem uma reflexão sobre como o conteúdo da política externa é influen-
ciado (positiva ou negativamente) pela ação de outras agências estatais e
não estatais. Abrem a discussão sobre a dimensão subnacional e local da
política externa, buscando compreender as iniciativas tomadas por estados
federados e municípios brasileiros nesse campo. Apresentam, assim, a dis-
cussão sobre a diversidade de temas e de atores que compõem as agendas
da política externa brasileira contemporânea, atendendo a um público di-
versificado, que demanda uma melhor compreensão da nova realidade das
relações exteriores do Brasil. Nesse universo, incluímos professores e es-
tudantes de cursos de graduação e de pós-graduação lato e stricto sensu de
relações internacionais, sociologia, política, ciências sociais, direito, histó-
ria, administração e economia, que encontrarão neste livro as informações
e reflexões necessárias para melhor compreender o universo da política
externa brasileira. Pretendemos ainda alcançar um público mais amplo,
28 Política externa brasileira

constituído por jornalistas, funcionários de organizações governamen-


tais e não governamentais, empresas, entre outros, que, no âmbito de suas
áreas de atuação, devem agir fundamentados na compreensão abrangen-
te e criteriosa da realidade internacional e da inserção brasileira na ordem
mundial contemporânea.
Não foram poucos os que contribuíram com trabalho, sugestões e crí-
ticas para chegarmos a este conjunto de reflexões. Seria tarefa hercúlea ci-
tar todos e, ainda assim, não escaparíamos do risco de deixar de mencionar
colegas, da academia ou não — operadores, diplomatas, bolsistas, assisten-
tes de pesquisa, estudantes — que nos acompanharam nas várias etapas
que percorremos desde o início de nossas pesquisas. Entre eles, entretanto,
não poderíamos deixar de citar Maria Regina Soares de Lima e Monica
Hirst, que generosamente aceitaram transpor para este livro algumas refle-
xões que por diversas vezes trocaram conosco; e Paula Vedoveli, que, com
sua competência, nos ajudou na organização e formatação dos originais e
no mapeamento minucioso dos principais conceitos e expressões utiliza-
dos ao longo de todos os capítulos. A todos somos imensamente gratos, e
contamos com seu olhar crítico para darmos continuidade a essa agenda de
pesquisa, que, em cada capítulo deste livro, pretendeu trazer para o debate,
dentro e fora dos muros da universidade e da diplomacia, as diversas práti-
cas da política externa brasileira, juntamente com a reflexão sobre a política
inerente a essas práticas.

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PARTE I

Direitos humanos
1.
Atores e agendas no campo da política
externa brasileira de direitos humanos*
Carlos R. S. Milani

Neste capítulo refletimos sobre as distintas práticas da política externa


brasileira no campo dos direitos humanos (PEB-DH), levando em consi-
deração o papel dos três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário —
e também a relevância dos partidos políticos e das organizações da socie-
dade civil, tão atuantes na promoção desses direitos. O emprego do termo
“práticas” não é inocente, pois defendemos aqui a hipótese de que a mul-
tiplicação dos atores, com suas visões, seus discursos e suas incursões no
campo dos direitos humanos, conduz à conformação de um novo campo
de conflitualidade política em que se insere a PEB-DH. A diferenciação
das práticas e a pluralização dos atores implicam, qualitativamente, uma
nova política, da qual decorrem demandas por novos arranjos institucionais
e mudanças nos marcos interpretativos da PEB-DH. Buscaremos, ao lon-
go deste capítulo, entender tais mudanças, mormente no que diz respeito à

* Nossos sinceros agradecimentos a Maria Regina Soares de Lima, Monica Hirst, João Mar-
tins Tude e André L. Nascimento dos Santos por seus comentários e sugestões. Também
agradecemos à secretaria da ONG Conectas — Direitos Humanos pelos anuários que nos
foram gentilmente enviados. Pelo tempo concedido e pela riqueza das trocas, o nosso re-
conhecimento aos entrevistados: Alexandre Ciconello, Edélcio Vigna e Iara Pietricovsky
(Inesc), Cristina Timponi (Presidência da República), Fabrina Furtado (Rede Brasil), Fer-
nando Coimbra (Itamaraty), José Renato Martins (Presidência da República), Lucia Nader
(Conectas), Magali Naves (Seppir), Mariângela Rebuá (Itamaraty), Milton Rondó (Itama-
raty), Rafael J. Rodrigues (Ministério do Meio Ambiente — MMA), Thiago M. Menezes
(Itamaraty/Presidência da República). As entrevistas foram realizadas graças ao apoio do
CNPq, por meio da Rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas e Atores da
Política Externa, coordenada pela professora Leticia Pinheiro.
34 Política externa brasileira

concepção e ao tratamento político da temática dos direitos humanos nas


agendas mais recentes da política externa brasileira, com foco nos governos
FHC e Lula.
Ao reconhecermos a existência de múltiplas “práticas” — elas próprias
reveladoras de relações de poder —, estamos afirmando que a política ex-
terna brasileira não é linear nem estanque. Contrariamente à sustentação do
mito da continuidade e à defesa da imutabilidade de seus princípios dou-
trinários, consideramos que a política externa brasileira, como toda políti-
ca pública, sofre mudanças em suas agendas e em seus atores por motivos
sistêmicos e de acordo com as agendas dos governos. A hipótese do insula-
mento burocrático do Itamaraty não nos parece mais expressar a realidade
empírica da política externa brasileira em tempos de globalização e demo-
cratização do Estado, processos políticos que acabam por tornar as agen-
das decisórias mais complexas e por obrigar diplomatas, em sua maioria
generalistas, à consulta de especialistas das mais diversas áreas. São, portan-
to, várias as visões, os discursos e as práticas da política externa brasileira
que merecem a atenção da academia, impondo-nos o dever científico de
analisarmos essa política pública para além da ação do Ministério das Re-
lações Exteriores. Como lembram Hill (2003) e Milner (1997), na análi-
se da política externa, a forma pela qual evoluem os processos decisórios e
suas etapas também resulta das escolhas dos atores que participam desse
campo, dos conteúdos abordados e das visões por eles adotadas. Os ato-
res envolvidos nessas agendas trazem suas visões e percepções sobre direi-
tos humanos, que não são objeto de consenso nem isentas de contradições.
Diferentes atores são portadores, ademais, de representações sociais e mar-
cos interpretativos (Herz, 1994; Hudson, 2005) que resultam, entre outros
fatores, de distintas formas de conflitualidade e cultura política. Com a
chegada de novos atores, também tende a mudar a problematização sobre
como o Estado deve comportar-se internacionalmente na defesa dos direi-
tos humanos e como essa problemática se relaciona com os campos da se-
gurança, do desenvolvimento e da cooperação internacional.
Tal constatação torna-se ainda mais relevante na análise das práticas
internacionais de proteção e intervenção em nome dos direitos humanos,
porquanto estas muitas vezes revelam dilemas, ambivalências discursivas
e incoerências comportamentais que se situam entre dois polos: o da ne-
cessária denúncia de uma retórica do poder e o da adesão ao princípio
filosófico de uma sociedade cosmopolita de cidadãos do mundo (Trin-
dade, 1997; Costa, 2003; Wallerstein, 2007). Costa (2003:19) aponta que
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 35

o motor da defesa de uma democracia cosmopolita seria um verdadeiro


“wishful thinking, levado ao paroxismo, que transforma o imperativo cate-
górico da ordem cosmopolita em materialidade empírica e o dever-ser da
justiça além-fronteiras no ser generalizado de pessoas e Estados nacionais
altruístas”. Wallerstein indica duas premissas básicas que teriam servido
(e continuariam servindo) de apelo ao universalismo europeu, a saber: a)
a política dos líderes do mundo pan-europeu, que defende os direitos hu-
manos e promove a democracia, mas que tem legitimado intervenções de
caráter cultural e militar; e b) a que acompanha o jargão do alegado cho-
que entre civilizações, em que se pressupõe que a civilização euro-ocidental
seria sempre superior às outras, porque estaria fundamentada em valores e
verdades universais. No entanto, como construir e efetivar tal universalis-
mo em um sistema interestatal capitalista? A lógica estatal tem enormes
dificuldades em prover uma ação desse tipo; a “esquizofrenia” evidencia-se,
por exemplo, na recusa norte-americana em assinar o tratado que estabe-
lece o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou o Protocolo de Kyoto (Bra-
ga, 2008:161). Bull (2002:152) lembra que, “levada ao seu extremo lógico,
a doutrina dos direitos e deveres humanos sob a lei internacional é subver-
siva de todo o princípio segundo o qual a humanidade deveria ser organi-
zada como uma sociedade de Estados”.
No bojo das tensões produzidas entre a tentativa de construção de
uma utopia universalista e a política dos direitos humanos, a problemática
da mudança sempre foi um desafio teórico, tanto para as ciências sociais
em geral quanto para a análise de política externa em particular. No caso
da política externa, a mudança envolve desde pequenos ajustes, ênfases re-
tóricas, diferenças nos objetivos até transformações mais abrangentes das
metas e das concepções sobre o projeto político nacional de inserção no
cenário mundial (Hermann, 1990; Vigevani e Cepaluni, 2007). Para com-
preender a mudança, torna-se relevante identificar quem são os agentes
primários das transformações, em que espaços institucionais as decisões
ocorrem e também com que intensidade. Fica claro, com base no que aca-
bamos de afirmar, que os fundamentos do realismo, ao reificarem a noção
de interesse nacional sem proporem uma teoria abrangente do Estado,
não logram abarcar essas concepções sobre a mudança no campo da polí-
tica externa. A nosso ver, pensar a mudança implica, em última instância,
retirar a política externa brasileira do “tabuleiro de xadrez” (Lima, 2000)
e colocá-la na arena pública de discussão, deliberação e decisão, haja vista
36 Política externa brasileira

que o interesse nacional é plural e a construção republicana de seus senti-


dos deve romper com o monopólio de uma organização burocrática, um
grupo de interesse ou uma classe de dirigentes em particular.
Assim, neste capítulo, após uma breve introdução ao debate concei-
tual e a apresentação de algumas mudanças de concepção e tratamento
político dos direitos humanos nas agendas da política externa brasileira,
tentaremos construir hipóteses explicativas a fim de pensar a mudança dos
marcos interpretativos e a emergência de novos arranjos institucionais no
campo da PEB-DH por meio de três níveis analíticos: primeiro, os cho-
ques externos produzidos pelo fim da separação clássica entre o in e o out,
em que os processos de globalização muito colaboram para recontextua-
lizar os campos da high e da low politics; segundo, a evolução do próprio
regime de direitos humanos (o reconhecimento pelo Brasil, em 1998, da
competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos e o estabelecimento, em 2006, do Conselho de Direitos Humanos
na ONU) e seus efeitos em termos de judicialização da política; terceiro,
o nível das transformações domésticas (democratização, transição FHC-
Lula, evolução do padrão organizacional das ONGs de direitos humanos),
que tornam os direitos humanos objeto de interesse da mídia nacional,
muito embora o tema ainda esteja longe de fazer parte de um amplo deba-
te público e de mobilizar a opinião, tal como ocorre, de maneira mais con-
tundente, na vizinha Argentina.

O debate conceitual: a política externa enquanto


política pública

É notório o crescimento dos estudos de políticas públicas no Brasil e no


mundo. Várias áreas do conhecimento, órgãos governamentais, organiza-
ções não governamentais, movimentos sociais e centros universitários vêm
realizando pesquisas sobre o que o governo faz ou deixa de fazer.1 A re-

1
Como lembra Souza (2006:24), “não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que
seja política pública”. Aqui adotamos a definição de política pública como o conjunto das
atividades do governo que, agindo direta ou indiretamente (por exemplo, por delegação ou
pela ação de agentes não governamentais), acabam por influenciar o cotidiano dos cidadãos.
Tais ações do governo se inspiram em um modelo institucional e em uma tradição históri-
ca de Estado.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 37

novação e a expansão do campo dos estudos sobre políticas públicas têm


provocado uma série de novas interpretações e olhares possíveis, incidin-
do inclusive nas análises sobre política externa (Ingram e Fiederlein, 1988;
Ratton Sanchez et al., 2006). Tradicionalmente, a política externa tendeu,
por muito tempo, a ser considerada desconectada das demais políticas pú-
blicas (domésticas). Carregava sobre si uma mística de particularidade, es-
pecialização extrema e confidencialidade que a tornava acessível somente
a alguns poucos “magos” capazes de operá-la. Também corroborava essa
concepção o fato de que, para muitos autores, seriam políticas públicas
somente as políticas domésticas, ou seja, aquelas que impactariam direta-
mente na sociedade nacional e no curto prazo, a exemplo das políticas de
saúde, assistência social ou educação.2
No entanto, a política externa pode ser entendida e analisada como po-
lítica pública, semelhante às políticas públicas domésticas. Do ponto de vis-
ta conceitual, há autores que definem a política externa como uma junção
de comportamentos que traduzem as preocupações de um Estado no pla-
no internacional (Breuning, 2007). Outros a consideram uma linha de ação
que seus operadores seguem a fim de apresentar ou modificar uma situação
no sistema internacional de modo que este se torne compatível com os ob-
jetivos definidos por eles mesmos ou por seus predecessores (Rosenau, 1967
e 1968). Outros ainda a definem como o conjunto de orientações, engaja-
mentos e ações que caracterizam o âmbito nacional de um Estado (Holsti,
2001). Nessas concepções, o que se pode perceber é a concordância em tor-
no da proeminência do Estado como ator preponderante, se não exclusivo,
do processo de formulação e implementação da política externa.
Já Christopher Hill (2003:3) a define como “o somatório das rela-
ções exteriores oficiais conduzidas por um ator independente (mais fre-
quentemente o Estado) nas relações internacionais”. A expressão “ator inde-
pendente” faz alusão ao Estado, mas também a atores distintos, tais como a
União Europeia ou o Mercosul; a indicação de relações “oficiais” remete-nos
a várias instâncias do ator estatal (suas agências, entidades subnacionais etc.)

2
Como lembra o professor francês Frédéric Charillon (2002), a análise da política externa se
organiza como campo científico em meados dos anos 1950. Seu desenvolvimento fez-se essen-
cialmente com base em três dimensões principais: a) a teoria de política externa como instru-
mento de comparação entre as ações externas dos Estados; b) a análise dos contextos da política
externa; e c) a análise dos processos de tomada de decisão de política externa. São essas três di-
mensões que estão presentes em quase todas as teorias e conceitos de política externa.
38 Política externa brasileira

ou do operador empresarial (a sede de uma empresa, as filiais de uma firma


transnacional etc.); finalmente, trata-se de uma política porque envolve in-
tenção, coordenação, tomada de decisão, implementação, avaliação e adoção
de procedimentos de rotina. Tal definição bastante abrangente de política
externa é corroborada pelo contexto movente desde meados da década de
1980, momento marcado pelo fim do conflito Leste-Oeste, pela superiori-
dade militar dos Estados Unidos, pelo surgimento de novos temas na agen-
da internacional, por crises financeiras sistêmicas, pela emergência de novas
potências regionais e globais, pela intensificação dos processos de integração
regional, mas também pelo desenvolvimento de novas tecnologias de comu-
nicação e o consequente desafio posto às formas básicas de solidariedade,
hierarquia, autoridade e fronteira.
Desse conjunto de fatores resultou a crescente complexificação das
agendas políticas — domésticas e internacionais —, fazendo com que os
atores tradicionais da política externa fossem levados, se não constrangidos,
a considerar cada vez mais as visões e as demandas de atores não centrais
e não estatais nos processos decisórios. O diplomata e o soldado, descritos
por Aron como os protagonistas clássicos da política externa,3 passaram
a ter de se acostumar com a companhia, embora por vezes tímida e nem
sempre assídua, de burocratas do setor da saúde (ou da cultura, da educa-
ção, do desenvolvimento agrário etc.), de deputados e senadores (e seus
assessores legislativos), prefeitos e governadores, operadores econômicos,
líderes de ONGs, movimentos sociais, organismos da mídia e personalida-
des da academia, como mostra o quadro 1.
Assim, a partir do momento em que a política externa passa a afetar
mais diretamente uma porção significativa da população, um grupo cada
vez mais amplo de cidadãos tende a se interessar pelas decisões tomadas
nesse âmbito do governo e, além disso, a demandar maior transparência
nas ações de política externa (constituencies).4 O aumento de interesse e o

3
Aron (1986:52) afi rma que os “dois — e somente eles — agem plenamente não como mem-
bros, mas como representantes das coletividades a que pertencem: o diplomata, no exercício
das suas funções, é a unidade política em nome da qual fala; no campo de batalha, o soldado
é a unidade política em nome da qual mata o seu semelhante” (grifos do autor).
4
No mundo anglo-saxão, o termo constituency remete a qualquer grupo coeso de indivíduos
ligados por identidades compartilhadas, laços culturais, valores, interesses e lealdades co-
muns. O termo pode ser usado para descrever um conjunto de eleitores, apoiadores de uma
fundação, clientes ou acionistas de uma empresa. Portanto, o membro de uma constituency
seria um constituent (Bogdanor, 1985).
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 39

debate público podem conduzir a um processo lento e gradual de abertura


e politização do campo da política externa, embora ainda em termos bas-
tante reduzidos quando esta se compara com outras políticas públicas, como
a educação, a saúde, a assistência social, por exemplo. Segundo Lima (2000)
e Velasco e Cruz (2004), tal processo depende mais diretamente da existên-
cia de impactos distributivos internos, que ocorrem quando os resultados
da ação externa deixam de ser simétricos para os diversos segmentos sociais
(importação de bens, negociação de acordos comerciais bilaterais ou multi-
laterais, adesão a regimes internacionais).5 Quando, ao contrário, os custos
e benefícios não se concentram em setores específicos, ou os resultados da
ação externa são neutros do ponto de vista do conflito distributivo interno, a
política externa produz bens coletivos, aproximando-se do seu papel clássico
(por exemplo, política de defesa para garantir a paz interna).
As principais consequências do adensamento dos processos de glo-
balização para a politização do campo da política externa podem ser pen-
sadas sob duas óticas essenciais: a) a da ampliação das agendas de política
externa e sua complexificação, de forma que as ações externas do Estado
passam a influenciar mais nitidamente a vida cotidiana dos cidadãos co-
muns (e a serem percebidas dessa maneira por eles próprios); b) a do au-
mento da demanda por participação nos processos de formulação e exe-
cução das políticas do Estado em geral e da política externa em particular,
processo este influenciado pela onda democratizante de finais da década
de 1980 e pelo chamado boom das organizações não governamentais no
início dos anos 1990.

5
Souza (2006:28) apresenta a tipologia de políticas públicas elaborada originariamente por
Theodore Lowi em 1964, partindo da seguinte máxima: a política pública faz a política, ou
seja, cada tipo de política pública enfrenta diferentes formas de apoio e de rejeição, fazendo
com que disputas em torno de sua decisão passem por distintas arenas de negociação. O pri-
meiro modelo é o das políticas distributivas, decisões tomadas pelo governo que desconside-
ram a questão dos recursos limitados, gerando impactos mais individuais do que universais,
ao privilegiar certos grupos sociais ou regiões em detrimento do todo. O segundo é o das
políticas regulatórias, que são mais visíveis para o público, envolvendo burocracia, políticos
e grupos de interesse. O terceiro é o das políticas redistributivas, que atinge maior número
de pessoas e impõe perdas concretas e no curto prazo para certos grupos sociais, e ganhos
incertos e futuros para outros (as políticas sociais universais, o sistema tributário, o sistema
previdenciário, de regra, de mais difícil encaminhamento). O quarto é o das políticas cons-
titutivas, que lidam com procedimentos. Cada uma dessas políticas públicas gera pontos ou
grupos de vetos e apoios diferentes, processando-se, portanto, dentro do sistema político de
forma também diferente.
40 Política externa brasileira

Quadro 1
Configuração dos atores domésticos envolvidos na formulação
e na implementação da política externa brasileira

1o nível — atores governamentais


• Poder Executivo federal
• Agências de primeiro nível de relevância (abrangência nacional)
• Agências de segundo nível de importância (regionais e locais, mas também atuantes
no plano internacional)
• Entidades subnacionais (estados federados e municípios)
• Poder Legislativo federal (Senado e Câmara dos Deputados) e Poder Judiciário

2o nível — atores não governamentais


• Partidos políticos (atores sui generis, pois podem fazer parte do governo diretamente)
• ONGs, organizações empresariais e sindicatos
• Meios de comunicação e opinião pública
• Think tanks, organizações religiosas e grupos étnicos

Tais processos contribuem para que aspectos antes relegados ao âm-


bito da low politics ganhem relevância política e despontem em discussões
prioritárias de política externa. Destacam-se, por exemplo, os temas am-
bientais, narcotráfico, redução da pobreza, direitos humanos etc. Muitas
dessas questões foram discutidas nas conferências organizadas pela ONU
ao longo da década de 1990 — Jomtien-90, Rio-92, Viena-93, Cairo-94,
Beijing-95, Istambul-96 —, que incentivaram a internacionalização do Es-
tado e de suas agendas domésticas, mas também o fortalecimento de redes
mais ou menos autônomas de organizações da sociedade civil. Desde os
anos 1990, esse processo vem desafiando a formulação de decisões tradi-
cionais no campo da política externa (Saraiva, 2003), passando a exigir de
seus formuladores um conhecimento mais amplo e uma expertise a ele asso-
ciada a fim de dar conta da complexidade técnica e científica de muitas das
novas questões internacionais. Organizações da sociedade civil, especialis-
tas, acadêmicos, experts, organizações sindicais, grupos empresariais pas-
sam a dialogar mais atentamente com diplomatas e operadores clássicos
das agendas de política externa. É claro que existem variações em termos
de graus e tipos de participação desses novos atores no campo da política
externa. No entanto, paulatinamente, torna-se fato que a política externa
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 41

não logra mais escapar aos processos de tomada de decisão aos quais as
políticas públicas estão submetidas e que são característicos dos regimes
democráticos modernos, quais sejam: relação entre Poder Executivo e Le-
gislativo, possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, existência de
trâmites burocráticos (e uma política burocrática) e participação da socie-
dade civil, dos operadores empresariais e sindicais.
Além disso, no bojo do processo de redemocratização do Estado, a
Constituição de 1988 colaborou para a desconcentração da política exter-
na brasileira. Mesmo com a manutenção quase que irretocável das disposi-
ções do Executivo federal referentes às relações exteriores, a Carta Magna
ampliou o papel do Poder Legislativo no processo decisório. No próprio
texto constitucional podem ser encontrados os princípios norteadores da
ação do Estado na política internacional (art. 4o do título I),6 que, apesar de
bastante generalistas na definição de algumas orientações da política ex-
terna brasileira, impactaram na capacidade de ação dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário. Assim, o tradicional processo decisório da política
externa brasileira, centrado na atuação decisiva do Executivo e no papel do
Itamaraty, passou a ser objeto dos efeitos de democratização das políticas
públicas. Como afirma Lima (2000), a política externa passou a refletir não
só os constrangimentos sistêmicos, provenientes da própria estrutura da
ordem internacional, mas também, e principalmente, as estratégias estabe-
lecidas pelos atores domésticos no contexto da distribuição de interesses e
preferências no interior do Estado.
Além dos dispositivos constitucionais, outros fatores contribuíram
para a politização do campo da política externa brasileira, notadamente nos
últimos 20 anos, como: a) a própria abertura proporcionada pelo Itamara-
ty por meio de foros consultivos e da formação de delegações mistas (com-
postas por diplomatas e representantes da sociedade civil) para encontros
internacionais; b) a midiatização da política externa, o que atraiu a atenção
dos cidadãos comuns para as decisões tomadas pelo Estado brasileiro em

6
Os princípios são os seguintes: I — independência nacional; II — prevalência dos direitos
humanos; III — autodeterminação dos povos; IV — não intervenção; V — igualdade entre
os Estados; VI — defesa da paz; VII — solução pacífica dos confl itos; VIII — repúdio ao
terrorismo e ao racismo; IX — cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X — concessão de asilo político. Parágrafo único: a República Federativa do Brasil buscará
a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de nações.
42 Política externa brasileira

relação às suas relações internacionais; c) o relativo aumento de visibilidade


das agendas de política externa durante as disputas eleitorais presiden-
ciais das décadas de 1990 e de 2000; d) o aumento do interesse dos aca-
dêmicos e especialistas pelo acompanhamento da política externa e pela
ampliação dos cursos de graduação de Relações Internacionais. Como
afirmam Faria (2008) e Pinheiro (2009), o caráter insulado do proces-
so de produção da política externa brasileira tem sido amplamente reco-
nhecido; isso não significa, porém, que não existam indícios de alterações
importantes nesse padrão institucional, sobretudo a partir do início da
década de 1990, e pressões crescentes para que tal processo se torne mais
permeável a articulações, interesses e demandas de uma diversidade de
outros atores, governamentais, privados e sociais.
Ora, essa ampliação dos atores e a ruptura com o insulamento buro-
crático do Itamaraty aproximam a política externa das políticas públicas
domésticas. É necessário, no entanto, ter em conta que esse processo acar-
reta igualmente a necessidade de mudança institucional e de revisão da
cultura organizacional da Casa de Rio Branco.7 As duas décadas de glo-
balização e redemocratização foram essenciais para que a política externa
brasileira adquirisse um caráter mais transparente e democrático, permi-
tindo maior acesso da sociedade brasileira às decisões de política externa.
Começa a haver uma interação mais frutífera entre atores governamentais,
operadores privados e organizações sociais. O próprio site do Itamaraty
apresenta os temas de política externa de modo mais acessível e organiza-
do para o público não especialista. É evidente, como veremos, que o grau
de participação da sociedade civil e a institucionalização desse processo no
campo da política externa dependem, entre outros fatores, da conjuntura
interna e externa, do grau de abertura do governo dirigente, da natureza da
temática em debate. Com isso, precisamos ter em mente que as generaliza-
ções são precipitadas e que, para cada temática da agenda externa, é preciso

7
A antropóloga Cristina Patriota de Moura (2009) realizou uma pesquisa detalhada sobre
alguns dos aspectos relacionados ao capital social e ao capital simbólico, bem como à cultura
organizacional das redes do Itamaraty. Em seu livro, salienta, por exemplo, que a tradição e
a renovação são valores caros ao ministério, que também demonstra crescente preocupação
com a representatividade do corpo diplomático em relação à diversidade da população bra-
sileira. As políticas de reconhecimento do Itamaraty (bolsas de estudos para negros e, me-
dida anunciada para viger a partir de 2011, cotas no processo seletivo de diplomatas), apesar
da retórica e da midiatização excessiva, apresentam o potencial de, no longo prazo, produzir
efeitos sobre a cultura organizacional do Itamaraty.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 43

discernir, por exemplo, o grau de institucionalização e a capacidade propo-


sitiva de atores não governamentais, a receptividade da burocracia estatal às
demandas da sociedade, a capacidade de coordenar interesses divergentes,
bem como a variação de padrões de relacionamento de acordo com o estilo
de cada administração federal (Oliveira e Pfeifer, 2006).
Apesar de recente e de ainda não ser objeto de um verdadeiro con-
senso na própria academia, a perspectiva aqui adotada parece-nos perti-
nente por permitir a ampliação do escopo de compreensão do conteúdo
político e ético da política externa, mormente no que diz respeito aos di-
reitos humanos. Também por implicar um debate mais abrangente sobre
a autoridade (a capacidade do exercício do poder) e a responsabilidade dos
agentes envolvidos no processo de formulação e implementação da polí-
tica externa brasileira no campo dos direitos humanos (PEB-DH), bem
como a necessidade de prestar contas à sociedade de modo transparente (o
sentido público da accountability8) acerca dos objetivos planejados e resul-
tados atingidos. Finalmente, dessa perspectiva pública também decorre o
aumento de credibilidade e a legitimação social da PEB-DH nos âmbitos
nacional e internacional, e isso ante os demais países da comunidade in-
ternacional, agências e órgãos internacionais, firmas, investidores estrangei-
ros e organizações não governamentais internacionais, atores tão relevantes
na condução das agendas da PEB-DH.

Os direitos humanos nas agendas de política externa

Desde o ingresso simbólico do Brasil na cena multilateral durante a Segun-


da Conferência de Paz em Haia, em 1907, a diplomacia brasileira tem se
caracterizado pela adesão aos princípios da negociação e da formação mais
ampla de consensos (Amorim, 2007). No caso do regime de direitos hu-
manos, a trajetória da política externa, ao longo da Guerra Fria, sofreu va-
riações entre o paradigma da integração internacional — globalista — e o
da defesa da soberania — autonomista, em alguns casos nacionalista. De-
pois de reiteradas demonstrações de reticência quanto a possíveis intrusões

8
O termo accountability refere-se à obrigação, para governantes, parlamentares, membros do
Judiciário e gestores públicos em geral, de prestar contas aos cidadãos e à sociedade acerca da
gestão dos bens e políticas públicas, inclusive em matéria de política externa.
44 Política externa brasileira

de superpotências em assuntos nacionais, foi no âmbito da política externa


independente (1961-1964) que o tema dos direitos humanos acabou sen-
do retomado, com ênfase particular nos direitos sociais. Durante a ditadura
militar, o tema “praticamente desapareceu das intervenções definidoras de
posições de política externa” (Alves, 2009:74). O governo militar silenciou-
se a respeito dos pactos de direitos humanos de 1966, e o Brasil foi obje-
to, entre 1974 e 1976, de procedimento confidencial, ferramenta política
usada pela Comissão de Direitos Humanos a fim de investigar denúncias
de Estados violadores. A mudança deu-se em 1977, quando o Brasil pas-
sou a integrar a comissão e as agendas de política externa foram se tornan-
do crescentemente mais receptivas aos princípios e às normas multilaterais
de direitos humanos. Em 1985, o presidente José Sarney anunciou à As-
sembleia Geral da ONU a decisão do governo brasileiro de aderir aos dois
pactos (direitos civis e políticos; direitos sociais, econômicos e culturais) e à
Convenção contra a Tortura.
Portanto, desde o início do processo de redemocratização do Estado,
e, mais ainda, desde a promulgação da Carta Magna de 1988, o governo
brasileiro tem se pautado por uma política de respeito às regras do regime
multilateral de direitos humanos. O art. 4o (inciso II) da Constituição es-
tabelece que os direitos humanos devem ter prevalência nas relações inter-
nacionais do Brasil. Seguindo as recomendações da Convenção de Viena
(1993), o governo federal formulou, em 1996, o primeiro Programa Nacio-
nal de Direitos Humanos, sendo a segunda e a terceira edições lançadas,
respectivamente, em 2002 e 2008. No governo FHC, o Itamaraty estabele-
ceu o Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais e, em 1997, a
Secretaria Nacional (depois Especial) de Direitos Humanos junto à Presi-
dência da República. Em 1998, o governo reconheceu a jurisdição da Cor-
te Interamericana de Direitos Humanos e, em 2000, assinou o Estatuto de
Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, ratificando-o em 2002.
Como afirmou Paulo Vannuchi (2010:20), ministro da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos durante o governo Lula: “Vejo no governo FHC
três elementos mais destacados como balanço de seus oito anos: estabiliza-
ção da inflação, introdução da responsabilidade fiscal e afirmação dos di-
reitos humanos. Este último tópico se deveu, em grande parte, ao trabalho
do ministro José Gregori e a Paulo Sérgio Pinheiro”.
Hoje, o Brasil pode ser considerado um país que desempenha papel
de relativo destaque no regime internacional de direitos humanos. Em
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 45

2002, o governo logrou inclusive a nomeação de Sérgio Vieira de Mello


como alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. O
padrão qualitativo de adesão do Brasil ao regime multilateral pode ser
comparado ao de algumas superpotências e outras potências médias do
sistema internacional (ver quadro 2). O país é signatário e já ratificou pra-
ticamente todos os instrumentos internacionais no campo dos direitos
humanos, embora ainda esteja ausente da Convenção Internacional para
a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimentos Forçados e da
Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de Todos os Tra-
balhadores Migrantes e suas Famílias (Conectas, 2010). O Brasil é, dessa
forma, um dos países em desenvolvimento que mais ratificaram conven-
ções e tratados internacionais no campo dos direitos humanos, ao lado de
Argentina, Chile, México e Uruguai, que também se destacam.

Quadro 2
O Brasil e os acordos internacionais de direitos humanos

Possibilidade
Comparação
Instrumento Assinatura Ratificação Protocolos de envio de
com alguns
internacional pelo Brasil pelo Brasil facultativos petições
Estados
individuais
Pacto 24-1-1992, por adesão Ratificação dos Sim (petições 167 Estados-
Internacional e sem reservas dois protocolos individuais membros
sobre os em 2009 relativas aos
Direitos Civis e (Protocolo Estados-
Políticos (1966) sobre petições membros)
individuais,
1966; Abolição
da pena de
morte, 1998)
Pacto 24-1-1992, por adesão Não assinou Não, pois o 160 Estados-
Internacional e sem reservas o protocolo Brasil ainda não membros.
sobre os facultativo o ratificou Assinado por
Direitos sobre petições Cuba (2008),
Econômicos, individuais EUA (1977) e
Sociais e África do Sul
Culturais (1994), mas não
(1966) ratificado pelos
três Estados
46 Política externa brasileira

Possibilidade
Comparação
Instrumento Assinatura Ratificação Protocolos de envio de
com alguns
internacional pelo Brasil pelo Brasil facultativos petições
Estados
individuais
Convenção 31-3-1981 1-2-1984 Ratificou-o em Sim Assinada
sobre a 28-6-2002 pelos EUA em
Eliminação 1980, mas não
de Todas as ratificada
Formas de
Discriminação
contra as
Mulheres
(1979)
Convenção 7-3-1966 27-3-1968, Sem protocolo Sim 174 Estados-
Internacional sem reservas facultativo membros
sobre a
Eliminação
de Todas as
Formas de
Discriminação
Racial (1965)
Convenção 26-1-1990 24-9-1990 Ratificou os Não (o Comitê 193 Estados-
sobre os dois protocolos não as examina) membros. Os
Direitos da em 27-1-2004 EUA assinaram
Criança (1989) (crianças em 1995, mas
em conflitos ainda não
armados ratificaram
e venda/
pornografia)
Convenção 23-9-1985 28-9-1989, Ratificou-o em Sim 147 Estados-
contra a Tortura sem reservas 12-1-2007 membros. A
e Outros Índia assinou em
Tratamentos ou 1997, mas ainda
Penas Cruéis, não ratificou
Desumanos ou
Degradantes
(1984)
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 47

Possibilidade
Comparação
Instrumento Assinatura Ratificação Protocolos de envio de
com alguns
internacional pelo Brasil pelo Brasil facultativos petições
Estados
individuais
Convenção Não assinou Não ratificou Sem protocolo Não, pois o Tampouco
Internacional facultativo Brasil ainda não assinaram:
para a Proteção o ratificou África do Sul,
dos Direitos Alemanha,
de Todos os China, EUA,
Trabalhadores França, Índia,
Migrantes e Japão etc.
suas Famílias
(1990)
Convenção 30-3-2007 1-8-2008, Ratificou o Sim 97 Estados-
sobre os sem reservas protocolo membros
Direitos das sobre petições
Pessoas com individuais em
Deficiência 1-8-2008
(2006)
Convenção 6-2-2007 29-11-2010 Sem protocolo Protocolo 21 Estados-
Internacional facultativo previsto, mas membros.
para a Prote- ainda inexistente Também:
ção de Todas as Alemanha,
Pessoas contra Argentina,
Desaparecimen- Cuba, França,
tos Forçados Japão, Paraguai,
(2006) Uruguai etc.
Convenção 11-12-1948 11-4-1952, Sem protocolo Não 141 Estados-
sobre sem reservas facultativo membros.
Prevenção Muitos não
e Punição reconhecem a
do Crime de competência
Genocídio automática
(1948) da Corte
Internacional de
Justiça
Fonte: Dados compilados a partir da Conectas (2010) e <http://treaties.un.org>.
48 Política externa brasileira

Além disso, o governo brasileiro tem desenvolvido uma política de


reassentamento dos refugiados que devem trocar de país de acolhimento
(Moreira, 2010). Em 2006, o Brasil foi o 12o país que mais reassentou refu-
giados, em sua maioria colombianos e palestinos. Hoje, segundo dados dis-
ponibilizados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), eles são
4.294 no Brasil (64,9% oriundos da África e 22,3% da América Latina).9
Interessante notar que o Conare é presidido pelo ministro da Justiça, sendo
seu vice o ministro das Relações Exteriores; ademais, inclui a participação
da sociedade civil — Caritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio de Janei-
ro — e a representação, embora sem direito a voto, do Alto-Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados.
Também merecem destaque as iniciativas do governo brasileiro no
campo da saúde (direitos humanos e acesso a medicamentos), da luta con-
tra o racismo e a discriminação, do combate à fome, bem como em rela-
ção ao impacto da crise financeira mundial sobre os direitos humanos. Ao
longo de 2009, o ativismo da PEB-DH pôde ser evidenciado, ademais, nos
seguintes exemplos: visita ao Brasil do presidente do Conselho de Direi-
tos Humanos e presença do presidente Lula na sua 11a sessão; reeleição do
Brasil para o conselho em 2008, com mandato de três anos, até 2011; in-
trodução, pelo governo brasileiro, de cinco das propostas levadas a vota-
ção e copatrocínio de 36, além de participação no mecanismo de Revisão
Periódica Universal de 48 países, fazendo comentários, perguntas e reco-
mendações aos países revisados (Conectas, 2010:74).10
Finalmente, o governo brasileiro mantém o convite aberto a todos os
relatores especiais (standing invitation), muito embora, mais recentemen-
te, tenha emitido críticas a algumas das recomendações feitas.11 No caso

9
Dados do portal do Ministério da Justiça, disponíveis em: <http://portal.mj.gov.br/data/
Pages/MJ7605B707ITEMID5246DEB0F8CB4C1A8B9B54B473B697A4PTBRIE.htm>.
10
A leitura atenta das recomendações feitas pelo governo brasileiro aos países durante o pro-
cesso de Revisão Periódica Universal (UPR, Universal Periodic Review, ferramenta de mo-
nitoramento criada pelo Conselho de Direitos Humanos) revela tendências que merecem ser
explicitadas: para os países africanos, prevaleceram, até agora, recomendações sobre ques-
tões de gênero; os direitos da criança foram enfatizados no caso dos países do Leste europeu;
a política de migrações e os direitos dos migrantes, para a Europa ocidental e os Estados
Unidos (que também receberam recomendações sobre o combate à tortura e detenções sem
julgamento); temas relativos a migrações, comunidades indígenas e populações negras, para
a América Latina (Conectas, 2010:152).
11
O embaixador Gilberto Vergne Saboia, que foi secretário de Estado para os Direitos Hu-
manos (entre 2000 e 2001) e presidente do Comitê de Redação da Conferência de Viena (em
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 49

de Olivier de Schutter, relator especial sobre Direito à Alimentação, que


visitou o Brasil entre 12 e 18 de outubro de 2009, a embaixadora Maria
Nazareth Farani, chefe da Missão Permanente do Brasil junto à ONU
em Genebra, chegou a afirmar que o relator deslocou seu foco da segu-
rança alimentar e tendeu a lidar com questões relacionadas à agricultura
“sempre dentro da perspectiva dos interesses dos ricos e protecionistas”.
Além disso, no caso do relatório apresentado por Philip Alston em junho
de 2009, a embaixadora chamou a atenção para o fato de que o relator es-
pecial para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias não havia
mencionado o Brasil no debate com o Conselho de Direitos Humanos,
mas horas depois alegara, em uma coletiva com a imprensa, que os da-
dos oficiais disponibilizados pelo governo não teriam credibilidade por
não serem certificados por fontes independentes. Em sua reação, a em-
baixadora abandonou o tradicional tom diplomático e afirmou: “[…] o sr.
Alston está errado. Ao compartilhar seu preconceito com a imprensa, e
não com este Conselho, o relator violou seriamente o Código de Condu-
ta dos mandatários de procedimentos especiais do Conselho de Direitos
Humanos […]. O código requer dos procedimentos especiais imparciali-
dade, veracidade, boa-fé […]. Com esse comportamento o sr. Alston fa-
lhou em fazer jus aos padrões de sua posição”.12
Nesse contexto, como entender as mudanças na política externa bra-
sileira no campo dos direitos humanos (PEB-DH) no decorrer do manda-
to do presidente Lula? O quadro 3 apresenta esquematicamente a alteração
mais marcante quanto aos posicionamentos brasileiros na Assembleia Geral
da ONU e no Conselho de Direitos Humanos. As interpretações da mídia
nacional e de uma parcela importante de ativistas de direitos humanos a esse

1993), referindo-se às visitas e missões dos relatores especiais da Comissão de Direitos


Humanos, afi rma que, em alguns casos, podem resultar em diagnósticos críticos sobre as
deficiências que ainda existem no Brasil quanto aos direitos humanos e se questiona se isso
deveria ser visto como uma violação à soberania brasileira ou como intromissão indevida em
assuntos domésticos, a que responde: “Parece claro que a resposta deve ser negativa, pois o
diálogo construtivo com estes mecanismos se trava em torno de objetivos comuns, consagra-
dos na Constituição e nas leis do Brasil, e contribui para o melhor esclarecimento nas diferentes
esferas governamentais da necessidade de atender a compromissos que, afinal, correspondem a
obrigações assumidas para com a sociedade brasileira” (Saboia, 2009:62).
12
Pronunciamentos extraídos da extranet do Conselho de Direitos Humanos (acesso me-
diante senha), que também disponibiliza inúmeros documentos oficiais para fins de pesquisa
acadêmica. Ver também Conectas (2010:111-121).
50 Política externa brasileira

respeito são, de fato, bastante críticas. Por um lado, a imprensa nacional de-
nunciou o que teria considerado uma inflexão grave nos posicionamentos da
PEB-DH do governo Lula. Inúmeros artigos e editoriais de jornais de cir-
culação nacional trataram da temática, condenando a “condescendência” da
política externa em relação a regimes autoritários, como nos casos da Coreia
do Norte, de Cuba, do Sri Lanka ou do Sudão. A aproximação estratégica
com o Irã e a mediação turco-brasileira proposta para o impasse sobre o pro-
grama nuclear iraniano também foram alvo de críticas.13 Por outro, o exce-
lente relatório sobre política externa e direitos humanos, publicado em 2010
pela ONG Conectas — Direitos Humanos, chamou a atenção para uma
série de posicionamentos do governo brasileiro no seio da ONU, sobretudo
na Assembleia Geral e no Conselho de Direitos Humanos. Em nota públi-
ca divulgada logo após a visita do presidente Lula ao conselho em junho de
2009, a Conectas reconheceu o papel cada vez mais relevante do governo
brasileiro em importantes temas da agenda de desenvolvimento no âmbito
internacional, porém afirmou que “a atuação do Brasil no conselho, no en-
tanto, tem sido marcada por ambiguidades, especialmente quando se refere
a casos de graves e persistentes abusos aos direitos humanos em países espe-
cíficos” (referindo-se, principalmente, à Coreia do Norte e ao Sri Lanka).14
Organizações da sociedade civil tendem a ter posicionamentos mais
universalistas em defesa dos direitos humanos, denunciando, portanto, as
posições conciliatórias mais recentes da PEB-DH em relação a regimes
considerados autoritários ou pouco democráticos. Nesse mesmo sentido,
são compreensíveis e legítimas as inúmeras críticas de várias organizações
não governamentais à aproximação do Brasil com o Irã, à mudança de
voto brasileiro em relação aos direitos humanos na China (a favor do no
action motion em 2004, enquanto, antes, o Brasil sempre se abstivera, sal-
vo em 1996, quando votou a favor) e ao voto em relação à Chechênia (de
abstenção em 2001/2002 ao voto contrário em 2003/2004). Elas refletem
uma filosofia sobre a sociedade mundial contemporânea, que deveria ser

13
Ver, por exemplo, o editorial de Merval Pereira (2010:4), e ainda a matéria assinada por
Fernanda Godoy, também em O Globo (20 nov. 2010, p. 41), sobre a abstenção brasileira na
votação de uma resolução — de censura ao Irã — da Assembleia Geral da ONU. Jamil Cha-
de (2010), correspondente em Genebra de O Estado de S. Paulo, também publicou matéria
intitulada “Brasil quer que ONU evite censura a países que violam direitos humanos”.
14
O conteúdo dessa nota é particularmente importante para a nossa análise. Sua versão in-
tegral encontra-se disponível em Conectas (2010:198-199).
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 51

socialmente integrada, respeitosa dos valores universais e aberta a inter-


venções de natureza humanitária. Nesse sentido, a intervenção nos temas
domésticos não seria um atentado à soberania nacional, pois não visaria à
independência política ou à integridade territorial do Estado, mas simples-
mente a prevenir ou a cessar violações sistemáticas dos direitos humanos
(Piovesan, 2010; Minayo, 2008). Muitos ativistas brasileiros e estrangei-
ros condenam a proposta oficial do Itamaraty de se ter mais cuidado com
condenações às violações de direitos humanos no mundo. Defendem ban-
deiras e ações coletivas transnacionais (Milani e Laniado, 2007), consi-
derando, como bem sublinha a Conectas (2010:199), que o Conselho da
ONU não tem por objetivo “redefinir a geopolítica mundial”. Por conse-
guinte, é com base em tais percepções e compreensão do mundo que re-
des e movimentos sociais buscam influenciar as agendas da política ex-
terna brasileira no campo dos direitos humanos.

Quadro 3
Sinopse ilustrativa de votos brasileiros em resoluções sobre países (2007-2010)
Sessão/ano País e teor Instância e voto
Irã: preocupação com violações de direitos Abstenção brasileira, mas resolução
humanos e liberdades fundamentais, (apresentada pelo Canadá) adotada
abolição das execuções públicas, minorias na AG/ONU.
religiosas e étnicas, emancipação da
comunidade Baha’i.
Bielarus: uso contínuo da justiça criminal Brasil se absteve na votação da
para silenciar a oposição política e resolução apresentada pelos EUA,
defensores de direitos humanos, detenção que foi adotada.
arbitrária, ausência do devido processo
62a
legal e julgamentos políticos não públicos.
2007/2008
Sudão: enfatizar a obrigação primária do Brasil se absteve. A emenda, proposta
governo do Sudão de proteger todos os por Canadá e Finlândia (em nome da
indivíduos contra violações de direitos União Europeia), foi rejeitada.
humanos e levar à justiça os responsáveis
pelas violações ocorridas em Darfur.
Sudão: a resolução recebe com satisfação Brasil votou a favor. Resolução
o relatório apresentado pelo grupo de apresentada pelo Egito (em nome
especialistas e reconhece os esforços do do grupo africano) e por Portugal
governo sudanês. Encerraram-se os trabalhos (em nome da UE) e adotada.
do grupo, sem renovação de mandato.
52 Política externa brasileira

Sessão/ano País e teor Instância e voto


Irã: teor semelhante à resolução Apresentada pelo Canadá. Brasil se
da 62a sessão. absteve nas resoluções apresentadas
na 3a Comissão e na Plenária da AG/
ONU, ambas adotadas. O Brasil se
abstivera, na 3a Comissão e na Plenária,
nas votações de moções de não ação.
Coreia do Norte: teor semelhante Apresentada pela França. Apesar de,
à resolução da 62a sessão. no mesmo ano, ter votado a favor dessa
63a resolução no CDH, o Brasil se absteve na
2008/2009 votação realizada na Assembleia Geral.
Mianmar (ex-Birmânia): paradeiro de Apresentada pela França. Brasil se absteve
pessoas detidas ou desaparecidas, liberação na votação da moção de não ação na
de prisioneiros políticos e início de um 3a Comissão, que, se aprovada, encerraria
diálogo substancial para uma transição as possibilidades de adoção de uma
democrática. Autorização dos representantes resolução. Como a moção foi rejeitada,
políticos a participarem plenamente no a resolução foi votada e adotada na 3a
processo de transição política. Comissão e na Plenária e contou com voto
a favor proferido pelo Brasil nos dois casos.
Coreia do Norte: preocupação com relatos Abstenção no CDH e na AG/ONU (3a
de tortura e tratamentos ou penas cruéis, Comissão e Plenária). Nos três casos,
além de punições coletivas e manutenção as resoluções foram adotadas. Nota:
de campos de prisioneiros. o Brasil votara a favor na 62a sessão.
Irã: preocupação com violações sistemáticas Brasil se absteve nas resoluções
de direitos humanos, apedrejamento e apresentadas na 3a Comissão e na
discriminação contra mulheres, além das Plenária da AG/ONU. Nos dois casos,
eleições presidenciais de junho de 2009. as resoluções foram adotadas.
64a Mianmar (ex-Birmânia): teor semelhante Votou a favor da resolução sobre
2009/2010 à resolução da 63a sessão. Mianmar no CDH, mas se absteve na
3a Comissão e na Plenária da AG/ONU.
Nos três casos, as resoluções foram
adotadas. Nota: o Brasil votara
a favor na Plenária da 62a sessão.
Sri Lanka: graves violações de direitos Brasil se absteve na votação do pacote
humanos durante o conflito armado, além de de emendas apresentado pela UE.
garantir o acesso a organizações humanitárias Emendas rejeitadas em sessão especial
e realização de investigações transparentes. do CDH.
Fonte: Dados compilados a partir dos anuários da Conectas de 2007, 2008/2009 e 2009/2010,
disponíveis em: <www.conectas.org>.
Nota: AG/ONU = Assembleia Geral da ONU; CDH = Conselho de Direitos Humanos.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 53

Mas como estabelecer uma fronteira nítida entre a defesa do uni-


versalismo e as relações de poder características da política dos direitos
humanos? Como ignorar os objetivos de política externa dos Estados e
as dinâmicas do sistema interestatal capitalista?15 Como construir mar-
cos interpretativos alternativos aos que são defendidos por organizações
da mídia e algumas redes de ativismo, a fim de dar conta de tais mudanças
nas agendas da política externa brasileira no campo dos direitos humanos?
Como relacionar tais posicionamentos do governo Lula no Conselho de
Direitos Humanos com as alianças emergentes (por exemplo, Mercosul/
Unasul, Brics, o Fórum Ibas, as cúpulas entre países árabes e sul-america-
nos, a retomada das relações com países africanos) e as transformações na
ordem mundial? Trataremos de construir hipóteses para responder a tais
questionamentos na seção a seguir.

Estabelecendo hipóteses explicativas em três tempos

Com base no modelo de Hermann (1990), podemos afirmar que as mu-


danças ocorridas na política externa brasileira no campo dos direitos hu-
manos corresponderam a ajustes em seus objetivos e meios, consequência
de uma série de eventos e do jogo político entre diversos atores, nos planos
doméstico e internacional, envolvendo desde a Presidência da República,
diplomatas do Itamaraty e lideranças políticas até o Poder Judiciário, orga-
nizações não governamentais e novas alianças estratégicas com países em
desenvolvimento. Como lembram Vigevani e Cepaluni (2007:278), “em
contraste com os ajustes, que tendem a ser quantitativos, visando, sobretu-
do, a mudanças de ênfases em determinados temas da política externa, as
mudanças de programas são qualitativas e envolvem novos instrumentos
de ação”. A inflexão nos votos do governo brasileiro no Conselho e na As-
sembleia Geral da ONU se deu em relação a economias emergentes ou a
zonas sob sua direta influência consideradas estratégicas nas atuais agendas

15
É importante lembrar a grande dificuldade por que passou o regime internacional dos direi-
tos humanos em 1994, no caso do genocídio de milhares de tutsis em Ruanda. O presidente
George Bush chegou a justificar a manutenção do programa de assistência militar e o posi-
cionamento dos Estados Unidos com base na inexistência de evidências de abusos e violações
perpetrados por militares ou outros elementos do governo ruandês (Minayo, 2008:62).
54 Política externa brasileira

da política externa brasileira, da mesma forma que as violações de direitos


humanos, mormente no caso de países em desenvolvimento, passaram a ser
interpretadas com base em novos critérios.
O chanceler Celso Amorim chamou atenção para o fato de que a po-
lítica externa brasileira no campo dos direitos humanos deveria ser pau-
tada pelo princípio da não intervenção, porém sempre acompanhado pela
noção de “não indiferença”.16 O objetivo também foi sinalizar que resolu-
ções condenatórias reiteradas, ao desconhecerem os contextos e os matizes
internos, correriam o risco de se tornarem contraproducentes e provocarem
o isolamento dos países. “Defendemos uma abordagem para o tema que
privilegie a cooperação e a força do exemplo como métodos mais eficazes
do que a mera condenação”, sublinhou Amorim (2009:67), apoiando uma
“visão abrangente — não hierarquizante nem seletiva — de que todos os
países têm deficiências e podem beneficiar-se da cooperação” (p. 68). Por
exemplo, nos casos da Coreia do Norte e do Sri Lanka, o governo brasilei-
ro mudou de posição em 2008 na Assembleia Geral e, em 2009, no Con-
selho de Direitos Humanos, abandonando a condenação e passando a se
abster durante a votação. O argumento utilizado pelo governo foi o de que,
a fim de combater a política de seletividade, seria imperioso cooperar com
os países e deixar de promover a denúncia de Estados violadores no pla-
no internacional. Tal visão é questionada por inúmeras organizações não
governamentais, a exemplo da Conectas (2010:199) — que considera o
princípio de não interferência em assuntos domésticos “ultrapassado na
gramática do direito internacional e do multilateralismo”.17
Porém, por motivos estratégicos e graças a características do pró-
prio funcionamento do conselho, países emergentes e em desenvolvimen-
to mereceram, sob o governo Lula e diferentemente do governo FHC,
um enquadramento político que associou a defesa dos direitos humanos à
cooperação Sul-Sul e às potenciais transformações estratégicas da ordem
internacional (e do próprio regime de direitos humanos). No que diz res-
peito às convenções e aos tratados, não houve ruptura sob o governo Lula,

16
Ver a entrevista concedida pelo embaixador Celso Amorim à jornalista Susan Glasser, da
revista The Foreign Policy, em dezembro de 2010, disponível em: <http://www.foreignpolicy.
com/articles/2010/11/29/the_soft_power_power>.
17
Em Asano, Nader e Vieira (2009), encontramos uma exposição clara e detalhada da visão
crítica de algumas redes de ativistas aos limites da política externa brasileira no campo dos
direitos humanos, mais particularmente no que diz respeito às resoluções sobre violações em
países específicos.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 55

haja vista que a política externa brasileira no campo dos direitos humanos
manteve seus compromissos internacionais em relação às ratificações e aos
procedimentos especiais. Isso significa que o governo acolheu as deman-
das de organizações não governamentais e as integrou tão somente nes-
sa política de “segundo nível”, dissociando-as das prioridades de política
externa quanto à reforma da governança mundial e às parcerias estratégi-
cas. Parece-nos evidente que, como sublinha Belli (2009:15), “os valores,
princípios gerais e as obrigações na área dos direitos humanos atingiram
um alto grau de institucionalização internacional e não podem ser igno-
rados por nenhum Estado”. Mas isso não significa que não sejam passíveis
de críticas e propostas de mudanças.
De fato, essa inflexão dos votos brasileiros no conselho, na 3a Comis-
são e na Plenária da Assembleia Geral não pôs em xeque a continuidade
da política externa brasileira no campo dos direitos humanos em termos
de adesão ao regime multilateral de direitos humanos, que, desde a De-
claração Universal dos Direitos Humanos de 1948, sempre se revelou, na
ordem doméstica e no exterior, instrumento político convincente e cons-
trangedor. É evidente que ocorreram variações ao longo da história da
política externa brasileira desde os anos 1950 e durante a Guerra Fria
(Albaret, 2010), por motivos quer domésticos (mudança de regime, polí-
tica de governo, eventos críticos e catalisadores da opinião pública etc.),
quer sistêmicos globais ou regionais (combate ao comunismo, golpes mi-
litares na América do Sul, intercâmbios transnacionais entre organizações
da sociedade civil e ativistas de direitos humanos etc.).18 Na primeira fase
pós-ordem bipolar, entre 1989 e 1995, os direitos humanos representa-
ram uma bandeira não ideológica ao progresso social, mas o entusiasmo
com a causa arrefeceu com a emergência do pensamento único em torno
dos consensos neoliberais, com o desenvolvimento do relativismo cultu-
ral contrário ao reconhecimento de quaisquer valores universais19 e com

18
O historiador James Green (2009) faz uma análise instigante de como jornalistas, inte-
lectuais, estudantes, religiosos, artistas e parlamentares norte-americanos construíram com
seus pares brasileiros laços de solidariedade em torno da denúncia da desumanidade do regi-
me militar brasileiro. Seu livro é uma narrativa histórica da política bilateral Brasil-Estados
Unidos, mas na perspectiva dessas relações de solidariedade.
19
Como lembra Oliven (2010:45, 48), “denunciar o viés ocidental da Declaração Universal
dos Direitos Humanos talvez seja a reação mais comum daqueles que acham que direitos
humanos precisam ser definidos de acordo com os critérios de cada sociedade”, isso porque
muito dificilmente o Ocidente “pode se atribuir o papel de modelo para a humanidade”.
56 Política externa brasileira

a radicalização dos fundamentalismos de toda ordem, no mundo muçul-


mano, cristão, mas também entre judeus ortodoxos e hindus extremistas.
Como lembra Alves (2009:65), “a tendência declinante acentuou-se no
novo século em função, sobretudo, dos ataques terroristas nos Estados
Unidos em 11 de setembro de 2001”. Isso, claro, sem mencionar as inter-
venções unilaterais decididas e perpetradas em nome dos direitos huma-
nos, mas que de fato não têm relação alguma com o direito.
Assim, em função de um projeto político de inserção do Brasil no ce-
nário internacional (a ideia de “autonomia pela diversificação” defendida por
Vigevani e Cepaluni, 2007), o governo brasileiro questionou, por meio de
sua ação no Conselho da ONU e em suas reações aos relatórios preparados
por relatores especiais, a tradição dos double standards das potências cen-
trais, que tendem a ser mais rigorosas com adversários políticos, mas con-
descendentes consigo mesmas e com certos aliados estratégicos. O Brasil
passou a denunciar o fato de que, em função dos interesses das economias
avançadas, o universalismo dos direitos humanos possa ser politicamente
instrumentalizado pelas diplomacias ocidentais. Por exemplo, na reunião
do G-20 realizada em Londres em 2009, o governo brasileiro manifes-
tou forte oposição às tentativas dos países desenvolvidos de flexibilizar as
normas de direito do trabalho diante da conjuntura de crise financeira e
econômica (Amorim, 2009). Ora, a autoridade legítima do regime inter-
nacional de direitos humanos, em geral, e do Conselho da ONU, em par-
ticular, depende da percepção, por dirigentes do Sul e do Norte, de que
suas decisões se fundamentam em um senso de justiça e igualdade, sem
esquecer que suas ações nesse campo têm, ao mesmo tempo, repercussões
de natureza jurídica, econômica e política. Como afirma Belli (2009:17),
o “direito, no caso, não se substitui à política, mas, como na função desem-
penhada pelos direitos humanos no âmbito doméstico, cria as condições
que possibilitam uma política legítima”. Analiticamente, pode-se dizer
que se produziu, nas agendas da política externa brasileira no campo
dos direitos humanos, uma tensão dialética entre os interesses estraté-
gicos — tecnológicos, energéticos, comerciais — de construção ou con-
solidação de parcerias (Irã, Turquia, Rússia, China) e a necessidade de
promoção das bandeiras universais dos direitos humanos no respeito da
soberania dos Estados.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 57

A politização dos direitos humanos da antiga comissão,20 seja por


subtração, seja por adição de países ou questões, não desapareceu e tem
se repetido no seio do conselho (Belli, 2010). Nesse contexto, acreditamos
que a política externa brasileira no campo dos direitos humanos procurou
identificar meios e ajustes no regime de direitos humanos que, sem prejuí-
zo das ferramentas de monitoramento e dos valores universais inscritos na
Constituição de 1988, minorassem eventuais custos políticos na consecu-
ção de objetivos estratégicos em outras áreas do relacionamento bilateral
ou multilateral.21 Como afirma Belli (2009:187): “a diplomacia brasileira
foi dando-se conta de que eventuais custos de uma posição adotada du-
rante o exame de determinado país poderiam ser minimizados se o siste-
ma fosse percebido como mais legítimo, isento, menos seletivo e dotado de
grau mais elevado de autoridade moral”.

Tempo 1: a securitização da ordem internacional após o 11 de Setembro


e a retomada das estratégias de seletividade
A primeira ordem de fatores que nos ajudaria a interpretar tais mudanças
diz respeito à securitização das agendas da política internacional após o 11
de Setembro e à evolução da doutrina de segurança norte-americana. A
política global de combate ao terrorismo, a invasão do Iraque à revelia do

20
Segundo Trindade (2009:20), a “contribuição da Comissão de Direitos Humanos não
deve passar despercebida: apesar das diferenças […] decorrentes dos confl itos ideológicos
próprios do período da Guerra Fria e também marcados pelo processo incipiente de descolo-
nização, conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos”, além de uma
série de métodos de petições ou denúncias, de relatórios e investigações, constituindo aos
poucos um complexo corpus jurídico. No entanto, a comissão foi extinta em sua 62a sessão,
em março de 2006, tendo sido, segundo Florêncio Sobrinho (2009:99), “minada por práti-
cas de seletividade na análise dos direitos humanos, sobretudo em caso de países específicos,
duplos padrões de monitoramento (double standards) e uma atitude marcadamente acusatória
(finger pointing)”. A proliferação de resoluções sobre países específicos derivava de motivações
políticas, tendo contribuído para a sua perda de credibilidade e culminado em sua extinção e
substituição pelo Conselho de Direitos Humanos, que ganhou em hierarquia institucional ao
poder se reportar diretamente à Assembleia Geral.
21
Interessante notar que o Brasil sempre manteve, ao longo de sua história de participação na
Comissão de Direitos Humanos da ONU, perfi l discreto e cauteloso nas votações das resolu-
ções sobre países, inclusive tendo feito a “opção preferencial pela abstenção” nesses casos. No
começo da década de 1990, a delegação brasileira passou a dar votos favoráveis a determina-
dos projetos de resolução sobre países, como nos casos do Timor-Leste (1993, 1997), Sudão
(1994, 1995, 1998, 2001-2003), Bósnia e Herzegovina (1994), Iraque (1994-1998, 2000-
2002), Irã (1994-1998, 2000), Nigéria (1997), República Democrática do Congo (1998), en-
tre outros (Belli, 2010:164-165).
58 Política externa brasileira

Conselho de Segurança, em março de 2003, e as evidências fotográficas da


prática de tortura na prisão de Abu Ghraib (Danner, 2004) corroboraram e
generalizaram a desconfiança quanto ao uso seletivo dos direitos humanos
e às promessas de uma governança democrática e cosmopolita. Nunca se
havia imaginado que fosse possível erradicar a politização e o uso interes-
sado dos direitos humanos como instrumento de poder entre os Estados,
mas ficou evidenciada uma visão hiper-realista do mundo em que interes-
ses foram travestidos de valores.
Se com o fim da Guerra Fria desaparecera o inimigo comunista a
ser combatido, o 11 de Setembro reforçou a possibilidade de o terrorismo
vir a ser o substituto par excellence da antiga ameaça soviética. O comba-
te ao narcotráfico também entrou na lista das “guerras” a serem travadas,
com claros impactos regionais na América do Sul (no caso colombiano),
na Ásia central, no continente africano etc. A luta a favor dos direitos hu-
manos e a defesa da ingerência humanitária passaram a fazer parte dessa
lista, à qual o primeiro-ministro britânico Tony Blair atribuía a etiqueta
de “doutrina da comunidade internacional”. A frustração tornou-se maior
com a chegada do governo de Barack Obama, devido às expectativas ge-
radas por suas promessas de campanha quanto a Guantánamo e às tropas
estacionadas no Afeganistão.22 Tudo indica que a “guerra ao terror” perma-
neça na agenda da política externa dos Estados Unidos.
Fruto de um maniqueísmo da luta do bem contra o mal, sem sutile-
za nem matizes, mas também da contaminação do político pelo religio-
so, a guerra ao terror fez com que as democracias ocidentais perdessem

22
Vale notar que, no processo de Revisão Periódica Universal dos Estados Unidos no Conse-
lho de Direitos Humanos, em novembro de 2010, várias delegações — Brasil, Reino Unido,
entre outras — chamaram a atenção para o problema do acesso a Guantánamo. No pronun-
ciamento feito pela embaixadora M. Nazareth Farani, em 5 de novembro, encontra-se, por
exemplo, a seguinte passagem: “Brazil welcomes the measures announced by the US to address
grave violations of human rights committed under its counter-terrorism policy. […] In addi-
tion, Brazil recommends that the US takes measures to ensure reparation to victims of acts of
torture committed under US’s control, the accountability of those responsible for such acts,
the non-repetition of such acts, the non refoulement of detainees to countries where they may
be subjected to torture and allows access to the International Committee of the Red Cross
to detention facilities under the control of the US”. No pronunciamento do representante do
Reino Unido, lê-se por exemplo: “On the Guantánamo detention facility, we acknowledge the
challenges in completing its closure and commend efforts undertaken to date. We encourage
the administration and Congress to redouble their efforts to ensure closure in as timely a man-
ner as possible”. Documentos extraídos da extranet do Conselho de Direitos Humanos (acesso
mediante senha), que também disponibiliza inúmeros documentos oficiais para fins de pes-
quisa acadêmica.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 59

capacidade de pressão sobre governos repressivos, uma vez que elas pró-
prias adotaram políticas contrárias ao estado de direito no interior de suas
fronteiras, ou ainda se silenciaram diante da oferta de cooperação no com-
bate ao terrorismo por países considerados pouco democráticos, a exemplo
da Tunísia, do Egito ou da Arábia Saudita. “O etnocentrismo tradicional
dos países ocidentais foi levado ao paroxismo com a evidência, agora in-
questionável, de que estariam dispostos a sacrificar os direitos humanos e as
liberdades fundamentais em nome da segurança” (Belli, 2009:119). Portan-
to, a seletividade não diz somente respeito ao exame de alguns países que
não deveriam ser condenados, mas também à ausência de outros que talvez
merecessem ser objeto de resoluções. O governo dos Estados Unidos, por
exemplo, não aceitou que o relator especial sobre Tortura tivesse acesso de-
simpedido à base militar de Guantánamo e pudesse entrevistar de maneira
privada os detentos — o que impediu a realização de sua missão. Seguindo o
questionamento de Rahmani-Ocora (2006:15), “como o novo Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas poderia gozar de credibilidade, poder
e legitimidade em um mundo de política do poder?” Preocupada com o risco
de manutenção da política da seletividade, a ONG Human Rights Watch
publicou, em junho de 2010, um relatório detalhado sobre as práticas dos
Estados, aplaudindo a atuação de vários países latino-americanos, inclusive
o Brasil, e propondo medidas para melhorar o sistema de revisão dos casos
de violação dos direitos humanos no plano nacional.

Tempo 2: a transnacionalização dos direitos humanos e a judicialização


da política externa
A segunda ordem de fatores que influenciam os posicionamentos da polí-
tica externa brasileira no campo dos direitos humanos concerne às próprias
mudanças no regime internacional de direitos humanos,23 que intensificam
a transnacionalização das ações coletivas organizadas pela sociedade civil e
o processo de judicialização da política externa. A Conferência de Viena,
em 1993, erigiu os direitos humanos à categoria de prioridade na agenda
internacional, graças à participação de 171 países-membros, 813 ONGs
observadoras e mais de 2 mil ONGs no Fórum Paralelo. No mesmo ano

23
Para uma análise detalhada do processo de reformas mais recentes do regime internacional
dos direitos humanos, ver Callejon (2008), Dominguez Redondo (2008), Murthy (2007),
Nader (2007), Rivlin (2008), Sweeney e Saito (2009), e Terlingen (2007).
60 Política externa brasileira

foi criado o Alto-Comissariado e, em 1998, assinou-se o Estatuto de Roma


estabelecendo o Tribunal Penal Internacional a fim de julgar vários tipos
de crimes contra a humanidade e os direitos humanos. Fruto da iniciativa
do governo canadense, a Resolução no 1.674 do Conselho de Segurança, de
2006, conhecida por tratar da responsibility to protect, reitera que a soberania
não deveria ser um privilégio, mas uma responsabilidade dos Estados com
os cidadãos e a sociedade. Nesse mesmo ano, a comissão foi extinta e abri-
ram-se as portas do Conselho dos Direitos Humanos, no âmbito do qual,
como bem analisa o segundo capítulo deste livro, criou-se o Universal Pe-
riodical Review (UPR) como ferramenta de avaliação e monitoramento
dos avanços feitos pelos Estados a cada quatro anos.
A esse respeito, Florêncio Sobrinho (2009) assinala que, no seio do
Conselho dos Direitos Humanos, várias organizações não governamentais
atuantes interagem, questionam e denunciam governos nacionais, como
Anistia Internacional, Human Rights Watch, Conectas — Direitos Hu-
manos, Quaker United Nations Office e International Service for Human
Rights — cuja expertise e capacidade de interlocução enriquecem e pro-
blematizam a atuação dos agentes estatais no conselho. A ação coletiva
transnacional que elas promovem fundamenta-se no desenvolvimento sem
precedentes das redes sociais e, filosoficamente, apresenta o potencial de
transformar os fundamentos da legitimidade nas relações internacionais,
uma vez que, ao lado dos valores nacionais classicamente defendidos pelos
Estados, essas organizações seriam um sustentáculo importante dos valores
universais (Reis, 2006).
É importante notar que as normas internacionais relativas a direi-
tos humanos implicam a possibilidade de responsabilização internacio-
nal do Estado, inclusive por atos praticados contra seus próprios cidadãos.
No âmbito do sistema interamericano, o Brasil reconheceu, em 1998, a
jurisdição da Corte de San José, que tem desempenhado papel central
na definição da responsabilidade internacional dos Estados-membros,
por exemplo, ao estabelecer reparações às vítimas de violações de direi-
tos humanos e, assim, aumentar os riscos do exercício da política externa
e os custos políticos da publicidade dada a violações de direitos humanos
(Vieira, 2010). Nesse sentido, a ação do Judiciário (nesse caso, um tribu-
nal internacional) passou a ter implicações políticas e econômicas para o
Estado brasileiro, expandindo o raio de ação da justiça para o campo das
relações internacionais. No caso da política externa, a “judicialização” cor-
responderia aos efeitos dessa expansão no sistema de freios e contrapesos
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 61

da democracia, podendo ocorrer, segundo Couto (2004), em três casos


principais: i) o Judiciário como fonte geradora de responsabilidade inter-
nacional do Estado; ii) o Judiciário com a capacidade de estabelecer parâ-
metros para a ação externa do Estado; e iii) adição ao sistema institucional
e constitucional brasileiro de obrigações e deveres de reparação a partir
de uma decisão judicial internacional, haja vista que o direito internacio-
nal dos direitos humanos confere caráter coletivo à obrigação de proteção
dos direitos humanos e que, ademais, os tratados de direitos humanos têm
hierarquia constitucional.
Nesse sentido, o processo de Damião Ximenes é paradigmático, pois
acarretou a primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos, em julho de 2006 (Vieira, 2010). Percebe-se, assim, que o
avanço da política de direitos humanos a partir da ação da (judicialização) e
na (transnacionalização) Corte de San José recoloca em debate a soberania
dos Estados, que podem adotar posicionamentos mais defensivos e reativos
em relação ao regime multilateral e às ações coletivas transnacionais. No
caso particular do sistema interamericano, ONGs e redes transnacionais de
ativistas peticionam junto à Comissão de Direitos Humanos em Washing-
ton, a qual, por sua vez, pode intimar o Estado a prestar informações, a fim
de, em seguida, verificar a veracidade dos fatos e buscar uma solução amis-
tosa entre as partes. Caso não haja acordo, a comissão elabora relatório com
recomendações ao Estado, que tem três meses para cumpri-las; se o caso
não for solucionado, a denúncia pode ser levada à Corte de San José, sendo
as recomendações publicadas no relatório anual da comissão.

Tempo 3: demandas domésticas de atores não governamentais,


política burocrática e canais de diálogo
Em terceiro lugar, as demandas de atores não governamentais domésticos
(Comissão de Justiça e Paz, Caritas etc.) e a política burocrática instaurada
entre o Itamaraty, a Presidência da República, o Ministério da Justiça, as
diferentes secretarias especiais (sobretudo a Secretaria Especial de Direitos
Humanos) e o Congresso ampliam as zonas de conflitualidade, enrique-
cem o próprio processo de redemocratização do Estado, além de engendrar
novos arranjos institucionais mais abertos ao debate contraditório, a exem-
plo do Comitê Brasileiro de Política Externa e Direitos Humanos.
Criado em 2005, o comitê conforma uma coalizão de entidades da
sociedade civil (Abia, ABGLT, Conectas, Gajop, Ibase, Inesc, entre outras)
62 Política externa brasileira

e do Estado, tendo por objetivo o fortalecimento da participação cidadã e


do controle democrático da política externa brasileira no campo dos di-
reitos humanos. Em associação com a Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara dos Deputados e a Comissão de Direitos Humanos
e Legislação Participativa do Senado, o comitê realiza consultas públicas
e monitora a agenda bilateral e multilateral da política externa brasileira
no campo dos direitos humanos. Embora a secretaria executiva seja hoje
ocupada por dois representantes da sociedade civil,24 o comitê, até mesmo
pela natureza mista de sua composição, frequentemente produz consensos
muito amplos, porquanto os agentes governamentais tendem a não assinar
críticas mais contundentes dirigidas ao governo. É evidente que também
se deve considerar a heterogeneidade de posicionamentos das organizações
não governamentais, algumas ideologicamente mais próximas do governo,
outras opostas às recentes mudanças dos votos brasileiros em relação ao Irã
ou à Coreia do Norte, por exemplo.
De todos os modos, é interessante ressaltar que a contradição que ali
se engendra faz parte da própria dialética política que sustenta, de modo
tão imprescindível, o desenvolvimento democrático dos debates sobre a
política externa brasileira no campo dos direitos humanos no Brasil e no
mundo. Nesse sentido, outra ferramenta importante de controle social são
os anuários de política externa e direitos humanos, publicados pela ONG
Conectas a partir de 2007. Também pode ser lembrada a participação so-
cial na formulação da primeira Revisão Periódica Universal para o Conse-
lho de Direitos Humanos da ONU, embora o processo tenha sido objeto
de críticas relacionadas à insuficiência de tempo para o aprofundamento
do debate, como aponta o segundo capítulo deste livro. Ou seja, vem se re-
forçando, empiricamente, a defesa teórico-normativa de a política externa
também ser considerada política pública.
Finalmente, cabe mencionar outro canal de participação social e de
disputas burocráticas que se constitui no próprio processo de preparação
dos programas nacionais de direitos humanos, cujas institucionalização e
midiatização, desde a sua primeira edição, em 1996, têm contribuído para

24
Em sua fundação fora previsto o compartilhamento da secretaria executiva entre uma enti-
dade da sociedade civil e uma agência governamental. O que ocorre atualmente pode ser reflexo
de descaso do governo ou de conquista de maior autonomia pelas organizações não governa-
mentais. Ambas as hipóteses foram aventadas durante as entrevistas realizadas, sem confirma-
ção prioritária de uma em detrimento da outra. Os dados sobre o comitê foram obtidos a partir
das entrevistas, de documentos institucionais e do site <www.dhpoliticaexterna.org.br>.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 63

aumentar a visibilidade da temática e a construção, gradual porém im-


portante, de uma arena nacional de debates públicos sobre os direitos hu-
manos. A terceira edição do PNDH reafirma que os direitos humanos
devem ter primazia nas políticas internas e nas relações internacionais, in-
corporando resoluções da 11a Conferência Nacional de Direitos Huma-
nos e propostas aprovadas nas mais de 50 conferências nacionais temáticas
promovidas desde 2003. O quadro 4 apresenta alguns exemplos de com-
promissos e objetivos relativos à política externa presentes no PNDH-3.

Quadro 4
Exemplos de objetivos e destaques internacionais do
Programa Nacional dos Direitos Humanos-3

Instâncias responsáveis
Objetivo anunciado
pela execução
Construir e aprofundar agenda de cooperação multilateral em direitos SEDH/PR, Ministério das
humanos que contemple prioritariamente o Haiti, os países lusófonos Relações Exteriores (MRE) e
do continente africano e o Timor-Leste. Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome
Aprofundar a agenda Sul-Sul de cooperação bilateral em direitos SEDH/PR, MRE
humanos que contemple prioritariamente os países lusófonos do
continente africano, Timor-Leste, Caribe e América Latina.
Garantir o monitoramento dos compromissos internacionais assumidos SEDH/PR, MRE e Casa
pelo Brasil: i) elaborar relatório anual sobre a situação dos direitos humanos Civil da Presidência da
no Brasil, em diálogo participativo com a sociedade civil; ii) elaborar República
relatórios periódicos para os órgãos de tratados da ONU, no prazo por
eles estabelecidos, com base em fluxo de informações com órgãos do
governo federal e com unidades da Federação; iii) elaborar relatório de
acompanhamento das relações entre o Brasil e o sistema ONU que contenha,
entre outras, as recomendações advindas de relatores especiais do Conselho
de Direitos Humanos da ONU e as recomendações advindas dos comitês de
tratados da Revisão Periódica Universal (RPU); iv) definir e institucionalizar
fluxo de informações, com responsáveis em cada órgão do governo federal e
em unidades da Federação, referentes aos relatórios internacionais de direitos
humanos e às recomendações dos relatores especiais e dos comitês de
tratados; v) definir e institucionalizar fluxo de informações, com responsáveis
em cada órgão do governo federal, referentes aos relatórios da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e às decisões da Corte Interamericana
de Direitos Humanos; vi) criar banco de dados público sobre todas as
recomendações dos sistemas ONU e OEA feitas ao Brasil.

Fonte: Documento disponível em: < www.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf >.


64 Política externa brasileira

Considerações finais

A política externa brasileira no campo dos direitos humanos (PEB-DH)


do governo Lula adotou a postura de não negar as dificuldades e os desa-
fios enfrentados pelo país no que diz respeito ao cumprimento dos direitos
humanos pelo Estado, assemelhando-se, nesse sentido, à política externa de
FHC. Diferentemente desta, porém, a PEB-DH do governo Lula preser-
vou um posicionamento crítico, questionando alguns dos fundamentos po-
líticos do regime, mas também construtivo, articulando posições por vezes
muito díspares entre países do Norte e do Sul. No governo Dilma, a PEB-
DH parece indicar mudanças relacionadas a certas sensibilidades diante de
questões envolvendo liberdades democráticas e a política de gênero. Antes
mesmo de assumir a Presidência, Dilma Rousseff declarou ao jornal The
Washington Post, em entrevista concedida em dezembro de 2010, que “fica-
ria desconfortável, como uma mulher eleita presidente, em não me mani-
festar contra o apedrejamento”, referindo-se ao caso midiático da iraniana
Sakineh.25 Ou seja, em política externa, e mais ainda no que tange aos direi-
tos humanos, mudanças de governo e dos atores políticos no poder contam,
em dialética com as transformações sistêmicas, na definição das prioridades
e dos modos de construir discursos e de agir no cenário internacional.
À guisa de conclusão, este capítulo nos permite lançar pelo menos três
pistas de reflexão para futuras pesquisas. Primeiro, ficou evidente que, na
compreensão da política externa brasileira no campo dos direitos humanos,
é necessário separar pelo menos dois dos três níveis de análise: o do Con-
selho e o das convenções e tratados de direitos humanos. No primeiro ní-
vel encontra-se um âmbito muito politizado de debates entre os Estados,
no qual o Itamaraty tem o monopólio da representação. No segundo nível,
o Brasil é um fiel seguidor do regime, principalmente a partir do processo
de redemocratização; nesse contexto, a representação social deve ser consi-
derada, em alguns casos inclusive em função das próprias regras do regime

25
Segundo Jamil Chade (O Estado de S. Paulo, 4 ago. 2010), o governo brasileiro já teria apre-
sentado uma alternativa à lógica de denúncias, que seria a realização de reuniões técnicas sem a
aprovação ou a proposição de resoluções. O encontro ocorreria na ONU, entre as agências in-
ternacionais e o governo em questão. Outra proposta brasileira foi a de promover viagens de
delegações de governos ao local da crise, algo que já ocorre em outros órgãos da ONU. No en-
tanto, governos europeus querem saber se essas viagens substituiriam a presença de relatores in-
dependentes. O temor é que uma delegação formada apenas por governos acabe, mais uma vez,
poupando o país envolvido na crise de críticas mais duras.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 65

(a exemplo do procedimento amicus curiae estabelecido no sistema inte-


ramericano de direitos humanos). No primeiro nível, permanece (e talvez
se exacerbe) o contencioso em torno da política de seletividade, que acaba
desservindo a causa dos direitos humanos e tornando o Conselho da ONU
ineficaz quanto ao seu propósito original. Isso significa, teoricamente, que
é importante pensar na construção de um modelo de análise que demons-
tre a vinculação ou a convergência (negativa ou nem tão positiva no caso
do regime de direitos humanos) entre o regime internacional e a política
externa brasileira. Claramente, esta tende a sofrer a influência do fato de
haver convergência ou divergência entre o regime internacional (a gover-
nança global) e as estratégias nacionais de política externa.26
Segundo, este capítulo indicou haver uma pluralidade de atores
presentes nas agendas da política externa brasileira no campo dos di-
reitos humanos, incluindo partidos políticos, a Secretaria Especial de Direi-
tos Humanos, organizações não governamentais, o Judiciário, o Legislativo,
a Igreja Católica… Fica a pergunta, que nos parece fundamental: tendo em
vista a concepção de política externa enquanto política pública, como reage
o Itamaraty diante da polifonia de vozes e da multiplicidade de demandas
dos atores da PEB-DH? E, analiticamente falando, como construir mode-
los de análise, indo além do que propõe o modelo de política burocrática de
Allison (1971), que nos permitam dar conta das demandas de participação
social no campo da política externa, da ruptura com o padrão do insulamen-
to burocrático do Ministério das Relações Exteriores e das tensões causadas
pela assimetria de informação entre os atores?
Terceiro, o que analisamos ao longo deste capítulo remete-nos a uma
questão weberiana clássica, porém fundamental, em torno da lógica dos
fins últimos e da lógica da responsabilidade. Por um lado, os valores defen-
didos pelas organizações da sociedade civil nos fazem pensar na ética pura
da convicção, ou seja, o conjunto de normas e valores que orientam o com-
portamento do político na sua esfera privada; por outro, a ação dos Estados
se orienta por uma ética da responsabilidade, que impõe ao governante não

26
Fica, ademais, o desafio de integrar nesse modelo analítico as lógicas de ação do Estado (suas
agências e organizações diversas) na cooperação para o desenvolvimento, em que a causa dos
direitos humanos tende a ser usada como condição para a concessão e a aprovação de projetos.
Como o Brasil (doador) integra ou integrará essa perspectiva dos direitos humanos na coopera-
ção que vem desenvolvendo mais expressivamente com países africanos, asiáticos e latino-ame-
ricanos parece-nos constituir uma pergunta pertinente para futuras agendas de pesquisa.
66 Política externa brasileira

desconhecer os resultados potenciais do uso de instrumentos ilegítimos.


A distinção proposta por Weber (1998) nos ajuda a traduzir o dilema e as
complexidades que analisamos neste capítulo. Não haveria uma dualidade
entre os interesses estratégicos e a defesa da bandeira dos direitos huma-
nos, mas sim uma tensão dialética entre o polo dos valores universais e o da
soberania nacional, apresentados na introdução. Vale lembrar que pode ha-
ver ambivalências no uso dos direitos humanos que seriam profundamente
negativas na perspectiva das sociedades e dos indivíduos (sobretudo os que
sofrem mais diretamente as violações), porém instrumentais aos interesses
dos Estados, embora permaneçam estilos e propostas diferentes de acordo
com as tradições políticas e diplomáticas. Para um país como o Brasil, sem-
pre haverá riscos nesse uso instrumental dos direitos humanos, mas isso faz
parte do jogo político internacional…

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2.
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas: a participação social
em ampliação*

Thiago Melamed de Menezes

Este capítulo busca avaliar a interação entre o Brasil e o sistema ONU de


direitos humanos, sob a perspectiva da atuação do Estado brasileiro e dos
mecanismos de participação social existentes e em construção. Foi cons-
truído a partir da experiência do autor como funcionário do Estado atuante
nessa área, e tem por objetivo enfocar não só a atuação do Brasil no Conse-
lho de Direitos Humanos, frequentemente objeto de debate e controvérsia
política, mas principalmente os efeitos da interação com o sistema para o
país em seu plano interno, face não menos importante do relacionamento
com as Nações Unidas no campo dos direitos humanos. O capítulo é com-
posto por esta seção teórica; uma seção que retrata a construção de um sis-
tema de proteção no âmbito das Nações Unidas; uma terceira, dedicada à
recente inovação do mecanismo de Revisão Periódica Universal; uma quar-
ta seção, relativa à experiência de elaboração do primeiro relatório brasileiro
ao mecanismo da RPU; e uma última, com considerações finais.
A título de nota teórica introdutória, procurarei situar a evolução dos
direitos humanos como construção histórica que traz em si imenso poten-
cial emancipatório, porém muitas vezes instrumentalizada, sobretudo no
plano internacional, em fachada ética de uma ordem injusta. Sustentarei
que os direitos humanos evoluem gradativamente para uma identificação
cada vez maior com o ideário progressista, sem que isso assegure a supera-
ção integral dessa ambiguidade.

* As visões expressas neste capítulo são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem
obrigatoriamente as posições do Ministério das Relações Exteriores (MRE) ou da SEDH/PR.
72 Política externa brasileira

Diversos autores (Strauss, 1953; Taylor, 1985) localizam o surgimento


dos direitos humanos no início da era moderna, ao lado da concepção in-
dividualista de sociedade. A gênese estaria fundada na inversão da relação
entre cidadãos e Estado que caracteriza a passagem para a modernidade.
Ela ocorre quando a ênfase se desloca dos deveres do súdito com o sobera-
no para os direitos que o cidadão pode exigir do Estado. Trata-se de uma
verdadeira revolução de perspectiva: a política passa a ser encarada não
mais pelo ângulo do soberano, mas pelo do cidadão, processo que se opera
em paralelo ao deslocamento da concepção organicista tradicional da so-
ciedade para uma individualista moderna (Bobbio, 2004).
Como documentos fundadores dos direitos humanos é costume apon-
tar os bills of rights norte-americanos, de 1776, e a Déclaration des Droits de
l’Homme et du Citoyen francesa, de 1789, ambos profundamente influencia-
dos pelo jusnaturalismo e pelo contratualismo. Assim, a aurora da concep-
ção sobre direitos humanos muito deve ao pensamento liberal moderno.
Provém de John Locke a ideia de que o homem tem direitos que se funda-
mentam em sua própria natureza humana e que não podem ser subtraídos
por nada ou ninguém, incluindo o Estado.
Foi a partir da segunda metade do século XVIII, portanto, que teve
início o que se caracterizou, a posteriori, como correspondente à afirmação
dos chamados direitos civis e políticos: liberdade de pensamento, de reli-
gião, de reunião, de propriedade e liberdade econômica, de associação em
partidos, direito de votar e ser votado etc. Foram concebidos como uma
contenda da sociedade civil contra o Estado, considerado então o principal
violador em potencial desses direitos. São direitos de liberdade, ou seja, que
concernem um não agir do Estado.
O teor individualista desse primeiro momento deu lugar, coexiste ou
ainda compete com outras concepções, que veem na cidadania mero fato
formal em relação à substância da existência real, em especial no que se re-
fere às condições econômicas enfrentadas pelas populações. Durante os
séculos seguintes, transitou-se da noção centrada nos direitos do indivíduo
para outra em que se reconheceram os grupos sociais, as minorias e os mar-
ginalizados (Mengozzi, 2003). Emergiram os direitos econômicos e sociais,
surgidos a partir da noção de que caberia ao Estado assegurar aos cidadãos
certas garantias de padrão de vida. São os direitos ao trabalho, à educação,
à saúde, à assistência. Os direitos sociais exigem, assim, uma ação positiva
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 73

do Estado, que transitou de sua forma anterior, liberal, em que se acreditava


que o mais importante era que não se imiscuísse em negócios de particula-
res; para o Estado assistencial, que reconhece as desigualdades reais, ainda
que vigore uma igualdade jurídica formal, e se converte em garante ativo
de direitos e liberdades.
A reação aos horrores vivenciados pela humanidade com a II Guerra
Mundial proporcionou novo ímpeto à afirmação dos direitos humanos no
sistema internacional. Dos escombros e do profundo trauma coletivo dei-
xados pela experiência do nazifascismo e do Holocausto, reuniram-se as
forças que levaram à inédita convergência internacional em torno da cons-
trução das Nações Unidas. Veremos como foi possível erigir, desse impul-
so, um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos que brindou
as gerações futuras, entre outros legados, com a Declaração Universal de
1948. Constituíam igualmente parte desse projeto um covenant determi-
nando os compromissos jurídicos dos Estados subscritos e um sistema de
monitoramento, voltado para a garantia efetiva de tais direitos. À exceção
da Declaração Universal, esse programa encontrou, no entanto, enormes di-
ficuldades em sua implementação. Concorreram para isso fatores como a
dificuldade de se conciliar diferentes sistemas jurídicos e políticos ou tradi-
ções religiosas; as diferenças de condição econômica ou social, que dificul-
tavam muito mais para os países mais pobres a implementação de muitos
dos direitos; e a utilização das políticas de direitos humanos a serviço de in-
teresses econômicos e geopolíticos dos Estados hegemônicos.
Em paralelo, os direitos humanos representaram, nas mais distintas
sociedades, a possibilidade e, por vezes, o sucesso na efetivação de legíti-
mas aspirações humanas. Contemporaneamente, avolumam-se as opiniões
de autores como Boaventura de Souza Santos (2009:11-12), para quem os
direitos humanos podem se firmar como sucedâneos das utopias universa-
listas, em crise desde a débâcle do socialismo real. Para o autor português, os
direitos humanos vêm pouco a pouco se transformando, ao longo das últi-
mas décadas, na linguagem da política progressista:

Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as


forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo
para formular uma política emancipatória. E no entanto, perante a cri-
se aparentemente irreversível desses projetos de emancipação, são essas
74 Política externa brasileira

mesmas forças que recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar
a linguagem da emancipação. É como se os direitos humanos fossem in-
vocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo ou, mais em ge-
ral, pelos projetos emancipatórios. Poderão realmente os direitos humanos
preencher tal vazio?

Em tempos de globalização cultural e segmentação econômica, ins-


taurou-se uma etapa da modernidade em que as identidades anteriores so-
freram erosão e se fragmentaram. A política, sobretudo a progressista, teve
dificuldade para se reinventar e fazer frente aos desafios de uma socieda-
de que se complexificou, atomizada em milhares de setores, identidades e
interesses superpostos, contraditórios e em constante mutação. Fenôme-
nos como o desemprego estrutural em escala global, o trabalho informal e
precário, o envelhecimento da população e o consequente aumento do nú-
mero de aposentados (quando se dispõe de sistema previdenciário) altera-
ram fundamentalmente as estruturas das sociedades. Claro está que ainda
existem trabalhadores e operários, no sentido tradicional de trabalhadores
formais organizados, mas estes representam uma parcela minoritária da
população, inclusive das classes subalternas. Arrisca-se mesmo a incidir em
niilismos, pois já não há setores predefinidos e imutáveis, o que põe em xe-
que os conceitos tradicionais de representação.
Levando-se em conta essa dinâmica, fica mais fácil compreender por
que os direitos humanos têm hoje apelo como nunca no passado. Os di-
reitos humanos falam à sociedade complexa da contemporaneidade por
abarcarem os grupos sociais não mais sob a forma de massas homogêneas,
mas naquilo que os próprios sujeitos reconhecem como características dis-
tintivas. Abraçam as minorias — étnicas, religiosas, linguísticas, de costu-
mes — ou grupos discriminados — encarcerados, pessoas com deficiência,
homossexuais, idosos, mulheres — e, ao fazê-lo, vocalizam e agregam in-
teresses. Constituem, por isso, um corpo teórico capaz de reagrupar esses
setores tão díspares, inclusive na forma de novas demandas universalistas.
Pois as pautas específicas, ao fim e ao cabo, nada têm de estanques: é so-
mente sob determinada correlação de forças e conjuntamente que podem,
talvez, avançar.
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 75

A construção do atual sistema de direitos humanos da ONU:


a trajetória da comissão para o conselho

A edificação de um sistema dedicado à promoção universal dos direitos


humanos remonta ao contexto do pós-guerra, em que as memórias do hor-
ror pelo extermínio de dezenas de milhões luziam ainda vívidas para a hu-
manidade. A Comissão de Direitos Humanos da ONU foi estabelecida
em 1946 e trabalhou por 60 anos ininterruptos, até 2006, quando foi subs-
tituída pelo atual Conselho de Direitos Humanos. Embora o trabalho da
comissão tenha sido importantíssimo para a afirmação dos direitos hu-
manos em âmbito universal, com o passar do tempo críticas praticamente
generalizadas ao seu funcionamento levaram à necessidade de refundar o
órgão, dando origem ao atual conselho.
É útil retomar a trajetória da antiga comissão e analisar o que levou à
erosão de sua credibilidade, se quisermos compreender o contexto que deu
origem ao conselho e os elementos que condicionam sua atuação. Que pro-
blemas pouco a pouco afetaram a credibilidade da comissão? Resumindo,
começaram a pesar crescentes acusações ao trabalho do órgão, de seletivi-
dade e duplo padrão no tratamento dos temas.1 Outra questão foi a relativa
ineficácia de suas decisões, o que se relacionava com a posição ocupada pela
comissão — e em última instância pelos direitos humanos — no âmbito
da ONU e na própria ordem internacional. Esses fatores estavam presen-
tes desde o início do funcionamento do órgão? Estariam presentes ainda
hoje? E, em caso afirmativo, seriam passíveis de solução por meio de um
desenho institucional alternativo ou parte constitutiva da ordem em que
estamos inseridos?2

1
Fala-se muito comumente também em “politização” ou “excessiva politização”, mas aqui
evitarei o termo por considerar que os problemas a que se dedica um órgão responsável pelo
monitoramento dos direitos no mundo jamais podem ser tratados de maneira exclusivamente
técnica e que as soluções alcançadas devem passar necessariamente pelo político.
2
Milani (2008:164-165) apresentou interessante estudo sobre a participação social e a coo-
peração internacional para o desenvolvimento. O autor recorre à teoria do sistema mundo de
Wallerstein e indaga: “Em que medida as agências de cooperação não acabam por reforçar a
ideia de um desenvolvimento de acordo com a visão de um ‘colonizador’ ou de um ‘missio-
nário’? O desenvolvimento enquanto valor universal não seria determinista nas etapas que os
diferentes países deveriam seguir para alcançar o padrão de país desenvolvido? E desenvolvi-
mento e subdesenvolvimento não seriam, de fato, as duas caras de Jano, ou seja, os dois lados
de um mesmo processo global e histórico de desenvolvimento do capitalismo? Quer dizer,
desenvolvimento e subdesenvolvimento não seriam estruturas parciais mas interdependentes
que conformam um mesmo sistema?”.
76 Política externa brasileira

A previsão de criação de um órgão voltado para a promoção e a defe-


sa dos direitos humanos consta da Carta da ONU, que em seu capítulo X,
dedicado ao Conselho Econômico e Social (Ecosoc), dispõe:

The Economic and Social Council shall set up commissions in economic and
social fields and for the promotion of human rights, and such other commis-
sions as may be required for the performance of its functions. (Art. 68, dis-
ponível em: <http://www.un.org/en/documents/charter>.)

Assim, durante todo o seu período de atuação, a comissão funcio-


nou como um órgão subsidiário do Ecosoc. É oportuno observar que a
posição de relativamente pouca importância da comissão na estrutura da
ONU não condizia com o status atribuído, em teoria, aos direitos huma-
nos quando da criação da organização. Na ocasião, os direitos humanos
figuravam como um dos três pilares do novo órgão, ao lado do desenvol-
vimento econômico e social e da paz e segurança internacionais. Fosse a
intenção da comunidade internacional conferir essa centralidade aos di-
reitos humanos, é lícito supor que a comissão teria sido criada com status
equivalente ao Conselho de Segurança ou ao próprio Ecosoc. Somou-se
a isso o comportamento de muitos Estados, incluindo as principais po-
tências, que subordinavam as questões de direitos humanos a interesses de
natureza econômica ou geopolítica.
A atuação da comissão centrou-se, em um primeiro período situado,
grosso modo, de 1947 a 1967, na promoção dos direitos humanos por meio
da cooperação com os Estados na elaboração de tratados internacionais,
mais do que na investigação ou condenação de violações. Prevalecia, então,
uma concepção ainda inteiramente caudatária do sistema de Westfália, que
privilegiava o respeito a Estados soberanos por meio da regra da não inter-
venção, calcada no disposto pelo art. 2o, §7o, da Carta da ONU.
A comissão contribuiu para o desenvolvimento de importante arca-
bouço de direito internacional relativo aos direitos humanos, na forma de
diversos tratados internacionais sobre a matéria, bem como de importan-
tes elementos para identificação do direito internacional costumeiro. O
documento de maior destaque é, sem dúvida, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, firmada em 10 de dezembro de 1948. Outros impor-
tantes instrumentos de direito internacional foram desenvolvidos sob os
auspícios da comissão: direitos da mulher (1979), direitos da criança (1989),
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 77

contra a tortura (1984), a discriminação racial (1966), além dos dois pactos,
sobre direitos civis e políticos e econômicos e sociais (1966). O exame des-
sas convenções evidencia que a comissão logrou cumprir seu mandato no
que tange à codificação dos direitos humanos em legislação internacional.
Em paralelo, passou-se progressivamente a uma questão bem mais di-
fícil, de construção das condições para a efetivação dos direitos garantidos
pela letra da lei. É o que nos aponta Bobbio (2004:29):

A linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática,


que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que
demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos ma-
teriais e morais; mas ela se torna enganadora se obscurecer ou ocultar a dife-
rença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido.

A vergonhosa longevidade do regime do apartheid sul-africano


(1948-1990), ao lado do surgimento das organizações não governamentais
de direitos humanos, propagadoras de uma ideologia internacionalista para
a matéria, talvez tenham constituído os fatores catalisadores mais impor-
tantes para que a comissão deslocasse paulatinamente seu eixo de atuação.
Do respeito incontestável à soberania estatal e ao princípio de não inter-
venção, transitou-se pouco a pouco, a partir de meados da década de 1960,
para que os Estados conferissem maior legitimidade ao escrutínio interna-
cional e, fosse esse o caso, a condenações.
Evidentemente, a relativização do conceito clássico de soberania ge-
rava desconfiança em muitos Estados. Cumpre ter em mente que a maior
parcela da população mundial vivia em países, na Ásia e na África, que se
encontravam ainda em meio ao processo de descolonização. Assim, o fato
de que as ainda recentes potências imperialistas tenham se tornado, pou-
cas décadas depois, paladinas do respeito aos direitos humanos e propug-
nassem uma relativização da soberania — do mundo em desenvolvimento,
esteja claro — teve inevitavelmente consequências duradouras sobre a cre-
dibilidade do sistema. Bobbio (2004) novamente aponta a fragilidade do
fundamento jurídico, assinalando que o documento fundador, a Declaração
Universal, foi firmado por apenas 58 países, número que refletia a comuni-
dade de nações antes das décadas que concentraram os processos de inde-
pendência das antigas colônias.
78 Política externa brasileira

Vivia-se também o contexto da Guerra Fria (1945-1991), que se re-


fletiu no campo dos direitos humanos em conflito que comprometeu igual-
mente a credibilidade da comissão. Conforme o campo ideológico, prega-
va-se a primazia dos direitos civis e políticos — caso dos países alinhados
ao capitalismo —, ou dos direitos econômicos e sociais — caso dos países
socialistas. A eficiência da comissão via-se severamente prejudicada, uma
vez que os países-membros do órgão subordinavam o exame de eventuais
violações de direitos humanos ao alinhamento ideológico, acompanhando
quase invariavelmente os respectivos blocos na votação de resoluções.
A própria emergência das organizações não governamentais de direi-
tos humanos encerrava suas ambiguidades. Por um lado, é imperioso re-
conhecer que entidades como a Anistia Internacional e a Human Rights
Watch desempenharam papel importantíssimo, entre outras causas, no
contexto dos regimes autoritários da América Latina durante as décadas
de 1960 a 1980. Seus membros ostentavam coragem e independência ante
o alinhamento ideológico automático estimulado pelos Estados Unidos no
campo capitalista. Por outro, os países do então chamado Terceiro Mundo
tinham razões para ter reservas em relação às ONGs que atuavam inter-
nacionalmente no campo dos direitos humanos devido a sua procedência
(quase todas oriundas de países desenvolvidos) e, principalmente, de suas
fontes de financiamento, que provinham muito comumente da filantropia
de indivíduos ou fundações norte-americanas ou europeias. Não por acaso,
notava-se nos posicionamentos de algumas ONGs grande coincidência no
que se referia à seletividade e ao duplo padrão de enfoque em relação a pa-
íses do chamado Primeiro Mundo.
Ainda assim, emergiram, nesse momento, no trabalho da comissão,
resoluções sobre países específicos e os relatores especiais designados para
acompanhar casos preocupantes de direitos humanos em determinado país
ou temática. O primeiro relator especial foi indicado para investigar vio-
lações massivas cometidas pelo regime Pinochet (1973-1990) no Chile.
Seguiram-se relatorias criadas para acompanhar casos como os da Guate-
mala, de El Salvador, da África do Sul e dos territórios palestinos ocupa-
dos por Israel. Já se observava, no entanto, o duplo critério na seleção dos
países a serem monitorados. Lindgren Alves (2001:85), experiente embai-
xador brasileiro, retrata o espírito daqueles tempos:

Em matéria de monitoramento, prosseguiram, ao longo de toda a Guerra


Fria, pelo estabelecimento de relatores apenas para situações de países em
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 79

desenvolvimento, enquanto a Europa socialista e o Ocidente desenvolvido


se escudavam no equilíbrio bipolar do poder. […] Com raríssimas exceções,
não eram sequer circulados projetos de resoluções sobre esses países, porque
se sabia de antemão que não contariam com apoio parlamentar suficiente
para serem adotados.

Todos esses problemas concorreram para que a credibilidade da co-


missão fosse pouco a pouco minada. O fim da Guerra Fria abriu caminho
para a superação de alguns desses impasses. A Conferência de Viena de
1993 consagrou a ideia da indivisibilidade e interdependência dos direitos
humanos, isto é, que estes não subsistem na falta de qualquer um dos di-
reitos, o que pôs fim à dicotomia entre direitos civis e políticos e direitos
econômicos, sociais e culturais.
Em 2005, a Assembleia Geral das Nações Unidas convocou uma
cúpula de alto nível para discutir a reforma da ONU, pleito de um con-
junto de países, entre os quais o Brasil, que não reconhecem no atual sis-
tema internacional a mesma balança de poder do pós-II Guerra Mundial,
que deu feições à atual organização. A cúpula reuniu mais de 170 chefes de
Estado e de governo e aprovou, entre outras medidas, a refundação da co-
missão em Conselho de Direitos Humanos. O conselho foi assim criado
em abril de 2006, pela Resolução no 60/251 da Assembleia Geral.
O preâmbulo da Resolução no 60/251 afirma que o conselho deve re-
conhecer “the work undertaken by the Commission and the need to pre-
serve and build on its achievements, as well as redressing its shortcomings”.
O conselho goza de posição superior ao da comissão na hierarquia das Na-
ções Unidas, já que se reporta diretamente à Assembleia Geral, e não ao
Ecosoc. Inovações institucionais foram implementadas, como uma repre-
sentação geográfica mais justa, procedimentos mais ágeis para responder a
situações emergenciais e medidas para combater a seletividade, sendo o me-
canismo da Revisão Periódica Universal talvez o melhor exemplo. O novo
órgão deu início a seus trabalhos em junho de 2006. O Brasil foi eleito para
a primeira composição e reconduzido, em 2008. Segundo o então chance-
ler Amorim (2009:72), para o Brasil, “o CDH oferece a perspectiva de coo-
peração internacional como uma das ferramentas em benefício da proteção
e promoção dos direitos humanos. Essas ferramentas, em lugar das críticas
seletivas, devem ter seu papel ampliado”.
80 Política externa brasileira

Desde então houve um contínuo esforço coletivo para superar os pro-


blemas que acometeram a antiga comissão. A tarefa não é fácil, pois o novo
não nasce do novo. Antigas desconfianças têm de ser superadas para que
os velhos problemas de seletividade e duplicidade de padrões não se im-
ponham novamente. A questão parece residir em como fazer coincidir in-
centivos para que os países em cujo território ocorram violações massivas
de direitos humanos cooperem com o novo sistema e mecanismos de in-
dividualização desses países quando tudo o mais falhar.3 O êxito do novo
conselho em muito dependerá, é claro, da disposição dos países de se enga-
jarem de forma construtiva, reconhecendo que não existem professores ou
países com um histórico completamente isento de abusos na área de direi-
tos humanos, e das inovações institucionais trazidas pelo novo órgão.

O mecanismo de Revisão Periódica Universal

Criado em junho de 2007, o mecanismo de Revisão Periódica Universal


(RPU) consiste em um sistema de avaliação pelo qual todos os países-mem-
bros das Nações Unidas são objeto de escrutínio a cada quatro anos. O pro-
cesso de avaliação é centrado na elaboração, em âmbito nacional, de um
relatório de até 20 páginas pelo Estado a ser examinado em sessão de sa-
batina de três horas no plenário do Conselho de Direitos Humanos, em
Genebra. Principal inovação do sistema de proteção dos direitos humanos
da ONU trazida pela criação do conselho, a RPU é claramente desenhada
como uma tentativa de superar os problemas de seletividade e duplicidade
de padrões que assolavam a antiga comissão.

3
Porém, a quem cabe decidir quando e que países devem ser individualizados como viola-
dores? Uma dimensão que vem recebendo grande destaque é a atuação do Brasil no conse-
lho, entendida como a postura tomada pelo país ante denúncias de violações sistemáticas
de direitos humanos envolvendo outros países. Alguns políticos de oposição, acadêmicos
e ONGs criticaram a política externa brasileira no campo dos direitos humanos durante o
governo Lula por supostamente não fazer a condenação necessária dos governos violadores.
Para uma síntese competente dessas críticas, ver Asano, Nader e Vilhena (2009). É um de-
bate extremamente complexo, pois envolve questões como a controvérsia sobre a eficácia da
adoção de postura que vise ao engajamento dos países violadores ou sua condenação pura e
simples. Além disso, incorre-se comumente em juízos que reproduzem a velha seletividade
ao individualizar países.
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 81

A atuação do Brasil foi fundamental para a conformação do mecanis-


mo, já que por muito tempo, no âmbito da antiga comissão, o país propug-
nou pela criação de relatório global sobre a situação dos direitos humanos
no mundo. Subjazia à ideia brasileira a convicção de que um exame verda-
deiramente universal contribuiria para que sobressaísse a preocupação ge-
nuína com a situação dos direitos humanos, em oposição às disputas entre
os Estados ou blocos de Estados, que infelizmente acabaram prevalecendo
em diversas ocasiões na antiga comissão. Não é outro o espírito da RPU, o
que permite apontar sua familiaridade com a proposta brasileira. Segundo
o chanceler Celso Amorim (2009:69): “estava claro que era preciso modifi-
car o sistema então vigente, em que somente alguns países eram seleciona-
dos para exame, segundo critérios sujeitos à conveniência e à oportunidade
política de outros países”.
De acordo com as diretrizes do Conselho de Direitos Humanos, a
RPU busca os seguintes objetivos: a) melhoria das condições de imple-
mentação concreta dos direitos humanos; b) efetivação das obrigações e
dos compromissos dos Estados e avaliação de desenvolvimentos positivos
e desafios enfrentados pelo Estado; c) ampliação da capacitação e da assis-
tência técnica, em consulta e com o consentimento do Estado em questão;
d) compartilhamento de experiências de boas práticas em direitos huma-
nos entre os Estados e demais atores relevantes; e) apoio para cooperação
em matéria de promoção e proteção dos direitos humanos; f ) incentivo à
cooperação e ao comprometimento com o Conselho de Direitos Huma-
nos e outros órgãos de direitos humanos do escritório do alto-comissário
de direitos humanos das Nações Unidas (UN, 2007).
Como base normativa para a avaliação foram tomadas a Carta das
Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, outros ins-
trumentos de direitos humanos de que o Estado em questão seja signatá-
rio e compromissos voluntários assumidos pelo Estado, incluindo aqueles
contratados quando da apresentação de suas candidaturas ao conselho
(UN, 2007).
O mecanismo não se exaure na apresentação do relatório pelo Estado
ao conselho; compreende, igualmente, relatórios das organizações da socie-
dade civil e relatório do escritório do alto-comissário para os Direitos Hu-
manos das Nações Unidas, este último elaborado com base em relatórios
para os comitês de tratados, recomendações de relatores especiais e outras
fontes da ONU. Ao final do exercício, os três conjuntos de relatórios são
82 Política externa brasileira

consolidados e dão origem a um texto que traduz o estágio de implementa-


ção das obrigações de direitos humanos até o próximo exercício. Essa con-
solidação fica a cargo de três relatores — a chamada Troika —, selecionados
por sorteio entre os membros do conselho. Os relatores têm de pertencer,
obrigatoriamente, a diferentes grupos regionais.
O sistema busca conciliar avaliação entre pares (peer review) e partici-
pação da sociedade civil, a partir da percepção de que ambas são importan-
tes. O exame dos relatórios nacionais é feito pelo plenário do conselho, mas
somente os Estados podem fazer uso da palavra. A justificativa para esse
sistema é a necessidade de construir confiança entre os Estados, para que
se tente evitar os famigerados problemas de seletividade e duplicidade de
padrões que marcaram a comissão. Evidentemente, essa escolha tem seus
críticos, especialmente entre os representantes das ONGs atuantes junto
ao conselho. Estes cunharam um dito que bem sintetiza suas desconfian-
ças e seus ceticismos: “o risco é o exercício transformar-se em um bando de
peixes falando de água”.
De um modo ou de outro, a sociedade civil tem diversas formas, com
maior ou menor grau de institucionalização, para se fazer ouvida em prati-
camente todas as etapas do mecanismo. Há, em primeiro lugar, o incenti-
vo para que os governos construam seus relatórios nacionais a partir de um
processo de consultas com a sociedade. Ao fim do exercício, igualmente, a
sociedade civil se faz ouvir por meio de seus relatórios, que são levados em
conta pela Troika na elaboração do relatório síntese final. E mesmo duran-
te as apresentações orais em plenário, não costumam faltar representantes
estatais dispostos a incorporar questionamentos das ONGs a suas pergun-
tas, ou jornalistas para lhes repercutir as avaliações. Não obstante, é forçoso
reconhecer que o sucesso do novo mecanismo em muito dependerá de os
Estados nele se engajarem com disposição construtiva.

A experiência com a elaboração do primeiro relatório


brasileiro à RPU

Em setembro de 2007, cerca de três meses após a criação da RPU, o Con-


selho de Direitos Humanos da ONU selecionou os países que seriam exa-
minados durante a primeira sessão do mecanismo, entre eles figurando
o Brasil. Por ser a primeira vez que o exercício seria realizado, não havia
modelo anterior de relatório. Tudo com que se contava era um pequeno
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 83

conjunto de diretrizes fornecidas pelo próprio conselho:4 o texto não po-


deria exceder o limite de 20 páginas e deveria assumir a forma de um re-
latório nacional.
Para o Brasil, seria uma dupla responsabilidade tomar parte no pri-
meiro grupo de países a serem examinados. Por um lado, dada a estreita
proximidade entre a RPU e a proposta histórica brasileira de relatório uni-
versal para os direitos humanos, cumpria ao país demonstrar que o novo
mecanismo poderia constituir um instrumento relevante para a superação
dos problemas de seletividade e duplicidade de critérios. Por outro, dado o
seu peso político, demográfico e mesmo moral — por sua condição de país
pacífico e de democracia ativa —, depositava-se no relatório do Brasil ex-
pectativa de engajamento franco e construtivo no exercício, como contri-
buição à afirmação do recém-criado conselho.
O relatório do Brasil foi construído sob a coordenação compartilhada
da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
e do Ministério das Relações Exteriores. Conforme mencionado na intro-
dução, este capítulo baseia-se em minha experiência pessoal de trabalho na
Assessoria Internacional da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.5 O
processo de elaboração do relatório teve início em meados de dezembro,
e o cronograma de trabalho previa o depósito da versão final do texto em

4
O conselho havia sugerido, em sua 6a sessão, em setembro de 2007, organizar o relatório
nos seguintes segmentos: a) descrição da metodologia e do processo consultivo para a pre-
paração do relatório; b) resumo do arcabouço institucional e legal para a proteção dos direi-
tos humanos no país, incluindo artigos da Constituição, legislação relevante, jurisprudência,
políticas públicas e instituições nacionais de proteção dos direitos humanos; c) promoção e
proteção dos direitos humanos no país: implementação de obrigações em direitos humanos,
atividades das instituições de proteção dos direitos humanos, cooperação com mecanismos
internacionais de proteção dos direitos humanos; d) identificação de resultados, de boas prá-
ticas e de desafios e constrangimentos à promoção e à defesa dos direitos humanos no país; e)
identificação de prioridades nacionais e iniciativas do Estado na tentativa de superar desafios
e melhorar as condições dos direitos humanos no país; f) expectativas do Estado em relação a
programas de capacitação e, se fosse o caso, inclusão de pedido de assistência técnica.
5
Gostaria de sublinhar o trabalho ao meu lado, como coordenadora pela SEDH/PR, da
gestora Mariana Carpanezzi. Por parte do MRE deve ser destacado o trabalho da chefe do
Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, Ana Lucy Gentil Cabral Petersen;
da então chefe da Divisão de Direitos Humanos, Márcia Maria Adorno Cavalcanti Ramos;
dos diplomatas da DDH, Carlos Eduardo da Cunha Oliveira e Melina Espeschit Maia; e da
oficial de Chancelaria Clara Martins Sólon. Muitos outros trabalharam na elaboração do re-
latório pelas duas instituições. Em particular, o envolvimento pessoal do secretário especial
dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e do secretário adjunto, Rogério Sottili, foi deter-
minante para o sucesso do exercício brasileiro.
84 Política externa brasileira

25 de janeiro. A exiguidade de tempo foi, portanto, um fator que inevita-


velmente condicionou a metodologia adotada. Tanto mais se considerarmos
que a elaboração do texto exigiu, em paralelo, o mais amplo esforço possível
de coordenação governamental e consultas à sociedade civil.
O envolvimento desta última foi considerado especialmente impor-
tante para a construção do relatório, pois o Brasil defendera em sua atuação
no conselho que os relatórios sob o mecanismo fossem elaborados me-
diante um “amplo processo” de consultas com os atores sociais relevantes
na proteção e promoção dos direitos humanos. Uma vez que essa posição
acabou consagrada na resolução de criação do mecanismo, cabia ao país ser
coerente e desenvolver, na prática, o que defendera em teoria.
No cronograma de trabalho imposto pelo prazo disponível foram
realizadas duas reuniões com representantes da sociedade civil organizada,
uma reunião com representantes de conselhos nacionais na área de direitos
humanos e uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos no
Senado Federal.6 Além disso, em duas etapas do processo de construção do
relatório foi estimulado o envio de críticas e sugestões pela internet. Em
paralelo, ocorriam as reuniões com os ministérios e demais órgãos estatais
vinculados a temáticas afetas aos direitos humanos.7
A primeira reunião com representantes da sociedade civil organiza-
da teve como objetivo discutir o modelo de organização interna do relató-
rio que contemplasse as expectativas gerais. Vale observar que, desde esse
primeiro encontro, surgiram as principais questões que marcariam o pro-
cesso de consulta e, em última instância, condicionariam o sucesso ou o
fracasso de todo o exercício.
Cumpre sublinhar, primeiramente, a questão da divisão das 20 pá-
ginas do relatório entre as diversas temáticas que mereciam cada uma, no
mínimo, esse mesmo espaço para que pudessem ser apresentadas em sua
complexidade. Além do enorme esforço de síntese que a redação do rela-
tório demandaria qualquer que fosse a organização interna adotada, havia

6
Para uma lista das entidades convidadas, bem como daquelas que compareceram a uma ou
mais reuniões e das que enviaram contribuições por escrito, ver a nota 3 no relatório (UN,
2008). A realização das reuniões foi divulgada com destaque no site da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos. Além disso, foram convidadas, por e-mail, para todas as reuniões,
assim como para a audiência pública, uma ampla gama de organizações, também listadas na
parte de notas do relatório nacional.
7
Os órgãos estatais envolvidos também estão listados na RPU brasileira, na nota 1 (UN, 2008).
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 85

a questão da visibilidade dada aos diversos segmentos sociais envolvidos,8


e que inevitavelmente traduziria a prioridade e a importância política a es-
tes atribuídas. Diante da incontornável superficialidade do exame caso fos-
sem mantidos todos os temas, foram cogitados diferentes formatos, como
dividir o relatório não em temas específicos, mas em grandes categorias,
como direitos de primeira, segunda, terceira e até quarta gerações, ideia
logo abandonada por se considerar que a classificação remetia à Guerra
Fria e fora superada pela Conferência de Viena de 1993.
Um interessante debate deu-se então entre os próprios membros da
sociedade civil. Chegou-se à conclusão consensual de que o melhor seria
abdicar do exame da totalidade das temáticas para que algumas pudessem
ser abordadas com maior profundidade. Os assuntos que fossem excluí-
dos naquela feita seriam trabalhados na próxima oportunidade, em quatro
anos. O consenso se dissipou, no entanto, no momento seguinte, em que
cumpria apontar os temas a serem abordados. Todos, é claro, julgavam os
respectivos temas indispensáveis. Acabamos convencidos de que qualquer
outra solução seria pior, e restaram 17 temas no relatório final. Ainda as-
sim, ficaram ausentes do relatório temas de grande importância, como o
direito a um meio ambiente sadio, o direito dos idosos e o direito a liber-
dade religiosa, entre outros.
O conjunto de representantes da sociedade civil propôs também que
a estrutura temática do relatório fosse retirada do conjunto de recomen-
dações exaradas por comitês de tratados e relatores especiais. Os represen-
tantes governamentais não aceitaram a proposta por três razões. Primeiro,
as recomendações, por serem oriundas de fontes diversas, não formavam
um todo coerente e com a necessária abrangência para guiar a elaboração
do relatório. Segundo, por mais importantes que fossem as recomendações
emanadas da ONU, considerávamos que elas não poderiam substituir o

8
Trabalhou-se inicialmente com o seguinte rol de direitos: direito a um nível de vida ade-
quado; direito à terra; direito a alimentação adequada; direito à educação; direito à saúde;
direito ao trabalho e a não ser submetido a escravidão; direito ao descanso, ao lazer e à cul-
tura; direito à segurança pública cidadã; direito de não ser torturado nem sofrer tratamento
desumano ou degradante; direito de acesso à justiça e ao Judiciário independente e democrá-
tico; direito a documentação civil básica; direito à memória e à verdade; direito a um meio
ambiente sadio; direito a igualdade racial; direito à livre orientação sexual e identidade de
gênero; direitos sexuais e reprodutivos; direitos das populações indígenas; direitos das po-
pulações tradicionais; direitos da criança e do adolescente; direitos da mulher; direitos dos
idosos; direitos das pessoas portadoras de deficiência.
86 Política externa brasileira

necessário esforço autônomo de avaliação e discussão das prioridades. Por


fim, havia uma dificuldade objetiva: naquele momento, as recomendações
dessas duas fontes, desde apenas o ano 2000, montavam a mais de 400.
Algumas delas exigiriam, individualmente, um esforço de coordenação
com estados e municípios, o que seria impraticável em prazo tão restrito
e com os recursos humanos disponíveis. A reivindicação da sociedade civil
teve o resultado prático, no entanto, de evidenciar a dificuldade do Estado
brasileiro de manter um instrumento de controle atualizado do grau de im-
plementação das obrigações contraídas internacionalmente em matéria de
direitos humanos. Como veremos, esse reconhecimento levou a um com-
promisso voluntário do Estado ao fim do exercício.
Outra questão que emergiu desde a primeira reunião e que se co-
locaria de maneira central até o fim do processo foi o tom político a ser
impresso ao relatório, isto é, se a ênfase deveria recair nos desafios ainda
enfrentados ou nas conquistas já alcançadas. Para a primeira reunião foi
entregue aos representantes da sociedade civil uma cópia do questionário
que havia sido encaminhado aos órgãos governamentais. O documento
consistia na requisição de informações sobre programas exitosos, desafios
e legislações específicas, nessa ordem. Sobrevieram duras críticas à equi-
pe governamental pela formulação do questionário, pois, na concepção da
sociedade civil, a ordem dos pedidos induziria a respostas com ênfase nos
êxitos e não nos desafios ainda enfrentados. Com efeito, o documento re-
fletia ainda a primeira concepção que se tivera sobre o exercício, em que
o foco não estaria na prestação de contas para a comunidade internacio-
nal, mas na identificação de possíveis áreas para recepção e oferecimento
de cooperação internacional. Sem prejuízo da importância desse segundo
objetivo — que está efetivamente entre as finalidades da RPU —, con-
cluímos que a sociedade civil tinha razão. Havia realmente que evitar a
composição de retrato edulcorado e falseado da realidade brasileira, ain-
da tão marcada pelas mais variadas violações de direitos humanos, como
reconhecia inteiramente o governo.
Era preciso encontrar, pois, na redação final, a fina sintonia entre a va-
lorização necessária das conquistas efetivadas pelo país nas últimas décadas
e o incontornável reconhecimento de que os direitos humanos continua-
vam sendo violados com frequência ainda inaceitável. O seguinte trecho,
extraído da versão final do relatório brasileiro à RPU, sintetiza com pro-
priedade essa tensão:
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 87

No Brasil, importantes avanços registrados desde a redemocratização ainda


convivem com a persistência de graves violações de direitos. Esses fatos de-
monstram que, não obstante as inúmeras conquistas que expandiram a proteção
dos direitos humanos, exigem-se, ainda, muitas outras iniciativas e mudanças
no âmbito dos poderes públicos e também na esfera da vida social para atingir
o desejável estágio de universalização e consolidação (UN, 2008).

Não seria exagero dizer que imprimir ao relatório essa visão realista
foi o desafio mais complexo e persistente de todo o processo. Muito depois
de corrigido o questionário enviado aos órgãos governamentais o problema
continuava a existir, pois as respostas recebidas eram quase invariavelmen-
te autolaudatórias. A burocracia estatal tem uma compreensível dificuldade
de fazer um retrato autocrítico, devido a seu condicionamento. O corpo de
funcionários do Estado serve ao governo de turno formulando, implemen-
tando e propagandeando as políticas. Pedir a um órgão estatal uma avalia-
ção destinada ao público externo em que se deve apresentar aspectos ne-
gativos associados a políticas em curso faz acenderem-se todos os sinais de
perigo, indicando desgaste político à vista. Soa mesmo contraintuitivo aos
funcionários habituados às suas práticas cotidianas. E, no entanto, por for-
ça da proposta de autoavaliação crítica da RPU, à qual o Brasil sentia-se na
obrigação de dar o exemplo, era precisamente isso o que pedíamos.
Acrescentava-se ao problema a carência de fontes oficiais confiáveis em
diversas áreas pesquisadas. Quer fosse por problemas que pela própria natu-
reza são de difícil mensuração — caso do sub-registro civil de nascimentos
ou de crimes como a exploração sexual de crianças e adolescentes —, quer
fosse pelo fato de os dados oficiais discreparem largamente da percepção so-
cial da dimensão dos problemas — caso dos dados sobre violência no cam-
po —, a indisponibilidade de dados oficiais confiáveis concorreu também
para que o relatório não retratasse fielmente a realidade de violações de di-
reitos. Assim, contra a vontade da equipe governamental, a primeira ver-
são consolidada ainda se revelou demasiadamente edulcorada. Na audiência
pública realizada no Congresso Nacional, em fevereiro de 2008, houve a rei-
teração da crítica de falseamento da realidade pela equipe governamental,
e o problema só foi equacionado com o envolvimento pessoal do secretário
especial dos Direitos Humanos na redação do relatório.
Havia ainda a dificuldade de observar o desenvolvimento desigual das
diferentes áreas, pois uma crítica a determinada área pode ser retratada pela
88 Política externa brasileira

imprensa e percebida pelo público externo como a exteriorização de um


conflito interno — no caso, inexistente — e gerar uma crise no interior do
governo. Algumas áreas progridem melhor do que outras — é natural que
seja assim, já que a evolução das políticas públicas e dos serviços ofereci-
dos pelo Estado não é linear. Em termos globais, a saúde pode estar me-
lhor que a educação (e vice-versa) ou a população LGBT (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais) pode estar enfrentando menos violações
aos seus direitos que a população indígena (ou o contrário), e um relató-
rio como esse precisa observar essas diferenças, pois se retratar tudo de
maneira homogênea acaba não sinalizando as áreas em que deve ser em-
pregado maior peso político para enfrentar problemas renitentes, falhan-
do em uma de suas funções principais. Tal operação não é, em absoluto,
isenta de riscos, sobretudo de exploração política. E é mesmo compre-
ensível que determinada pasta se sinta prejudicada caso advenha algum
desgaste, na linha de raciocínio de “como se já não bastassem todas as di-
ficuldades que encontramos em nossa área, ainda temos que lidar com o
‘fogo amigo’ do pessoal dos direitos humanos”. Em que pese a tudo isso,
é um risco que se tem de correr.

Apresentação no conselho e resultados do exercício

Após a curta, porém intensa, jornada de preparação do relatório, em 11 de


abril de 2008, o Brasil foi sabatinado no Conselho de Direitos Humanos
da ONU. Chefiada pelo secretário adjunto da SEDH/PR, a delegação bra-
sileira foi a nona a apresentar relatório ao mecanismo. A sabatina foi, ine-
gavelmente, um momento de grande tensão para a equipe governamental,
já que não faltaram cobranças duras de outros países, em áreas como viola-
ções aos direitos das populações indígenas, desigualdade racial, execuções
extrajudiciais e sistema carcerário, entre outras.
No decorrer das três horas de sabatina, foi ficando claro, no entanto,
que, ao final, o relatório lograra atingir os objetivos propostos. A gran-
de maioria dos países que faziam uso da palavra registrava sua aprova-
ção ao tom franco e transparente adotado e à amplitude do processo de
consultas à sociedade civil, considerando-se o tempo disponível. Mesmo
os mais incisivos nas cobranças ao país não deixaram de registrar esses
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 89

reconhecimentos. Conseguíramos transmitir, não obstante a verdadeira


babel de línguas e culturas que é o conselho, a mensagem geral de que
o Brasil reconhece com franqueza ter ainda enormes desafios a superar,
mas demonstra estar realizando esforços louváveis para garantir progres-
sivamente os direitos humanos à sua população. O Brasil parecia ter con-
seguido dar o exemplo que dele se esperava.
Na sequência, conforme as regras do mecanismo, a Troika reuniu-se
e consolidou os diversos documentos em um relatório do grupo de traba-
lho da RPU. O relatório sintetiza todo o processo de exame e conclui com
a apresentação de 15 recomendações. Com base no aprendizado do gru-
po governamental durante as consultas à sociedade civil, o Brasil tomou
a iniciativa de apresentar, adicionalmente, dois compromissos voluntários.
A fim de dotar-se de fontes estatísticas oficiais mais específicas e acuradas,
comprometeu-se a desenvolver um sistema nacional de indicadores sobre
direitos humanos.
Na impossibilidade de realizar, por ocasião da RPU, um exame exaus-
tivo das recomendações oriundas do sistema ONU — compreendendo
comunicações e devolutivas junto aos comitês de tratados, relatores espe-
ciais e demais órgãos —, comprometeu-se também a realizar um relatório
anual interno para enfrentar a dificuldade de parte do Estado brasileiro de
manter um instrumento de controle atualizado dessas obrigações. O rela-
tório anual visa a atender, igualmente, ao pleito da sociedade civil de tor-
nar sua interlocução com o governo federal um processo permanente, já
que as ONGs ressaltaram que a RPU fora concebida como um mecanis-
mo de diálogo a ser prolongado para além da defesa do Estado no Conse-
lho de Direitos Humanos.
A percepção de que o exercício brasileiro fora um sucesso não consti-
tuiu uma impressão subjetiva vinculada ao dia da apresentação. Desde abril
de 2008, uma ampla gama de países vem se referindo publicamente ao re-
latório brasileiro como um modelo a ser seguido. E o Brasil vem sendo
convidado a participar, na qualidade de expositor, de seminários patrocina-
dos pelo Escritório do Alto-Comissariado em países que ainda não se sub-
meteram ao mecanismo, com vistas a auxiliar na construção dos respectivos
relatórios nacionais. Esses convites já ocorreram, por exemplo, nos casos de
Angola e do Haiti.
90 Política externa brasileira

Conclusão: o Brasil, o Conselho de Direitos Humanos das


Nações Unidas e a participação social em ampliação

A participação social está na ordem do dia já não é de hoje, não só entre os


setores progressistas, que sem dúvida a impulsionaram nas últimas déca-
das, como também entre agências de desenvolvimento e organismos inter-
nacionais. Parece subjazer a essa onda uma avaliação de que a democracia
representativa, centrada meramente no calendário eleitoral, não é suficien-
te — que o exercício do voto apenas não basta. A nova visão apregoa uma
democracia mais participativa, em que o controle social vele pela fidelidade
dos compromissos assumidos.
Existe, de outra parte, um injustificado temor em alguns setores de que
a participação se converta em fator de desestabilização, quando na verdade
ela constitui um mecanismo privilegiado de integração social. O controle
social busca, sim — e isso talvez explique algumas reações a ele —, equili-
brar ou compensar a desigualdade que caracteriza o poder monopolista ou
oligopolista, seja ele político, econômico ou midiático. Os mecanismos de
consulta e controle social devem ser institucionalizados para que não sigam
dependendo da vontade, do valor ou das convicções das pessoas que dirigem
as instituições.9
Durante todo o processo de consultas para a RPU, os representantes
da sociedade civil frisaram que a redação do relatório de Estado fosse clara
em apresentar o texto como a visão estatal sobre os direitos humanos, e não
como uma visão compartilhada e corroborada pela sociedade civil. É muito
importante que essas fronteiras sejam apresentadas com clareza e respeita-
das. Sinto-me obrigado, inclusive, a registrar que muito provavelmente boa
parte dos ativistas que tomaram parte no exercício não compartilha, pelo
menos em igual extensão, da avaliação final de êxito aqui expressa. De um
modo ou de outro, quero crer ter sido capaz de apresentar com propriedade
os benefícios auferidos para o resultado final do relatório com o processo
de consultas.
Não se deseja aqui idealizar a democracia participativa ou a própria
sociedade civil. Sinto que estaria novamente transmitindo apenas meia ver-
dade se não assinalasse que, entre organizações de contribuição notável e

9
Ver o interessante dossiê sobre controle social no Le Monde Diplomatique Argentina de dezem-
bro de 2009.
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 91

abnegada, há outras que pretendem exercer uma representatividade que


ninguém lhes confiou. Ou aquelas que têm fontes de financiamento ocul-
tas. Ou ainda outras que atuam como partidos políticos disfarçados ou
como braços de interesses internos ou externos. Há também o problema,
particularmente presente no caso dos direitos humanos, da maior capaci-
dade de mobilização de alguns grupos em relação a outros, o que tende a
distorcer as necessidades e urgências reais, havendo a possibilidade de a ló-
gica da disputa política prevalecer sobre a lógica da ética dos direitos hu-
manos. Não obstante essas possíveis imperfeições, o saldo da participação
da sociedade civil será sempre amplamente favorável.
Uma política de direitos humanos transparente envolve o risco de sua
instrumentalização por grupos ou interesses. Tomemos a política de com-
bate ao trabalho escravo do Brasil, por exemplo. O país teve a coragem de
enfrentar com transparência o flagelo e construiu uma política ativa e exi-
tosa — como reconheceu a própria OIT (2005). Abriu-se uma janela para
que concorrentes comerciais da agricultura brasileira viessem justificar me-
didas protecionistas com a acusação de emprego de mão de obra escrava.
Claro está que o Brasil não alterará sua política de combate ao trabalho es-
cravo, involuindo para sua negação, em razão disso.
Como se sabe, o sistema de proteção aos direitos humanos das Nações
Unidas não tem “dentes”, isto é, poder de polícia ou jurisdição para tornar
vinculantes suas determinações. O prestígio e a força moral que, apesar de
tudo, a organização detém não podem ser desperdiçados, como importan-
te ativo das forças que lutam por uma sociedade alicerçada no respeito aos
direitos humanos. Pude comprovar inúmeras vezes, no período em que
trabalhei na Assessoria Internacional da SEDH, o impacto que a opinião
dos especialistas vinculados à ONU ou das resoluções por ela exaradas tem
sobre a política local e mesmo sobre as mentalidades. Por essa razão, é im-
portantíssimo que as autoridades responsáveis pela interface com o siste-
ma não funcionem como um anteparo opaco, que faz a defesa cega do país
junto ao sistema sem transmitir as interpelações dele emanadas, em toda
sua extensão e força, às autoridades e ao público interno.
Diversas demandas de melhoria da condição de vida da humanida-
de, oriundas de distintos tempos e ambientes sociais, sedimentaram-se
no corpo teórico e na ideologia a que chamamos sinteticamente de direi-
tos humanos. Claro está que o êxito e os limites de tais reivindicações es-
tão ligados à força e à capacidade de formulação de ideais, assim como ao
92 Política externa brasileira

conjunto de forças sociais que se agreguem para proclamá-las e exigi-las.


O Estado democrático comprometido com esses valores deve trabalhar ao
lado da sociedade e fortalecê-la nessa direção.

Bibliografia

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PARTE II

Cultura
3.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio
Capanema: perspectivas e desafios de
uma diplomacia cultural no governo Lula

Mônica Leite Lessa


Miriam Gomes Saraiva
Dhiego de Moura Mapa

A partir de 2003, o leque de atores que passaram a participar da formula-


ção da política externa brasileira ampliou-se incluindo lideranças políticas
e mais agências de governo. Nesse processo, o protagonismo do Ministé-
rio da Cultura (MinC) firmou-se e tornou-se indissociável da diplomacia
cultural do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Em parte, essa
política proativa corresponde a uma orientação maior, formulada nos mar-
cos de uma política externa que se destaca como “ativa e altiva”, segundo
o ministro Celso Amorim. Essa política que visa a ampliar a projeção do
Brasil no cenário internacional tem uma característica “ideológica” ou “es-
tratégica”, segundo o ângulo de análise do observador, ao se estruturar na
coordenação de uma diversificada agenda internacional articulada à agen-
da de países com proeminência no mundo em desenvolvimento.
A colaboração entre a corporação diplomática e atores externos é um
fenômeno mundial crescente, que se explica em parte pelo grau de organi-
zação e complexidade da sociedade civil, grau este grandemente favorecido
pelo processo de globalização e pelo impulso deste nos meios de comunica-
ção e circulação de bens e pessoas. E, em parte, no caso específico de nos-
so tema, pela notável carência na formação do corpo diplomático brasileiro,
tradicionalmente preparado para tratar dos temas clássicos das relações in-
ternacionais, como as esferas políticas, econômicas e militares, temas que
correspondem à prevalência de uma visão realista das relações internacio-
nais. No exterior, contudo, essas parcerias não apenas são mais antigas, como
têm sido estimuladas, denotando uma convergência de interesses com resul-
tados altamente positivos para os Estados e para os agentes não estatais.
96 Política externa brasileira

Paradoxalmente, a partir da década de 1980, o desenvolvimento da


economia da cultura revelou-se um setor altamente produtivo para a eco-
nomia mundial, ao mesmo tempo em que, segundo a percepção de impor-
tantes estudiosos, o fator cultural passou a ser analisado como um novo
possível campo de atrito entre os Estados.1 Tal visão impôs à diplomacia
internacional novos horizontes de reflexão e de ação, formulados à luz des-
sas novas perspectivas, políticas e econômicas, com destaque, sobretudo,
para a política externa norte-americana, que lançou a denominada “diplo-
macia transformacional” como uma nova estratégia da ação diplomática
(Vaïsse, 2007, apud Kocher, 2008).
Nesse quadro, entre outras particularidades, é natural que a ampliação
dos assuntos culturais esteja articulada a diferentes aspectos da vida socie-
tária e que se observe uma crescente participação dos diferentes atores do
mundo da cultura reforçando e complementando a política do Itamaraty.
Nesse sentido, a participação do MinC na formulação da diplomacia cul-
tural do Brasil é um dado relevante e inédito, resultando dessa parceria um
especial destaque desse ministério nos assuntos culturais internacionais,
antes exclusivamente tratados pelo Ministério das Relações Exteriores.
Contextualizada e articulada ao processo de formulação da política
externa brasileira em termos gerais durante o governo de Luiz Inácio Lula
da Silva, propomos neste capítulo uma discussão introdutória acerca da
formulação, das possibilidades e dos desafios que se perfilam para o Brasil
no campo da diplomacia cultural, diante desse “horizonte” que envolve o
binômio globalização e cultura. Com vistas a responder aos seus objetivos,
o capítulo está dividido em quatro seções. A primeira destaca os desafios
de uma diplomacia cultural e o papel de destaque dado à cultura no go-
verno Lula. A segunda diz respeito ao processo de formulação de política
externa e destaca um esboço do processo de formulação da diplomacia cul-
tural, identificando outros atores estatais que trabalham na implementação
de ações externas brasileiras no campo da cultura, notadamente o MinC.
A terceira oferece exemplos mais relevantes de ações do governo brasileiro
nesse campo. A quarta dedica-se à atuação do Brasil na arena internacional
de negócios culturais.

1
Note-se sobretudo a repercussão da obra de Samuel Huntington, The clash of civilizations and
the remaking of world order (1996), que defende a tese de que, no pós-Guerra Fria, as identida-
des culturais e religiosas dos povos seriam a principal origem dos conflitos da humanidade.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 97

Desafios e perspectivas de uma diplomacia cultural

A compreensão da política cultural externa de um país permite ampliar


a percepção sobre as estratégias e prioridades de seu modelo de inserção
internacional. Em um cenário internacional marcado pelas disputas em
nome da proteção e da valorização da diversidade cultural, é compreensí-
vel o esforço de apreensão do papel exercido pela cultura nas relações en-
tre os países. Na esfera diplomática observa-se que essa dimensão, em geral
apresentada pelo Estado e percebida pela sociedade como caracterizada
pelo predomínio da relação de troca, da colaboração e da interação é, para
os formuladores de política externa, um campo de tensão e desafios. Isso
se deve a uma tendência hegemônica promovida pelo desenvolvimento as-
simétrico das políticas culturais de cada Estado, de suas indústrias cultu-
rais e de suas diplomacias culturais (Lessa, 2002:11-25). Esse domínio das
relações internacionais, que tem por foco de estudo a diplomacia cultural
e a política cultural externa, analisa, portanto, como se processam os usos
da cultura (patrimônio, bens, serviços e atividades) para fins políticos, eco-
nômicos e outros, além do meramente cultural. E o uso desses diferentes
aspectos da cultura pelo Estado são, grosso modo, o que se denomina “diplo-
macia cultural”. Esta última expressão, portanto, refere-se à utilização das
questões e/ou fatores culturais para alcançar objetivos relativos à política
externa, pressupondo o alcance de metas estabelecidas por determinado
projeto de desenvolvimento nacional e/ou projeção internacional.
Cabe destacar que, de maneira geral, a dimensão cultural das re-
lações internacionais sempre foi considerada secundária nos estudos
das relações internacionais. Por exemplo, no Brasil, nota Amado Cervo
(1992:9), nunca se conferiu ao “elemento psicossocial ou cultural” a im-
portância necessária, mas privilegiaram-se os estudos mais típicos de um
país do Terceiro Mundo: “as relações existentes entre política internacional
e dominação ou dependência internacional, entre política internacional e
estágios diferenciados de desenvolvimento”. Desde os anos 1990, porém,
alguns trabalhos integraram a dimensão cultural como campo de estudo
das Análise de Política Externa brasileiras, entre eles, por exemplo, as obras
de Gerson Moura, Mônica Herz e José Flávio Sombra Saraiva (Lessa e
Suppo, 2007:223-250).
Observe-se que o ineditismo do MinC como ator coadjuvante no
exercício da diplomacia cultural passa pela compreensão, desde o primeiro
98 Política externa brasileira

governo Lula, de que “a cultura se produz através da interação social dos


indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus
valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas”
(Botelho, 1998). Essa visão de que a cultura é muito mais que “artes” e “le-
tras”, mas inclui “os modos de vida, os direitos humanos, os costumes e as
crenças” é indissociável da “dimensão social do desenvolvimento” (Reis, P.
F., 2007). Em termos de políticas públicas, a adoção dessa abordagem da
cultura, de nítido caráter popular, tem o objetivo de alcançar a inclusão so-
cial pela inclusão cultural; trata-se, portanto, da defesa da pluralidade cul-
tural, que é algo intrínseco ao governo no poder desde 2003.
A relação da ação do MinC com a política de desenvolvimento na-
cional é patente na “Estrutura regimental do Ministério da Cultura”, apro-
vada pelo Decreto no 4.085, de 12 de agosto de 2003. O art. 9o do referido
regimento determina: “à Secretaria de Formulação e Avaliação de Políti-
cas Culturais compete”, entre outras atribuições, “realizar estudos voltados
para a construção de cenários que objetivem o desenvolvimento do setor
cultural no contexto da política governamental de desenvolvimento eco-
nômico e social”.2
Dessa forma, a visão de cultura formulada a partir do MinC faz parte
de um projeto político mais amplo e que, entre outras características, con-
sidera a inclusão social uma variável fundamental na elaboração dessa po-
lítica, pelo menos no nível do discurso. O próprio porta-voz do MinC já
deixara claro, em 2005, que a atuação de seu ministério era orientada pelo
“conceito de cultura, para além da produção cultural e das linguagens artís-
ticas; cultura, portanto, como produção simbólica, como cidadania e como
economia”, e que a iniciativa estatal dar-se-ia no sentido de criar “con-
dições favoráveis à ampliação da produção, da difusão e da fruição pela
sociedade”3 dos bens culturais. Ou seja, trata-se de uma visão da economia
da cultura que não prescinde de uma perspectiva social.

2
O Decreto no 4.805 foi publicado no DOU de 13 de agosto de 2003. A “Estrutura regimen-
tal do Ministério da Cultura” é o Anexo I do decreto e está disponível em: <http://www.dji.
com.br/decretos/d-004805-12-08-2003.htm>.
3
Ver discurso proferido em 14 de abril de 2005 pelo ministro Gilberto Gil sobre a promoção
da economia criativa pelo governo brasileiro. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/
foruns_de_cultura/economia_da_cultura/industrias_ criativas>. O ex-ministro Juca Ferrei-
ra, que o sucedeu, manteve as diretrizes.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 99

No que diz respeito ao comportamento vis-à-vis o exterior, cabe des-


tacar que, a despeito da importância da cultura na política externa brasilei-
ra, esta não tem, no Brasil, a centralidade que ocupa em outras sociedades,
isto é, a cultura não é um dos pilares da política de Estado do país. E os
dados oficiais aqui apresentados comprovam essa afirmação. Deve ainda
ser observado que, como todo país periférico, o Brasil tem outras priori-
dades que não apenas drenam grandes somas e exigem grandes esforços,
como também comprometem largamente a importância e o sentido dos
investimentos das políticas culturais. Esses fatores internos repercutem,
naturalmente, na diplomacia cultural, que se impõe com menos vigor no
cenário político interno e externo, pelo menos para um país com as dimen-
sões e as ambições do Brasil. No entanto, na medida em que a cultura era
entendida, no governo Lula, como um sistema de valores estruturante da
identidade da nação e promotor da inserção internacional do país, ao mes-
mo tempo em que era percebida como “inextricável e central” ao desen-
volvimento econômico, “oferecendo tanto o contexto no qual o progresso
econômico ocorre quanto o próprio objeto de desenvolvimento, quando
vista sob a perspectiva das necessidades individuais”, sua prioridade deve-
ria ser repensada (David Throsby, apud Reis, A. C., 2007:6).
Nesse sentido, o dado novo a ser considerado é o processo de globali-
zação e as mudanças dele advindas. O fenômeno do multiculturalismo e do
interculturalismo, o avanço tecnológico das comunicações (internet, tele-
visão e telefonia) e dos transportes, o incremento das relações econômicas
e comerciais, o aumento da circulação de bens e serviços, pessoas e capitais
impulsionaram e ampliaram extraordinariamente as possibilidades da cul-
tura do ponto de vista da economia. Desde a década de 1980, bens e servi-
ços culturais atendem a uma demanda crescente de consumo a ponto de o
setor representar, em 2005, 7% do PIB mundial (Unesco, 2005:12).

Formulação da política externa brasileira: as novas correntes


da diplomacia pós-1990 e novos atores da política

No que tange ao processo de formulação da política externa brasileira, deve-


se observar que este foi, grosso modo, marcado pela continuidade até os anos
1990. O Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), enquanto corpo-
ração diplomática profissional e estruturada, concentrou historicamente o
100 Política externa brasileira

processo de formulação da política exterior do país. Seu poder de burocracia


especializada contribuiu para a concentração da formulação da política ex-
terna e para um comportamento mais estável pautado por princípios nor-
mativos. Essa concentração tornou a política externa menos vulnerável a in-
gerências diretas da política doméstica.
No ministério predominou por muitos anos um paradigma baseado
em um conjunto de crenças, que caracterizaram uma tendência à conver-
gência de pensamentos na diplomacia brasileira, assim como a presença de
traços importantes de continuidade na política externa. Segundo Vigevani
e colaboradores (2008), a autonomia e o universalismo devem ser vistos
como elementos norteadores do comportamento externo brasileiro. Nes-
se caso, o universalismo corresponde à ideia de estar aberto a manter re-
lações com todos os países, independentemente de localização geográfica,
tipo de regime ou opção econômica. Significa uma independência de com-
portamento em relação à potência hegemônica e pode ser vinculado ao
comportamento de global player. A autonomia é definida como a margem
de manobra que o país tem em suas relações com os demais Estados e em
sua atuação na política internacional. Subjacente à ideia de universalismo e
autonomia está uma crença histórica entre os formuladores da política ex-
terna: desde o início do século XX podem ser identificadas alusões em dis-
cursos ao destino de grandeza do Brasil, por diferentes motivos. Com base
nessa crença, acredita-se que o Brasil deve ocupar um lugar especial no ce-
nário internacional em termos político-estratégicos. Com a eleição de Lula
da Silva, esse tema retornou à pauta de debates sobre política externa.
Mas, a partir dos anos 1990, segundo Lima (2000), à medida que
a agenda de política externa foi ganhando espaço nos marcos das polí-
ticas públicas e tornando-se objeto de interesse de diferentes setores da
sociedade, o monopólio do Itamaraty na formulação de políticas e no
que seria apresentado como “interesses nacionais” do país perdeu força.
A abertura da economia contribuiu para a politização da política exter-
na em função da distribuição desigual de seus custos e ganhos, enquanto a
consolidação democrática fomentou na sociedade debates e preferências so-
bre temas de diferentes áreas da agenda internacional. Esses dois processos
desafiaram a formulação tradicional de política externa e abriram espaços
tanto para a consolidação de correntes de pensamento diferenciadas — e
identificadas com setores políticos distintos — dentro do Itamaraty quanto
para a inclusão de atores de outras agências estatais no processo de formu-
lação e implementação de iniciativas externas.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 101

Durante a gestão de Collor houve uma crise de paradigma de políti-


ca externa que pôs em xeque os princípios do comportamento adotado até
então, mas que não levou à consolidação de um conjunto novo de princí-
pios (Hirst e Pinheiro, 1995). Levou, sim, à divisão do Itamaraty em basi-
camente duas correntes de pensamento: autonomistas e institucionalistas
pragmáticos, com visões diferentes sobre a aplicação desses princípios que
influenciam a formulação e a aplicação da política externa.
Os institucionalistas pragmáticos compõem uma corrente de pensa-
mento e ação no Itamaraty que se fortaleceu e consolidou durante o go-
verno de Fernando Henrique Cardoso. No campo econômico, são mais
favoráveis a um processo de “liberalização condicionada” e, no espectro
partidário, encontram maior identidade principalmente no Partido da So-
cial Democracia Brasileira (PSDB), mas também no Democratas (DEM).
Esse grupo é chamado por alguns autores, de forma imprecisa, de “libe-
rais”. Sem abrir mão das visões do mundo ou crenças da política externa
brasileira de autonomia, universalismo e destino de grandeza, os institucio-
nalistas pragmáticos dão maior importância ao apoio do Brasil aos regimes
internacionais em vigência, desde uma estratégia pragmática. Esse posicio-
namento, porém, não significa uma aliança a priori com países industria-
lizados, mas identifica a regulamentação das relações internacionais como
um cenário favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro, uma vez
que as regras do jogo internacional devem ser seguidas por todos os países,
incluindo os mais ricos. O papel que o país pode assumir em cenários de
geometria variável deve ser, ao mesmo tempo, de apoio a regimes e valores
internacionais e de crítica às diversas distorções que ocorrem na ordem in-
ternacional, levadas a cabo muitas vezes pelas próprias potências. Essa cor-
rente defende também a ideia da inserção internacional do país a partir de
uma nova visão dos conceitos de soberania e autonomia, segundo a qual os
valores globais devem ser defendidos por todos.
Como terceiro traço importante, os institucionalistas pragmáticos
defendem a construção de uma liderança brasileira na América do Sul,
mas com relativa moderação e baseada nas ideias de estabilidade demo-
crática da região e desenvolvimento de infraestrutura. No que diz respei-
to ao Mercosul, os institucionalistas pragmáticos identificavam-no como
um instrumento para aumentar os ganhos do país em termos econômicos,
dando prioridade à integração comercial. Na dimensão política, o Merco-
sul foi visto como um instrumento de reforço da capacidade negociado-
ra brasileira, proporcionando-lhe um maior peso na arena internacional,
102 Política externa brasileira

e houve clara preocupação com a defesa da democracia em seus Estados-


membros, que se materializou na reação brasileira à crise vivida pelo gover-
no paraguaio, em 1996, e na criação posterior da Cláusula Democrática.
Por fim, sua visão das relações com os Estados Unidos repousaram no
movimento de “desdramatização” das relações experimentado no período de
Itamar Franco. Na perspectiva dos institucionalistas pragmáticos, isso signi-
ficou concentrá-las em torno de divergências tanto em temas da organiza-
ção do comércio internacional e do protecionismo dos países desenvolvidos
quanto em temas relacionados ao processo de integração do continente ame-
ricano, mas sem enfrentamentos e mantendo um baixo perfil brasileiro.
A segunda corrente da diplomacia é a autonomista. Em termos eco-
nômicos, os autonomistas são, em geral, mais ligados à perspectiva de-
senvolvimentista e, em termos políticos, a grupos mais nacionalistas, e,
embora não sejam originários do Partido dos Trabalhadores (PT), esta-
beleceram uma interação importante com o governo do presidente Lula.
Diferentemente dos institucionalistas pragmáticos, dão maior destaque às
crenças sobre a autonomia, o universalismo e, acima de tudo, o fortaleci-
mento da presença brasileira na política internacional.
Seu primeiro traço, e mais marcante, é a defesa de uma projeção mais
autônoma e ativa do Brasil na política internacional. Partindo dessa pers-
pectiva, defendem a reforma da dinâmica institucional das Nações Uni-
das, a fim de criar espaços para que o país ocupe um assento permanente
no Conselho de Segurança. Nos marcos de um comportamento refor-
mista da ordem internacional, os autonomistas têm preocupações de ca-
ráter político-estratégico no que se refere ao embate Norte-Sul, e buscam
uma aproximação com outros países considerados emergentes que teriam
características comuns com o Brasil — “dimensões continentais”, “reco-
nhecida importância regional”, “população”, “produto interno bruto”, “re-
cursos naturais” — e interesse no reordenamento do sistema internacio-
nal. Um documento do Itamaraty de 1994, da primeira gestão de Celso
Amorim, diz que “países que não estão integrados estruturalmente a áre-
as mais amplas, que veem na globalização a possibilidade de realizar sua
condição de potência e de não serem levados a optar por um esquema de
associação periférica a uma das três grandes áreas […] são os candidatos
naturais a ter lugar de destaque na nova ordem mundial”.4

4
Documento do Itamaraty do período “autonomista” de Itamar Franco, “O repensar do Ita-
maraty e da política externa brasileira”, apud Barros (1994).
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 103

No que diz respeito aos Estados Unidos, apesar da existência de al-


guns setores em que o antiamericanismo é mais forte, o grupo optou por
manter relações de baixo perfil em termos políticos no que se refere a áreas
de divergências. As negociações da Alca foram encerradas como fracasso,
e tanto a participação mais autônoma do Brasil na política internacional
quanto seus impulsos reformistas da ordem internacional criaram novas
áreas de divergência com o parceiro do Norte.
Em relação à América do Sul e ao Mercosul, os autonomistas de-
fendem uma construção mais ativa da liderança do Brasil na região e re-
cebem influência de pensadores de cunho nacionalista que identificam o
Brasil como o país capaz de influenciar os demais por ter atributos espe-
ciais, como população, geografia, economia etc. Assim, o processo de inte-
gração sob a liderança brasileira é considerado uma prioridade e paralelo
à trajetória de ascensão do país na política internacional. Os autonomistas,
defensores do pensamento desenvolvimentista, identificam a integração
como um instrumento de acesso a mercados externos, e como elemento
capaz de abrir novas perspectivas para a projeção das indústrias brasileiras
no exterior, na medida em que possam ocupar espaços vazios decorrentes
das limitações das indústrias dos países da região. Em relação ao Merco-
sul, a visão predominante coincide com algumas ideias dos instituciona-
listas pragmáticos: a defesa da baixa institucionalidade.
A ascensão do governo Lula abriu espaços de atuação para a corrente
autonomista; o grupo consolidou-se como principal formulador da política
externa brasileira desde então. Entretanto, vem convivendo com uma nova
corrente de pensamento na área de política externa, de caráter mais ideoló-
gico e com poucos vínculos históricos com a diplomacia, mas que, duran-
te o governo Lula, estabeleceu um diálogo importante com o Itamaraty e
exerceu alguma influência em decisões de política externa.
Sua origem está em acadêmicos e lideranças políticas que, durante o
governo Lula, conseguiram espaços de atuação. Diferentemente da tradi-
ção de concentração na formulação de política externa, o presidente Lula
convocou Marco Aurélio Garcia, então secretário de Relações Internacio-
nais do PT, para prestar-lhe assessoria, abrindo espaço para a influência
desse grupo no processo de formulação. Trata-se de uma visão mais difusa,
que perpassa diferentes níveis do aparato governamental.5

5
Esse grupo não pertence aos quadros do Itamaraty, e vem significando um primeiro movi-
mento importante de reflexões sobre política externa que se situa no espectro da política mas
fora da corporação diplomática.
104 Política externa brasileira

Em termos gerais, essa visão é orientada basicamente para o proces-


so de integração regional, propondo um aprofundamento do processo de
integração em termos políticos e sociais a partir da crença na existência
de uma identidade própria da região. Nessa perspectiva, apoia as inicia-
tivas de governos antiliberais da região — que buscam refundar a estra-
tégia de desenvolvimento e o próprio regime político de seus países — e
propõe algum tipo de solidariedade difusa com os países da região, in-
cluindo temas de identidade e cultura. Defende uma disposição brasileira
de arcar com os custos da integração regional. Em relação ao Mercosul, o
grupo é favorável ao aprofundamento do processo de integração em ter-
mos políticos, sociais e culturais.
Essa posição teve influência sobre os autonomistas do Itamaraty, con-
vergindo no sentido de um comportamento brasileiro mais proativo na
cooperação com os países vizinhos e na aceitação das diferentes opções
políticas que se abrem na região. Essa convergência ressalta a ideia de au-
tonomia da identidade e da política externa do país e se estende a ações do
país em outros continentes, com destaque para o caso africano.
Em relação mais especificamente à diplomacia cultural, o MinC, jun-
tamente com o Itamaraty, vem exercendo papel importante em seu pro-
cesso de formulação e implementação. Foi marcante na gestão de Lula da
Silva, no discurso presidencial, a preocupação em considerar a cultura um
fator substantivo no esforço de busca do desenvolvimento nacional e de
combate à desigualdade social.6 A cultura aparecia, assim, a partir de três
dimensões: afirmação da identidade nacional, inclusão social e desenvol-
vimento econômico através da indústria criativa.7 Cabe notar que, se essa
perspectiva não constitui em si uma real novidade (basta lembrarmos do
Ministério Capanema, no governo Vargas, para redimensioná-la na histó-
ria nacional e dos esforços do Itamaraty em promover a cultura nacional no

6
Entre outros, é esclarecedor o discurso proferido pelo presidente Lula durante a cerimônia
de lançamento do Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual, em 13 de outubro de 2003
(disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos>), no qual
ressaltou que “a cultura está investida de um papel estratégico, no sentido da construção de
um país socialmente mais justo e de nossa afi rmação soberana no mundo”.
7
Essa expressão define um setor econômico que congrega atividades como artes, música,
dança, cinema, fotografia, desenho, arte multimídia, arquitetura, design, web design, moda,
publicidade, criação de videogames, softwares e as atividades ligadas à TV e ao rádio. Ou
seja, reúne a “criatividade, a arte, o negócio e a tecnologia”. Essa definição foi originariamen-
te formulada pelo Department for Culture, Media and Sport (DCMS) do Reino Unido.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 105

exterior), tem o mérito de promover uma parceria inédita entre o Itama-


raty e o MinC. Resultou dessa nova orientação um expressivo impulso da
diplomacia cultural entre as iniciativas externas do país, o que, por sua vez,
corresponde a um projeto mais amplo de afirmação do Brasil no cenário
internacional. Em termos operativos, a defesa da pluralidade cultural e
a percepção da importância da cultura para o desenvolvimento socioe-
conômico têm norteado as ações em prol da afirmação e da divulgação da
cultura nacional no estrangeiro. No espectro das correntes de ideias que
têm influência sobre a política externa atual, os quadros do MinC esta-
riam mais próximos do mencionado grupo de acadêmicos e políticos com
visão menos ortodoxa de política externa.

Cultura e política externa

A diplomacia cultural do governo Lula manifestou-se em diferentes áreas,


atendendo sempre a um projeto mais global de ascensão internacional do
país, autonomia e, sobretudo, de universalismo aplicado à cultura. No âm-
bito da política externa, o papel da cultura foi redimensionado e assumiu
uma tripla funcionalidade: ao criar vínculos de identidade e reconhecimen-
to de raízes, fortaleceu os blocos regionais e a aproximação com países e
regiões estratégicas ao desenvolvimento da cooperação Sul-Sul; no plano
interno, esse processo promoveu a almejada inclusão social, ao ampliar o
arco das representações culturais dignas de “exportação” e assim expandir
a economia da cultura; no plano externo, propiciou a inserção internacio-
nal, ao defender o pluralismo cultural contra a ameaça da homogeneiza-
ção cultural; e do ponto de vista econômico, a chamada indústria criativa
se adequou perfeitamente aos anseios de aumento da pauta de exportação
nacional. Tanto os discursos dos líderes políticos quanto as ações do De-
partamento Cultural do Itamaraty e do Ministério da Cultura parecem
comprovar tais hipóteses.
O discurso oficial sobre o papel da cultura a colocou como uma via de
estreitamento de laços para o alcance de objetivos maiores, como a integra-
ção regional ou o fortalecimento dos vínculos históricos e culturais entre
Brasil e África. Em referência ao Mercosul, o presidente Lula afirmou:

o Mercosul que nós acreditamos não é o Mercosul eminentemente co-


mercial. O Mercosul que nós queremos tem de ser comercial, político,
106 Política externa brasileira

econômico, social e cultural. Porque somente assim ele se tornará forte e


competitivo com outros blocos econômicos criados no mundo. […] Pela
arte, afi rmamos nossas personalidades individuais e fortalecemos nossa
identidade coletiva.8

Na inauguração do Museu Afro-Brasil, enfatizou:

Digo isso porque o Museu Afro-Brasil, que hoje está sendo inaugurado
[…] vem se somar a esse conjunto de ações que nos aproximam vivamente
da África. Este novo museu vai nos ajudar a preservar o muito do próprio
continente africano que ainda existe entre nós […] O grande legado dos
artistas, artífices, cientistas políticos e demais cidadãos negros que contri-
buíram para a originalidade e diversidade da cultura brasileira fica, agora,
disponível para ser amplamente apreciado e estudado.9

No caso específico das relações diplomáticas entre o Brasil e os países


africanos, é nítido o uso externo do capital cultural afro-brasileiro para a as-
sinatura de acordos de cooperação diversos e o estabelecimento de parcerias,
tanto para o incremento de intercâmbios comerciais, culturais, educacionais,
de saúde etc. quanto para o fortalecimento dos países em desenvolvimento
nas negociações em órgãos multilaterais através de reivindicações unifica-
das. Esse protagonismo contribuiria para, entre outros fatores e ações, con-
ferir ao Brasil o pretendido caráter de “potência emergente”, ou potência
em ascensão para global. De qualquer forma, a valorização da cultura afro-
brasileira pelo governo indica a instrumentalização das questões culturais
para uma maior penetração no cenário internacional.
No tocante às ações do Departamento Cultural do Itamaraty, a pro-
moção de eventos artísticos e culturais em embaixadas e centros culturais
brasileiros espalhados pelo mundo, com apresentações musicais, projeção
de filmes da indústria cinematográfica nacional, realização de debates so-
bre assuntos diversos, entre outros, caracterizaram um pouco as ações do

8
Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido em Porto Alegre, no Santander
Cultural, em 5 de outubro de 2003, por ocasião da 4a Bienal de Artes Visuais do Mercosul.
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos>.
9
Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido em São Paulo, em 23 de outu-
bro de 2004, durante inauguração do Museu Afro-Brasil. Disponível em: <http://www.mre.
gov.br/portugues/politica_externa/discursos>.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 107

órgão. Importante atuação teve também o MinC no esforço de divulgação


cultural, principalmente na pessoa de seu mentor, o ex-ministro Gilberto
Gil, que, em 2004, por exemplo, viajou à África para participar da Primeira
Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora.10
Percebe-se então que a promoção da diversidade cultural nas relações
internacionais é matizada pelo combate às estruturas hegemônicas, nas
quais a cultura seria um canal de “intervenção no modelo de globalização
vigente”, haja vista que a “maior parte das trocas culturais entre as diferen-
tes regiões periféricas do globo é controlada pelo centro do sistema, con-
centrado no eixo Estados Unidos-Europa-Japão”. Nesse cenário, segundo
o ex-ministro Gil (2007:54), o Brasil “deve se orientar pelo exercício da
pluralidade, contra a imposição de uma cultura única”, atuando “na defesa
e promoção tanto da diversidade cultural brasileira, no interior e no exte-
rior, quanto do acesso a outras culturas e a trocas”.
É possível, portanto, averiguar a convergência entre projeção cultu-
ral e política externa no governo Lula. A atuação do Departamento Cul-
tural demonstrou dinamismo, em 2005, por ocasião das programações
culturais referentes ao Ano do Brasil na França. Ruy Pacheco de Aze-
vedo Amaral (2008:55) pontuou que a temporada cultural brasileira na
França de 2005, intitulada “Brésil, Brésils, do singular ao plural”, teve por
objetivo “divulgar a diversidade e a modernidade do Brasil, em todas as
suas facetas: cultural, naturalmente, mas também econômica, social e tu-
rística”. A programação alcançou tal sucesso que revigorou o ciclo de rea-
lização de temporadas culturais estrangeiras na França, conforme analisa
Amaral (2008:68-78): “durante a temporada, foram realizados diversos
eventos de promoção comercial, financiados pela Agência de Promoção
de Exportações e Investimentos (Apex), que, segundo a própria agência,
geraram vendas de 300 milhões de reais, sob a ‘fórmula venda de produ-
tos + cultura’. Os resultados da temporada foram surpreendentes, pois re-
dimensionaram a percepção da opinião pública e da sociedade francesa
a respeito do Brasil e de sua cultura (cuja imagem já era positiva), tendo

10
Ao tratar da dimensão externa da política cultural do governo Lula, o então ministro da
Cultura, Gilberto Gil, sempre enfatizou que a ação internacional do governo brasileiro não
se dava somente pela promoção da cultura brasileira em seus aspectos simbólico e econômi-
co, mas que essas ações eram articuladas com base em uma perspectiva mais ampla, orienta-
da pela defesa da diversidade cultural, a fim de combater as assimetrias sistêmicas do mundo
afetado pelo fenômeno da globalização. E nesse sentido, o ministro Juca Ferreira, que o su-
cedeu na pasta, deu continuidade às políticas de seu predecessor.
108 Política externa brasileira

gerado um número considerável de eventos de manifestações artísticas e


culturais brasileiras, organizados de maneira espontânea, além disso, foi
possível averiguar um aumento do número de interessados na língua”.
Uma das repercussões do Ano do Brasil na França foi o acréscimo, em
importância, do fomento às atividades de divulgação cultural brasileira no
exterior, pois, a partir de seu sucesso, o governo brasileiro passou a cogitar a
adoção de medida semelhante à do governo francês, organizando, no Bra-
sil, temporadas culturais estrangeiras. As comemorações do Centenário da
Imigração Japonesa e o Ano da França no Brasil, durante o segundo man-
dato do presidente Lula, são indicativos dessa postura. Outro fator a ser
levado em consideração é que o Ano do Brasil na França foi a mola propul-
sora da realização da Copa da Cultura, na Alemanha, em meio à realiza-
ção da Copa do Mundo no país, em 2006. De acordo com a programação
da Copa da Cultura, centenas de eventos culturais foram distribuídos por
cidades alemãs, com o objetivo de, nas palavras do ex-ministro Gil, “reafir-
mar a imagem brasileira e abrir novos mercados”.11
A atuação do MinC no campo da diplomacia cultural, por sua vez, tem
sido notória, através de iniciativas como, por exemplo, a participação na Rede
Internacional de Políticas Culturais (RIPC) — um encontro anual de mi-
nistros da Cultura de vários países com o objetivo de discutir a aprovação da
convenção da Unesco —; a elaboração da Agenda para o Desenvolvimento,
junto ao governo argentino, a fim de estabelecer um programa voltado para
o desenvolvimento no âmbito da Organização Mundial da Propriedade In-
telectual (Ompi); o protagonismo na criação do selo Mercosul Cultural e da
Rede Especializada de Cinema e Audiovisual do Mercosul (Recam); a par-
ticipação proativa na Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora
(Ciad) e na Comissão Interamericana de Cultura da OEA.12
Nesse movimento, a medida mais significativa adotada pelo governo
Lula, com a participação direta do MinC, foi a criação do Centro Inter-
nacional das Indústrias Criativas (CIIC),13 em março de 2005, durante o

11
Ver Brasil planeja eventos culturais na Alemanha. Rio de Janeiro, 6 jan. 2006. Últimas no-
tícias. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas/2006/01/06/ult59u98828.
jhtm>. Acesso em 22 abr. 2010.
12
Gil (2007:59). O ex-ministro Juca Ferreira deu continuidade às políticas de Gil.
13
Discurso do ministro Gilberto Gil no encerramento do Fórum Internacional das Indús-
trias Criativas, realizado em Salvador, em 20 de abril de 2005. Disponível em: <http://www.
cultura.gov.br/site/2005/04/19/discurso-do-ministro-gilberto-gil-no-encerramento-do-fo-
rum-internacional-das-industrias-criativas/>.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 109

Fórum Internacional das Indústrias Criativas, realizado em Salvador (BA).


Essa iniciativa, resultado do empenho e protagonismo do MinC e do Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), constituiu uma
alternativa à questão, de nível internacional, do acelerado crescimento das
economias da cultura e ao influxo desse setor no processo de desenvol-
vimento. O embaixador Edgard Telles Ribeiro, então chefe do Departa-
mento Cultural do Itamaraty, representando o ministro Celso Amorim no
referido fórum, chamou a atenção para o fato de que a criação do CIIC era
orientada pelas discussões sobre “a luta pelo desenvolvimento em todas as
suas vertentes”, motivo pelo qual o ministério apoiava o MinC “em todas
as frentes que dizem respeito à defesa, proteção e promoção de nossa di-
versidade cultural”14 e, assim, se empenharia na implantação do CIIC.
No que diz respeito à América do Sul, e mais propriamente ao Mer-
cosul, a partir da década de 1990, a ação governamental mais significativa
no campo das relações culturais foi a Reunião de Ministros da Cultura do
Mercosul, criada em 1995 e que tem sido palco da elaboração de impor-
tantes propostas de intercâmbio e integração cultural, como a criação do
selo Mercosul Cultural, a criação de um centro de documentação musical
do Mercosul, em Montevidéu, a realização de um inventário do patrimônio
histórico e artístico do bloco, a criação da Reunião Especializada de Autori-
dades Cinematográficas e Audiovisuais do Mercosul (Recam), entre outras
iniciativas. Todavia, as ações institucionais do Mercosul Cultural — criação
de órgãos para o fomento do intercâmbio cultural, criação de programas
de difusão cultural e de conhecimento mútuo da riqueza cultural dos gru-
pos sociais integrantes do bloco etc. —, visando a aumentar a coesão cultu-
ral entre os mercosulenhos, ainda são consideradas incipientes na medida
em que os avanços legislativos obtidos pelas reuniões de ministros da Cul-
tura, desde 1995, não têm sido acompanhados por uma realização efetiva e
continuada dos projetos propostos, que, depois de discutidos, organizados,
aprovados, documentados e assinados, não vêm alcançando resultados ex-
pressivos, devido a um certo ostracismo a que os assuntos culturais acabam
sendo relegados ao longo do tempo pelos governos da região.

14
Trecho de transcrição própria de discurso do embaixador Edgard Telles Ribeiro no Fó-
rum Internacional das Indústrias Criativas. Disponível em: <www.cultura.gov.br/foruns_
de_cultura/economia_da_cultura/industrias_ criativas/index.php>.
110 Política externa brasileira

O grau de convergência entre o MRE — e seu Departamento Cultu-


ral — e o MinC fica então demonstrado pela multiplicidade das parcerias
realizadas. O próprio conceito de diplomacia cultural foi traduzido para
o pensamento diplomático brasileiro por meio de Telles Ribeiro (1989).
E, sem dúvida, a colaboração entre o Itamaraty e o MinC foi grandemen-
te favorecida por contar com dois produtores de cultura em postos-chave
para a diplomacia cultural15 entre 2003 e 2006: o diplomata Telles Ri-
beiro (então chefe do Departamento Cultural), escritor, e o ministro da
Cultura, Gilberto Gil, músico. Ambos identificaram que a questão cen-
tral do desenvolvimento e da divulgação cultural passava pela necessidade
de investimentos econômicos que promovessem e acelerassem seu desen-
volvimento, motivo pelo qual conferiram grande importância à indústria
criativa como uma das formas de catalisação de investimentos na área,
tanto interna quanto externamente.
Dessa forma, observou-se uma significativa mudança na percepção
do papel da cultura: não mais, exclusivamente, uma expressão simbólica da
identidade nacional, mas também um setor econômico com inúmeras pos-
sibilidades, mais uma forma de desenvolvimento e de ampliação da cidada-
nia. Essa percepção da cultura foi incorporada à política externa e revestida
de uma visão democrática e humanista da agenda da cultura, que defende
a diversidade cultural e o amplo desenvolvimento da economia da cultura.

Desafios para o Brasil na arena dos


negócios relativos à cultura

Mas alguns desafios nacionais devem ser enfrentados para que se possa
atingir, no que diz respeito ao consumo da cultura, índices mais expres-
sivos e mais de acordo com o tamanho populacional do Brasil. Dados do
MinC revelaram números espantosos sobre o consumo da cultura no país:
apenas 13% dos brasileiros frequentam alguma vez no ano uma sala de ci-
nema; 92% nunca visitaram um museu; 93,4% jamais estiveram presentes
em uma exposição de arte; 78% nunca assistiram a um espetáculo de dan-
ça; mais de 98% dos municípios não dispõem de salas de cinema, teatros,

15
Observe-se que o Itamaraty tem longa tradição em abrigar diplomatas escritores ou diplo-
matas artistas, como analisa o embaixador Alberto da Costa e Silva (2002).
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 111

museus ou espaços culturais multiuso; o brasileiro lê em média 1,8 livro


per capita ao ano (contra 2,4 na Colômbia e sete na França, por exemplo);
73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da população
nacional; dos cerca de 600 municípios que nunca receberam uma biblio-
teca, 405 estão no Nordeste e apenas dois no Sudeste.16 Todavia, se bem
planificada, a política cultural do segundo país mais populoso do conti-
nente poderá contribuir para o desenvolvimento sustentável de um pro-
missor mercado sul-americano:

Uma pesquisa da PricewaterhouseCoopers, por exemplo, aponta a emergên-


cia do mercado latino-americano. Em 2005, cerca de US$ 71 bilhões foram
gastos com entretenimento, contra os US$ 39 bilhões registrados em 2000.
Em outras palavras, o setor cresce a uma taxa superior a 12% ao ano, bem
acima dos 7% registrados nos Estados Unidos. Em suma, o mercado de en-
tretenimento é um fato econômico relevante, uma vez que dita as regras do
funcionamento da economia na atualidade [Bertini, 2008:11].

Uma das lutas do MinC é democratizar o acesso à cultura. Para isso,


o ministério considera imprescindível aumentar seu orçamento anual para,
pelo menos, 1% da arrecadação fiscal federal, patamar indicado pela Unes-
co como minimamente necessário para viabilizar o acesso ao conhecimen-
to, à informação e ao entretenimento cultural das populações pobres dos
países em desenvolvimento. Essa orientação, destacam as autoridades do
MinC, reconhece a centralidade da cultura no processo de desenvolvimen-
to social. Contudo, em 2002, o orçamento do ministério foi fixado em
0,36% da arrecadação federal, evoluindo em 2008 para apenas 0,52%.
A situação de toda a América do Sul nesse campo é extremamente
modesta, pois, ainda que a região concentre 9% da população mundial, só
responde por 3% de todo o conjunto das exportações mundiais de bens
culturais. E isso a despeito da indústria da música brasileira e do sucesso
do cinema argentino. Cabe indagar: o que explica o baixo índice de bens
culturais sul-americanos no mercado internacional? O que tem sido feito
para reverter essa situação? Em relação ao consumo da cultura na Amé-
rica do Sul, Canclini (1999:235-237) apontou cinco grandes questões a

16
Dados disponíveis no aplicativo Mais Cultura/MinC, em <http://www.cultura.gov.br>.
112 Política externa brasileira

serem consideradas na formulação das políticas culturais dos países da


região: primeiramente, a maioria das mensagens e bens culturais recebi-
dos pelas nações não é mais produzida em território nacional; a maioria
dos investimentos dos Estados no setor ainda se concentra na tradicional
tríade: artes cultas, preservação de patrimônios monumentais e preser-
vação do folclore, com poucos investimentos nas indústrias culturais de
massa. As grandes empresas privadas transnacionais são as principais de-
tentoras dos grandes meios de comunicação de massa, influindo, assim, na
alienação cultural e política do público; as ações culturais dos organismos
internacionais e aquelas originadas das reuniões dos ministros da Cultura
reproduzem a visão da tradicional tríade cultural a ser priorizada. Canclini
assinala ainda que o consumo cultural, nas grandes cidades sul-america-
nas, da alta cultura escrita, das artes plásticas e de música erudita atinge
apenas 10% da população.
O Brasil, por sua vez, sempre foi um grande importador de bens cul-
turais: em 1994 essas importações foram calculadas em US$ 165,9 milhões,
enquanto as exportações não passaram de US$ 56,9 milhões. Em 2003, a
balança comercial permanecia negativa, mas com uma redução, devido so-
bretudo à perda de 1/3 do valor das importações, que totalizaram US$ 105,7
milhões, enquanto o valor das exportações permanecia nos patamares de
1994. Há duas explicações para essa mudança: a diminuição do preço dos
jogos eletrônicos em 1994-2002 e a criação da zona franca de Manaus nos
anos 1990, que aumentou a capacidade produtiva do país e reduziu as im-
portações. Em 2003, sempre segundo dados da Unesco (2005:35), 45,1%
das importações brasileiras estavam concentradas em dois países: Estados
Unidos (28,8%) e Inglaterra (16,3%), enquanto os países latino-americanos
que negociavam a formação fracassada da Alca eram responsáveis por ape-
nas 14%. Porém, a posição dos EUA, que detinham 41,3% das importações
brasileiras em 1994, caiu para 28,8% em 2003. No mesmo período, o Japão
caiu de 10,9% para 3,6%. Enquanto países como Argentina, Chile, China,
Inglaterra e Espanha tiveram maior participação.
Têm ocorrido também embates na Organização Mundial do Co-
mércio. Signatário da Convenção sobre a Proteção e a Promoção das Diver-
sidades das Expressões Culturais e Artísticas (2005), que os Estados Unidos
não assinaram, o Brasil apoiou a posição dos EUA ao ingressar no Conselho
de Serviços da OMC, em 2001, como determinou o Itamaraty. Dessa forma,
o país acatou a visão de que certos bens culturais, mais precisamente as obras
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 113

audiovisuais, são produtos comercializáveis e, portanto, devem ser submetidos


às regras gerais vigentes na OMC que tratam da circulação de mercadorias.

Desde então, o país tem sido demandado por uma série de parceiros a respei-
to da compatibilidade entre duas posições vistas por muitos como distintas.
De um lado, a defesa, junto aos foros como a Unesco, a rede internacional dos
Ministros da Cultura e a Reunião de Ministros da Cultura do Mercosul, do
princípio da diversidade cultural; e, de outro, a atuação no Conselho de Servi-
ços da OMC, na qual fazemos pedidos para que países outros permitam que
suas populações tenham acesso à produção audiovisual brasileira.17

Ao ratificar o reconhecimento da OMC como foro privilegiado para


normatização e regulamentação do comércio de bens culturais do país, sobre-
tudo do setor audiovisual, a “galinha dos ovos de ouro” da indústria cinema-
tográfica liderada pelos Estados Unidos, o atual governo brasileiro reafirmou
sua expectativa naïf de que a OMC estabeleceria “regras supranacionais que
permit[issem] a real defesa da diversidade cultural”. Mas, ao mesmo tempo,
para enfrentar o desafio da construção “de uma estratégia correta para esse
embate”, uma real batalha de “Davi frente a Golias”, nas palavras de Orlan-
do Senna, os países-membros da OEA participaram, desde 1996, da ela-
boração de um Programa Interamericano de Cultura (PIC), nos marcos da
Organização dos Estados Americanos. Posteriormente, foi criado o Proces-
so de Reuniões Interamericanas de Ministros e Máximas Autoridades da
Cultura, órgão fundado em 2002, vinculado ao Departamento de Educação
e Cultura. Naquela ocasião, foi também criada a Comissão Interamerica-
na de Cultura (CIC), um organismo técnico-político de discussão, forma-
do por representantes do Ministério da Cultura e pelas Altas Autoridades
de Cultura.18 Para garantir a execução dos projetos elaborados e aprovados

17
Pronunciamento do secretário Orlando Senna na XII Reunião da Conferência de Autori-
dades Cinematográficas de Ibero-américa (Caci), em Óbidos, Portugal, em 22 de junho de
2003. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/politicas/identidades>.
18
A CIC foi criada para garantir a cooperação horizontal entre os Estados, de forma a pro-
mover as relações culturais entre os países participantes, contribuir para a proteção e o desen-
volvimento da diversidade cultural sustentável e informar, qualitativa e quantitativamente, o
Observatório Interamericano de Políticas Culturais, de forma a subsidiar as Reuniões Intera-
mericanas dos Ministros da Cultura e das Altas Autoridades da Cultura do Conselho Inte-
ramericano de Desenvolvimento Integral (Cidi), bem como a Comissão Executiva Perma-
nente do Conselho Interamericano do Desenvolvimento Integral (Cepcidi). Desde 2002,
encontram-se também em estudo estratégias para a construção dos Sistemas de Informação
Cultural (CIS), com atividades compartilhadas entre os países.
114 Política externa brasileira

no espírito da CIC, e com base nas propostas apresentadas pela Unidade


do Desenvolvimento Social, da Educação e da Cultura da OEA, foi criado
um fórum virtual para a comunicação dos delegados dos países-membros e
aprovada a criação de um fundo de US$ 190.833,33.
Com o desenvolvimento dos trabalhos dos grupos envolvidos nas reu-
niões ministeriais, uma segunda reunião do Processo de Reuniões Intera-
mericanas de Ministros e Máximas Autoridades da Cultura foi realizada no
México, em 2004, ocasião em que se estabeleceram três temas fundamentais
de debate: a cultura como geradora de crescimento econômico, emprego e
desenvolvimento; desafios das indústrias culturais; e a cultura como instru-
mento de coesão social e combate à pobreza. A terceira reunião, realizada
em 2006 no Canadá, fixou quatro temas para discussão: preservação e apre-
sentação do patrimônio cultural; cultura e criação de trabalho decente e su-
peração da pobreza; cultura e realce da dignidade e da identidade; a cultura
e o papel dos povos indígenas.
Dessa forma, paralelamente à OMC, os países organizaram-se em blo-
cos regionais, abrindo outras vias de discussão e ação sobre o futuro da eco-
nomia da cultura. Por sua vez, o governo brasileiro afirmou reiteradas vezes
que, na qualidade de membro da OMC e como parte do Acordo de Servi-
ços, o Brasil sempre logrou dispor de liberdade para alterar sua legislação
relativa à cultura, para criar novos organismos estruturais para o setor, como
a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancine), ou para alterar a
cota de tela reservada ao cinema nacional, sem que isso suscitasse “qualquer
questionamento” por parte da OMC. Não obstante, as pressões impostas
pelos países desenvolvidos têm se tornado cada vez mais explícitas:

A princípio a Assembleia Geral [da Ompi] deste ano deveria decidir ba-
seada em propostas feitas ao longo dos últimos dois anos, mas na última
reunião, de junho, houve tentativa dos Estados Unidos, em conjunto com a
União Europeia, o Grupo B (de países desenvolvidos) […] de tirar da agen-
da vários itens propostos pelo Grupo de Amigos do Desenvolvimento, que
inclui Brasil, Argentina, África do Sul, Egito, Irã, entre outros, e que rece-
bem maciço apoio do Chile e da Índia. Por consequência, o último grupo
mencionado se negou a continuar nas discussões, argumentando que havia
tentativa de se esvaziar a Agenda [Paranaguá, 2006].

Por outro lado, entraves burocráticos bloquearam durante muito tem-


po a captação de recursos para a área da cultura: observe-se que apenas em
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 115

1995 foi firmado um acordo entre o MinC e o Ministério das Comunica-


ções a fim de destinar grandes verbas publicitárias das empresas públicas
de telecomunicações a projetos culturais. A partir dessa data, o BNDES
também passou a apoiar o setor cultural, patrocinando com recursos in-
centivados projetos nas áreas do patrimônio histórico, por exemplo. Entre
1995 e 2005, investimentos de cerca de R$ 100 milhões possibilitaram a
revitalização de 97 monumentos tombados em todo o país, além de acervos
e investimentos em cinema e música. Segundo dados do banco, de 1995 a
2005, no âmbito da Lei do Audiovisual, o BNDES apoiou 304 filmes com
recursos que montaram a mais de R$ 106 milhões, fazendo do banco o se-
gundo maior patrocinador do cinema nacional. Sem contar o apoio finan-
ceiro reembolsável, outra modalidade de incentivo destinado às editoras
(entre R$ 20 e 40 milhões anuais), ao setor de software (R$ 94 milhões) e
a salas de projeção cinematográficas.19
Como vimos, não basta a aprovação da Convenção sobre a Diversi-
dade Cultural, que indubitavelmente significa “um belo golpe na reificação
capitalista” por representar um poderoso instrumento jurídico internacio-
nal contra a liberalização de bens e serviços culturais, para que se garanta
o desenvolvimento sustentável da economia da cultura. No caso do Brasil,
a complexidade da relação nacional com sua cultura é o primeiro e princi-
pal desafio a ser enfrentado pela sociedade e pelos responsáveis pela polí-
tica cultural para que o setor garanta, efetivamente, um desenvolvimento
sustentável à altura de suas possibilidades, no nível interno ou no externo.
Ademais, em tempos de globalização, a cultura não só permanece como es-
truturante da identidade dos povos, mas também é a área da indústria que
mais cresce no mundo.

Considerações finais

Resulta da análise aqui apresentada duas conclusões preliminares. Primeira-


mente, destaca-se que desde 2003 a diplomacia cultural brasileira avançou
expressivamente no cenário mundial e regional, a despeito das dificuldades
estruturais próprias à situação socioeconômica do país. Esse avanço, por sua
vez, resultou de um processo relativamente recente, baseado no incremen-

19
Ver <http://www.bndes.gov.br/cultura>.
116 Política externa brasileira

to da política cultural interna. Segundo, deve-se observar quão poderoso é


o fator cultural para a criação positiva de vínculos identitários que fortale-
çam os laços de cooperação entre as nações. Foi essa a estratégia adotada
pela diplomacia brasileira a partir de 2003 ao promover o aprofundamento
do intercâmbio com países e regiões cuja parceria era considerada estraté-
gica para o desenvolvimento nacional e a inserção internacional, conforme
proposto tanto pela corrente autonomista do Itamaraty quanto pelos ideó-
logos do PT. Caminharam juntos, assim, a diplomacia cultural do Itamaraty
e do MinC, e o tipo de inserção internacional — autonomista, universalis-
ta e voltada para o desenvolvimento econômico nacional — proposto pelos
grupos que formulavam a política externa do governo Lula.
Em termos da política externa brasileira, o incremento da diploma-
cia cultural é, portanto, um item cada vez mais importante, na medida em
que se trata de uma dimensão do comportamento externo que adquiriu
um protagonismo inédito e consequente. O envolvimento de agências go-
vernamentais próprias, como o MinC, no processo de formulação e im-
plementação é um fator relevante para se pensar a participação de novos
atores na agenda de política externa. O desafio que se coloca para o gover-
no brasileiro é reduzir a distância entre as potencialidades culturais do país
e sua cota de participação na economia da cultura internacional. O desafio
que se coloca para os especialistas em Análise de Política Externa é debru-
çarem-se sobre o tema da diplomacia cultural, dimensão forte do compor-
tamento externo dos países e que no Brasil ainda carece de estudos críticos
para que possa ser tratado de forma articulada aos projetos internacionais
da diplomacia brasileira.

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4.
Mobilidade artística internacional e a
política cultural internacional da Bahia

Monique Badaró

A alternância de poder vivenciada pela Bahia em 2007 resultou em signi-


ficativas mudanças na forma de tratamento das questões cultural e inter-
nacional. Passou-se a entender a cultura como toda produção simbólica
de um povo e a enfatizar sua capacidade de geração de renda e emprego
e seu papel no processo de desenvolvimento. A valorização e a defesa da
diversidade cultural, bem como a abertura às dinâmicas do mundo con-
temporâneo ingressaram na agenda pública de cultura do estado, rompen-
do com um modelo que subordinava a cultura aos interesses do turismo
e promovia uma imagem monolítica da Bahia, desconhecendo sua plura-
lidade identitária e sua produção contemporânea. Com a criação da Se-
cretaria de Cultura e a alocação de uma assessoria especial para se ocupar
de relações internacionais, assumiu-se o desafio da internacionalização do
estado através da cultura.
Com conteúdo essencialmente econômico, a política de relações inter-
nacionais do estado iniciou um novo período no bojo da globalização e da
abertura do mercado doméstico no início dos anos 1990, voltada para a co-
operação financeira, a atração de investimentos e a promoção do comércio
exterior. A cooperação descentralizada, com foco na assistência técnica, na
transferência de tecnologia e no intercâmbio de boas práticas, embora pra-
ticada, permaneceu incipiente. A nova gestão, compreendendo assim as po-
tencialidades de atuação na arena internacional, estruturou uma assessoria
específica de relações internacionais no gabinete do governador, com a fun-
ção, entre outras, de coordenar a ação exterior do governo, canalizando de-
mandas para a formulação de uma política externa contínua e articulada
122 Política externa brasileira

entre as diversas pastas. Nesse contexto, a atuação externa ampliou os víncu-


los internacionais do estado e ganhou novo impulso.
Este capítulo aborda a política internacional de cultura do estado da
Bahia desde 2007, seus objetivos, formas e resultados, mostrando como a
mobilidade artística pode se tornar um instrumento estratégico de política
externa. Tem como foco a caracterização da mobilidade artística internacio-
nal e a atuação internacional dos estados no âmbito da cultura, e está dividi-
do em cinco seções: a primeira trata de conceituar a mobilidade nas artes; a
segunda procura apreender a forma pela qual estados e unidades subnacio-
nais se servem da cultura para projetar sua imagem externa; a terceira veri-
fica como se dá a inserção da mobilidade das artes nas agendas públicas de
cultura e política externa; a quarta apresenta o caso do programa de apoio à
mobilidade da Bahia; e a quinta e última delineia as limitações e desafios do
apoio à mobilidade artística tendo como pano de fundo a realidade baiana.
Espero, assim, estimular o avanço da discussão da temática no país.

O conceito de mobilidade artística internacional

Em um mundo de movimento e comunicação globais, onde as distâncias


espaciais foram reduzidas pelas tecnologias de informação e comunica-
ção e as fronteiras nacionais tornaram-se porosas, a mobilidade é consi-
derada um dos fenômenos mais importantes da sociedade contemporânea
(Cresswell, 2006), cujos membros articulam sua vida em torno de concei-
tos como movimento, circulação, fluxo, conexão e rede. Os movimentos
transnacionais são uma das forças-chaves de transformação social no mun-
do contemporâneo, e segundo Hardt (apud Rodrigues e Kohler, 2008), a
humanidade se constitui pela circulação humana.
O fenômeno da circulação de bens, pessoas, ideias e instituições tem
sido objeto de estudo das ciências humanas e sociais e, mais recentemen-
te, começa a interessar a campos interdisciplinares como os de estudos
globais e transnacionais, que ressaltam a dimensão simbólica da mobi-
lidade, associando-a não só a um simples deslocamento físico ou à mu-
dança física do espaço, mas também ao deslocamento da representação
social e da autorrepresentação do indivíduo (Barriendos, 2009). Na ver-
dade, quando se movem, os indivíduos levam consigo seus vínculos, sig-
nos, símbolos, histórias particulares, suas representações e práticas. Desse
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 123

modo, a constante mobilidade do homem contemporâneo impõe novas


reflexões sobre as identidades culturais e os processos de apropriação e de
transformação do conhecimento (Rodrigues e Kholer, 2008).
Compreendida como o conjunto das expressões do movimento que
animam as relações entre os homens, a sociedade e o espaço, a mobilidade
pode ser mais bem-apreendida a partir das experiências de descentramen-
to (Hall, 2003), de desterritorialização, de transculturação e de inserção
em outros universos culturais.1 Envoltas em um movimento de assimila-
ção, tradução e transposição, essas experiências desarticulam identidades
ao mesmo tempo em que abrem possibilidades de criação de novas identi-
dades, sob o selo do hibridismo.
Alguns autores argumentam que o efeito geral desses movimentos
transnacionais tem sido o afrouxamento dos laços entre a cultura e o lu-
gar, e a consequente homogeneização cultural. No entanto, os processos
de hibridismo demonstram a coexistência de tendências contraditórias de
uniformização cultural e afirmação das identidades.(Almeida, 2008). As
preocupações com os efeitos negativos da mobilidade remetem sobretudo a
questões de dominação cultural, exercida a partir de centros de poder eco-
nômico e cultural. Essa visão tende a ignorar os processos de descentrali-
zação dos modelos ocidentais, a emergência de uma pluralidade de centros
e de culturas e a crescente inserção de artistas das regiões periféricas nos
circuitos internacionais de arte.
Metáfora da condição pós-moderna, sendo hoje uma prática social
bastante difundida, a mobilidade nas artes não é uma novidade recente.
Tornou-se uma ideia valorizada a partir do século XVI, com a ascensão
do capitalismo mercantil e do fluxo internacional de bens e indivíduos. Os
filósofos do Iluminismo também a valorizaram, ressaltando as virtudes li-
bertadoras da viagem. Desde então passou a ser sinônimo de liberdade e de
emancipação social. Para Deleuze, a mobilidade constitui a essência do ser,
o instrumento de sua criatividade e de sua constante adaptação ao contexto
espaçotemporal (Rodrigues e Kohler, 2008).
Conceito polissêmico, a mobilidade está ligada às ideias de progres-
so individual e social e de mudança, pois estar fora de lugar possibilita de-
senvolver novas habilidades, como a perceptiva e a cognitiva. Englobando

1
Segundo Simon Harel, o conceito de mobilidade descreve antes de tudo a aptidão de mo-
vimento entre mais de um domínio cultural.
124 Política externa brasileira

a totalidade da vida dos indivíduos, age como um elemento de construção


identitária e possibilita uma relação com o mundo, como meio de encon-
trar contextos para as normas sociais variáveis e para experimentar outra
organização de vida (Raffin, 2007).
Nas artes, a mobilidade contemporânea se associa ao conceito de no-
madismo, de errância e flânerie e se reveste de virtudes positivas. Historica-
mente, o intercâmbio de ideias e conhecimentos entre os povos de diferentes
origens foi central para o desenvolvimento individual e coletivo dos envol-
vidos. Na Europa, o impacto do livre movimento de artistas de uma re-
gião para outra foi sempre significativo, estando na base do florescimento da
cultura em muitos países. Os deslocamentos de Händel, por exemplo, são
apontados como tendo tido papel crucial no desenvolvimento da música no
início do século XVIII. Nascido em Halle, na Alemanha, em 1685, ele esgo-
tou rapidamente suas possibilidades musicais em sua cidade natal e foi pro-
curar inspiração na Itália, onde compôs uma série de obras magníficas para
os mais importantes centros musicais do país. De lá, percebendo um público
ávido de novas óperas italianas na Inglaterra, mudou-se para Londres, onde
conheceu sucesso instantâneo. Seu mais famoso trabalho foi lançado em
Dublin. Morreu em Londres, em 1759, naturalizado inglês.
O nomadismo contemporâneo segue sendo um atributo desejável da
prática artística, constituindo-se um fenômeno necessário ao processo de
criação e de difusão. Princípio de inspiração, o artista se nutre de desco-
bertas sucessivas e da vontade de experimentação. Movendo-se constan-
temente de uma cultura para outra, entre vários países, adquire capacidade
crítica e de inovação ( Jeanpierre, 2008). O distanciamento espaçocultural
cria situações propícias à criatividade intelectual, à superação dos enraiza-
mentos identitários e à transcendência dos particularismos locais (Rodri-
gues e Kholer, 2008).
Ademais, no atual contexto de internacionalização do sistema de arte
contemporânea, a experiência transnacional é entendida como requisito de
reconhecimento profissional. O artista cujo itinerário profissional não se fez
em diversos países dificilmente terá uma carreira internacional. A lógica do
mercado pressiona pela aquisição de uma linguagem global, códigos inter-
nacionais e formas de expressão contemporâneas, bem como forja práticas
adequadas aos ditames dominantes. Essas exigências têm levado muitos ar-
tistas a buscar a renovação, a entrada de novos olhares e a transcendência
dos particularismos locais, através do confronto entre obras, ideias e valores
diferentes, públicos diversificados e trabalhos colaborativos.
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 125

Nesse sentido, a mobilidade vem constituindo importante desafio a


ser enfrentado pelos artistas, interessados não só no enriquecimento pes-
soal e profissional, como também em sua inserção na comunidade artística
global. Alguns estudos sobre os movimentos transnacionais nas artes de-
monstram que o deslocamento nada tem de automaticamente benéfico e
que os efeitos sociais que produz são muito diversos ( Jeanpierre, 2008). A
distinção não é apenas econômica, remete a diversas combinações de capi-
tais, entre os quais o social e o espacial. Assim, o debate acerca da interna-
cionalização tem sido pautado pela ênfase nas competências que passam a
ser requeridas nesse novo contexto. A prática da mobilidade implica antes
de tudo capacidade de diálogo, de movimento, saber mover-se de um país
para outro, de uma cultura para outra, aproveitando o hibridismo das cul-
turas contemporâneas.
Em um mundo cada vez mais interconectado e interdependente, o ca-
pital social é um fator de vantagem competitiva, pois sem uma rede de rela-
ções pessoais torna-se difícil o trânsito em “geografias”. Do mesmo modo,
o capital espacial reúne um conjunto de recursos acumulados por um ator,
permitindo a ele tirar vantagem em função de sua estratégia de uso da di-
mensão espacial da sociedade (Lévy, 2003). Mas é forçoso constatar que
somente alguns poucos detêm as competências interculturais necessárias à
comunicação além das fronteiras nacionais, o que dificulta o pleno aprovei-
tamento das experiências migratórias.
Definida como o movimento de artistas através das fronteiras nacio-
nais (Staines, 2004), ou como “a habilidade de mover-se livre e facilmente
através das fronteiras para ganhar inspiração e estimular conexões criativas
inovadoras” (Selim, 2008:21), ou ainda como o deslocamento além-frontei-
ras, temporário e individual, de artistas e profissionais da cultura (EriCarts,
2005-2006), a mobilidade nas artes e na cultura tem sido utilizada como
objeto de política pública por Estados nacionais e unidades subnacionais,
referindo-se tanto ao deslocamento de pessoas, isto é, artistas, quanto ao
de objetos e conteúdos, como filmes, obras de arte, performances etc. Para
a União Europeia, dá-se a mobilidade transnacional quando pessoas viajam
para fora de seu país de residência a fim de atuar, aprender, criar, cooperar e
proceder a intercâmbios para efeitos profissionais.2

2
Ver edital DG EAC/09/2009 do Directorate-General for Education and Culture.
126 Política externa brasileira

Assim, o investimento em mobilidade, ao aumentar a chance de qua-


lificação dos artistas, propicia ao mesmo tempo o desenvolvimento das ar-
tes, a difusão cultural e a formação de novos públicos, o que conduz a uma
nova imagem do país, razão pela qual muitos governos passaram a inserir o
apoio à mobilidade em suas políticas culturais e externas.

Atuação internacional dos Estados no âmbito da cultura

A cultura desempenha papel de relevo no quadro atual das relações inter-


nacionais, favorecendo um maior intercâmbio entre os povos e, por conse-
guinte, um estreitamento dos vínculos entre os países. Nessa perspectiva, o
interesse crescente pela dimensão cultural das relações internacionais en-
contra respaldo teórico no pensamento de Joseph Nye, internacionalista
norte-americano que desenvolveu o conceito de soft power para designar
a habilidade de um país de atrair outros países pelas ideias, pelos valores e
pelas ideologias. Nye (2004) afirma que a natureza mutante da política in-
ternacional tornou as formas intangíveis de poder mais importantes, e que,
na era da informação global, ganhar corações e mentes é tão importante
quanto o uso da força, uma vez que “[u]m país que consegue legitimar seu
poder aos olhos dos demais encontra menor resistência para obter o que
deseja. Contando com uma cultura atraente, os outros se mostram mais
dispostos a acompanhá-lo”. Em outras palavras, no cenário internacional
contemporâneo, a capacidade de uma nação para ocupar espaços políti-
cos relevantes e beneficiar-se de oportunidades econômicas depende forte-
mente de sua habilidade em transmitir uma imagem positiva.
No entanto, a presença da dimensão cultural nas políticas externas das
nações é anterior à formulação de Nye. Os projetos de alcance internacio-
nal ganhavam motivações, metas e ferramentas para o exercício de atra-
ção de um país sobre o outro segundo a conjuntura histórica. No período
da expansão colonial, apesar de não estarem exercitando, stricto sensu, o soft
power, as nações colonizadoras buscavam influenciar diretamente as eli-
tes locais, difundindo seu sistema de valores e hábitos de comportamento.
Posteriormente, a projeção de uma imagem positiva do país era trabalhada
a partir da difusão da língua e de seu patrimônio cultural. Data desse perí-
odo a criação no exterior de centros culturais de países europeus, com base
em ações bilaterais. Muitos desses centros são ligados a agências nacionais
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 127

dedicadas a exportar a criação cultural, como o British Council (Reino Uni-


do), o Instituto Goethe (Alemanha) e a Afaa3 (França). O objetivo imedia-
to era favorecer uma estratégia complementar de penetração pacífica como
reforço à implantação política e econômica.
Depois da II Guerra Mundial, em uma atmosfera de busca de com-
preensão mútua entre os povos e de preservação da paz mundial, intensifi-
caram-se os vínculos culturais entre as nações. No âmbito multilateral, foi
criada a Unesco e, com ela, um foro internacional de diplomacia cultural.
Os diferentes países começaram a desenvolver simultaneamente sua polí-
tica cultural externa obedecendo a finalidades múltiplas. Embora a França
tenha instituído sua política cultural externa desde o século XIX, a In-
glaterra e a Itália no entre guerras, Canadá e Estados Unidos no pós-II
Guerra, Alemanha e Japão a partir da década de 1960, engajaram-se em
cooperação e intercâmbio internacionais, estabelecendo relações culturais
sistemáticas e organizadas com outros atores internacionais.4 É nesse con-
texto que surge a diplomacia cultural como um instrumento de política ex-
terna, voltada para a projeção além-fronteiras de uma imagem favorável do
país. Integrando a cultura a sua atuação internacional, a maioria dos países
passa a se servir de mecanismos de promoção cultural, como tradução de
livros; concessão de bolsas a artistas, estudantes, universitários; organização
de mostras, exposições e festivais de arte, para despertar afinidades e con-
quistar a opinião pública de outros Estados nacionais.
O Brasil não possui uma agência cultural de promoção internacional,
mas conta com o Departamento Cultural do Ministério das Relações Ex-
teriores, que desenvolve ações de promoção cultural, como festivais, apre-
sentações culturais, mostras de cinema e debates sobre assuntos diversos,
nas embaixadas e nos centros culturais brasileiros existentes em alguns paí-
ses. Na verdade, a emergência de uma diplomacia cultural brasileira data da
década de 1920, com a participação do Brasil no Instituto Internacional de
Cooperação Internacional da Sociedade das Nações, antecessor da Unesco
(Dumont, 2009; e Lapa, 2009). Nas décadas seguintes, o Brasil investiu na
difusão cultural como parte de uma estratégia voltada para a promoção do
país no exterior (Lima, 2006). Essa prática de organizar missões artísticas,

3
Criada em 1922, foi transformada em CulturesFrance e recentemente no Institut Français.
4
Ver Soares, 2008; Wyszomirski, Burgess e Peila, 2003; e Lapa, 2009.
128 Política externa brasileira

científicas e intelectuais, intercâmbios acadêmicos e disseminar informa-


ções na imprensa estrangeira vem se mantendo, tendo o Itamaraty papel
importante na imagem que se forma sobre o Brasil na cena internacional.
À medida que o conceito de cultura passou a incorporar a dimensão
econômica e a diplomacia cultural evoluiu para ser uma plataforma que
projeta também uma imagem positiva do mercado e das oportunidades de
comércio no setor das indústrias culturais, o campo cultural internacional
tornou-se cada vez mais competitivo, assistindo à reformulação da atua-
ção externa de muitos países, que passaram a comprometer recursos subs-
tanciais, reestruturar suas redes e desenvolver estratégias promocionais de
ponta. Tanto Estados nacionais quanto regiões e unidades subnacionais
de governos, como Quebec (Canadá), Rhône-Alpes (França), Catalunha
(Espanha) e Valônia (Bélgica), são atualmente importantes players das re-
lações internacionais culturais (Lecours, 2008).
O processo de descentralização do poder político e administrativo e
a globalização levaram muitos governos regionais ou subnacionais a de-
senvolver uma ação internacional. A agenda exterior desses governos não
centrais, conhecida como paradiplomacia, articula-se em torno de três
grandes dimensões (Lecours, 2008): econômica (atração de investimen-
tos e abertura de novos mercados); cooperação descentralizada (ajuda ao
desenvolvimento, intercâmbios culturais, cooperação educacional, técni-
ca, tecnológica e outras); e política (afirmação de identidade e autonomia
política). Na prática, a ação internacional de uma unidade subnacional se
enquadra em mais de uma dimensão. E considerando o papel cada vez
mais importante da cultura, esses governos têm acumulado experiências
expressivas no plano da paradiplomacia cultural.
Qualquer que seja a instância de governo e o país, as políticas inter-
nacionais na área de cultura, embora variáveis, apresentam um repertó-
rio de atividades externas mais ou menos comuns: intercâmbio de artistas,
pesquisadores e estudantes; circulação internacional de espetáculos e mos-
tras; promoção de seminários e conferências no exterior ou no local com
participantes internacionais; apoio ao estudo do idioma nacional no exte-
rior; apoio à infraestrutura de centros culturais no exterior; apoio a centros
de estudos nacionais no exterior; cooperação internacional; promoção co-
mercial de bens e serviços culturais e apoio a coproduções (Wyszomirski,
Burgess e Peila, 2003). Para efeito deste capítulo, vamos nos concentrar nas
atividades governamentais de apoio à mobilidade além-fronteiras de artis-
tas e profissionais da cultura.
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 129

A mobilidade de artistas como ferramenta estratégica


de política externa

Desde o início dos anos 1990, as práticas colaborativas se intensificaram


nas artes, tornando a mobilidade transcultural uma prática difundida no
ambiente artístico cultural. Ao mesmo tempo, tendências na cooperação
cultural internacional também contribuem para a inserção da mobilidade
artística na agenda pública de cultura, quais sejam:
• Diversidade cultural. A adoção da Convenção da Unesco sobre Prote-
ção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, em 2005,
reafirma as ligações entre cultura, desenvolvimento e diálogo intercul-
tural, e enfatiza a necessidade de cooperação internacional e de cons-
trução de capacidades, que são altamente relevantes para a prática da
mobilidade cultural.
• Dimensão econômica da cultura. O comércio de bens e serviços cul-
turais vem recebendo maior atenção nas políticas públicas, influen-
ciando fortemente as políticas culturais de apoio à mobilidade, que
passam a incorporar subvenções a segmentos da economia da cultu-
ra, como o apoio à participação setorial em feiras de livros e música,
por exemplo.
• Diplomacia cultural. O crescente entendimento de que a cultura é um
dos mais importantes vetores de projeção internacional de um povo
faz com que um número cada vez maior de países desenvolva estraté-
gias voltadas para a construção da imagem do país através da cultura.
• Redes sociais. O incremento dos movimentos transnacionais nas artes
tem intensificado e aprofundado os contatos e o intercâmbio entre or-
ganizações culturais e artistas, tornando as redes independentes e as
parcerias culturais estratégias exitosas de difusão cultural.
• Cooperação regional. A mobilidade tem sido vista como um instru-
mento de integração regional. A União Europeia criou uma agenda
para a cultura na qual o diálogo intercultural é tomado por base para
a integração regional.
Já no que tange aos objetivos políticos, os governos e suas agências de
financiamento apoiam a mobilidade artística com as seguintes perspectivas:
130 Política externa brasileira

a) política cultural; b) relações internacionais e política externa; c) promoção


do comércio exterior; e d) ajuda ao desenvolvimento (Staines, 2004).
As políticas culturais conduzidas pelos ministérios de cultura e demais
órgãos afins nas diversas instâncias governamentais compreendem progra-
mas de apoio à internacionalização de artistas cuja finalidade precípua é o
desenvolvimento das artes. Neles, as diversas formas de mobilidade servem
para promover o aperfeiçoamento de carreiras, o desenvolvimento de novas
competências e de talentos, bem como para a visibilidade e a competitivi-
dade do setor cultural na cena internacional.
A política externa, de responsabilidade dos ministérios de relações ex-
teriores, utiliza a diplomacia cultural para promover a imagem do país no
exterior através de obras de arte e atividades dos profissionais da cultura.
Em geral, seus programas de apoio à mobilidade estão voltados para zonas
geográficas específicas, por motivos políticos ou de alianças históricas. Um
bom exemplo é a Áustria, cujo programa de mobilidade direciona o apoio
prioritariamente aos países da Europa central, antigos participantes do Im-
pério Habsburgo (Wyszomirski, Burgess e Peila, 2003).
A promoção do comércio exterior impele a criação de estratégias de desen-
volvimento das exportações e de abertura de novos mercados. Geralmente
conduzidas por ministérios de comércio exterior ou por suas agências espe-
cializadas em promoção comercial, destinam-se a criar oportunidades para
importar e exportar trabalhos de artistas para novos mercados. Com o de-
senvolvimento das indústrias culturais, surgem novas formas de cooperação
internacional, como projetos de coprodução de obras audiovisuais, e o apoio
à mobilidade passa a incluir conteúdos culturais, como filmes, livros e es-
petáculos. A internacionalização do sistema de arte contemporânea leva
também os governos a desenvolverem estratégias de inserção dos artistas
nacionais nessa cartografia transcultural da arte globalizada. A proliferação
de bienais, feiras, mostras internacionais em diversos países do mundo é um
reflexo desse processo.
Finalmente, a ajuda internacional se insere no contexto da cooperação
técnica internacional para o desenvolvimento. O apoio à mobilidade inter-
nacional a ela atrelado tenciona promover o desenvolvimento local, através
de práticas criativas (Staines, 2004).
Um mesmo programa de apoio à mobilidade artística internacional
pode responder a múltiplos objetivos. Assim, apoiar a participação de um
cineasta no Festival Internacional de Cinema de Cannes, por exemplo, pode
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 131

atender não só ao objetivo do desenvolvimento das artes, como também ao


de diplomacia cultural ou mesmo de promoção das exportações. À guisa de
ilustração, o programa de apoio à mobilidade de artistas e de profissionais
da cultura da União Europeia tem como finalidade promover a diversi-
dade cultural, reduzir os desequilíbrios entre regiões e fomentar o diálogo
intercultural.
Quaisquer que sejam os objetivos perseguidos, os dispositivos de apoio
à mobilidade incluem, grosso modo: concessão de passagens aéreas para a
participação em festivais, mostras, feiras, seminários, pesquisa de repertó-
rio artístico etc.; bolsas de residência artística; bolsas de aperfeiçoamento
ou pesquisa; subvenções para a circulação de espetáculos; subvenções para
o desenvolvimento de mercados; subvenções para a participação em re-
des e financiamento de projetos de coprodução. Esses dispositivos podem
ser implementados por estruturas governamentais e não governamentais, a
exemplo das fundações privadas internacionais como a Fundação Ford. No
Brasil, vale destacar que a primeira instituição a apoiar a mobilidade artís-
tica foi a Fundação Iberê Camargo, entidade privada que concede anual-
mente bolsas de residência artística a brasileiros.
Em geral, o que motiva os governos a disponibilizar mecanismos de
apoio à mobilidade artística são, em ordem de importância, a diplomacia
cultural, a abertura de mercado e o desenvolvimento das artes, enquanto
as instituições privadas são motivadas pelo desenvolvimento do artista, a
abertura de mercado e a diplomacia cultural. As fundações e instituições
de cultura, quando organizam esses dispositivos, visam ao desenvolvimento
das artes, ou seja, à construção de capacidades (Staines, 2004).
Nas estruturas governamentais, o apoio à mobilidade artística inter-
nacional é propiciado tanto pelo Ministério da Cultura quanto pelo de Re-
lações Exteriores. Há a tendência de buscar uma melhor coordenação entre
os diferentes órgãos públicos, o que fez surgirem acordos interministeriais
para atuação conjunta. A Holanda é um bom exemplo dessa parceria; seus
ministérios de Assuntos Estrangeiros e de Educação, Cultura e Esporte
gerenciam conjuntamente um orçamento de cooperação cultural interna-
cional. Na Austrália, o Conselho de Cultura (AICC), responsável pela pro-
moção da cultura australiana no mundo, é composto pelos ministérios de
Relações Internacionais e o de Cultura, contribuindo o primeiro com re-
cursos financeiros e o segundo com expertise. Na França, a agência de pro-
moção da cultura francesa no mundo, a CulturesFrance, recebia orçamento
de ambos os ministérios.
132 Política externa brasileira

As unidades subnacionais de governo, como prefeituras, províncias,


regiões ou estados federados, têm tido papel cada vez mais preponderan-
te nas relações internacionais e, no âmbito da cultura, vêm desenvolvendo
políticas de promoção da mobilidade artística internacional, como fazem
as cidades de Londres (Inglaterra), Cork (Irlanda) e Quebec (Canadá).
As políticas e os programas de apoio à mobilidade dos diferentes países
e unidades subnacionais são muitas vezes desenvolvidos mediante acor-
dos bilaterais ou multilaterais e têm como público-alvo os artistas e/ou
profissionais da cultura nacionais ou radicados no país (outgoing measures).
Menos frequentes são os voltados para o apoio à vinda de artistas e profis-
sionais estrangeiros (incoming measures) (EriCarts, 2008).
Do ponto de vista dos beneficiários dos programas de apoio à mobili-
dade, uma pesquisa do EriCarts (2008) levantou as seguintes motivações de
deslocamento: colaborar com artistas de outros países; dialogar com outras
culturas; desafiar suas suposições e práticas; dispor de tempo ininterrupto
para trabalhar e recarregar a bateria da criatividade; ter acesso à educação e
a programas de treinamento de qualidade; estabelecer contatos profissionais
e criativos; atingir novos públicos e ingressar em novos mercados para se
apresentar e distribuir obras; obter visibilidade e crítica no exterior de ma-
neira a aumentar as chances de obter visibilidade e reconhecimento interno
e ter acesso a uma infraestrutura inexistente em seu local de residência.
Os movimentos transnacionais de artistas e profissionais da cultu-
ra são realizados com diferentes formatos e conteúdos, compreendendo
desde residência artística a participação em festivais, mostras, seminários,
feiras setoriais, realização de turnês e produção de obras artísticas. Na prá-
tica, muitos programas de mobilidade não diferenciam seus apoios segun-
do a pluralidade de modos de concretizar os diversos tipos de movimentos
transnacionais, muitas vezes combinando-os.

O apoio à mobilidade artística internacional na Bahia

Seguindo a tendência contemporânea de utilizar a cultura como importan-


te vetor de projeção internacional, o governo do estado da Bahia, através de
sua Secretaria de Cultura, vem desenvolvendo uma política internacional
voltada para a criação de uma nova imagem da Bahia, fundamentada na
diversidade de suas expressões culturais, rompendo com o modelo anterior,
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 133

que subordinava a cultura aos interesses do turismo e que promovia a ima-


gem do estado como una e única (Rubim, 2010).
A Bahia, apesar de gozar de reconhecido prestígio no exterior, sen-
do considerada um lugar único em termos culturais, tem sua identidade
articulada em torno de sua herança africana, da tradição, da negritude e
das raízes. Ao longo dos últimos decênios, o discurso oficial apropriou-se
de uma narrativa identitária produzida por uma geração de artistas baia-
nos que enfatizavam uma ampla gama de estereótipos — lugar propenso à
alegria, à preguiça, ao lúdico-divino-profano, às festividades populares —,
não levando em consideração a multiplicidade de identidades possíveis
que caracterizam a modernidade e, sobretudo, as inovações produzidas
pela contemporaneidade. Esse posicionamento descartou o diálogo inter-
cultural, resultando em um notável isolamento nacional e internacional da
Bahia. Essa identidade monolítica utilizada como estratégia de marketing
para aumentar a atratividade territorial do estado deixou de fora as dinâ-
micas culturais contemporâneas, solapando o intercâmbio, a inovação e a
criatividade, com grande prejuízo para a atualização necessária da cultura
na Bahia (Rubim, 2010).
Assim, buscando demarcar uma ruptura com a atuação/discurso an-
terior, o novo governo impôs-se como desafio a inserção internacional da
Bahia a partir da construção de uma nova imagem: a de um centro de
vitalidade e diversidade culturais que respeita as identidades e a intercul-
turalidade. Essa nova orientação foi ao encontro das atuais diretrizes do
Ministério da Cultura e do Departamento Cultural do Itamaraty, ge-
rando, inclusive, complementaridades. A Secretaria de Cultura mantém
relações estreitas com essas instituições, que enfatizam a promoção cul-
tural brasileira nos níveis simbólico e econômico, assim como a defesa
da diversidade cultural, a fim de combater as assimetrias do processo de
globalização (Lapa, 2009).
Partindo do pressuposto de que o diálogo intercultural é o principal
instrumento para impulsionar a renovação da produção cultural da Bahia
e a projeção da nova “marca Bahia”, bem como para afirmar identidades e
reforçar laços culturais com outros povos, o governo estadual colocou à
disposição do público, em 2007, um dispositivo então inédito no país de
apoio à mobilidade artística internacional: o Programa Artistas Residentes
(PAR). A proliferação de políticas transculturais de convites a artistas para
passarem algum tempo em centros de residência artística desde os anos
134 Política externa brasileira

1970 denota a importância desse mecanismo facilitador da mobilidade


tanto para o desenvolvimento das artes quanto para a diplomacia cultural.
Consideradas também novas unidades culturais, as residências artísticas
correspondem à necessidade de artistas e profissionais da cultura de expe-
rimentarem o mundo e seus muitos ambientes e culturas; se conectarem
com seus pares em locais distantes; realizarem pesquisa e projetos in loco;
fazerem parte temporariamente de uma comunidade criativa e multidisci-
plinar; se beneficiarem de uma oportunidade de troca de ideias e conheci-
mentos e acessarem tecnologias para transformar os modos de produção e
interação com seus trabalhos.
Focadas na criatividade individual, essas novas estruturas transnacio-
nais se autodefinem como laboratórios de arte, equipados com maquiná-
rio, estúdios, técnicas, e oferecendo oportunidades de tentativa e erro no
fazer artístico. A partir dessas experiências de movimento transnacional,
o artista cruza não só as fronteiras culturais, como também as fronteiras
entre a arte e a tecnologia e entre a arte e a ciência. Assim, o Programa
Artistas Residentes da Secretaria de Cultura da Bahia se insere na polí-
tica estadual de relações internacionais para projetar uma nova imagem
da Bahia no exterior como centro de diversidade e dinamismo culturais e
para reforçar vínculos culturais e identitários com outros povos. Através
da promoção da mobilidade, o programa espera contribuir para o desen-
volvimento das artes — através da renovação da cena cultural local e da
difusão da produção contemporânea de artistas com atuação em grandes
centros internacionais — e também para abrir oportunidades de negócios
e de participação na cena internacional.
Utilizando intercâmbios regulares, o programa consiste na disponibili-
zação dos meios necessários para que artistas baianos possam fazer “residên-
cia” no exterior e artistas estrangeiros, na Bahia, bem como para curadores,
jornalistas, diretores de instituições culturais, críticos e agentes de mercado
internacionais conhecerem in loco a produção cultural do estado. Contem-
pla todas as linguagens artísticas e os mais variados setores da ação cultu-
ral. Esse programa institucional que permeia a ação sistêmica da secretaria
e dos órgãos a ela vinculados é composto de diferentes dispositivos:
• Chamada Pública de Residências Artísticas do Fundo de Cultura do Es-
tado da Bahia. Disponibiliza recursos para que artistas e profissionais
da cultura realizem projetos de residência artística no exterior. Tais
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 135

recursos cobrem as despesas de viagem, como hospedagem, alimenta-


ção, transporte, passagem aérea e visto. Lançado sob a forma de edital
e com um único prazo anual para inscrições, desde agosto de 2009 o
apoio passou a ser concedido via chamada pública e com quatro edi-
ções anuais, uma a cada trimestre. O formulário de inscrição é mais
simplificado do que os normalmente utilizados pelo Fundo de Cultu-
ra, devendo o proponente apresentar currículo, orçamento, exposição
de motivo e carta-convite. O benefício concedido é pago integralmen-
te antes da viagem. A chamada está aberta a artistas de qualquer lin-
guagem, bem como a profissionais da cultura. Não existe limitação
geográfica, podendo o proponente viajar para qualquer país. O benefi-
ciário tem de ser baiano ou radicado na Bahia há três anos.
• Prêmio do Salão da Bahia. Em 2007, foi instituído o Prêmio de Resi-
dência Artística do Salão da Bahia, organizado pelo Museu de Arte
Moderna da Bahia. A cada edição, dois artistas participantes do salão
e residentes no estado há mais de três anos são premiados com uma
bolsa de residência artística no exterior.5 O salão foi substituído em
2009 pela Bienal de Artes Visuais da Bahia, que deverá ter em sua
primeira edição prêmios de residência artística institucionalizados.
• Residência Mostra Especial. Visando a melhorar a visibilidade dos artis-
tas locais, consiste no acolhimento, por aproximadamente uma sema-
na, de curadores, diretores de instituições culturais, críticos e agentes
de mercado internacionais para conhecerem in loco a produção baiana.
É realizado através de parcerias institucionais.
• Residências de Artistas Estrangeiros na Bahia. Realizado através de par-
cerias institucionais, consiste no acolhimento de artistas estrangeiros
nos equipamentos culturais do estado. Além do Museu de Arte Mo-
derna, da Fundação Cultural e da Fundação Pedro Calmon, a Fun-
dação Sacatar, residência artística privada sediada em Itaparica, já
recebeu artistas estrangeiros em residência sob a égide desse progra-
ma. Além do apoio às residências artísticas, a Secretaria de Cultura
e suas vinculadas disponibilizam outros dispositivos de promoção da
mobilidade artística.

5
Há também um prêmio de residência no Brasil concedido pela Fundação Álvaro Penteado
(Faap), de São Paulo.
136 Política externa brasileira

• Edital de Intercâmbio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia. Visando


a apoiar a participação em eventos culturais internacionais, esse dispo-
sitivo concede recursos financeiros unicamente para o custeio de des-
pesas com transporte de artistas, técnicos e estudiosos convidados a
participar de eventos culturais promovidos por instituições estrangeiras
de reconhecido mérito, com a finalidade de: a) apresentar trabalho pró-
prio; b) frequentar cursos de capacitação de profissionais de cultura; c)
enriquecer o repertório artístico; e d) participar de residência artística.
Esse instrumento inspira-se no Programa de Intercâmbio e Difusão
Cultural do Ministério da Cultura, cujo edital disponibiliza recursos fi-
nanceiros para viagens de artistas, técnicos e estudiosos da área cultural
convidados a participar de eventos fora do seu local de residência.
• Calendário de Apoio da Fundação Cultural. Através desse dispositivo, as
unidades setoriais de música, dança, teatro e audiovisual da institui-
ção concedem passagens internacionais para que artistas participem
de festivais, mostras e eventos culturais no exterior. Novos mecanis-
mos de apoio à mobilidade estão sendo desenvolvidos na Secretaria
de Cultura, visando à promoção das indústrias culturais e unidades
econômicas culturais do estado. Esses novos mecanismos têm por ob-
jetivo gerar capacidade exportadora em setores culturais estratégicos
como o da música e do audiovisual. Parcerias com o governo federal
vêm permitindo ampliar as possibilidades de apoio à mobilidade in-
ternacional do setor cultural. Além de atuar em complementaridade
às ações de promoção da cultura brasileira no mundo do Ministério
da Cultura e do Departamento Cultural do Itamaraty, a Secretaria de
Cultura desenvolve ainda parceria com a Apex Brasil — agência bra-
sileira de promoção de exportação e investimentos, ligada ao Minis-
tério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC),
para a promoção da imagem do Brasil e a inserção no mercado inter-
nacional de bens e serviços culturais brasileiros.

A efetividade do programa

Os organismos que apresentam seus programas de mobilidade preocu-


pam-se geralmente em mostrar o número de bolsas concedidas, o mon-
tante alocado, o local de destino, a linguagem artística etc., e dificilmente
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 137

procuram analisar a efetividade de suas ações. Cumpre constatar que não


existem instrumentos disponíveis para medir ou avaliar o livre movimento
de pessoas e produtos no setor cultural (Audeoud, 2002) e que os dados le-
vantados na maioria dos países não são sistematizados, o que dificulta, in-
clusive, eventuais estudos comparados. Para avaliar seus programas, muitos
administradores solicitam que os artistas, ao retornarem, apresentem suas
experiências e forneçam informações sobre os resultados obtidos, o núme-
ro de contatos estabelecidos, os potenciais desdobramentos etc.
Algumas pesquisas destinadas a analisar as experiências de mobili-
dade de curto prazo utilizam como medida os “ganhos em termos de ca-
pital intelectual”. Tomam de empréstimo dos estudos sobre nomadismo o
indicador de estoque de conhecimento, resultante dos encontros transcul-
turais, fazendo uma clara correlação entre nomadismo/mobilidade e cria-
tividade artística, produtividade, excelência/desenvolvimento profissional.
O problema é como medir o impacto da mobilidade sobre a habilidade
dos artistas de contribuir para o estoque intangível de ativos do setor cul-
tural dos países de origem e de destino. Assim, tenta-se comprovar que a
mobilidade artística internacional contribui para a formação e o desenvol-
vimento individual e coletivo dos envolvidos, sem, no entanto, se ter cri-
térios objetivos para medir o real impacto da ação. Resta, ainda, construir
um sistema de avaliação para captar o fluxo, a qualidade e os resultados da
mobilidade (EriCarts, 2005-2006 e 2008).
Para medir o impacto do Programa Artistas Residentes (PAR) so-
bre a renovação da produção artística local, seria preciso verificar quanto
a experiência de residência artística contribuiu para o desenvolvimento
profissional e para mudanças na orientação artística dos seus beneficia-
dos. Com apenas três anos de funcionamento, o programa já beneficiou
cerca de 20 artistas, metade dos quais do segmento de artes visuais. Em-
bora o programa baiano não disponha ainda de nenhum estudo analítico
ou pesquisa empírica para avaliar seus resultados, conta com as impres-
sões dos beneficiados sobre as suas experiências de residência artística.
Transmitidas durante apresentações públicas, essas impressões enfatizam
a possibilidade de construção de parcerias, redes, novos públicos para as
obras dos artistas, contatos com instituições, galerias e outros artistas,
bem como novos trabalhos colaborativos. Muitos falam da influência de
outras culturas sobre seu trabalho: “o distanciamento do lugar de origem
138 Política externa brasileira

gera questões que se refletem na obra”6 e “em outros espaços, a comida, o


cheiro, a arquitetura, tudo faz ampliar o olhar do artista”.7 Para Staines
(2004), um bom programa de apoio à mobilidade artística internacional
deve reunir algumas características:
• objetivo de desenvolvimento — a finalidade primeira do programa deve
ser o desenvolvimento individual e profissional dos beneficiados;
• transparência — o programa deve ser muito divulgado, aberto a todas
as linguagens, com prazos de inscrição e procedimentos seletivos co-
nhecidos por todos;
• profissional — o processo seletivo deve ser respeitado por seu público-
alvo e por todo o setor cultural, com critérios de seleção públicos e co-
missão de seleção composta também por artistas;
• orientado ao processo/projeto — o programa deve ser centrado no artista
e no processo criativo;
• aberto, receptivo, flexível — o programa deve oferecer ao artista um
grau de autonomia que lhe permita propor aonde e quando ir, como
organizar sua visita e o que fazer. Para programas com uma política de
inscrição aberta, mas com um único prazo anual, é importante conce-
der aos proponentes a possibilidade de mudança do projeto;
• aprender com a experiência — o programa deve proporcionar aprendi-
zagem a todos os agentes envolvidos: artistas, anfitriões, financiado-
res, bem como buscar alimentar a aprendizagem numa perspectiva de
desenvolvimento.
Analisando o PAR à luz das características apresentadas, observa-se
que ele atende ao objetivo de desenvolvimento das artes, pois sua finalida-
de é a renovação da cena artística local, através do aperfeiçoamento indivi-
dual dos artistas e profissionais da cultura. Do mesmo modo, o programa
se centra no processo criativo e é composto de um sistema profissional de
seleção pública. No que diz respeito à transparência, no entanto, peca pela

6
Depoimento de Caetano Dias, artista visual baiano que já participou de outros quatro pro-
gramas de residência além do PAR.
7
Depoimento de Gaio, artista visual baiano que já se beneficiou de duas bolsas de residên-
cia através do PAR.
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 139

insuficiência de divulgação, apesar de ser aberto a todas as linguagens e ter


procedimentos seletivos claros. Muitos desconhecem o dispositivo, princi-
palmente o público do interior do estado. Mesmo sem direcionar o destino,
o tipo de projeto ou o período de realização, não logra ser flexível o bastante
para permitir mudanças no projeto ao longo do processo de seleção. A pers-
pectiva de aprendizagem deve ainda ser aprimorada, sobretudo no que diz
respeito ao compartilhamento das experiências vividas pelos artistas. Como
verificado na maioria das pesquisas realizadas sobre o assunto, faltam infor-
mações sobre as oportunidades de residência no exterior. Ainda que se te-
nha disponibilizado no site da secretaria um manual de residências artísticas
contendo informações sobre o funcionamento das residências e links para os
principais programas no mundo, muitos reclamam da dificuldade de conta-
tar instituições estrangeiras e obter destas carta-convite para acolhimento,
documento indispensável para o recebimento do apoio.

Limitações e desafios do apoio à mobilidade artística tendo


como pano de fundo a realidade baiana

Em que pese ao barateamento dos meios de transporte e comunicação no


mundo e a compreensão consensual sobre a importância do livre movi-
mento de pessoas (artistas, operadores culturais, jornalistas, trabalhadores
da mídia), bens (obras de arte, bens culturais) e serviços (de mídia, arte e
cultura), são muitos os obstáculos à prática da mobilidade artística. Têm
sido realizados esforços para superar esse desafio, porém, mesmo nos paí-
ses onde a mobilidade nas artes e no campo cultural está inserida tanto na
prática artística quanto na agenda das políticas públicas, permanecem al-
gumas limitações importantes (EriCarts, 2008):
• insuficiência de recursos financeiros: existem poucos fundos de apoio à
mobilidade, e os existentes muitas vezes não cobrem todas as despe-
sas requeridas pelos artistas para realizarem seus deslocamentos. Por
outro lado, grande parte dos financiamentos destina-se a artistas in-
dividuais, faltando, portanto, apoio à mobilidade de grupos artísticos
e coletivos de arte;
• burocracia: o excesso de trâmites legais, procedimentos complexos, a
falta de flexibilidade para eventuais mudanças no projeto dificultam o
acesso à mobilidade;
140 Política externa brasileira

• inadequação do dispositivo de apoio: muitos dispositivos abrem uma


única inscrição no ano, em período nem sempre coincidente com o
prazo de inscrição dos centros de residência. O prazo de acesso ao re-
curso é muito longo e os apoios existentes são voltados unicamente
para projetos de curto prazo. Há ainda o problema dos limites de con-
cessão de apoio a um mesmo proponente em um mesmo ano;
• insuficiência de informações sobre oportunidades de mobilidade: faltam
informações sobre os dispositivos existentes, bem como sobre insti-
tuições que oferecem programas de residência. As informações dispo-
níveis na internet muitas vezes não são de fácil acesso, sendo os sites
pouco amigáveis;
• barreiras linguísticas: a mobilidade precisa do multilinguismo, assim, a
falta de competências linguísticas limita o acesso a informações sobre
programas de apoio e sobre residências, bem como sobre possibilida-
des de deslocamento;
• falta de competência intercultural: muitos artistas não sabem como se
mover nem espacialmente, nem entre culturas diferentes. Poucos são
aqueles que podem ou sabem habitar a exterritorialidade ( Jeanpierre,
2008). Há a necessidade de preparação não só linguística, como tam-
bém para a mobilidade;
• insuficiência de capital social: a falta de relações sociais e de redes difi-
culta o acesso a programas de residências no exterior. Muitos artistas
têm dificuldades para estabelecer contatos, requisito para a construção
de parcerias e projetos de cooperação;
• formalidades de visto para artistas: muitos artistas não preenchem os
requisitos exigidos pelos diversos países para obtenção de vistos de
permanência no país de destino.
No que diz respeito aos recursos financeiros, o programa de mobilida-
de da Secretaria de Cultura disponibiliza, através de chamada pública, até
R$ 15 mil para as residências artísticas, o equivalente aos montantes prati-
cados por programas similares na França, como o CulturesFrance.8 Os dis-

8
Agência de promoção cultural francesa criada pelos ministérios de Assuntos Estrangeiros
e Cultural, e sucessora da Affa.
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 141

positivos do programa não contemplam todos os projetos de mobilidade,


principalmente aqueles voltados para a formação e de duração superior a
um ano. E também não cobrem todos os custos do projeto, como transpor-
te de obras e material de produção.
No que concerne à burocracia, apesar dos avanços em termos de sim-
plificação de procedimentos administrativos, há atrasos no repasse dos re-
cursos, o que faz alguns candidatos desistirem da bolsa, e também falta
de flexibilidade para eventuais mudanças e adequações do projeto. Inicial-
mente lançada uma única vez por ano, a chamada pública de residências
artísticas dispõe agora de quatro edições anuais. A mudança foi realizada
para atender às demandas dos proponentes, que recebem convites em vá-
rios períodos do ano.
Em que pese à divulgação semanal pelo Plugcultura (newsletter ele-
trônica da Secretaria de Cultura) de informações sobre oportunidades de
residências artísticas e links para centros de residência no exterior, os po-
tenciais beneficiários do programa reclamam da dificuldade de identificar
instituições e obter convites. Nesse sentido, o aperfeiçoamento de informa-
ções sobre a disponibilidade de fundos e de oportunidades de mobilidade
é apontado pelo público-alvo como o mais premente. Essas informações
devem, portanto, incluir não só outros fundos disponíveis, como também
contatos de instituições culturais com projetos de residências.
Outro obstáculo importante à mobilidade na Bahia é a falta de com-
petência em termos linguísticos e de capital social e espacial. Seria necessá-
ria uma maior articulação com as instituições de ensino das artes para que
estas incluíssem no currículo a aprendizagem de idiomas estrangeiros e a
preparação cultural para a mobilidade e o intercâmbio internacionais. Ar-
ticulações com escolas particulares de línguas estrangeiras locais para mo-
delagem de cursos específicos, bem como com escolas de arte, centros de
residências e instituições culturais para acolhimento de artistas estrangei-
ros são algumas abordagens possíveis para a questão.9
Para a consolidação do programa, falta o aperfeiçoamento de alguns
dos seus dispositivos. Enquanto o apoio aos artistas e/ou profissionais da
cultura baianos ou radicados no estado é sistematizado e contínuo (outgoing
measures), o apoio à vinda de artistas e profissionais estrangeiros (incoming

9
Algumas dessas sugestões são encontradas em Jobbé-Duval (2008).
142 Política externa brasileira

measures) ainda é intermitente, sujeito às contingências orçamentárias e à


aprovação, caso a caso, por parte da Procuradoria do Estado.
Até o momento, 50% das solicitações vêm do segmento de artes vi-
suais, o que leva a inferir que a prática da mobilidade não está ainda cra-
vada nos outros segmentos artísticos. Outros setores culturais, como o de
moda e arquitetura, carecem de incentivos para participarem do programa.
Do mesmo modo, 80% das escolhas de destino recaem em países europeus.
A comunidade artística baiana desconhece o estado da arte da produção
contemporânea nos países da América Latina, da África e da Ásia. A partir
da Bienal de Artes Visuais da Bahia, espera-se promover o intercâmbio en-
tre as criações contemporâneas do eixo Sul-Sul.
Inicialmente focado nos indivíduos, o programa deve incorporar
ainda este ano dispositivos de apoio à mobilidade de conteúdos cultu-
rais, como fi lmes e músicas, bem como de jovens para formação de curto
prazo no exterior. Resta ainda apoio para as coproduções, a tradução de
livros e ações de formação de longo prazo. Para garantir a efetividade e
o aperfeiçoamento do programa no tempo, faz-se oportuno desenvolver
um sistema de monitoramento e avaliação, bem como indicadores con-
fiáveis, que possam medir a renovação da produção local e a imagem da
Bahia no exterior.

Considerações finais

A implementação de um programa de apoio à mobilidade nas artes resulta


em benefícios imediatos e de longo prazo para a sociedade. Pela ótica das
políticas de relações internacionais, a mobilidade artística contribui para
a projeção da imagem de um país ou de uma unidade subnacional, para a
promoção da diversidade cultural, do diálogo intercultural e da cooperação
entre os povos. Além de provocar uma dinâmica de inovação no local, de-
sempenha papel fundamental no desenvolvimento individual de artistas e
profissionais da cultura e na formação de novos talentos. No contexto de
crescimento da economia da cultura, a circulação de artistas e conteúdos
culturais, a participação em feiras setoriais ou a coprodução de obras artís-
ticas contribuem para uma maior visibilidade e competitividade das indús-
trias culturais no mercado internacional.
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 143

O Programa Artistas Residentes da Secretaria de Cultura do Estado


da Bahia tem o objetivo de contribuir para a renovação da criação artís-
tica local, tornando a Bahia um hot spot de diversidade e vitalidade cul-
turais. Vai ao encontro das diretrizes do governo federal, que vê a cultura
como um vetor de projeção internacional do país, de vínculos identitários
e de formação de parcerias e alianças estratégicas. Apesar de a iniciativa
ser ainda inédita no país, o apoio à mobilidade já vem sendo utilizado por
vários Estados nacionais e unidades subnacionais como instrumento de
promoção internacional.
As residências artísticas, o tipo mais corrente de mobilidade nas artes,
propiciam contatos com o mundo e seus vários ambientes e culturas, e a
colaboração entre iguais. Têm por filosofia o cruzamento tanto de frontei-
ras culturais quanto de fronteiras entre a arte e a tecnologia e entre a arte e
a ciência. Em geral, enriquecem o diálogo intercultural em detrimento dos
particularismos locais, caracterizando-se, assim, como importante motor
de criatividade e inovação.
Malgrado os avanços obtidos nos três anos de funcionamento, o pro-
grama prescinde ainda de intervenções complementares, aperfeiçoamentos
e investimentos estruturantes para consolidar-se. Como representa um in-
vestimento de longo prazo, que se integra ao processo de desenvolvimen-
to, na medida em que gera conhecimentos, recursos e sustentabilidade, sua
efetividade não pode ainda ser comprovada.
Ademais, vale lembrar que, para que uma política de projeção interna-
cional através da cultura seja consequente, deve se apoiar em políticas cul-
turais que articulem desenvolvimento individual, formação de públicos e
promoção da cultura. Deve contar também com o apoio e a parceria de um
conjunto de atores públicos, privados e não governamentais. A projeção da
imagem externa de um país deve ser o reflexo de sua atuação interna e das
identidades locais.
Dado o papel da mobilidade artística internacional, cabe ao governo
do estado abraçar a oportunidade que se apresenta com a política inter-
nacional da Secretaria de Cultura, reorientando o seu modelo de inserção
internacional e promovendo a Bahia nas suas facetas econômica, social e
turística, sob o signo da cultura. Embora em fase incipiente de análise, o
programa de apoio à mobilidade da Bahia apresenta alguns elementos de
contexto que podem servir de ponto de partida para uma reflexão mais
profunda sobre a temática no país.
144 Política externa brasileira

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PARTE III

Educação
5.
Política externa e educação: confluências
e perspectivas no marco da integração
regional*

Leticia Pinheiro
Gregory Beshara

Na acepção imediata, a educação é concebida como processo de aquisição de


conhecimento. As informações recebidas, assimiladas e memorizadas, por
sua vez, compõem o universo mental por meio do qual cada indivíduo deco-
difica, percebe e sente a realidade. Produto da justaposição dos entendimen-
tos subjetivos e das referências compartilhadas, o conhecimento permite a
apropriação dos fatos, cuja diversidade ontológica é o limite das possíveis
formas de compreensão. Em reflexos concretos, a concepção é o estágio an-
terior à ação: o quadro cognitivo que orienta as decisões e comportamentos.
Os sistemas educacionais — estruturas privilegiadas na transmissão do co-
nhecimento — emergem, pois, como espaços centrais na formulação e dis-
seminação de narrativas e versões que influem, decisivamente, em como se
interpreta a realidade e, por conseguinte, se age.
Com base nessa perspectiva, a educação é, necessariamente, foro de
ampla incidência política. Quando falamos em educação pensamos, entre

* Agradecemos a todos aqueles que colaboraram na realização desta pesquisa, contribuindo com
suas pesquisas, seus comentários e depoimentos, em especial a Maria Regina Soares de Lima
(Iesp/Uerj), Monica Hirst (UTDT), José Flavio Sombra Saraiva (UnB), Alessandro Candeas
(MRE), Daniel Lopes (MRE), Milene Reis (MEC), Magda Coelho (MEC), Ana Clara Abreu
(PUC-Rio), Tatiana Santos Oliveira (Iesp/Uerj) e Sol Marques (PUC-Rio). Agradecemos tam-
bém aos alunos do Curso de Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio, que, nas dis-
ciplinas Tópicos de relações internacionais e Atores e agendas da política externa brasileira, entre
2006 e 2010, nos ajudaram a refletir sobre a nova configuração da arena de formulação da políti-
ca externa brasileira. Dedicamos a eles este capítulo, na certeza de que nele reconhecerão alguns
dos debates travados em sala de aula e de que continuarão a contribuir para o aprofundamento
dessa reflexão, assim como para o aprimoramento dessa prática. As entrevistas foram realizadas
graças ao apoio do CNPq, por meio da rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas
e Atores da Política Externa, coordenada por Leticia Pinheiro.
150 Política externa brasileira

outras coisas, em sua função de promover cultura e valores comuns como


fonte de coesão e integração social, assim como em sua condição de su-
porte essencial na construção e consolidação do Estado-nação (Durkheim,
1977). A essas funções e características em geral associamos a existência
de uma língua comum como ferramenta de elaboração, compartilhamen-
to e transmissão de uma mesma história e de um projeto de construção
e preservação de uma identidade. Sabemos também que, no âmbito da
educação, alguns domínios são mais afeitos às funções de construção e de
coesão de uma comunidade — como a história, a geografia, a literatura, a
música — e outros menos — como a matemática, a física, a biologia —,
ainda que igualmente nesses campos a produção, o compartilhamento de
conceitos e a transmissão de conhecimento também se beneficiem de um
idioma e de uma cultura comum para a transmissão e a troca de informa-
ções. Assim, sabemos que o ensino da história cumpre papel central na
construção e popularização dos mitos nacionais, na definição dos marcos
da trajetória política, social e econômica de um país e na construção de
uma identidade comum. Temos ciência de que o ensino da literatura e da
música fazem parte da cultura que constitui e renova as características na-
cionais; de que o ensino da geografia é um dos instrumentos de construção
e naturalização da soberania territorial, das fronteiras e do valor político
dos recursos naturais. Enfim, não temos dúvidas de que a educação é um
dos instrumentos de construção e consolidação do Estado-nação.
Já quando falamos de política externa, nos reportamos a um conjunto
de ações e decisões de um determinado Estado em relação a outros Esta-
dos ou a outros atores que formam o sistema ou a sociedade internacional.
Dessa forma, concebemos a política externa como uma política pública,
uma ação formulada e implementada pelas instituições que constituem o
Estado, tal como as demais políticas governamentais. Mas a política exter-
na também pode ser vista como “um instrumento de construção de identi-
dade que ergue fronteiras entre o que se é e o que é o outro, definindo neste
processo os interesses nacionais” (Messari, 2001:227). Não por coincidên-
cia, portanto, tal como a educação, a política externa é também central no
processo de construção e defesa de uma identidade que ajuda a conformar
o Estado-nação.
Mas se isso é correto quando nos reportamos aos processos de for-
mação e consolidação do Estado, não seria igualmente correto supor um
relaxamento dessas funções à medida que o Estado se fortalece? Ou, por
Política externa e educação 151

outra, se atualmente a globalização e a internacionalização impactam for-


temente os traços constitutivos e característicos do Estado, levando alguns
a já conceberem a existência de diferentes tipos de comunidades políticas,
deixando para trás a clássica definição de Max Weber,1 qual seria o pa-
pel da educação e da política externa na atualidade? Afinal, os vetores que
impactam as características do Estado nacional moderno inevitavelmen-
te impactam também suas políticas públicas, quer a política externa, quer
aquelas voltadas para o campo da educação.2 Assim, muitos autores advo-
gam que o sistema nacional de educação não tem futuro no mundo glo-
balizado (Donald, 1992). Há, inclusive, quem afirme que os governos não
podem mais usar a educação para promover a coesão social e transmitir a
cultura nacional. Por outro lado, há também quem advogue posição opos-
ta ao defender que, justamente em virtude da transformação do capital, das
mercadorias e das ideias em globais, os governos devem considerar a educa-
ção como o mais eficaz instrumento de política nacional (Green, 2006).
Da mesma forma, encontramos tanto os que reafirmam a centralidade
dos métodos diplomáticos tradicionais para o exercício da política externa,
entendida como a defesa dos interesses nacionais, quanto os que postulam
sua insuficiência ou mesmo sua obsolescência (Henrikson, 2005).
Neste capítulo, não endossamos completamente nem a primeira
nem a segunda posição, embora concordemos com alguns aspectos de
ambas, no que se refere tanto ao tema da educação quanto ao exercício
da política externa. Partimos do suposto de que os governos, em nome
de seus Estados, ainda detêm poder para determinar os respectivos sis-
temas nacionais de educação e de que a diplomacia tradicional exercida
pelos ministérios das relações exteriores é fundamental para a formula-
ção e implementação da política externa dos Estados. Mas também con-
cordamos que, a cada dia, torna-se mais imprescindível a incorporação

1
Conforme Weber, “uma comunidade cuja ação social é dirigida para a subordinação de um
território e da conduta das pessoas dentro dele à dominação ordeira por parte dos participan-
tes, através da disposição de recorrer à força física, incluindo normalmente a força das armas”
(1978:901, apud Oliveira, 1999).
2
Entre esses tantos elementos, podemos citar as influências neoliberais e seus efeitos sobre o
papel de liderança do Estado na regulação da economia e da sociedade; o fortalecimento de
organizações políticas regionais e supranacionais, reduzindo os poderes do aparato estatal
em determinadas áreas; os efeitos que a diversidade, a heterogeneidade e mesmo a fragmen-
tação das sociedades modernas operaram sobre o conceito de identidade nacional; a crescen-
te participação de atores não estatais (nacionais ou transnacionais) na definição das políticas
do Estado etc.
152 Política externa brasileira

na formação educacional das pluralidades e diversidades identitárias po-


tencializadas pela globalização; assim como é fundamental diversificar os
métodos, as práticas e as agendas de política externa dos Estados.
O ponto central, portanto, não se encontra na perda de força da edu-
cação como fator de coesão e integração social, nem no enfraquecimento
do exercício da política externa dos Estados por suas agências diplomáti-
cas. Encontra-se, sim, na pergunta: que outra(s) comunidade(s) política(s)
a educação irá contribuir para preservar ou criar, e em que medida isso é
ou será feito também por novos protagonistas no exercício da política ex-
terna? Interessante como hipótese, mas as densidades são distintas. Dito
de outra forma, como o Estado — ainda em pleno vigor — usará, ou efe-
tivamente usa, a educação como instrumento constitutivo de que tipo(s)
de comunidade política? Nesse sentido, o que se postula na reflexão que
se segue é se, e como, a educação integra a agenda da política externa em
direção à construção e à consolidação de novos arranjos políticos mais
abrangentes, que convivem com o âmbito estatal/nacional, sem necessa-
riamente negá-lo. Se no passado a educação foi condição essencial para a
construção do Estado-nação, ela agora também pode ser vista como uma
das grandes aliadas da política externa dos Estados na construção de ou-
tras comunidades políticas, ajudando a criar uma nova identidade que lhes
dê sustentação. Afinal, para toda e qualquer comunidade política que as-
pire à perenidade, sejam quais forem seus formatos e natureza, a educação
permanece desempenhando papel central.
Uma das premissas deste capítulo é a assunção de que, junto com
essa diversificação temática da agenda da política externa — seja como
decorrente, seja como promotora —, surgem também novos atores e al-
tera-se o arranjo institucional da formulação e implementação da política
externa, nesse sentido impactando a relação da agência diplomática com
as demais pastas.3 Nesse sentido, a reflexão sobre a educação como consti-
tutiva da agenda da política externa brasileira, em direção à construção de
uma identidade regional e ao fortalecimento de uma comunidade política,
não vem separada da reflexão sobre quem a formula e quem a implemen-
ta. Assim, buscamos igualmente contribuir para uma melhor compreen-
são sobre a participação de outros agentes na formulação e condução da

3
Para um excelente mapeamento das funções constitucionais e regulares dos órgãos que in-
tegram o Poder Executivo Federal brasileiro, ver França e Sanchez Badin (2010); e Cintra
(2010).
Política externa e educação 153

política externa brasileira, além do Itamaraty, este reconhecido constitu-


cionalmente no Brasil como a agência responsável pela área. Na realidade,
buscamos ir além da mera identificação da presença de novos atores nes-
se universo, o que vem sendo feito com grande competência por diversos
autores,4 ao procurarmos discutir as implicações substantivas desse exer-
cício para o conteúdo e a implementação da política externa brasileira.
É, portanto, sobre como educação e política externa se encontram no
âmbito particular das relações internacionais contemporâneas, por que se
encontram e sobre algumas das implicações desse encontro que gostaría-
mos de compartilhar as reflexões que se seguem. Afinal, num mundo onde
se verifica uma crescente pluralização de atores e agendas, onde os arranjos
integracionistas se multiplicam e onde a diversidade ganhou a agenda da
política econômica, social e externa, a educação como força de coesão tal-
vez tenha se tornado mais necessária do que no passado, quando esta era,
sem dúvida, sua explícita e dominante função no âmbito nacional (Green,
2006:196). O que postulamos, entretanto, não é a instrumentalização da
educação como fator de coesão intrafronteiras — o que sem dúvida ela é —,
mas como fator de integração e coesão em direção à formação e à consoli-
dação de novas comunidades políticas imaginadas. Assim, numa analogia
com a construção do Estado-nação em que a educação é parte constitutiva
da defesa da soberania nacional, assim como da construção de instituições
públicas nacionais e da popularização das noções de cidadania, statehood e
identidade nacional (Green, 1997:31), ela, a educação, talvez também pos-
sa ser vista como um instrumento da política externa brasileira em direção
à construção de um novo ente político, da institucionalização de aparatos
multinacionais e da construção de uma identidade regional.
Para discutir esses pontos, apresentamos o envolvimento do Ministério
da Educação (MEC) na política externa brasileira, como um exemplo par-
ticular de uma nova configuração da arena decisória de política externa, na
qual outros ministérios, para além do Itamaraty, vêm se engajando em assun-
tos externos. Para tanto, elegemos como ilustração o envolvimento do MEC
em projetos desenvolvidos no Mercosul. Com base na descrição de algu-
mas iniciativas negociadas e empreendidas por esse ministério, serão discu-
tidas as implicações da incorporação da temática educacional na agenda do

4
Ver Cintra (2010), Faria (2008), Figueira (2010), França e Sanchez Badin (2010) e Pinheiro
(2009).
154 Política externa brasileira

bloco. Para tanto, nossa escolha recaiu sobre iniciativas que se voltam para
a tentativa de construção de uma identidade comum potencialmente capaz
de estimular e consolidar o projeto de integração regional. Nesse caso, trata-
se da utilização de projetos educacionais distintos — a alfabetização bilín-
gue e o ensino das disciplinas de história e geografia — para fomentar uma
identidade que fortaleça um projeto de aproximação entre os Estados. Em
outras palavras, pontuamos que os projetos educacionais buscaram operar
como instrumentos na construção de uma identidade regional sul-americana
em direção ao adensamento do projeto de integração regional. Nesse plano,
levantamos a hipótese de que, tal como no caso de outros ministérios e agên-
cias, o Ministério da Educação é protagonista do exercício de uma diploma-
cia — a educacional —, embora não tenha exatamente uma agenda própria
de política externa.
Nesta investigação constatamos que, se nos restringíssemos a defi-
nições muito rigorosas de autoria, ou aos pré-requisitos que definem uma
instituição ou um indivíduo como uma unidade de decisão em política ex-
terna (Hermann, 2001), o que ganharíamos em precisão conceitual perde-
ríamos em capacidade explicativa do processo de formulação da política
externa contemporânea. Assim, embora determinadas instituições, como o
MEC, não detenham o grau de autonomia necessária na política externa
brasileira para serem caracterizadas como uma unidade decisória de polí-
tica externa, isso não deve impedir o reconhecimento do impacto substan-
tivo de sua presença sobre o conteúdo da política. Assim, apesar de não ser
propriamente um ator, no sentido da plena capacidade de atuação, o MEC
possui considerável poder de agência (Bretherton e Vogler, 1999).
Sublinhamos que a presente pluralização de atores — causa e efeito
da diversificação temática da política externa — também deve ser pensada
como um elemento central na compreensão da política externa brasileira
contemporânea. Duas categorias ou expressões complementares ajudam
a entender esse novo quadro: dispersão disciplinada, como sugere Beshara
(2008), e horizontalização controlada, como sugere Pinheiro (2009). Ambas,
como veremos, resumem os dois movimentos por que passa atualmente a
formulação e a implementação da política externa brasileira em suas di-
ferentes modalidades diplomáticas: participação crescente e diversificada
de atores na formulação e implementação da política externa, conceden-
do maior respaldo interno, legitimidade externa e eficiência às políticas e
às decisões; e busca incessante de coordenação e controle sobre essa nova
configuração da política externa brasileira por parte do Itamaraty.
Política externa e educação 155

As novas fronteiras da educação

Os processos de integração regional sul-americanos — Mercosul, Unasul


— têm se mantido como importantes estratégias de inserção internacional
dos seus países-membros. No que concerne, em particular, às orientações da
política externa brasileira, a ênfase no projeto integracionista manteve con-
sistência, preservando sua centralidade ao longo dos diferentes mandatos
presidenciais. Nesse sentido, apesar de seus reveses e momentos de desa-
celeração, o Mercosul, por exemplo, tem perseverado, fomentando o incre-
mento das relações entre os componentes, notadamente no que tange ao
intercâmbio comercial, e fortalecido o poder de negociação de seus mem-
bros junto a interlocutores externos ao arranjo. Entretanto, não só na esfera
econômica têm sido observados avanços integrativos na região. Malgrado o
caráter fundamentalmente econômico do bloco, desde sua formação, há 20
anos, os governos de seus Estados-membros — Argentina, Brasil, Paraguai
e Uruguai — já demonstravam preocupação em incorporar ao projeto inte-
gracionista temas colaterais ao comércio, sobretudo aqueles ligados às áreas
de saúde, trabalho, justiça e educação (Draibe, 2007:174; e Fulquet, 2007:6).
E, de fato, o que se nota é que, em alguns momentos, os avanços registrados
foram justamente nessas áreas, superando inclusive os alcançados no âmbito
econômico (Coutinho, Hoffmann e Kfuri, 2007). Para tanto, tem sido fun-
damental a ação dos ministérios domésticos, reunidos em fóruns submeti-
dos ao Conselho do Mercado Comum.5
Assim, em 13 de dezembro de 1991, apenas oito meses após a assina-
tura do Tratado de Assunção criando o Mercosul, foi constituído o Setor
Educacional do Mercosul (SEM), ou Mercosul Educacional, por meio do
protocolo de intenções firmado pelos ministros da Educação dos Estados-
membros. O SEM foi criado com base na ideia de que a integração regio-
nal não deveria estar circunscrita aos aspectos econômicos e políticos, mas
abrigar também iniciativas culturais, educacionais e sociais. O Protocolo
de Intenções afirma que a educação tem papel fundamental para a conso-
lidação e o desenvolvimento da integração, e o Plano de Ação 2006-2010
reafirmou, com vigor, essa mesma crença.6

5
Ver <http://www.mercosul.gov.br/organograma/organograma-mercosul/view>.
6
“En todos los países signatarios del Tratado de Asunción, se percibió con claridad que la
educación debía jugar un rol principal y que el Mercosur no podía quedar supeditado a me-
ros entendimientos económicos” (Plano de Ação 2006-2010, p. 4).
156 Política externa brasileira

Os objetivos gerais do SEM consistem em construir um espaço edu-


cacional integrado por meio da coordenação de políticas de educação, pro-
movendo a mobilidade, o intercâmbio e a formação de uma identidade
regional.7 As intenções que subjazem a essas propostas e que conduzem,
como diretrizes centrais, o arranjo educativo apontam em duas direções:
forjar uma identidade comum aos países-membros e qualificar a mão de
obra regional para garantir a inserção competitiva do bloco. Nesse sentido,
o Protocolo de Intenções (1991, grifo nosso) explicita:

Que a melhoria dos fatores de produção requer necessariamente a elevação


dos níveis de educação e de formação integral das pessoas; […]

Que a educação […] pode constituir-se em meio eficaz de modernização


dos Estados-membros; […]

Que da educação depende, em grande parte, a capacidade dos povos latino-ame-


ricanos de se reencontrarem nos valores comuns e na afirmação de sua identidade
frente aos desafios do mundo contemporâneo.

Comprometido com essa dupla orientação, o SEM consubstancia, em


seus enunciados e projetos, a fusão de perspectivas tanto materiais quanto
identitárias, demonstrando a interação e a complementaridade entre ambas.
De um lado, coerente com as pretensões de ganhos materiais propiciados
pela inserção econômica favorecida pelo Mercosul, o SEM é incentivado
como uma estratégia de qualificação de recursos humanos e de formação
profissional para a produção de alta tecnologia adequada ao nível da compe-
titividade internacional (Piletti e Praxedes, 1998:220). De outro, a iniciati-
va educacional, ao propor a construção de uma identidade comum, exprime
um esforço deliberado para aparar diferenças e criar valores compartilhados,
como meio de fomentar a identificação dos países entre si e de esmaecer ri-
validades, o que se pretende contribua sensivelmente para o adensamento
da integração (Pinheiro, Nogueira e Macedo, 2007:15).
Na estrutura institucional geral do Mercosul, o SEM faz-se represen-
tar pela Reunião dos Ministros da Educação, vinculada ao Conselho do

7
Ver Mercosul social e participativo (2007:35). Disponível em: <www.secretariageral.gov.
br/internacional/mercosulsocialeparticipativo>.
Política externa e educação 157

Mercado Comum (CMC), principal órgão decisório do bloco regional.8


Por ora, basta registrar que a participação direta do Ministério da Educa-
ção no SEM, por meio da Reunião de Ministros da Educação, indica que
essa burocracia não se tem restringido à formulação de políticas direciona-
das ao âmbito nacional, mas que tem encontrado no setor externo — na es-
fera regional em particular, embora não exclusivamente nesta9 — um cam-
po significativo de atuação. Configura-se, pois, um acúmulo de tarefas no
Ministério da Educação, que ingressa como agente nas relações exteriores
do Brasil, além de se ocupar das atribuições referentes às políticas educa-
cionais domésticas, que constituem, a priori, sua principal agenda.
É importante agregar a essas afirmações uma informação adicional
a fim de melhor avaliarmos a inserção do MEC como parte integrante
do arranjo de formulação e implementação da política externa brasileira
contemporânea. Conforme estudo recentemente publicado, mais de 80%
da estrutura do MEC estão comprometidos com a agenda internacional,
ou seja, com atividades de coordenação na área internacional (França e
Sanchez Badin, 2010:21).

8
A atual estrutura organizativa do Mercosul Educacional foi estabelecida na XXI Reunião dos
Ministros da Educação, ocorrida em Punta del Este em 2001, sendo aprovada pela Decisão
no 15/01 do Conselho do Mercado Comum. Os principais órgãos deliberativos são: a) Reu-
nião de Ministros da Educação (RME): instância decisória máxima, responsável pela definição
das políticas a serem implementadas na área educacional; b) Comitê Coordenador Regional
(CCR): órgão assessor da RME, composto por membros políticos e técnicos dos países-mem-
bros, propõe políticas de integração e de cooperação no âmbito da educação, assessora a Reu-
nião de Ministros e coordena o desenvolvimento da atuação do SEM; c) comissões regionais
coordenadoras de área (CRCs): divididas em comissões técnicas correspondentes a áreas de
ensino (educação básica, educação tecnológica e educação superior), devem assessorar o CCR
na definição das estratégias de ação do SEM e propor mecanismos para a implementação dos
objetivos e linhas de ação definidas no plano de ação do setor; d) grupos gestores de projetos
(GGPs): responsáveis pela elaboração e implementação desses projetos, são constituídos como
instâncias temporárias específicas convocadas ad hoc pelo CCR, estando vinculados a uma
CRC ou ao próprio CCR. A instância à qual o GGP está vinculado é responsável pelo acom-
panhamento da gestão e da execução do projeto (Ata da XXI Reunião de Ministros da Edu-
cação, 2001, anexo IV). Há ainda o Sistema de Informação e Comunicação (SIC), instância
responsável por suprir as necessidades de comunicação, gestão do conhecimento, informação
e trabalho cooperativo no âmbito do SEM, respondendo pela manutenção da página do Mer-
cosul Educacional na internet. O Brasil é encarregado da coordenação do SIC. Ver Mercosul
social e participativo (2007:40); e Beshara (2008:63-65).
9
Outro espaço em que o MEC vem sendo muito atuante é nos projetos levados a termo no
âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, seja através de acordos de coope-
ração técnica, concessão de bolsas de estudo ou mesmo da criação de universidades, como
a Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), oficial-
mente criada em 20 de julho de 2010.
158 Política externa brasileira

Os projetos empreendidos pelo Mercosul Educacional buscam ma-


terializar alguns dos objetivos e princípios consagrados pelo arranjo. Em
linhas gerais, contemplam não só acordos de reconhecimento de títulos
entre os sistemas educacionais dos diferentes países, mas também outras
iniciativas igualmente importantes, como a homologação de documentos
e credenciamento de cursos, o que favorece a mobilidade e o intercâm-
bio entre estudantes e profissionais dos Estados-membros; a construção de
uma tabela de equivalência de anos de escolaridade (Saraiva, 1995 e 1997);
a criação do Espaço Regional de Educação Superior do Mercosul,10 hoje
consagrado graças aos esforços do governo brasileiro na inauguração da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila),11 e outras
iniciativas voltadas para a promoção de um ensino que fomente os valores
da integração. Na descrição do então assessor internacional do MEC, os
resultados almejados pelo setor educacional do Mercosul seriam:

10
Essa iniciativa inspirou-se no Bologna Process da União Europeia, que tem por objetivo a
criação de uma European Higher Education Area, onde aos estudantes seria facultada a sele-
ção de cursos diversos e da maior qualidade em qualquer país-membro da UE, com a garan-
tia do aproveitamento dessa experiência na universidade de origem. Vale notar que, embora
a educação tenha se tornado um dos campos de atuação da Comissão Europeia apenas com
o art. 126 do Tratado de Maastricht (1992), muito antes o tema já fazia parte da agenda de
discussões (Petit, 2007). Num universo em que abundam estudos sobre o desenvolvimen-
to de uma identidade europeia a partir de iniciativas tomadas no escopo da UE, o papel da
educação nesse processo vem se somando à discussão. Um exemplo são as investigações so-
bre o projeto Erasmus (European Region Action Scheme for the Mobility of University Students),
criado em 1987 e concebido como uma ferramenta auxiliar na construção de um novo tipo
de identificação política — a identidade europeia, que buscaria manter a identidade nacional
e com ela conviver (Abreu, 2009:4, Bennhold, 2005).
11
Trata-se de uma universidade criada pelo governo brasileiro, com sede em Foz do Iguaçu,
Paraná, na tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, em campus estabelecido com
o apoio da hidrelétrica de Itaipu Binacional, cujo objetivo é fortalecer o Mercosul por meio
do ensino e da pesquisa de assuntos pertinentes à integração regional. Assim, serão preconi-
zados temas como recursos naturais, biodiversidade, ciências sociais, linguística e Relações
Internacionais, em aulas ministradas tanto em português quanto em espanhol. A previsão é
de que a Unila, cujas atividades tiveram início em 2010, venha a comportar cerca de 10 mil
alunos, somando graduação e pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. O corpo do-
cente da universidade deve ser composto por cerca de 500 profissionais, metade permanentes
e metade temporários, periodicamente preenchido por professores visitantes. Os professores
também serão divididos por nacionalidade, sendo metade brasileiros e metade originários
dos demais países do Mercosul. O corpo discente também será constituído por brasileiros e
por alunos dos Estados-membros do bloco. Por isso, o processo seletivo para o ingresso na
instituição será oferecido em duas versões — em português e em espanhol — e contemplará
conteúdos referidos à América Latina em geral e não ao Brasil especificamente.
Política externa e educação 159

• conformar redes de especialistas em história e geografia regional, in-


corporando-se nos currículos conhecimentos das peculiaridades dos
países do bloco; trata-se, aqui, de contrabalançar o ensino de uma his-
tória e de uma geografia da diferenciação por um ensino que também
demonstre as amplas convergências;
• produzir materiais didáticos sobre história e geografia regional e for-
mar docentes especializados em temas de integração regional;
• estimular o ensino do espanhol e do português como segundas línguas
nos currículos escolares, com programas de formação de professores;
• estabelec[er] um sistema eficaz de reconhecimento e certificação de
competências em nível regional, assim como processos de credencia-
mento e avaliação de estudos de graduação e de pós-graduação;
• realizar estudos analíticos com base em indicadores estatísticos edu-
cacionais;
• estimular a criação e ampliação de redes de instituições universitá-
rias, redes de educação básica e média e redes de centros de forma-
ção docente;
• garantir a eficácia do emprego das tabelas de equivalência de estudos
de nível primário e médio, incluindo o nível técnico;
• utiliza[r] os Fundos de Convergência Estruturais do Mercosul em
projetos e programas educacionais;
• estabelec[er] sistema de concessão gratuita de vistos para estudantes,
docentes e pesquisadores;
• cria[r] uma biblioteca virtual sobre o material existente em matéria de
cultura de paz, democracia, direitos humanos e meio ambiente [Can-
deas, s.d.:3-4].
Mas gostaríamos de nos estender particularmente acerca de duas ini-
ciativas mais diretamente voltadas para a construção de uma identidade
comum com vistas a estimular e consolidar os projetos de integração entre
os Estados: o exitoso projeto Escolas de Fronteira e a menos exitosa tenta-
tiva de formulação de uma história e geografia da integração regional.
160 Política externa brasileira

Escolas de fronteira
Com relação ao primeiro projeto, é importante sublinhar que o ensino do
espanhol e do português é uma política que, desde o início, tem sido en-
fatizada nas deliberações do SEM. Já em sua fundação, o Protocolo de
Intenções, de 1991, atestava “o interesse de difundir o aprendizado dos
idiomas oficiais do Mercosul — espanhol e português — através dos sis-
temas educacionais formais, não formais e informais”. O recente Plano de
Ação 2006-2010 do SEM voltou a defender “el fomento de la enseñanza
del español y del portugués como segundas lenguas” (p. 16). Validando essa
perspectiva, foi aprovada, no Brasil, a Lei no 11.161/2005, que tornou obri-
gatória a oferta do ensino do espanhol como língua estrangeira nas escolas
de nível médio.12
No que tange particularmente ao projeto Escolas de Fronteira, deve-
se notar que sua criação decorreu de protocolo assinado entre o ministro da
Educação, Ciência e Tecnologia da Argentina e o ministro da Educação do
Brasil em junho de 2004, tendo como meta promover o ensino do espanhol
e do português como segundas línguas, com o objetivo declarado de for-
talecer a integração regional. Implementado com o apoio operacional das
secretarias municipais e estaduais de Educação, cuja colaboração é consi-
derada essencial para o bom funcionamento do projeto,13 a ideia foi imple-
mentar uma educação bilíngue no ensino fundamental de escolas públicas,
de modo a promover o intercâmbio cultural a partir do aprendizado do idio-
ma do país vizinho, dessa forma levando a cabo “proyectos educativos cuyas
actividades se orientaron a instituir un nuevo concepto de frontera”.14 Com

12
Ver p. 50 do Relatório da Assessoria Internacional do Ministério da Educação, de 2007.
13
Entrevista de Milene Reis, da Assessoria Internacional do MEC, a Leticia Pinheiro, em
Brasília, em 9-7-2009.
14
Grifo nosso. Ver <http://www.mercosul.inep.gov.br/index.php?option=com_content&task=
view&id=270&Itemid=96&lang=es>. Note-se que há uma grande semelhança entre esse proje-
to e o Lingua Programme da União Europeia (Petit, 2007:13). Outra iniciativa semelhante im-
plantada na Europa e comparável a esta é a do governo da Turquia, relatada por Yanik (2004). A
autora mostra como o governo desse país investiu nessa prática ao longo da década de 1990, por
meio de uma política de intercâmbio educacional com as repúblicas turkics da antiga União So-
viética e da Eurásia. Conscientes da importância da educação como um poderoso mecanismo de
criação de identidade e mudança social, conforme explica Yanik (2004:294), as autoridades turcas
pretenderam com essa política “to create a stratum of people who would be well versed in Turk-
ish culture and language, which then would act as a bridge between their countries and Turkey.
The students coming out of this educational experience were expected to bear the ‘Turkic iden-
tity’ that the Turkish elites thought was in the making since the Turkic republics gained their in-
dependence in 1991”. Independentemente dos resultados concretos alcançados por essa política,
Política externa e educação 161

apenas três anos de vigência, o projeto já se estendia a 10 escolas.15 Inicial-


mente implementado na região lindeira entre Brasil e Argentina, o projeto
foi ampliado para escolas na fronteira com o Paraguai, o Uruguai, e a pares
associados do Mercosul — Bolívia e Chile —, apesar de o Brasil não fazer
fronteira com este último. Acrescente-se que sua incorporação ao SEM, ou
seja, sua incorporação à agenda de integração regional, só ocorreu após a
constatação do sucesso da iniciativa levada a termo bilateralmente.16 É reve-
lador que, originariamente formulado fora do âmbito da agenda de integra-
ção do Mercosul, por iniciativa dos ministérios da Educação do Brasil e da
Argentina, o projeto tenha sido posteriormente encapsulado pela agenda do
Mercosul, ao demonstrar sua importância e, mesmo, sua necessidade como
forma de dirimir diferenças entre as populações envolvidas.17 Voltaremos a
esse ponto mais adiante, após a apresentação de um segundo projeto em que
a questão identitária também é central.

História e geografia do Mercosul


Encaminhada aproximadamente entre 1993 e 1997, uma nova e ousada
iniciativa contemplaria a decisão tomada pelos representantes dos qua-
tro países-membros do Mercosul, além de Bolívia e Chile como parcei-
ros associados, de “adotar as medidas necessárias para agilizar a produção
de materiais pedagógicos, acadêmicos e didáticos destinados ao ensino
da história e da geografia do Mercosul”, considerando “a importância do

Yanik (2004:304) reitera que “education can be used as one of the most direct means to mould
the political culture of a target country by attempting to create a generation of elites familiar with
and sympathetic to the culture and to the country that provides education”.
15
O projeto piloto propunha desenvolver atividades conjuntas em quatro escolas, duas brasileiras
e duas argentinas: a Escola Estadual de Educação Básica Theodureto Carlos de Faria Souto, em
Dionísio Cerqueira (SC); a Escola de Educação Geral Básica Mayor Juan Carlos Leonetti,
em Bernardo de Irigoyen, província de Misiones; a Escola Municipal de Ensino Fundamental
localizada no Caic de Uruguaiana; e a Escola de Educação Geral Básica Vicente Eládio Verón
(ver <http://www.unesco.org.br/noticias/releases/2005/ciencia/mostra_documento>).
16
Entrevista de Milene Reis, da Assessoria Internacional do MEC, a Leticia Pinheiro, em
Brasília, em 9-7-2009.
17
Segundo Milene Reis, em sua entrevista de 9-7-2009, com o projeto já em andamento, o
depoimento dos professores acusou disparidades culturais entre as partes (Brasil e Argenti-
na), revelando estarem de fato as populações locais de costas umas para as outras, cada uma
com sua cultura, em particular no que dizia respeito à distinta relação de hierarquia e rela-
cionamento entre professores e alunos brasileiros e argentinos.
162 Política externa brasileira

ensino da história e geografia do Mercosul para fortalecer a identidade


regional”.18
Um grupo de estudiosos do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas em
Ensino de História (Nipeh) da Universidade Federal de Santa Catarina
dedicou-se a examinar essa iniciativa. Em suas pesquisas, o grupo iden-
tificou que, no Compromisso de Brasília de 1996, fora aprovado um do-
cumento intitulado Mercosul Educacional 2000: desafios e metas para o setor
educacional, em que os ministros da Educação signatários propunham, en-
tre outras metas, a de “compatibilização de aspectos curriculares e metodo-
lógicos a partir de uma perspectiva regional”, que previa o desenvolvimento
de metodologia e de produção de materiais didáticos, acadêmicos e peda-
gógicos para o ensino de história e de geografia a partir de uma perspectiva
regional (Cristofoli, Dias, Veríssimo, 2005:24-25).
Enfim, tratava-se de um esforço de parte das autoridades governa-
mentais envolvidas com o projeto de integração regional no sentido de
mudar um quadro marcado por forte nacionalismo que teria influenciado
os currículos escolares da região, principalmente no Brasil e na Argentina.
Uma política deliberada de modificar o cenário da América Latina, ca-
racterizado, nas palavras de Heraldo Muñoz, como uma “região atomiza-
da, dividida, desintegrada” cuja “historiografia e geografia refletiriam esta
enorme carência de identidade comum e de um projeto político unitário”.
Uma região, enfim, onde “predominariam as histórias nacionais, cada país
visualizando-se a si mesmo como ilha, ignorando seus vizinhos ou, em al-
guns casos, onde houve conflitos fronteiriços, até satanizando-os” (Marfan,
1998, apud Cristofoli, Dias, Veríssimo, 2005:26).
Pensado inicialmente como um projeto com vistas ao estabelecimen-
to de conteúdos mínimos de história e geografia para o conjunto dos paí-
ses, a proposta evoluiu em direção a um documento intitulado “Para uma
história e uma geografia da integração regional”. O objetivo então passou a
ser o “de vincular a dimensão da construção de uma consciência social fa-
vorável ao processo de integração por meio do estímulo ao debate da his-
tória regional do Prata, do envolvimento dos quatro países em uma matriz
histórica que tem muito em comum com a superação dos nacionalismos

18
Ver Ata no 2/99 da XVII Reunião de Ministros da Educação dos Países Signatários do
Tratado do Mercado Comum do Sul, disponível em: <http://www.sic.inep.gov.br/index.
php?option=com_docman&task=cat_view&gid=48&Itemid=32&lang=br>.
Política externa e educação 163

historiográficos”. Ao mesmo tempo, porém, estipulava-se a necessidade da


“coexistência de diferentes paradigmas” e estimulava-se a “compreensão
dos aspectos compartilhados e dos que conferem características e dinâmi-
cas particulares a cada uma dessas sociedades” (Saraiva, 1997:19).
Nas palavras de Cristofoli e colaboradores (2005:33), governo e comu-
nidade acadêmica — ainda que por motivos distintos — pareciam concor-
dar quanto à necessidade de “construção de uma nova realidade educacional
e particularmente do ensino de história [a fim de] produzir reflexões e ações
que [fossem] capazes de estimular a formação de uma identidade latino-
americana apta a identificar as semelhanças socioculturais entre os países
em pauta e, ao mesmo tempo, ao dar conhecimento das diferenças, propiciar
o respeito e a convivência solidária para com as especificidades e alteridades
nacionais”. Concordavam, sim, pelo menos até esse momento.
O direcionamento dessa iniciativa ao ensino de história, em particular,
justificava-se pela consideração de que as narrativas históricas transmitidas
nos sistemas educacionais exerciam significativa influência na constituição
das identidades, imiscuindo-se, assim, de elevado teor de politização. Mais
do que isso, partia-se da suposição de que esse componente político se ex-
pressa, inclusive, em termos de política externa e de que existem múltiplas
formas de se narrar os processos históricos. A esse respeito, Alessandro
Candeas (s.d.:4), que esteve à frente da Assessoria Internacional do MEC
entre 2005 e 2007 e chefiou a delegação do Brasil nos encontros do Co-
mitê Coordenador Regional do Setor Educacional do Mercosul de 2005 a
2007, nota que:

não há, nos livros escolares de história do Brasil, nenhum capítulo sobre
Guerra com a Argentina, mas existe, nos livros argentinos, um importante
capítulo sobre a Guerra contra o Império do Brasil. Trata-se do que no Bra-
sil é ensinado como a Guerra Cisplatina, que deu origem ao Uruguai inde-
pendente. Histórias diferentes? Não, perspectivas diferentes sobre os mes-
mos fatos históricos. A aproximação e o conhecimento recíproco podem
auxiliar na superação de preconceitos e estereótipos. Ensinam-se com mui-
to maior frequência nas escolas aspectos da história moderna e contempo-
rânea da Europa e sobre seus rios e montanhas [do] que sobre os processos
coloniais, de independência e de modernização e desenvolvimento, tão mais
próximos de nossos vizinhos. Não se trata de uma historiografia revisionista
164 Política externa brasileira

e dirigista, preocupada em criar dogmas integracionistas, mas de um ensino


mais completo e equilibrado, que demonstre as profundas convergências e
realidades compartilhadas pelos países da região.

De fato, o modo pelo qual os eventos são encadeados, as relações de


causalidade identificadas e os dados destacados — e silenciados — permite
à história conferir sentidos específicos aos acontecimentos. As sagas con-
tadas não resultam de um conhecimento neutro e objetivo; ao contrário,
são produto de um discurso específico, apropriado por algum ator (Estado,
partido, Igreja, juristas, nação etc.), que elege temas, personagens e fatos
como forma de divulgar e consolidar ideias coniventes com a manutenção
de algum modo de legitimidade (Ferro, 1983:15). Justamente essa con-
cepção teleológica dos estudos históricos proporcionou a Ferro (1983:1)
afirmar que “a história é uma disputa” e que “controlar o passado sempre
ajudou a dominar o presente”. Ou seja, a força da história a torna um ins-
trumento poderoso na consecução de objetivos de grupos diferentes da so-
ciedade, o que transforma o controle da produção histórica em foro de afir-
mação e, por consequência, de competição política.19
Essa dimensão política da produção e do ensino da história decorre,
principalmente, do significativo papel que ambos exercem na construção
das identidades. A partir de como são contados a formação e o desenvol-
vimento de suas sociedades e culturas, os indivíduos constroem sua autoi-
magem, identificam os valores que compartilham com o grupo no qual se
inserem e estabelecem os traços que os diferenciam e particularizam em
relação à alteridade. Nesse sentido, afirma Ferro (1983:11):

Não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mes-
mos, está associada à história que nos ensinaram quando éramos crianças.

19
Como nos lembra Beshara (2007:4), inúmeros exemplos validam essa perspectiva: “Na
Índia, as conquistas territoriais feitas pelo país, ainda que ocorridas à força, como as do
Camboja, de Java e de Sumatra, são narradas pela história oficial como “libertação”, sendo
a indianização encarada como adesão voluntária ao modo de vida indiano (Ferro, 1983:34).
Na antiga União Soviética, a legitimidade do poder do PC baseava-se na história, tornando-a
um assunto de Estado, “visto que o Partido Comunista se apresenta como a vanguarda e a ex-
pressão da classe operária a que, segundo a visão marxista da história, cabe a tarefa de realizar a
passagem ao comunismo” (ibid., p. 17). No Japão, “toda a história do país devia se adaptar a um
dogma fundamental: o de que o status do imperador e de seus vassalos fora fixado para sempre
[…] quando da criação do Japão pelos deuses” (ibid., p. 35).
Política externa e educação 165

Ela nos marca pelo resto da vida. Sobre essa representação, que é para cada
um de nós uma descoberta do mundo e do passado das sociedades, enxer-
tam-se depois opiniões, ideias fugazes ou duradouras, como um amor.

Esse vínculo entre a narrativa da história, a identidade e o relacio-


namento com o outro foi também apontado por Friedman (1992:207) ao
postular que “a política da identidade consiste em ancorar o presente num
passado viável. O passado é, assim, construído de acordo com as condições
e o desejo daqueles que produzem os textos históricos no presente”. Ou,
como afirma Campbell (1992:6), em linha semelhante: “O ‘passado histó-
rico’ é sempre uma construção discursiva do passado a partir do presente e
consiste em muitos elementos distintos que precisam ser selecionados para
lhe imprimir sentido”.
Foi nesse contexto que o MEC comissionou profissionais para a rea-
lização desse projeto, e que estes, a despeito de suas melhores intenções
acadêmicas, iniciaram seu engajamento com uma iniciativa de inequívoco
compromisso político com o sucesso da integração regional. Supunha-se
que seria possível elaborar narrativas históricas que superassem as diferen-
ças nacionais, apontassem semelhanças e contribuíssem, assim, para que
os povos dos diferentes países se conhecessem melhor, sem que com isso
fossem negligenciadas as especificidades de cada país.
Como já disseram os poetas, porém, há uma distância entre inten-
ção e gesto.20 Assim, embora a intenção do Mercosul Educacional fosse
combinar os supostos traços comuns às peculiaridades locais sem negar
disparidades, o projeto não foi adiante. A esse respeito, vale reproduzir o
contundente alerta de um dos historiadores envolvidos com o projeto acer-
ca de suas implicações e pressupostos:

Não estaríamos carregando muito as tintas sobre uma história anterior que
“deve” convergir para o esforço de integração do presente? Não seria essa
uma forte intervenção ideológica, presentista e teleológica sobre a história
da região?
Há uma exagerada tendência, nos novos enfoques integracionistas, para
a acomodação dos conflitos históricos e para o silêncio acerca dos perío-

20
Trecho de Fado tropical, de autoria de Chico Buarque e Ruy Guerra.
166 Política externa brasileira

dos conflitivos e dos aspectos que facilitem a construção de uma imagem


romântica e necessária de integração. E isso poderá ser grave no desenvol-
vimento do espírito crítico tão necessário à prática historiográfica e geográ-
fica, bem como ao seu desdobramento nas salas de aula em todos os níveis
da educação.
É evidente que não há história e geografia neutras, mas é igualmente in-
feliz a ideia de dividir a história e a geografia dos povos da Argentina, do
Brasil, do Paraguai e do Uruguai em antes e depois do Mercosul [Saraiva,
1997:21].

Apesar dos distintos desfechos de ambas as iniciativas, as duas se pau-


taram por linhas semelhantes, com base na percepção de que a educação
tem fortíssimo potencial para se tornar um instrumento de maior identi-
ficação política, por meio de projetos que corroborem e estimulem valores
comuns, história comum, assim como promovam a aceitação das diversida-
des, produzindo um engajamento positivo com a diferença.
A associação entre a centralidade do Mercosul na agenda da política
externa brasileira e o envolvimento do Brasil, por meio do Ministério da
Educação, com o Mercosul Educacional revela que a educação foi pensada
como parte da estratégia de reforço das opções de política externa do país.
Como já visto, a ênfase no estreitamento das relações com os países vizi-
nhos tem sido uma das principais estratégias de inserção internacional do
Brasil nos últimos anos, e nesse contexto se insere a intensificação dos de-
bates relativos à educação na esfera regional.
Notadamente, observa-se que a política externa brasileira vem perce-
bendo a educação como forma de atuação e como tema de relevo nas rela-
ções internacionais. A bem da verdade, não é a primeira vez que ocorre no
Brasil essa associação entre educação e política externa.21 Mas esse foi, sem

21
Em 1938, Vargas baixou decreto impondo a Campanha de Nacionalização da Educação no
Brasil. Com essa decisão o governo buscava integrar, mesmo que tardiamente, os imigrantes
europeus — em especial alemães, italianos e japoneses. Mas mais que isso: tratava-se de fo-
mentar a identidade nacional proibindo a utilização de língua estrangeira e a publicação de
qualquer tipo de comunicação pública ou privada em outra língua que não o português. E
foi nesse quadro que, entre 1938 e 1940, foram nacionalizadas inúmeras escolas nos núcleos
de colonização alemã, principalmente no Sul do país. No entanto, o período compreendi-
do entre 1938 — ano em que foi inaugurada a Campanha de Nacionalização — e o final de
1940 coincidiu justamente com o período em que Vargas ainda perseguia aquilo que Moura
Política externa e educação 167

dúvida, um momento em que, guardadas as devidas proporções e distintas


características, testemunhou-se não um movimento em direção a uma ho-
mogeneização cultural e linguística típico de um momento de construção
e consolidação da identidade nacional, mas um projeto de intercâmbio de
diversidades, característico de um processo de construção de uma identi-
dade regional. Em outras palavras, o que postulamos é que essas iniciativas
guardavam em seu âmago o propósito, explícito ou não, de contribuir para
a construção de uma nova “comunidade imaginada” (Anderson, 1991), na
qual, sem questionar as fronteiras nacionais, buscava-se levar a cabo, como
já dito, “proyectos educativos cuyas actividades se orientaron a instituir un
nuevo concepto de frontera”.22
Mas essa inserção dos projetos educacionais na agenda política externa
nos leva a considerar em maior detalhe um aspecto que perpassa toda essa
discussão: o efetivo envolvimento do MEC com a política externa. De fato,
essa investigação revelou que as muitas negociações e acordos realizados no

cunhou como uma política de equidistância pragmática, ou seja, uma política de aproximações
alternadas e simultâneas com os Estados Unidos e a Alemanha, visando a tirar proveito da
disputa latente entre os dois (Moura, 1980). Foi com o fim da política de equidistância prag-
mática que a aliança do Brasil em oposição aos países do Eixo passou a se favorecer e foi mes-
mo usada em favor da Campanha de Nacionalização (contra japoneses, alemães e italianos).
Afinal, se antes a utilização do nazismo como justificativa para controlar toda a comunidade
teuto-brasileira, que de resto não era toda nazista, constituía uma ameaça aos interesses do
país, tendo em vista suas ligações econômicas com a Alemanha, agora essa justificativa po-
dia ser intensificada e mesmo apoiada. Afinal, já não se tratava “apenas” de reafi rmar a na-
cionalidade, mas também, e principalmente, de uma questão de segurança máxima, no bojo
da guerra mundial. Foi apenas em um segundo momento, ou seja, já alcançando o período
1941-1943 e quando a própria Campanha de Nacionalização já arrefecera que, aí sim, como
bem notaram Schwartzman, Bomeny e Costa (2000:159-160), “[d]esagregar o grupo alemão
[passou a ser obviamente] garantir a unidade nacional e combater as influências nazistas no
território brasileiro. Com esse novo ingrediente, o governo poderia eximir-se das acusações
de propulsor de uma política nacionalista xenófoba — de resto atribuída ao fascismo e ao
nazismo —, legitimando-se como protetor de uma identidade nacional contrária à doutrina
nazifascista (agora sim em linha com a opção diplomática), ou seja, ação legítima em face da
ameaça de nível internacional e sistêmico”. E continuam: “Tudo se passa como se a nacio-
nalidade brasileira, já constituída, estivesse sofrendo a ameaça de ser destruída pela ação de
grupos estrangeiros afinados com o nazismo, e não o contrário, ou seja, que sua construção
estivesse condicionada à eliminação dos grupos e culturas diferenciadas”, agora sustentada
e legitimada pela ação aliada. Daí se entende que foi justamente quando a campanha come-
çou a perder força que mais se intensificou a nacionalização de núcleos germânicos — das 2
mil escolas desses núcleos nacionalizadas, a maioria o foi após 1942. Trata-se aqui, de modo
muito interessante, de uma prática de erguimento de fronteiras internas, de exclusão do ou-
tro no interior do país; portanto, de fazer política externa internamente.
22
Grifo nosso. Ver <http://www.mercosul.inep.gov.br/index.php?option=com_content&task=
view&id=270&Itemid=96&lang=es>.
168 Política externa brasileira

âmbito do Mercosul Educacional foram empreendidos pelo Ministério da


Educação brasileiro e não pelo Itamaraty. Ou seja, se a tradição acadêmi-
ca brasileira consagra a tese da insularidade e do monopólio do Ministério
das Relações Exteriores na formulação e implementação da política externa,
a questão educacional no Mercosul aponta para o envolvimento de novos
atores como a agenda exterior do país. Nesse sentido, cabe-nos ainda refle-
tir sobre o que essa presença revela e o que, ou em que, ela altera nossa per-
cepção sobre como se faz e do que se constitui a política externa. E é sobre
essas questões que nos debruçaremos a seguir.

A diplomacia da educação

Por essa breve descrição de projetos elaborados pelo MEC, pode-se per-
ceber que a atuação do Brasil nesse arranjo tanto reflete a dilatação dos
assuntos tratados pelo Mercosul quanto, sem dúvida, uma expansão de
atores na política externa brasileira.23 Tal expansão de atores, porém, ain-
da causa algum desconforto na agência diplomática brasileira.24 Como

23
Entre os ministérios mais ativos nesse campo, o da Saúde, sem dúvida, merece destaque.
Sua atuação no campo da cooperação internacional é de grande visibilidade, sendo sua as-
sessoria internacional a que talvez mais se pronuncie, possuindo inclusive um boletim es-
pecífico, o Cooperação Saúde, cujo primeiro número foi lançado em outubro de 2009, e que,
com periodicidade trimestral, busca fornecer informações atualizadas sobre a atuação inter-
nacional do ministério. É digno de nota a clareza com que o editorial desse primeiro número
do boletim afi rma a inserção da saúde na política externa brasileira e a atuação particular —
embora não isolada do MRE e da ABC — do Ministério da Saúde nesse campo.
24
Na década de 1990, quando já era clara a inevitabilidade desse novo cenário, alguns diplo-
matas se posicionaram a respeito. Em sua investigação sobre a presença da saúde na agenda
externa, por exemplo, Rubarth (1999:226) afi rmava: “a incorporação sistemática dos temas
sociais, especialmente os da saúde, na formulação da política exterior do Brasil reforça a le-
gitimidade do trabalho diplomático, na medida em que este ficará alinhado não só com as
prioridades programáticas do governo, mas também com as aspirações de grande parte da
sociedade. A fim de assegurar a efetividade desta tarefa, sugeriu-se que ela seja desenvolvida
preferencialmente de forma integrada entre a Chancelaria e os órgãos setoriais do governo,
em particular os da saúde, e seja conduzida externamente pelo Itamaraty”. E, em palestra
na Escola Superior de Guerra, pontuava o então secretário-geral das Relações Exteriores,
embaixador Sebastião do Rego Barros (1996): “Inspirado por objetivos permanentes, o Ita-
maraty desempenha duas tarefas primordiais que antecedem a execução da política externa:
a formulação de suas diretrizes gerais e a coordenação com os demais órgãos do governo e
entidades civis. […] A importância do trabalho de coordenação deve-se à grande multipli-
cidade e complexidade dos temas da política externa. A multiplicidade de temas exige do
diplomata transitar por áreas tão distintas quanto comércio exterior, meio ambiente, desar-
Política externa e educação 169

nos disse recentemente um diplomata: “Num mundo ideal, os países se re-


lacionariam por meio de seus ministérios das Relações Exteriores”.25 No
entanto, são diversos os casos em que as demandas se dirigem diretamente
aos outros ministérios, sem ciência ou mesmo coordenação do Itamaraty.26
De fato, a referência a esse “mundo ideal” expressa a recorrente demanda
da agência diplomática brasileira de exercer a coordenação e, segundo al-
guns de seus membros, até mesmo ter o controle e o monopólio na defini-
ção do conteúdo da política externa brasileira. Contudo, desde a década de
1990, diferentes setores da sociedade e distintas agências do Estado vêm
demonstrando crescente interesse nos assuntos de política externa. Seja
devido à globalização, que encurta distâncias e torna os fatores internacio-
nais cada vez mais presentes no cotidiano social, seja devido ao processo
de liberalização por que passou o Brasil, tornando o país mais suscetível às
movimentações econômicas externas, os efeitos distributivos das decisões
de política externa são cada vez mais sensíveis aos diferentes atores sociais
(Lima e Hirst, 2002:88). Ao mesmo tempo em que as questões interna-
cionais têm crescente destaque no cenário interno, a ação exterior do país
ganha visibilidade e, assim, ocupa maior espaço no debate público: a políti-
ca externa, enfim, politiza-se. Por isso, o Itamaraty, além de ter sua atuação
mais detidamente acompanhada por outros órgãos da administração públi-
ca e pela opinião pública, perdeu sua exclusividade na condução das relações
exteriores do país, uma vez que um número crescente de atores — estatais e
não estatais — adquiriu interface externa em suas atividades.
Uma explicação para essa tendência é a crescente necessidade de es-
pecialização técnica para se atuar em política externa. Em linhas gerais, os
membros do Ministério das Relações Exteriores são caracterizados por for-
mações generalistas, o que atrairia profissionais com formação especializada

mamento, direitos humanos, ciência e tecnologia, transportes, comunicações, terrorismo e


narcotráfico. Não basta, no entanto, que o agente diplomático conheça de modo profundo
a realidade nacional e tenha uma formação ampla capaz de habilitá-lo a negociar temas de
natureza variada. A complexidade de cada um dos assuntos exige a articulação do Itamaraty
com os demais ministérios e órgãos do governo, a fim de que o trabalho diplomático refl ita o
tratamento preciso e abalizado dos temas, mantendo a necessária coerência com as posições
e políticas que o governo brasileiro adota no plano doméstico”.
25
Entrevista de Daniel Lopes, da Divisão de Temas Educacionais do MRE, a Leticia Pinheiro,
em Brasília, em 9-7-2009.
26
Entrevistas de Daniel Lopes (Brasília, 9-7-2009) e de Alessandro Candeas a Leticia Pinheiro,
em Brasília, em 31-3-2009.
170 Política externa brasileira

de outras agências burocráticas a participarem das negociações internacio-


nais. Isso pode explicar em parte o processo de descentralização horizontal
da política externa, que passou a se estender a diferentes setores das buro-
cracias governamentais. Não se pode esquecer, porém, que a própria estru-
tura administrativa do ministério vem buscando atender a essa demanda,
complexificando-se e especializando-se (Rivarola Puntigliano, 2008), tor-
nando-se cada dia mais e mais um espelho do Planalto, com suas divisões
e subdivisões temáticas. Além disso, é preciso notar a orientação explícita
do ministério no sentido de receber em seus quadros profissionais egres-
sos de diferentes áreas de especialização, reconhecendo a diversidade te-
mática da política externa contemporânea e a necessidade de incorporar
os mais variados perfis em sua estrutura.
O protagonismo do Ministério da Educação nas discussões do setor
educacional do Mercosul pode ser atribuído, pois, à qualificação da insti-
tuição para debater programas e estratégias educacionais, e também à di-
versificação da agenda temática da política externa, causa e consequência
dessa atuação. O mesmo vem acontecendo com outros ministérios, que dia
a dia testemunham e contribuem para alargar sua competência em assun-
tos de política externa.27 De fato, conforme constatam pesquisas recentes,
há uma grande latitude na formulação e implementação da política exter-
na, “distribuídas por toda a estrutura do Poder Executivo Federal e não
apenas no MRE” (Cintra, 2010:342).
Mas como se daria na prática o relacionamento entre essas agências?
A esse respeito, é interessante sublinhar a resposta de uma técnica do MEC
a nossa pergunta sobre o grau de autonomia do ministério na formulação e
implementação de um projeto com interface com a política externa brasi-
leira para o Mercosul, sabendo-se que a Reunião de Ministros do Mercosul
não tem poder decisório:

O Itamaraty […] é o nosso norte. Ele norteia as ações, ele acompanha para
que não haja nenhum problema de nível de diplomacia. Nas reuniões de mi-
nistros da Educação nós temos um representante do Itamaraty, ele não tem
poder de palavra, de voto, nada […]. Ele é consultado. Ele está lá mais para

27
Pesquisa recente sobre a atribuição de competências aos órgãos do governo concedida pela
Lei no 10.683/2003 e pelos decretos específicos que estabelecem a estrutura regimental dos
ministérios, secretarias e conselhos que compõem o Poder Executivo Federal indica que a
nada menos que 45% dos ministérios é atribuída competência relacionada à política externa
(Cintra, 2010:339).
Política externa e educação 171

ser um suporte do que propriamente para direcionar alguma coisa. […]. O


que foi decidido na reunião de ministros passa para ser firmado na reunião
de chanceleres. Aí, sim […] A não ser que seja uma coisa assim muito longe
da PEB — o ministro não vai acatar uma determinação que fira a determi-
nação do presidente. Por isso [é] que o Itamaraty não tem ingerência. Ele só
tem ingerência nos projetos que desenvolve. Existem ações bilaterais que ele
desenvolve, mas não relacionados à área de educação.28

E indagada sobre qual era o poder do MRE de interferir nos projetos,


tanto no seu desenvolvimento quanto na sua iniciativa, esta mesma técnica
afirmou: “Nada. Nenhum. Poder ele não tem, pode dar sugestões. Mas que
seja acatada, nenhuma. [Não] dentro das atividades educacionais”.
Revelador também é olharmos esse relacionamento por outro ângu-
lo — o do Itamaraty. Ao justificar a propriedade das atividades das asses-
sorias internacionais dos ministérios domésticos e a conveniência de elas
serem ocupadas por um diplomata de carreira (“uma conquista do Itama-
raty para melhorar, dar maior coordenação à política do governo”), Ales-
sandro Candeas, ex-assessor internacional do MEC, descreveu as funções
dessa assessoria como de compatibilização entre as agendas do Itamaraty
e do outro ministério. Às assessorias internacionais caberia oferecer des-
de orientação sobre questões de natureza protocolar até esclarecimentos
relativos às prioridades políticas do país e à noção do que deve e do que
não deve ser feito em defesa dos interesses nacionais, cujo conhecimento
caberia ao Itamaraty. “Quem faz a política externa é o Itamaraty, não são
estes ministérios […] Mas você tem que ter o equilíbrio. O Itamaraty não
pretende monopolizar, mas sim coordenar”.29
No mesmo diapasão, ou seja, defendendo a importância da coope-
ração interburocrática para afinar posturas, a Assessoria Internacional do
Ministério da Educação, à época também sob a chefia de Candeas, em re-
latório de 2007 (p. 8), postulava:
Aprimorou-se a relação entre os ministérios da Educação e das Relações Ex-
teriores, com a diversificação e ampliação de projetos conjuntos entre setores

28
Entrevista de Milene Reis, da Assessoria Internacional do MEC, a Leticia Pinheiro, em
Brasília, em 9-7-2009.
29
Entrevista de Alessandro Candeas, assessor internacional do MEC de 2005 a 2007, a Le-
ticia Pinheiro, em Brasília, em 31-3-2009.
172 Política externa brasileira

de ambas [as] instituições. Multiplicaram-se as visitas recíprocas e a organi-


zação de reuniões de trabalho entre responsáveis por setores dos dois ministé-
rios. A expansão dos projetos de cooperação Sul-Sul é responsável, em grande
parte, por essa ampliação de laços e atividades conjuntas.

Nesse sentido, parece-nos pertinente perguntar se a atividade inter-


nacional autonomamente desenvolvida pelo Ministério da Educação este-
ve realmente em sintonia com as diretrizes de política externa do governo
brasileiro. Pois bem, a comparação entre o comportamento do Ministé-
rio da Educação e a política externa governamental aponta para posições
convergentes. A atuação dessa agência no setor educacional do Mercosul
é coerente com a ênfase dispensada pelo governo à integração sul-ameri-
cana e, especialmente, ao Mercosul.
Na realidade, mais do que simplesmente condizente com o projeto ex-
terno do governo, a atuação internacional do MEC tem sido mesmo um
instrumento de ação externa do Brasil para adensar seu comprometimen-
to com o processo de integração regional. O desempenho do Ministério da
Educação favorece o aprofundamento do arranjo integracionista, o que se
coaduna com a posição privilegiada que o Mercosul ainda ocupa na agenda
da política externa brasileira. Como visto, o ingresso da temática educacio-
nal pretendeu contribuir para consolidar a integração regional, confirman-
do a ideia de que as estratégias têm se complementado, e o compromisso do
Ministério da Educação com o SEM tem servido para fortalecer o compro-
misso do Brasil com o Mercosul (Pinheiro, Nogueira e Macedo, 2007:18).
Eis o que afirma, por exemplo, o ministro da Educação, ao se manifestar so-
bre a criação da Unila: “A integração dos países da América do Sul é uma
necessidade emergente. A criação da Unila representa a vontade do Brasil
de dar passos mais largos no que se refere ao continente”.30
Ressaltando a relevância do SEM, Haddad chegou mesmo a consi-
derar que: “a educação é uma das áreas de maior integração e crescimento
entre os países do Mercosul”.31

30
Discurso do ministro da Educação, Fernando Haddad, na cerimônia de posse da comis-
são para implantação da Unila, em 6 de março de 2008. Disponível no site institucional do
Mercosul Educacional.
31
Discurso do ministro da Educação, Fernando Haddad, em Belo Horizonte, na cerimônia
de encerramento do III Fórum Educacional do Mercosul, em 24 de novembro de 2006. Dis-
ponível no site institucional do Mercosul Educacional.
Política externa e educação 173

Por sua vez, o chanceler Celso Amorim afirmava:

A ação diplomática do governo Lula está impregnada de uma perspectiva


humanista, que faz com que seja, a um só tempo, instrumento de desenvolvi-
mento nacional e defensora de valores universais. Assim, nos concentraremos
tanto em projetos de interesse imediato — com ênfase na promoção da inte-
gração do Mercosul e da América do Sul, na articulação de uma agenda co-
mercial afirmativa e na intensificação de parcerias bilaterais — [quanto] em
objetivos de natureza mais ampla, como a redução do hiato entre ricos e po-
bres, a promoção e proteção dos direitos humanos, a defesa do meio ambien-
te e a construção de um mundo mais justo, mais seguro — e mais pacífico —
com base no Direito Internacional e nos princípios do multilateralismo.
Nossa prioridade é indiscutivelmente a América do Sul. Uma América
do Sul politicamente estável, socialmente justa e economicamente próspera
é um objetivo a ser perseguido não só por natural solidariedade, mas em fun-
ção do nosso próprio progresso e bem-estar.32

O que constatamos é que a participação do Ministério da Educação na


política externa brasileira não decorre de forças aleatórias nem de decisões
tomadas pelo MEC de modo autônomo. A atuação da agência educacio-
nal esteve inserida no projeto político definido e executado pelo conjunto
do governo e que se destinava a solidificar o Mercosul. Decorre daí a ideia
de que a expansão de temas no bloco não pode ser compreendida como um
processo automático, mas que se origina de opções políticas endereçadas ao
incremento da integração. O governo brasileiro, politicamente motivado a
intensificar o arranjo regional, lançou mão de seus órgãos burocráticos es-
pecializados para se envolver nas discussões regionais, ampliando o espectro
dos temas contemplados, o que, em última análise, favoreceu o amadureci-
mento do processo integrativo.
Nesse sentido, é fato que o MEC realmente atua em política externa,
implementando, per se, medidas de alcance internacional. No entanto, as
razões que justificam esse envolvimento ministerial não se circunscrevem à

32
Aula magna intitulada “A diplomacia do governo Lula”, proferida pelo chanceler Celso
Amorim no Instituto Rio Branco em 10 de abril de 2003.
174 Política externa brasileira

própria dinâmica da burocracia, mas estão fortemente vinculadas às amplas


diretrizes de política externa definidas pelo governo.
Em resumo, a participação do Ministério da Educação na política ex-
terna brasileira para o Mercosul se fez acompanhar pela inserção da temá-
tica educacional nas discussões do arranjo. Tendo em vista os potenciais
efeitos da educação no aprofundamento do processo integrativo, depreen-
de-se que o envolvimento do MEC é informado pela intenção de contri-
buir para a consolidação do bloco. Conclui-se, portanto, que a atividade do
MEC operou, em última instância, como um recurso para executar a orien-
tação de política externa do governo de enfatizar a integração regional.

Conclusão

Segundo Reynolds, pode-se definir política externa como “o conjunto de


medidas adotadas pelos diferentes setores do governo do Estado em re-
lação com outras entidades que também atuam na arena internacional,
com a finalidade de promover os objetivos permanentes dos indivíduos os
quais o Estado representa”. Ou seja, “cada segmento organizado da socie-
dade e os órgãos da burocracia do Estado (principalmente os especializa-
dos: diplomacia e forças armadas) tem sua própria política externa; a partir
de sua avaliação do quadro internacional e de seus interesses específicos,
cada qual busca maximizar sua participação no processo de destilação
que resulta no ato final de elaboração da política externa” (1977:58, apud
Gonçalves e Miyamoto, 1993:211, grifo nosso). As implicações decorren-
tes dessas afirmações merecem uma atenção cuidadosa, tanto porque su-
gerem que para além das Forças Armadas, consideradas um dos principais
atores rivais do Ministério das Relações Exteriores (Hill, 2003), haveria
outros a desempenhar esse papel, quanto porque, sendo assim, existiria
uma disputa inerente ao processo de formulação e implementação da po-
lítica externa cuja explicação passaria inevitavelmente pela assunção da
existência de disputas interburocráticas.
Neste capítulo, concordamos com a existência de uma crescente mul-
tiplicidade de participantes na formulação da política externa, mas ad-
mitimos que essa multiplicidade nem sempre é pautada por disputas de
interesses ou visões distintas do rumo a ser seguido pela política externa.
No caso aqui examinado, vimos que projetos educacionais foram pensados
Política externa e educação 175

como ferramentas importantes na construção de uma identidade e no forta-


lecimento do arranjo regional, e que isso certamente potencializou ou mes-
mo concedeu poder de agência ao Ministério da Educação.
No caso aqui investigado, porém, o componente político da inserção
do tema da educação na política externa brasileira dirigida ao Mercosul
relaciona-se com a apropriação da educação como forma de consolidar o
processo de integração regional. Com base na ideia de que os projetos po-
líticos de um Estado manifestam-se fortemente na constituição dos sis-
temas educacionais nacionais, é plausível conceber que, também em suas
ações exteriores, os países se valham de medidas educacionais para respal-
dar suas estratégias e assegurar seus objetivos. Nesse sentido, a opção bra-
sileira pela ênfase no Mercosul seria recrudescida pelo apoio às iniciativas
educacionais desenvolvidas no âmbito do bloco. Em outros termos, a in-
tegração seria favorecida pelo SEM, que, por buscar forjar uma identidade
comum entre os países do bloco, atuava no sentido de deslocar as relações
entre os Estados de uma “cultura lockiana”, marcada pela rivalidade, para
uma “cultura kantiana”, caracterizada pela harmonia e pela amizade (Wen-
dt, 1999; Pinheiro, Nogueira e Macedo, 2007).
O que destacamos aqui é que alguns elementos centrais na construção
do Estado-nação, como uma história comum e uma cultura comum, que
contribuem para a construção de uma “comunidade imaginada” (Anderson,
1991) como o Estado, também aparecem na construção de outros tipos de
comunidades imaginadas. Assim, resguardando as diferenças entre o Es-
tado-nação e uma entidade supranacional como o Mercosul, ambos, à sua
maneira, constituem comunidades políticas. Nesse sentido, o aprendizado
simultâneo das diferentes línguas faladas no espaço regional,33 assim como
o aprendizado ou a tentativa de se escrever uma história comum em que a
inclusão e a cooperação sejam enfatizadas em detrimento da exclusão e da
competição são parte do projeto educacional que cria uma identidade com-
partilhada, que por sua vez ajuda a constituir uma comunidade política.
As observações registradas neste capítulo tiveram como estímulo a
necessidade de se buscar novos ângulos para a compreensão das relações

33
É de notar que no projeto Escolas de Fronteira implantado com a Bolívia previa-se o ensi-
no trilíngue, incluindo, além das línguas oficiais do português e do espanhol, o guarani. En-
trevista de Alessandro Candeas a Leticia Pinheiro, em Brasília, em 31-3-2009.
176 Política externa brasileira

internacionais. Tendo em vista o crescente incremento das interações in-


ternacionais, que produzem efeitos em cada vez mais dimensões da vida
contemporânea, é imperativo estar atento aos novos temas e atores que
vêm sendo incorporados à dinâmica internacional. Nesse caso, a educação
sobressai como um espaço que já extrapola os domínios domésticos e es-
tabelece canais intensos de comunicação com o nível externo. Mais do que
isso, as questões educacionais, por estarem intrinsecamente vinculadas a fa-
tores de identidade e cultura, tornam evidente a importância de se abordar
essas temáticas na tentativa de compreender a vida internacional.
Outro ponto significativo dessa discussão é a problematização do
chamado “interesse nacional”. Ao se levar em conta os diferentes atores
que tomam parte na política externa, promove-se a reeducação do olhar do
analista, de modo que ele perceba as outras fontes de que se originam os
supostos interesses da nação. Por isso, é preciso que se entenda que “muito
da política externa gira em torno de definir, e não defender, os interesses
nacionais” (Finnemore, 1996:ix).
Desse modo, a ação externa brasileira no âmbito do Mercosul Educa-
cional aponta para a intenção de aprofundar a integração regional por meio
da superação de rivalidades e diferenças. Reconhecido o papel político de-
sempenhado pelo ensino de história, é plausível conceber que este não se
circunscreva à política interna, mas que também se estenda e se manifeste
na política externa. Ora, se os Estados podem se valer de artifícios educa-
cionais para empreenderem políticas no âmbito doméstico, não há razão
para desacreditar que avancem em medidas da mesma natureza em suas re-
lações externas. Portanto, a educação, aqui representada pelo viés específico
do ensino de história, pode traduzir-se em meio de recrudescer as opções
de política externa dos Estados. A esse respeito, cabe lembrar as palavras de
Braga (2009:62) em seu artigo sobre língua e poder: “as línguas dividem a
humanidade em grupos. É por meio de uma língua comum que um grupo
de pessoas age em concertação […]. Falar uma língua é compartilhar per-
cepções, anseios e inspirações”. Por outro lado, sabemos que muitas dessas
iniciativas são implementadas em detrimento ou mesmo em deliberada
negação de outras línguas e culturas.
Isso deixa claro que os mecanismos de atuação política podem se valer
de instrumentos muito variados. No caso da política externa, por exemplo,
as articulações não se restringem a entendimentos nas esferas comercial,
Política externa e educação 177

econômica ou militar, mas também se exprimem por meio de acordos cen-


trados em questões culturais e educacionais. Em decorrência, é premente
que a análise de política externa incorpore o debate sobre essas temáticas,
de modo a alargar seu poder explicativo acerca do comportamento inter-
nacional dos atores políticos.

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6.
Educação e política externa: por uma
parceria diplomacia-universidade

Alessandro Candeas

Este capítulo tem como objetivo propor que o Brasil fortaleça sua diplo-
macia acadêmica, intelectual e científica. Tal diretriz se inscreveria no âm-
bito de um soft power1 compatível com as tradições da política externa bra-
sileira, em benefício de uma agenda positiva na qual todos os parceiros
ganham. Para tanto, é preciso afirmar a educação mais sistematicamen-
te como parte de uma diplomacia voltada para a “civilização do conheci-
mento”. A natureza desta, que tem sido descrita por expressões como soft/
weightless economy e “cognitariato”, tende a transferir a batalha contra as as-
simetrias para o campo dos hiatos cognitivos.
A elevação do Brasil a patamares mais importantes de poder e in-
fluência no cenário internacional resulta, entre outros fatores, de seu pa-
pel impulsionador de uma agenda de desenvolvimento e de cooperação
Sul-Sul. Nessa perspectiva, o prestígio externo da agenda educacional do
Brasil abre amplas possibilidades de cooperação e intercâmbio, que são
cada vez mais demandados por nossos parceiros. A educação é uma das
áreas nas quais políticas públicas nacionais podem se projetar mundial-
mente, levando soluções brasileiras a problemas enfrentados por diversos
países, sobretudo os mais pobres.

1
“Soft power is the ability to achieve desired outcomes in international affairs through at-
traction rather than coertion. [...] Soft power can rest on the appeal of one’s ideas [...] If a sta-
te can make its power legitimate in the perception of others [...], it may not need to expend as
many of its costly traditional economic or military resources” (Nye, 1990:3).
182 Política externa brasileira

Educação: um dos pilares da cooperação internacional

Nos últimos anos, a capacidade de cooperação educacional prestada pelo


Brasil tem se ampliado consideravelmente. Essa expansão reflete a pro-
jeção internacional de diversos níveis e programas de educação no país:
educação superior, em particular pós-graduação; merenda escolar; distri-
buição do livro didático; alfabetização de jovens e adultos; ensino técnico-
profissionalizante; ensino a distância; programas de diversidade; formação
e capacitação de professores e gestores; e ensino de português e línguas es-
trangeiras, especialmente espanhol e inglês.
Uma das principais formas de cooperação é a transferência de “tec-
nologia gerencial” do Brasil a países em desenvolvimento para a for-
mulação de políticas públicas de estruturação e reforma educacionais
que atendam às necessidades e estratégias nacionais de desenvolvimen-
to destes últimos. Esse é um diferencial importante do estilo brasileiro
de cooperação: nos países desenvolvidos, a cooperação técnica baseia-
se mais na capacidade de oferta de suas agências (supply-driven) do que
nas necessidades efetivas dos países receptores (demand-driven). Em ou-
tras palavras, as “soluções” muitas vezes são impostas pelos interesses e
mecanismos institucionais dos países doadores. Não raro, tais “soluções”
respondem mais a interesses comerciais, de agências de consultoria, ou a
cálculos de influência político-estratégica (tied aid) do que às reais ne-
cessidades de desenvolvimento do país receptor. Não é por acaso que se
constata a relativa ineficácia das políticas de cooperação técnica tradicio-
nal, apesar do importante volume de recursos investidos pelas agências de
cooperação: o mundo desenvolvido não foi capaz de produzir transforma-
ções estruturais no Estado e na sociedade dos países receptores. O impac-
to setorial e geográfico é limitado.
Nesse contexto, o Brasil vem desenvolvendo um estilo de coopera-
ção voltado para reformas estruturantes, que estimulam as autoridades lo-
cais a pensar as necessidades estratégicas do país e a elaborar projetos de
desenvolvimento a partir de uma perspectiva endógena, inspirando-se na
experiência brasileira. Agentes governamentais estrangeiros realizam visi-
tas para conhecerem programas, políticas e melhores práticas no Brasil, e
técnicos brasileiros são enviados aos países para auxiliarem na elaboração
de programas nacionais.
Educação e política externa 183

A cooperação triangular (Norte-Sul-Sul), na qual o Brasil e outro


país, desenvolvido ou não, ou ainda um organismo internacional coope-
ram em favor de um terceiro país de menor desenvolvimento tem dado
resultados positivos.

Cooperação bilateral

É considerável a expansão da cooperação Sul-Sul com países da África,


Ásia e América Latina. Além dos temas já mencionados, esses continentes
têm se interessado em aplicar programas brasileiros nas áreas de formação
curricular, educação especial, elaboração de materiais didáticos, intercâm-
bio — Programas de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) e
Pós-graduação (PEC-PG)2 — e mecanismos de credenciamento e avalia-
ção. Por outro lado, aprofundou-se a cooperação acadêmica e institucional
com os parceiros desenvolvidos tradicionais — Alemanha, França, Esta-
dos Unidos, Reino Unido. Com a União Europeia, a mobilidade acadê-
mica beneficiou-se do programa Erasmus Mundus External Cooperation
Window,3 que abriu um programa de intercâmbio com o Brasil no valor de
€ 18 milhões para o período 2007-2010.
No campo da pós-graduação, sob os auspícios da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), merecem desta-
que o lançamento dos colégios doutorais4 franco-brasileiro, em 2005, e ar-
gentino-brasileiro, em 2008, bem como o aumento do número de missões
universitárias e de contatos entre instituições de ensino superior. O Brasil

2
Programa desenvolvido pelos ministérios das Relações Exteriores e da Educação que ofe-
rece oportunidades de formação superior a cidadãos de países em desenvolvimento com os
quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais.
3
O programa visa ao enriquecimento mútuo da União Europeia e países terceiros na área do
ensino superior, através de intercâmbio acadêmico e cultural. O intercâmbio é realizado por
intermédio de consórcios e cooperação institucional. As bolsas são destinadas a estudantes,
pesquisadores e acadêmicos. O processo de seleção é estabelecido por cada consórcio e suas
instituições parceiras, com base em critérios estabelecidos pela União Europeia. O apoio ao
selecionado inclui custeio de passagens e seguro-saúde, além de bolsa para sua manutenção
durante o período de intercâmbio. É publicado um edital regulamentando o programa.
4
Promovido pela Capes, o Colégio Doutoral visa a incentivar o intercâmbio de doutorandos
brasileiros e de países parceiros, matriculados em programas de excelência de instituições de
ensino superior (IESs), em regime de co-orientação ou cotutela, visando à formação de re-
cursos humanos de alto nível.
184 Política externa brasileira

tem procurado estimular a formação de especialistas estrangeiros no estudo


do país. Nesse sentido, realizou-se, em 2007, em Madri, o Primeiro Encon-
tro de Estudiosos do Brasil — “brasilistas”, como são chamados pelos espa-
nhóis — na Europa, seguido de uma segunda reunião em 2008.
Um capítulo interessante da cooperação educacional bilateral é o
atendimento das necessidades específicas das comunidades brasileiras no
exterior, por exemplo a aplicação das provas do Exame Nacional para Cer-
tificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) — diploma de
ensino secundário —, o ensino de português e de história e geografia do
Brasil, o apoio às escolas brasileiras no exterior, a oferta de cursos de gra-
duação a distância, o censo escolar e os exames nacionais de avaliação. O
caso do Japão é paradigmático em termos de gestões do governo brasileiro
junto às autoridades educacionais daquele país.
Em uma tentativa preliminar de categorização, podem-se distinguir
cinco níveis de densidade de agenda e de institucionalização da coopera-
ção educacional bilateral: a) alto nível de institucionalização, com forte in-
tercâmbio na área da pós-graduação (França e Alemanha, por exemplo); b)
nível intermediário de institucionalização, com expansão do intercâmbio
em diversos níveis e uma agenda densa e complexa que demanda crescen-
te institucionalização (Argentina, Estados Unidos, Reino Unido); c) nível
inicial de institucionalização, com forte potencial de expansão e interesse
recíproco (China, Índia, Japão, África, Israel, Líbano, Austrália); e d) nível
menor de institucionalização, que mereceria mais atenção, dado seu poten-
cial acadêmico e científico (Rússia, por exemplo).5

Cooperação multilateral

O Brasil tem atuação cada vez mais destacada em foros como Mercosul,
Unesco, Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação,
a Ciência e a Cultura (OEI), OEA, CPLP e Ibas, o que contribui para a
transformação de agendas substantivas e o aprimoramento dos mecanis-
mos em favor do fortalecimento da cooperação Sul-Sul e Norte-Sul-Sul

5
Para mais detalhes sobre a cooperação bilateral com os principais parceiros do Brasil, ver
relatório da Assessoria Internacional do MEC de 2005, disponível em: <http://portal.mec.
gov.br/ai/arquivos/pdf/relatorio2005_07.pdf>.
Educação e política externa 185

(triangular), incluindo o uso de formas alternativas de financiamento da


educação. O MEC e o Itamaraty participam de reuniões ministeriais e
técnicas em todas essas instâncias, contribuindo para a elaboração de pla-
nos de ação e avaliação, estatísticas educacionais etc.
Nas instâncias multilaterais, há um interesse especial em temas como
educação de jovens e adultos (EJA), educação a distância, ensino supe-
rior e tecnologias de informação e comunicação aplicadas à educação. O
ministro Fernando Haddad (2005-2010) apresentou proposta aos países
da CPLP e do Mercosul de ampliação da Universidade Aberta do Brasil
(UAB),6 a fim de aumentar a oferta de programas de capacitação, sobre-
tudo de docentes. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)
despertou o interesse da FAO, com a qual o Brasil firmou memorandos de
entendimento para levar a experiência a países como Angola, Moçambi-
que, Cabo Verde e Haiti, com o apoio do Fundo Nacional de Desenvolvi-
mento da Educação (FNDE).
No marco do Fórum Ibas, teve início em 6 de junho de 2003 a coo-
peração trilateral na área de pós-graduação, com a realização de seminá-
rios acadêmicos e programas de intercâmbio. O Brasil tem sido convidado
a participar mais estreitamente das atividades da Organização para a Coo-
peração e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), visando a uma even-
tual adesão futura à organização, em particular nas áreas de ensino superior,
pesquisa, inclusão digital e Programa Internacional para Avaliação de Es-
tudantes (Pisa).
Desde 2006 realizam-se rodadas de consultas sobre a liberalização
de serviços educacionais no âmbito do Acordo Geral sobre Comércio de
Serviços (Gats), inclusive na área de serviços privados de educação. A po-
sição do Brasil é de que a educação não constitui mercadoria ou serviço
sujeito às regras do mercado, sendo um direito humano, um bem públi-
co, um elemento fundamental para a construção da identidade nacional e
a formação de recursos humanos. A abertura indiscriminada da educação
ao comércio internacional de serviços poderia comprometer, em particu-
lar, a educação superior de qualidade. Nesse contexto, o país não inclui a

6
A UAB é um projeto elaborado pelo Ministério da Educação em parceria com estados, muni-
cípios e universidades públicas de ensino superior para a oferta de cursos de graduação, pós-gra-
duação e de extensão universitária, visando a ampliar o número de vagas da educação superior
para a sociedade, e a promover a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério
e dos profissionais da administração pública.
186 Política externa brasileira

educação na lista de oferta de serviços. Por outro lado, no plano regional


(Mercosul), haveria certa flexibilidade em favor da abertura de serviços
educacionais em algumas áreas — educação superior, educação para jo-
vens e adultos e educação especial.
A participação brasileira na Unesco tem atingido níveis cada vez mais
relevantes, afiançando sua liderança na agenda educacional multilateral.
Em 2009, o Brasil sediou a VI Conferência Internacional de Educação de
Adultos (Confintea) e foi um dos principais articuladores da Conferência
Internacional sobre Educação Superior. Na Unesco, o país tem estimula-
do a concretização de parcerias globais em favor da educação e do desen-
volvimento, sobretudo no âmbito do oitavo objetivo do milênio,7 que tem
sido o menos discutido e implementado. O argumento do Brasil é que a
parceria global é uma condição fundamental para a realização dos sete ou-
tros objetivos do milênio, cujo ônus não pode recair exclusivamente sobre
os países pobres. Por isso, o Brasil defende o fortalecimento da capacida-
de nacional dos países em desenvolvimento, a fim de que elaborem suas
próprias estratégias nacionais. Nesse processo, deveriam ser aproveitadas
as melhores práticas, programas e políticas dos grandes países em desen-
volvimento — Brasil, México, China e Índia, entre outros — no âmbito
da cooperação Sul-Sul.
O Brasil também defende o aumento dos recursos destinados à edu-
cação em todo o mundo, tanto no plano dos respectivos orçamentos nacio-
nais quanto nas transferências internacionais para países pobres, inclusive
por meio de mecanismos inovadores como a conversão de dívida externa.
Propõe, ademais, o aprofundamento de parcerias públicas e público-priva-
das em escala mundial e o incentivo à pesquisa em ciência e tecnologia nos
países em desenvolvimento, de maneira a evitar a evasão de cérebros.
Diversos documentos e relatórios da Unesco passaram a incorpo-
rar ideias e posições defendidas pelo Brasil: visão sistêmica da educação

7
De 6 a 8 de setembro de 2000, a ONU realizou a chamada Cúpula do Milênio, na qual foi
gerada a Declaração do Milênio, documento em que representantes das Nações Unidas lista-
ram suas maiores preocupações, ou seja, os principais problemas que podem colocar em risco
o futuro da humanidade. Esses problemas seriam solucionados através dos chamados objeti-
vos do milênio: i) erradicar a pobreza extrema e a fome; ii) atingir o ensino básico universal;
iii) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; iv) reduzir a mortali-
dade infantil; v) melhorar a saúde materna; vi) combater o HIV/aids, a malária e outras do-
enças; vii) garantir a sustentabilidade ambiental; viii) estabelecer uma parceria mundial para
o desenvolvimento.
Educação e política externa 187

(superação da dicotomia educação básica versus superior), acesso a edu-


cação de qualidade como base para a realização de outros direitos sociais,
educação inclusiva, alfabetização vinculada à educação continuada, neces-
sidade absoluta de incentivo à formação docente e à valorização do profes-
sor, expansão da educação técnica e profissional e sua aproximação com o
mundo do trabalho, emprego de tecnologias de educação a distância, res-
peito à diversidade cultural e ambiental, aumento dos recursos investidos
na educação, compartilhamento das melhores práticas, parcerias público-
privadas, papel do Estado na regulamentação e organização da educação
oferecida pelo setor privado e melhor coordenação entre os diversos pro-
gramas e iniciativas internacionais. A Unesco, acolhendo proposta brasi-
leira, recomenda desde 2005 que os parceiros da iniciativa Educação para
Todos8 explorem o potencial de mecanismos de financiamento inovadores
para mobilizar recursos, podendo ser adotadas a conversão da dívida exter-
na e a ampliação da International Finance Facility (FTI).9
Vale destacar a articulação realizada entre os países do E-9 — grupo
constituído por Brasil, Bangladesh, China, Egito, Índia, Indonésia, México,
Nigéria e Paquistão, que juntos reúnem uma população de mais de 3,2 bi-
lhões de pessoas, ou seja, mais de 50% da população mundial, 53% de todas
as crianças em idade escolar e 40% dos 104 milhões de crianças fora da es-
cola e 70% dos mais de 860 milhões de adultos analfabetos do mundo. Mais
uma vez, atendendo à proposta brasileira, o E-9 iniciou a elaboração de um
portfólio de boas práticas a serem colocadas à disposição da Unesco.10
No campo do financiamento da educação, a Unesco incentiva, desde
2005, também por iniciativa do Brasil, a adoção de mecanismos de troca

8
Em 2000, mais de 160 países assinaram o compromisso Educação para Todos, que prevê o
cumprimento de seis metas, entre as quais universalização do ensino fundamental, redução
da taxa de analfabetismo e melhoria da qualidade do ensino. Para tanto, a Unesco criou um
Índice de Desenvolvimento de Educação para Todos (IDE).
9
A FTI é uma parceria global, lançada em 2002 entre países doadores e países de baixa ren-
da com vistas a realizar os objetivos do milênio no plano da universalização da educação pri-
mária. Liderada pelo Banco Mundial, a FTI coordena, de certa forma, a aplicação da ajuda
oficial ao desenvolvimento (ODA, na sigla em inglês) da educação.
10
A parte relativa às boas práticas brasileiras inclui os seguintes programas: Bolsa Família,
Brasil Alfabetizado, Fazendo Escola, Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
(Saeb), Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) e Proformação. Os outros países do E-9 apresentarão projetos semelhan-
tes de cooperação Sul-Sul, que deverão compor um “banco de boas práticas” a serem adota-
das por outros países em desenvolvimento.
188 Política externa brasileira

de dívida externa por educação, como forma de ampliar as perspectivas de


mecanismos inovadores para alcançar os objetivos da Educação para Todos
(objetivos do milênio) e analisar o impacto da troca de dívidas sobre os in-
vestimentos em educação. Nesse contexto, grupos de trabalho têm trocado
experiências e documentos sobre práticas já realizadas na área.11

O papel da educação na integração regional

A educação é condição indispensável para o fortalecimento do processo de


integração regional na América Latina, em especial no Mercosul. A educa-
ção confere não só viabilidade social a esse processo — visto que eleva a qua-
lidade de vida e permite um melhor conhecimento dos sócios e vizinhos —,
mas também afirma o sentido histórico para a interação das nações.
Os céticos apontam os baixos níveis de educação que sempre marca-
ram a maioria dos países da região — com exceções dignas de nota, como
Argentina, Chile e Uruguai — para questionar a possibilidade de uma
educação para a integração. Segundo essa visão, tamanhos são os desa-
fios nacionais de analfabetismo, baixa qualificação técnica e fracasso esco-
lar que investir em conteúdos e mecanismos educacionais que incentivem
a integração seria um luxo desnecessário; haveria, primeiro, que atacar os
problemas nacionais, e somente então, caso sobrassem vontade e recursos,
poder-se-ia pensar em um ensino preocupado com o processo regional.
Essa visão é equivocada por dois motivos: primeiro, porque a conver-
gência de políticas públicas no plano regional voltadas para o resgate das
dívidas sociais históricas exerce um efeito de contágio (os governos se es-
timulam reciprocamente e emulam os avanços alcançados nos países vi-
zinhos); segundo, porque países com maiores recursos e experiências em
transformações estruturais podem auxiliar países com menos possibilidades
a fazer as necessárias mudanças em seus sistemas educacionais, com vistas a
reduzir as profundas assimetrias regionais. A integração, portanto, estimula
os avanços nas políticas públicas no campo educacional; e isso, por sua vez,
acentua o interesse em gerar conteúdos educacionais — curriculares ou ex-
tracurriculares — voltados para o aprofundamento da integração.

11
Para mais informações sobre a cooperação bilateral com os principais parceiros do Brasil,
ver relatório da Assessoria Internacional do MEC de 2005, disponível em: <http://portal.
mec.gov.br/ai/arquivos/pdf/relatorio2005_07.pdf>.
Educação e política externa 189

Além disso, a educação acelera o processo de desenvolvimento, tanto


por formar recursos humanos mais qualificados quanto por promover a in-
clusão social. Não se trata apenas de garantir o acesso de crianças, jovens e
adultos aos sistemas educacionais, com a finalidade de obter um mero im-
pacto estatístico, mas também de lhes assegurar um ensino de qualidade
que os capacite a exercer a plena cidadania intelectual, acadêmica e profis-
sional na sociedade do conhecimento. Nesse particular, a educação técnica
e profissionalizante tem sido objeto de iniciativas de cooperação regional.
É nesse espírito que se insere a educação para a integração: um con-
junto de conteúdos, mecanismos, práticas e políticas voltado para conhecer
melhor as sociedades vizinhas, e permitir que todos produzam com mais
qualidade, superem preconceitos e estereótipos, aprendam a se relacionar
com respeito e mútua compreensão e construam, conjuntamente, um des-
tino próspero. As ações do setor educacional do Mercosul, instância de
concertação integrada por representantes dos ministérios da Educação dos
países do bloco, se inserem nessa diretriz. Sua visão é assim definida:

Ser um espaço regional no qual se oferece e se garante uma educação com


equidade e qualidade, caracterizado por conhecimento recíproco, intercultu-
ralidade, respeito à diversidade e cooperação solidária, com valores compar-
tilhados que contribuem ao aprimoramento e à democratização dos sistemas
educacionais da região e à produção de condições favoráveis para a paz, me-
diante o desenvolvimento social, econômico e humano sustentável.12

A missão do setor educacional do Mercosul é

Conformar um espaço educacional comum, por meio da concertação de


políticas que articulem a educação com o processo de integração do Mer-
cosul, estimulando a mobilidade, o intercâmbio e a formação de uma iden-
tidade e cidadania regionais, com vistas a lograr uma educação de qualidade
para todos, com atenção especial aos setores mais vulneráveis, em um pro-
cesso de desenvolvimento com justiça social e respeito à diversidade cultu-
ral dos povos da região.13

12
Plano 2006-2010 do setor educacional do Mercosul, disponível em: <http://www.sic.inep.
gov.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=27&Itemid=32>.
13
Plano 2006-2010 do setor educacional do Mercosul, disponível em: <http://www.sic.inep.
gov.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=27&Itemid=32>.
190 Política externa brasileira

As definições citadas, enunciadas no Plano de Ação 2006-2010 do


setor educacional do Mercosul,14 apontam cinco objetivos estratégicos: a)
contribuir para a integração regional, acordando e executando políticas
educativas que promovam uma cidadania regional, uma cultura da paz e o
respeito à democracia, aos direitos humanos e ao meio ambiente; b) pro-
mover a educação de qualidade para todos como fator de inclusão social, de
desenvolvimento humano e produtivo; c) promover a cooperação solidária
e o intercâmbio, para o aprimoramento dos sistemas educacionais; d) im-
pulsionar e fortalecer programas de mobilidade de estudantes, estagiários,
docentes, pesquisadores, gestores, diretores e profissionais; e e) concertar
políticas que articulem a educação com o processo de integração do Mer-
cosul. Tais objetivos se desdobram em ações como as seguintes:
• promoção de uma consciência cidadã favorável ao processo de inte-
gração regional, em particular por meio do fomento de programas
culturais, linguísticos e educacionais que contribuam para construir
uma identidade regional, e da promoção e difusão dos idiomas ofi-
ciais do Mercosul;
• incentivo a iniciativas em consonância com os objetivos da Educação
para Todos e dos objetivos do milênio, em especial por meio de pro-
gramas para a valorização e formação docente, a educação de jovens e
adultos, a educação não formal e a educação a distância, com a incor-
poração de novas tecnologias e o fortalecimento dos vínculos entre a
educação e o sistema produtivo;
• conhecimento recíproco das políticas educativas dos países da região,
incentivo a pesquisas que permitam um melhor conhecimento da rea-
lidade educativa da região, organização e fortalecimento de redes ins-
titucionais e acadêmicas que facilitem o intercâmbio de informações
e de experiências e a transferência de tecnologias;
• garantia e consolidação do direito à educação no marco do processo
de integração regional, por meio do reconhecimento e da equipara-
ção de estudos, que permitam a criação e a expansão de programas de
mobilidade acadêmica em diversos níveis.

14
Para informações detalhadas, consultar o site do Sistema de Informação do Mercosul
Educacional: <http://www.sic.inep.gov.br/>. O Plano de Ação 2006-2010 e o Plano Opera-
cional encontram-se no segmento “documentos e referências”.
Educação e política externa 191

São ambiciosos os resultados desejados pelo setor educacional do


Mercosul:
• conformar redes de especialistas em história e geografia regionais, in-
corporando-se aos currículos conhecimentos sobre as peculiaridades
dos países do bloco; trata-se, aqui, de contrabalançar o ensino de uma
história e de uma geografia da diferenciação por um ensino que tam-
bém demonstre as amplas convergências;15
• estimular o ensino do espanhol e do português como segundas lín-
guas nos currículos escolares;
• estabelecer um sistema regional eficaz de reconhecimento e certifica-
ção de competências, assim como de processos de credenciamento e
avaliação de estudos de graduação e pós-graduação;
• realizar estudos analíticos com base em indicadores estatísticos edu-
cacionais;
• estimular a criação e a ampliação de redes de instituições universitá-
rias, redes de educação básica e média e redes de centros de formação
docente;
• utilizar os fundos de convergência estruturais do Mercosul em proje-
tos e programas educacionais;
• estabelecer um sistema de concessão gratuita de vistos para estudan-
tes, docentes e pesquisadores;
• criar uma biblioteca virtual com o material existente sobre cultura de
paz, democracia, direitos humanos e meio ambiente.
Com base nessas diretrizes, são múltiplas as iniciativas levadas a cabo
pelo setor educacional do Mercosul nos diversos níveis. No campo da edu-
cação básica, foram elaborados uma nova proposta de tabela de equivalência

15
Não há, por exemplo, nos livros escolares de história do Brasil nenhum capítulo sobre
Guerra com a Argentina, mas, nos livros argentinos, existe um capítulo sobre a Guerra con-
tra o Império do Brasil, que no Brasil é ensinado como Guerra Cisplatina. Ensina-se com
maior frequência a história da Europa do que os processos coloniais, de independência e de
desenvolvimento de nossos vizinhos. Não se propõe aqui uma historiografia revisionista e
dirigista, preocupada em criar dogmas integracionistas, mas um ensino mais completo, que
mostre as convergências e realidades compartilhadas pelos países da região.
192 Política externa brasileira

e reconhecimento de títulos e certificados e o documento “Orientações ge-


rais para aplicação do Protocolo de Reconhecimento de Integração Educa-
cional — Nível Primário e Médio Não Técnico”. Foi ainda promulgada, no
Brasil, a Lei no 11.161/2005, que tornou obrigatório o ensino do espanhol
como língua estrangeira nas escolas de nível médio. Países do Mercosul es-
tão colaborando com universidades, escolas e secretarias estaduais na forma-
ção e no aperfeiçoamento docente nesse campo.
Na mesma perspectiva, cresce o interesse, nos países vizinhos, pelo
ensino do português. Merece destaque a iniciativa das escolas bilíngues de
fronteira, projeto lançado bilateralmente pelo Brasil e pela Argentina em
2004 e posteriormente incorporado à agenda do Mercosul, com previsão
de ampliação a cidades de fronteira do Brasil com seus vizinhos sul-ame-
ricanos. Outro importante programa é o de bibliotecas escolares, responsá-
vel pela distribuição de livros didáticos e literários às escolas dos países do
Mercosul, a começar pelas regiões de fronteira.
Na esfera da educação superior, cabe ressaltar a ênfase nos programas
de mobilidade acadêmica, avaliação e credenciamento. O Mecanismo Ex-
perimental de Credenciamento (Mexa), aplicado aos cursos de agronomia,
engenharias e medicina, foi transformado em mecanismo/sistema regional
permanente de cursos de graduação. O programa Mobilidade Acadêmica
de Cursos Credenciados (Marca) está em expansão, com a inclusão de no-
vos cursos: enfermagem, odontologia, veterinária e arquitetura. Em 2007,
foi assinado o “Memorando de entendimento sobre a criação e implemen-
tação de um sistema de credenciamento de cursos universitários para o re-
conhecimento regional da qualidade acadêmica das respectivas titulações
no Mercosul e Estados associados” (Arcu-SUR). E há também o programa
Mobilidade Docente de Curta Duração.
Outro objetivo relevante é o Espaço Regional de Educação Superior
do Mercosul, lançado em 2006 com o seguinte perfil: lecionar e pesquisar
temas voltados para a integração regional nos campos das ciências huma-
nas e sociais, científico-tecnológicas, agrárias e ecológicas, de saúde e ar-
tísticas; constituir campi universitários nos diversos países do Mercosul ou
programas de outras universidades, faculdades e departamentos; instituir
processo de seleção de docentes, estudantes, pesquisadores e gestores aber-
to a cidadãos dos países do Mercosul; estabelecer projeto pedagógico de
graduação e pós-graduação, mecanismos de validação de diplomas e mobi-
lidade de professores, estudantes e pesquisadores.
Educação e política externa 193

Inspirado nessa diretriz, o Brasil criou a Universidade Federal da


Integração Latino-Americana (Unila)16 e o Instituto Mercosul de Estu-
dos Avançados (Imea), ambos com sede no Parque Tecnológico de Itaipu
(PTI), em Foz do Iguaçu, que ministrarão cursos em áreas de interesse re-
gional, sobretudo temas que envolvam a exploração de recursos naturais e
biodiversidades transfronteiriças, estudos sociais e linguísticos regionais
e Relações Internacionais, além de outras áreas estratégicas para o desen-
volvimento regional. Quando estiver em pleno funcionamento, a Unila terá
10 mil estudantes em cursos de graduação, mestrado e doutorado. Metade
dos alunos e dos 500 docentes será originária dos países latino-americanos,
sendo os exames e as aulas ministrados em português e espanhol.
Os ministros da Educação dos países do Mercosul lançaram, em 2007,
em Montevidéu, o Arcu-SUR. A integração educacional, em particular no
plano do ensino superior, articula-se em torno do conceito de “cooperação
solidária”. Nessa linha, têm sido constituídos consórcios de universidades
oriundas de países da região como forma de articulação de políticas, pro-
gramas e convênios interinstitucionais e programas de pós-graduação em
áreas estratégicas, como produção de alimentos, água, sustentabilidade e
meio ambiente, história e sociedade, entre outras.

Por uma parceria entre diplomacia e universidade

Este capítulo, como já disse, propõe o estabelecimento de uma parceria en-


tre diplomacia e universidade. A agenda dessa parceria poderia ser o mé-
todo e os critérios que orientam o ranking internacional das universidades,
a partir do modelo estabelecido pela Shanghai Jiao Tong University.17 Os
critérios que orientam os escores são os seguintes:18
• alumni — qualidade dos alunos egressos (prêmios acadêmicos, in-
cluindo Nobel);
• award — qualidade do corpo docente (prêmios acadêmicos, incluin-
do Nobel);
• HiCi — qualidade do corpo docente (citações);

16
Ver site da Unila: <http://www.unila.net.br/edital/index.php>.
17
Consultar o Academic Rank of World Universities, em <http://www.arwu.org/>.
18
A metodologia utilizada está disponível no site <http://www.arwu.org/ARWU
Methodology2009.jsp>.
194 Política externa brasileira

• N&S — publicação de artigos sobre natureza e ciência;


• PUB — publicação de artigos em revistas científicas indexadas e so-
bre ciências sociais.

Critérios Indicadores Referência Peso (%)


Qualidade da Alunos com prêmios Nobel e prêmios
Alumni 10
educação em áreas específicas (fields medals)
Professores com prêmios Nobel e prêmios
Award 20
Qualidade do em áreas específicas (fields medals)
corpo docente Pesquisadores muito citados em 21 categorias
HiCi 20
temáticas amplas
Artigos publicados sobre natureza e ciências N&S 20
Produção
científica Artigos em revistas científicas indexadas
PUB 20
e no Social Science Citation Index
Performance
Performance acadêmica per capita da instituição PCP 10
per capita
Total 100

Na lista de 2009, as 19 primeiras universidades são anglo-saxônicas.


A primeira a aparecer fora desse circuito, em 20o lugar, é a Universidade
de Tóquio.
Vejamos a posição das melhores universidades brasileiras e latino-
americanas:

Ranking
Instituição País Alumni Award HiCi N&S PUB
mundial
Entre 100 e 150 USP Brasil 0,0 0,0 10,3 12,6 69,3
Universidade
Entre 152 México 14,5 0,0 7,3 11,6 48,7
Autônoma do México
e 200
UBA Argentina 18,9 25,3 0,0 5,7 36,6
Entre 200 e 300 Unicamp Brasil 0,0 0,0 7,3 6,9 41,2
Entre 300 UFMG Brasil 0,0 0,0 7,3 6,6 33,0
e 400 UFRJ Brasil 0,0 0,0 0,0 11,3 39,5
Entre 400 e 500 UFRGS e Unesp Brasil

19
É a seguinte a lista das 20 melhores, segundo o critério aqui empregado: Harvard, Stanford,
Berkeley, Cambridge, MIT, California Institute of Technology, Columbia, Princeton,
Chicago, Oxford, Yale, Cornell, Los Angeles, San Diego, Pennsylvania, Washington,
Wisconsin, San Francisco e Johns Hopkins.
Educação e política externa 195

As seguintes conclusões emergem de um rápido exame da lista das


100 melhores universidades: a hegemonia anglo-saxônica aumentou, com
os Estados Unidos e o Reino Unido ocupando 64% da lista; o Japão e a
Alemanha consolidaram sua posição acadêmica, somando 10%; a Europa
continua sendo o continente mais representado em quantidade de países
(32%), com destaque para Alemanha, França, Suécia, Suíça e Finlândia;
fora do circuito europeu, mas com desempenho equivalente, merecem des-
taque Canadá e Austrália e, abaixo do patamar dos 100 primeiros, nota-se
a crescente presença da China e dos “tigres” asiáticos.
No primeiro grupo, com exceção de Japão e França, a posição das
universidades em todos os países desenvolvidos é mais destacada, em ter-
mos percentuais, do que o peso de suas próprias economias em escala glo-
bal. Em outras palavras, a projeção científico-tecnológica é maior do que a
projeção econômica desses países. Da mesma forma, a importância relativa
das universidades desses países é muito maior do que seus percentuais de-
mográficos em termos mundiais.
No segundo “pelotão”, ao qual pertence o Brasil, os países em desen-
volvimento têm um peso econômico e demográfico maior do que sua rele-
vância científico-tecnológica, medida em termos de presença universitária.
Já em países desse mesmo grupo com alto IDH, quer europeus (Itália,
Áustria, Bélgica, Irlanda), quer de outras regiões (Chile, Nova Zelândia), a
posição de suas universidades é mais destacada do que a de suas economias
e demografias.
O Brasil, com cerca de 2,8% da população mundial e 2,7% da econo-
mia global, é responsável por 2,6% da produção científica (medida em ter-
mos de artigos publicados nas principais revistas científicas). A trajetória
é fortemente ascendente: desde os anos 1980, o crescimento de nossa pro-
dução de artigos é mais de quatro vezes maior do que a média mundial, o
que permite identificar a tendência de que, em breve, a produção científica
ultrapasse, em termos relativos, o peso econômico e demográfico do país.
De fato, as universidades brasileiras têm se notabilizado pela cres-
cente produção científica, segundo os critérios HiCi, N&S e PUB. Em
2008, o Brasil produziu 30.415 artigos em revistas científicas de relevo.20

20
Dados da Capes, com base em estatísticas de 2008 do Institute for Scientific Information
(ISI). Esse crescimento é reflexo do maior número de doutores (o Brasil deve formar 16 mil
doutores em 2010).
196 Política externa brasileira

Segundo esse critério, o Brasil ocupa a 13a posição mundial em produção


científica.21 Portanto, ainda distante da posição econômica do país (entre
8a e 10a potência).
Por outro lado, cabe um alerta. Não basta aumentar o número de dou-
tores e sua produção acadêmica. É necessário acelerar ainda mais esse pas-
so, tendo como parâmetro não a média mundial, mas os países de ponta,
cujo ritmo continua cada vez mais acelerado. A China, que estava no mes-
mo nível do Brasil em 1981 em termos de produção científica, hoje é a se-
gunda potência científica do mundo.
As categorias de avaliação do ranking mundial de universidades ofe-
recem uma agenda e uma estratégia para a cooperação internacional em
ciência, tecnologia e inovação. Nessa perspectiva, alguns aspectos são fun-
damentais: assegurar a presença de scholars brasileiros em centros de ex-
celência internacional, para que sejam cada vez mais considerados “pares”
aptos a participar mais ativamente da produção científica mundial; apri-
morar o acesso a publicações relevantes, a fim de elevar não só o número
de artigos produzidos, mas também de citações (ou seja, a qualidade dos
artigos); aprofundar o conhecimento dos avaliadores do ranking mundial
sobre as universidades brasileiras, e incluir o Brasil no mainstream dos cir-
cuitos de intercâmbio acadêmico mundial, recebendo mais professores es-
trangeiros altamente qualificados.
Ao contrário do temido brain drain — que vale para países menos de-
senvolvidos que não dispõem de mercado que absorva recursos humanos
de alta qualidade, o que não é o caso do Brasil —, a presença de scholars
brasileiros em centros de excelência e a inclusão do país nos principais
circuitos acadêmicos mundiais contribuiriam para ampliar o impacto da
produção científica e intelectual nacional e, indiretamente, para elevar o
ranking de nossas universidades. O que tem sido feito? O país vem inten-
sificando a cooperação, o intercâmbio e a produção científica conjunta por
meio das seguintes modalidades:
• mobilidade e intercâmbio de estudantes, professores, pesquisadores e
gestores no Mercosul “ampliado”, na Europa e nos Estados Unidos;

21
As posições são as seguintes, com base igualmente no ISI 2008: Estados Unidos, China,
Alemanha, Japão, Inglaterra, França, Canadá, Itália, Espanha, Índia, Austrália, Coreia do
Sul e Brasil.
Educação e política externa 197

• parcerias universitárias com países como Alemanha, Argentina, Esta-


dos Unidos, França, Canadá, Colômbia, Itália e Uruguai;
• bolsas de estudo — programas desenvolvidos com Alemanha, Cuba,
Estados Unidos e França;
• consórcios universitários, com Estados Unidos, França e Argentina;
• projetos conjuntos de pesquisa em pós-graduação, com Alemanha, Ar-
gentina, Chile, Cuba, Espanha, Estados Unidos, Portugal, Uruguai e
Holanda;
• cátedras no Brasil e no exterior — cátedras Rio Branco, cátedras de
estudos brasileiros;
• Escola de Altos Estudos,22 com financiamento da Capes para a vinda
de top scholars (incluindo prêmios Nobel) para ministrarem cursos de
pós-graduação;
• internacionalização dos cursos de pós-graduação brasileiros no exterior,
como, por exemplo, com Angola, Cabo Verde, Cuba.
Cabe ainda sublinhar o incentivo criado pela chamada Lei Haddad,23
uma espécie de Lei Rouanet para ciência e tecnologia que adota regras de
amortização para investimentos vinculados a pesquisa e desenvolvimento.
Segundo a lei, a pessoa jurídica pode excluir do lucro líquido, para efeito
de apuração do lucro real e da base de cálculo da contribuição social, os
dispêndios efetivados em projeto de pesquisa científica e tecnológica, e de
inovação tecnológica, a ser executado por instituição científica e tecnoló-
gica. A participação na titularidade dos direitos sobre a criação e a pro-
priedade industrial e intelectual corresponderá à razão entre a diferença
do valor despendido pela pessoa jurídica e do valor do efetivo benefício
fiscal utilizado, de um lado, e o valor total do projeto, de outro, cabendo
à instituição científica e tecnológica a parte remanescente. A transferên-
cia de tecnologia, o licenciamento para a outorga de direitos de uso e a
exploração ou a prestação de serviços podem ser objeto de contrato entre

22
Para mais informações sobre o programa Escola de Altos Estudos da Capes, ver <http://
www.capes.gov.br/cooperacao-internacional/multinacional/escola-de-altos-estudos>.
23
Lei no 11.487, de 15 de junho de 2007. Ver, em especial, o art. 19-A e os respectivos pa-
rágrafos.
198 Política externa brasileira

a pessoa jurídica e a instituição científica e tecnológica. Só podem rece-


ber recursos projetos previamente aprovados por comitê permanente de
acompanhamento de ações de pesquisa científica e tecnológica e de inova-
ção tecnológica, constituído por representantes do Ministério da Ciência
e Tecnologia, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior e do Ministério da Educação.
Em síntese, a diplomacia e a universidade brasileiras deveriam se as-
sociar para estruturar um sistema de inteligência científico-tecnológica e
acadêmica com o mesmo vigor e a mesma eficiência com que a diploma-
cia e o empresariado estruturaram uma “inteligência comercial”, como é
denominada pela agência diplomática brasileira a atividade de promoção
comercial. Da mesma forma que negociamos tarifas e lutamos contra bar-
reiras comerciais, podemos melhorar o lugar e o reconhecimento do Brasil
no plano científico-tecnológico e acadêmico mundial.
Inspirados no reconhecido êxito de nossa política de promoção co-
mercial, para a qual já dispomos de know how, poderíamos pensar em uma
estratégia de informação e inteligência baseada nos seguintes aspectos:
• disseminação de informações sobre oportunidades de intercâmbio e
pesquisa em C&T e inovação;
• captação de “investimentos científicos”;
• pesquisa, análise e desenvolvimento de estudos de oportunidades de
produção científico-tecnológica e acadêmica, com ênfase em áreas de
interesse nacional;
• estímulo à eficiência científico-tecnológica e acadêmica, com a disse-
minação das melhores práticas adotadas pelos principais centros de
excelência mundial;
• inspirado no Brazil Trade Net, elaborar um S&T Brazilian Net, em
parceria com o Itamaraty, o MEC, o MCT e as principais universida-
des e centros de excelência do país, para disponibilizar oportunidades
de pesquisa, intercâmbio, bolsas e calls for papers, sistematizando o tra-
balho de coleta, trato e armazenamento de informações que possam
servir para subsidiar decisões estratégicas de candidaturas e de acesso
competitivo a pesquisas e eventos de C&T e inovação;
Educação e política externa 199

• ampliar, democratizar e agilizar as condições de acesso às informa-


ções prestadas, dando-lhes um tratamento de governo, e não apenas
de candidaturas individuais e/ou institucionais;
• apoiar agentes brasileiros de C&T e inovação no exterior (alunos,
pesquisadores, professores), estimulando sua participação nas princi-
pais pesquisas, publicações e eventos científicos, abrindo novos “mer-
cados” para a produção nacional e alargando a participação do país em
nichos insuficientemente explorados;
• estimular endowments de empresas brasileiras para a criação de cáte-
dras permanentes em centros de excelência universitária;
• identificar oportunidades de inclusão da ciência brasileira nos princi-
pais centros de excelência mundial.
Um último comentário: os acadêmicos e as universidades do Bra-
sil e da América Latina precisam ser mais bem conhecidos nos grandes
centros de excelência mundial, ter mais acesso às publicações, estar mais
abertos a professores de ponta e a estudantes de alto nível. Em parte, isso
depende, evidentemente, de nossa própria produção; mas, em parte, de-
pende também da ruptura de um certo “paroquialismo epistemológico”
anglo-saxônico e do mundo desenvolvido, que não leva em conta a quali-
dade da ciência produzida, de forma mais ampla, no Hemisfério Sul. De
fato, nessas classificações internacionais, os países em desenvolvimento
não têm qualquer controle sobre os critérios empregados, muitas vezes
etnocêntricos e com características neocoloniais, que precisam ser ques-
tionados. A parceria diplomacia-universidade, nesse sentido, não deve ser
apenas um desafio para o Brasil, mas para todos os países em desenvol-
vimento, de modo que o recurso humano mais democraticamente dis-
tribuído — a inteligência — seja efetivamente aproveitado, estimulado e
canalizado para o bem-estar de todos os povos.

Bibliografia

NYE, Joseph. Bound to lead: the changing nature of American power. New York:
Basic Books, 1990.
PARTE IV

Saúde
7.
Saúde pública, patentes e atores não
estatais: a política externa do Brasil ante
a epidemia de aids

André de Mello e Souza

O combate à epidemia de aids representa um dos maiores desafios das po-


líticas globais e nacionais de saúde pública nas últimas décadas. Em 2009,
havia cerca de 33,3 milhões de pessoas infectadas com o HIV, e cerca de
1,8 milhão de mortes foram causadas pela epidemia naquele ano (Unaids,
2010:7; 19). No Brasil, estima-se em 592.914 os casos de aids identifica-
dos no período de 1980 até junho de 2010 (Departamento de DST, aids
e Hepatites Virais, 2010:7). Dado seu alcance global, mortalidade e mor-
bidade, a aids é geralmente considerada a maior epidemia da história da
humanidade.
Contudo, a extensão e o impacto da aids não são suficientes para ex-
plicar o lugar de destaque que a epidemia tem ocupado na agenda política
internacional, de modo geral, e na política externa brasileira, em particular.
Historicamente, raras vezes temas de saúde pública têm dominado nego-
ciações em fóruns bilaterais, regionais e multilaterais.1 Doenças que apre-
sentam letalidade similar ou mesmo superior à da aids, como a hepatite C,
a malária e a tuberculose, sem mencionar as doenças mais negligenciadas,
como a doença de Chagas e a doença do sono, revelam de forma inequí-
voca que a gravidade epidemiológica não é por si só capaz de mobilizar a
comunidade internacional. O fato de a aids ter afetado sobretudo os países
pobres da África subsaariana, do sul da Ásia e do Caribe, mas também os

1
Nem a gripe espanhola de 1918/1919, que, segundo estimativas, matou de 3% a 6% da popu-
lação mundial, foi foco de políticas internacionais, em parte por ter coincidido com a I Guerra
Mundial.
204 Política externa brasileira

países ricos da América do Norte e da Europa ocidental, assim como gru-


pos domésticos abastados e influentes desses países, ajuda a explicar seu
peso político.
A política global para a aids tem sido altamente influenciada por ato-
res não estatais. Notadamente, organizações não governamentais (ONGs),
locais e transnacionais, assim como empresas multinacionais do setor far-
macêutico, têm desempenhado papel importante na elaboração e imple-
mentação das políticas de tratamento da epidemia. Diante da escassez de
recursos, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil, a
distribuição do acesso a terapias antirretrovirais entre países e entre gru-
pos domésticos envolve intricadas relações de poder que não se restrigem
ao âmbito do Estado. Em particular, redes transnacionais, tanto de empre-
sas quanto de ONGs, e uma ampla gama de outros atores da sociedade ci-
vil reconfiguram e complexificam a interação dos atores e oferecem novos
canais de influência política. O acesso às esferas decisórias nacionais e in-
ternacionais por esses diferentes atores e sua capacidade de estabelecer as
agendas determinam em grande medida as respostas dadas à aids. As re-
lações de poder no contexto da epidemia são produzidas, ademais, não só
pelo alcance econômico e financeiro de países e empresas, mas também
pela influência que advém do emprego e da propriedade do conhecimento
científico, da divulgação de novas informações e do avanço de ideias nor-
mativas, sobretudo as relacionadas ao direito humano à saúde.
O presente capítulo investiga a política externa do Brasil ante a aids,
ressaltando a influência de atores não estatais — tanto domésticos quanto
estrangeiros e transnacionais — na implementação dessa política. A posi-
ção do Brasil relativa à governança global da propriedade intelectual e suas
implicações comerciais só pode ser compreendida a partir da apreciação da
resposta brasileira à epidemia, cujo aspecto mais inovador, polêmico e con-
sequente é a oferta, desde 1996, de acesso gratuito e universal às terapias
antirretrovirais.2 Conquanto o reconhecimento e o sucesso da estratégia de

2
A política externa brasileira tem também desafiado o regime global de propriedade intelectual
com outros propósitos, como na Agenda para o Desenvolvimento, proposta juntamente com a
Argentina no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), e na defesa
da proteção de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados na Convenção sobre
Diversidade Biológica, na Ompi e na OMC. Não obstante, a defesa da saúde pública, e particu-
larmente dos programas contra a aids, representou a mais significativa iniciativa de flexibilização
das regras internacionais de propriedade intelectual.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 205

combate à aids do Brasil devam ser em grande medida atribuídos a essa


política de tratamento, sua implementação exigiu a superação das críticas
e do ceticismo da comunidade internacional — que a via como fadada ao
fracasso e lhe negava fontes de financiamento –, dos padrões mais altos
de proteção global da propriedade intelectual e dos interesses comerciais
dos detentores dessa propriedade, notadamente as empresas multinacio-
nais farmacêuticas e o governo dos Estados Unidos. Contudo, uma vez
bem-sucedida, a política do Brasil para a aids fortaleceu a posição do país
em negociações bilaterais, regionais e multilaterais relativas ao comércio, à
propriedade intelectual, à saúde e aos direitos humanos. Mais do que isso,
essa política permitiu ao Brasil desempenhar um papel de liderança em
iniciativas para mudar instituições e regras de governança global de pa-
tentes e comércio.
A primeira seção do capítulo discute como o programa de tratamen-
to da aids no Brasil resultou da atuação de ONGs domésticas e governos
municipais, estaduais e federais, que herdaram uma visão da saúde públi-
ca profundamente influenciada pelo movimento sanitarista, em um con-
texto de democratização e após a entrada em vigor da Constituição de
1988 e do Sistema Único de Saúde (SUS) por ela criado. A seção também
mostra como esse programa entrou em confronto com as prescrições de
instituições internacionais de saúde, notadamente da Organização Mun-
dial da Saúde (OMS), assim como de agências estrangeiras e multilaterais
de financiamento, como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvol-
vimento Internacional (conhecida pela sigla em inglês Usaid) e o Banco
Mundial. Tais prescrições com frequência refletiam o preceito neoliberal
dominante na época do Estado mínimo, defendendo cortes nos gastos com
políticas sociais, de modo geral, e com políticas de saúde, em particular.
Também sustentavam que o tratamento de epidemias em países em desen-
volvimento seria inviável, e que tais países deveriam concentrar seus recur-
sos escassos nas políticas de prevenção, consideradas mais custo-efetivas. A
iniciativa do governo brasileiro de contrariar essas prescrições e oferecer o
primeiro programa universal e gratuito de tratamento da aids inicialmente
gerou não só críticas severas de diversas instituições internacionais de saú-
de, como também dificuldades de financiamento externo.
A segunda seção examina as negociações e disputas do Ministério da
Saúde brasileiro com empresas farmacêuticas multinacionais concernentes à
proteção de patentes e aos preços dos antirretrovirais. O programa brasileiro
206 Política externa brasileira

de tratamento da aids tem dependido da produção doméstica de medica-


mentos antirretrovirais genéricos como uma estratégia para conter os custos
com a compra desses medicamentos. Tal estratégia reduziu a importação
de antirretrovirais e também forçou as empresas farmacêuticas multina-
cionais a concederem descontos consideráveis em seus preços com a fina-
lidade de evitar que o monopólio de suas patentes fosse derrubado pelo
licenciamento compulsório.3 Contudo, a erosão do poder de barganha do
Ministério da Saúde brasileiro, causada sobretudo pela falta de capacita-
ção tecnológica dos laboratórios federais, é evidenciada nos resultados in-
satisfatórios dos últimos acordos com essas empresas e no licenciamento
compulsório do antirretroviral efavirenz, patenteado pela empresa norte-
americana Merck, Sharp & Dohme.
A terceira seção discute o contencioso entre os governos do Brasil e
dos Estados Unidos relativo às patentes. Esse contencioso envolveu a aber-
tura de painel na OMC pelos Estados Unidos contra o Brasil, em iniciativa
interpretada como retaliação pelas ameaças de licenciamento compulsório
de antirretrovirais feitas pelo Ministério da Saúde brasileiro às empresas
farmacêuticas multinacionais. Conquanto os representantes norte-ameri-
canos tenham tentado apresentar o contencioso como essencialmente co-
mercial, os representantes do Brasil argumentaram que se tratava de uma
disputa com significativas implicações para a saúde pública e especialmen-
te para o tratamento da aids no país. O apoio de ONGs e redes de ativismo
domésticas, estrangeiras e transnacionais ao Brasil contribuiu para a deci-
são dos Estados Unidos de retirar sua queixa contra o país na OMC quase
que incondicionalmente.
A quarta seção examina como a resposta à aids no Brasil condicionou
a atuação do país em fóruns regionais e multilaterais, fazendo-o assumir
um papel de liderança na defesa do tratamento antirretroviral em países
em desenvolvimento e da flexibilização dos direitos de patente necessária
para garantir o acesso a medicamentos genéricos mais baratos. O interes-
sante é que essa defesa do direito à saúde não se restringiu às negociações
comerciais da OMC, dando-se em fóruns tão diversos quanto a Comissão
de Direitos Humanos da ONU, a OMS, a Assembleia Geral da ONU e o
Tratado da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Não obstante,

3
A licença compulsória quebra o direito de monopólio da patente, permitindo que seu objeto
seja utilizado, produzido ou comercializado por quaisquer agentes no país, mediante o pagamen-
to de royalties ao detentor da patente.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 207

a mais significativa conquista brasileira foi indubitavelmente a assinatura


da Declaração sobre o Acordo de Trips e Saúde Pública, na reunião mi-
nisterial da OMC em 2001, a qual levou, no final de 2005, à aprovação
de uma emenda ao Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Proprieda-
de Intelectual Relacionados ao Comércio (conhecido pela sigla em inglês
Trips) — a primeira e única emenda jamais aprovada em todos os acordos
da OMC –, que permite o comércio internacional de medicamentos li-
cenciados compulsoriamente.
A conclusão do capítulo oferece uma avaliação da influência dos ato-
res não estatais na política externa brasileira, ressaltando as disparidades de
poder econômico e financeiro envolvidas nos contenciosos com o gover-
no dos Estados Unidos e com as empresas farmacêuticas multinacionais.
Alusões comparativas às experiências de outros países em desenvolvimen-
to, notadamente a África do Sul, também ajudam a explicar a natureza e
as estratégias das ONGs brasileiras que atuam no combate à aids, espe-
cialmente no que tange a seu grau de transnacionalização e a suas relações
com o governo. Ademais, cumpre notar a relativa coesão entre o Itamara-
ty e o Ministério da Saúde no que diz respeito à política externa brasileira
ante a aids, a liderança do Ministério da Saúde nessa política e sua conti-
nuidade entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio
Lula da Silva. Iniciadas no governo de FHC, as ações relativas às paten-
tes e à saúde pública se coadunavam bem com a política externa de Lula,
independente dos Estados Unidos e voltada para o mundo em desenvol-
vimento. Por fim, são feitas considerações sobre a sustentabilidade da po-
lítica do Brasil de tratamento da aids diante de novos desafios externos, e
suas implicações para a política externa do país.

Tratamento versus prevenção: desafiando o consenso global

O programa nacional de DST e aids do Brasil é reconhecido como o me-


lhor do mundo em desenvolvimento pela ONU, e vem servindo como
modelo para pelo menos 31 outros países em desenvolvimento, assim
como para a política global de HIV/aids adotada pela OMS desde 2003
(Chade, 2003; D’Adesky, 2003). O acesso universal e gratuito às terapias
antirretrovirais ocupa papel central nesse programa e é em grande medida
responsável por seu sucesso. De fato, desde que essas terapias passaram a
ser oferecidas pelo governo federal em 1996 até 2007, a taxa de incidência
208 Política externa brasileira

de HIV/aids caiu 60% e o número de hospitalizações, em 82% (Ministé-


rio da Saúde, 2008). Embora em 1992 o Banco Mundial tenha projetado
que em 2000 o Brasil teria 1,2 milhão de pessoas infectadas com o HIV, o
país teve de fato somente metade desse número, cerca de 600 mil (Coor-
denação Nacional de DST/aids, 2002:3). Conforme veremos adiante, esse
êxito da resposta do Brasil à aids e seu reconhecimento internacional fo-
ram cruciais para a obtenção de maior legitimidade e apoio, sobretudo de
ONGs transnacionais, para a política externa do país em diversos fóruns
internacionais e nos contenciosos com os Estados Unidos.
No entanto, a política de tratamento universal e gratuito da aids ado-
tada pelo Brasil de início representou exatamente o oposto do que a OMS,
o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (conhecido pela
sigla em inglês Unaids), a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o
Banco Mundial, a Usaid, a Fundação Gates e diversos centros de pesquisa
recomendavam no que dizia respeito às políticas de combate à aids (Teixei-
ra, 1997:64; Parker, 2000:126-33). Os críticos argumentavam que países em
desenvolvimento como o Brasil careciam dos recursos financeiros, materiais
e humanos necessários para a compra de medicamentos caros e para o ade-
quado monitoramento do tratamento de inúmeros pacientes; e que esses
pacientes eram, de modo geral, demasiadamente pobres e ignorantes para
cumprir cronogramas de medicação e posologias complexos e rigorosos. Se-
gundo eles, a provisão das terapias antirretrovirais nesses países tornar-se-ia
insustentável e geraria o risco de aumentar a resistência do HIV a essas te-
rapias. Em vez de tentar oferecer tratamento para a aids, a prescrição para os
países em desenvolvimento era que concentrassem seus esforços e recursos
nas estratégias mais custo-efetivas de prevenção.4
A reprovação de instituições internacionais e estrangeiras ao trata-
mento antirretroviral no mundo em desenvolvimento não se limitou ao
discurso, tendo também importantes implicações para o financiamento do
combate à aids no Brasil. Notadamente, o Banco Mundial, que se tornou
um dos maiores financiadores de programas de controle da epidemia em
âmbito global, assinou o primeiro acordo de financiamento com o governo
brasileiro em 1994, o qual foi seguido por dois outros (conhecidos como
Aids II e Aids III), o último vigente até 2006. Porém, uma condição sine
qua non imposta pelo banco para a concessão dos empréstimos foi que os

4
Ver Unaids, 1998; World Bank, 1999:178-181, 202; Zimmerman e Schoofs, 2002; Marseille,
Hofmann e Kahn, 2002:1851.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 209

recursos fossem utilizados exclusivamente para campanhas de prevenção, e


que nenhuma parcela destes fosse empregada na compra de medicamentos
antirretrovirais (Teixeira, 1997:64; Parker, 2000:132; Galvão, 2000:137).
Como a política de tratamento da aids pôde ser implementada no
Brasil diante da resistência externa e na ausência de precedentes em outros
países que pudessem servir de modelo? Embora uma análise das origens
dessa política esteja fora do escopo deste capítulo e já tenha sido realiza-
da em outros trabalhos (ver, por exemplo, Galvão, 2000 e Mello e Souza,
2007), é importante salientar que ela resultou quase exclusivamente dos
esforços de grupos domésticos da sociedade civil, das chamadas ONGs
Aids brasileiras, e de governantes altamente influenciados pelos ideais do
movimento sanitarista. Entre esses ideais se destacam a abordagem holista
dos serviços de saúde, o acesso universal e gratuito a estes e o princípio da
integralidade, entendido em parte como a inseparabilidade entre ações de
prevenção e de tratamento. Em um contexto de democratização política,
os grupos engajados na defesa desses ideais sanitaristas lograram inseri-los
na Constituição de 1988, que criou o SUS e declarou ser a saúde direito
do cidadão e dever do Estado.5 Ao fazê-lo, a nova Constituição contrariou
preceitos neoliberais predominantes na época, expressos sobretudo pelo
Banco Mundial,6 ao mesmo tempo em que ofereceu apoio institucional e
jurídico à política de tratamento da aids.
Cumpre ainda notar a considerável coincidência de posições no que
diz respeito às políticas para a aids dos governos municipais, estaduais e fe-
deral e das ONGs Aids. Evidência disso é o fato de diversos governos muni-
cipais e estaduais começarem a usar recursos próprios para oferecer terapias
antirretrovirais em julho de 1996, logo após o anúncio dessas terapias como
uma opção mais eficaz de tratamento para a epidemia na IX Conferência
Internacional de Aids, realizada em Vancouver, e quase concomitantemen-
te às ações judiciais patrocinadas por ONGs Aids para assegurar a oferta

5
O art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 afirma particularmente
que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econô-
micas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitá-
rio às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
6
O Banco Mundial sustentava que, ao tratar a saúde como um direito do cidadão e tentar ofere-
cer serviços gratuitos para todos, o SUS adotava uma abordagem equivocada; e previa um cres-
cimento “explosivo” nas demandas desses serviços no Brasil (World Bank, 1987:3 e 1989:xviii;
Mattos, 2001:40).
210 Política externa brasileira

governamental dessas terapias.7 Mais importante ainda foi a aprovação, no


mesmo ano, da Lei no 9.313, de 13 de novembro, obrigando o governo fede-
ral a oferecer medicamentos para o tratamento da aids gratuitamente a to-
dos os pacientes que deles necessitassem.
A partir de 1996, portanto, o governo brasileiro passou a ter que aten-
der à obrigação legal — e, de fato, constitucional — de oferecer acesso
universal e gratuito às terapias antirretrovirais. Tal obrigação fortaleceu a
influência política das ONGs Aids, que continuaram a recorrer com fre-
quência a ações judiciais para garantir o acesso ao tratamento, e teve im-
portantes implicações comerciais e políticas para a atuação do Brasil em
âmbito internacional. Crucialmente, a defesa do programa brasileiro de
aids tem exigido o fornecimento de medicamentos antirretrovirais a preços
acessíveis, o que, por sua vez, requer a flexibilização dos direitos de paten-
te tanto nacionais quanto internacionais. Questões de governança global
relacionadas ao comércio e aos limites da propriedade intelectual, assim
como as relações do Brasil com os Estados Unidos, seriam consequente-
mente associadas de forma inequívoca à resposta brasileira à epidemia.

Patentes versus acesso a medicamentos antirretrovirais

A importação de medicamentos antirretrovirais caros usados no progra-


ma brasileiro de aids consumia parcela significativa dos recursos do Mi-
nistério da Saúde, e em 1997 já respondia por quase metade dos gastos
totais do programa.8 Como resposta, o governo brasileiro começou a ca-
pacitar laboratórios farmacêuticos públicos para a fabricação e o forneci-
mento de versões genéricas mais baratas desses medicamentos (Mello e
Souza, 2007:41). O principal desses laboratórios é o Instituto de Tecnolo-
gia em Fármacos (Far-Manguinhos), unidade técnico-científica da Fun-
dação Oswaldo Cruz, localizado no Rio de Janeiro. Contudo, a produção
local de antirretrovirais estaria condicionada pelas leis domésticas e inter-
nacionais de propriedade intelectual.
Desde os anos 1970, os Estados Unidos exigiam mudanças na legis-
lação brasileira de propriedade intelectual, que não reconhecia patentes

7
Ver Martins, 1996; Siqueira, 1996; Levy, 1996; Nogueira, 1996; Ventura, 1999:284-293.
8
A exceção era o antirretroviral zidovudina, mais conhecido como AZT, já produzido no Bra-
sil desde 1993.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 211

para produtos farmacêuticos. Com o objetivo declarado de coagir o Bra-


sil a reconhecer essas patentes, em 1988 o governo norte-americano im-
pôs uma tarifa retaliatória de 100% às importações brasileiras de produtos
farmacêuticos, eletrônicos e de celulose (Sell, 1995:327). Respondendo às
pressões do governo dos Estados Unidos, o Brasil aprovou a Lei no 9.279
de Propriedade Industrial, em 14 de maio de 1996, reconhecendo pa-
tentes para produtos farmacêuticos (DOU, 1996). No entanto, todos os
produtos já comercializados em qualquer lugar do mundo antes de 14 de
maio de 1997, quando a nova lei entrou em vigor, tornaram-se para sem-
pre inelegíveis para patenteamento no Brasil. Como resultado, 10 medica-
mentos antirretrovirais permaneceram sem a proteção de patentes no país,
podendo ser legalmente reproduzidos (Orsi et al., 2003:116).
Por meio do emprego de técnicas de engenharia reversa, a Far-Mangui-
nhos descobriu a fórmula da maior parte desses antirretrovirais não patenteados
e começou a fabricá-los, usando princípios ativos importados principalmente
da Índia e da China (Cassier e Correa, 2003:91; Orsi et al., 2003:132). A zal-
citabina e a estavudina foram disponibilizadas no final de 1997, a didanosina
no ano seguinte, a lamivudina e sua combinação com a zidovudina em 1999
e o indinavir e a nevirapina em 2000 (Coordenação Nacional de DST/Aids,
2001). Até 2011, nove dos 19 antirretrovirais usados no programa nacional de
aids têm sido produzidos localmente; número que deve subir para 11 até 2016
com a inclusão do atazanavir e do raltegravir (ver quadro).
Quadro 1
Medicamentos antirretrovirais distribuídos no Brasil (2011)

Importados Nacionais
1) Abacavir 1) Efavirenz
2) Amprenavir 2) Estavudina
3) Darunavir 3) Indinavir
4) Didanosina 4) Lamivudina
5) Enfuvirtida 5) Nevirapina
6) Fosamprenavir 6) Saquinavir
7) Lopinavir/ritonavir 7) Zidovudina
8) Ritonavir 8) Zidovudina/lamivudina
9) Atazanavir* 9) Tenofovir
10) Raltegravir*

Fonte: Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), aids e Hepatites Virais (2011).
* Antirretrovirais que serão produzidos por laboratórios públicos no Brasil até 2016.
212 Política externa brasileira

Desde que o Ministério da Saúde começou a substituir as importações


de antirretrovirais caros por equivalentes genéricos produzidos no Brasil,
os preços desses medicamentos caíram em média quase 81% até 2001 (ver
tabela). A Far-Manguinhos e outros laboratórios brasileiros conseguiram
baratear esses medicamentos ao estabelecer margens de lucro muito infe-
riores às das multinacionais farmacêuticas e ao quebrar seus monopólios.
Além disso, compras em grandes quantidades do governo brasileiro têm
estimulado a concorrência entre fornecedores dos princípios ativos dos an-
tirretrovirais e, consequentemente, causado uma redução significativa nos
preços desses princípios ativos no mercado mundial. O barateamento dos
princípios ativos é particularmente relevante porque eles representam, na
média, 66% do custo total dos antirretrovirais (Mello e Souza, 2007:41), e
pode igualmente beneficiar compradores de outros países.
O custo de importação de antirretrovirais patenteados, porém, ain-
da representava um fardo considerável no orçamento de saúde do Bra-
sil. Em 1999, o presidente FHC emitiu o Decreto no 3.201, permitindo
aos ministérios emitir licenças compulsórias em casos de emergências na-
cionais (DOU, 1999, art. 3o). No início de 2001, o Ministério da Saúde
ameaçou emitir uma licença compulsória para os antirretrovirais efavirenz
e nelfinavir, que respondiam conjuntamente por cerca de 36% do total de
seus gastos com antirretrovirais e eram licenciados exclusivamente para
as multinacionais farmacêuticas Merck, Sharp & Dohme, dos Estados
Unidos, e Hoffman-La Roche, da Suíça (Sá e Malavez, 2001:10-11; Far-
Manguinhos, 2002:79-80).
Na ausência de fornecedores de princípios ativos dos antirretrovi-
rais, da regulamentação legal e da prática de engenharia reversa, a ameaça
de licenciamento compulsório do Ministério da Saúde permanecia pouco
plausível. Contudo, assim que a Far-Manguinhos provou sua capacidade
de importar princípios ativos da Ásia, de usar os instrumentos legais for-
necidos pelo novo decreto presidencial e, por último, de produzir e vender
os antirretrovirais em questão a preços consideravelmente inferiores aos
cobrados pelas multinacionais, a ameaça de licenciamento compulsório se
tornou crível. Como a Merck e a Roche se recusavam a conceder licenças
voluntárias para o efavirenz e o nelfinavir, elas precisavam oferecer preços
ainda mais baixos que os da Far-Manguinhos para preservar suas parcelas
do mercado brasileiro de antirretrovirais — o maior do mundo em desen-
volvimento (Mello e Souza, 2007:41). Ainda em 2001, a Merck, a Roche
Tabela 1
Preços de antirretrovirais no Brasil (1996-2007)

Medicamento Preço por unidade em US$*


antirretroviral 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Abacavir comp. 300 mg (a) (a) (a) (a) (a) 2,700 2,290 1,860 1,855 2,228 2,370 2,370
Abacavir sol. oral 20 mg/ml fr.
(a) (a) (a) (a) (a) 49,500 27,500 34,030 33,998 40,832 43,438 43,438
240 ml
Didanosina comp. 25 mg 0,520 0,410 0,258 0,232 0,191 0,162 0,070 0,070 0,072 0,086 0,092 (d)
Didanosina comp. 100 mg 1,850 1,390 1,023 0,760 0,501 0,487 0,290 0,310 0,307 0,369 0,392 (d)
Didanosina pó p/sol. oral fr. 4 g (a) (a) 60,185 37,810 38,152 33,482 23,190 25,720 25,701 30,867 32,838 32,837
Lamivudina comp. 150 mg 2,900 2,700 2,390 1,512 0,812 0,341 0,220 0,230 0,230 0,276 0,293 0,293
Lamivudina sol. oral 10 mg/ml
(a) 45,570 31,176 12,045 12,536 (b) 7,620 8,130 8,120 9,752 10,375 10,375
fr. 240 ml
Estavudina cáp. 30 mg (a) 1,750 1,032 0,465 0,211 0,097 0,080 0,090 0,094 0,113 0,121 0,121
Estavudina cáp. 40 mg (a) 2,320 1,023 0,643 0,274 0,270 0,170 0,180 0,177 0,212 0,226 0,226
Estavudina pó p/ sol. oral fr.
(a) (a) 41,786 35,104 34,455 (b) 18,130 18,670 18,651 21,800 23,183 23,183
200 mg
Zalcitabina comp. 0,75 mg 1,550 1,080 0,580 0,180 0,080 (d) (d) (d) (d) (d) (d) (d)
Zidovudina cáp. 100 mg 0,560 0,530 0,447 0,211 0,180 0,146 0,100 0,110 0,110 0,132 0,141 0,141
Zidovudina sol. oral 10 mg/ml
10,220 9,170 8,469 6,298 4,469 (b) 2,670 2,960 2,958 3,553 3,779 3,779
fr. 200 ml
Saúde pública, patentes e atores não estatais

Notas: (a) antirretrovirais ainda não disponibilizados pelo Ministério da Saúde no ano indicado; (b) aquisição não programada no ano indicado;
(c) doação do laboratório fabricante; (d) antirretrovirais que não eram mais adquiridos pelo Ministério da Saúde no ano indicado.
* Antirretrovirais adquiridos em reais e convertidos em dólares norte-americanos, utilizando-se a taxa de câmbio e o valor médio do ano.
213

Fonte: Coordenação Nacional de DST e Aids/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.


Preço por unidade em US$*
214

Medicamento
antirretroviral 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Zidovudina susp. inj. 10 mg/ml
13,400 11,930 11,074 2,463 2,109 1,808 3,780 1,400 1,399 1,739 1,850 1,850
fr 20 ml
Zidovudina + lamivudina comp.
(a) (a) 3,379 2,015 0,703 0,676 0,420 0,460 0,456 0,548 0,583 0,583
300 + 150 mg
Efavirenz cáp. 200 mg (a) (a) (a) 2,320 2,320 0,840 0,840 (b) (b) 0,641 0,641 ——
Efavirenz comp. 600 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 2,100 1,590 1,592 1,592 1,592
Política externa brasileira

Efavirenz sol. oral 30 mg/ml fr. 180 ml (a) (a) (a) (a) (a) (a) 28,790 28,790 21,800 21,800 21,800 21,800
Nevirapina comp. 200 mg (a) (a) 3,040 3,020 1,280 1,250 0,260 0,280 0,276 0,332 0,353 0,353
Nevirapina susp. oral 10 mg/ml
(a) (a) (a) (a) 55,87 (b) (b) 33,330 30,940 33,400 39,575 39,575
fr. 240 ml
Amprenavir cáp. 150 mg (a) (a) (a) (a) (a) 0,745 0,520 0,550 0,683 0,820 0,872 0,872
Amprenavir sol. oral 15 mg/ml
(a) (a) (a) (a) (a) 102,964 91,210 83,230 83,162 99,880 106,255 ——
fr. 240 ml
0,470/
Indinavir cáp. 400 mg 2,000 2,000 1,940 1,914 1,337 0,470 0,370 0,389 0,468 0,498 0,498
0,390
Lopinavir/ritonavir cap. 133 + 1,500/
(a) (a) (a) (a) (a) (a) 1,600 1,300 1,170 0,630 1,040
33 mg 1,480

Notas: (a) antirretrovirais ainda não disponibilizados pelo Ministério da Saúde no ano indicado; (b) aquisição não programada no ano indicado;
(c) doação do laboratório fabricante; (d) antirretrovirais que não eram mais adquiridos pelo Ministério da Saúde no ano indicado.
* Antirretrovirais adquiridos em reais e convertidos em dólares norte-americanos, utilizando-se a taxa de câmbio e o valor médio do ano.
Fonte: Coordenação Nacional de DST e Aids/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.
Medicamento Preço por unidade em US$*
antirretroviral 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Lopinavir/ritonavir sol. oral
(a) (a) (a) (a) (a) (a) (c) (c) (c) (c) (c) (c)
80/20 mg/ml fr. 160 ml
Nelfinavir comp. 250 mg 1.5 (a) (a) 1,530 1,450 1,360 1,075 0,525 0,520 0,468 0,468 0,468 0,468
Nelfinavir pó p/ susp. oral fr. 7,2 g (a) (a) 52,400 52,400 (b) 42,100 42,100 42,100 42,100 (c) (c) (c)
Ritonavir cáp. 100 mg 0,900 0,900 0,880 0,880 0,880 0,760 0,490 0,460 0,440 0,512 0,545 0,545
Ritonavir sol. oral 80 mg/ml
(a) 222,410 168,943 168,943 168,940 (b) 57,010 57,010 57,010 57,010 80,426 ——
fr. 240 ml
Saquinavir cap. 200 mg 1,310 1,310 1,190 1,190 0,750 0,480 0,480 0,480 0,530 —— —— 0,660
Atazanavir 150 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 3,250 3,250 3,000 3,000 2,910
Atazanavir 200 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 3,250 3,250 3,130 3,130 3,040
9,04/
Tenofovir 300 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 7,680 7,680 3,800 3,800
7,96
Talidomida 100 mg —— —— —— —— —— —— —— —— 0,064 0,120 0,128 0,128
Didanosina ec 250 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 1,560 1,250 1,250 1,250
Didanosina ec 400 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 2,500 1,540 1,540 1,540
Enfuvirtida (T-20) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 1.422,00 1.333,13 1.333,13

Notas: (a) antirretrovirais ainda não disponibilizados pelo Ministério da Saúde no ano indicado; (b) aquisição não programada no ano indicado;
Saúde pública, patentes e atores não estatais

(c) doação do laboratório fabricante; (d) antirretrovirais que não eram mais adquiridos pelo Ministério da Saúde no ano indicado.
* Antirretrovirais adquiridos em reais e convertidos em dólares norte-americanos, utilizando-se a taxa de câmbio e o valor médio do ano.
215

Fonte: Coordenação Nacional de DST e Aids/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.


216 Política externa brasileira

e também a empresa farmacêutica norte-americana Abbott concordaram


em oferecer descontos significativos para o efavirenz, o nelfinavir e o lopi-
navir/ritonavir, respectivamente.9
Assim, a produção genérica local tornou-se um elemento crucial na
estratégia do governo brasileiro para negociar com as multinacionais far-
macêuticas. Por um lado, a Far-Manguinhos passou a representar uma fon-
te alternativa e barata de suprimento dos medicamentos antirretrovirais
utilizados no programa nacional de aids. Por outro, o laboratório público
também tem oferecido informações cruciais relativas aos custos de produ-
ção desses medicamentos, o que permite ao governo negociar com as mul-
tinacionais farmacêuticas descontos em seus preços de forma mais eficaz e
com maior poder de barganha. Em particular, essas informações fornecidas
pela Far-Manguinhos capacitam o Ministério da Saúde a estabelecer me-
tas de negociação relativas aos preços de antirretrovirais patenteados que
maximizam os descontos sem reduzirem demasiadamente os lucros.
Em 2003, recomeçaram as negociações em torno dos preços de an-
tirretrovirais patenteados. Nesse ano, o presidente Lula promulgou o De-
creto no 4.830 sobre licenciamento compulsório que introduz mudanças
importantes no decreto anterior, permitindo a importação de versões ge-
néricas de produtos licenciados compulsoriamente sempre que a produ-
ção doméstica se mostrar inviável, e obrigando o detentor da patente a
revelar toda informação necessária para tal produção (DOU, 2003). Esse
decreto aumentou ainda mais o poder de barganha do governo brasileiro
vis-à-vis as multinacionais farmacêuticas. Foram obtidos acordos satisfa-
tórios com as empresas biofarmacêuticas Bristol-Myers Squibb e Gilead,
dos Estados Unidos, e novamente com a Merck, a Roche e a Abbott.10

9
A Merck concordou em reduzir os preços do efavirenz em 59% e do indinavir em 64,8% (ver
tabela). Os laboratórios públicos tinham suspendido a produção do indinavir em razão de pro-
blemas na qualidade de seus princípios ativos importados. Essas reduções representaram uma
economia anual de cerca de US$ 40 milhões para o Ministério da Saúde (Bailey, 2001:9). Simi-
larmente, a Roche aceitou um corte de 40% no preço do nelfinavir seis meses depois (ver tabela).
Como resultado, o Ministério da Saúde passou a economizar, aproximadamente, US$ 35 mi-
lhões por ano (Sá e Malavez, 2001:11; Tribune de Genève, 2001). Concomitantemente, a Abbott
chegou a acordo semelhante com o ministério, oferecendo um desconto de 46% para sua combi-
nação patenteada do lopinavir e do ritonavir (ver tabela).
10
Por acordo com a Bristol, no final de 2003, o Ministério da Saúde obteve uma redução de
76,4% no preço de mercado do novo antirretroviral atazanavir, poupando US$ 66 milhões
(Coordenação Nacional de DST/Aids, 2003). Em resposta a novas ameaças de licenciamento
compulsório do Ministério da Saúde, a Merck concordou, uma semana mais tarde, em reduzir
Saúde pública, patentes e atores não estatais 217

Como resultado dos descontos concedidos pelas empresas multinacionais


farmacêuticas e do aumento da concorrência entre fornecedores de antir-
retrovirais gerada pelos laboratórios públicos brasileiros, o custo anual do
tratamento anti-aids por paciente declinou de US$ 3.810, em 1997, para
US$ 1.374, em 2004 (Mello e Souza, 2007:46).
Apesar desse êxito inicial nas negociações com as empresas detento-
ras de patentes de antirretrovirais, dos significativos descontos obtidos nos
preços desses medicamentos e da economia gerada por esses descontos
para o Ministério da Saúde, a sustentabilidade financeira da política bra-
sileira de tratamento da aids tem sido ameaçada nos últimos anos. Nego-
ciações mais recentes entre o ministério e as multinacionais farmacêuticas
produziram resultados menos satisfatórios, revelando que o poder de bar-
ganha do governo vem sendo minado à medida que suas ameaças de licen-
ciamento compulsório se tornam menos críveis.
Após anunciar o licenciamento compulsório do composto antirre-
troviral lopinavir/ritonavir, o Ministério da Saúde recuou e chegou a um
acordo com a empresa produtora desse antirretroviral, a Abbott, em junho
de 2005. Contudo, como resultado desse acordo, o ministério provavel-
mente estará pagando mais pelo medicamento do que seu valor de merca-
do em 2011. Ademais, o lopinavir/ritonavir já era então um medicamento
relativamente obsoleto, e sua patente expirará em breve, em 2012 (Rebrip,
2005; Veja, 2006).
Concomitantemente com as negociações com a Abbott, a Comissão
de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados apro-
vou, por unanimidade, o Projeto de Lei no 22/03, que proíbe o registro de
patentes de medicamentos para prevenção e tratamento da aids.11 Esse pro-
jeto de lei foi explicitamente destinado a garantir a viabilidade do programa

em mais 25% o preço do efavirenz (BBC, 2003). Da mesma forma, no início de 2004, foi anun-
ciado que a Roche e a Abbott ofereceriam cortes adicionais de 10% e 13,3%, respectivamente,
nos preços do nelfinavir e da combinação lopinavir/ritonavir (ver tabela). Apesar dos descon-
tos anteriores, o efavirenz, o nelfinavir e o lopinavir/ritonavir representavam ainda 63% dos
gastos governamentais com antirretrovirais em 2003. Finalmente, a Gilead também reduziu
os preços de seu novo antirretroviral tenofovir em 43,35%. Esses cinco últimos descontos
representaram uma economia de US$ 107 milhões para o Ministério da Saúde brasileiro em
2004 (Coordenação Nacional de DST/Aids, 2004).
11
O projeto de lei introduz uma emenda ao artigo 18 da Lei de Propriedade Industrial brasileira
que trata das exclusões da patenteabilidade. Nos termos dessa lei, o que se segue não é patenteá-
vel: “o medicamento assim como seu respectivo processo de obtenção, específico para a prevenção
e o tratamento da aids”. Lei no 22/03, junho de 2005.
218 Política externa brasileira

do Ministério da Saúde contra a aids, reduzindo os preços dos antirretro-


virais e garantindo a continuidade de sua produção local (Cassier e Correa,
2007). Contudo, o projeto ainda não foi votado no plenário da Câmara, nem
tampouco enviado ao Senado Federal.
O esgotamento da estratégia de negociação com as multinacionais
decorreu em parte da falta de investimentos na indústria farmacêutica bra-
sileira (Grangeiro et al., 2006). Em particular, a falta de capacidade para
produzir princípios ativos dos medicamentos antirretrovirais reduz as pos-
sibilidades de licenciamento compulsório, uma vez que a importação de
novas versões genéricas desses princípios ativos tornou-se consideravel-
mente mais difícil, desde que os fornecedores estrangeiros, e principalmen-
te a Índia, adotaram leis de patentes concordantes com o Acordo Trips da
OMC em 2005. Como resultado, os custos de tratamento da aids no Bra-
sil aumentaram significativamente desde 2003, superando o aumento no
número de pacientes tratados. Em 2006, o gasto com antirretrovirais re-
presentava 80% dos gastos do Ministério da Saúde com medicamentos.
Estima-se que o Brasil terá de crescer a uma taxa anual de 6% do PIB para
poder sustentar a política de tratamento da aids sem reduzir gastos em ou-
tras áreas (Grangeiro et al., 2006:60-69; Mello e Souza, 2007:46).
Em parte em decorrência da incapacidade do governo brasileiro de
continuar obtendo descontos satisfatórios nos preços dos antirretrovirais
patenteados, e após seis meses de negociação e mais de sete reuniões in-
frutíferas, em 2007 o Brasil emitiu licença compulsória para o antirretrovi-
ral efavirenz, da Merck.12 A decisão de licenciar compulsoriamente o efa-
virenz recebeu o apoio do presidente Lula e foi discutida pelo ministro da
Saúde, José Gomes Temporão, com a Advocacia-Geral da União, com o
ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, com a Casa Civil e com
o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel
Jorge (Ministério da Saúde, 2007).

12
As únicas concessões oferecidas pelo presidente do laboratório no Brasil foram um descon-
to de 2% e a transferência de tecnologia para a Far-Manguinhos em 2012, ano em que expira
a patente do medicamento. Após intervenção do embaixador dos Estados Unidos, Clifford So-
bel, o presidente mundial da Merck apresentou uma proposta de 30% de desconto, reduzindo o
preço da dose do efavirenz de US$ 1,59 para US$ 1,10. Contudo, versões genéricas do mesmo
medicamento custavam US$ 0,65 na Tailândia — onde foi licenciado compulsoriamente — e
US$ 0,44 na Índia. O laboratório também ofereceu antecipar a transferência de tecnologia para
2010, mas o país seria obrigado a comprar o princípio ativo da própria Merck (Paduan, 2008,
Fiocruz, 2009).
Saúde pública, patentes e atores não estatais 219

A licença compulsória do efavirenz tem validade de cinco anos, po-


dendo ser renovada por mais cinco. Com a substituição do antirretrovi-
ral patenteado por genéricos, o Ministério da Saúde passou a economizar
US$ 30 milhões por ano. Também foi possível ampliar o atendimento aos
portadores de hepatite B e C. A licença compulsória irá garantir uma re-
muneração à Merck de 1,5% sobre o gasto com a importação do similar
indiano a título de royalties. Contudo, o atraso de oito meses na produção
doméstica do efavirenz, cujo princípio ativo é produzido por um consórcio
brasileiro privado composto pelos laboratórios Nortec, Cristália e Globe, e
que só passou a ser disponibilizado pela Far-Manguinhos a partir de 2009,
evidencia a falta de investimentos na capacitação tecnológica do setor far-
macêutico brasileiro (Paduan, 2008, Fiocruz, 2009).
Foi o primeiro caso de licenciamento compulsório de um antirretro-
viral nas Américas; porém, a Tailândia já havia estabelecido precedente ao
emitir licenças compulsórias para o mesmo antirretroviral, o efavirenz, em
novembro de 2006, e para o composto da Abbott, o lopinavir/ritonavir,
em janeiro de 2007 (ICTSD, 2007b). Muitas ONGs e grupos de ativis-
mo domésticos, estrangeiros e transnacionais, que já vinham pedindo o li-
cenciamento compulsório de antirretrovirais no Brasil há cerca de 10 anos,
aplaudiram a medida. Esses ativistas ressaltaram sua “legalidade e legitimi-
dade”, acreditando que a quebra do monopólio das patentes de antirretro-
virais abriria o caminho para a disseminação da prática no país e em outros
países em desenvolvimento, aumentando a oferta de genéricos baratos no
mercado e, por conseguinte, o acesso a medicamentos essenciais.13
Em contraste, as multinacionais farmacêuticas e os governos de diver-
sos países, sobretudo o dos Estados Unidos, consideraram a licença com-
pulsória do efavirenz desnecessária e ameaçaram reduzir os investimentos
no Brasil (Folha de S.Paulo, 2007). Segundo o presidente da Câmara de
Comércio dos Estados Unidos, Mark Smith, a medida tornaria mais difícil
manter o Brasil no Sistema Geral de Preferências, programa de benefícios
fiscais pelo qual o país exporta US$ 3,5 bilhões anualmente para os Esta-
dos Unidos (D’Ávila, 2007).
Em 2011, o laboratório da Fundação Ezequiel Dias (Funed), do go-
verno de Minas Gerais, passou a produzir a versão genérica do tenofovir,

13
Ver “Abaixo-assinado em apoio à emissão da licença compulsória do medicamento efavirenz”,
disponível em: <http://www.rebrip.org.br/_rebrip/pagina.php?id=1496>.
220 Política externa brasileira

antirretroviral usado por 64 mil pessoas com aids no Brasil (além de ou-
tras 1,5 mil com hepatite) que é o segundo mais caro do coquetel, respon-
dendo por 10% dos gastos com medicamentos do Programa Nacional de
DST/aids. Segundo estimativas do governo, até 2016 a economia com a
produção genérica do antirretroviral será de R$ 440 milhões. Significati-
vamente, a produção local genérica do tenofovir só foi possível porque o
antirretroviral teve pedido de patenteamento da Gilead negado no Bra-
sil. Após a Far-Manguinhos e a Associação Brasileira Interdisciplinar de
Aids (Abia) contestarem esse pedido no Instituto Nacional de Proprieda-
de Industrial (INPI) e o Ministério da Saúde declarar o interesse público
do tenofovir, em 2008, o patenteamento do antirretroviral foi indeferido
(Formenti, 2011).
Parcerias público-privadas firmadas em 2011 também permitirão a
produção local dos antirretrovirais atazanavir e raltegravir até 2016. No que
pode constituir uma alternativa promissora para o fornecimento de antir-
retrovirais genéricos e para a contenção dos custos na obtenção desses me-
dicamentos pelo Ministério da Saúde, tais parcerias foram firmadas entre
a Far-Manguinhos e a Bristol/Nortec para a produção do atazanavir; e en-
tre o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) e a
Merck/Nortec para a produção do raltegravir (Ministério da Saúde, 2011).

O contencioso com os Estados Unidos na OMC

No que foi interpretado como uma reação à interferência do governo bra-


sileiro na produção e precificação de medicamentos antirretrovirais alta-
mente lucrativos patenteados ou licenciados exclusivamente por empresas
norte-americanas, o governo dos Estados Unidos solicitou a abertura de
um painel na OMC contra o Brasil no dia 1o de fevereiro de 2001. A ra-
zão alegada foi o art. 68 §1o — I da Lei de Propriedade Industrial brasilei-
ra, que tem gerado muita controvérsia. O artigo determina que “ensejam,
igualmente, licença compulsória [...] a não exploração do objeto da patente
no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do
produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalva-
dos os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importa-
ção” (DOU, 1996). Representantes dos Estados Unidos argumentaram que
o artigo viola o art. 27.1 de Trips, segundo o qual “os direitos patentários
Saúde pública, patentes e atores não estatais 221

serão usufruíveis sem discriminação [...] quanto ao fato de os bens serem


importados ou produzidos localmente” (OMC, 1994). Tentando enqua-
drar as negociações em termos do comércio internacional, a Secretaria de
Comércio norte-americana argumentou ainda que “o artigo 68 não tem re-
lação com a saúde ou o acesso aos medicamentos, mas discrimina todos os
produtos importados e favorece os produtos brasileiros. Em resumo, o ar-
tigo 68 representa uma medida protecionista que visa criar empregos para
os brasileiros” (USTR, 2001:10).
Já o Brasil contra-argumentou que sua lei segue o determinado na
Convenção de Paris, chamando atenção para o art. 2.1 de Trips, que afir-
ma que, “com relação às partes II, III e IV deste acordo, os Membros cum-
prirão o disposto nos artigos 1 a 12, e 19, da Convenção de Paris (1967)”
(OMC, 1994). Outrossim, representantes brasileiros insistiram em que a
Lei de Propriedade Industrial não fazia da produção doméstica uma con-
dição suficiente para o licenciamento compulsório (Bailey, 2001:14; Viana,
2002:311-312). O governo brasileiro respondeu ainda que, em vez de ser
motivado por interesses comerciais, o art. 68 dessa lei é necessário para for-
talecer o poder de barganha do Ministério da Saúde com relação às mul-
tinacionais farmacêuticas e, assim, contribuir para a sustentabilidade do
programa de tratamento da aids. Ao fazê-lo, o Brasil tentava enquadrar as
negociações em termos da saúde pública e dos direitos humanos.
Em uma reação surpreendente, no mesmo dia 1o de fevereiro, as auto-
ridades brasileiras também deram início aos procedimentos de consulta que
poderiam levar à abertura de um painel contra os Estados Unidos na OMC,
alegando que os arts. 204 e 209 (b) do US Patent Act são similares ao art. 68
da Lei de Propriedade Industrial brasileira no que diz respeito às exigências
de produção doméstica (Gazeta Mercantil, 2001; Viana, 2002:312). Esses
artigos determinam que os recebedores de assistência financeira do gover-
no federal dos Estados Unidos só poderão obter direitos exclusivos às suas
invenções quando estas forem produzidas substancialmente no país, e que
todas as licenças exclusivas concedidas por agências públicas federais dos
Estados Unidos exigem igualmente a produção do bem licenciado no país.
Evidentemente, se os Estados Unidos obtivessem uma decisão favorável em
um painel, muito provavelmente se confrontariam com uma decisão desfa-
vorável no outro. Ademais, se o painel decidisse em favor do Brasil, essa de-
cisão criaria jurisprudência e estabeleceria um precedente importante para
muitos países em desenvolvimento que ainda teriam de adotar leis de pa-
tente em conformidade com o Trips (Abbott, 2001).
222 Política externa brasileira

Na disputa com os Estados Unidos na OMC, o Brasil contou com


o apoio da mídia, de ONGs e da opinião pública internacional. Inúmeras
cartas foram escritas para autoridades norte-americanas, para a imprensa
e para a OMC; e manifestações ocorreram diante de consulados e embai-
xadas dos Estados Unidos no Brasil e em outros países (Gazeta Mercantil,
2001; Valor Econômico, 2001; Viana, 2002:313). Em junho, o Ministério da
Saúde brasileiro começou a publicar anúncios pagos nos principais jornais
dos Estados Unidos afirmando que “a Aids não é um negócio” e explicando
que a produção local de antirretrovirais não era um “ato de guerra” contra a
indústria farmacêutica, e sim “um ato de vida” (O Globo, 2001).
Após consultar a associação industrial farmacêutica norte-americana,
o governo dos Estados Unidos finalmente anunciou que retiraria sua recla-
mação contra o Brasil em 25 de junho de 2001 — não coincidentemente, o
primeiro dia da Sessão Especial sobre HIV/Aids da Assembleia Geral das
Nações Unidas — em troca de garantias de que seria notificado antes de
quaisquer produtos patenteados ou licenciados por empresas norte-ame-
ricanas serem licenciados compulsoriamente no Brasil (Pilling, Williams
e Dyer, 2001; Jornal do Brasil, 2001). Cumprindo essas garantias, o embai-
xador norte-americano foi avisado antes do licenciamento compulsório
do efavirenz.

As negociações em âmbito multilateral

Durante a Rodada Uruguai, o Brasil esteve entre os países que veemente-


mente se opuseram às propostas apresentadas pelos Estados Unidos e pelo
Japão de incluir direitos de propriedade intelectual nas negociações comer-
ciais, e sequer reconheciam a competência do Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio (conhecido pela sigla em inglês Gatt) para lidar com a questão
da falsificação de bens. De fato, o Brasil era um dos 10 países, junto com
a Índia, que ainda resistiam à associação dos direitos de propriedade inte-
lectual e comércio internacional no âmbito do Gatt em setembro de 1986,
mas já tinha concordado a negociar a questão dos bens falsificados (Watal,
2001:19). Tais países preferiam basear um novo regime internacional de
propriedade intelectual na Organização Mundial da Propriedade Intelec-
tual (Ompi), a agência multilateral das Nações Unidas que administrava as
convenções de propriedade intelectual de Berna e Paris, onde acreditavam
Saúde pública, patentes e atores não estatais 223

poder negociar em condições mais favoráveis.14 Não obstante essa oposi-


ção, os Estados Unidos e outros países do chamado Quad — Comunida-
de Europeia, Canadá e Japão — lograram introduzir as negociações de um
novo acordo de propriedade intelectual no âmbito do Gatt.
Durante as negociações da Rodada Uruguai o Brasil sofreu retaliações
comerciais dos Estados Unidos. Tais retaliações foram impostas no mesmo
mês em que o Brasil fizera submissão de proposta ao grupo negociador do
Trips contrariando a proposta norte-americana (Watal, 2001:25). Durante
a rodada, diversas contrapropostas ao Trips formuladas pelo Brasil e pela
Índia foram rapidamente criticadas e rejeitadas pelos membros do Quad
sem jamais receber maior consideração (Drahos 1995:15; Watal, 2001:32).
De modo geral, as negociações do Trips não levaram em conta os efeitos
do acordo sobre a saúde pública.
Após o Trips ter entrado em vigor, contudo, o Brasil tem consisten-
temente defendido a flexibilização dos direitos de patente em diversos fó-
runs multilaterais, com o principal objetivo de garantir o direito de acesso
dos países em desenvolvimento a medicamentos essenciais baratos. O re-
conhecimento internacional do programa brasileiro de aids certamente
conferiu maior legitimidade e apoio político às demandas dos negociado-
res do país.
Significativamente, a política externa brasileira concernente à saúde
tem buscado caracterizar o acesso a medicamentos essenciais como uma
questão de direitos humanos, com vistas a aumentar seu peso político na
agenda internacional e a minar os obstáculos representados pelos inte-
resses comerciais e pelos direitos de propriedade intelectual dos Estados
Unidos e de outros países industrializados. Em 24 de abril de 2001, a 57a
Sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU aprovou a Resolução
no 33/200 proposta pela delegação brasileira, classificando o acesso a me-
dicamentos essenciais como um direito humano à saúde (Horta, 2001).
De acordo com essa resolução, países-membros das Nações Unidas devem
adotar legislação “para salvaguardar o acesso a fármacos [...] de limitações
impostas por terceiras partes” (Associated Press, 2001). Cinquenta e dois

14
Ver Weissman, 1996:1083; D’Amato e Long, 1997:242-243; Gervais, 1998:9-10; Durán e
Michalopoulos, 1999:853; Pretorius, 2002:184. A Ompi seguia um procedimento decisório de
um voto por país, permitindo aos mais numerosos países em desenvolvimento se sobreporem aos
Estados Unidos e seus aliados (Drahos, 1995:9; Jackson, 1997:64; Ryan, 1998:91).
224 Política externa brasileira

países-membros, incluindo a Inglaterra, votaram a favor da resolução; os


Estados Unidos foram o único país que não o fez, abstendo-se. O embai-
xador norte-americano, George Moose, afirmou que a resolução “parecia
questionar a validade da proteção aos direitos de propriedade intelectual
acordada internacionalmente” (South Centre, 2001).
No âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que substi-
tuiu a comissão em 2006, o Brasil aprovou, em 2 de outubro de 2009, jun-
to aos parceiros do Fórum de Diálogo Brasil-Índia-África do Sul (Ibas)
e com o apoio de vários países em desenvolvimento, a Resolução no 6/29,
que “reconhece que o acesso aos medicamentos é um dos elementos fun-
damentais para alcançar progressivamente a total realização do direito do
pleno usufruto do mais alto padrão possível de saúde física e mental” e “sa-
lienta a responsabilidade dos Estados de assegurarem o acesso de todos,
sem discriminação, aos medicamentos, em particular os medicamentos es-
senciais, que são acessíveis, seguros, eficazes e de boa qualidade”. Segun-
do o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, “a resolução significou
avanço significativo para o tratamento do tema no âmbito das Nações Uni-
das e deve firmar-se como novo marco nos debates sobre direitos humanos
e saúde pública” (Acesso Brasil, 2009). Embora tais resoluções não sejam
legalmente vinculantes, reforçam politicamente a luta pelo acesso a medi-
camentos essenciais no mundo em desenvolvimento.
O Brasil tem também sustentado que a OMS deve exercer papel ativo
na discussão dos efeitos da propriedade intelectual sobre a saúde pública.
“Conforme o seu mandato, a OMS deve examinar as questões de proprie-
dade intelectual à luz das preocupações de saúde pública, que vão além do
comércio”, explica o Itamaraty (Acesso Brasil, 2009).
Em maio de 2001, a 54a Assembleia Mundial da Saúde (AMS) da
OMS discutiu propostas do Brasil para assegurar o acesso a medicamentos
antirretrovirais baratos em âmbito global. As propostas defendiam o reco-
nhecimento do acesso a esses medicamentos como um direito humano fun-
damental e a necessidade da redução de seus custos. As propostas brasileiras
também incluíam a precificação diferenciada,15 a produção de genéricos em

15
As propostas de precificação diferenciada dizem respeito à cobrança de preços relativamen-
te mais altos para medicamentos essenciais nos países ricos e preços próximos ao custo de pro-
dução nos países pobres. Tais propostas garantiriam os lucros das empresas farmacêuticas mul-
tinacionais, que advêm em sua maior parte dos mercados dos países ricos, assim como o acesso
Saúde pública, patentes e atores não estatais 225

países em desenvolvimento e a criação de um fundo internacional para aju-


dar esses países a financiarem projetos de combate à Aids. Apesar de sofre-
rem emendas e serem consideravelmente enfraquecidas pelos Estados Uni-
dos e a União Europeia, duas resoluções resultaram dessas propostas, uma
sobre a “Resposta global ao HIV/aids” e outra sobre a “Estratégia de me-
dicamentos da OMS” (Health Gap Coalition, 2001). Tais resoluções ins-
taram os países-membros a “cooperar construtivamente para reforçar as
políticas e práticas farmacêuticas, incluindo aquelas aplicáveis aos medi-
camentos genéricos e aos regimes de propriedade intelectual”, e para “for-
talecer esforços para estudar e relatar as implicações existentes e futuras
dos acordos internacionais de comércio”. As resoluções também ressaltam
a necessidade de “sistemas para monitoramento voluntário dos preços dos
medicamentos e para relatar preços globais dos medicamentos com vistas
a melhorar a equidade no acesso a medicamentos essenciais nos sistemas
de saúde” (WHO, 2001). De acordo com Daniel Tarantola, então assessor
do diretor da OMS, as novas resoluções representam “um ponto decisi-
vo na percepção em âmbito global do que deve ser feito sobre HIV/aids”
(Pincock, 2000). Além de se tornarem normas-padrão na OMS, as reso-
luções foram enviadas para a OMC e a ONU.
Em maio de 2003, na 56a Assembleia Mundial da Saúde, o Brasil,
juntamente com o Grupo Africano, pressionou para a concessão de um
mandato à OMS que lhe permitisse avaliar as implicações para a saúde pú-
blica da maior proteção dos direitos de propriedade intelectual resultantes
do Acordo Trips, assim como de acordos regionais e bilaterais de comércio.
Esses países defenderam a aprovação da Resolução no 56.27 sobre “Direi-
tos de propriedade intelectual, inovação e saúde pública”, pedindo à OMS
que cooperasse com os países-membros para desenvolver “políticas farma-
cêuticas e de saúde e medidas regulatórias” para “mitigar o impacto nega-
tivo” de acordos internacionais de comércio. A resolução também urge os
países-membros a “utilizar ao máximo as flexibilidades contidas no Acordo
Trips em suas legislações nacionais”. O acordo sobre o texto da resolução
só foi alcançado após prolongadas consultas e negociações com os Estados

aos medicamentos essenciais nos países pobres. Claramente, medidas efetivas contra o contra-
bando teriam de ser adotadas para que esse lucro não fosse afetado. A precificação diferencia-
da pode ser vista como uma forma de os países ricos subsidiarem o acesso a medicamentos nos
países pobres.
226 Política externa brasileira

Unidos, que, juntamente com outros países desenvolvidos, se opunham a


conceder um mandato para a OMS abordar questões de propriedade inte-
lectual (OH, 2003). Similarmente, a Resolução no 57.14, aprovada na 57a
AMS, em 2004, reafirma que os países-membros devem considerar as fle-
xibilidades presentes no Acordo Trips, nos acordos de comércio regionais e
bilaterais, e que os medicamentos devem ser acessíveis (WHO, 2004).
A Resolução no WHA59.24, aprovada na 59a AMS, em 2006, rei-
terou a necessidade de os países-membros considerarem as flexibilidades
do Trips e, a partir de proposta preliminar apresentada pelo Brasil e pelo
Quênia, determinou a criação do Grupo de Trabalho Intergovernamental
sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual. O Brasil apoia
a discussão, no âmbito desse grupo de trabalho, dos impactos da proteção
da propriedade intelectual sobre a saúde pública e o acesso a medicamen-
tos (Acesso Brasil, 2009). O país tem “destacado a implementação integral
das flexibilidades do Acordo Trips, a entrada de medicamentos genéricos
no mercado imediatamente após o término do prazo da patente e o aper-
feiçoamento do processo de concessão de patentes. O Brasil propôs, ain-
da, um mapeamento dos vários mecanismos de flexibilidade previstos em
acordos internacionais, relevantes para assegurar o acesso a medicamentos”
(ICTSD, 2007a). A Resolução no WHA60.30, intitulada “Saúde Públi-
ca, Inovação e Propriedade Intelectual” e aprovada na 60a AMS, em 2007,
resultou em grande medida de proposta brasileira e estabelece um com-
promisso da diretora-geral da OMS, dra. Margareth Chan, em apoiar tec-
nicamente os países que quiserem fazer uso das flexibilidades do Acordo
Trips (Lotrowska e Chaves, 2007). A estratégia global proposta pelo grupo
de trabalho inclui várias das propostas brasileiras e foi adotada pela Reso-
lução no WHA61.21, da 61a AMS, em 2008. Contudo, persistem desacor-
dos, entre outras, na questão da propriedade intelectual e dos acordos de
livre comércio e na relação entre propriedade intelectual e preços dos me-
dicamentos. De modo geral, os Estados Unidos continuam a questionar a
competência técnica da OMS para orientar os países-membros em ques-
tões de propriedade intelectual (Lerner, 2008:269).
Na sessão da Assembleia Geral da ONU que tratou de HIV/aids, rea-
lizada em junho de 2001, o Brasil defendeu a implementação de uma estra-
tégia de combate à epidemia da aids que combina prevenção e tratamento,
e ressaltou a necessidade de promoção dos direitos humanos dos soropo-
sitivos. O Brasil desempenhou papel decisivo na criação do Fundo Global
Saúde pública, patentes e atores não estatais 227

contra a Aids, a Tuberculose e a Malária, decidida durante a assembleia, e


nas negociações para garantir que seus recursos seriam igualmente adminis-
trados por representantes dos países desenvolvidos e em desenvolvimento e
utilizados para expandir o tratamento antirretroviral globalmente, inclusive
com a disseminação de genéricos. Outrossim, o Brasil foi fundador da agên-
cia internacional Unitaid,16 criada em 2006 para fornecer fundos adicionais
à compra de medicamentos para tratar a aids, a malária e a tuberculose em
países em desenvolvimento. Seu financiamento vem da contribuição co-
brada em bilhetes aéreos e de contribuições plurianuais de governos. Em
2007, uma coalizão de países em desenvolvimento da qual o Brasil faz par-
te e de ONGs passou a defender um “pool de patentes” a ser administrado
pela Unitaid, propondo que a indústria farmacêutica seja paga pela pesquisa
e pelo desenvolvimento dos medicamentos ao mesmo tempo em que au-
torizaria fabricantes de genéricos a produzirem e oferecerem esses medica-
mentos a um custo menor e em menos tempo. A proposta encontrou forte
resistência dos Estados Unidos, entre outros países, inclusive o México.
Da mesma forma, o Brasil tem defendido o acesso a medicamentos es-
senciais em âmbito regional. Notadamente durante as conferências minis-
teriais da Alca, o país assumiu papel de liderança e se opôs às propostas dos
Estados Unidos de incluir cláusulas sobre direitos de propriedade intelec-
tual no texto preliminar do tratado do acordo regional, argumentando que
esses direitos deveriam ser tratados exclusivamente no âmbito da OMC.
Desde as últimas negociações, realizadas em Mar del Plata em 2005, o im-
passe não foi superado e nenhum acordo foi firmado (Carmo, 2005).
Apesar das realizações nesses diversos fóruns multilaterais, as nego-
ciações mais consequentes sobre saúde, propriedade intelectual e comércio
lideradas pelo Brasil ocorreram no âmbito da OMC. Na reunião do Con-
selho Trips de junho de 2001, a delegação brasileira destacou a importância
dos genéricos para o êxito do programa de aids do país (Sell, 2002:513). Na
reunião subsequente do conselho, realizada em setembro, o principal objeti-
vo das negociações era a conciliação do Trips com os imperativos de saúde
pública dos países-membros da OMC. Nessa ocasião, o Brasil e o Grupo
Africano apresentaram uma versão preliminar de um texto para uma de-
claração ministerial sobre Trips e saúde pública, enfatizando que nada no
acordo impede os países-membros de responderem às suas necessidades

16
Outros membros fundadores foram Chile, França, Noruega e Reino Unido.
228 Política externa brasileira

de saúde pública (‘T Hoen, 2002:41; Dutfield, 2003:15). Os países em


desenvolvimento visavam usar essa declaração como garantia do seu di-
reito de disponibilizar medicamentos essenciais genéricos a seus pacientes
sem sofrer ameaças de retaliações comerciais ou acusações de descumpri-
mento do Trips na OMC por parte dos Estados Unidos e de outros países
desenvolvidos.
Como resposta às pressões dos países em desenvolvimento e de um
número considerável de ONGs e redes de ativismo transnacional, a questão
propriedade intelectual e saúde pública dominou as negociações da Confe-
rência Ministerial da OMC em Doha, realizada em novembro (Williams,
2002). O Brasil liderou os países em desenvolvimento em negociações para
assegurar a aprovação da Declaração sobre o Acordo Trips e Saúde Públi-
ca.17 Em seu discurso na sessão de abertura da conferência, o ministro da
Saúde brasileiro, José Serra, expôs a suposta hipocrisia do governo norte-
americano ao considerar emitir licença compulsória para o antibiótico ci-
proflaxin, utilizado no tratamento da infecção por antraz, que tinha até
então matado cerca de seis pessoas nos Estados Unidos, e negar essa mes-
ma prerrogativa aos países em desenvolvimento, que enfrentavam milhares
de mortes diárias decorrentes da epidemia de aids (Sell, 2002:515-516).
Apesar dos esforços dos Estados Unidos para cooptar o Grupo Afri-
cano18 e isolar Brasil e Índia, os países em desenvolvimento mantiveram
um bloco coeso e lograram aprovar a declaração em formato muito similar
ao originariamente proposto por eles. Notadamente, o §4o da declaração
reproduziu quase palavra por palavra a principal mensagem contida na ver-
são preliminar submetida pelo Brasil e pelos outros países em desenvolvi-
mento, afirmando que:

Concordamos que o Acordo Trips não impede e não deve impedir que os
membros adotem medidas de proteção à saúde pública. Deste modo, ao
mesmo tempo em que reiteramos nosso compromisso com o Acordo Trips,

17
Rich, 2001; Nassif, 2001; O Estado de S. Paulo, 2001; Correio Braziliense, 2001.
18
Em conversas informais que precederam as negociações, representantes dos Estados Unidos
apresentaram propostas de extensão do período de transição para cumprimento do Acordo Trips
no que tange a produtos farmacêuticos para países relativamente menos desenvolvidos, e ofere-
ceram uma moratória em disputas na OMC envolvendo países da África subsaariana e as medi-
das por eles adotadas para combater a pandemia de aids. Caso os países africanos tivessem aceito
essas propostas, os Estados Unidos certamente poderiam vetar a proposta da ampla coalizão de
80 países em desenvolvimento liderada pelo Brasil e pela Índia.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 229

afirmamos que o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de


modo a implicar apoio ao direito dos membros da OMC de proteger a saú-
de pública e, em particular, de promover o acesso de todos aos medicamen-
tos (OMC, 2001).

O fiasco da Conferência Ministerial da OMC anterior, realizada em


Seattle em 1999, tornou imperativo evitar um impasse em Doha, e a ques-
tão das patentes e saúde pública, caso não resolvida satisfatoriamente, po-
deria levar ao fracasso das negociações, com implicações desastrosas para o
regime multilateral de comércio. Cumpre ressaltar o papel desempenhado
pelas ONGs transnacionais durante a conferência, tanto mantendo a coa-
lizão dos países em desenvolvimento unida e reforçando sua capacidade de
negociação, quanto pressionando os Estados Unidos e outros países desen-
volvidos (Drahos, 2002:781; Blustein, 2001).
No contexto da conferência de Doha foi discutido ainda um obstácu-
lo adicional imposto pelo Trips ao acesso global a medicamentos essenciais.
Os países relativamente menos desenvolvidos que não possuem laborató-
rios farmacêuticos capazes de produzir medicamentos licenciados com-
pulsoriamente dependem da importação destes. Contudo, o art. 31f do
Trips afirma que o licenciamento compulsório em um país-membro só
pode ocorrer com o objetivo de abastecer primordialmente o mercado do-
méstico desse país (OMC, 1994). Isso significa, por exemplo, que países
como o Brasil e a Tailândia, que emitiram licenças compulsórias para an-
tirretrovirais, não podem exportar tais antirretrovirais para países incapazes
de produzi-los em quantidade maior que a vendida domesticamente.
A declaração de Doha deixou esse problema sem solução, porém, em
seu §6o, reconheceu “que os membros da OMC com pouca ou nenhuma
capacidade de produção no setor farmacêutico podem enfrentar dificul-
dades para a efetiva utilização do licenciamento compulsório previsto no
Acordo Trips” e determinou que o Conselho do Trips “defina uma imedia-
ta solução para esse problema” (OMC, 2001).
Em 30 de agosto de 2003, pouco antes da Reunião Ministerial da
OMC em Cancún, o Brasil foi um dos quatro países em desenvolvimen-
to que construíram um acordo sobre mudanças legais que permitiria aos
países mais pobres sem capacidade de produzir medicamentos essenciais
importar versões genéricas e baratas desses medicamentos produzidas a
partir do licenciamento compulsório (Oliveira, 2003). Segundo o acordo,
230 Política externa brasileira

tal importação tem de ser aprovada pela OMC, e o medicamento em


questão tem de ser licenciado compulsoriamente em ambos os países, o
exportador e o importador, e suas embalagens devem ser claramente iden-
tificáveis de forma a evitar o contrabando para outros países. Até hoje, no
entanto, houve somente um caso de utilização do procedimento previs-
to nesse acordo para permitir o comércio internacional de medicamen-
to licenciado compulsoriamente — entre o Canadá e Ruanda. Ativistas
transnacionais criticaram o acordo, considerando que ele impõe exigên-
cias demasiadas e custosas para esse comércio (Act Up Paris et al., 2003).
Em 6 de dezembro de 2005, os países-membros da OMC acordaram
tornar essas mudanças legais permanentes por meio de uma emenda ao
Trips, a primeira jamais acordada para qualquer dos acordos do Gatt (Mat-
thews, 2006:91-130). Porém, para que a emenda entre em vigor, dois terços
dos membros da OMC devem ratificá-la, sendo o prazo para fazê-lo, já es-
tendido, 31 de dezembro de 2009. Até o momento, 25 países e a União Eu-
ropeia (que representa mais 27 países) já aceitaram a emenda (New, 2009).
O Brasil ratificou a emenda em 13 de novembro de 2008.

Considerações finais

Este capítulo mostrou como a defesa do programa de tratamento da aids


no Brasil exigiu a adoção de uma política externa mais assertiva nas nego-
ciações com empresas farmacêuticas multinacionais; nos fóruns interna-
cionais de saúde e direitos humanos; nas negociações comerciais bilaterais
com os Estados Unidos; nas negociações regionais da Alca; e no âmbito
das instituições de governança global ligadas ao comércio internacional e
aos direitos de propriedade intelectual, sobretudo a OMC. Conforme ar-
gumentado, o êxito desse programa e seu amplo reconhecimento interna-
cional fortaleceram a posição brasileira nas negociações internacionais. É
notável, por exemplo, a mudança na posição da OMS, que inicialmente
criticava a oferta de tratamento antirretroviral no Brasil e em países em
desenvolvimento e posteriormente passou a defender a flexibilização dos
direitos de patentes justamente para garantir o acesso global a esse tra-
tamento. A política externa brasileira também se beneficiou do apoio de
ONGs e outros grupos da sociedade civil engajados com questões como
aids, saúde pública, direitos do consumidor e direitos humanos. Não é por
Saúde pública, patentes e atores não estatais 231

outra razão que nas disputas internacionais relacionadas ao comércio e às


patentes o governo brasileiro tem consistentemente, e geralmente de for-
ma bem-sucedida, tentado enquadrar as negociações em termos de saúde
e direitos humanos.
A sintonia verificada entre o governo do Brasil e as ONGs domésticas,
estrangeiras e transnacionais tem sido considerável e permitiu a cooperação
em diversas instâncias. Embora tal sintonia tenha sido quebrada por vezes,
notadamente no acordo de 30 de agosto de 2003 construído pelo Brasil e al-
tamente criticado pelos ativistas, ela foi mantida durante os contenciosos do
país com as empresas multinacionais farmacêuticas, com os Estados Unidos
e nos fóruns multilaterais. Há também evidências de que o apoio e engaja-
mento do governo brasileiro à causa defendida por muitas ONGs domés-
ticas explicam o baixo grau de transnacionalização dessas ONGs, seu baixo
número e a fragilidade de suas alianças com ONGs estrangeiras e transna-
cionais. As ONGs Aids sul-africanas, como a Treatment Action Campaign,
em contraste, possuem alianças transnacionais numerosas e bem-consolida-
das justamente por não contarem com o apoio do governo da África do Sul
e, por conseguinte, dependerem dessas alianças para terem acesso à arena
internacional.19
Embora os acordos bem-sucedidos com as empresas multinacionais
farmacêuticas tenham resultado especialmente do poder de mercado e da
capacitação tecnológica do Ministério da Saúde brasileiro, a legitimidade
dos descontos nos preços de antirretrovirais exigidos por esse ministério
foi amplamente reconhecida, e o licenciamento compulsório desses me-
dicamentos tem sido há tempos defendido por grupos da sociedade civil.
No contencioso com os Estados Unidos, a mobilização de ONGs e redes
de ativismo — a maioria das quais motivadas pela defesa da saúde públi-
ca — foi mais visível e desempenhou papel decisivo na retirada do painel
contra o Brasil na OMC. Outrossim, as realizações do Brasil nos fóruns
multilaterais, e principalmente no âmbito da OMC, contaram com signifi-
cativa participação de ativistas. Embora a assessoria técnica e financeira das
ONGs tenha sido mais consequente para os países relativamente menos
desenvolvidos do Grupo Africano do que para o Brasil, ao contribuir para
manter a coesão dos países em desenvolvimento na Reunião de Doha essa

19
Desenvolvo esse argumento em outro projeto de pesquisa, que aborda comparativamente o ati-
vismo social ligado aos direitos de propriedade no Brasil, na África do Sul e na Índia.
232 Política externa brasileira

assessoria permitiu, em última análise, a aprovação de um documento com


redação muito próxima da proposta anteriormente apresentada pela repre-
sentação brasileira. Ainda que restrita a produtos farmacêuticos, a Decla-
ração sobre o Acordo Trips e Saúde Pública levou à única emenda jamais
aprovada para qualquer dos acordos do Gatt.
Ademais, a política externa brasileira para aids foi certamente bene-
ficiada pela harmonia de interesses entre o Itamaraty e o Ministério da
Saúde. De modo geral, a resistência do Itamaraty a um regime global de
propriedade intelectual que reduzisse significativamente a autonomia po-
lítica do país e sua capacidade de adotar as políticas e instituições de pa-
tentes que melhor servissem a seus interesses sociais e de desenvolvimento
encontrou na causa da saúde pública e da aids aliados e argumentos pode-
rosos. Como consequência, o Ministério da Saúde passou a desempenhar
um papel mais influente na política externa para a aids e a contar com o
apoio de diplomatas cedidos pelo Itamaraty. José Marcos Nogueira Via-
na, por exemplo, era diplomata de carreira e trabalhava diretamente para
o Ministério da Saúde, participando das negociações na Reunião de Doha
lideradas pelo então ministro José Serra.
É notável também que o governo Lula tenha dado continuidade à
política externa brasileira para a aids iniciada no governo FHC, na emis-
são de decreto que regula a Lei de Propriedade Industrial, no licenciamen-
to compulsório do efavirenz e nas negociações multilaterais. Nas eleições
presidenciais de 2002, o candidato Lula já tinha reconhecido as realiza-
ções do Brasil relativas ao combate à aids, trunfo de seu principal concor-
rente, Serra, embora ressaltando a contribuição de municípios administra-
dos pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Desde que se tornou presidente,
os contenciosos sobre patentes e saúde pública ofereceram oportunidades
para que Lula consolidasse sua política externa independente dos Estados
Unidos, voltada para a cooperação com países em desenvolvimento — e,
de fato, para a liderança brasileira entre esses países — e guiada por uma
noção de “inserção internacional soberana”.20
Cumpre enfatizar, contudo, que as realizações da política externa
brasileira para a aids ocorreram em um contexto de forte oposição de go-
vernos e empresas poderosos. As empresas multinacionais farmacêuticas

20
Para uma defesa e explicação da inserção internacional soberana brasileira e os direitos de pro-
priedade intelectual, ver Mercadante (2004).
Saúde pública, patentes e atores não estatais 233

certamente possuem maior poder econômico e financeiro, assim como


acesso às instâncias decisórias governamentais, do que a rede de ONGs
que têm apoiado o Brasil. Ademais, o governo dos Estados Unidos tem
geralmente atuado em defesa dos interesses dessas empresas e pressiona-
do o Brasil em negociações bilaterais, regionais e multilaterais para im-
plementar leis de propriedade intelectual mais rigorosas. Diante dessa
poderosa oposição, o êxito da política externa brasileira para a aids é sur-
preendente. Teorias dominantes nas relações internacionais que privile-
giam o poder material enquanto fator explicativo têm dificuldade para
explicar o resultado do contencioso entre Brasil e Estados Unidos e, prin-
cipalmente, a Declaração sobre o Acordo Trips e Saúde Pública.21 Tal
explicação requer uma melhor apreciação tanto do papel dos atores não
estatais quanto das normas de direitos humanos que eles defendem.
Por fim, cabe salientar que o sucesso da política externa do Brasil para
a aids não deve obscurecer os sérios desafios externos à sustentabilidade do
programa brasileiro de tratamento antirretroviral. A proteção global dos
direitos de propriedade intelectual continua encarecendo os preços desses
medicamentos e, claramente, a estratégia de negociação com as empresas
farmacêuticas multinacionais tem se esgotado, deixando de produzir re-
sultados satisfatórios. A falta de investimentos na capacidade produtiva
do setor farmacêutico nacional e a falta de competência para a produção
de princípios ativos, juntamente com a dificuldade de importar esses prin-
cípios ativos da Índia, minam as possibilidades de licenciamento compul-
sório e tornam sua ameaça menos crível para as empresas multinacionais.
Como consequência, as concessões obtidas pelo Ministério da Saúde nas
últimas negociações com essas empresas, notadamente com a Abbott, não
geraram economias significativas nem tampouco transferência de tecnolo-
gia. O licenciamento compulsório do efavirenz demonstrou, por sua vez, as
limitações dessa prática na ausência da capacitação tecnológica. E o meca-
nismo acordado em 30 de agosto de 2003 inclui tantas exigências e é tão
complexo — conforme admitiram os próprios exportadores canadenses,
que foram os únicos até o momento a utilizá-lo (New, 2009) — que torna a
importação de genéricos licenciados compulsoriamente custosa e inviável,

21
Entre os trabalhos representativos do realismo político que ressaltam o papel do poder mate-
rial na determinação dos resultados de disputas internacionais e na configuração dos regimes e
acordos multilaterais, encontram-se Krasner (1976 e 1991) e Strange (1983).
234 Política externa brasileira

a não ser como medida emergencial. A obtenção de licenças voluntárias


por parte das empresas multinacionais detentoras das patentes de antir-
retrovirais constitui outra estratégia viável, que tem sido adotada com êxi-
to pela África do Sul. Embora as multinacionais tenham se mostrado al-
tamente resistentes a ceder licenças voluntárias para laboratórios públicos
brasileiros, as parcerias firmadas entre a Far-Manguinhos e a Bristol e en-
tre o Lafepe e a Merck em 2011 sinalizam uma possível e promissora mu-
dança na relação com o Ministério da Saúde. Não obstante, a capacidade
de obter licenças voluntárias vantajosas também depende do progresso da
indústria farmacêutica nacional. Por tais razões, a flexibilização dos direi-
tos de patente alcançada pela política externa do Brasil, necessariamente
limitada dadas as resistências de atores poderosos, terá de ser acompanha-
da por medidas para a capacitação tecnológica do país, de forma a garantir
a efetividade de sua resposta à saúde pública.

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8.
Brasil e saúde global

Paulo Marchiori Buss


José Roberto Ferreira

No limiar do século XXI, o Brasil — hoje reconhecido como economia


emergente — vem assumindo um papel mais ativo no cenário mundial. O
país está atravessando com poucos danos a crise econômico-financeira glo-
bal, divide com outros países uma liderança relevante em diversos temas da
agenda internacional e já compartilha com doadores tradicionais um papel
expressivo na cooperação com países mais pobres.
Este capítulo pretende analisar o comprometimento do Brasil com
a saúde global e a cooperação Sul-Sul em saúde, estando assim organiza-
do: a) necessidades de cooperação internacional em saúde; b) modelo do-
minante de cooperação internacional em saúde; c) alternativas ao modelo
dominante; e d) experiência da cooperação Sul-Sul do Brasil com a África
de língua portuguesa e com a América do Sul. As reflexões aqui contidas
resultam da vivência institucional e pessoal concreta da cooperação inter-
nacional em saúde no Brasil nos últimos 10 anos, período em que a saúde
adquiriu papel de relevo na política externa brasileira.

Necessidades de cooperação internacional em saúde

O “breve” século XX, como definido por Eric Hobsbawm (1995), foi mar-
cado por importantes avanços econômicos, sociais e técnico-científicos,
que melhoraram a qualidade de vida e as condições de saúde de milha-
res de pessoas em todo o mundo. Contudo, como “era dos extremos” —
na mesma definição —, o processo de globalização vigente também tem
242 Política externa brasileira

criado grandes disparidades internacionais e produzido enormes proble-


mas sociais e de saúde, particularmente nos países mais excluídos dos cir-
cuitos centrais da economia global (ILO, 2004; Buss, 2007). Neste início
de século XXI, as condições declinantes da saúde de grandes parcelas da
população de diversos países, a inseguridade alimentar e, evidentemente,
as consequências das mudanças climáticas têm chamado a atenção da co-
munidade internacional.1
Nos países e regiões mencionados, verifica-se uma evidente “dupla
carga de enfermidades”, isto é, o convívio perverso de doenças transmissí-
veis epidêmicas, emergentes, reemergentes e negligenciadas — como HIV/
aids, malária e tuberculose — com doenças crônicas não transmissíveis, en-
tre as quais as cárdio e cerebrovasculares (como hipertensão, derrames ce-
rebrais e infartos do miocárdio), diabetes, cânceres, doenças mentais e por
causas externas e violências. Além disso, a pobreza, a fome, a má nutrição e
a assistência inadequada a crianças, mães e idosos são responsáveis por ele-
vadas taxas de mortalidade geral, materna e de menores de cinco anos, bem
como por uma baixa expectativa de vida ao nascer. Iniquidades nas condi-
ções de saúde e no acesso aos cuidados com a saúde são encontrados tanto
entre países quanto no interior destes (WHO, 2009).
Os chamados países de renda baixa e média — alguns dos mais pobres
do mundo, nos quais prevalecem as condições de saúde mencionadas — apre-
sentam sérias limitações de governança e têm baixa capacidade de formular e
implementar políticas de saúde capazes de satisfazer as necessidades de suas
populações. Seus sistemas de saúde são geralmente precários, fragmentados,
subfinanciados e carentes dos recursos tecnológicos básicos para oferecer as-
sistência à saúde e medidas de saúde pública adequadas às necessidades da
população. Além disso, os profissionais de saúde são escassos, pouco capacita-
dos e sub-remunerados, situação agravada pela migração de pessoal de saúde,
especialmente de países em desenvolvimento para países desenvolvidos. Em
síntese, os sistemas de saúde da maioria dos países pobres têm tido muitas
dificuldades para atender às necessidades de suas populações, às doenças pre-
valentes, a seus principais fatores de risco e às péssimas condições de vida que
afetam a saúde, o que os coloca em situação de grande dependência da ajuda
internacional, crucial tanto para o desenvolvimento quanto para a melhoria
das condições de vida e saúde de suas populações.

1
Ver WHO/Afro, 2006; WHO, 2009; FAO, 2008; e Intergovernmental Panel on Climate
Change (IPCC), disponível em: <http://ipcc.ch>.
Brasil e saúde global 243

As causas de tais questões — más condições de vida e de saúde e bai-


xa capacidade de resposta por parte dos países em desenvolvimento — não
são fruto do acaso. Muito pelo contrário. Como apontam diversos relatórios
internacionais e autores, os determinantes sociais e econômicos e o fenôme-
no da globalização injusta, com a pobreza como pano de fundo, estão na
raiz da situação (WHO, 2008; ILO, 2004; Buss, 2007). O setor da saúde,
mediante diversas iniciativas e atendendo a interesses muitas vezes con-
traditórios, tem sido um foco importante da cooperação internacional e
da ajuda externa, propiciada — segundo interesses, motivações e estraté-
gias muito variadas — por inúmeras agências multilaterais (a própria ONU,
através dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, por exemplo, e suas
agências setoriais, como OMS, Unicef, Pnud e outras, por meio dos progra-
mas que desenvolvem nos países), agências governamentais de cooperação
de países desenvolvidos (Estados Unidos, União Europeia, países nórdicos,
entre outros) ou de países emergentes (caso do Brasil), assim como ONGs
e outras instituições e iniciativas que atuam no cenário global (a exemplo da
Global Alliance for Vaccines and Immunisation — Gavi, entre outras).

Críticas ao modelo dominante de cooperação internacional

Essa proliferação de entidades intergovernamentais, filantrópicas e priva-


das envolvidas na “ajuda para o desenvolvimento” no último decênio aca-
bou por criar desafios importantes para a chamada “governança global em
saúde”. Em geral, os “doadores” tendem a impor aos “países donatários”
seus próprios objetivos e métodos de trabalho, além de sua visão do mundo
e programas definidos no nível central; os donatários da cooperação qua-
se nunca participam das definições programáticas da ajuda recebida, o que
leva a uma forte dissociação entre a ajuda externa e as necessidades locais;
os programas de ajuda dificilmente se encontram alinhados com as polí-
ticas nacionais em curso; os diversos doadores raramente coordenam ou
pelo menos articulam suas ações; os custos de transação e a proliferação de
uma enorme burocracia internacional consomem parte substantiva da aju-
da disponível, que, assim, deixa de chegar aos países.
Por outro lado, os países donatários em geral não estão suficientemen-
te preparados para organizar suas demandas de cooperação, em função da
precariedade de seus sistemas de saúde e de relações exteriores, bem como
244 Política externa brasileira

da falta de coordenação entre eles e os outros parceiros públicos e privados


fundamentais no processo. A imperiosa necessidade de ajuda externa leva
a maioria dos países pobres a aceitar os planos dos doadores. O resultado é
a fragmentação e a baixa efetividade dos já escassos recursos para a coope-
ração disponibilizados localmente (Buss, 2007 e 2008).
Como bem resumem Birn, Pillay e Holtz (2009:62-63), “a maior par-
te das atividades em saúde internacional não é compartilhada entre nações
‘equivalentes’; elas refletem a ordem política e econômica internacional, na
qual a ‘assistência’ internacional é ‘provida’ pelas nações ricas e industriali-
zadas e ‘recebida’ pelos países pobres e subdesenvolvidos. […] A assistência
internacional reflete as relações geopolíticas e reproduz os desequilíbrios de
poder e recursos”. Isso significa que, como ação integrante e fundamental
nas relações entre os países, a cooperação internacional reproduz as relações
de poder do mundo globalizado e só será efetivamente modificada se tam-
bém se alterarem as estruturas e regras da governança global em saúde.
As críticas à governança global em saúde são pertinentes. Em todo o
espectro das relações internacionais em saúde — incluindo a cooperação
técnica — predominam as visões, políticas e práticas dos governos ou das
organizações não governamentais, filantrópicas e empresariais dos países
mais poderosos economicamente e que também ocupam a maioria dos
cargos nas organizações multilaterais e nas parcerias globais que dispõem
de maior poder político e/ou econômico, ou nelas impõem suas orienta-
ções políticas.2
As críticas às Nações Unidas como um todo não são menores. Apon-
tado como ineficiente, o sistema de agências da ONU, incluindo a Or-
ganização Mundial da Saúde, vê seu orçamento regular, propiciado pela
contribuição obrigatória dos Estados-membros, estagnar, aumentando
apenas os recursos financeiros com finalidade específica, indicada dire-
tamente pelos doadores. No caso da OMS, cerca de 60% do orçamento
provêm atualmente de tais contribuições voluntárias — dos próprios paí-
ses, fundações filantrópicas e empresas privadas —, deixando o Conselho
Executivo e o Secretariado com uma margem de manobra programáti-

2
Muitos autores e organizações têm se debruçado criticamente sobre a governança global em
saúde, como Garret (2007); Bloom (2007); Birn, Pillay e Holtz (2009); Gostin e Mok (2009).
O leitor interessado deve consultá-los, já que a cooperação internacional não é o foco central
deste capítulo, e somente aspectos pertinentes serão aqui desenvolvidos quando necessário.
Brasil e saúde global 245

ca bastante pequena. Temendo que essas contribuições sejam ainda mais


reduzidas, o Secretariado faz todo o possível para evitar conflitos com
doadores poderosos ou contrariar seus interesses. O aumento das contri-
buições voluntárias, em detrimento das obrigatórias (que reforçariam o
orçamento regular e, portanto, os programas institucionais de cooperação
multilateral), representa possivelmente uma reação de desconfiança dos
países-membros quanto à capacidade de implementação de projetos de
cooperação pela OMS. Se não chega a tanto, trata-se, no mínimo, de uma
deformação do processo de cooperação multilateral, que necessariamente
deverá ser revisto em anos vindouros, conforme reconhecem os projetos
de reforma em implementação na própria ONU e na OMS.
Diante dessa situação da cooperação internacional em saúde, e in-
satisfeitos com os resultados obtidos em relação ao desenvolvimento e à
saúde, diversos atores envolvidos em saúde global passaram a buscar alter-
nativas ao modelo dominante, algumas das quais discutiremos a seguir.

Alternativas ao modelo dominante de cooperação


internacional em saúde

As críticas severas às formas vigentes de ajuda para o desenvolvimento


propiciada pelos países desenvolvidos e organizações multilaterais, vin-
das de todos os lados, levou a Organização para a Cooperação e o Desen-
volvimento Econômico (OCDE) a realizar o High-Level Forum on Aid
Effectiveness, em 2005, em Paris, para reorientar sua atuação, procurando
torná-la mais eficaz, particularmente na perspectiva da primeira revisão
quinquenal da Declaração do Milênio e dos Objetivos de Desenvolvi-
mento do Milênio (ODMs), que ocorreria mais tarde, no mesmo ano.
Desse evento surgiu a Paris Declaration on Aid Effectiveness (OECD,
2005), que, firmada por centenas de países e dezenas de instituições glo-
bais, inclusive da sociedade civil, reitera a necessidade de ampliar a ajuda
para o desenvolvimento, mas também melhorar sua eficácia, através das
estratégias de apropriação, alinhamento, harmonização, gestão por resul-
tados e prestação de contas mútua.
Em setembro de 2008, realizou-se em Gana o Fórum de Alto Nível de
Acra sobre a Efetividade da Ajuda, que veio a gerar a Agenda para a Ação
de Acra (UN, 2008a), que reitera a Declaração de Paris e reforça a decisão
246 Política externa brasileira

de reduzir a onerosa fragmentação da ajuda. Logo em seguida, em dezem-


bro de 2008, em Doha, realizou-se a Conferência sobre o Financiamento
para o Desenvolvimento, que produziu a Doha Declaration on Financing
for Development (UN, 2008b), que reafirmou (pelo menos no papel) a dis-
posição dos países desenvolvidos de comprometer 0,7% dos respectivos
PIBs para a ajuda externa a países em desenvolvimento até 2015. Ambos os
documentos fazem referências específicas e atribuem ênfase especial à coo-
peração com a África, região que apresenta a pior evolução quanto ao atin-
gimento dos ODMs (MDG Africa Steering Committee, 2008).
A importante declaração e seus desdobramentos, assim como as ade-
sões de inúmeros países e organizações às suas propostas, fariam supor um
aumento na ajuda externa para o desenvolvimento e práticas mais adequa-
das, com repercussões positivas sobre os ODMs. Contudo, a conclusão do
relatório do Banco Mundial sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Mi-
lênio é muito preocupante, indicando que a ajuda para o desenvolvimen-
to vem decrescendo, apesar da renovação (retórica) dos compromissos dos
países doadores (World Bank, 2010). Por outro lado, a maioria dos países
mais pobres, a apenas cinco anos do prazo de 2015, está longe de alcançar as
metas pactuadas. Embora boa parte do mundo venha conseguindo reduzir
a pobreza extrema, a diminuição das mortalidades infantil e materna apre-
senta mais dificuldades. O mesmo ocorre com a universalização da escola-
ridade primária e com os objetivos de nutrição e saneamento básico.
No campo específico da saúde, além das recomendações mais gerais
contidas na Declaração de Paris, diversas orientações resultantes das críti-
cas às práticas tradicionais e prevalentes de cooperação vêm sendo assina-
ladas (Buss & Ferreira, 2010a):
• mudar a estratégia de cooperação, calcada em programas baseados na
orientação global única dos doadores, para uma cooperação compar-
tilhada, orientada pelo planejamento estratégico centrado na realida-
de do país parceiro;
• passar de programas de ajuda “verticais” (intervenções com enfoque
em doenças ou situações e problemas particulares) para o enfoque
“horizontal”, que visa ao desenvolvimento integral dos sistemas de
saúde. Os programas verticais não contribuem para o fortalecimen-
to do sistema como um todo; ao contrário, levam à fragmentação e à
debilidade deste, seja pelo recrutamento do melhor pessoal disponível
Brasil e saúde global 247

no país, seja por se concentrarem em certas áreas, abandonando ou-


tras prioritárias;
• dar ênfase ao longo prazo, em vez de se concentrar exclusivamen-
te nas necessidades de curto prazo. Isso implica o fortalecimento de
instituições-chave dos sistemas de saúde para que adquiram uma ge-
nuína liderança nos processos nacionais, no desenvolvimento de uma
agenda orientada para o futuro e no equilíbrio entre ações específicas
dirigidas à solução de problemas imediatos, com a geração de conhe-
cimentos e o desenvolvimento de capacidades institucionais nacio-
nais sustentáveis;
• incorporar amplamente nos programas de cooperação em saúde os
determinantes sociais da saúde e as ações intersetoriais;
• priorizar programas de saúde pública (foco na população) em vez de
programas e atividades focados estritamente na assistência médica a
indivíduos doentes.
Por outro lado, há consenso quanto a ser fundamental, para fomentar
a perspectiva da saúde global, associar a excelência em saúde com o poderio
do setor de relações exteriores, em especial no caso da cooperação Sul-Sul.
Embora presente há mais de um século nas relações entre países (Fidler,
2001), só mais recentemente a saúde tem recebido efetiva prioridade no
campo da cooperação internacional. Nesse contexto, o conceito e a práti-
ca da “diplomacia da saúde” (Kickbusch, Silberschmidt e Buss, 2007; Buss,
2008) emergem para tratar de questões de saúde que transcendem as fron-
teiras nacionais e expõem os países às influências globais, e para orientar a
cooperação internacional em saúde. Essa noção, quando bem formulada e
aplicada, possibilita uma coordenação mais adequada e coesa entre os setores
de saúde e relações exteriores dos governos, não só porque incorpora a visão
extrassetorial (contida, por exemplo, nos ODMs), como também idealmente
está apta a identificar as prioridades no próprio campo da saúde.
O mesmo conceito traz uma importante diferenciação entre assis-
tência e cooperação técnica. A primeira baseia-se em iniciativas preconce-
bidas, desenvolvidas pelos próprios doadores, em geral sem a participação
dos donatários; já a cooperação técnica resulta de um verdadeiro esforço
conjunto, integrando doadores e donatários, em processo no qual as expe-
riências prévias e as orientações estratégicas são compartilhadas, visando
248 Política externa brasileira

ao planejamento e à execução conjuntas, com a implementação da auto-


nomia do parceiro e a sustentabilidade do processo como um todo (Buss
e Ferreira, 2010a).
Tem sido realizado um esforço crescente para encontrar mecanismos
capazes de implementar os princípios constantes da Declaração de Paris
no campo da saúde. A chamada “abordagem setorial ampliada” (sector-wide
approach ou swaps)3 é usada em diversos cenários, como na área da saúde na
África (Walford, 2007), a fim de procurar operacionalizar particularmente
os conceitos de apropriação, alinhamento e harmonização. Os swaps bus-
cam facilitar e reduzir o peso da coordenação e das exigências dos relatórios
de acompanhamento e prestação de contas etc., peso este que recai sobre
os governos dos países, devido à proliferação de doadores, com suas múlti-
plas e diferentes exigências e práticas de gestão. As várias agências parcei-
ras dos países transformam-se numa espécie de “consórcio de parceiros em
saúde”, que pactuam pelo uso de procedimentos comuns de planejamento,
implementação, monitoramento e informes; além disso, comprometem-se
a articular os diversos atores envolvidos num assunto específico ou em um
território particular do país (Birn, Pillay e Holtz, 2009). As próprias Na-
ções Unidas, criticadas pela descoordenação de suas ações nos países, in-
clusive no campo da saúde, lançou a iniciativa de articular o trabalho de
suas diversas agências nos países, sob a coordenação do Pnud.
No que diz respeito especificamente à saúde, um dos primeiros mo-
vimentos realizados entre países foi a iniciativa Política Externa e Saúde
Global, lançada pelos ministérios das Relações Exteriores da África do
Sul, Brasil, França, Indonésia, Noruega, Senegal e Tailândia (Ministers of
Foreign Affairs, 2007), que resultou na Declaração de Oslo, chamando a
atenção para a necessidade de dar prioridade à saúde na política externa de
todos os países. Em resposta a esse chamado internacional, realizado por
países importantes de diversos continentes, a Assembleia Geral das Na-
ções Unidas, por ocasião de sua 63a Sessão, em 2008, adotou a Resolução
no 63/33 sobre saúde global e política externa, reconhecendo a estreita re-
lação entre ambas as áreas e determinando que o Conselho Econômico e
Social (Ecosoc), em sua sessão de julho de 2009, tratasse do “cumprimento
dos objetivos e compromissos pactuados internacionalmente com relação
à saúde pública global”, além de pedir maior coordenação do sistema da
ONU no campo da saúde.

3
Ver Cassels (1997); Brown et al. (2001); Hutton e Tanner (2004).
Brasil e saúde global 249

A Declaração Ministerial sobre Saúde Pública Global, um longo do-


cumento resultante do Segmento de Alto Nível 2009 do Ecosoc, realizado
em Genebra, enuncia uma ampla agenda para a ação de governos, órgãos
das Nações Unidas e da sociedade civil mundial sobre a saúde global, que
passa a ser motivo de entendimentos ulteriores entre os Estados-membros
da ONU, seja na Assembleia Geral, seja na OMS. Por outro lado, no âmbi-
to da OMS e de seus escritórios regionais, foi lançada a Política de Coope-
ração Centrada nos Países, que não só procura alinhar a atuação da OMS
às políticas nacionais de saúde, como também coordenar sua atuação no
país com as demais agências das Nações Unidas e outros atores (UN/Eco-
soc, 2009; WHO, 2007).

Outra alternativa: a cooperação Sul-Sul

The responsibility for the development of the South lies in the South,
and in the hands of the people of the South
Julius Nyerere, 1990

A cooperação Sul-Sul, também conhecida como cooperação horizontal


ou cooperação entre países em desenvolvimento, é o processo de parce-
ria econômica, comercial, social ou de outra natureza que se estabelece
(idealmente), trazendo vantagens mútuas para os países em desenvolvi-
mento parceiros, geralmente localizados no Hemisfério Sul. Subjacente
ao conceito, encontra-se a hipótese de que o mundo em desenvolvimen-
to é capaz de produzir soluções autênticas para seus próprios problemas
(Buss e Ferreira, 2010b).
O conceito político Sul-Sul começou a surgir na década de 1950, no
auge da Guerra Fria, podendo-se identificar como seu marco político ini-
cial a Conferência Ásia-África, realizada em Bandung, Indonésia, em abril
de 1955, na qual estavam representados 29 Estados e 30 movimentos de
libertação nacional. Com o Movimento dos Não Alinhados, instituído em
1961 na Conferência de Belgrado e, mais tarde, com a constituição do
Grupo dos 77 em 1964, por ocasião da criação da Unctad — organização
que hoje já reúne cerca de 130 países que atuam de forma concertada nos
fóruns internacionais —, foram se estabelecendo os marcos essenciais para
a construção de consensos políticos entre países em desenvolvimento.
250 Política externa brasileira

Em 1978, a Conferência das Nações Unidas sobre Cooperação Téc-


nica entre Países em Desenvolvimento (CTPD), celebrada em Buenos
Aires, caracterizou esse tipo de cooperação como um componente essencial
da cooperação Sul-Sul. Ainda nesse ano, seguiu-se a criação da Unidade Es-
pecial para a Cooperação Sul-Sul (Special Unit for South-South Coopera-
tion — SU/SSC), pela Assembleia Geral da ONU, e sediada no Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que passou a promover,
coordenar e apoiar as cooperações Sul-Sul e a triangular em bases globais e
também no sistema das Nações Unidas (UNDP, 1978 e 2004).
Durante a década de 1980, considerada em vários aspectos, inclusive
na cooperação Sul-Sul, a “década perdida”, pouco se avançou nessa maté-
ria, à exceção, talvez, da criação, em 1987, da Comissão do Sul, formada
por 28 líderes de países do Sul — como os brasileiros dom Paulo Evaristo
Arns e Celso Furtado —, com o objetivo, entre outros, de expandir a coo-
peração Sul-Sul.4
Diversas reuniões e conferências retomaram a cooperação Sul-Sul na
década de 1990, seja no âmbito da ONU, seja por iniciativa de grupos de
países: Reunião Ministerial do Grupo dos 77, incluindo a cooperação Sul-
Sul (1994); Reunião dos Países Estruturais para CTPD (Chile, 1997); Fó-
rum sobre Experiências de Cooperação (Okinawa, Japão, 1998); reuniões
sobre CTPD do México (1999) e da Costa Rica (2000).
O G-77 continua sendo o ator global mais importante na coopera-
ção Sul-Sul, como demonstram a Declaração da Cúpula do Sul e o Plano
de Ação de Havana (2000), o Consenso de Teerã sobre a Cooperação Sul-
Sul (2001), a Declaração de Dubai sobre C&T no Sul (2002), a Decla-
ração e o Marco de Referência de Marrakech sobre a cooperação Sul-Sul
(2003) e, finalmente, a Plataforma de Desenvolvimento para o Sul, com
seu conjunto de princípios sobre a cooperação Sul-Sul, e o lançamento do
Fundo do Sul para o Desenvolvimento e a Assistência Humanitária, em
2008 (G-77, 2010).
Começando na década de 1990, mas com acentuada proeminência na
primeira década deste século, os países emergentes de renda média e renda
média alta surgiram como atores políticos de relevo no cenário internacio-
nal e, por consequência, na cooperação Sul-Sul. Com o intuito de realçar

4
Ver The South Commission (1990), relatório que se tornou um clássico e uma referência
mundial sobre o tema.
Brasil e saúde global 251

sua capacidade de intervenção positiva na política internacional, tais eco-


nomias emergentes desenvolvem, em conjunto, fundos de investimento,
programas de integração econômica, projetos de desenvolvimento, projetos
de infraestrutura e políticas de internacionalização de suas empresas.
Assim, países como Brasil, China, Índia, Nigéria, África do Sul, Vene-
zuela, entre outros, passaram a fazer investimentos econômicos produtivos,
e em cooperação, em suas regiões ou em países africanos e asiáticos mais
pobres, utilizando-se basicamente do chamado “poder brando” (soft power)
diplomático (Nye, 1990), isto é, recursos de pessoal e tecnologias apropria-
das na cooperação com países menos desenvolvidos, em vez dos tradicionais
mecanismos de coerção política ou manu militari para impor sua presença.
Trata-se, na realidade, de um processo de cooperação entre países econômi-
ca e politicamente mais semelhantes do que o estabelecido entre muitos dos
países desenvolvidos e ricos e países pobres das referidas regiões.
A cooperação entre países em desenvolvimento lhes oferece maio-
res oportunidades de aprendizado e aproveitamento das lições aprendidas,
uma vez que as condições de vida de suas populações são mais próximas,
se comparadas àquelas dos países do Norte. Mas essa maior proximidade
não chega a equiparar completamente os países em desenvolvimento, pois
estes diferem amplamente no que se refere ao seu contexto social — que é
heterogêneo não apenas entre os países, como também em seu interior —
e à parcela de poder de que desfrutam no contexto global. Consequente-
mente, não parece apropriado supor que a cooperação Sul-Sul nunca seja
vertical ou que as soluções encontradas em um país sejam inerentemente
implementáveis nos demais e adequadas a eles, ou ainda que as questões de
apropriação (ownership) e sustentabilidade não precisem ser preocupações
constantes, como se tem apontado em relação à cooperação Norte-Sul.
Os arranjos regionais entre países vizinhos do hemisfério têm também
papel fundamental na cooperação Sul-Sul. A Associação de Nações do Su-
deste da Ásia (Asean),5 a União Africana e a Nova Parceria para o De-
senvolvimento da África (Nepad),6 no continente africano, a Comunidade

5
Ver <http://www.aseansec.org>. O Conselho de Ministros da Saúde da Asean atuou viva-
mente em conjunto nas epidemias de Sars e influenza aviária, duas ameaças exponenciais à
saúde humana que se originaram exatamente na região.
6
Ver <http://www.nepad.org>. A Nepad desenvolve projetos nas áreas de segurança alimentar,
abastecimento de água e saneamento, ambiente e mudanças climáticas, saúde e ciência e tec-
nologia (com inovações em saúde), todos com repercussões importantes no campo da saúde no
continente africano.
252 Política externa brasileira

Caribenha de Nações (Caricom),7 na região do Caribe, e a Unasul, na


América do Sul, são alguns exemplos de cooperação Sul-Sul nos campos
econômico e social ainda em pleno desenvolvimento, mas que devem ser
acompanhados com atenção pelo potencial de realizações que oferecem. As
soluções Sul-Sul são buscadas até mesmo em comunidades de países liga-
dos por laços culturais, como o idioma, caso da Comunidade de Países de
Língua Portuguesa (CPLP).
É também importante apontar outro processo ora em alta, a coope-
ração Norte-Sul-Sul, ou seja, a “triangulação”, modalidade de cooperação
técnica na qual dois países — um do Norte, outro do Sul − implementam
ações conjuntas com o objetivo de prover capacitação profissional, fortale-
cimento institucional e intercâmbio técnico a um terceiro país do Sul. Fi-
nalmente, a crescente importância da cooperação Sul-Sul pode ainda ser
aquilatada por três importantes eventos internacionais de alto nível reali-
zados no transcorrer de 2009: a Reunião Plurianual de Especialistas sobre
Cooperação Internacional, com foco na cooperação Sul-Sul e na integra-
ção regional, realizada por ocasião da reunião da Unctad, em fevereiro, em
Genebra;8 a Conferência de Alto Nível das Nações Unidas sobre Coope-
ração Sul-Sul (UN, 2009), realizada em Nairóbi, em dezembro; e, focan-
do especificamente esse campo de políticas e práticas recém-inaugurado
da diplomacia da saúde, com menções à cooperação Sul-Sul, a Reunião de
Alto Nível do Conselho Econômico Social das Nações Unidas sobre Saú-
de Global, realizada em Genebra, em julho.

A cooperação Sul-Sul segundo o Brasil9

Um vastíssimo leque de iniciativas bilaterais e multilaterais compõe a par-


ticipação do Brasil na cooperação Sul-Sul, principalmente nos anos 2000.
Contudo, o tema ingressou formalmente na política externa brasileira em

7
Ver <http://www.caricom.org>. O Conselho de Ministros da Saúde e o Conselho para o De-
senvolvimento Humano e Social da Caricom têm desenvolvido importantes iniciativas conjun-
tas no controle de doenças, complementação assistencial e cooperação internacional em saúde.
8
Mais detalhes sobre a reunião encontram-se disponíveis em: <http://ictsd.org/i/news/
pontesquinzenal/40746>.
9
Para compreender a abrangência da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira, con-
sultar Desafios brasileiros na Era dos Gigantes, do embaixador Pinheiro Guimarães (2006), até
há pouco secretário das Relações Exteriores do Brasil.
Brasil e saúde global 253

1987, com a criação, no Ministério das Relações Exteriores, da Agência Bra-


sileira de Cooperação (ABC) e de uma Coordenação Geral de Cooperação
entre Países em Desenvolvimento (CGPD), com o objetivo de coordenar,
negociar, aprovar, acompanhar e avaliar a cooperação para o desenvolvimen-
to, em todas as áreas do conhecimento, recebida de outros países e orga-
nismos internacionais e aquela entre o Brasil e países em desenvolvimento
(MRE, 2008).
Um dos atos mais emblemáticos da aliança política de países em de-
senvolvimento do Sul ocorreu em setembro de 2003, quando 20 países, li-
derados por Brasil, Índia e África do Sul, reagrupados sob a denominação
G-20 e visando a confrontar a hegemonia dos Estados Unidos e da União
Europeia no comércio e nas relações internacionais, colocaram em situa-
ção difícil a Conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC)
em Cancún, ao condicionarem qualquer acordo à supressão das subvenções
que aqueles dois blocos concediam a seus agricultores.
A partir de 2004, a cooperação brasileira com países em desenvol-
vimento foi significativamente ampliada, pautando-se desde então pelas
seguintes diretrizes: priorizar programas de cooperação técnica que favo-
reçam a intensificação das relações do Brasil com seus parceiros de maior
interesse para a política exterior brasileira; apoiar projetos vinculados so-
bretudo a programas e prioridades nacionais de desenvolvimento dos paí-
ses recipiendários; canalizar os esforços de CGPD para projetos de maior
repercussão e âmbito de influência, com efeito multiplicador mais intenso;
privilegiar projetos com maior alcance de resultados; apoiar, sempre que
possível, projetos com contrapartida nacional e/ou com participação efeti-
va de instituições parceiras e estabelecer parcerias preferencialmente com
instituições genuinamente nacionais (MRE, 2008).
À luz dessas orientações governamentais, a CGPD concentrou suas
ações tomando por base as seguintes prioridades: a) compromissos assu-
midos em viagens do presidente da República e do chanceler; b) países da
América do Sul; c) países da África, em especial os Palop, e Timor-Leste;
d) demais países da América Latina e do Caribe; e) apoio à CPLP; e f ) in-
cremento das iniciativas de cooperação triangular com países desenvolvi-
dos (através das respectivas agências) e organismos internacionais.
Nos últimos anos o Brasil fez do fortalecimento dos laços Sul-Sul
um dos eixos mais importantes de sua política externa. Além de coliderar a
criação do G-20, o país se encontra envolvido com outros blocos políticos
254 Política externa brasileira

do Sul: o Mercosul, desde 1991; o Ibas, que inclui Índia, Brasil e África do
Sul; um novo bloco regional, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul),
integrado por 12 países da América do Sul; e um bloco de base linguística,
a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), constituído por
oito nações, distribuídas em quatro continentes. O G-20, o Ibas, a Unasul
e a CPLP vêm sendo apontados como prioridades da política externa bra-
sileira, caracterizando essencialmente uma abordagem Sul-Sul da coope-
ração internacional do país.
Ainda no campo das alianças políticas do Sul, o Brasil teve partici-
pação decisiva na realização das cúpulas América do Sul-Países Árabes
(Aspa), realizadas em Brasília, em 2005, e em Doha, em 2009, e América
do Sul-África (ASA), realizadas na Nigéria, em 2006, e na Venezuela, em
2009. Bilateralmente, o Brasil e a União Africana estabeleceram um amplo
acordo de cooperação técnica, assinado em 2007 e promulgado em 2009
(ACTB-UA, 2009). A integração nas Américas se expandiu para além do
Mercosul e da Unasul, com as recentes realizações das cúpulas da América
Latina e do Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (Calc), no Brasil,
em 2008, e no México, em 2010.
Outra vertente orientadora da cooperação foram as diversas missões
do presidente da República a países da África, da Ásia e do Oriente Mé-
dio, que acabaram se traduzindo em diversos acordos bilaterais de coopera-
ção, que, por sua natureza, se inscrevem no âmbito da cooperação Sul-Sul
do Brasil. Os principais objetos de tal cooperação estão nas áreas de agri-
cultura, saúde, educação e construção de institucionalidade.

A experiência do Brasil na cooperação Sul-Sul em saúde

O fator determinante para a “diplomacia da saúde” brasileira é o fato de, no


Brasil, a saúde ser constitucionalmente um direito de todos e um dever do
Estado. Isso fornece aos ministérios da Saúde e das Relações Exteriores,
que têm atuado em perfeita sintonia, um marco político de referência extre-
mamente importante. O Brasil mantém ativa participação em organismos
multilaterais da saúde, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a
Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Na OMS, ocupou uma das
34 cadeiras do Comitê Executivo no triênio 2004-2007, sendo reeleito para
o triênio 2008-2011. Por sua crescente importância política e econômica,
Brasil e saúde global 255

muitos temas de saúde, como a questão dos medicamentos, são tratados em


agências como a OMC e a Organização Mundial da Propriedade Intelec-
tual (Ompi), nas quais o Brasil tem defendido claramente a predominância
da saúde sobre o comércio e dos pacientes sobre as patentes.
Outros exemplos importantes dessa presença ativa do Brasil no cam-
po da diplomacia da saúde são: a) a elaboração da Convenção-Marco para
o Controle do Tabaco;10 b) a Declaração de Doha e o Acordo Trips e Saú-
de Pública; e c) a recente constituição do Grupo de Trabalho Intergover-
namental sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual no âm-
bito da OMS (WHO, 2008). Alcazar (2008) analisou as ações recentes do
Brasil no campo da diplomacia da saúde, incluindo os eventos menciona-
dos, classificando-as como um “giro copernicano”, na medida em que a po-
lítica externa, na área de conexão entre comércio e saúde, passou a ser vista
e priorizada pela lente e pelos interesses da saúde e não do comércio.
Dadas as cruciais necessidades sociais e de saúde dos países em de-
senvolvimento, é exatamente no campo da saúde que se encontram alguns
dos principais programas da cooperação Sul-Sul do Brasil. Em reunião de
embaixadores do Brasil na África central e Palop com o presidente da Re-
pública, realizada em Brasília, em fevereiro de 2009, por exemplo, as de-
mandas em saúde foram as mais reportadas pelos diversos postos nos 25
países da região.
A cooperação prestada na área da saúde é diversa, resultado princi-
palmente das chamadas “demandas de balcão”, concentrando-se em doen-
ças como malária e HIV/aids, geralmente respondidas pelas estruturas do
Ministério da Saúde. Só mais recentemente foi levantada a questão da ação
programática na cooperação em saúde e sua organização com base em
diagnóstico compartilhado e respostas organizadas e pactuadas com os
países parceiros.
O sistema de saúde brasileiro tem desenvolvido estratégias bastante efi-
cazes e oportunas para o enfrentamento de situações sociossanitárias como
as encontradas em muitos dos países em desenvolvimento que demandam
apoios na área da saúde. Entre as principais experiências colocadas à disposi-
ção de países parceiros estão os Programas de Saúde da Família, de Imuniza-
ções e de Aids, a Rede de Bancos de Leite Humano e as Redes de Escolas de
Saúde Pública, Escolas Técnicas e Institutos Nacionais de Saúde. Outra área

10
Ver <http://www.who.int/fctc/en/>.
256 Política externa brasileira

muito demandada é a doação de insumos para a saúde, como vacinas, soros,


medicamentos, recursos para diagnóstico e equipamentos, que o Brasil tem
disponibilizado a países mais necessitados, não só em situações de emergên-
cia e desastre, como também em programas regulares de cooperação.
A cooperação brasileira deriva da farta oferta de especialistas de qua-
lidade que possui em quase todas as áreas da saúde, de sua importante ca-
pacidade de formação de recursos humanos e da vigorosa experiência das
instituições componentes do sistema brasileiro de saúde. Com base em
nosso próprio aprendizado como nação na área da saúde, em sua coopera-
ção o Brasil opta por contribuir prioritariamente para a formação de recur-
sos humanos e para o reforço dos sistemas de saúde dos países parceiros.
O reforço aos sistemas de saúde passa pela criação e/ou fortalecimento das
chamadas instituições estruturantes dos sistemas de saúde. Por “institui-
ções estruturantes” entende-se, obviamente, a autoridade sanitária nacional
(o Ministério da Saúde), além dos institutos nacionais de saúde, das esco-
las de formação de técnicos de nível médio, das escolas de saúde pública,
dos institutos clínicos dedicados à atenção médica (casos dos institutos do
Câncer, de Saúde da Mulher e da Criança e outros) e das graduações de
profissionais (médicos, enfermeiros, dentistas etc.).
Todo esse processo vem sendo chamado de “cooperação estruturante”
(Almeida et al., 2009), porque é desenvolvida de forma abrangente e não
como projetos isolados; planejada e executada em conjunto com as autori-
dades sanitárias e segundo as políticas de saúde dos países parceiros; e cen-
trada na formação de recursos humanos e no reforço dos sistemas de saúde
e suas instituições.

A cooperação em saúde no âmbito da CPLP: o Plano


Estratégico de Cooperação em Saúde (Pecs)11

A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) é composta de


oito Estados-membros: Brasil, nas Américas; Portugal, na Europa; Timor-
Leste, na Ásia, e cinco países na África — Angola, Moçambique, Guiné-
Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe —, os Palops (Países Africanos

11
Para mais detalhes sobre o Pecs/CPLP, ver Buss e Ferreira (2010b).
Brasil e saúde global 257

de Língua Oficial Portuguesa). Os países da CPLP têm grandes assime-


trias entre si em termos não só de população, que variava entre 191,8 mi-
lhões no Brasil a 158 mil em São Tomé e Príncipe, como também de renda
per capita, cuja variação ia de US$ 18.950 em Portugal a apenas US$ 200
na Guiné-Bissau e US$ 320 em Moçambique. Em 2005, cerca de 50% das
populações de Angola, Guiné-Bissau e Timor-Leste viviam abaixo da li-
nha internacional de pobreza (US$ 1,25/dia), chegando essa cifra a 75%
em Moçambique (Unicef, 2009).
Também existem grandes variações nos indicadores de saúde e na ex-
pectativa de vida: em 2007, a mortalidade de menores de cinco anos era de
198 por mil em Guiné-Bissau, 168 por mil em Moçambique, 158 por mil
em Angola e de apenas cinco por mil em Portugal; a expectativa de vida
variava de cerca de 78 anos em Portugal e 72 no Brasil a menos de 45 anos
em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Embora tenham ocorrido me-
lhorias nos indicadores de saúde dos Palops e de Timor-Leste desde 1990,
ainda são pequenas se comparadas com as de outros países em condições
sociossanitárias equivalentes (Unicef, 2009).
As condições nutricionais da população também são ruins, quando
se consideram indicadores de desnutrição infantil, baixo peso ao nascer ou
outros, bem como o acesso a serviços básicos de saúde, como vacinações,
cobertura pré-natal ou parto assistido por profissionais de saúde. O aces-
so ao saneamento básico também é altamente deficiente nos Palops e em
Timor-Leste, o que contribui para a manutenção das más condições de
saúde (Unicef, 2009).
Os sistemas de saúde dos Palops e de Timor-Leste são ainda extre-
mamente frágeis, com cobertura precária, número insuficiente de unidades
de serviços, dificuldades de governança, pessoal insuficiente e mal pago e
configuração tecnológica pouco adequada ao perfil epidemiológico. O gas-
to com saúde é mínimo, sequer cobrindo as necessidades básicas primárias.
O apoio técnico e financeiro internacional torna-se, portanto, vital para o
funcionamento dos sistemas de saúde dos Palops e de Timor-Leste.
Essas difíceis condições sociais e econômicas vividas pelos Palops e Ti-
mor-Leste, recém-saídos de conflitos internos graves,12 que, em muitos casos,
destruíram infraestruturas e dificultam a construção de institucionalidades e

12
Em 2010, foram comemorados os 35 anos de independência de todos os Palops, que ocor-
reram imediatamente após a Revolução dos Cravos, em Portugal.
258 Política externa brasileira

governança eficazes, inclusive na área da saúde, levaram os países-membros


da CPLP a identificarem na saúde um campo propício à cooperação solidária
e ao intercâmbio de experiências inovadoras.
A eleição da cooperação Sul-Sul entre os países da CPLP foi uma al-
ternativa natural, facilitada, por um lado, pela questão idiomática (a imensa
maioria dos profissionais de saúde dos Palops, por exemplo, fala exclusi-
vamente português e idiomas nativos) e, por outro, pelas identidades po-
líticas, ideológicas e culturais. Embora com recursos financeiros escassos,
o diferencial na cooperação em saúde na CPLP tem sido a abundância de
recursos humanos qualificados e a oferta de programas de pós-graduação
em áreas críticas da saúde, como saúde pública, planejamento e políticas
de saúde, saúde da mulher e da criança e doenças transmissíveis, em países
como Brasil e Portugal.
O modelo operativo para a cooperação em saúde adotado pelos paí-
ses da CPLP baseia-se no desenvolvimento compartilhado de um Plano
Estratégico de Cooperação em Saúde (Pecs), que leva profundamente em
conta a situação sociossanitária dos países, suas capacidades de resposta aos
principais problemas encontrados e os recursos técnicos e financeiros exis-
tentes, que possam ser solidariamente colocados à disposição dos demais,
num processo de cooperação comprometida com os princípios de apro-
priação, alinhamento e harmonização (CPLP, 2009).
A cooperação abrange sete eixos temáticos para a definição tanto de
projetos prioritários quanto de metas a serem atingidas (CPLP, 2009): i)
formação e desenvolvimento da força de trabalho em saúde; ii) informação
e comunicação em saúde; iii) investigação em saúde; iv) desenvolvimento
do complexo produtivo da saúde; v) vigilância epidemiológica e monitori-
zação da situação da saúde; vi) emergências e desastres naturais; e vii) pro-
moção e proteção à saúde. O plano encontra-se em plena execução, com a
instalação de redes de instituições estruturantes e uma série de iniciativas,
descritas com mais detalhes em Buss e Ferreira (2010b).

Diplomacia da saúde e cooperação Sul-Sul


na América do Sul: Unasul Saúde

Organizados anteriormente em dois principais blocos regionais — Merco-


sul e Comunidade Andina —, os 12 países da América do Sul agrupam-se
agora na União de Nações Sul-Americanas (Unasul), criada formalmente
Brasil e saúde global 259

em maio de 2008, em Brasília, num momento de reafirmação democráti-


ca e de emergência de governos populares na maioria dos países da região.
Alguns analistas consideram que esse bloco político regional representa o
primeiro contrapeso genuíno ao poder político dos Estados Unidos no he-
misfério. A emergência da Unasul no alvorecer do século XXI não é um
evento fortuito; pelo contrário, sua criação foi precedida de diversas inicia-
tivas, incluindo a Alalc/Aladi, o Pacto Andino (mais tarde Comunidade
Andina de Nações), o Mercosul e a Organização do Tratado de Coopera-
ção Amazônica (Otca), entre outras. O processo de integração na Améri-
ca do Sul não tem sido destituído, absolutamente, de conflitos internos aos
países ou entre as nações participantes (Buss e Ferreira, 2010b).
A primeira reunião de chefes de Estado e de governo no Brasil, reali-
zada na Costa do Sauípe (BA), em dezembro de 2008, culminou com diver-
sas declarações políticas e com a constituição do Conselho Sul-Americano
de Defesa e do Conselho Sul-Americano de Saúde, demonstrando, com
este último, a prioridade do tema e da agenda da saúde para os líderes políti-
cos da América do Sul. O Conselho de Ministros aprovou, em sua primeira
reunião, a Agenda Sul-Americana de Saúde, que, desenvolvida por grupos
técnicos compostos de funcionários de alto nível dos países, contempla os
seguintes grandes temas:13
• elaboração da política sul-americana de vigilância e controle de even-
tos em saúde, antes “escudo epidemiológico sul-americano”;
• desenvolvimento de sistemas universais de saúde;
• promoção do acesso universal a medicamentos e outros insumos para
a saúde e desenvolvimento do complexo produtivo da saúde na Amé-
rica do Sul;
• promoção da saúde e enfrentamento conjunto de seus determinan-
tes sociais;
• capacitação de recursos humanos em saúde.
A realidade sociossanitária da América do Sul justifica tal agenda. Os
países apresentam indicadores econômicos e de saúde bastante díspares,

13
Para mais detalhes sobre a reunião na Bahia, consultar <http://www.unasur.org>; e para
questões de saúde, ver <http://www.unasur-health.org>.
260 Política externa brasileira

sendo a Bolívia e a Guiana os que têm as taxas mais elevadas de mortali-


dade de menores de cinco anos. A expectativa de vida ao nascer também
apresenta variações expressivas, sendo de 64-68 anos na Bolívia, 76 a 82
anos no Chile e de 73 a 80 anos no Uruguai. As variações de população e
produto interno bruto per capita também são expressivas: Brasil e Argenti-
na reúnem cerca de 60% da população, variando a renda de US$ 2.580 na
Guiana a mais de US$ 12 mil na Argentina, no Chile e na Venezuela.
As doenças crônicas não transmissíveis predominam nos países da
América do Sul, mas ainda persistem doenças transmissíveis, como a
malária na Região Amazônica, a dengue e a tuberculose, que ainda re-
presentam problemas importantes, e bolsões de doença de Chagas e leish-
maniose. As doenças controláveis por imunização têm recebido grande
atenção dos ministérios da Saúde e apresentam taxas aceitáveis. Os sis-
temas de saúde ainda são precários, com estrutura e recursos humanos e
tecnológicos inadequados para enfrentar a dupla carga de enfermidade
existente e seus fatores de risco.
Os principais componentes da agenda incluem, entre outros, a
constituição de uma rede sul-americana para a vigilância e o controle de
eventos em saúde; a formação de recursos humanos de diversos níveis; a
constituição de redes de instituições estruturantes dos sistemas de saú-
de; o Programa de Bolsas Unasul Saúde; a constituição do Instituto Sul-
Americano de Governo em Saúde (Isags); o fortalecimento dos minis-
térios da Saúde a fim de que os sistemas permitam o acesso universal a
serviços de saúde; e o fortalecimento do complexo produtivo da saúde na
América do Sul. O Plano Quinquenal de Saúde 2010-2015 da Unasul
foi aprovado pelo Conselho de Ministros em Cuenca, Equador, no mês
de abril de 2010 e se encontra em pleno desenvolvimento, culminando
com a inauguração do Isags em julho de 2011, no Rio de Janeiro (Buss e
Ferreira, 2010b).
Esse grande arranjo intergovernamental chamado Unasul Saúde é um
extraordinário exemplo de “cooperação Sul-Sul” (Ferreira e Buss, 2010b) e
de “diplomacia da saúde” (Kickbusch et al., 2007; Buss, 2008) que os paí-
ses da América do Sul e seus ministérios das Relações Exteriores e da Saú-
de estão desenvolvendo, associando a orientação técnica em saúde com o
apoio do setor de relações exteriores, para abordar situações que transcen-
dem as fronteiras nacionais e expõem os países a influências globais.
Brasil e saúde global 261

Reflexões finais

Na condição de partícipes ativos do processo de cooperação internacional


em saúde como dimensão dinâmica da política externa brasileira, enten-
demos que os ministérios da Saúde e das Relações Exteriores, apoiados
em importantes instituições públicas nacionais, como a Fundação Oswal-
do Cruz e diversas universidades, vêm realizando um trabalho de elevado
grau de coerência, que se baseia em políticas e práticas identificadas com
a cooperação Sul-Sul e, pelo caráter compartilhado entre os dois setores,
com a diplomacia da saúde.
Tal trabalho, baseado explicitamente nos valores de solidariedade, ami-
zade e complementaridade, concentra-se no compromisso com o desenvol-
vimento e a sustentabilidade dos parceiros. Para tanto, prioriza a chamada
“cooperação estruturante em saúde”, que visa à colaboração na criação e/ou
no fortalecimento e na sustentabilidade das instituições estruturantes dos
sistemas de saúde, como são chamados os próprios ministérios da Saúde
(autoridade sanitária nacional) e os institutos e escolas nacionais de saúde
pública, escolas técnicas de saúde e institutos de atenção à saúde e pesquisa
clínica, além das graduações nas profissões da saúde.
São atendidos prioritariamente os países integrantes da Unasul Saúde
e os Palops (países lusofônicos da África), embora não sejam desconside-
radas as demandas de outros países em desenvolvimento. As ações com os
países prioritários são desenvolvidas na esfera bilateral, mas há também o
trabalho conjunto nas organizações regionais multilaterais, casos da Una-
sul e da CPLP.
Para completar estas reflexões finais, é importante apontar também o
que falta à cooperação internacional em saúde do Brasil. Cabe aperfeiçoar
a coordenação das várias agências e atores que participam da cooperação
brasileira setorial, que ainda trabalham de forma dispersa e descoordenada,
não sendo incomum encontrar diversas missões atuando simultaneamente
no mesmo país sem que uma conheça o que a outra faz. Esse papel cabe-
ria tanto ao Ministério da Saúde e ao Ministério das Relações Exterio-
res quanto às nossas embaixadas. Por outro lado, a saúde deve ser cada vez
mais entendida como parte integrante da cooperação para o desenvolvi-
mento. Não se alcança a saúde — produto eminentemente social e coletivo,
além de biológico e individual — sem que sejam devidamente enfrentados
seus determinantes sociais, o que só é possível com ações intersetoriais, que
262 Política externa brasileira

devem ser propiciadas aos países pela cooperação brasileira, e também ar-
ticuladas internamente.
Finalmente, nossa experiência mostra quão é difícil para a cooperação
internacional a ausência de uma legislação brasileira a respeito. A regula-
ção da cooperação brasileira é tarefa urgente, para que o país possa, com
mais competência, cumprir o destino que lhe cabe como nação emergente
na cooperação Sul-Sul e na diplomacia da saúde.

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PARTE V

Paradiplomacia
9.
A dimensão subnacional da política externa
brasileira: determinantes, conteúdos
e perspectivas

Mónica Salomón

O desenvolvimento de uma ação externa institucionalizada por parte de


governos subnacionais, atividade em geral denominada “paradiplomacia”
(Soldatos, 1990), surgiu primeiramente nos Estados industrializados do
Norte para se expandir depois pelo restante do mundo (Cornago, 2000;
Michelmann, 2009). Na América Latina, os processos de redemocratiza-
ção e descentralização dos anos 1980 criaram um contexto favorável a ati-
vidades mais ou menos estruturadas no exterior por governos não centrais.
Nessa década surgiram as primeiras estruturas burocráticas de gestão das
relações internacionais em governos estaduais brasileiros. Hoje, boa par-
te deles e umas 30 prefeituras de cidades grandes ou médias levam a cabo
uma ação externa estruturada suscetível de ser encaixada nas amplas cate-
gorias da paradiplomacia.
O objetivo deste capítulo é identificar as características específicas da
paradiplomacia brasileira; e o da pesquisa que lhe serviu de base era iden-
tificar essas características, seus principais fatores determinantes e também
avaliar em que medida tais características corresponderiam a uma “para-
diplomacia do Sul”. Tentei responder a essas perguntas apresentando, ao
mesmo tempo, uma visão panorâmica da política externa subnacional bra-
sileira e suas relações com a política externa do governo federal. Como
marco analítico foi utilizada a perspectiva proporcionada pela análise da
política externa, em linha com os interesses e preocupações da disciplina
“Relações Internacionais”.
Na primeira parte do capítulo são feitos alguns esclarecimentos con-
ceituais sobre os governos subnacionais como atores internacionais e a natu-
270 Política externa brasileira

reza da paradiplomacia. Na segunda, apresento as atividades paradiplomá-


ticas dos governos subnacionais brasileiros em suas diferentes dimensões,
procurando identificar seus principais determinantes. Foram considerados
três contextos ou níveis de análise relevantes: o das próprias unidades, o de
sua interação com a política externa brasileira e o de sua interação com o
processo de integração regional do Mercosul.

Paradiplomacia como política externa:


esclarecimentos conceituais

A perspectiva ordenadora ou lente analítica da Análise de Política Externa


(foreign policy analysis) foi aqui adotada para proceder ao exame sistemáti-
co das principais questões levantadas pelo estudo da ação internacional dos
governos subnacionais brasileiros. Como a Análise de Política Externa é
uma subdisciplina das Relações Internacionais que se ocupa do estudo dos
determinantes, dos processos de tomada de decisões e da implementação
da política externa1 e está essencialmente focada no ator ou agente, parece
uma perspectiva analítica adequada para o objetivo deste capítulo.
Outro esclarecimento se faz necessário. Este capítulo não trata da am-
pla temática dos efeitos da globalização — fundamentalmente em sua di-
mensão econômica — nas cidades e regiões, uma temática muito rica e
muito ampla abordada sobretudo pela geografia política e a sociologia ur-
bana (Sassen, 1991 e 2002; Scott, 2001; Knox e Taylor, 1995). Certamen-
te, o desenvolvimento da paradiplomacia no mundo nas últimas décadas é
uma das múltiplas reações às mudanças sistêmicas que o conceito de globa-
lização sugere. Mas o tema do capítulo é muito mais específico: consiste em
explorar o comportamento dos agentes (governos subnacionais), tomando
como pressuposto o novo contexto globalizado em que estão inseridos.

Os governos subnacionais como atores de política externa


Embora, na literatura sobre “cidades e globalização”, as cidades (regiões ou
outras entidades subnacionais) sejam tratadas com frequência como au-
tênticos agentes (“a cidade/região tal faz tal ou qual coisa…”), isso não é

1
Ver Carlsnaes (2002); Neack, Hey e Haney (1995); Hill (2003); Hudson (2005).
A dimensão subnacional da política externa brasileira 271

adequado pela perspectiva da análise da política externa, preocupada preci-


samente com a identificação da agência e das unidades de tomada de decisão
(Rosenau, 1961; Hermann, 2001; Hill, 2003). É evidente que as “cidades”
como tais não planejam nem implementam políticas. Assim, no campo da
paradiplomacia, o verdadeiro objeto de estudo e unidade de análise, a partir
da perspectiva da análise da política externa, é o governo subnacional (muni-
cipal, estadual etc.) e não a cidade ou outros atores nela situados, como uni-
versidades ou empresas, por mais que desenvolvam também suas próprias
“relações internacionais”. O governo subnacional é o agente da política ex-
terna da cidade ou região. De fato, ele é o único agente que pode atuar legi-
timamente em nome da cidade ou da região como um todo. Evidentemente,
quando desenha e implementa suas políticas, o governo subnacional leva em
consideração e é influenciado pelas demandas e necessidades dos outros ato-
res que fazem parte da sociedade civil, como movimentos de cidadãos ou de
empresas. Da perspectiva da análise da política externa, essas influências e
interações são consideradas inputs de política externa.
A adoção da perspectiva da análise da política externa serve tam-
bém para evitar o erro comum de considerar que os governos subnacionais,
quando se analisa sua atividade externa, podem se identificar com a am-
pla categoria de “atores não estatais” (Breslin e Hook, 2002; Pluijm, 2007).
Restam poucas dúvidas de que os governos subnacionais fazem parte do
aparato estatal, embora seu comportamento internacional possa apresentar
semelhanças com o de movimentos sociais, ONGs, grupos de interesse e
outros atores não estatais. Tal como eles, quando os governos subnacionais
atuam internacionalmente tentam atingir suas metas usando muitas vezes
políticas muito sofisticadas de construção de coalizões (com outros gover-
nos subnacionais, com governos centrais, ONGS, burocracias de agências
internacionais etc.) e frequentemente compensam a falta de legitimidade
constitucional de suas atividades internacionais com outros tipos de legi-
timidade, como a baseada na competência técnica que possuem em ques-
tões urbanas, algo também típico de atores não estatais. Mas, certamente,
os governos subnacionais compartilham com os governos centrais a res-
ponsabilidade pela população de um território definido e também, como
esses, contam com recursos e prerrogativas governamentais, desde estru-
turas administrativas que podem ser usadas para fins de política externa a
recursos financeiros públicos, acesso a outros órgãos governamentais (in-
cluindo aqueles responsáveis pela política externa nacional) e por vezes
272 Política externa brasileira

também a estruturas diplomáticas nacionais (Paquin, 2004a). Ademais,


como representantes democráticos das populações que governam, os go-
vernos subnacionais possuem uma legitimidade política que lhes permite
atuar internacionalmente em nome dessa população, além de exercerem
seus papéis constitucionalmente definidos.
Acadêmicos da área de Relações Internacionais, como Hocking
(1997) e Paquin (2004a), têm insistido na condição de “atores mistos” dos
governos subnacionais como agentes de relações internacionais, em parte
“limitados pela soberania” em suas responsabilidades estatais, em parte “li-
vres de soberania” (Rosenau, 1990:36), dispondo de bem mais liberdade de
escolha entre os temas da agenda internacional do que os governos centrais
e, ao mesmo tempo, de instrumentos de política externa, competências e
legitimidade comparáveis.
Minha própria contribuição a essa discussão (Salomón e Nunes, 2007)
é a ideia de que, em termos gerais, os governos municipais e os governos in-
termediários (regionais, estaduais, provinciais etc.) são dois tipos diferentes
de atores mistos. Ambos combinam características de atores livres de sobe-
rania e limitados pela soberania, mas em proporções diferentes. Os gover-
nos municipais são mais livres de soberania do que condicionados por ela,
acontecendo o contrário com os governos estaduais. Se os diferentes atores
de política externa são vistos como organizados num continuum, com os go-
vernos centrais em um extremo (completamente condicionados pela sobe-
rania) e os atores não estatais no outro extremo (completamente livres de
soberania), então os governos subnacionais estariam no meio, com os go-
vernos regionais mais próximos dos governos centrais e os municipais mais
próximos dos atores não estatais. As semelhanças do movimento mundial
de governos locais e outros movimentos sociais internacionais, a maior fa-
cilidade (em comparação com os governos intermediários) com que podem
criar redes transnacionais políticas e técnicas entre eles e com outros atores,
assim como o maior grau de politização das ações das administrações mu-
nicipais no exterior são elementos a favor do argumento de que os governos
municipais estão menos condicionados pelas responsabilidades da sobera-
nia do que os intermediários.
Um último ponto que quero levantar sobre essa questão da agên-
cia tem a ver com a categorização, como atores internacionais, das redes
transnacionais dos governos subnacionais ou das mais estáveis organiza-
ções dos governos locais (Borja e Castells, 1997). Em que medida é esse
A dimensão subnacional da política externa brasileira 273

ator coletivo um ator estatal ou não estatal? No sistema das Nações Unidas,
as organizações internacionais de governos locais costumam ser tratadas
como outros atores não estatais, à semelhança das ONGs (estão acredita-
das como ONGs no Conselho Econômico e Social). Visto que são forma-
das por governos eleitos, as associações internacionais de governos locais
reivindicam um status diferente. O reconhecimento desse status diferente
é precisamente um dos objetivos principais de Cidades e Governos Locais
Unidos (CGLU), uma organização mundial de governos locais estabeleci-
da em 2004 (UCLG, 2004, art. 3o c). Até que ponto essas demandas se jus-
tificam? É possível transferir a legitimidade individual das unidades para
o grupo? Acredito que para responder a essa pergunta é preciso examinar
a representatividade de cada uma dessas organizações, o processo de esco-
lha dos líderes etc. Mas, a princípio, parece-me que a maioria dos agrupa-
mentos de governos subnacionais (com exceção daquelas instituições que
fazem parte de esquemas de integração regional mais amplos, como o Co-
mitê das Regiões na União Europeia ou o Fórum Consultivo das Cidades
e Regiões do Mercosul) deveria ser considerada atores não estatais, embora
tenham acesso mais fácil aos canais e recursos estatais.

A paradiplomacia como política externa subnacional:


conceito, dimensões e determinantes
O termo “paradiplomacia”, cunhado pelos acadêmicos canadenses Panayo-
tis Soldatos (1990) e Ivo Duchacek (1990), vem ganhando aceitação nestas
últimas décadas, embora seja muito mais usado pela academia2 do que pe-
los responsáveis pela política externa subnacional. Trata-se, sem dúvida, de
um termo útil para definir uma nova área de atividade. Também, de modo
bastante conveniente, evita o uso controverso da expressão “política exter-
na” quando aplicada a qualquer outro ator que não os governos centrais.
Contudo, o termo não é totalmente satisfatório. Primeiro, porque
reflete o hábito frequente (especialmente na América do Norte), porém
errôneo, de se usar indistintamente o termo “diplomacia” e a expressão
“política externa”. De fato, a diplomacia é apenas uma dimensão da polí-
tica externa, a dimensão da implementação (Berridge, 2002). Segundo, o
prefixo “para” referido a diplomacia “paralela” tem uma conotação de su-
bordinação e inferioridade em relação à política externa nacional que não

2
Ver Aldecoa e Keating (1999); Paquin (2004a); Lecours (2002); Velázquez Flores (2006).
274 Política externa brasileira

capta muitos aspectos da atividade externa dos governos subnacionais. Se-


gundo Hocking (1997:21), os termos “paradiplomacia” ou “protodiploma-
cia” (paradiplomacia vinculada ao objetivo de obter independência como
Estado) “sugerem um conjunto de atividades de ordem secundária, fracas
imitações da diplomacia ‘real’, e contribuem para disfarçar o caráter dis-
tintivo do que está sendo examinado”. Terceiro, enquanto as conotações
do termo paradiplomacia tendem a reduzir de maneira inadequada o al-
cance do fenômeno, a definição corrente mais ampla do termo (Cornago,
2000:2) é, a meu ver, ampla demais. Segundo ela, a paradiplomacia

pode ser definida como o envolvimento dos governos subnacionais nas re-
lações internacionais, através do estabelecimento de contatos formais e in-
formais, permanentes ou ad hoc, com públicos estrangeiros ou com entidades
privadas, com o objetivo de promover questões socioeconômicas ou políti-
cas, assim como qualquer outra dimensão externa de suas próprias compe-
tências constitucionais.

Com efeito, segundo essa ampla definição, paradiplomacia refere-se


a qualquer ação internacional desenvolvida por um governo subnacional.
Não há distinção entre comportamentos meramente reativos ou ad hoc,
sem objetivos definidos e não incluídos em qualquer estratégia externa co-
mum a todas as subunidades governamentais, e políticas externas mais es-
truturadas, que fazem parte de uma atividade planificada ( Jones, 1970:11).
Em outras palavras, não se leva em conta a distinção entre política externa
(plano) e ação externa (mera prática) (White, 1999). Mesmo aceitando o
termo “paradiplomacia” como um eufemismo conveniente, não se deve es-
quecer que este denota a política externa subnacional.
Por último, existe também outro importante aspecto que a definição
de paradiplomacia não leva em consideração: seu caráter institucional. A
paradiplomacia é cada vez mais um conjunto de práticas orientado por re-
gras consensuais. Os governos subnacionais que desenvolvem proposita-
damente uma atividade internacional estruturada o fazem cada vez mais
sob a influência de um contexto internacional de normas, regras e práti-
cas que definem o conteúdo e os limites da paradiplomacia. Existe, sem
dúvida, um processo de socialização internacional pelo qual os governos
subnacionais, juntamente com algumas organizações internacionais —
Programa Hábitat, Banco Mundial —, redes transnacionais de governos
A dimensão subnacional da política externa brasileira 275

subnacionais e acadêmicos, estão construindo uma nova instituição inter-


nacional. Apesar de ser menos desenvolvida que a diplomacia — uma ins-
tituição internacional em sentido pleno —, já há certo consenso sobre os
conteúdos e práticas da paradiplomacia (Melissen, 1999). Nesse sentido,
sim, justifica-se identificar com uma denominação exclusiva essa institui-
ção em formação.
A cooperação transnacional — seja técnica ou política, bilateral ou
multilateral — com outros governos subnacionais e a promoção comercial
e econômica no exterior são as atividades mais frequentemente conside-
radas os principais componentes da paradiplomacia. Outras práticas são
mais específicas às paradiplomacias de certas categorias de Estados, como
ações com o objetivo de obter financiamento de agências públicas interna-
cionais (Banco Mundial, FMI etc.). Nos países em desenvolvimento que
estão construindo suas próprias versões de paradiplomacia, como a Índia
(Sridharan, 2003), o Brasil (Salomón e Nunes, 2007) e a Argentina (Igle-
sias, 2008), a procura de recursos internacionais através da apresentação de
propostas para o financiamento internacional de infraestruturas locais ou
de projetos de utilidade social é considerada um componente fundamental
da paradiplomacia. Por isso, parte considerável da burocracia paradiplomá-
tica (a que atua nos escritórios municipais ou regionais de relações inter-
nacionais) nesses países tem como função buscar fontes de financiamento
e negociar empréstimos internacionais com doadores potenciais. Os países
avançados industrializados, onde a paradiplomacia nasceu (Canadá, Esta-
dos Unidos, Bélgica), são doadores de ajuda, não receptores, e as atividades
de captação de recursos, quando existem, não são consideradas um compo-
nente da paradiplomacia. Do mesmo modo, a chamada “diplomacia da ci-
dade” (city diplomacy), que consiste em atividades de mediação de conflitos
ou de reconstrução pós-conflito,3 é uma área paradiplomática de impor-
tância crescente, mas restrita àqueles governos locais (municipais) capa-
zes de trabalhar em conjunto com grupos de cidadãos muito ativos, como
acontece em várias cidades dos Países Baixos. Isso não parece fazer parte
do conteúdo das “paradiplomacias do Sul”.
As diferenças de conteúdo atribuídas à instituição paradiplomática
devem-se a variações nas motivações e influências que levam os gover-
nos subnacionais a desenvolver atividades paradiplomáticas ou, no jargão

3
Ver Sizoo et al. (2008). Esse é o significado restrito do termo. Usa-se por vezes também “city di-
plomacy” como sinônimo de paradiplomacia de cidades, como, por exemplo, em Pluijm (2007).
276 Política externa brasileira

da política externa, ao diferente peso dos determinantes da política exter-


na. O nacionalismo é, sem dúvida, um dos principais incentivos para o de-
senvolvimento, pelos governos subnacionais individuais, de uma atividade
paradiplomática importante (Lecours, 2002). Os governos de entidades
regionais como Quebec, Flandres ou Catalunha tendem a considerar a pa-
radiplomacia um meio de afirmação de sua identidade (Paquin, 2004b).
Em consequência, sua política externa (expressão geralmente utilizada pe-
los responsáveis por sua formulação e implementação) reproduz as estrutu-
ras diplomáticas do Estado central (com ministérios, embaixadas, visitas de
Estado e todos os símbolos e parafernália da diplomacia tradicional), em-
pregando também estratégias bem conscientes de construção de imagem
(diplomacia pública) (Huijgh, 2009). Embora poucos em número, desem-
penham papel vital no desenvolvimento da paradiplomacia. Isto porque,
como possuem estruturas e instrumentos paradiplomáticos mais desenvol-
vidos, são frequentemente tomados como modelos pelos governos subna-
cionais, que, em qualquer parte do mundo, anseiem em desenvolver suas
próprias atividades coordenadas e organizadas no exterior. Já os governos
subnacionais que não têm pretensões separatistas ou autonomistas, mas
imitam as práticas dos que as têm, não estão interessados em desenvolver
ou estabelecer uma identidade por aspirarem à independência e à formação
de um novo Estado. Simplesmente acreditam que as práticas instituciona-
lizadas da paradiplomacia trazem benefícios para as comunidades sob sua
responsabilidade (ou para seu próprio prestígio político), ou ainda satisfa-
zem a certas demandas, necessidades ou interesses de grupos da sociedade
civil ou do empresariado local.
Nos casos em que um governo local é muito ativo nas áreas de polí-
tica externa geralmente consideradas domínio exclusivo do governo cen-
tral, em geral existe um movimento de cidadãos bem-organizado que opta
por atuar através de canais oficiais para atrair a atenção e dar legitimi-
dade a sua mensagem. Nesses casos, pode-se dizer que um determinante
importante da política externa subnacional é o ativismo de movimentos
sociais bem-organizados. Isso acontece com o movimento da “política ex-
terna municipal” nos Estados Unidos, que tem sido fonte de muitas decla-
rações políticas e ações de prefeituras em áreas da política externa oficial
norte-americana (Kirby, Marston e Seasholes, 1995). Destarte, decisões de
prefeituras declarando uma cidade área livre de armas nucleares, a imposi-
ção de sanções comerciais a governos estrangeiros pouco respeitosos com
A dimensão subnacional da política externa brasileira 277

os direitos humanos, ou a concessão de refúgio a estrangeiros considera-


dos em situação irregular pelo governo dos Estados Unidos são exemplos
de atividades originariamente propostas por movimentos de base atuantes
nas cidades das quais partiram essas iniciativas (Dorsey, 1993). O mesmo
se aplica ao envolvimento de governos municipais na resolução de confli-
tos no exterior (city diplomacy) e a muitas outras iniciativas de cooperação
entre cidades. Quando esses movimentos locais não existem ou não cana-
lizam suas iniciativas através do governo municipal, esses temas não fazem
parte da paradiplomacia de um dado governo municipal.
Em geral, porém, os principais fatores que explicam o envolvimen-
to direto de governos subnacionais em política externa são as competên-
cias que um governo subnacional possui no marco político nacional, sejam
ou não garantidas pela Constituição nacional. O fato de os governos sub-
nacionais terem responsabilidades cada vez mais importantes no campo
do desenvolvimento a partir dos processos de descentralização tem levado
muitos governos subnacionais a desenvolverem suas próprias políticas eco-
nômicas, que incluem a atração de investimentos e a promoção comercial
de suas empresas no exterior. Também os tem levado a desenvolver uma
agenda de cooperação política e técnica em áreas de sua responsabilida-
de — como meio ambiente, gestão urbana ou educação —, juntamente
com outros atores internacionais, e a buscar recursos de agências inter-
nacionais de desenvolvimento ou de projetos sociais.4 Aliás, dado que a
internacionalização de competências internas representa o principal me-
canismo de geração da agenda diplomática, na maioria dos casos os go-
vernos subnacionais percebem a paradiplomacia como uma maneira de
satisfazer a suas próprias necessidades imediatas, e não como uma manei-
ra de influenciar a política global.

Política externa subnacional no Brasil

Atualmente, muitos dos 27 governos estaduais brasileiros e as prefeitu-


ras de cerca de 30 cidades grandes ou médias possuem algum tipo de es-
trutura de coordenação ou assessoria na área de relações internacionais

4
Isso fica bem claro nas doutrinas elaboradas para justificar as atividades externas de regiões
semiautônomas como Flandres — doutrina in foro interno, in foro externo — (Criekemans,
2007) ou Quebec — doutrina Gerin-Lajoie (Paquin, 2004a).
278 Política externa brasileira

(Brigagão, 2005; Ribeiro, 2008). Outras 20 cidades desenvolvem regu-


larmente atividades internacionais de certa envergadura, apesar de não
disporem de estruturas administrativas específicas para esse fim.
Os estados do Rio de Janeiro (1983) e do Rio Grande do Sul (1987)
foram os primeiros a criar escritórios de relações internacionais em suas
estruturas governamentais e a formular estratégias externas definidas. A
Prefeitura do Rio de Janeiro (1987) foi o primeiro governo municipal a
fazer isso. Porém, é importante destacar que a maioria das atividades hoje
consideradas paradiplomáticas, como a promoção comercial ou a coopera-
ção cidade-cidade através de acordos de irmanamento, vinham sendo de-
senvolvidas há décadas, embora de maneira dispersa e não coordenada, por
diferentes departamentos ou secretarias dos governos subnacionais, sem
nunca ter sido integradas em uma estratégia mais ampla do próprio gover-
no subnacional.
Embora o estabelecimento das primeiras estruturas institucionais de-
dicadas às relações internacionais tenha ocorrido antes da promulgação da
Constituição de 1988, esta foi importante para promover as atividades in-
ternacionais dos governos subnacionais brasileiros, ao criar um sistema fe-
deral de três níveis, no qual o governo central, os estados e os municípios
são considerados entidades federadas. Apesar de as relações internacionais
do Brasil serem, constitucionalmente, responsabilidade exclusiva do Poder
Executivo Federal, as competências e obrigações alocadas às unidades fe-
deradas com respeito ao desenvolvimento local deram certa legitimidade
aos governos subnacionais para buscarem recursos no exterior e até firma-
rem acordos de cooperação com governos subnacionais.
Nos 15 anos que se seguiram à aprovação da Constituição de 1988,
o número de estados e municípios com estruturas (assessorias, coordena-
dorias etc.) de relações internacionais aumentou, mesmo que a um ritmo
de crescimento bastante lento e de forma desigual, estando a maior parte
dos governos subnacionais com algum tipo de estrutura institucional de
relações internacionais concentrado ao longo do eixo Sul-Sudeste (Sarai-
va, 2004). Porém, em 2003, coincidindo com a chegada do Partido dos
Trabalhadores (PT) ao governo federal, teve lugar um autêntico boom de
criação de novas estruturas paradiplomáticas. Muitas das novas estruturas
estão localizadas em estados e cidades do Norte e do Nordeste, o que que-
bra a pauta tradicional.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 279

Apesar de os governos estaduais, a começar pelos do Rio de Janeiro


e do Rio Grande do Sul, terem antecedido os municipais na criação de
estruturas institucionais de relações internacionais, no Brasil a paradi-
plomacia municipal cresceu mais depressa do que a estadual. Também é
detectável uma maior consciência, por parte das autoridades municipais
de relações internacionais, da existência das relações internacionais ou
da paradiplomacia como campo específico e como instituição com cer-
tas práticas consensuais. Isso, a meu ver, fundamentalmente por duas ra-
zões. Uma foi a influência do movimento internacional de cidades, em
efervescência desde inícios da década de 1990 e com atividade especial-
mente intensa entre 1996 (celebração, em Istambul, da Conferência das
Nações Unidas Hábitat II, também conhecida como Cimeira das Cida-
des) e 2004 (criação da organização mundial Cidades e Governos Lo-
cais Unidos [CGLU], a partir da unificação da United Cities and Local
Governments [Iula] e da Fédération Mondiale de Cités Unies-United
Towns Organization [FMU-UTO] (Salomón e Sanchez, 2008). Dele-
gações de várias prefeituras brasileiras compareceram à Hábitat II e à
Assembleia das Cidades, evento paralelo à conferência, e, a partir de en-
tão, ficaram envolvidas nas negociações para a fusão da Iula e da UTO,
assim como nas iniciativas que visavam a uma maior participação dos go-
vernos locais no sistema da ONU, especialmente no programa Hábitat
(Borja e Castells, 1997; Salomón e Sanchez, 2008). Os prefeitos mais
ativos no movimento internacional de cidades — Tarso Genro, de Por-
to Alegre; Marta Suplicy, de São Paulo; e posteriormente Elói Pietá, de
Guarulhos — têm sido todos petistas. Isso não é por acaso. O envolvi-
mento dos prefeitos petistas no movimento internacional das cidades ex-
plica-se, por um lado, pela preponderância dos líderes de esquerda nesse
movimento e, por conseguinte, pela sintonia política entre este e o PT.
Por outro, a cooperação internacional entre cidades e governos locais e
a difusão de boas práticas urbanas se encaixavam bem com os modelos
inovadores de governo que o PT procurava implantar nas cidades sob seu
controle, como laboratório (e ao mesmo tempo plataforma política) pré-
vio ao acesso ao governo federal. Pode-se, portanto, identificar a chegada
do PT aos governos municipais de várias cidades brasileiras como o se-
gundo fator determinante do desenvolvimento da paradiplomacia brasi-
leira nos últimos anos.
280 Política externa brasileira

Panorâmica dos governos subnacionais atuantes


em relações internacionais
Elaborar uma lista dos governos municipais e estaduais mais ativos no cam-
po da paradiplomacia é uma tarefa difícil, principalmente pela falta de con-
tinuidade das atividades externas de estados e municípios. Vigevani (2004)
chama de “lógica do stop and go” essa alternância de períodos nos quais um
determinado governo subnacional desenvolve estratégias discerníveis de
política externa, normalmente com o apoio de uma estrutura internacional,
e períodos em que essas estratégias e estruturas desaparecem. Ao contrário
do que acontece com a política externa/diplomacia dos governos centrais,
como não existe a obrigação ou o costume bem consolidado nos governos
subnacionais de contar com essas estratégias e estruturas, a cada eleição es-
tas podem mudar de orientação, desaparecer ou aparecer novamente. Por
diferentes razões, os casos que destaco em seguida merecem atenção.
Como já disse, os governos estaduais do Rio de Janeiro e do Rio
Grande do Sul foram os primeiros a estabelecer estruturas institucionais
para a gestão das relações internacionais, em 1983 e 1987, respectivamente.
No caso do Rio de Janeiro, o governador Brizola procurava, fundamental-
mente, suporte e legitimidade política a partir do exterior, em face de seu
enfrentamento com o regime ditatorial ainda vigente. No Rio Grande do
Sul, a Secretaria Especial de Assuntos Internacionais (Seai), criada pelo
governador Pedro Simon, pretendia coordenar todas as atividades interna-
cionais do governo: as de cooperação, os negócios internacionais e as re-
lacionadas com o incipiente processo de integração regional. As duas es-
truturas sofreram grandes mudanças e passaram por períodos de menor e
maior atividade, mas ambas se mantêm na atualidade. A Subsecretaria de
Relações Internacionais do Estado do Rio de Janeiro supervisiona e parti-
cipa com eficácia de atividades de cooperação, captação de investimentos
e promoção econômica de todo o aparato do governo estadual, com uma
equipe enxuta mas muito eficaz. No Rio Grande do Sul, a Seai foi fundi-
da, em 1994, com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Social,
dando origem à Secretaria de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais
(Sedai), que continua existindo, mas com funções, por um lado, bem mais
amplas que as de uma estrutura paradiplomática, e, por outro, sem exercer
controle sobre algumas das atividades internacionais do governo. A capta-
ção de recursos de agências internacionais, por exemplo, é da responsabi-
lidade de uma secretaria específica e independente.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 281

O governo do Paraná, sem dispor de uma estrutura específica de re-


lações internacionais, desenvolve há alguns anos uma atividade interna-
cional significativa, com o apoio do Escritório do Ministério das Rela-
ções Exteriores no Paraná (Erepar) e a notável atuação do seu responsável,
o embaixador Sérgio Coury. Entre outras iniciativas, o governo do Para-
ná, assessorado pelo Erepar, importou a iniciativa europeia de cooperação
transregional dos “Quatro Motores da Europa”5 e estabeleceu, juntamen-
te com os estados brasileiros parceiros do Codesul — Santa Catarina, Rio
Grande do Sul e Mato Grosso do Sul —, com a província argentina de
Córdoba, com o departamento paraguaio de Alto Paraná e com o departa-
mento uruguaio de Rivera, os “Quatro Motores do Mercosul”.6
No Pará, foi criada em julho de 2007 a Coordenadoria de Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento Sustentável, que desde seu surgi-
mento vem desenvolvendo uma atividade considerável e até propiciado um
novo espaço de diálogo e cooperação para governos subnacionais: o Fórum
de Autoridades Locais da Amazônia (Fala).7 O estado nordestino do Cea-
rá tem chamado a atenção por seu dinamismo e pelo sucesso obtido tanto
no plano comercial quanto no da cooperação (Saraiva, 2004).
Passando agora aos governos municipais, a Prefeitura do Rio de Ja-
neiro foi a primeira a criar uma estrutura de relações internacionais em
1987, uma secretaria que também se ocupava de questões protocolares.
Mas esse órgão, criado pelo governo do Partido Democrático Trabalhista
(PDT) e mantido pelos governos subsequentes, nunca teve uma ativida-
de muito significativa. Suas principais funções, ao longo dos anos, foram
a preparação das viagens dos prefeitos ao exterior, a solução de ques-
tões protocolares levantadas pelas visitas de representantes estrangeiros,
e contatos com o corpo consular presente na cidade. Talvez a ação mais

5
Os Quatro Motores da Europa é uma associação para a cooperação entre as regiões de Baden-
Württemberg, Rhône-Alpes, Lombardia e Catalunha, estabelecida em 1988.
6
O protocolo de intenções para a institucionalização da rede latino-americana do projeto
“Quatro Motores para o Mercosul” foi assinado em 17 de novembro de 2008 em Córdoba,
Argentina.
7
O Fala é uma iniciativa vinculada ao Fórum de Autoridades Locais para a Inclusão Social
(FAL), espaço de discussão (e também rede permanente) de governos subnacionais para tra-
tar de problemas globais vinculados à luta contra a exclusão social. Foi criado pela Prefeitu-
ra de Porto Alegre em 2001, como espaço de discussão paralelo ao Fórum Social Mundial.
A primeira assembleia do Fala aconteceu na edição do Fórum Social Mundial, realizada em
Belém, Pará, em janeiro de 2009.
282 Política externa brasileira

digna de nota empreendida tenha sido a ocorrida em 2007, durante o


mandato de César Maia, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro se retirou
das principais redes de cooperação internacional de que participava, pelo
menos formalmente, entre as quais a rede de cooperação dos governos
municipais do Mercosul — a Mercocidades —, formada principalmente
por prefeitos progressistas com os quais as autoridades municipais do Rio
de Janeiro não se sentiam identificadas.
Porto Alegre, por sua vez, estabeleceu uma Secretaria Especial para
a Cooperação Internacional e a Captação de Recursos em 1994, passando a
ser um dos governos subnacionais do Brasil mais ativos internacionalmente
(Salomón e Nunes, 2007). O fato de o mesmo partido (o PT) ter permane-
cido no poder durante quatro mandatos consecutivos (1989-2004) possibi-
litou a realização de uma política externa subnacional relativamente estável,
duradoura e coerente. A difusão internacional do Orçamento Participativo
e a criação, por iniciativa de Porto Alegre, do Fórum de Autoridades Locais
para a Inclusão Social (FAL), em 2001, e da rede FAL, em 2005, são alguns
exemplos da crescente atividade da Prefeitura de Porto Alegre no âmbito da
cooperação transnacional entre governos subnacionais.
Em 2005, quando o PT foi derrotado nas eleições municipais, o novo
governo — uma coalizão de partidos de centro-direita — manteve a secre-
taria, que conservou também as mesmas atribuições: captação de recursos
e cooperação. Houve, porém, uma clara mudança de ênfase: a prioridade
passou a ser a captação de recursos privados, e não mais de agências públi-
cas internacionais como anteriormente. Essa mudança refletiu-se no novo
acrônimo da secretaria: Captare. Também houve uma notável perda de po-
der político da secretaria em favor de outros órgãos da prefeitura. Com
a reeleição do prefeito em 2008, a secretaria foi desmantelada. Contudo,
Porto Alegre continua sendo atuante nas estruturas de cooperação subna-
cional transnacionais e até mantém a divulgação internacional do Orça-
mento Participativo no centro de sua estratégia internacional.
Foi também um governo do PT que criou a Secretaria Municipal de
Relações Internacionais de São Paulo em 2001 (Mattoso, 2001; Jakobsen,
2004), que logo, por suas dimensões e seu ativismo, converteu-se em mo-
delo para todos os órgãos de relações internacionais no Brasil e manteve
seu high profile durante todo o mandato da prefeita Marta Suplicy, que teve
papel significativo no movimento internacional de governos locais. Mas
em 2005 o PMDB substituiu o PT no governo municipal. A Secretaria
de Relações Internacionais foi mantida e até mesmo sua responsável, uma
A dimensão subnacional da política externa brasileira 283

diplomata profissional, permaneceu no posto. Porém, ao contrário do que


aconteceu em Porto Alegre, a orientação e o conteúdo das políticas mu-
daram radicalmente. Os principais programas de cooperação, começando
pelo URB-AL (que tinha uma de suas redes temáticas coordenada pela
Prefeitura de São Paulo), foram cancelados e a promoção comercial e a
atração de investimentos privados tornaram-se sua principal prioridade.
O Departamento de Relações Internacionais de Belo Horizonte, inau-
gurado em 2003 por um prefeito petista, continua funcionando na atual coali-
zão PT-PSDB. O departamento assumiu uma posição de liderança informal
nas reuniões dos secretários municipais de relações internacionais do Brasil,
que são celebradas anualmente desde 2005 com o objetivo de discutir ques-
tões de interesse comum, entre as quais a possibilidade de avançar na consti-
tucionalização das atividades internacionais dos governos subnacionais.
As cidades de Salvador (PDT), Palmas (PT) e Recife (PT) criaram,
todas elas, seus próprios órgãos de relações internacionais em 2005, que-
brando assim o quase monopólio das cidades do eixo Sul-Sudeste em ati-
vidades paradiplomáticas. Salvador, em particular, destaca-se por ter criado
o maior órgão de relações internacionais municipais (cerca de 20 pessoas)
em funcionamento atualmente no Brasil.
Curitiba também inaugurou em 2005 sua própria Secretaria de Rela-
ções Internacionais e Protocolo, sob um governo do Partido da Social De-
mocracia Brasileira (PSDB). Curitiba é provavelmente o município bra-
sileiro que mais visitas recebe de delegações de governos locais de todo o
mundo — em 2007, por exemplo, foram 96 delegações de 23 países. Os
visitantes estão interessados em conhecer diferentes aspectos do planeja-
mento urbano de Curitiba, especialmente o transporte público e os siste-
mas de reciclagem de resíduos sólidos.
Finalmente, o caso de Guarulhos merece atenção. Diferentemente das
outras cidades mencionadas, Guarulhos não é capital de um estado, mas
uma das cidades médias (1,5 milhão de habitantes) industriais do chamado
“cinturão vermelho” das cidades ao redor de São Paulo controladas pelo PT.
Entre 2005 e 2008, Guarulhos foi a cidade brasileira mais destacada nas re-
des internacionais de cidades. Sua estrutura institucional de relações inter-
nacionais (uma assessoria) era muito pequena, com apenas um assessor do
prefeito e três funcionários. Porém, esse assessor não era outro senão o anti-
go coordenador de relações internacionais da Prefeitura de Porto Alegre dos
últimos governos petistas. Com sua valiosa rede de contatos, ele conseguiu
introduzir Guarulhos no núcleo da política internacional de cidades.
284 Política externa brasileira

Agendas e influências
As funções desempenhadas pelas estruturas institucionais paradiplomáti-
cas dos governos subnacionais refletem a maneira pela qual a paradiplo-
macia é concebida no Brasil e também as influências (ou determinantes de
política externa) subjacentes a essa concepção. Ao mesmo tempo, o con-
teúdo e as influências/motivações que explicam as relações internacionais
dos governos subnacionais brasileiros apontam para características peculia-
res das relações internacionais subnacionais no Sul.
As principais funções identificáveis — apesar das muitas diferenças
existentes na organização e nas dimensões dessas estruturas — são três:
cooperação internacional, captação de recursos e promoção comercial e
econômica.
Praticamente todas as estruturas institucionais (assessorias, secretarias
etc.) de unidades subnacionais com atividade externa sistemática se ocu-
pam de cooperação internacional — tanto bilateral quanto multilateral —,
podendo esta ser considerada a área principal da agenda paradiplomáti-
ca brasileira. Os irmanamentos entre cidades ou estados, outros acordos
de cooperação mais específicos, intercâmbios de “melhores práticas” ou a
participação em redes transnacionais de governos subnacionais são todos
iniciativas que se enquadram nessa grande categoria. Na maioria dos ca-
sos, a participação brasileira em esquemas de cooperação multilateral ou
a assinatura de acordos bilaterais com contrapartes estrangeiras resulta de
iniciativas alheias: raramente são os governos brasileiros que procuram ati-
vamente os vínculos de cooperação ou potenciais doadores. Pelo menos em
parte, creio que a explicação para isso está na ausência de pressões de ou-
tros atores interessados em que a prefeitura ou o governo estadual estabe-
leça esses vínculos de cooperação. Na Europa ou nos Estados Unidos, onde
as atividades de cooperação descentralizada exercidas pelos governos sub-
nacionais consistem fundamentalmente em proporcionar ajuda a comuni-
dades do Sul, existem normalmente grupos organizados da sociedade civil,
como ONGs, que pressionam as autoridades a oferecerem cooperação e
frequentemente colaboram com as autoridades na gestão dos projetos. No
caso do Brasil (e provavelmente do Sul em geral) são as próprias autorida-
des municipais ou estaduais que aceitam ou rejeitam propostas de coope-
ração com contrapartes estrangeiras. Quando há algum envolvimento de
grupos de cidadãos locais, este é posterior, acontecendo na fase de imple-
mentação do projeto de cooperação.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 285

Mas são, sem dúvida, os programas e redes de cooperação multilateral


entre governos subnacionais os que mais têm contribuído para o desen-
volvimento da paradiplomacia brasileira. O programa mais importante,
por sua dimensão e impacto, é o programa birregional URB-AL, lançado
pela União Europeia (sob a responsabilidade da Comissão Europeia) em
1995 e atualmente em sua terceira fase. O URB-AL dá suporte à coopera-
ção entre governos locais da União Europeia e da América Latina, crian-
do redes temáticas sobre políticas urbanas específicas. As redes, das quais
sempre participam vários governos subnacionais europeus e latino-ameri-
canos, formulam e mais tarde gerem os projetos, financiados em parte pela
Comissão Europeia e, em parte, pelos próprios participantes. O URB-AL
tem tido um impacto considerável, tanto qualitativo — por sua maneira
inovadora de identificar e formular mecanismos para projetos conjuntos
em cada rede — (Malé, 2006) quanto quantitativo: calcula-se que 75%
das atividades de cooperação em rede das cidades latino-americanas en-
volvam a participação em alguma das 13 redes URB-AL ( Jakobsen, Ba-
tista e Evangelista, 2008). Os governos municipais brasileiros participam
de todas as redes temáticas do URB-AL e coordenam inúmeros projetos
e também duas redes temáticas: a Rede 9, sobre financiamento local e or-
çamento participativo, a cargo de Porto Alegre; e a Rede 10, sobre o com-
bate à pobreza urbana, sob a responsabilidade de São Paulo.
Entre as redes de cooperação multilateral com objetivos mais específicos
de que os governos brasileiros participam mais ativamente, cabe mencionar
a Associação Internacional de Cidades Educadoras, o Centro Internacional
para o Desenvolvimento Estratégico Urbano (responsável pela disseminação
internacional do modelo de plano estratégico desenhado pela Prefeitura de
Barcelona) e o Conselho Internacional para as Iniciativas Locais Ambientais
(International Council for Local Environmental Initiatives — Iclei), com
um importante papel na aplicação da Agenda 21 local.
A participação nas redes de cidades e na institucionalização do mo-
vimento internacional das cidades teve grande influência na maneira de
os governos municipais brasileiros organizarem suas estratégias e institui-
ções paradiplomáticas. Primeiro, como já mencionado, a cooperação in-
ternacional e a participação em redes passaram a ser concebidas por eles
como o núcleo dessa incipiente paradiplomacia. Segundo, a difusão inter-
nacional de boas práticas, quer através do programa Hábitat ou de outras
agências internacionais, quer bilateralmente, logo foi identificada como um
286 Política externa brasileira

poderoso instrumento de promoção da cidade e — o que era particular-


mente importante para os governos municipais administrados pelo PT —
um instrumento compatível com a ideologia progressista e partidária da
alterglobalização, além de uma autêntica contribuição à governança glo-
bal. Terceiro, os prefeitos brasileiros perceberam que o ativismo internacio-
nal podia também render frutos na política doméstica. A prefeita de São
Paulo, Marta Suplicy, por exemplo, se mostrou muito ativa no movimen-
to internacional de cidades e conseguiu, em grande medida devido a uma
intensa campanha de contatos realizada pela Secretaria Municipal de Re-
lações Internacionais em 2004, ser eleita uma das três copresidentes da pri-
meira presidência da nova organização internacional Cidades e Governos
Locais Unidos (CGLU).8
Uma segunda função das estruturas institucionais que se ocupam de
relações internacionais — especialmente as municipais — é a captação de
recursos de agências internacionais públicas, como o Banco Mundial, o
Fundo Monetário Internacional ou o Fonplata, embora, em alguns ca-
sos, mesmo quando existe um órgão de relações internacionais, seja outro
departamento (a Fazenda, por exemplo) o encarregado dessas tarefas. É
interessante que a captação de recursos só seja mencionada como área da
paradiplomacia em estudos sobre governos subnacionais do Sul (Sridha-
ran, 2003; Iglesias, 2008). A razão parece evidente: enquanto a produção
acadêmica da paradiplomacia provém principalmente do Norte, as ati-
vidades de captação de recursos não são próprias da paradiplomacia dos
países do Norte, que são doadores e não receptores da cooperação interna-
cional. Nos países do Sul, a captação de recursos é muitas vezes a principal
raison d’être da política externa subnacional (especialmente da municipal)
e uma das principais motivações da decisão de criar uma estrutura de re-
lações internacionais.
Isso foi o que aconteceu com Porto Alegre, cuja estrutura de rela-
ções internacionais evoluiu a partir de um órgão responsável pela captação
de recursos tanto nacionais quanto internacionais. Nessa época (primeiros
anos da década de 1990), as agências multilaterais, a começar pelo Banco
Mundial, passaram a negociar empréstimos e acordos de cooperação dire-
tamente com os governos subnacionais e a desenhar estratégias cada vez

8
Porém, nesse mesmo ano (2004), perdeu as eleições e não conseguiu ser reeleita prefeita de
São Paulo.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 287

mais focadas no apoio econômico e técnico a governos não centrais (World


Bank, 2000). São Paulo e Porto Alegre foram as primeiras cidades, e o Rio
Grande do Sul e Minas Gerais, os primeiros estados a aproveitar a opor-
tunidade oferecida para aumentar os recursos disponíveis para o desenvol-
vimento local. Com esse fim, montaram equipes eficientes especializadas
em redigir propostas e em negociar com agências internacionais. Em cer-
to sentido, então, e de maneira similar às redes transnacionais de cidades,
as políticas das agências internacionais de desenvolvimento tiveram papel
constituinte na criação da paradiplomacia brasileira — e provavelmente da
paradiplomacia do Sul em geral.
A promoção econômica e comercial — atração de investimentos priva-
dos e promoção de exportações — é a terceira grande função das estrutu-
ras de relações internacionais subnacionais no Brasil e, por isso, a terceira
dimensão da paradiplomacia brasileira, embora os governos estaduais se-
jam mais ativos nesse campo do que as prefeituras. Isso ocorre, em primei-
ro lugar, porque as empresas e associações empresariais tendem (salvo no
caso das grandes cidades, como São Paulo) a preferir como interlocuto-
res os governos estaduais. Outra razão, de ordem mais conjuntural, é que,
em geral, os governos municipais controlados pelo PT não têm mantido
boas relações com as instâncias representativas dos interesses empresa-
riais de suas cidades. Suas atividades de promoção comercial e econômica
têm se centrado em ações de formação e na simplificação de trâmites de
exportação para micro e pequenas empresas. O rol das atividades de pro-
moção econômica e comercial dos governos estaduais é bastante amplo e
não muito diferente daquele dos Estados nacionais. Inclui ações de divul-
gação de oportunidades de intercâmbio comercial com parceiros estran-
geiros, organização de cursos de capacitação em comércio exterior, ações
para facilitar os trâmites de exportação para pequenas e médias empresas,
organização de missões de promoção comercial no exterior (muitas vezes
em conjunto com as câmaras de comércio e com a colaboração da rede
de embaixadas brasileiras no exterior), apoio financeiro e logístico para a
participação de empresas do estado em feiras internacionais e abertura de
escritórios de representação comercial no exterior.
Por último, uma quarta função dos órgãos encarregados de gerir as re-
lações internacionais dos governos subnacionais é o city marketing. O “city
marketing”, ou criação de uma “marca cidade” (ou estado), é uma dimensão
cada vez mais importante da estratégia de internacionalização dos governos
288 Política externa brasileira

locais e um instrumento indispensável para a política externa subnacional.


Os governos subnacionais estão cada vez mais conscientes de que o estabe-
lecimento de qualquer vínculo, esteja relacionado ao comércio ou à coope-
ração, será mais fácil se a cidade ou região for bem conhecida e atraente aos
sócios em potencial. O Rio de Janeiro e São Paulo já são cidades/estados
bem conhecidos internacionalmente. Por isso, mais do que criar uma ima-
gem, o que têm feito é modificar os aspectos mais negativos da imagem exis-
tente, ou seja, aqueles relacionados com a desordem ou com a criminalidade,
e salientar os favoráveis à cooperação (conectividade, infraestrutura adequa-
da ao estabelecimento de grandes firmas multinacionais, recursos humanos
qualificados, atrativos turísticos).9 As autoridades municipais de Curitiba,
por sua vez, têm usado o “modelo Curitiba” de planejamento urbano — de-
senvolvido desde a década de 1960 com a ajuda do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano de Curitiba —, juntamente com as origens multicul-
turais da população dessa “capital brasileira da multiculturalidade”, como
elementos principais da projeção internacional da imagem da cidade.
Especialmente interessante é a estratégia de construção de imagem de
Porto Alegre, tarefa empreendida pelos responsáveis pela Secretaria Especial
para a Cooperação e Captação de Recursos (Secar) durante seus primeiros
anos de existência e como parte de uma estratégia de internacionalização
muito consciente. A marca Porto Alegre é a de uma “cidade global solidária”
ou “cidade rede da democracia” e se baseia, antes de mais nada, no vínculo
com o Fórum Social Mundial (FSM), o evento antiglobalização realizado
anualmente em paralelo, e em oposição, ao Fórum Econômico Mundial de
Davos, com um discurso bem sintonizado com o ideário internacionalista
do PT. Porto Alegre acolheu a primeira (2001), a segunda (2002), a terceira
(2003) e a quinta (2005) edições do FSM.10 A marca Porto Alegre está for-
temente ligada à difusão internacional do seu Orçamento Participativo, que
constitui ao mesmo tempo seu principal aporte aos vínculos de cooperação
que mantém com contrapartes internacionais.
É também digno de nota que, apesar de o PT ter deixado o governo,
seus sucessores mantiveram a estratégia exitosa da cidade, inclusive usando

9
Especialmente no caso de São Paulo, a ênfase das autoridades locais na condição de “cidade
global” da capital econômica do país tem gerado bastante controvérsia com a academia (Vai-
ner, 2000; Wanderley, 2006).
10
Em janeiro de 2010, Porto Alegre acolheu algumas atividades do FSM, desta feita cele-
brado de maneira descentralizada e concomitante em várias cidades.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 289

os mesmos canais (agências internacionais como o Pnud, o programa Hábi-


tat ou a Unesco) empregados pelo PT para difundir o Orçamento Participa-
tivo, juntamente com outra prática de gestão de recursos urbanos idealizada
recentemente — a “governança solidária local” (Ferreira, 2007).
Para concluir esta seção, vale a pena mencionar a total ausência, na
paradiplomacia brasileira, da city diplomacy (cooperação entre cidades para
a resolução de conflitos, reconstrução pós-conflito etc.) e de preocupações
de alta política similares às típicas da política exterior municipal dos Esta-
dos Unidos. Mais uma vez, a explicação reside no contexto em que atuam
os governos locais. As atividades envolvidas na city diplomacy, que exigem
recursos humanos e materiais consideráveis, não podem ser levadas a cabo
por autoridades municipais (ou regionais) de maneira isolada. Como já dis-
se, por trás de iniciativas desse tipo há grupos de cidadãos bem-organizados
que trabalham com os governos subnacionais para implementar os projetos.
Mas as ONGs no Brasil preferem atuar, quer de modo independente, quer
cooperando com os governos municipais, em temas de desenvolvimento e
de resolução de conflitos nas próprias cidades brasileiras, onde fazem gran-
de falta, mais do que em cidades fora do Brasil.11

A atuação dos governos subnacionais na política exterior brasileira


Dada a importante tradição centralista brasileira e o papel do Ministério das
Relações Exteriores na implementação da política externa nacional, não é
surpreendente que a reação inicial do governo federal às iniciativas dos go-
vernos estaduais e municipais de criação de estruturas institucionais paradi-
plomáticas e de celebração de acordos com contrapartes estrangeiras tenha
sido uma reação de temor. Uma das manifestações desse temor foram os re-
petidos pareceres emitidos pelo Itamaraty declarando ilegais os acordos in-
ternacionais, embora sem obstruir na prática as ações de cooperação previstas
nos acordos. Contudo, progressivamente, ao longo de mais de 20 anos, essa
atitude inicial, primeiro, virou aceitação e, mais tarde, com o governo atual
do PT, passou a estimular a atividade externa dos governos subnacionais e a
integrá-la à estratégia de desenvolvimento nacional (Nunes, 2005).

11
A ONG Viva Rio, com sede no Rio de Janeiro, colabora com alguns governos municipais
não brasileiros em projetos de prevenção da violência, mas como essa colaboração não é feita
em associação com nenhum governo subnacional brasileiro, são atividades que não podem
ser consideradas city diplomacy.
290 Política externa brasileira

O Itamaraty deu os primeiros passos em direção à aceitação da coope-


ração internacional dos governos subnacionais como dimensão “normal” da
política externa brasileira em meados da década de 1990. Em 1995, no início
do governo Fernando Henrique Cardoso, os diplomatas brasileiros cunha-
ram a expressão “diplomacia federativa” (Lampreia, 1999; Bogéa, 2001),
mais ou menos equivalente a “paradiplomacia”, ou pelo menos abrangendo
as mesmas dimensões, legitimando, assim, as atividades de cooperação e de
promoção comercial dos governos subnacionais. Segundo esclarecimentos
dos diplomatas responsáveis pelo desenvolvimento do conceito, diplomacia
federativa significa não só a tendência em direção às ações internacionais
desenvolvidas individualmente pelos governos subnacionais, mas também
sua participação, canalizando demandas específicas, no processo de tomada
de decisões da política externa nacional (Pereira, 2004). Até agora, porém,
essa segunda dimensão não passou de retórica.
Durante o governo Lula, o Itamaraty manteve o conceito de “diplo-
macia federativa”, que passou a conviver com o mais específico “cooperação
internacional federativa”, desenvolvido pelos assessores presidenciais. Este
último conceito é praticamente sinônimo de “cooperação descentralizada
pública”, expressão cunhada pela Comissão da União Europeia nos anos
1990 (Malé, 2006). De fato, o compromisso com o ativismo internacional
de estados e municípios em sua busca por instrumentos de desenvolvimen-
to e recursos era compatível com a própria plataforma política do governo,
focada no desenvolvimento e na luta contra a pobreza.12 Além disso, a co-
operação internacional Sul-Sul — uma das prioridades da política externa
brasileira (Saraiva, 2008) — precisava, para ser efetiva, da participação dos
três níveis de governo. Daí a importância da dimensão local nos fóruns de
cooperação como o Ibas — Índia, Brasil, África do Sul —, no qual foi esta-
belecido, em janeiro de 2008, um Fórum de Governança Local para estimu-
lar a cooperação entre os governos subnacionais dos três países participantes
(Ibas, 2008). A tendência em direção à cooperação internacional entre os
membros do Mercosul, que levou recentemente à criação do Fórum Con-
sultivo de Cidades e Regiões, partiu das mesmas considerações.

12
Ver os planos plurianuais de 2004-2007 — um Brasil para todos: crescimento sustentável,
emprego e inclusão social — e de 2008-2011 — desenvolvimento com inclusão social e edu-
cação de qualidade — do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 291

Seguindo uma pauta evolutiva similar, uma estrutura administrativa


vinculando o Ministério das Relações Exteriores e os governos estaduais
(não existe estrutura semelhante de relacionamento com os governos mu-
nicipais) foi criada durante o mandato de FHC e consolidada no governo
Lula. Em 1997, o Ministério das Relações Exteriores criou uma Assesso-
ria de Assuntos Federativos, que passou a coordenar os escritórios de re-
presentação do Itamaraty em vários estados brasileiros (atualmente oito).
O primeiro a ser estabelecido, em 1995, foi o Escritório do Ministério
das Relações Exteriores no Rio Grande do Sul (Eresul), que funciona nas
mesmas dependências da Secretaria de Desenvolvimento e Assuntos In-
ternacionais. Em 2003, com Lula já na Presidência, a Assessoria de As-
suntos Federativos teve seu escopo ampliado para incluir as relações com
o Congresso, passando a se chamar Assessoria para Assuntos Federativos
e Parlamentares (Afepa), experimentando considerável revitalização (Sa-
raiva, 2004). Atualmente, a Afepa atua sobretudo como um canal para as
demandas de cooperação internacional dos governos subnacionais e os ór-
gãos controlados pelo Ministério das Relações Exteriores, em particular a
Agência Brasileira de Cooperação (ABC).
Mas a principal inovação institucional do governo Lula foi a criação,
em 2003, no âmbito da Presidência da República, da Subchefia de Assun-
tos Federativos (SAF), à qual é subordinada a Assessoria para a Coopera-
ção Internacional Federativa (Acif ), com a função específica de promover
a cooperação descentralizada. Foi a SAF que deu expressão ao interesse
da administração petista nas atividades de cooperação internacional de es-
tados e municípios brasileiros em suas diferentes dimensões, incluindo a
cooperação subnacional no Mercosul. Além disso, a SAF tenta estimular
o interesse dos governos subnacionais em diferentes aspectos da coopera-
ção subnacional (principalmente da cooperação entre estados brasileiros e
províncias argentinas) através da organização de encontros e seminários,
por vezes com a colaboração da Afepa.
O governo federal, através da SAF, tem dado importante impulso à
cooperação descentralizada, especialmente com a Itália e a França, prin-
cipais parceiros do Brasil nessa área. Na verdade, esse tipo de cooperação
descentralizada (entre governos subnacionais) deveria se chamar “coope-
ração multinível”. Os três governos centrais — de Brasil, França e Itá-
lia — têm papel muito ativo nas atividades de cooperação e, por vezes,
292 Política externa brasileira

participam diretamente dos projetos em que as respectivos estados, pro-


víncias, departamentos ou regiões estão envolvidos. Os acordos de coope-
ração com a França e a Itália foram revisados recentemente para incluir
protocolos a fim de regular a cooperação descentralizada (Ministério de
Relações Exteriores, 2007 e 2008), criando assim uma base legal para os
acordos entre os governos subnacionais.
O apoio do governo central às atividades externas de estados e muni-
cípios reflete a trajetória dos responsáveis da SAF/Acif e, em termos mais
gerais, da própria história do PT. Desde fins da década de 1980, muito an-
tes de chegar ao governo federal, o PT passou a governar algumas grandes
cidades brasileiras, como Porto Alegre e São Paulo. E foram precisamente
essas cidades que desenvolveram uma política externa subnacional ou pa-
radiplomacia de certa substância, com grande ênfase na cooperação inter-
nacional através das redes de cidades. Os esforços da administração Lula,
em particular os levados a cabo pela SAF para legitimar e dar suporte às
atividades dos governos subnacionais, resultaram da experiência prévia em
movimentos internacionais de governos locais de várias pessoas que assu-
miram cargos no governo federal.

Os governos subnacionais brasileiros no processo de integração regional


do Mercosul
Nos últimos anos, depois da chegada ao poder das novas administrações
brasileira (Lula) e argentina (Kirchner) em 2003, o processo de integração
regional na América do Sul experimentou importante revitalização. No
Mercosul, uma das consequências dessa revitalização foi a abertura de no-
vos espaços de participação para atores sociais e também para os governos
subnacionais dos países participantes, até então bastante marginalizados
(Coutinho, Hoffmann e Kfuri, 2007).
Os governos subnacionais dos países-membros do Mercosul, e especi-
ficamente os municipais, desde o início procuraram participar ativamente do
processo de integração. Em 1995, quatro anos após a assinatura do Tratado
de Assunção que deu origem ao Mercosul, um grupo de cidades de dimen-
sões médias com governos de centro-esquerda estabeleceu a rede Mercoci-
dades (Romero, 2004). A Prefeitura de Porto Alegre foi um dos principais
promotores da iniciativa. Inspirada na rede Eurocidades, a Mercocidades
A dimensão subnacional da política externa brasileira 293

foi estabelecida com um duplo objetivo: como um lobby para obter maior
participação dos governos municipais no processo de integração e como
fórum de cooperação técnica permanente para o intercâmbio de experi-
ências e a realização de projetos conjuntos. Apesar do ritmo desigual de
evolução do Mercosul, foram feitos progressos significativos nas duas áreas.
Além de estimular o diálogo e as iniciativas de seus membros (atualmen-
te mais de 200 cidades) relacionadas com o desenvolvimento urbano con-
junto, os governos das cidades-membros da Mercocidades conseguiram a
criação, no Mercosul, de um órgão representativo dos governos locais: o
Fórum Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Depar-
tamentos do Mercosul — também conhecido simplesmente como Fórum
Consultivo de Cidades e Regiões —, que começou a funcionar em 2007.
No Fórum Consultivo, cujo principal modelo foi o Comitê das Re-
giões da União Europeia, participam os governos intermediários dos dois
parceiros com estrutura federal, isto é, os das províncias argentinas e os
dos estados brasileiros. O curioso é que a proposta original da Merco-
cidades era criar um órgão constituído exclusivamente de governos mu-
nicipais. Mas o governo central argentino, e sobretudo o brasileiro, era
partidário da participação de estados e províncias no fórum e argumentou
que a inclusão destes favoreceria a cooperação transnacional entre os go-
vernos intermediários dos dois países e, consequentemente, o processo de
integração regional em geral (Rodrigues e Kleiman, 2007). Assim sendo,
os estados e províncias foram incluídos sem terem feito (pelo menos no
caso brasileiro) qualquer demanda nesse sentido. Essa é mais uma prova
do papel ativo, e mesmo de liderança, do governo federal brasileiro nas
relações internacionais dos governos locais e estaduais. De fato, até agora
tem sido o governo brasileiro, por meio da SAF (coordenadora do capítu-
lo brasileiro do fórum), o principal promotor de sua agenda.
Outro ponto que merece destaque é que, do lado brasileiro, são as
prefeituras controladas pelo PT (todas, salvo a de Belo Horizonte), que
correspondem a cidades médias ou pequenas, os governos subnacionais
brasileiros verdadeiramente envolvidos nas atividades do fórum e que par-
ticipam mais ativamente das diferentes instâncias da Mercocidades.
294 Política externa brasileira

Conclusão

No Brasil, como em boa parte do mundo, a paradiplomacia — atividades


externas sistemáticas e parcialmente institucionalizadas dos governos sub-
nacionais — chegou para ficar. O crescimento das estruturas institucionais
de gestão das relações internacionais subnacionais no país e sua sobrevi-
vência, em muitos casos, a mudanças políticas nos governos estaduais e
municipais demonstram isso.
A paradiplomacia brasileira, especialmente a municipal, está estrei-
tamente associada ao PT, cujos governos têm desenvolvido as políticas
externas subnacionais mais substantivas, estabelecido vínculos com o mo-
vimento transnacional de governos locais, suas organizações e redes e ado-
tado, uma vez no governo federal, a “cooperação internacional federativa”
como estratégia de desenvolvimento nacional. A indubitável politização
da paradiplomacia não implica, porém, o monopólio da atividade paradi-
plomática por um único partido político. Prefeituras e governos estaduais
controlados por outros partidos têm criado estruturas desenhadas para co-
ordenar atividades externas e também políticas externas de certa substân-
cia, ou pelo menos têm mantido em parte o legado do PT ao substituí-lo
no governo. Mas a politização da atividade paradiplomática brasileira ten-
de a diminuir à medida que a prática de estabelecer uma estrutura institu-
cional para as relações internacionais e uma estratégia internacional global
para o município ou o estado for se ampliando e padronizando.
Outra característica pronunciada da paradiplomacia brasileira é a
falta de influência dos atores da sociedade civil no processo de formu-
lação das políticas de cooperação internacional. Isso ocorre porque tais
atores não participam da cooperação internacional através das prefeituras
ou dos governos estaduais, como acontece frequentemente nos países do
Norte, mas através de outros canais (o mesmo se aplicando à cooperação
para a resolução de confl itos). Excetuando-se o intercâmbio e a difusão
de boas práticas, os governos subnacionais brasileiros (e os governos do
Sul em geral) são mais receptores do que doadores de cooperação inter-
nacional, e isso faz uma grande diferença na maneira de funcionar da pa-
radiplomacia. Embora seja correto afirmar que tanto no Norte quanto no
Sul a cooperação é uma área nuclear da atividade paradiplomática, num
caso a cooperação é prestada e no outro, recebida. E essa assimetria im-
plica processos bem diferentes.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 295

Em termos gerais, pode-se afirmar que a paradiplomacia é uma insti-


tuição do Norte transplantada para o Sul a partir da influência constitutiva
de organizações internacionais e do movimento internacional de governos
locais. Mas, como o caso do Brasil demonstra, trata-se de uma instituição
muito maleável e adaptável a diferentes situações políticas e ideologias.

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10.
Um olhar brasileiro sobre a ação
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Alberto Kleiman
colaborador: Gustavo de Lima Cezario

Entre os novos atores das relações internacionais surgidos nas últimas dé-
cadas, os governos subnacionais — entendidos como todas as unidades
governamentais infraestatais, como municípios, estados, províncias, depar-
tamentos, aglomerações urbanas, regiões etc. — compõem um grupo cuja
compreensão da ação internacional, o alcance, as potencialidades e os limi-
tes requerem uma análise ampla, minuciosa e despida de preconceitos.
Pelas lentes da política externa tradicional, a ação internacional dos go-
vernos locais é muitas vezes vista como algo menor, marginal, ou até mesmo
indesejável. Da perspectiva local, porém, pelo olhar do gestor familiariza-
do com seu universo dinâmico, ela é vista como a principal, a mais legítima
e inovadora alternativa ao velho modelo de cooperação internacional. Os
novos estudiosos do tema se depararão com seus limites materiais, legais e
constitucionais, da mesma forma que se encantarão com suas inúmeras pos-
sibilidades de ação e inovação. Os juristas tentarão compreender como essa
atividade pôde se desenvolver (e se desenvolve) sem qualquer norma ou lei
que a reconheça nem regule. Os cientistas políticos e os internacionalistas
debaterão sobre sua natureza, perguntando-se se, como objeto de análise,
trata-se de tema de política pública interna ou de política externa, nacional
ou internacional.
Este capítulo almeja discutir essas e outras questões sem preten-
der, no entanto, dar respostas definitivas a todas elas. A opção feita foi
tentar escapar de uma leitura asséptica e pretensamente neutra, que vê a
ação internacional dos governos locais apenas da perspectiva das relações
internacionais, como se fossem desprovidas de visões definidas por suas
302 Política externa brasileira

circunstâncias nacionais, regionais, econômicas, culturais. A maioria dos


textos sobre o tema tende a assumir uma posição de aparente neutralida-
de, como se a cooperação descentralizada fosse uma atividade uniforme e
equânime, acessível da mesma forma a todos os governos locais do mun-
do. Ao mesmo tempo, esses textos tratam muitas vezes o tema como uma
simples modalidade de cooperação internacional, detendo-se em questões
técnicas, sem inseri-lo em seu contexto maior da cooperação internacional
e da política externa, de suas dinâmicas e seus interesses.
A ação internacional dos governos locais, que passaremos a designar
como “cooperação descentralizada”, não está isolada do todo. Talvez a vi-
são contrária derive de certo olhar “municipalista internacional”, que bus-
caria, como prioridade, defender “os interesses dos governos locais de todo
o mundo”, como se estes não se relacionassem política, econômica e cultu-
ralmente com outras instâncias, contextos políticos nacionais e internacio-
nais, e não fossem influenciados por eles.
Por isso, optamos por abordar a ação internacional dos governos sub-
nacionais a partir do contexto brasileiro, compreendido na dinâmica sócio-
político-econômico-cultural nacional, em seu espaço federativo, e a partir
da recente mudança do status brasileiro no cenário internacional. De forma
incidental, trata-se de entender como as circunstâncias globais, europeias e
latino-americanas influenciam e se deixam influenciar por essa dinâmica.
Fizemos essa opção em virtude da constatação de que o debate sobre
a cooperação descentralizada é dominado predominantemente pela pers-
pectiva europeia. A lógica da cooperação descentralizada, hoje, no mundo
acompanha a lógica da cooperação descentralizada europeia. As princi-
pais organizações, as redes internacionais de cidades, as relações com o
sistema das Nações Unidas, assim como os principais, financiadores são
todos europeus.
Poder-se-ia dizer que tal fato não é exclusividade da cooperação des-
centralizada. Pelo contrário. Como país em desenvolvimento e ex-colônia
portuguesa, o Brasil é grande importador da Europa, não apenas de pro-
dutos e tecnologia, mas sobretudo de conhecimento, refletido em nossa
produção acadêmica, nossos hábitos, nossas instituições e também em nos-
sos comportamentos e mentalidades. Samuel Pinheiro Guimarães (2006)
classifica essa dependência intelectual de “vulnerabilidade ideológica”, o
que constituiria um dos entraves ao nosso desenvolvimento e à nossa in-
serção soberana no mundo globalizado.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 303

Um dos problemas da abordagem eurocêntrica da cooperação des-


centralizada é que esta tende a minimizar as profundas e radicais diferen-
ças de formação dos Estados nacionais europeus e das cidades europeias
(levando-se em consideração as diferenças entre cada Estado) em compa-
ração com os demais Estados nacionais e cidades do mundo, em particular
com os Estados latino-americanos. Esse relativismo pode estar na origem
da visão um tanto ingênua de um suposto “municipalismo internacional”,
que colocaria todas as cidades do globo em condições de relativa igualdade
e as isolaria de suas circunstâncias nacionais, a fim de se enfrentar o Levia-
tã da centralização. Por essa razão, optamos por uma análise da cooperação
descentralizada que tomasse por base as circunstâncias brasileiras, visando
a neutralizar esse discurso.
Finalmente, uma breve nota sobre a terminologia adotada. A título de
simplificação, utilizaremos de forma corrente a expressão “cooperação des-
centralizada”, já consagrada na bibliografia nacional e internacional, para
designar a ação internacional dos governos subnacionais. E isso apesar de
nossa divergência metodológica e política, e mesmo entendendo-a pouco
adequada à realidade federativa brasileira. Não foi uma escolha fácil. Em-
bora ainda haja pouca literatura sobre a ação internacional dos governos
subnacionais, os termos e expressões para designá-la são muitos: paradi-
plomacia, diplomacia das cidades, diplomacia local, diplomacia federati-
va, cooperação internacional local, “glocalização”, relações internacionais
locais etc. Desnecessário dizer que, qualquer que seja o termo adotado, ele
corresponde a uma visão política e ideológica sobre o tema. Nesse sentido,
acreditamos que o conceito de cooperação internacional federativa é o que
descreve mais adequadamente a ação internacional dos entes federados,
como explicaremos na parte final deste capítulo.

Panorama global, europeu e latino-americano da cooperação


descentralizada: influências no Brasil

Um retrato da ação internacional dos governos subnacionais no mundo,


hoje, revela um quadro semelhante ao da cooperação internacional clássica,
porém com algumas diferenças dignas de nota. Seus principais financia-
dores são os 24 países doadores da assistência oficial ao desenvolvimento
304 Política externa brasileira

(ODA)1 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econô-


mico (OCDE). Desses, 19 são europeus. Como consequência, os principais
atores, na posição de doadores, de proponentes de programas e projetos ou
de “parceiros”, seja da cooperação internacional (técnica ou para o desen-
volvimento), seja da cooperação descentralizada, vêm desses países.
Pode-se afirmar que tanto a cooperação internacional clássica quanto
a cooperação descentralizada acompanham, em maior ou menor grau, as
linhas gerais da política externa dos países desenvolvidos. Ou seja, os prin-
cipais programas de cooperação seguem as linhas de financiamento defi-
nidas nos planos plurianuais, os quais, por sua vez, seguem as diretrizes da
política externa de cada país. Os temas e áreas geográficas ou países a se-
rem contemplados também seguem essa mesma linha decisória. Em outras
palavras, os países ricos decidem quanto e onde vão aplicar seus recursos
destinados à cooperação internacional com base em seus interesses, expres-
sos em suas políticas externas.
A cooperação descentralizada não está isolada dessa realidade. Diver-
sos programas de estímulo à cooperação entre governos subnacionais dos
países-membros e não membros da OCDE são financiados e estrutura-
dos com base na lógica clássica da cooperação internacional: top-down,
Norte-Sul, desenvolvido-em desenvolvimento, doador-receptor. Entre-
tanto, nesse ponto a cooperação descentralizada se diferencia daquela. Se
os países doadores continuam descumprindo o compromisso de destinar
0,7% de seus produtos internos à assistência ao desenvolvimento (Pnud,
2005), os governos subnacionais europeus, cada vez em maior número, des-
tinam recursos próprios e financiam suas ações e projetos internacionais nos
cinco continentes. Consequentemente, passaram a destinar uma maior fatia
do bolo de recursos à cooperação ao desenvolvimento em seus países.
Segundo dados oficiais do Ministério das Relações Exteriores fran-
cês, os recursos destinados pelas coletividades francesas a suas ações de
cooperação descentralizada somaram um total de € 75 milhões em 2008
(estima-se que essa cifra esteja subavaliada, chegando a € 115 milhões),
quantia bastante próxima daquela investida pelo Estado francês no mesmo
período (excetuando-se o pagamento de anualidades a organizações inter-
nacionais). Situação semelhante ocorre na Espanha, onde as coletividades

1
A sigla ODA corresponde ao inglês official development assistance. Para mais informações,
consultar: <http://bit.ly/ccrq0j>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 305

territoriais financiam suas próprias ações internacionais e a participação na


ODA é ainda mais impressionante que a francesa, totalizando € 442,8 mi-
lhões em 2006.2
Munidos de recursos próprios, agenda política própria e autônoma,
legislações nacionais que autorizam sua ação internacional e mecanismos
políticos e administrativos nacionais que estimulam sua atuação e criam
parcerias local-nacionais, os governos locais europeus dominam o cenário
da cooperação descentralizada no mundo.
Não por acaso, as principais organizações e redes internacionais de
governos locais e regionais são encabeçadas por cidades e regiões europeias,
como a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU). Criada em 2004, a
partir da fusão das redes de cidades Federação Mundial de Cidades Uni-
das (FMCU) e União Internacional de Autoridades Locais (Iula), é cons-
tituída por capítulos regionais autônomos. A presidência da CGLU, eleita
diretamente pelos membros da organização, é renovada a cada três anos,
sendo formada por três prefeitos que se alternam a cada ano. Uma comple-
xa hierarquia distribui os postos de comando da entidade entre seus órgãos
diretivos: o Conselho Mundial e o Bureau Executivo.
Criada com a ambição de ser a “ONU das cidades”, pretendia unificar
todas as redes internacionais de cidades, dizendo-se “a voz unificada das ci-
dades do mundo”. Apesar de tal objetivo não ter sido completamente atin-
gido, a CGLU vem se consolidando, se não como única, como a principal
organização mundial de cidades. Embora possua uma estrutura descentra-
lizada e uma agenda ampla e diversa, seu comando gira em torno do eixo
político formado por capitais e grandes cidades e regiões europeias, como
Paris, Barcelona, Île-de-France (que também compreende Paris), País Bas-
co, e grandes associações nacionais de municípios.
O predomínio das cidades europeias se justifica pelos investimentos
realizados e pelo know-how inovador da cooperação descentralizada. Bar-
celona talvez seja a cidade do mundo que melhor caracterize esse protago-
nismo e comando das cidades europeias. É sede e fundadora de algumas
das principais redes de cidades, como Cidades e Governos Locais Unidos
(CGLU), Rede Metrópolis, Cidades Educadoras, Centro Ibero-Americano

2
Para informações sobre a França, ver <http://cncd.diplomatie.gouv.fr/frontoffice/article.
asp?menuid=166&lv=2&aid=235>; para a Espanha, consultar: <http://www.observ-ocd.
org/estadisticas.asp>.
306 Política externa brasileira

de Desenvolvimento Estratégico Urbano (Cideu) e o Observatório Interna-


cional da Democracia Participativa (OIDP), apesar de o Orçamento Partici-
pativo ser uma “tecnologia social” criada no Brasil. Ayuntamiento, diputació
e generalitat — os três níveis de governos subnacionais catalães — dispõem
de verdadeiras superestruturas de relações internacionais que causariam es-
panto a muitos diplomatas. Atuando em redes, financiando projetos, crian-
do centros de estudo, prestando cooperação técnica direta e em parceria a
lugares tão distantes como Uruguai e Palestina, China e África, não sur-
preende que sejam os verdadeiros protagonistas da cooperação descentrali-
zada no mundo e definam as agendas que os demais governos subnacionais,
inclusive os brasileiros, debaterão.
Além de atuarem isoladamente de modo bastante estruturado, os go-
vernos locais e regionais europeus, individualmente ou por meio de suas
organizações, também atuam de forma conjunta no nível comunitário,
através do Comitê de Regiões3 e das diversas redes de cidades e regiões eu-
ropeias. Entender o predomínio europeu da agenda de cooperação inter-
nacional dos governos subnacionais é de fundamental importância para a
compreensão do tema na América Latina e no Brasil, tanto pela influência
europeia direta em ações e financiamentos quanto pelos referenciais teóri-
cos, acadêmicos e práticos.
Segundo estatísticas do Observatório da Cooperação Descentraliza-
da (OCD),4 existem hoje mais de 2 mil governos locais e regionais eu-
ropeus e latino-americanos envolvidos em relações de cooperação, sendo
1.288 relações bilaterais, 1.125 em redes de cidades e 500 derivados do
Programa URB-AL. Embora esses números sejam expressivos, não bas-
tam para se compreender o fenômeno como um todo, como a qualidade
dos projetos, sua sustentabilidade e os resultados obtidos. Mas comprovam
a influência decisiva da cooperação descentralizada europeia na América
Latina. O dado em si tampouco revela a relação de dependência financei-
ra e política dos governos locais latino-americanos de seus parceiros eu-
ropeus. Nesse particular, apesar da diversidade temática e geográfica das

3
Para mais informações sobre o Comitê de Regiões, ver <http://europa.eu/institutions/
consultative/cor/index_pt.htm>.
4
O Observatório da Cooperação Descentralizada Europa-América Latina, conduzido pela
Intendência de Montevidéu e Diputació de Barcelona, é hoje o principal banco de dados so-
bre cooperação descentralizada do continente.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 307

ações, nota-se que a cooperação descentralizada perpetua, em menor me-


dida, a abordagem da cooperação internacional tradicional de “assistência
ao desenvolvimento”, embora de modo mais horizontal, informal, flexível e
supostamente mais eficaz.
O Programa URB-AL, da União Europeia,5 criado em 1995 com o
intuito de fomentar a cooperação entre governos subnacionais europeus e
latino-americanos, é um exemplo do grau de dependência da cooperação
descentralizada do Sul para com os recursos do Norte. Em sua primeira
fase, as principais cidades coordenadoras de redes eram europeias, o que
fez com que os recursos da cooperação União Europeia-América Latina
acabassem retornando para a Europa. Os ajustes feitos nas fases seguintes
corrigiram algumas distorções. Apesar de ainda restarem algumas, de o
URB-AL estimular a competição entre as cidades e de formar redes “de
conveniência” em vez de relações duradouras e sustentáveis, é inegável a
importância desse programa. Graças a ele centenas de governos locais e
regionais puderam participar da cooperação descentralizada. É, sem som-
bra de dúvida, o principal programa de estímulo à cooperação descentra-
lizada da América Latina, embora os recursos sejam europeus.
Outro aspecto relevante diz respeito às assimetrias entre as cidades eu-
ropeias e latino-americanas, que são muito acentuadas na maioria dos ca-
sos. A premissa de que a cooperação descentralizada teria o potencial de
reduzir as assimetrias verificadas na cooperação bilateral entre países com
diferentes graus de desenvolvimento em virtude de suas dimensões é pouco
convincente, na medida em que tais assimetrias podem, em certos casos, ser
agravadas nessa escala, considerando-se as profundas diferenças de graus de
desenvolvimento e de capacidade técnica. Porém, mais do que isso, a ques-
tão é o grau de prioridade atribuído à cooperação descentralizada pelos go-
vernos nacionais e subnacionais europeus e latino-americanos.
As grandes cidades, estados e províncias latino-americanas, como São
Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Porto Alegre, Curitiba, Montevidéu
ou Bogotá, entre muitas outras, possuem orçamentos importantes e ex-
celência em diversas áreas da gestão pública, o que é reconhecido inter-
nacionalmente. Mas nenhuma delas possui, hoje, nada que se compare às
estruturas de ação internacional das cidades e regiões europeias. Quando

5
Sobre o programa URB-AL, ver <http://ec.europa.eu/europeaid/where/latin-america/
regional-cooperation/urbal/index_es.htm>.
308 Política externa brasileira

se comparam os diversos setores, é possível que os governos locais latino-


americanos apresentem melhor desempenho em muitos deles. Mas suas
áreas internacionais não acompanham sua pujança e estatura política. Tra-
ta-se, em geral, de áreas atrofiadas, descontinuadas por mudanças de go-
verno, pouco profissionais ou especializadas, pouco eficientes, carentes de
recursos próprios e dependentes de recursos externos, desprovidas de status
político nos próprios governos e com pouca interlocução com outras ins-
tâncias de governo e com o governo central.
Certamente há exceções no cenário latino-americano. Uma delas
é Montevidéu, que possui uma das áreas internacionais mais longevas e
consistentes entre as cidades latino-americanas. Ativa em diversas redes
internacionais, Montevidéu é referência obrigatória de cooperação descen-
tralizada na América Latina. A capital uruguaia é responsável também pela
Secretaria Técnica Permanente da Rede Mercocidades, uma rede interna-
cional de cidades do Mercosul que congrega mais de 200 cidades do sub-
continente e desenvolve atividades desde 1995.
A criação da Mercocidades foi um marco da ação internacional dos
governos locais latino-americanos. Cidades como Buenos Aires, Rio de Ja-
neiro, São Paulo, Assunção, Porto Alegre, Belo Horizonte, Rosário, entre
outras, se reuniram para reivindicar outro modelo para o Mercosul, mais
justo e inclusivo, que não se limitasse às relações comerciais e tomasse as
cidades como parceiras no processo. Reivindicavam um Mercosul e uma
integração regional mais profundos, política e culturalmente. A dinâmica
política prevalecia nas cúpulas da Mercocidades, mas a rede também prio-
rizou o intercâmbio de experiências, criando as unidades temáticas sobre
temas de interesse dos governos locais, como desenvolvimento social, pla-
nejamento, turismo, cultura, gênero, entre outras.
Com a guinada política na região e a eleição de presidentes progres-
sistas no início dos anos 2000, o Mercosul foi retomado como prioridade
e muitas das reivindicações da Mercocidades converteram-se em políti-
cas oficiais, como o Fórum Consultivo de Municípios, Estados Federados,
Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR), espaço de participação
direta dos governos locais e regionais na estrutura institucional do Merco-
sul. A constituição da Mercocidades e a criação do FCCR, no entanto, não
foram suficientes para provocar um maior envolvimento dos governos lo-
cais e regionais nos temas do Mercosul e na integração regional. No caso
das cidades brasileiras, a participação na Mercocidades vem se reduzindo
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 309

gradativamente. Alguns prefeitos brasileiros membros da rede revelam cer-


to cansaço com a dinâmica de funcionamento da rede e com o desgaste das
temáticas trabalhadas. Com poucos recursos, a rede depende da contribui-
ção de seus sócios para seu funcionamento. Grande parte de suas atividades
é financiada com recursos externos.
Já no âmbito latino-americano de fato, surgiu a Federação Lati-
no-Americana de Cidades, Municípios e Associações (Flacma), capítulo
latino-americano do CGLU, com sede em Quito. Criada em 1981, desem-
penhou inicialmente o papel de reunir as associações nacionais andinas e
caribenhas de municípios. Sua pouca penetração no Brasil e nos países do
Mercosul, sua estrutura burocrática, gerida por funcionários e não por re-
presentantes eleitos, fazem com que tenha pouca influência regional, espe-
cialmente no que diz respeito às cidades brasileiras. Em resumo:
• as cidades e regiões europeias dominam a cooperação descentralizada
porque dispõem de recursos e capacidade, porque priorizam o tema e
investem recursos próprios e porque seus governos nacionais as esti-
mulam a fazê-lo, criando mecanismos de apoio e financiamento e le-
gislação específica;
• a cooperação descentralizada na América Latina depende de recursos
externos, sobretudo europeus, para sobreviver;
• o nível de autonomia dos governos locais latino-americanos é, em ge-
ral, baixo;
• apesar disso, os governos locais e regionais da América Latina man-
têm relações de cooperação, em sua grande maioria como receptores
dessa cooperação;
• salvo no caso da Mercocidades, não há redes latino-americanas de ci-
dades que promovam a cooperação entre si;
• a única organização de âmbito latino-americano, a Flacma, tem pouca
representatividade no Cone Sul e no Brasil; e as associações nacionais
de municípios e governos locais que a compõem disputam espaços,
por não possuírem recursos próprios para a cooperação e todos de-
penderem das mesmas fontes de recursos internacionais;
• os poucos mecanismos regionais de financiamento da integração não
dispõem de nenhum espaço ou linha específica de financiamento das
ações dos governos subnacionais;
310 Política externa brasileira

• não há qualquer programa nacional ou regional, promovido por agên-


cias de cooperação internacional ou ministérios de relações exteriores,
que promova a cooperação internacional entre as cidades da América
Latina em uma base Sul-Sul, o que acaba reforçando a dependência
dos governos subnacionais de recursos externos.

A cooperação descentralizada no Brasil

Os primeiros registros de ações internacionais mais estruturadas por parte


de governos subnacionais brasileiros remontam aos anos 1980, mais preci-
samente a 1983, no governo de Leonel Brizola, no estado do Rio de Janei-
ro (Rodrigues, 2004). Mas foi nas décadas de 1990 e 2000 que os governos
locais brasileiros passaram a atuar de forma mais consistente no cenário in-
ternacional, constituindo assessorias especiais ou secretarias e planejando
estrategicamente suas ações.
Os primeiros casos a se tornarem mais conhecidos foram os de Por-
to Alegre e Curitiba. A política de participação democrática direta do Or-
çamento Participativo deu enorme projeção internacional ao governo da
cidade gaúcha, uma projeção que perdura até hoje, passados mais de 20
anos desde sua implementação, e apesar das eventuais descontinuidades e
mudanças introduzidas por administrações subsequentes. A realização das
primeiras edições do Fórum Social Mundial, a partir de 2001, fez da cida-
de uma referência internacional.
Já a cidade de Curitiba converteu-se em destino obrigatório de gover-
nantes locais e urbanistas interessados em conhecer seu planejamento ur-
bano e suas soluções nas áreas de mobilidade, transporte e meio ambiente.
Os sucessivos governos souberam tirar proveito desse legado e, tomando-o
por base, constituíram estruturas institucionais para seguirem alimentando
a reputação internacional da cidade. Apesar de sua credibilidade interna-
cional, os governos municipais da cidade aparentemente não demonstram
interesse em articulações internacionais de maior projeção política nos es-
paços e fóruns internacionais de cidades, embora Curitiba sempre se faça
presente nesses espaços. Talvez a opção pela presença discreta seja a tônica
de uma política autônoma e de longa duração.
Outras cidades conquistaram alguma projeção internacional ao lon-
go das últimas décadas, embora, na maioria das vezes, esta tenha ocorrido
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 311

quase sempre em virtude de ações pontuais, de curto prazo, e desconti-


nuadas. Não há como ignorar que os casos bem-sucedidos de política in-
ternacional envolvendo cidades estão diretamente relacionados a alguns
fatores que, conjugados, geram resultados relevantes, como o interesse po-
lítico do prefeito ou governador pelo tema; a contratação e o investimento
em equipes qualificadas, minimamente equipadas e com poder político na
estrutura de governo (orçamentos próprios, secretariado de nível, assesso-
res especializados); a elaboração de um plano de ação ou de planejamento
estratégico com definição de eixos, prioridades e ações; a integração com o
conjunto do governo e áreas-fim; a identificação com as principais marcas
do governo e uma gestão orientada para resultados.
Tais postulados, que a princípio podem parecer óbvios e necessários a
qualquer estrutura de gestão pública, são bastante complexos se levarmos
em conta que a maioria das prefeituras e dos governos estaduais brasileiros
ainda padece de enorme carência estrutural e muitas vezes enfrenta gran-
des dificuldades para manter um padrão mínimo de qualidade de serviços
essenciais para seus habitantes. A experiência concreta brasileira demonstra,
porém, que somente as cidades que dispõem de todos ou da maioria dos re-
quisitos mencionados obtiveram sucesso e lograram construir uma política
internacional de fato e, consequentemente, obter resultados expressivos.
É o caso de Santo André, município da Região Metropolitana de
São Paulo, durante as gestões do prefeito Celso Daniel (1997-2000/2002).
Engenheiro com perfil de urbanista, Celso Daniel era também professor
de administração pública da Fundação Getulio Vargas. Influenciado pelas
ideias de “urbanistas catalães” como Manuel Castells e Jordi Borja, e tam-
bém pelo geógrafo norte-americano David Harvey, entendia que a cidade
tinha um papel global, tanto no que dizia respeito a temas mundiais quanto
na troca de experiências e na absorção de tendências internacionais a fim
de buscar soluções para problemas urbanos. Em sua visão mais ampla da
cidade, o diálogo internacional tinha seu espaço natural na gestão do mu-
nicípio e da região do Grande ABC paulista.
A criação de uma Secretaria de Relações Internacionais foi, assim,
consequência de experimentos com um pequeno núcleo de assessoramento
internacional composto por profissionais especializados em temas urbanos
com experiência internacional, e não por internacionalistas. Por isso, o foco
da área internacional já estava dado desde o início. Aos poucos, uma verda-
deira política internacional floresceu e se ampliou, tornando o município
312 Política externa brasileira

uma importante referência na área, nacional e internacionalmente. Note-se


que os elementos necessários para a construção de uma política internacio-
nal consistente estavam quase todos presentes em Santo André (Bresciani,
Laczynski e Boulos, s.d.).
Em escala maior, cabe mencionar o caso de São Paulo durante a admi-
nistração da prefeita Marta Suplicy (2001-2004). A preocupação em projetar
a cidade internacionalmente, recuperando sua vocação de metrópole global e
cosmopolita, já se visualizava no discurso de posse da prefeita.6 A criação de
uma Secretaria de Relações Internacionais na estrutura político-administra-
tiva da maior cidade do país teve impacto importante não só em sua imagem
internacional, mas também no âmbito municipalista e da cooperação inter-
nacional. O governo municipal passou a ser um ator internacional em di-
versos espaços e com distintas atuações, tanto em agências internacionais
quanto em redes de cidades, estabelecendo contatos diretos com governos
estrangeiros e relacionando-se e valorizando as comunidades estrangeiras
da cidade. Passou também a se promover como referência urbana e inves-
tiu fortemente no turismo de negócios, realizando congressos e debates
sobre temas urbanos, como a Urbis — Feira e Congresso Internacional de
Cidades, atração de investimentos, entre outros.
O êxito obtido em muitas dessas ações gerou a curiosidade e o inte-
resse de outras cidades no tema internacional. Muitas prefeituras criaram
pequenas estruturas e assessorias a fim de tentar obter, em alguma medi-
da, os dividendos políticos, técnicos e financeiros propiciados por essa nova
modalidade de política municipal. Dado o tamanho e a pujança de uma
cidade como São Paulo, as ações internacionais se expandiram de forma
consistente em diversas frentes geográficas. O contexto político do perío-
do possibilitou uma intensa aproximação entre os prefeitos das principais
cidades do Mercosul, como Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Rosário,
Porto Alegre, entre outras, que, reunidas na rede Mercocidades, garantiram
maior projeção à organização.
Tendo como base a articulação regional e um alto nível de confia-
bilidade entre os mandatários locais mercosulinos, São Paulo deu início
a uma importante articulação internacional para garantir sua candidatura
no processo de criação da Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU),

6
Ver a íntegra do discurso de posse da prefeita em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
cotidiano/ult95u18164.shtml>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 313

que viria a ser a maior organização internacional de cidades, como já vi-


mos. A candidatura de São Paulo para compor a troica — chapa formada
por três prefeitos para assumirem a primeira presidência da CGLU, alter-
nadamente, em seus três primeiros anos — resultou de um longo processo
de aproximação e negociação com as diversas associações nacionais de mu-
nicípios da América Latina, o que possibilitou uma candidatura unificada
latino-americana e, consequentemente, maior poder de barganha para que
São Paulo fosse a candidata da região. A conclusão desse longo e intenso
processo foi a formação de uma chapa altamente competitiva, formada por
prefeitos de três cidades de importância global. Nenhuma outra chapa se
apresentou. A troica São Paulo-Paris-Pretória, representando os continen-
tes americano, europeu e africano, foi eleita por aclamação no congresso de
criação da CGLU, em 2004, em Paris.
Todo o investimento feito pela Prefeitura de São Paulo em políti-
ca internacional ao longo de quatro anos gerou tanto dividendos políticos
quanto resultados concretos para a cidade, através de acordos de coopera-
ção técnica e financeira e de projetos com financiamento estrangeiro. Tam-
bém serviu como elemento motivador para que outras cidades brasileiras
fizessem seus próprios movimentos internacionais. Como forma de esti-
mular ainda mais esse processo, São Paulo se reunia com frequência com
outras cidades da região metropolitana a fim de compartilhar informações
e estratégias comuns, iniciativa que poderia ter se constituído em um em-
brião de articulação metropolitana internacional.
Por sua projeção, resultados, estruturação, influência nacional, regio-
nal e internacional, a Secretaria de Relações Internacionais de São Pau-
lo tornou-se um paradigma entre as experiências de cidades brasileiras
na área internacional não repetido até o presente. Desde então, embora a
maioria das capitais brasileiras mantenha em suas estruturas assessorias ou
secretarias de relações internacionais, nenhuma delas aproveitou o impul-
so propiciado por São Paulo, nem se apresentou como possível herdeira do
“espólio” deixado pela capital paulistana.
O panorama atual da cooperação descentralizada brasileira poderia
ser definido como “em transformação”. Após um período de proliferação
de assessorias de relações internacionais nas prefeituras brasileiras para a
gestão dessa área, em grande medida em resposta às novidades que se apre-
sentavam — como a criação da Mercocidades e da CGLU e as redes inter-
nacionais, o programa URB-AL, as conferências e prêmios internacionais
314 Política externa brasileira

para prefeitos e para boas práticas —, percebe-se hoje que, passada a fase
de novidade da cooperação descentralizada, o tema perdeu espaço consi-
derável na agenda política dos governos locais brasileiros, sobretudo na
dos prefeitos. Por outro lado, a experiência acumulada, apesar de pequena,
garantiu a criação de uma pequena burocracia de gestores locais especiali-
zados, que fazem com que os temas internacionais sejam conduzidos com
maior profissionalismo e, assim, conquistem pouco a pouco seu espaço na
agenda municipal brasileira.
Outro elemento para a preservação da cooperação descentralizada na
agenda dos governos locais tem sido o papel desempenhado pelas três as-
sociações municipalistas de âmbito nacional: a Frente Nacional dos Prefei-
tos (FNP), a Confederação Nacional de Municípios (CNM) e a Associação
Brasileira de Municípios (ABM). Atuando como órgãos de representação
política, fóruns de debate e troca de experiências, mas também como presta-
doras de serviços, as associações descobriram na cooperação descentralizada
um filão a ser explorado e se colocam como incentivadoras e facilitadoras
da ação internacional dos municípios brasileiros. O papel das associações é
fortalecido pela burocracia especializada internacional das prefeituras, que,
juntas, conseguem obter maior espaço e alcance no cenário político nacio-
nal, compensando a relativa apatia dos prefeitos, e buscando envolvê-los
pontualmente, na medida em que o tema assim exija.
É o caso da iniciativa conduzida pela FNP para criar uma plataforma
de cooperação entre prefeituras brasileiras e haitianas, inserindo os gover-
nos locais brasileiros no esforço de reconstrução do país caribenho. Ou ain-
da o Projeto de Fortalecimento de Capacidades para o Desenvolvimento
Humano Local, uma parceria entre a CNM e o Pnud para a capacitação de
gestores locais sobre os objetivos do milênio. Nos dois casos, a iniciativa
de ação ou projeto parte da associação, mas tendo o município como par-
ceiro. Este, por sua vez, para implementá-la, precisa de servidores mini-
mamente especializados (embora uma ação no Haiti requeira muito mais
de um município do que a participação em um curso de capacitação).7
Outro resultado desse esforço de articulação foi a criação do Fórum
de Secretários e Gestores Municipais de Relações Internacionais (Fonari),

7
Para mais informações sobre a FNP, ver o site <http://www.fnp.org.br/>; no caso do projeto
da CNM em parceria com o Pnud, ver <http://cdhl.cnm.org.br/>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 315

em 2009. Com estatuto e organograma estabelecidos, o fórum pretende dar


voz e fortalecer a agenda internacional das cidades brasileiras, além de esta-
belecer prioridades de ação e articulação política entre as esferas de gover-
no, como os ministérios federais e agências internacionais. O Fonari segue
a lógica de espaço de articulação e pressão política (advocacy) de inúmeros
fóruns de governos locais e estaduais, cujo dinamismo depende do nível de
comprometimento de seus membros e das possibilidades concretas de cons-
trução coletiva de agendas comuns, em um ambiente no qual as cidades ain-
da são encorajadas a competir entre si e a agir isoladamente.
Além do estímulo à ação internacional dos governos locais, as asso-
ciações têm o papel de mobilizar informações sobre o tema. Um estudo
realizado pela CNM fez um diagnóstico aproximado do envolvimento
dos municípios brasileiros em ações internacionais. De acordo com o le-
vantamento, realizado com a totalidade dos municípios segundo informou
a própria entidade, dos 5.568 municípios, cerca de 100 teriam alguma
ação internacional iniciada e apenas 30 possuiriam em suas administra-
ções áreas internacionais minimamente estruturadas.8
Os números apresentados no estudo não possibilitam, por si só, uma
análise conclusiva sobre o engajamento dos municípios brasileiros na coo-
peração descentralizada. Em muitas administrações locais, o tema é con-
duzido por estruturas que não recebem o nome “internacional”, mas que
desenvolvem projetos com esse caráter, como secretarias de desenvolvimen-
to econômico, planejamento, cultura, turismo. No entanto, a experiência de-
monstra que a necessidade de se constituir uma política internacional mais
consistente a partir do governo local prescinde de uma estrutura mínima
de coordenação e gestão. Por esse prisma, os números revelam um baixo
interesse dos municípios brasileiros pela agenda internacional, mesmo se
considerarmos um universo mais restrito de municípios, como aqueles com
população superior a 50 ou 100 mil habitantes (totalizando 524 e 225 mu-
nicípios, respectivamente). Novos estudos, qualitativos e quantitativos, de-
veriam ser feitos no intuito de se buscar um quadro preciso e realista da
cooperação descentralizada brasileira.

8
Consultar o site da CNM: <http://www.cnm.org.br/institucional/biblioteca.asp?iIdGrupo
=11686>.
316 Política externa brasileira

A ação internacional dos estados e conflitos federativos


internacionais

Se as informações acerca da ação internacional dos municípios brasileiros


são ainda pouco claras e insuficientes, no que diz respeito aos estados o
quadro é ainda mais desanimador. Nenhuma entidade, órgão público, pri-
vado ou internacional, jamais se dispôs a realizar qualquer levantamento a
respeito do tema. Segundo informações não oficiais da Assessoria Especial
de Assuntos Federativos e Parlamentares do Ministério das Relações Ex-
teriores (Afepa),9 a quase totalidade dos governos estaduais possui algum
órgão ou funcionário responsável pelos temas internacionais.
De modo geral, as ações internacionais dos estados brasileiros se re-
lacionam com temas de desenvolvimento econômico e atração de investi-
mentos nas mais diversas áreas. Com mais recursos e maior capacidade de
endividamento, os estados voltam suas ações para a captação de recursos
em agências internacionais, como o BID e o Banco Mundial, entre outras,
a fim de financiar grandes obras de infraestrutura e grandes projetos. Não
raro empreendem ações vinculadas às áreas de comércio e indústria, em
parceria com as federações de indústria e comércio.
Embora também desenvolvam ações de cooperação internacional e
atuem em outras áreas além da de relações econômicas, como cultura, tu-
rismo etc., na maioria dos casos o empenho internacional dos governado-
res concentra-se em temas cujo retorno financeiro seja direto e palpável,
quer na atração de investimentos, na captação internacional, quer na pro-
moção turística ou comercial de sua região.
Mais recentemente, alguns estados brasileiros — como São Paulo,
Rio de Janeiro, Ceará, Amazonas, Minas Gerais — montaram estrutu-
ras de gestão, para tratar de suas relações internacionais, bastante especia-
lizadas e com certa continuidade, independentemente das mudanças de

9
No âmbito dos assuntos federativos, compete à Afepa promover a articulação entre o MRE,
os governos estaduais e municipais, e as assembleias estaduais e municipais, com o obje-
tivo de assessorá-los em suas iniciativas externas, atendendo às consultas formuladas. Em
sua interlocução com os estados e municípios, a Afepa é auxiliada pelos escritórios de re-
presentação do Itamaraty, localizados em diversos estados brasileiros, aos quais compete
coordenar e apoiar, junto às autoridades locais das respectivas jurisdições, as ações desenvol-
vidas pelo MRE. Para mais detalhes, ver o site do Itamaraty: <http://en.mre.gov.br/index.
php?option=com_content&task=view&id=389&Itemid=1273>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 317

governos. Outros, como o Paraná, apesar de não disporem de áreas espe-


cíficas e centralizadas, desenvolvem diversas ações bem-sucedidas, como
missões comerciais, acordos e parcerias internacionais, sobretudo com go-
vernos regionais e países do Cone Sul.
Com ou sem assessorias internacionais especializadas, o peso político
e a capacidade de realização dos estados exigem um tipo de relação mais
cuidadosa com o governo federal, a fim de evitar situações que possam ser
chamadas de “conflito internacional federativo”, o que ocorre quando um
conflito federativo extrapola as fronteiras expondo internacionalmente a
divergência entre um estado federado e a União.
Em 2004, em razão de divergências sobre o plantio de soja transgê-
nica no Paraná, o então governador Roberto Requião declarou o estado
“território livre de transgênicos”, impossibilitando a produção e a comer-
cialização desse tipo de soja no solo paranaense, impedindo as exportações
pelo porto de Paranaguá e deslocando forças policiais para identificar plan-
tações transgênicas. Um de seus argumentos foi o respeito ao Protocolo de
Cartagena, que regulamenta o uso da biodiversidade e da biossegurança
de organismos geneticamente modificados entre os países. O protocolo foi
lançado no Rio de Janeiro durante a Eco-92 e faz parte da Convenção so-
bre Diversidade Biológica. O caso foi parar na justiça e a União saiu vence-
dora. No entanto, a repercussão foi internacional, expondo as dificuldades
da falta de articulação federativa.
Outro caso recente envolvendo posições conflitantes entre governo
federal e estados com repercussões nacionais e internacionais ocorreu em
razão da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP-15,
em 2009. Os estados da Amazônia Legal brasileira, interessados nos deba-
tes sobre os mecanismos e o financiamento do REDD (redução de emis-
sões por desmatamento e degradação florestal), pressionaram o governo
federal para que assumisse posição mais contundente sobre o assunto em
Copenhague. Tanto o governo federal quanto os governos estaduais esta-
vam convictos da necessidade de se chegar à conferência com uma posição
de consenso; do contrário, os prejuízos políticos e a exposição internacio-
nal negativa seriam consideráveis para todos. A solução encontrada foi
a criação de uma força-tarefa, derivada do Fórum de Governadores da
Amazônia Legal, constituída por técnicos e especialistas indicados pelo
governo federal e pelos estados da Amazônia. Após dois meses de traba-
lho, reuniões e negociações, a força-tarefa elaborou um relatório, que, em
318 Política externa brasileira

certa medida, alterou a posição original do governo federal sobre o REDD,


mas alinhavou um consenso. Em Copenhague, todos defenderam a mes-
ma posição brasileira e o REDD+ foi um dos assuntos mais discutidos
durante a conferência. Apesar do conhecido fracasso das negociações da
COP-15, o texto final menciona expressamente o REDD+, como deseja-
vam os governadores amazônicos brasileiros na Carta de Macapá.10
Os dois casos, com desfechos distintos, evidenciam a necessidade de
continuar aprofundando o diálogo federativo. Nos últimos anos, o governo
federal vem atuando de forma decisiva na articulação federativa, por meio
da Secretaria de Relações Institucionais e da Subchefia de Assuntos Fede-
rativos, vinculadas à Presidência da República, criando canais permanentes
de diálogo e consulta. Contudo, a relação federativa, no que se refere aos
temas da política externa ou mesmo da ação internacional dos governos
subnacionais, é ainda bastante tímida, apesar de haver alguns sinais de mu-
dança, como veremos em seguida.

A cooperação descentralizada e o governo federal

Se tomássemos como referência o reconhecimento federal da cooperação


descentralizada, seja no âmbito normativo, seja na existência de espaços e
mecanismos para sua promoção no Poder Executivo, poder-se-ia deduzir
que a ação dos governos subnacionais brasileiros é um fato menor, pouco
compreendido, praticamente indesejado e, em última instância, ilegal. Tal
constatação parte de uma observação objetiva. Atualmente não há qualquer
lei, norma ou regulamento no ordenamento jurídico brasileiro que preveja
a ação internacional dos governos subnacionais do país. A abordagem jurí-
dica, inclusive, é frequentemente usada para desqualificar a cooperação des-
centralizada, não raro sendo utilizado o argumento da não validade formal
dos acordos internacionais assinados por estados e municípios. Mas como

10
“Empreender, sob a liderança do presidente Lula, esforços para a inclusão do REDD na
15a Conferência do Clima (COP-15) da ONU, contemplando as florestas tropicais com me-
canismos de mercado compensatórios e não compensatórios por desmatamento evitado, em
especial como parcela das obrigações adicionais dos países ricos, reafirmando a posição bra-
sileira em Copenhague, nos termos do Relatório da Força-Tarefa. Tais recursos são cruciais
para o financiamento de investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia, capacitação
e apoio à produção, necessários à transição do atual modelo econômico para uma [posição]
socioeconômica sustentável, de baixo carbono e alto conteúdo tecnológico.”
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 319

negar um fato? Sem personalidade jurídica de direito internacional e sem


competência para manter acordos internacionais (art. 21 da Constituição
Federal), como agem na esfera internacional os governos subnacionais?
A outra face dessa moeda é a quase total ausência de instrumentos
de promoção, apoio ou articulação das ações internacionais dos gover-
nos subnacionais com a ação internacional federal, seja ela conduzida pelo
Ministério das Relações Exteriores ou por outro ministério ou órgão da
administração direta ou indireta federal. Sem legislação que a preveja ou
reconheça, sem mecanismos de fomento ou articulação com a política ex-
terna, a cooperação descentralizada carece de espaços no âmbito federal.
A Assessoria Especial de Assuntos Federativos e Parlamentares (Afe-
pa), ligada ao gabinete do ministro das Relações Exteriores, assessora pre-
feitos e governadores em missões ao exterior, um apoio elogiado e bastante
apreciado pelo conjunto dos governos locais e estaduais. A Afepa, contudo,
não desempenha funções políticas nem de estímulo à cooperação descen-
tralizada, apenas responde às demandas em geral por apoio logístico, ad-
vindas dos governos subnacionais e de governadores e prefeitos em viagens
internacionais. Diante da crescente demanda desses governos junto à Afe-
pa, essa postura reativa vem mudando lentamente.
Entendemos que a cooperação descentralizada deveria receber algum
tipo de tratamento, no governo federal, por parte da Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), órgão executor da cooperação técnica internacional.
Em um passado recente, a ABC dispunha de uma assessoria específica
para a cooperação federativa (uma funcionária), mas tal área foi extinta.
A atual política externa brasileira provocou mudanças profundas na
forma de relacionamento do país com seus pares, priorizando as relações
Sul-Sul e requalificando as relações Norte-Sul. Ao mesmo tempo, o pro-
cesso de crescimento econômico e social pelo qual o país vem passando e
sua nova posição entre os países com índice de desenvolvimento humano
(IDH) elevado11 fizeram com que, em pouco tempo, o país mudasse sua
vocação de “receptor” para “prestador” de cooperação.

11
Segundo o Relatório do desenvolvimento humano 2007/2008, do Pnud, o Brasil entrou pela
primeira vez no grupo de países com elevado desenvolvimento humano, com um índice de
0,800 em 2005. Em 2006, obteve uma melhora no índice de 0,007, chegando a uma pon-
tuação de 0,807. Em 2009, o país se encontra na 75a colocação mundial, com um índice de
0,813, valor considerado alto desenvolvimento humano.
320 Política externa brasileira

Esse fenômeno obrigou a ABC a empreender uma profunda refor-


mulação, que ainda está em curso. A cooperação internacional, tradicio-
nalmente pouco valorizada na carreira diplomática, vai lentamente ga-
nhando mais espaço, na medida em que passa a ser identificada como
ação complementar aos novos movimentos internacionais do Brasil. Essa
mudança de posição também implicou um maior aporte de recursos e au-
mento de pessoal; e seus efeitos podem ser sentidos nos excelentes resul-
tados obtidos em pouquíssimo tempo.
O crescimento da ABC foi acompanhado da ampliação de seu leque
de parcerias e alianças com setores da administração direta e indireta federal,
bem como com autarquias e organizações da indústria e comércio e da so-
ciedade civil, nas áreas em que o país adquiriu excelência. A Embrapa, o Se-
brae, o Sistema S, a Caixa Econômica, universidades federais, entre outros,
passaram a realizar atividades de cooperação internacional, tendo a ABC
como facilitadora dos processos e financiadora de missões e projetos.
Entretanto, essa ampliação de alianças e parcerias não envolveu os
governos subnacionais brasileiros, que continuam sem espaço para realizar
seus projetos e ainda têm pouca interlocução com o órgão. Hoje, o rela-
cionamento entre a ABC e os governos subnacionais é pontual. Caso al-
gum estado ou município deseje prestar cooperação em algum país no qual
a ABC já execute projetos e ações, esta poderá eventualmente financiar os
custos das missões. Trata-se de um avanço, mas insuficiente. Com o au-
mento das ações internacionais dos governos subnacionais, a ABC se verá
obrigada a responder às demandas, sejam elas de apoio financeiro, logísti-
co, de informação ou de simples reconhecimento oficial. Como não pos-
sui estrutura específica para isso, e como o volume de demandas dos países
com os quais o Brasil já coopera é crescente, a cooperação descentralizada
seguirá sendo colocada em último plano.
A conclusão a que chegamos é de que, enquanto não houver uma po-
lítica constituída na ABC que reconheça, valorize e potencialize as ações
internacionais dos governos subnacionais, a cooperação descentralizada se-
guirá à margem, sendo vista como inconveniente e indesejável, e tratada
como ilegal. Isso nada tem de trivial. O reconhecimento e o tratamento
especial que se deseja para a cooperação descentralizada exigiriam o reco-
nhecimento por parte da cúpula do Ministério das Relações Exteriores, o
que nunca foi expresso nem negado. Alguns ainda não escondem sua des-
confiança com relação à ação internacional federativa. Por outro lado, as
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 321

ações concretas do ministério em direção à cooperação descentralizada nos


últimos anos tampouco evidenciam uma postura favorável.
O mito da fragmentação do território e da soberania nacional, e a pul-
verização das ações e dos recursos internacionais, acompanhados da ima-
gem, em muitos casos correta, da incapacidade de os atores subnacionais
conduzirem ações internacionais, redundam em uma postura cética, pou-
co interessada e muitas vezes indiferente para com a cooperação descen-
tralizada. A dependência de recursos externos para o desenvolvimento de
ações também gera desconfiança. Os governos locais e estaduais estariam,
em tese, sujeitos ao assédio de interesses internacionais os mais diversos em
troca de parcos recursos.
Mas se em vez de ser considerada uma ameaça de fragmentação do
território e da soberania nacional, a cooperação descentralizada fosse vis-
ta como uma oportunidade de ampliação de alianças e de fortalecimento
da própria ação externa brasileira? Se a constatação da incapacidade téc-
nica de alguns governos municipais e estaduais servisse de estímulo para
sua capacitação e uma melhor orientação de suas ações internacionais, ou
de sua elaboração de projetos? Se, em vez da posição de marginalidade que
ocupam hoje, os governos subnacionais fossem chamados a aprender mais
sobre a política externa brasileira, como parceiros no diálogo e na ação con-
junta, servindo como elemento de democratização dessa política? Se, em
vez da perpetuação da dependência de recursos externos (cada vez mais
escassos), as ações internacionais dos governos subnacionais fossem finan-
ciadas, em um primeiro momento da consolidação da cooperação descen-
tralizada brasileira, por recursos federais, através de editais e chamadas de
projetos que estimulassem e multiplicassem a cooperação Sul-Sul, a inte-
gração sul-americana, o aprofundamento do Mercosul, a relação entre ci-
dades brasileiras e africanas, haitianas ou indianas?
Para que isso ocorra, é necessário que os envolvidos estejam dispos-
tos a deixar suas posições de conforto. O desejo de exercer maior parti-
cipação e dar melhor tratamento a suas ações internacionais obrigará os
atores subnacionais a se organizarem melhor, a fim de orientar correta-
mente suas demandas nos espaços de decisão, como o Ministério das Re-
lações Exteriores, o governo federal e o Congresso Nacional. Além disso,
faz-se necessário, fundamentalmente, que os próprios prefeitos e gover-
nadores assumam o desafio e se interessem politicamente pelo tema, atri-
buindo-lhe alguma prioridade em suas agendas políticas.
322 Política externa brasileira

Para o governo federal, é imprescindível abandonar preconceitos e


identificar com clareza o potencial estratégico da cooperação descentrali-
zada, a fim de construir políticas consistentes e permanentes, que visem a
apoiá-la. Bem-informados, capacitados e preparados, os governos locais e
estaduais têm condições excelentes de fortalecer a cooperação internacional
brasileira, proporcionando aos parceiros internacionais oportunidades de
cooperação em áreas em que atingiram excelência e reconhecimento, como
planejamento urbano, democracia participativa, gestão ambiental (resíduos
sólidos, saneamento), desenvolvimento econômico, entre tantas outras.
Finalmente, se realmente quiserem proporcionar uma mudança qua-
litativa em sua atual posição, os governos subnacionais brasileiros terão que
iniciar um movimento coletivo de articulação nacional, com vistas a darem
visibilidade ao que já realizam e aos resultados obtidos, mostrando que sua
ação internacional tem potencial de complementaridade com a política ex-
terna, e também visando a mudanças estruturais; criação de mecanismos
permanentes de diálogo, informação, orientação, capacitação e obtenção de
recursos; além do reconhecimento legal de sua ação internacional — o que
muitos chamam de marco legal da cooperação descentralizada. Do con-
trário, dificilmente esse quadro se alterará, e municípios e estados seguirão
desenvolvendo suas ações internacionais, mas de forma individual e pulve-
rizada e à margem do sistema nacional.

Diálogo federativo e cooperação internacional

Uma vez constatada a ausência de um espaço formal e legal para a coope-


ração descentralizada na estrutura do governo federal, em 2003 foi criada
uma assessoria internacional no âmbito da Subchefia de Assuntos Fede-
rativos (SAF), então unidade componente da Casa Civil da Presidência
da República — mais tarde destacada para a Secretaria de Relações Ins-
titucionais —, cuja principal responsabilidade era garantir a melhoria do
diálogo federativo, ou seja, fazer com que União, estados e municípios dia-
logassem mais e funcionassem melhor, em benefício de todos.
Ciente dos movimentos internacionais dos entes federados brasileiros
e de sua importância estratégica, a Assessoria Internacional da SAF trans-
formou-se no único espaço, no governo federal, a responder pela coopera-
ção descentralizada e a tratá-la como política de Estado. Servindo como
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 323

ponto de informação e referência para os governos subnacionais que con-


duziam ações internacionais ou tinham interesse em fazê-lo, a SAF assumiu
a agenda da cooperação descentralizada a partir de dois princípios comple-
mentares: estabelecer pontes entre a cooperação descentralizada e a políti-
ca externa do governo federal e, ao mesmo tempo, garantir a autonomia de
sua agenda internacional. Ainda uma terceira linha de ação da SAF Inter-
nacional visava à ampliação da base de atores envolvidos, para que mais
municípios e estados se lançassem em ações de cooperação internacional.
Para tanto, era necessário romper com o círculo vicioso gerador de con-
centração de informações e recursos internacionais em uns poucos go-
vernos. A forma encontrada, e que constituiu a principal linha de ação da
SAF, foi a busca da institucionalização da cooperação internacional dos
governos subnacionais.
Concretamente, isso significou criar mecanismos de participação e
acesso à cooperação internacional, sobretudo nos temas prioritários da po-
lítica externa, porque entendia-se que a participação de novos atores na
política externa produziria o efeito de potencializar e oxigenar os temas, e
não de dirigir ou instrumentalizar a ação internacional dos governos locais
a favor dos temas de interesse da União.
A criação do Fórum Consultivo de Municípios, Estados Federados,
Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR), em 2004, e sua pos-
terior instalação em 2007, contou com o empenho direto da SAF nas ne-
gociações com o Itamaraty e com os países-membros do bloco. Refletia
perfeitamente a ideia de aumentar a participação dos governos subnacio-
nais do Brasil e dos países do Mercosul nas esferas formais de decisão do
bloco. Também apontava no sentido de levar a esses governos a agenda da
integração regional e, ao mesmo tempo, trazê-los para se somarem ao es-
forço da construção da unidade sul-americana, tão carente de participação
social e cidadã.
A criação do FCCR não inaugurou a ação dos governos locais e re-
gionais no âmbito do Mercosul. Pelo contrário, apenas ajudou a materiali-
zar uma antiga demanda dos governos locais, sobretudo os integrantes da
Mercocidades, por um espaço formal nas esferas de decisão do Mercosul.
A SAF também aproveitou as celebrações do Ano do Brasil na França
para dinamizar as relações entre governos subnacionais brasileiros e france-
ses. A ideia de ampliar os benefícios da cooperação internacional a um uni-
verso maior de governos subnacionais se repetiu. Durante as preparações
324 Política externa brasileira

do encontro da cooperação descentralizada franco-brasileira, realizado em


Marselha, em 2006, constatou-se a grande concentração de projetos nas re-
giões Sul e Sudeste do Brasil. Também se verificou a existência de muitos
projetos de governos subnacionais franceses e brasileiros e a possibilidade
de apoiá-los e lhes dar maior visibilidade.
Desde 2006, foram realizados três encontros da cooperação descen-
tralizada franco-brasileira: Marselha, Belo Horizonte e Lyon. O quarto
encontro terá lugar em Fortaleza em 2011. Esses encontros serviram como
espaços de discussão de temas e projetos em andamento. Porém, para além
da ação concreta, os encontros possibilitam um processo de construção po-
lítica coletiva, reforçando mecanismos que garantem a continuidade das
relações no tempo — “calcanhar de Aquiles” de muitos projetos de coope-
ração descentralizada — e conquistas que beneficiem a todos. Prova dis-
so foi a assinatura do protocolo adicional ao acordo-quadro de cooperação
entre o governo da República Federativa do Brasil e o governo da Fran-
ça sobre a cooperação descentralizada em 2008,12 inspirado em protocolo
idêntico assinado entre Brasil e Itália — este fruto de um projeto de coo-
peração envolvendo regiões e cidades dos dois países —, e que atualmente
tramita no Congresso Nacional para aprovação.
Os dois protocolos, uma vez aprovados pelo Congresso e sancionados
pelo presidente da República, constituirão a primeira base legal da coope-
ração descentralizada no Brasil. Trata-se de um avanço considerável, mas,
novamente, insuficiente. O que realmente significam na prática? Que os
governos locais e estaduais brasileiros estão autorizados a cooperar exclu-
sivamente com coletividades desses dois países? Por que então não assina-
mos algo semelhante com a Argentina, nossa vizinha, e que já possui lei
constitucional que garante a ação internacional de seus entes federados?13
Ou ainda com todos os países do Mercosul, a fim de contribuir para o
aprofundamento social e cidadão do bloco? Finalmente, por que não se
propor uma Lei da Cooperação Descentralizada?

12
O documento pode ser acessado no site do MRE, Divisão de Atos Internacionais: <http://
www2.mre.gov.br/dai/b_fran_185.htm>.
13
Ver Constitución de la Nación Argentina, art. 124: “Las provincias podrán crear regiones
para el desarrollo económico y social y establecer órganos con facultades para el cumplimien-
to de sus fines y podrán también celebrar convenios internacionales en tanto no sean incompati-
bles con la política exterior de la Nación y no afecten las facultades delegadas al Gobierno federal o el
crédito público de la Nación; con conocimiento del Congreso Nacional. La ciudad de Buenos
Aires tendrá el régimen que se establezca a tal efecto”.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 325

O fato concreto é que os dois protocolos foram assinados, em grande


medida, por interesse dos dois países. Apesar dos avanços recentes, a coo-
peração descentralizada no Brasil ainda figura como polo passivo da coope-
ração. Apenas o envolvimento direto dos entes federados poderá alterar essa
situação.

Considerações finais

A cooperação descentralizada no Brasil vive uma contradição curiosa. Por


um lado, nunca o país esteve tão em evidência quanto nos dias de hoje.
Como costuma se dizer, o Brasil virou a bola da vez na cena internacional.
Está na moda. Como consequência, nunca se discutiu tanto assuntos in-
ternacionais como hoje. A política externa passou a ser tema de debate e
interesse popular; está nas ruas, nos bares, na TV e nos jornais, com maior
volume de informações e maior frequência.
Esse fenômeno, potencializado pela internet e pelos meios de comuni-
cação, traz consigo um efeito de transbordamento da agenda internacional
para os diversos setores da sociedade brasileira. As ações do governo federal
e os resultados de uma política externa ousada, que abre novos mercados, ex-
pande o comércio, amplia seus parceiros e promove mais cooperação, fazem
com que o interesse internacional pelo Brasil, de um modo geral, transbor-
de para outros setores sociais, exigindo desses maior preparação e disposição
para enfrentar os desafios e as responsabilidades desse novo papel.
Apesar dessa nova realidade, observa-se que os governos subnacionais
brasileiros não têm aproveitado ou mesmo interagido com essa conjuntu-
ra. Pelo contrário, em alguns casos nota-se uma certa timidez em alguns
governos, como os das grandes cidades, capitais e estados, no que diz res-
peito a se prepararem para aproveitar as oportunidades que surgem nesse
contexto. Alguns retrocessos podem ser notados no âmbito da cooperação
descentralizada no Brasil, como o interesse reduzido de algumas cidades
importantes ou capitais pela ação internacional, as mesmas que outrora ti-
nham grande protagonismo internacional. Ou ainda a desativação de es-
truturas internacionais, no caso de alguns governos estaduais, ou mesmo
mostras de total desinteresse, no caso de outros.
Formulamos algumas hipóteses para tentar explicar esse paradoxo.
Primeiro, a cooperação descentralizada no Brasil está profundamente as-
sociada à ideia de captação de recursos internacionais. Não é por acaso que
326 Política externa brasileira

diversos municípios e estados criam secretarias ou assessorias de “relações


internacionais e captação de recursos”. Para muitos prefeitos e governado-
res, uma política internacional bem-sucedida se expressa em números, no
volume de recursos captados, no número de projetos aprovados, no mon-
tante dos investimentos atraídos. No mesmo sentido, essa política deve ge-
rar resultados de curto prazo, se possível imediatos.
Essa visão, bastante arraigada no imaginário dos governos locais bra-
sileiros, comprova o que já dissemos sobre a mentalidade de receptor de
cooperação, dependente de recursos externos e polo passivo da cooperação.
A ação internacional não é pautada por uma lógica proativa (como posso
me preparar para aproveitar da melhor forma essa cooperação em benefício
mútuo?), mas pela passividade (o que posso ganhar com essa cooperação?
O que me darão?).
Some-se a isso a redução dos recursos externos para cooperação inter-
nacional no Brasil e a perda de interesse pela cooperação descentralizada.
Curiosamente, apesar de os recursos internacionais terem minguado, o vo-
lume de recursos disponibilizados pelo governo federal, através dos diversos
programas dos ministérios e do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), para municípios e estados aumentou vertiginosamente. Hoje, é cla-
ramente mais vantajoso para um prefeito ou governador brasileiro captar
recursos em Brasília do que em qualquer outro lugar do mundo.
Segundo, nota-se que a cooperação descentralizada no Brasil chegou
a um certo limite no que diz respeito ao desenvolvimento das atividades
internacionais pelos governos locais. Sem qualquer normativa que garanta
juridicamente suas ações internacionais, prefeitos e governadores se veem
invariavelmente às voltas com questões legais e administrativas que cer-
ceiam, quando não ameaçam, suas iniciativas. Além disso, a falta de meca-
nismos que apoiem e estimulem a ação internacional dificulta seu avanço
e cria a sensação de que tais ações não têm utilidade ou não são bem vistas
pelo governo federal.
Terceiro, o não reconhecimento da cooperação descentralizada pelo
Estado brasileiro, em particular pelo Ministério das Relações Exteriores,
cria um ambiente de desconfiança e constrangimento sobre tal coopera-
ção, como se esta fosse apenas tolerada, mas nunca desejada. Mesmo em
situações em que há complementaridade entre as iniciativas do governo
federal e dos estados e municípios, como na cooperação franco-brasileira,
ou nas cúpulas do Mercosul, a presença de prefeitos e governadores parece
indesejada, intrusiva.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 327

A cooperação internacional federativa: um novo conceito


para uma nova ação
A ajuda internacional é uma das armas mais eficazes na guerra
contra a pobreza. Hoje, essa arma está subutilizada, orientada
de modo ineficiente e a precisar de reparação. Reformar o sistema
de ajuda internacional é uma necessidade fundamental [...]
[Pnud, 2005].

Acreditamos, como muitos, que a cooperação internacional, nos moldes


tradicionais em que se desenvolveu, está em crise. Em todo o mundo, espe-
cialistas discutem uma forma de atualizá-la e recuperar sua importância, de
torná-la mais eficiente, mais horizontal, menos dispendiosa. No entanto, a
crise da cooperação internacional não se restringe apenas a seus elementos
técnicos, metodológicos ou de financiamento, estende-se também, e prin-
cipalmente, a suas premissas políticas, baseadas em uma governança global
obsoleta, ineficiente e injusta.
A cooperação descentralizada, tal como a conhecemos, segue em gran-
de medida as mesmas premissas da cooperação internacional tradicional. A
criação de novas orientações que levem a sua superação dependerá dos es-
forços tanto dos entes federativos quanto do governo federal, a fim de se
constituir uma verdadeira política de Estado, consistente e de longo prazo.
O conceito de cooperação internacional federativa propõe uma me-
lhor articulação entre os três níveis da Federação — União, estados e muni-
cípios — sobre a política externa e a ação internacional dos entes federados,
a fim de se buscar complementaridades e, ao mesmo tempo, garantir a au-
tonomia e a independência das agendas. Para tanto, propomos a constru-
ção de uma verdadeira política de Estado que possa fortalecer a Federação
brasileira, ao invés de fragilizá-la, uma política baseada em três eixos:
• financiamento: as ações internacionais dos governos subnacionais se-
riam financiadas pelo governo federal ou pelos próprios governos, na
forma de contrapartida ou com recursos orçamentários próprios. Isso
poderia ser feito por meio de editais e chamadas de projetos, como já
ocorre em outros países, e reduziria drasticamente a dependência de
recursos externos, bem como estimularia os governos locais a consti-
tuír equipes profissionais, a fim de captar esses recursos e desenvolve-
rem projetos;
328 Política externa brasileira

• capacitação e informação: os governos subnacionais seriam capacitados


e orientados pela Agência Brasileira de Cooperação, com base em um
calendário de cursos e palestras frequentes sobre elaboração de proje-
tos, política externa, cooperação internacional etc. Os governos locais
e estaduais passariam a ser parceiros capacitados e poderiam forta-
lecer a ação de cooperação brasileira em diversos países, reduzindo e
compartilhando os custos da cooperação brasileira;
• diálogo federativo permanente: criação de canais de diálogo permanen-
te entre governo federal, estados e municípios, a fim de se identificar
potencialidades, constituir sinergias e dirimir conflitos. O modelo do
Comitê de Articulação Federativa (CAF) da Presidência da Repúbli-
ca14 poderia servir de base. Esse espaço, que teria um papel de órgão
consultivo e de proposição de políticas e ações sobre os temas da pró-
pria cooperação internacional federativa, reuniria, pelo lado do gover-
no federal, os ministérios e órgãos que tivessem alguma incidência na
cooperação internacional, sobretudo o MRE e a ABC. Pelo lado dos
municípios e estados, aqueles com experiência acumulada poderiam
ser representantes do conjunto dos governos subnacionais, com obri-
gações e responsabilidades pactuadas.
Esse novo modelo representaria uma verdadeira revolução na ação in-
ternacional dos governos subnacionais e os colocaria em pé de igualdade
com a nova agenda da cooperação internacional brasileira. Ao mesmo tem-
po, despertaria um novo interesse pela política internacional por parte dos
governos subnacionais, e os resultados das ações internacionais brasileiras
estariam um pouco mais próximos do cidadão. Os custos disso seriam re-
lativamente pequenos e facilmente absorvidos pelo Orçamento Geral da
União. Os resultados, contudo, seriam incalculáveis.

14
Em março de 2003, na VI Marcha em Defesa dos Municípios a Brasília, o governo fede-
ral e as entidades municipalistas assinaram um protocolo criando o Comitê de Articulação
Federativa (CAF). Esse comitê tornou-se o principal espaço de negociação entre União e
municípios, contemplando vários pontos da pauta de reivindicações do movimento munici-
palista. É um compromisso do governo federal fortalecer, revigorar e repactuar a agenda fe-
derativa. Em 2007, o CAF foi institucionalizado por decreto como instância consultiva da
Presidência da República, no âmbito da Secretaria de Relações Institucionais. O comitê é
formado por representantes de 18 ministérios e igual número de representantes das entida-
des municipalistas. Ainda em 2007, o governo federal assinou um novo Protocolo de Coo-
peração Federativa, repactuando uma agenda comum, para os dois anos seguintes, com as
entidades nacionais que representam os municípios.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 329

Bibliografia

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Conclusão

Leticia Pinheiro
Carlos R. S. Milani

O seguinte questionamento nos moveu desde o início de nossas pesqui-


sas e orientou os diferentes capítulos aqui apresentados: nos dias de hoje,
seria possível falar de uma nova configuração da arena decisória da po-
lítica externa brasileira e em que medida essa suposta nova configuração
seria decorrente ou, antes, promotora de novos conteúdos da própria po-
lítica externa?
Os resultados a que chegamos no âmbito dessa rede de pesquisas di-
zem respeito a essa questão e põem em evidência a pluralidade de atores
e agendas da política externa brasileira. Tal pluralidade envolve, além dos
muitos atores estatais não tradicionais que desafiam o alegado monopólio
da ação diplomática do Itamaraty — ministérios e agências federais, en-
tidades subnacionais etc. —, inúmeros atores não estatais, que podem de-
fender interesses públicos e coletivos — saúde pública, direitos humanos,
educação, cultura… —, mas também interesses de determinados grupos e
setores econômicos e culturais da sociedade brasileira — associações, mo-
vimentos sociais, empresas… Essa pluralidade de atores e interesses decor-
re do fato de que tanto a ordem internacional quanto a doméstica, apesar
das desigualdades e das diferenças que conformam suas estruturas, deixam
em aberto — e de modo nem sempre previsível — vários espaços para a
ação política. Posta dessa maneira, a pluralidade acaba por desafiar a nossa
capacidade analítica de localizar com precisão absoluta o lócus institucio-
nal e o agente par excellence da decisão em matéria de política externa. Da
pluralidade de atores e agendas da política externa brasileira emerge, de
fato, uma complexidade crescente do próprio processo decisório.
332 Política externa brasileira

Acreditamos que a demanda por democracia e eficiência, ambas re-


quisitos fundamentais de uma sociedade moderna, exige uma concepção
de política externa que seja teoricamente distinta, ao mesmo tempo, dos
parâmetros do realismo tradicional e do liberalismo utópico e cosmopolita.
A despeito dessa certeza, entretanto, não chegamos propriamente a uma
definição que dê conta da reconfiguração da política externa. Ainda assim,
consideramos que fizemos muitos avanços desde o início de nossas inves-
tigações, e nesta conclusão gostaríamos de compartilhá-los com nossos lei-
tores, assim como elaborar algumas reflexões prospectivas.
Uma convergência que nos parece transversal aos distintos autores
e capítulos aqui apresentados é a necessidade de se considerar a política
externa como política pública, ou seja, o Estado e o governo em ação no
plano internacional.1 Para chegarmos a essa categorização, partimos da
premissa de que o governo é uma instituição do Estado — sem dúvida,
a principal delas — e de que os governos são os produtores de políticas
públicas (Souza, 2006:22). Não negamos, evidentemente, que nessa pro-
dução outros atores — não governamentais — tenham participação rele-
vante, exercendo forte influência sobre o conteúdo da política e que sua
presença deve, portanto, ser problematizada e incorporada à investigação.
Mas reafirmamos a premissa de que, em última instância, a responsabili-
dade pelas políticas públicas, entre as quais a política externa, é do gover-
no que as implementa.
Tal concepção permite diferençar, em primeiro lugar, a política exter-
na da ação internacional dos atores não estatais. Em segundo lugar, leva-
nos a exigir, conceitualmente, a presença da noção de “autorização estatal”
dos atores primários da política externa: agências federais ou entidades
subnacionais que busquem construir agendas de cooperação para o desen-
volvimento, por exemplo, devem obter a chancela normativa de um ator
primário (no caso brasileiro, no plano federal) que garanta o sentido de au-
toridade do Estado na condução dessa política externa. Não nos cabe de-
finir, peremptoriamente, quem seria esse agente da chancela pública, mas
a empiria aqui tratada revela que, analiticamente, não é mais possível de-
fender nesses termos o monopólio do Itamaraty. Há muita ação externa do

1
Lembrando que também a definição de políticas públicas se encontra sob o escrutínio de
seus especialistas (Souza, 2006), postulamos que a própria assunção da política externa como
uma política pública deve ser incorporada à discussão sobre a conceituação desta última.
Conclusão 333

Estado brasileiro para além dos muros do Itamaraty. Cabe saber se pode-
mos chamá-la de política externa, no sentido de uma política pública au-
torizada pelo Estado. Dito de outra forma, parece-nos que, empiricamente,
os capítulos desnudaram a pluralidade dinâmica e a constante evolução da
ação externa do Estado brasileiro, muito embora ainda falte, em muitos ca-
sos, a construção de um arranjo institucional, político e jurídico que reflita
essa realidade empírica e que assegure o caminho institucional mais demo-
crático (sujeito, inclusive, a controles da própria sociedade), ao final do qual
poderíamos falar mais apropriadamente de uma política externa. O cami-
nho mais fácil seria o de reconhecer que da pluralidade de ações externas
decorre, ipso facto, a pluralidade da política externa. Embora analiticamente
mais fácil, não acreditamos, no entanto, ser este o caminho mais democráti-
co para a construção de novos arranjos institucionais no campo da política
externa brasileira. Mesmo nos casos em que o adensamento da presença de
diversos órgãos da burocracia federal em temas internacionais vem acom-
panhado da busca de capacitação para executarem suas agendas por meio
de assessorias internacionais cada vez mais especializadas e robustas (Fran-
ça e Sanchez Badin, 2010), a nosso ver a isso não deveria se seguir um mo-
vimento em direção à criação de escritórios setoriais de relações exteriores
(algo como um para-Itamaraty), em vista dos riscos da fragmentação de
agendas e de uma eventual ambiguidade e inconsistência da política.
A abertura intelectual dos estudos de política externa que propomos
para o campo analítico das políticas públicas demanda, outrossim, quebrar
a associação da política externa com as versões mais cruas da escola teórica
do realismo, isto é, com o pressuposto de que o comportamento do ator es-
tatal só pode ser entendido ou orientado em referência ao interesse nacio-
nal (Hill, 2003). É fato que o interesse nacional surge como ideia política
em oposição à ideia de interesse do príncipe, acompanhando a própria evo-
lução do sentimento nacional e ganhando envergadura com o desenvolvi-
mento das instituições estatais democráticas (Renouvin e Duroselle, 1995).
A ambiguidade do interesse nacional diz respeito, porém, à tentativa de
objetivar as finalidades, temporalmente próximas ou distantes, que deve-
riam ser atribuídas à nação. Como lembram esses historiadores franceses,
nomeadamente na introdução ao décimo capítulo de sua obra, o interesse
nacional ou os chamados “interesses superiores do Estado”, tão frequen-
temente invocados por estadistas e diplomatas, não seriam, salvo raros ca-
sos, um meio para disfarçar interesses infinitamente menos nobres ou, pelo
menos, interesses particulares?
334 Política externa brasileira

Quando se falava em interesse nacional, a exemplo de Charles Beard


em The idea of national interest (1934), tratava-se de “defender a melho-
ria do bem-estar das populações em oposição aos interesses materiais das
grandes empresas” (Renouvin e Duroselle, 1995:314). Tal definição pare-
ce-nos problemática porque pressupunha ser possível separar o econômi-
co (o interesse das empresas) do sociopolítico (os interesses da sociedade).
Além disso, sem entrar no debate psicológico acerca das construções sub-
jetivas, dos próprios estadistas, de um “interesse nacional objetivo” ou ainda
da dificuldade que seria separar a palavra dos estadistas, por mais sincera
que fosse, do sentido dos interesses particulares que os cercam, não nos pa-
rece nada fácil defender essa noção de interesse nacional, que tende a sim-
plificar a dialética das relações sociais e a complexidade das negociações
entre interesses públicos e privados.
Ao assumirmos a política externa como uma política pública, estamos,
portanto, trazendo a política externa para o terreno da politics, ou seja, re-
conhecendo que sua formulação e implementação se inserem na dinâmica
das escolhas de governo que, por sua vez, resultam de coalizões, barganhas,
disputas, acordos entre porta-vozes de interesses diversos, que expressam,
enfim, a própria dinâmica da política. Em decorrência, estamos retirando
a política externa de uma condição inercial associada a supostos interesses
nacionais autoevidentes e/ou permanentes e protegidos das injunções con-
junturais de natureza político-partidária.2 Portanto, despindo a política ex-
terna das características geralmente atribuídas (ou preconcebidas) ao que
se chama de política de Estado, que nos levava a imputar à política externa
uma condição de extrema singularidade em relação às demais políticas pú-
blicas do governo.
Não custa lembrar que mesmo estas — as políticas consideradas po-
líticas de Estado — não nasceram como tais. Ou seja, sua ontologia não
está no Estado, mas nos governos e na sua interação, de intensidade e fre-
quência variável dependendo do compromisso da polis com a democracia,
com as inúmeras instituições que compõem o governo e com os atores da

2
A propósito, mesmo considerando o Itamaraty um ministério pouco partidarizado em
comparação com os demais, não custa lembrar o alerta de Amorim Neto (2006:57) de que
seus chefes podem “também ser simples asseclas do presidente”, o que, indiretamente, o
“contaminaria” pela dinâmica política. Também devem ser lembradas as relações do Itama-
raty com a ditadura militar no Brasil, mormente no que diz respeito ao papel nada neutro do
Centro de Informações do Exterior (Ciex) (Penna Filho, 2009).
Conclusão 335

sociedade. Em algum momento, portanto, as políticas de Estado foram e


são, sem dúvida, políticas de governo. As variáveis que explicam a eventual
transformação de uma política de governo em política de Estado são inú-
meras, desde sua eficácia — mesmo que por construção retórica e ideo-
lógica — até sua esclerose, por ausência de alternativas. Nesse sentido, da
mesma forma que políticas de governo se transformam em políticas de
Estado em determinado tempo e espaço, podem também deixar de sê-lo.
Nesse sentido, estudar a política externa enquanto política pública impli-
ca, teórica e metodologicamente, buscar “entender como e por que os go-
vernos optam por determinadas ações” (Souza, 2006:22), concedendo-lhe
desse modo a prerrogativa da efemeridade, da transitoriedade.
Não negamos, porém, que existem diferenças entre a política externa,
pensada como política pública, e as demais políticas públicas de caráter in-
terno, ou seja, implementadas prioritariamente no âmbito doméstico. En-
quanto estas, até pouco tempo, tinham apenas o ambiente doméstico como
origem e destino, a política externa (embora sempre tenha respondido a va-
riáveis internas e externas) por definição sempre foi dirigida ao ambiente
externo. No entanto, já está distante dos nossos dias a ideia de que as políti-
cas públicas se originam ou mesmo se dirigem apenas ao plano interno. Da
mesma forma, nada mais superado do que a ideia realista clássica de que a
política externa nasce onde termina a política interna. Há, portanto, dois as-
pectos importantes a serem sublinhados: por um lado, é preciso reconhecer
e mesmo defender uma “relação cada vez mais estreita e íntima, em termos
sinérgicos, entre a política externa e outras políticas públicas” (Ardissone,
2011:31-32); por outro, é preciso referirmo-nos à nova face das políticas
públicas tal como o que vem sendo feito pelo Brasil nos últimos anos, num
movimento de internacionalização de uma extensa pauta de políticas pú-
blicas — da educação à saúde, do desenvolvimento agrícola às políticas de
reforma agrária, das políticas culturais à construção das identidades, assisti-
mos a um processo contínuo de internacionalização das políticas públicas,
que, em paralelo aos processos de globalização da economia, muito corrobo-
ra a mundialização da política e reproblematiza as hierarquias (por exemplo,
entre a high e a low politics da política externa brasileira). Os casos emble-
máticos de abertura de escritórios internacionais da Embrapa (em Gana),
da Fiocruz (em Moçambique) e do Ipea (na Venezuela) ilustram esse argu-
mento compartilhado por vários dos autores deste livro. A propósito, cabe
deixar claro que não se trata de exportação de políticas públicas e sim de um
336 Política externa brasileira

movimento de internacionalização. A diferença entre uma e outra moda-


lidade se encontra no fato de a internacionalização, ao contrário da expor-
tação, pressupor um alto grau de aceitação e legitimidade, uma prática em
geral estimulada por uma afinidade real ou construída entre os atores en-
volvidos, e não como imposição de experiências de fora para dentro. Não
é à toa que esse fenômeno tem sido mais comum entre países do Sul, atu-
almente palco de inúmeras iniciativas de cooperação técnica para o desen-
volvimento, fortemente impregnadas por um discurso de valorização das
afinidades entre os envolvidos e de uma ética de solidariedade (Leite, 2010).
É claro que, com a institucionalização futura dos processos de cooperação
Sul-Sul, caberá voltar à questão, por meio de novas pesquisas, sobre as hie-
rarquias e as assimetrias entre os atores envolvidos, na medida em que mui-
tos desses projetos poderão se inserir, como ilustram as iniciativas chinesas
no continente africano, em uma dinâmica de interesses estratégicos, de co-
mércio exterior e de investimentos produtivos.
Já no que se refere ao novo perfil da política externa e suas especifici-
dades, vale notar que, mesmo reconhecendo sua ontologia no governo, a po-
lítica externa é uma das políticas que, juntamente com a política de defesa,
por exemplo, mais se aproxima da tese de que o Estado desfruta um certo
grau de autonomia (Evans, Rueschemeyer e Skocpol, 1985). Nesse sentido,
diríamos que a política externa é, tal como a política de defesa, a mais au-
tônoma das políticas públicas, no sentido de que guarda, notoriamente, al-
gum grau de distanciamento da opinião pública. O grau e a latitude dessa
autonomia, entretanto, variam em função de fatores exógenos e endógenos,
estruturais e conjunturais. E que fatores são esses?
Os efeitos do fim da Guerra Fria, da liberalização econômica, da in-
tensificação do fenômeno da globalização e da redemocratização do regi-
me político brasileiro sobre a formulação e o conteúdo da política externa
do país têm sido recorrentemente apontados. Esses fenômenos foram res-
ponsáveis, respectivamente, pelo desencapsulamento dos temas globais
(meio ambiente, direitos humanos etc.) da lógica da competição bipolar,
nesse sentido retirando-os do âmbito exclusivo da segurança; pela intro-
dução de efeitos distributivos nas decisões de política externa, produzindo
ganhadores e perdedores, dependendo do rumo da política; pela galvani-
zação da interação entre os planos interno e externo, algumas vezes até di-
luindo suas fronteiras e retirando a blindagem que a defesa da soberania em
moldes puramente westfalianos lhes impunha; e, finalmente, pelo aumento
Conclusão 337

exponencial dos potenciais atores participantes da política externa brasilei-


ra. A despeito de todos esses efeitos, nota-se se não o protagonismo, pelo
menos a permanência de uma destacada centralidade do Ministério das Re-
lações Exteriores na política externa brasileira, o qual procura manter seu
status de gatekeeper. Ou seja, em vista das características institucionais que
historicamente concederam ao Itamaraty um lugar central na definição dos
assuntos de política externa (Cheibub, 1985), os efeitos citados abalaram,
mas não retiraram dessa instituição, o poder de concentrar algum grau de
coordenação dos assuntos de política externa do país. Dito de outra forma,
a condução dos assuntos de política externa permaneceu fortemente centra-
lizada no âmbito das instituições do Estado, em particular — embora não
mais exclusivamente — no Itamaraty. Longe de nós, contudo, afirmar que
os atores sociais não tenham mudado seu padrão de participação na formu-
lação da política externa. Até porque postulamos que, se outrora as fontes
de legitimidade da autoridade institucional do Itamaraty, que, por sua vez,
impactavam em sua capacidade de definição dos rumos da política externa
encontravam-se no patrimonialismo, no carisma e na racionalidade buro-
crática (Cheibub, 1985), hoje sua autoridade tem como fonte de legitimida-
de o pressuposto do exercício da democracia.
Mas é preciso sublinhar que a crescente e relevante presença de atores
não estatais nos fóruns de formulação e debate das posições internacionais
do país não os tornou, automaticamente, tomadores de decisão em última
instância da política externa brasileira. Outrossim, isso não lhes retira a
competência e a efetiva contribuição prestada à definição das escolhas po-
líticas do país nos debates internacionais. A despeito de não poderem ser
considerados propriamente decisores de política externa, demonstram for-
te poder de agência (Pinheiro, 2009).
Mas, ao fim e ao cabo, é no âmbito do Estado que as decisões são fi-
nalmente tomadas. O que mudou é que, se antes era possível falar de uma
concentração desses assuntos na agenda do Ministério das Relações Ex-
teriores, hoje os temas de política externa, por serem mais diversificados,
povoam as atividades de outros ministérios e agências de governo, num
novo arranjo institucional (França e Sanchez Badin, 2010). Talvez por
isso mesmo registre-se no âmbito do Itamaraty a preocupação de respon-
der a essa diversificação com a criação de divisões temáticas em sua es-
trutura administrativa (Rivarola Puntigliano, 2008) e não mais, ou não
somente, como antes, quando se priorizava a geografia como critério de
338 Política externa brasileira

organização administrativa — Divisão da América Meridional, África,


Ásia etc. No entanto, ainda que essa resposta do Itamaraty tenha sido im-
portante para fazer face às novas demandas da atuação internacional do
Brasil, não sustou — nem poderia — o movimento de going international
por parte dos próprios ministérios domésticos.
Os diversos temas que chegam à agenda de política externa nos dias
de hoje o fazem não só por intermédio do Itamaraty, mas também por
meio de outros órgãos do governo, como o Ministério da Saúde, da Edu-
cação, da Cultura, do Meio Ambiente, da Agricultura etc. Ou ainda por
intermédio das unidades subnacionais — estados e municípios — e não
apenas por meio dos órgãos do Poder Executivo Federal. Não menos rele-
vantes são as demandas de movimentos sociais e redes de ativismo políti-
co no sentido de se abrirem os debates sobre a política externa brasileira, a
exemplo da defesa da criação de um conselho nacional de política externa
pela coordenadora da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip),
no jornal O Globo de 8 de setembro de 2010.
Não são poucas as variáveis que explicam essa nova configuração.
Os casos estudados ao longo deste livro demonstram que os fatores ex-
plicativos dessa multiplicação de atores e dessa descentralização do poder
de agência variam de acordo com os contextos, tanto no plano sistêmico
quanto no âmbito doméstico. Tal variabilidade decorre dos processos his-
tóricos de institucionalização e do grau de relevância sistêmica e nacional
dos diferentes problemas de política externa (saúde e comércio interna-
cional, direitos humanos, regulação internacional em matéria de educação
e cultura, ação internacional dos estados federados e municípios na coo-
peração para o desenvolvimento etc.). Mas poderíamos buscar convergên-
cias entre tais variáveis a fim de localizar alguns fatores que talvez sejam
mais regulares, como o tipo de regime internacional e sua densidade ou
relevância no âmbito regional sul-americano; a atuação de organizações
intergovernamentais, empresas e redes transnacionais; a construção de es-
paços de regulação e integração social em meio à anarquia entre os Esta-
dos; a necessidade de lidar com a sobrevivência humana e a proteção dos
bens públicos globais (por exemplo, clima, biodiversidade, oceanos), ape-
sar da contradição potencial com os interesses nacionais; a importância
de cada agenda temática no conjunto das políticas públicas domésticas; a
existência de uma opinião pública e a pressão da mídia sobre o tema; e o
número de atores domésticos envolvidos, bem como sua forma de partici-
pação (consulta, parceria, protesto, resistência).
Conclusão 339

Seja por que caminhos for, a questão é que, quando se trata da par-
ticipação, para além do Itamaraty, de outros órgãos do Poder Executivo
Federal, estadual ou municipal, não há como negar que estes são mais per-
meáveis às injunções da política e que isso alcança o plano da definição
do conteúdo da política externa. De fato, ao contrário do que ocorre com
o Itamaraty, cuja chefia poucas vezes foi objeto de disputa política, nesses
órgãos e unidades, o líder, seus liderados e respectivas linhas de atuação
tendem a refletir as coalizões políticas que formam e dão sustentação ao
governo. A política externa, assim, se politiza.
Cabe aqui, porém, uma ressalva importante com relação a essa refe-
rência a um novo momento da política externa brasileira, caracterizado
por forte politização. Embora compartilhemos da tese que postula a inten-
sificação do componente político na política externa, é nosso dever aler-
tar para um possível desdobramento suscitado por essa afirmação que não
gostaríamos de endossar. Ao identificar o presente como politizado em
comparação com o passado, corremos o risco de despolitizar a política ex-
terna pretérita, o que seria o mesmo que conferir correção à tese da sepa-
ração estanque entre burocracia e política, com a qual não concordamos
(Loureiro, Abrucio e Pacheco, 2010:11). Mas, principalmente, é preciso es-
clarecer o que entendemos por politização. Sem cairmos nas armadilhas do
estiramento conceitual (Sartori, 1970), posto que não pretendemos redu-
zir diferenças importantes entre significados em nome de semelhanças se-
cundárias, entendemos por politização a intensificação do debate de ideias,
valores e preferências sobre escolhas políticas, como também, et pour cause,
de disputas inter e intraburocráticas, debates entre atores sociais distintos
quanto à melhor forma de contemplar suas demandas. Enfim, ao adotar-
mos o termo politização pretendemos reforçar o fim da crença de que, por
sua natureza supostamente particular, o campo da política externa mere-
ceria um tratamento que o retirasse da arena do embate político. Não por
acaso, o título deste livro sugere a multiplicidade de práticas da política ex-
terna, assim como a condição política das práticas pelas quais ela se reali-
za. O Estado, em sua complexidade e multiplicidade, gera relações externas
de várias naturezas, contribuindo para a politização das agendas de política
externa (Smith, 1998:77). Os distintos atores trazem para o campo da po-
lítica externa uma política plural, constituída de linguagem, ideais, valores,
símbolos e demandas materiais diferenciadas. A politização das agendas
de política externa decorre da pluralidade dos atores e de suas visões, das
ideias e princípios que trazem para o campo.
340 Política externa brasileira

As implicações dessa nova configuração da arena decisória da políti-


ca externa são inúmeras. A propósito, note-se que por arena decisória não
entendemos apenas a arena que decide em última instância, mas também
aquela onde se definem os problemas, identificam-se e avaliam-se alterna-
tivas, decide-se, delibera-se e finalmente implementa-se a política. Por um
lado, essa configuração atual potencializa as disputas intra e, principalmen-
te, interburocráticas, na medida em que os temas de política externa não
cabem mais numa rígida categorização por issue areas. Como vimos neste
livro, a entrada da saúde na agenda da política externa brasileira, por exem-
plo, envolveu, além do Itamaraty, o Ministério da Agricultura e o Instituto
Nacional da Propriedade Industrial (cap. 7); assim como a cultura envolveu
o Ministério das Comunicações (cap. 3); e a questão dos direitos huma-
nos envolveu a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(cap. 1). Além disso, é preciso levar em conta que uma das razões para essa
reunião de temáticas em torno de um mesmo problema deve-se igualmen-
te a uma outra ordem de transformação, qual seja, o enfraquecimento da
rígida dicotomia entre alta e baixa política.
Não há dúvida, porém, que esse aumento do número de órgãos do
governo envolvidos com temas de política externa não é feito unicamente
de disputas e conflitos de interesses. A própria inserção do conjunto des-
sas agências em um mesmo governo suscita a expectativa de que haja mais
convergências do que propriamente divergências entre os integrantes. Isso,
por exemplo, foi o que notamos nas investigações sobre a chamada diplo-
macia da saúde (cap. 8) e sobre a educação na agenda da política externa
(cap. 5) neste livro. Vale igualmente notar que a entrada dessas agências
pode ocorrer em momentos distintos do processo, o que significa que po-
derão ser também distintos seus graus de participação, influência, autoria.
O fato é que, nessa nova configuração, à medida que os ministérios do-
mésticos expandem sua área de interesse para assuntos de natureza externa,
mais se politiza a política externa. Lembremos que o sistema político brasi-
leiro é caracterizado pelo chamado presidencialismo de coalizão (Abranches,
1998), no qual o presidente da República, para manter a governabilidade,
precisa construir uma base de apoio entre os partidos e montar o ministé-
rio a partir dessa mesma base. Assim sendo, a dinâmica político-partidária
alcança indiretamente a política externa quando assuntos de natureza ex-
terna passam a fazer parte da agenda dos ministérios domésticos. O que
Conclusão 341

enfim postulamos é que, como temas da vida pública chegam à agenda de


política externa por outros caminhos, a politização da política externa se
realiza em grande parte pela via do alargamento da participação minis-
terial. Nesse sentido, mesmo que ainda fosse possível falar de um relativo
insulamento da agência diplomática, certamente não se pode falar de um in-
sulamento da política externa.
A esse propósito, vale enfrentarmos a questão relativa ao enfraqueci-
mento dos efeitos positivos — estabilidade e continuidade — decorrentes
de uma política externa caracterizada por forte componente institucional,
garantido até então pelo papel preponderante do Itamaraty em sua for-
mulação e implementação. Ou seja, até que ponto a relativização desse
componente institucional singular, representado até há pouco tempo pela
centralidade do Itamaraty e que ajudou a criar no imaginário das elites “o
modelo do Estado autônomo no discurso diplomático considerando a po-
lítica externa como uma questão de Estado, desvinculada e acima da polí-
tica doméstica, lugar dos conflitos e das facções” (Lima, 2005:2), pode ter
influência sobre a credibilidade do país no sistema internacional. Nova-
mente aqui gostaríamos de nos referir ao que consideramos uma nova fon-
te de legitimidade da autoridade institucional do Itamaraty, que, como as
anteriores, impacta não apenas o conteúdo substantivo da política externa,
mas também a natureza de sua avaliação por parte dos demais Estados. Ou
seja, se, por um lado, a maior participação de atores no processo de defi-
nição das escolhas do país no plano internacional desloca o Itamaraty do
centro exclusivo das decisões com efeitos deletérios sobre sua capacidade
de coordenação, por outro, essa pluralidade renova as credenciais de inser-
ção internacional do país ao qualificar a política externa brasileira como re-
presentativa dos interesses da nação.
Paralelamente a essa nova configuração da arena decisória tal como
apresentada pelos diferentes capítulos deste livro ao convergirem suas aná-
lises e seus argumentos para a multiplicação das capacidades de agência dos
atores, surgem as perguntas: quem toma as decisões em matéria de políti-
ca externa e onde tais decisões são tomadas? Que atores são responsáveis
pela decisão e pela implementação da política externa brasileira? Como as
decisões são tomadas e em nome de quem? Em relação a quem os agentes
são considerados responsáveis? As respostas a tais perguntas não são unâ-
nimes, porém os autores deste livro coincidem em apontar a superação de,
pelo menos, dois paradigmas que gostaríamos de ressaltar nesta conclusão:
342 Política externa brasileira

o monopólio da ação diplomática do Itamaraty e a separação entre uma alta


e uma baixa política na agenda temática da política externa brasileira. Afi-
nal de contas, abrindo-se a “caixa” do processo de tomada de decisão e de
implementação da política externa, tornam-se múltiplas as possibilidades
de influência e compartilhamento da decisão, as disputas entre agências bu-
rocráticas, a necessidade de informação e transparência junto a um público
mais abrangente, bem como a relevância de se desenharem novos arranjos
institucionais que logrem dar conta das demandas sociais e políticas.
E então chegamos ao item da responsabilização, da accountability,
que, se não foi abordada de forma direta neste livro, tem presença laten-
te em todos os capítulos. Afinal, se admitimos que as práticas da política
externa estão hoje mais próximas do cotidiano, que as escolhas estão rela-
cionadas a interesses, que a política externa, enfim, não expressa um inte-
resse nacional autoevidente, sendo resultado da competição, estamos por
extensão trazendo para esse terreno a necessária discussão sobre a submis-
são da política externa aos controles e regras do regime democrático. Em
que pese esta ser uma preocupação de fundo da discussão proposta por
este livro, reconhecemos que não foi abordada em profundidade. Assim,
entre os atores ausentes nesta coletânea destaca-se o Poder Legislativo e
seu papel na política externa brasileira.
A título de sugestão para futuras pesquisas, gostaríamos de propor al-
gumas perguntas e sugerir caminhos de investigação surgidos a partir das
inúmeras discussões entre os participantes dessa rede de pesquisa ao longo
destes últimos anos.
Primeiro, consideramos imperativo avançar no debate sociológico, or-
ganizacional e institucional sobre o papel do Itamaraty e a necessidade de
estabelecimento de novos arranjos institucionais. Para tanto, a discussão
sobre a sociologia das organizações, o processo de aprendizado e transfor-
mação da instituição e seu impacto sobre a definição do perfil internacio-
nal do país são temas de grande importância. Para citarmos um exemplo,
o Itamaraty deve ser estudado como um dos lócus fundamentais de for-
mação do pensamento social brasileiro, seu papel na construção da identi-
dade nacional do país, seu diálogo com a produção acadêmica stricto sensu
(Pinheiro e Vedoveli, 2010) e as consequências de um legado de política
externa que também produz interesses no seio da burocracia, dessa forma
reforçando e sendo fortalecida pela ideia de continuidade.
Segundo, é imperativo repensar o lugar do Itamaraty na administração
pública brasileira, levando em conta que a profissionalização da máquina
Conclusão 343

pública revela um quadro em que o Itamaraty não pode mais ser conside-
rado a única ilha de profissionalismo e de competência no conjunto das
burocracias da administração pública nacional. Em linha com essa nova re-
alidade, a presença de uma agenda internacional nessas burocracias — novi-
dade em alguns casos e fortalecimento em outros — não pode ser dissociada
de uma realidade contemporânea em que a cooperação internacional para o
desenvolvimento, em particular a cooperação técnica, científica e tecnoló-
gica, ganhou enorme visibilidade e importância, nesse sentido politizan-
do as relações de troca entre os países, assim como a própria concepção de
valores e interesses.
Um terceiro ponto a se sublinhar é que a investigação sobre essa te-
mática não deve se restringir nem ao período que nos é contemporâneo —
embora este com certeza seja particularmente rico —, nem ao plano ex-
clusivo da realidade brasileira. A investigação sobre experiências pretéritas,
nas quais se, por um lado, inexistiam os vetores da globalização e suas con-
sequências sobre a dicotomia doméstico/internacional, por outro, também
inexistiam distinções claras entre as políticas públicas e seus responsáveis,
poderá nos ajudar a compreender melhor os caminhos traçados pela polí-
tica externa do país. Da mesma forma, a incorporação da perspectiva com-
parada temporal e espacial poderá alargar nossa capacidade analítica acerca
desses contextos e tensões no campo da política externa. Não se trata aqui
de propor uma retomada dos projetos desenvolvidos nos anos 1960, mais
interessados em metodologias quantitativas e em definir correlações entre
fatores comparando um número expressivo de países. A pesquisa compa-
rativa, no sentido que aqui estimulamos, poderia buscar entender como se
envolvem, nos distintos contextos nacionais, os múltiplos atores, estatais e
não estatais, domésticos e inter/transnacionais, nas agendas de política ex-
terna. Essa comparação pode ensejar novos sentidos e compreensões sobre
como se dão os processos de politização da política externa. Como Hill
(2003:10) salientou, a análise da política externa deveria ser “aberta, com-
parativa, conceitual, interdisciplinar e atravessar as fronteiras entre o nacio-
nal, o internacional e o global”.
Por fim, gostaríamos de sublinhar nossa crença em que essas linhas
de reflexão não só nos ajudarão a compreender e explicar melhor as práti-
cas da política externa e sua natureza política, como serão ferramentas im-
portantes para sua própria realização, trazendo para o exercício cotidiano a
análise e a construção de diálogos profícuos com os atuais e potenciais par-
ceiros internacionais do Brasil.
344 Política externa brasileira

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Sobre os autores

Alberto Kleiman, graduado em direito e mestre em relações internacionais


pela Universidade de São Paulo, é chefe da Assessoria Internacional da Subchefia
de Assuntos Federativos da Presidência da República desde 2004. Foi coordena-
dor assistente de Relações Internacionais da Prefeitura de Santo André (2001-
2002) e coordenador de Redes e Cooperação Bilateral da Secretaria de Relações
Internacionais da Prefeitura de São Paulo (2003-2004), tendo publicado diversos
artigos sobre a atuação internacional dos governos subnacionais.

Alessandro Candeas é diplomata de carreira. De 2005 a 2007, atuou como


assessor internacional do MEC e, nessa condição, chefiou a delegação do Bra-
sil no Comitê Coordenador Regional do Setor Educacional do Mercosul, tendo
presidido o comitê em 2006. Atualmente, ocupa o cargo de ministro conselheiro
da embaixada do Brasil em Bogotá. E-mail: acandeas@gmail.com.

André de Mello e Souza é técnico de planejamento e pesquisa do Institu-


to de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Entre 2005 e 2009, foi professor-as-
sistente de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). É doutor em ciência política pela Universidade de Stanford.
Sua produção acadêmica inclui capítulos de livros publicados por editoras dos
Estados Unidos, da Índia e do Brasil e artigo a ser publicado pela revista Interna-
tional Organization. Atua na área de relações internacionais, com ênfase em eco-
nomia política internacional e no estudo de regimes internacionais, globalização,
organizações não governamentais e propriedade intelectual; e integra a rede Ex-
pansão, Renovação e Fragmentação das Agendas e Atores da Política Externa.
348 Política externa brasileira

Carlos R. S. Milani é doutor pela École de Hautes Études en Sciences So-


ciales (1997), professor-adjunto do Departamento de Estudos Políticos da Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, professor visitante no Instituto
de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Administração da
Unigranrio. Pesquisador bolsista do CNPq, coordena o Laboratório de Análise
Política Mundial (Labmundo, antena Rio de Janeiro) e integra a rede Expansão,
Renovação e Fragmentação das Agendas e Atores da Política Externa.

Dhiego de Moura Mapa é mestrando do Programa de Pós-Graduação em


Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI/
Uerj), bolsista da Capes, bacharel e licenciado em história pela Uerj. Foi bolsista
de iniciação científica da rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agen-
das e Atores da Política Externa.

Fabio Pablo A. Santana é bacharel em ciências sociais pela UFBA e pesqui-


sador do Labmundo. Foi bolsista de iniciação científica da rede Expansão, Reno-
vação e Fragmentação das Agendas e Atores da Política Externa.

Gregory Beshara é diplomata. Bacharel em relações internacionais pela Pon-


tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, integrou a rede de pesquisa Ex-
pansão, Renovação e Fragmentação das Agendas e Atores da Política Externa.

Gustavo de Lima Cezario é gestor público da Subsecretaria de Relações


Internacionais do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em relações in-
ternacionais pela Universidade de Brasília, coordenou em 2010 o Projeto de Forta-
lecimento de Capacidades para o Desenvolvimento Humano Local, uma parceria
entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Confe-
deração Nacional de Municípios (CNM). Entre 2006 e 2009, foi responsável pelo
desenvolvimento da área internacional da CNM.

José Roberto Ferreira é doutor honoris causa da Escola Nacional de Saú-


de Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), chefe da Divisão de Coope-
ração Internacional do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz
e ex-diretor da Divisão de Recursos Humanos da Organização Pan-Americana
de Saúde (Opas).
Sobre os autores 349

Leticia Pinheiro, doutora em relações internacionais pela London School


of Economics and Political Science, é professora do Instituto de Relações Inter-
nacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É
editora da Brazilian Political Science Review e coordenadora da rede de pesqui-
sas Agendas e Atores de Política Externa. Foi pesquisadora da Fundação Getu-
lio Vargas entre 1985 e 1997 e secretária-executiva da Associação Brasileira de
Ciência Política entre 2006 e 2008. É autora de Política externa brasileira (2004)
e de diversos artigos sobre política externa contemporânea publicados em perió-
dicos nacionais e internacionais.

Miriam Gomes Saraiva é professora, desde 1997, da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro (Uerj), onde coordena o mestrado em relações internacionais.
Possui doutorado em ciência política pela Universidad Complutense de Madrid e
cursou pós-doutorado no European University Institute. Atua na área de relações
internacionais, com ênfase em política externa europeia, política externa brasilei-
ra e processos de integração sul-americana. É autora de Politica externa europea
(1996), um dos editores de Brasil-União Europeia-América do Sul: os anos 2010-
2020 (2009) e integra a rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas
e Atores da Política Externa.

Mônica Leite Lessa é professora do Departamento de História, do Programa


de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais, todos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é
coordenadora do Curso de Especialização em História das Relações Internacio-
nais da Uerj, com bolsa de produtividade da Faperj, e integra a rede Expansão, Re-
novação e Fragmentação das Agendas e Atores da Política Externa.

Mónica Salomón é doutora em ciência política pela Universidad Autónoma


de Barcelona e professora do Departamento de Economia e Relações Interna-
cionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente coordena o Pro-
grama de Pós-Graduação em Relações Internacionais dessa universidade. Tem
publicado diversos artigos e capítulos de livro sobre política externa europeia, ação
externa de governos subnacionais, teoria das relações internacionais e análise de
política externa. Integra a rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agen-
das e Atores da Política Externa.
350 Política externa brasileira

Monique Badaró é bacharel em relações internacionais e mestre em adminis-


tração, com ênfase em gestão social. Atua como assessora de Relações Internacio-
nais da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia desde 2007. De 2001 a 2006 foi
coordenadora do Centro Internacional de Inovação e Intercâmbio em Adminis-
tração Pública (CIIIAP) da Fundação Luís Eduardo Magalhães.

Paulo Marchiori Buss é professor e pesquisador da Escola Nacional de Saú-


de Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), diretor do Centro de Relações
Internacionais em Saúde da Fiocruz; ex-presidente da Fiocruz e membro titular
da Academia Nacional de Medicina.

Thiago Melamed de Menezes é diplomata. Entre 2007 e 2009, trabalhou


na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, oportu-
nidade em que participou da coordenação de relatórios do Brasil ao Conselho de
Direitos Humanos da ONU, como o primeiro relatório ao Mecanismo de Revisão
Periódica Universal. É formado em comunicação social pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco.

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