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1a edição — 2011
Preparação de originais: Maria Lucia Leão Velloso
Revisão: Eduardo Carneiro Monteiro
Capa e diagramação: Leo Boechat
Prefácio
Monica Hirst 9
Introdução
Leticia Pinheiro e Carlos R. S. Milani 13
PARTE II Cultura
PARTE IV Saúde
PARTE V Paradiplomacia
Conclusão
Leticia Pinheiro e Carlos R. S. Milani 331
Monica Hirst*
São tantos os caminhos temáticos e analíticos que este livro sugere que é
difícil decidir por onde começar. Talvez o ponto de partida mais adequado
seja a simples e acertada afirmação de Christopher Hill em seu livro The
Changing Politics of Foreign Policy: “Mudança é um desafio perpétuo para
a ciência social e a Análise de Política Externa não é exceção.” Este cons-
titui a primeira e, eu diria, mais importante mensagem transmitida pelo
conjunto de capítulos e pela própria concepção deste livro. Os tempos das
Relações Internacionais do Brasil e da Análise de Política Externa (APE)
são outros; tanto do ponto de vista do contexto internacional como dos
processos domésticos.
O que chama atenção, não obstante, é que o fator institucional que
supostamente seria responsável por conter as forças de transformação no
plano concreto da formulação e implementação da política externa — o
Itamaraty — represente no plano cognitivo a chave da compreensão do
processo de mudança em questão. Seria impossível elaborar uma narrativa
sobre a entrada em cena de atores, a inclusão de temas de interesse e de in-
terações interestatais e intersocietais, sem considerar em primeira instân-
cia esta agência, os limites e os alcances de suas capacidades para lidar com
questões que passaram a demandar ou mesmo a gerar espontaneamente
2
DA FRANÇA, Cassio Luiz; RATTON SANCHEZ BADIN, Michelle. Análises e Pro-
postas. A inserção internacional do poder executivo federal brasileiro, n. 40, São Paulo, Fundação
Friedrich Ebert, ago. 2010.
Prefácio 11
organizações sociais. Estes são temas tratados em vários dos textos reuni-
dos neste volume.
Como foi sublinhado pelos organizadores deste volume, uma conse-
quência crucial deste processo é a reconfiguração do campo de estudo da
política externa brasileira. Torna-se inevitável introduzir um viés inter-
disciplinar para abordar esta problemática que vá além das pontes já es-
tabelecidas em etapas anteriores com os campos da economia política, do
direito e da história. Tal como é apontado em alguns capítulos do livro,
nos tempos que correm, é preciso dialogar com a medicina, com as políti-
cas sociais e culturais, com as áreas de estudos ambientais e demográficos.
Se as práticas desenvolvidas nestes campos da gestão de bens públicos
constituem atualmente insumos que fertilizam a política externa brasi-
leira, é essencial que elas abram espaço para o seu enquadramento como
parte de um acervo comum de conhecimentos que enriquecem e condu-
zem a formas inovadoras do pensar local sobre a inserção internacional do
país. Esta constitui uma entre tantas das consequências cognitivas do pro-
cesso de globalização. Ao mesmo tempo, esta “interdisciplinaridade” re-
novada traz consigo um movimento virtuoso, já que estimula a ampliação
da gama de interesses a serem convocados na configuração de um debate
público sobre a política externa, uma faceta fundamental da democracia
brasileira no século XXI.
Por último, cabe fazer menção ao caráter fundacional deste livro. Não
há dúvida sobre o valioso sentido instrumental e político de organização
de uma comunidade epistêmica a partir da rede de APE. Esta iniciativa
abre caminho para o acompanhamento crítico de um novo campo de es-
tudos em Relações Internacionais e ao mesmo tempo cria condições para
o que se poderia chamar um “monitoramento analítico” de um processo de
mudança em plena gestação da política externa brasileira. Seu dinamismo
constitui em si uma fonte de reflexão de inestimável riqueza para novas sa-
fras de estudos, elaboração de teses e possíveis interações externas regionais
e globais. Este último ponto será um aspecto a ser perseguido no futuro
próximo; a comparação da experiência brasileira com outras, começando
com aquelas que se dão no entorno regional e no âmbito de outros círculos
do Sul, poderá enriquecer ainda mais os resultados desta iniciativa. Fica re-
gistrada a sugestão.
Introdução
Leticia Pinheiro
Carlos R. S. Milani
1
A esse respeito, gostaríamos de sublinhar que, embora correta a afirmação de que a agência
diplomática brasileira, em função de suas características institucionais, foi fortemente preserva-
da de injunções políticas ao longo de sua história, não seria correto postular sua completa auto-
nomia ou insulamento. Se em seus primórdios, como instituição de um Estado independente,
os interesses públicos em muito se confundiam com os interesses privados em função do patri-
monialismo que caracterizava a política nacional de um modo geral (Cheibub, 1985), passado
esse período, interesses setoriais sempre tiveram acesso à arena de formulação das políticas pú-
blicas, inclusive a política externa. A diferença estaria fundamentalmente na ausência de canais
regulares de transmissão das demandas dos interesses sociais para as agências do Estado, assim
como, et pour cause, na possibilidade de essas agências absorverem seletivamente as demandas
da sociedade.
2
Conforme Cheibub (1985:130), esse movimento teve como causa principal os baixos salá-
rios percebidos pelos diplomatas quando em serviço na Secretaria de Estado. Deve-se subli-
nhar, entretanto, que a absorção dos diplomatas de carreira por outras agências só foi pos-
sível graças ao reconhecimento por parte dessas agências da alta qualidade de sua formação
profissional.
Introdução 19
questionar o que antes parecia ser senso comum, ou seja, a relativa autono-
mia e insulamento burocrático do Itamaraty no processo de formulação e
condução da política externa. De fato, porta-vozes da própria instituição
(Oliveira, 1999; Amorim, 2009) reafirmam em diversos veículos a necessi-
dade de essa agência buscar conhecimento especializado em outras instân-
cias, haja vista a complexidade crescente e a multidisciplinaridade evidente
das relações exteriores. Da mesma forma, porém, há quem lembre a neces-
sidade de preservar sua capacidade de coordenação (Barros, 1996).
Toda essa discussão diz respeito ao perfil e ao papel das agências di-
plomáticas em alguns países como o Brasil, à renovação das ideias no cam-
po da política externa, à relação entre política doméstica e política externa,
à disputa interburocrática, bem como às relações Estado-sociedade. No en-
tanto, em parte devido à ainda reduzida dimensão da comunidade acadê-
mica dedicada a estudos de política externa nos países periféricos (Tickner,
2002), ao contrário do que se percebe no mundo universitário dos países
centrais, em que os estudos de política externa vêm incorporando essas no-
vas realidades, a investigação dos efeitos desses vetores simultâneos sobre o
conteúdo da política externa de países em desenvolvimento ainda é bastan-
te tímida. É certo que no Brasil, por exemplo, encontramos estudiosos que
procuram entender a política externa sem a rigidez com que o realismo cos-
tuma engessar algumas pesquisas, ainda que seja necessário reconhecer que
muitos trabalhos realizados através do prisma realista tenham contribuído
para a compreensão de diversos movimentos da política externa brasileira.
No entanto, ainda são escassas as iniciativas e, a nosso ver, carecem de um
esforço que as reúna em torno de um eixo comum de investigação que per-
mita um intercâmbio mais regular e profícuo de ideias.
Foi com base nesses questionamentos teóricos e empíricos que a Rede
Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas e Atores da Política
Externa (doravante chamada Rede AAPE3) foi concebida e lançada em
2006, tendo obtido, para o seu desenvolvimento, o apoio do CNPq, por
meio do Programa Renato Archer de Apoio à Pesquisa em Relações In-
ternacionais.4 As pesquisas desenvolvidas no âmbito da Rede AAPE com-
partilham uma premissa comum, segundo a qual, a fim de compreender a
3
http://agendasdepoliticaexterna.com.br/.
4
Ver Edital MCT/CNPq/CTInfra/CTVerde Amarelo no 29/2006.
20 Política externa brasileira
Bibliografia
Direitos humanos
1.
Atores e agendas no campo da política
externa brasileira de direitos humanos*
Carlos R. S. Milani
* Nossos sinceros agradecimentos a Maria Regina Soares de Lima, Monica Hirst, João Mar-
tins Tude e André L. Nascimento dos Santos por seus comentários e sugestões. Também
agradecemos à secretaria da ONG Conectas — Direitos Humanos pelos anuários que nos
foram gentilmente enviados. Pelo tempo concedido e pela riqueza das trocas, o nosso re-
conhecimento aos entrevistados: Alexandre Ciconello, Edélcio Vigna e Iara Pietricovsky
(Inesc), Cristina Timponi (Presidência da República), Fabrina Furtado (Rede Brasil), Fer-
nando Coimbra (Itamaraty), José Renato Martins (Presidência da República), Lucia Nader
(Conectas), Magali Naves (Seppir), Mariângela Rebuá (Itamaraty), Milton Rondó (Itama-
raty), Rafael J. Rodrigues (Ministério do Meio Ambiente — MMA), Thiago M. Menezes
(Itamaraty/Presidência da República). As entrevistas foram realizadas graças ao apoio do
CNPq, por meio da Rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas e Atores da
Política Externa, coordenada pela professora Leticia Pinheiro.
34 Política externa brasileira
1
Como lembra Souza (2006:24), “não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que
seja política pública”. Aqui adotamos a definição de política pública como o conjunto das
atividades do governo que, agindo direta ou indiretamente (por exemplo, por delegação ou
pela ação de agentes não governamentais), acabam por influenciar o cotidiano dos cidadãos.
Tais ações do governo se inspiram em um modelo institucional e em uma tradição históri-
ca de Estado.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 37
2
Como lembra o professor francês Frédéric Charillon (2002), a análise da política externa se
organiza como campo científico em meados dos anos 1950. Seu desenvolvimento fez-se essen-
cialmente com base em três dimensões principais: a) a teoria de política externa como instru-
mento de comparação entre as ações externas dos Estados; b) a análise dos contextos da política
externa; e c) a análise dos processos de tomada de decisão de política externa. São essas três di-
mensões que estão presentes em quase todas as teorias e conceitos de política externa.
38 Política externa brasileira
3
Aron (1986:52) afi rma que os “dois — e somente eles — agem plenamente não como mem-
bros, mas como representantes das coletividades a que pertencem: o diplomata, no exercício
das suas funções, é a unidade política em nome da qual fala; no campo de batalha, o soldado
é a unidade política em nome da qual mata o seu semelhante” (grifos do autor).
4
No mundo anglo-saxão, o termo constituency remete a qualquer grupo coeso de indivíduos
ligados por identidades compartilhadas, laços culturais, valores, interesses e lealdades co-
muns. O termo pode ser usado para descrever um conjunto de eleitores, apoiadores de uma
fundação, clientes ou acionistas de uma empresa. Portanto, o membro de uma constituency
seria um constituent (Bogdanor, 1985).
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 39
5
Souza (2006:28) apresenta a tipologia de políticas públicas elaborada originariamente por
Theodore Lowi em 1964, partindo da seguinte máxima: a política pública faz a política, ou
seja, cada tipo de política pública enfrenta diferentes formas de apoio e de rejeição, fazendo
com que disputas em torno de sua decisão passem por distintas arenas de negociação. O pri-
meiro modelo é o das políticas distributivas, decisões tomadas pelo governo que desconside-
ram a questão dos recursos limitados, gerando impactos mais individuais do que universais,
ao privilegiar certos grupos sociais ou regiões em detrimento do todo. O segundo é o das
políticas regulatórias, que são mais visíveis para o público, envolvendo burocracia, políticos
e grupos de interesse. O terceiro é o das políticas redistributivas, que atinge maior número
de pessoas e impõe perdas concretas e no curto prazo para certos grupos sociais, e ganhos
incertos e futuros para outros (as políticas sociais universais, o sistema tributário, o sistema
previdenciário, de regra, de mais difícil encaminhamento). O quarto é o das políticas cons-
titutivas, que lidam com procedimentos. Cada uma dessas políticas públicas gera pontos ou
grupos de vetos e apoios diferentes, processando-se, portanto, dentro do sistema político de
forma também diferente.
40 Política externa brasileira
Quadro 1
Configuração dos atores domésticos envolvidos na formulação
e na implementação da política externa brasileira
não logra mais escapar aos processos de tomada de decisão aos quais as
políticas públicas estão submetidas e que são característicos dos regimes
democráticos modernos, quais sejam: relação entre Poder Executivo e Le-
gislativo, possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, existência de
trâmites burocráticos (e uma política burocrática) e participação da socie-
dade civil, dos operadores empresariais e sindicais.
Além disso, no bojo do processo de redemocratização do Estado, a
Constituição de 1988 colaborou para a desconcentração da política exter-
na brasileira. Mesmo com a manutenção quase que irretocável das disposi-
ções do Executivo federal referentes às relações exteriores, a Carta Magna
ampliou o papel do Poder Legislativo no processo decisório. No próprio
texto constitucional podem ser encontrados os princípios norteadores da
ação do Estado na política internacional (art. 4o do título I),6 que, apesar de
bastante generalistas na definição de algumas orientações da política ex-
terna brasileira, impactaram na capacidade de ação dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário. Assim, o tradicional processo decisório da política
externa brasileira, centrado na atuação decisiva do Executivo e no papel do
Itamaraty, passou a ser objeto dos efeitos de democratização das políticas
públicas. Como afirma Lima (2000), a política externa passou a refletir não
só os constrangimentos sistêmicos, provenientes da própria estrutura da
ordem internacional, mas também, e principalmente, as estratégias estabe-
lecidas pelos atores domésticos no contexto da distribuição de interesses e
preferências no interior do Estado.
Além dos dispositivos constitucionais, outros fatores contribuíram
para a politização do campo da política externa brasileira, notadamente nos
últimos 20 anos, como: a) a própria abertura proporcionada pelo Itamara-
ty por meio de foros consultivos e da formação de delegações mistas (com-
postas por diplomatas e representantes da sociedade civil) para encontros
internacionais; b) a midiatização da política externa, o que atraiu a atenção
dos cidadãos comuns para as decisões tomadas pelo Estado brasileiro em
6
Os princípios são os seguintes: I — independência nacional; II — prevalência dos direitos
humanos; III — autodeterminação dos povos; IV — não intervenção; V — igualdade entre
os Estados; VI — defesa da paz; VII — solução pacífica dos confl itos; VIII — repúdio ao
terrorismo e ao racismo; IX — cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X — concessão de asilo político. Parágrafo único: a República Federativa do Brasil buscará
a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de nações.
42 Política externa brasileira
7
A antropóloga Cristina Patriota de Moura (2009) realizou uma pesquisa detalhada sobre
alguns dos aspectos relacionados ao capital social e ao capital simbólico, bem como à cultura
organizacional das redes do Itamaraty. Em seu livro, salienta, por exemplo, que a tradição e
a renovação são valores caros ao ministério, que também demonstra crescente preocupação
com a representatividade do corpo diplomático em relação à diversidade da população bra-
sileira. As políticas de reconhecimento do Itamaraty (bolsas de estudos para negros e, me-
dida anunciada para viger a partir de 2011, cotas no processo seletivo de diplomatas), apesar
da retórica e da midiatização excessiva, apresentam o potencial de, no longo prazo, produzir
efeitos sobre a cultura organizacional do Itamaraty.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 43
8
O termo accountability refere-se à obrigação, para governantes, parlamentares, membros do
Judiciário e gestores públicos em geral, de prestar contas aos cidadãos e à sociedade acerca da
gestão dos bens e políticas públicas, inclusive em matéria de política externa.
44 Política externa brasileira
Quadro 2
O Brasil e os acordos internacionais de direitos humanos
Possibilidade
Comparação
Instrumento Assinatura Ratificação Protocolos de envio de
com alguns
internacional pelo Brasil pelo Brasil facultativos petições
Estados
individuais
Pacto 24-1-1992, por adesão Ratificação dos Sim (petições 167 Estados-
Internacional e sem reservas dois protocolos individuais membros
sobre os em 2009 relativas aos
Direitos Civis e (Protocolo Estados-
Políticos (1966) sobre petições membros)
individuais,
1966; Abolição
da pena de
morte, 1998)
Pacto 24-1-1992, por adesão Não assinou Não, pois o 160 Estados-
Internacional e sem reservas o protocolo Brasil ainda não membros.
sobre os facultativo o ratificou Assinado por
Direitos sobre petições Cuba (2008),
Econômicos, individuais EUA (1977) e
Sociais e África do Sul
Culturais (1994), mas não
(1966) ratificado pelos
três Estados
46 Política externa brasileira
Possibilidade
Comparação
Instrumento Assinatura Ratificação Protocolos de envio de
com alguns
internacional pelo Brasil pelo Brasil facultativos petições
Estados
individuais
Convenção 31-3-1981 1-2-1984 Ratificou-o em Sim Assinada
sobre a 28-6-2002 pelos EUA em
Eliminação 1980, mas não
de Todas as ratificada
Formas de
Discriminação
contra as
Mulheres
(1979)
Convenção 7-3-1966 27-3-1968, Sem protocolo Sim 174 Estados-
Internacional sem reservas facultativo membros
sobre a
Eliminação
de Todas as
Formas de
Discriminação
Racial (1965)
Convenção 26-1-1990 24-9-1990 Ratificou os Não (o Comitê 193 Estados-
sobre os dois protocolos não as examina) membros. Os
Direitos da em 27-1-2004 EUA assinaram
Criança (1989) (crianças em 1995, mas
em conflitos ainda não
armados ratificaram
e venda/
pornografia)
Convenção 23-9-1985 28-9-1989, Ratificou-o em Sim 147 Estados-
contra a Tortura sem reservas 12-1-2007 membros. A
e Outros Índia assinou em
Tratamentos ou 1997, mas ainda
Penas Cruéis, não ratificou
Desumanos ou
Degradantes
(1984)
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 47
Possibilidade
Comparação
Instrumento Assinatura Ratificação Protocolos de envio de
com alguns
internacional pelo Brasil pelo Brasil facultativos petições
Estados
individuais
Convenção Não assinou Não ratificou Sem protocolo Não, pois o Tampouco
Internacional facultativo Brasil ainda não assinaram:
para a Proteção o ratificou África do Sul,
dos Direitos Alemanha,
de Todos os China, EUA,
Trabalhadores França, Índia,
Migrantes e Japão etc.
suas Famílias
(1990)
Convenção 30-3-2007 1-8-2008, Ratificou o Sim 97 Estados-
sobre os sem reservas protocolo membros
Direitos das sobre petições
Pessoas com individuais em
Deficiência 1-8-2008
(2006)
Convenção 6-2-2007 29-11-2010 Sem protocolo Protocolo 21 Estados-
Internacional facultativo previsto, mas membros.
para a Prote- ainda inexistente Também:
ção de Todas as Alemanha,
Pessoas contra Argentina,
Desaparecimen- Cuba, França,
tos Forçados Japão, Paraguai,
(2006) Uruguai etc.
Convenção 11-12-1948 11-4-1952, Sem protocolo Não 141 Estados-
sobre sem reservas facultativo membros.
Prevenção Muitos não
e Punição reconhecem a
do Crime de competência
Genocídio automática
(1948) da Corte
Internacional de
Justiça
Fonte: Dados compilados a partir da Conectas (2010) e <http://treaties.un.org>.
48 Política externa brasileira
9
Dados do portal do Ministério da Justiça, disponíveis em: <http://portal.mj.gov.br/data/
Pages/MJ7605B707ITEMID5246DEB0F8CB4C1A8B9B54B473B697A4PTBRIE.htm>.
10
A leitura atenta das recomendações feitas pelo governo brasileiro aos países durante o pro-
cesso de Revisão Periódica Universal (UPR, Universal Periodic Review, ferramenta de mo-
nitoramento criada pelo Conselho de Direitos Humanos) revela tendências que merecem ser
explicitadas: para os países africanos, prevaleceram, até agora, recomendações sobre ques-
tões de gênero; os direitos da criança foram enfatizados no caso dos países do Leste europeu;
a política de migrações e os direitos dos migrantes, para a Europa ocidental e os Estados
Unidos (que também receberam recomendações sobre o combate à tortura e detenções sem
julgamento); temas relativos a migrações, comunidades indígenas e populações negras, para
a América Latina (Conectas, 2010:152).
11
O embaixador Gilberto Vergne Saboia, que foi secretário de Estado para os Direitos Hu-
manos (entre 2000 e 2001) e presidente do Comitê de Redação da Conferência de Viena (em
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 49
respeito são, de fato, bastante críticas. Por um lado, a imprensa nacional de-
nunciou o que teria considerado uma inflexão grave nos posicionamentos da
PEB-DH do governo Lula. Inúmeros artigos e editoriais de jornais de cir-
culação nacional trataram da temática, condenando a “condescendência” da
política externa em relação a regimes autoritários, como nos casos da Coreia
do Norte, de Cuba, do Sri Lanka ou do Sudão. A aproximação estratégica
com o Irã e a mediação turco-brasileira proposta para o impasse sobre o pro-
grama nuclear iraniano também foram alvo de críticas.13 Por outro, o exce-
lente relatório sobre política externa e direitos humanos, publicado em 2010
pela ONG Conectas — Direitos Humanos, chamou a atenção para uma
série de posicionamentos do governo brasileiro no seio da ONU, sobretudo
na Assembleia Geral e no Conselho de Direitos Humanos. Em nota públi-
ca divulgada logo após a visita do presidente Lula ao conselho em junho de
2009, a Conectas reconheceu o papel cada vez mais relevante do governo
brasileiro em importantes temas da agenda de desenvolvimento no âmbito
internacional, porém afirmou que “a atuação do Brasil no conselho, no en-
tanto, tem sido marcada por ambiguidades, especialmente quando se refere
a casos de graves e persistentes abusos aos direitos humanos em países espe-
cíficos” (referindo-se, principalmente, à Coreia do Norte e ao Sri Lanka).14
Organizações da sociedade civil tendem a ter posicionamentos mais
universalistas em defesa dos direitos humanos, denunciando, portanto, as
posições conciliatórias mais recentes da PEB-DH em relação a regimes
considerados autoritários ou pouco democráticos. Nesse mesmo sentido,
são compreensíveis e legítimas as inúmeras críticas de várias organizações
não governamentais à aproximação do Brasil com o Irã, à mudança de
voto brasileiro em relação aos direitos humanos na China (a favor do no
action motion em 2004, enquanto, antes, o Brasil sempre se abstivera, sal-
vo em 1996, quando votou a favor) e ao voto em relação à Chechênia (de
abstenção em 2001/2002 ao voto contrário em 2003/2004). Elas refletem
uma filosofia sobre a sociedade mundial contemporânea, que deveria ser
13
Ver, por exemplo, o editorial de Merval Pereira (2010:4), e ainda a matéria assinada por
Fernanda Godoy, também em O Globo (20 nov. 2010, p. 41), sobre a abstenção brasileira na
votação de uma resolução — de censura ao Irã — da Assembleia Geral da ONU. Jamil Cha-
de (2010), correspondente em Genebra de O Estado de S. Paulo, também publicou matéria
intitulada “Brasil quer que ONU evite censura a países que violam direitos humanos”.
14
O conteúdo dessa nota é particularmente importante para a nossa análise. Sua versão in-
tegral encontra-se disponível em Conectas (2010:198-199).
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 51
Quadro 3
Sinopse ilustrativa de votos brasileiros em resoluções sobre países (2007-2010)
Sessão/ano País e teor Instância e voto
Irã: preocupação com violações de direitos Abstenção brasileira, mas resolução
humanos e liberdades fundamentais, (apresentada pelo Canadá) adotada
abolição das execuções públicas, minorias na AG/ONU.
religiosas e étnicas, emancipação da
comunidade Baha’i.
Bielarus: uso contínuo da justiça criminal Brasil se absteve na votação da
para silenciar a oposição política e resolução apresentada pelos EUA,
defensores de direitos humanos, detenção que foi adotada.
arbitrária, ausência do devido processo
62a
legal e julgamentos políticos não públicos.
2007/2008
Sudão: enfatizar a obrigação primária do Brasil se absteve. A emenda, proposta
governo do Sudão de proteger todos os por Canadá e Finlândia (em nome da
indivíduos contra violações de direitos União Europeia), foi rejeitada.
humanos e levar à justiça os responsáveis
pelas violações ocorridas em Darfur.
Sudão: a resolução recebe com satisfação Brasil votou a favor. Resolução
o relatório apresentado pelo grupo de apresentada pelo Egito (em nome
especialistas e reconhece os esforços do do grupo africano) e por Portugal
governo sudanês. Encerraram-se os trabalhos (em nome da UE) e adotada.
do grupo, sem renovação de mandato.
52 Política externa brasileira
15
É importante lembrar a grande dificuldade por que passou o regime internacional dos direi-
tos humanos em 1994, no caso do genocídio de milhares de tutsis em Ruanda. O presidente
George Bush chegou a justificar a manutenção do programa de assistência militar e o posi-
cionamento dos Estados Unidos com base na inexistência de evidências de abusos e violações
perpetrados por militares ou outros elementos do governo ruandês (Minayo, 2008:62).
54 Política externa brasileira
16
Ver a entrevista concedida pelo embaixador Celso Amorim à jornalista Susan Glasser, da
revista The Foreign Policy, em dezembro de 2010, disponível em: <http://www.foreignpolicy.
com/articles/2010/11/29/the_soft_power_power>.
17
Em Asano, Nader e Vieira (2009), encontramos uma exposição clara e detalhada da visão
crítica de algumas redes de ativistas aos limites da política externa brasileira no campo dos
direitos humanos, mais particularmente no que diz respeito às resoluções sobre violações em
países específicos.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 55
haja vista que a política externa brasileira no campo dos direitos humanos
manteve seus compromissos internacionais em relação às ratificações e aos
procedimentos especiais. Isso significa que o governo acolheu as deman-
das de organizações não governamentais e as integrou tão somente nes-
sa política de “segundo nível”, dissociando-as das prioridades de política
externa quanto à reforma da governança mundial e às parcerias estratégi-
cas. Parece-nos evidente que, como sublinha Belli (2009:15), “os valores,
princípios gerais e as obrigações na área dos direitos humanos atingiram
um alto grau de institucionalização internacional e não podem ser igno-
rados por nenhum Estado”. Mas isso não significa que não sejam passíveis
de críticas e propostas de mudanças.
De fato, essa inflexão dos votos brasileiros no conselho, na 3a Comis-
são e na Plenária da Assembleia Geral não pôs em xeque a continuidade
da política externa brasileira no campo dos direitos humanos em termos
de adesão ao regime multilateral de direitos humanos, que, desde a De-
claração Universal dos Direitos Humanos de 1948, sempre se revelou, na
ordem doméstica e no exterior, instrumento político convincente e cons-
trangedor. É evidente que ocorreram variações ao longo da história da
política externa brasileira desde os anos 1950 e durante a Guerra Fria
(Albaret, 2010), por motivos quer domésticos (mudança de regime, polí-
tica de governo, eventos críticos e catalisadores da opinião pública etc.),
quer sistêmicos globais ou regionais (combate ao comunismo, golpes mi-
litares na América do Sul, intercâmbios transnacionais entre organizações
da sociedade civil e ativistas de direitos humanos etc.).18 Na primeira fase
pós-ordem bipolar, entre 1989 e 1995, os direitos humanos representa-
ram uma bandeira não ideológica ao progresso social, mas o entusiasmo
com a causa arrefeceu com a emergência do pensamento único em torno
dos consensos neoliberais, com o desenvolvimento do relativismo cultu-
ral contrário ao reconhecimento de quaisquer valores universais19 e com
18
O historiador James Green (2009) faz uma análise instigante de como jornalistas, inte-
lectuais, estudantes, religiosos, artistas e parlamentares norte-americanos construíram com
seus pares brasileiros laços de solidariedade em torno da denúncia da desumanidade do regi-
me militar brasileiro. Seu livro é uma narrativa histórica da política bilateral Brasil-Estados
Unidos, mas na perspectiva dessas relações de solidariedade.
19
Como lembra Oliven (2010:45, 48), “denunciar o viés ocidental da Declaração Universal
dos Direitos Humanos talvez seja a reação mais comum daqueles que acham que direitos
humanos precisam ser definidos de acordo com os critérios de cada sociedade”, isso porque
muito dificilmente o Ocidente “pode se atribuir o papel de modelo para a humanidade”.
56 Política externa brasileira
20
Segundo Trindade (2009:20), a “contribuição da Comissão de Direitos Humanos não
deve passar despercebida: apesar das diferenças […] decorrentes dos confl itos ideológicos
próprios do período da Guerra Fria e também marcados pelo processo incipiente de descolo-
nização, conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos”, além de uma
série de métodos de petições ou denúncias, de relatórios e investigações, constituindo aos
poucos um complexo corpus jurídico. No entanto, a comissão foi extinta em sua 62a sessão,
em março de 2006, tendo sido, segundo Florêncio Sobrinho (2009:99), “minada por práti-
cas de seletividade na análise dos direitos humanos, sobretudo em caso de países específicos,
duplos padrões de monitoramento (double standards) e uma atitude marcadamente acusatória
(finger pointing)”. A proliferação de resoluções sobre países específicos derivava de motivações
políticas, tendo contribuído para a sua perda de credibilidade e culminado em sua extinção e
substituição pelo Conselho de Direitos Humanos, que ganhou em hierarquia institucional ao
poder se reportar diretamente à Assembleia Geral.
21
Interessante notar que o Brasil sempre manteve, ao longo de sua história de participação na
Comissão de Direitos Humanos da ONU, perfi l discreto e cauteloso nas votações das resolu-
ções sobre países, inclusive tendo feito a “opção preferencial pela abstenção” nesses casos. No
começo da década de 1990, a delegação brasileira passou a dar votos favoráveis a determina-
dos projetos de resolução sobre países, como nos casos do Timor-Leste (1993, 1997), Sudão
(1994, 1995, 1998, 2001-2003), Bósnia e Herzegovina (1994), Iraque (1994-1998, 2000-
2002), Irã (1994-1998, 2000), Nigéria (1997), República Democrática do Congo (1998), en-
tre outros (Belli, 2010:164-165).
58 Política externa brasileira
22
Vale notar que, no processo de Revisão Periódica Universal dos Estados Unidos no Conse-
lho de Direitos Humanos, em novembro de 2010, várias delegações — Brasil, Reino Unido,
entre outras — chamaram a atenção para o problema do acesso a Guantánamo. No pronun-
ciamento feito pela embaixadora M. Nazareth Farani, em 5 de novembro, encontra-se, por
exemplo, a seguinte passagem: “Brazil welcomes the measures announced by the US to address
grave violations of human rights committed under its counter-terrorism policy. […] In addi-
tion, Brazil recommends that the US takes measures to ensure reparation to victims of acts of
torture committed under US’s control, the accountability of those responsible for such acts,
the non-repetition of such acts, the non refoulement of detainees to countries where they may
be subjected to torture and allows access to the International Committee of the Red Cross
to detention facilities under the control of the US”. No pronunciamento do representante do
Reino Unido, lê-se por exemplo: “On the Guantánamo detention facility, we acknowledge the
challenges in completing its closure and commend efforts undertaken to date. We encourage
the administration and Congress to redouble their efforts to ensure closure in as timely a man-
ner as possible”. Documentos extraídos da extranet do Conselho de Direitos Humanos (acesso
mediante senha), que também disponibiliza inúmeros documentos oficiais para fins de pes-
quisa acadêmica.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 59
capacidade de pressão sobre governos repressivos, uma vez que elas pró-
prias adotaram políticas contrárias ao estado de direito no interior de suas
fronteiras, ou ainda se silenciaram diante da oferta de cooperação no com-
bate ao terrorismo por países considerados pouco democráticos, a exemplo
da Tunísia, do Egito ou da Arábia Saudita. “O etnocentrismo tradicional
dos países ocidentais foi levado ao paroxismo com a evidência, agora in-
questionável, de que estariam dispostos a sacrificar os direitos humanos e as
liberdades fundamentais em nome da segurança” (Belli, 2009:119). Portan-
to, a seletividade não diz somente respeito ao exame de alguns países que
não deveriam ser condenados, mas também à ausência de outros que talvez
merecessem ser objeto de resoluções. O governo dos Estados Unidos, por
exemplo, não aceitou que o relator especial sobre Tortura tivesse acesso de-
simpedido à base militar de Guantánamo e pudesse entrevistar de maneira
privada os detentos — o que impediu a realização de sua missão. Seguindo o
questionamento de Rahmani-Ocora (2006:15), “como o novo Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas poderia gozar de credibilidade, poder
e legitimidade em um mundo de política do poder?” Preocupada com o risco
de manutenção da política da seletividade, a ONG Human Rights Watch
publicou, em junho de 2010, um relatório detalhado sobre as práticas dos
Estados, aplaudindo a atuação de vários países latino-americanos, inclusive
o Brasil, e propondo medidas para melhorar o sistema de revisão dos casos
de violação dos direitos humanos no plano nacional.
23
Para uma análise detalhada do processo de reformas mais recentes do regime internacional
dos direitos humanos, ver Callejon (2008), Dominguez Redondo (2008), Murthy (2007),
Nader (2007), Rivlin (2008), Sweeney e Saito (2009), e Terlingen (2007).
60 Política externa brasileira
24
Em sua fundação fora previsto o compartilhamento da secretaria executiva entre uma enti-
dade da sociedade civil e uma agência governamental. O que ocorre atualmente pode ser reflexo
de descaso do governo ou de conquista de maior autonomia pelas organizações não governa-
mentais. Ambas as hipóteses foram aventadas durante as entrevistas realizadas, sem confirma-
ção prioritária de uma em detrimento da outra. Os dados sobre o comitê foram obtidos a partir
das entrevistas, de documentos institucionais e do site <www.dhpoliticaexterna.org.br>.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 63
Quadro 4
Exemplos de objetivos e destaques internacionais do
Programa Nacional dos Direitos Humanos-3
Instâncias responsáveis
Objetivo anunciado
pela execução
Construir e aprofundar agenda de cooperação multilateral em direitos SEDH/PR, Ministério das
humanos que contemple prioritariamente o Haiti, os países lusófonos Relações Exteriores (MRE) e
do continente africano e o Timor-Leste. Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome
Aprofundar a agenda Sul-Sul de cooperação bilateral em direitos SEDH/PR, MRE
humanos que contemple prioritariamente os países lusófonos do
continente africano, Timor-Leste, Caribe e América Latina.
Garantir o monitoramento dos compromissos internacionais assumidos SEDH/PR, MRE e Casa
pelo Brasil: i) elaborar relatório anual sobre a situação dos direitos humanos Civil da Presidência da
no Brasil, em diálogo participativo com a sociedade civil; ii) elaborar República
relatórios periódicos para os órgãos de tratados da ONU, no prazo por
eles estabelecidos, com base em fluxo de informações com órgãos do
governo federal e com unidades da Federação; iii) elaborar relatório de
acompanhamento das relações entre o Brasil e o sistema ONU que contenha,
entre outras, as recomendações advindas de relatores especiais do Conselho
de Direitos Humanos da ONU e as recomendações advindas dos comitês de
tratados da Revisão Periódica Universal (RPU); iv) definir e institucionalizar
fluxo de informações, com responsáveis em cada órgão do governo federal e
em unidades da Federação, referentes aos relatórios internacionais de direitos
humanos e às recomendações dos relatores especiais e dos comitês de
tratados; v) definir e institucionalizar fluxo de informações, com responsáveis
em cada órgão do governo federal, referentes aos relatórios da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e às decisões da Corte Interamericana
de Direitos Humanos; vi) criar banco de dados público sobre todas as
recomendações dos sistemas ONU e OEA feitas ao Brasil.
Considerações finais
25
Segundo Jamil Chade (O Estado de S. Paulo, 4 ago. 2010), o governo brasileiro já teria apre-
sentado uma alternativa à lógica de denúncias, que seria a realização de reuniões técnicas sem a
aprovação ou a proposição de resoluções. O encontro ocorreria na ONU, entre as agências in-
ternacionais e o governo em questão. Outra proposta brasileira foi a de promover viagens de
delegações de governos ao local da crise, algo que já ocorre em outros órgãos da ONU. No en-
tanto, governos europeus querem saber se essas viagens substituiriam a presença de relatores in-
dependentes. O temor é que uma delegação formada apenas por governos acabe, mais uma vez,
poupando o país envolvido na crise de críticas mais duras.
Atores e agendas no campo da política externa brasileira de direitos humanos 65
26
Fica, ademais, o desafio de integrar nesse modelo analítico as lógicas de ação do Estado (suas
agências e organizações diversas) na cooperação para o desenvolvimento, em que a causa dos
direitos humanos tende a ser usada como condição para a concessão e a aprovação de projetos.
Como o Brasil (doador) integra ou integrará essa perspectiva dos direitos humanos na coopera-
ção que vem desenvolvendo mais expressivamente com países africanos, asiáticos e latino-ame-
ricanos parece-nos constituir uma pergunta pertinente para futuras agendas de pesquisa.
66 Política externa brasileira
Bibliografia
* As visões expressas neste capítulo são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem
obrigatoriamente as posições do Ministério das Relações Exteriores (MRE) ou da SEDH/PR.
72 Política externa brasileira
mesmas forças que recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar
a linguagem da emancipação. É como se os direitos humanos fossem in-
vocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo ou, mais em ge-
ral, pelos projetos emancipatórios. Poderão realmente os direitos humanos
preencher tal vazio?
1
Fala-se muito comumente também em “politização” ou “excessiva politização”, mas aqui
evitarei o termo por considerar que os problemas a que se dedica um órgão responsável pelo
monitoramento dos direitos no mundo jamais podem ser tratados de maneira exclusivamente
técnica e que as soluções alcançadas devem passar necessariamente pelo político.
2
Milani (2008:164-165) apresentou interessante estudo sobre a participação social e a coo-
peração internacional para o desenvolvimento. O autor recorre à teoria do sistema mundo de
Wallerstein e indaga: “Em que medida as agências de cooperação não acabam por reforçar a
ideia de um desenvolvimento de acordo com a visão de um ‘colonizador’ ou de um ‘missio-
nário’? O desenvolvimento enquanto valor universal não seria determinista nas etapas que os
diferentes países deveriam seguir para alcançar o padrão de país desenvolvido? E desenvolvi-
mento e subdesenvolvimento não seriam, de fato, as duas caras de Jano, ou seja, os dois lados
de um mesmo processo global e histórico de desenvolvimento do capitalismo? Quer dizer,
desenvolvimento e subdesenvolvimento não seriam estruturas parciais mas interdependentes
que conformam um mesmo sistema?”.
76 Política externa brasileira
The Economic and Social Council shall set up commissions in economic and
social fields and for the promotion of human rights, and such other commis-
sions as may be required for the performance of its functions. (Art. 68, dis-
ponível em: <http://www.un.org/en/documents/charter>.)
contra a tortura (1984), a discriminação racial (1966), além dos dois pactos,
sobre direitos civis e políticos e econômicos e sociais (1966). O exame des-
sas convenções evidencia que a comissão logrou cumprir seu mandato no
que tange à codificação dos direitos humanos em legislação internacional.
Em paralelo, passou-se progressivamente a uma questão bem mais di-
fícil, de construção das condições para a efetivação dos direitos garantidos
pela letra da lei. É o que nos aponta Bobbio (2004:29):
3
Porém, a quem cabe decidir quando e que países devem ser individualizados como viola-
dores? Uma dimensão que vem recebendo grande destaque é a atuação do Brasil no conse-
lho, entendida como a postura tomada pelo país ante denúncias de violações sistemáticas
de direitos humanos envolvendo outros países. Alguns políticos de oposição, acadêmicos
e ONGs criticaram a política externa brasileira no campo dos direitos humanos durante o
governo Lula por supostamente não fazer a condenação necessária dos governos violadores.
Para uma síntese competente dessas críticas, ver Asano, Nader e Vilhena (2009). É um de-
bate extremamente complexo, pois envolve questões como a controvérsia sobre a eficácia da
adoção de postura que vise ao engajamento dos países violadores ou sua condenação pura e
simples. Além disso, incorre-se comumente em juízos que reproduzem a velha seletividade
ao individualizar países.
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 81
4
O conselho havia sugerido, em sua 6a sessão, em setembro de 2007, organizar o relatório
nos seguintes segmentos: a) descrição da metodologia e do processo consultivo para a pre-
paração do relatório; b) resumo do arcabouço institucional e legal para a proteção dos direi-
tos humanos no país, incluindo artigos da Constituição, legislação relevante, jurisprudência,
políticas públicas e instituições nacionais de proteção dos direitos humanos; c) promoção e
proteção dos direitos humanos no país: implementação de obrigações em direitos humanos,
atividades das instituições de proteção dos direitos humanos, cooperação com mecanismos
internacionais de proteção dos direitos humanos; d) identificação de resultados, de boas prá-
ticas e de desafios e constrangimentos à promoção e à defesa dos direitos humanos no país; e)
identificação de prioridades nacionais e iniciativas do Estado na tentativa de superar desafios
e melhorar as condições dos direitos humanos no país; f) expectativas do Estado em relação a
programas de capacitação e, se fosse o caso, inclusão de pedido de assistência técnica.
5
Gostaria de sublinhar o trabalho ao meu lado, como coordenadora pela SEDH/PR, da
gestora Mariana Carpanezzi. Por parte do MRE deve ser destacado o trabalho da chefe do
Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, Ana Lucy Gentil Cabral Petersen;
da então chefe da Divisão de Direitos Humanos, Márcia Maria Adorno Cavalcanti Ramos;
dos diplomatas da DDH, Carlos Eduardo da Cunha Oliveira e Melina Espeschit Maia; e da
oficial de Chancelaria Clara Martins Sólon. Muitos outros trabalharam na elaboração do re-
latório pelas duas instituições. Em particular, o envolvimento pessoal do secretário especial
dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e do secretário adjunto, Rogério Sottili, foi deter-
minante para o sucesso do exercício brasileiro.
84 Política externa brasileira
6
Para uma lista das entidades convidadas, bem como daquelas que compareceram a uma ou
mais reuniões e das que enviaram contribuições por escrito, ver a nota 3 no relatório (UN,
2008). A realização das reuniões foi divulgada com destaque no site da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos. Além disso, foram convidadas, por e-mail, para todas as reuniões,
assim como para a audiência pública, uma ampla gama de organizações, também listadas na
parte de notas do relatório nacional.
7
Os órgãos estatais envolvidos também estão listados na RPU brasileira, na nota 1 (UN, 2008).
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 85
8
Trabalhou-se inicialmente com o seguinte rol de direitos: direito a um nível de vida ade-
quado; direito à terra; direito a alimentação adequada; direito à educação; direito à saúde;
direito ao trabalho e a não ser submetido a escravidão; direito ao descanso, ao lazer e à cul-
tura; direito à segurança pública cidadã; direito de não ser torturado nem sofrer tratamento
desumano ou degradante; direito de acesso à justiça e ao Judiciário independente e democrá-
tico; direito a documentação civil básica; direito à memória e à verdade; direito a um meio
ambiente sadio; direito a igualdade racial; direito à livre orientação sexual e identidade de
gênero; direitos sexuais e reprodutivos; direitos das populações indígenas; direitos das po-
pulações tradicionais; direitos da criança e do adolescente; direitos da mulher; direitos dos
idosos; direitos das pessoas portadoras de deficiência.
86 Política externa brasileira
Não seria exagero dizer que imprimir ao relatório essa visão realista
foi o desafio mais complexo e persistente de todo o processo. Muito depois
de corrigido o questionário enviado aos órgãos governamentais o problema
continuava a existir, pois as respostas recebidas eram quase invariavelmen-
te autolaudatórias. A burocracia estatal tem uma compreensível dificuldade
de fazer um retrato autocrítico, devido a seu condicionamento. O corpo de
funcionários do Estado serve ao governo de turno formulando, implemen-
tando e propagandeando as políticas. Pedir a um órgão estatal uma avalia-
ção destinada ao público externo em que se deve apresentar aspectos ne-
gativos associados a políticas em curso faz acenderem-se todos os sinais de
perigo, indicando desgaste político à vista. Soa mesmo contraintuitivo aos
funcionários habituados às suas práticas cotidianas. E, no entanto, por for-
ça da proposta de autoavaliação crítica da RPU, à qual o Brasil sentia-se na
obrigação de dar o exemplo, era precisamente isso o que pedíamos.
Acrescentava-se ao problema a carência de fontes oficiais confiáveis em
diversas áreas pesquisadas. Quer fosse por problemas que pela própria natu-
reza são de difícil mensuração — caso do sub-registro civil de nascimentos
ou de crimes como a exploração sexual de crianças e adolescentes —, quer
fosse pelo fato de os dados oficiais discreparem largamente da percepção so-
cial da dimensão dos problemas — caso dos dados sobre violência no cam-
po —, a indisponibilidade de dados oficiais confiáveis concorreu também
para que o relatório não retratasse fielmente a realidade de violações de di-
reitos. Assim, contra a vontade da equipe governamental, a primeira ver-
são consolidada ainda se revelou demasiadamente edulcorada. Na audiência
pública realizada no Congresso Nacional, em fevereiro de 2008, houve a rei-
teração da crítica de falseamento da realidade pela equipe governamental,
e o problema só foi equacionado com o envolvimento pessoal do secretário
especial dos Direitos Humanos na redação do relatório.
Havia ainda a dificuldade de observar o desenvolvimento desigual das
diferentes áreas, pois uma crítica a determinada área pode ser retratada pela
88 Política externa brasileira
9
Ver o interessante dossiê sobre controle social no Le Monde Diplomatique Argentina de dezem-
bro de 2009.
O Brasil e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas 91
Bibliografia
Cultura
3.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio
Capanema: perspectivas e desafios de
uma diplomacia cultural no governo Lula
1
Note-se sobretudo a repercussão da obra de Samuel Huntington, The clash of civilizations and
the remaking of world order (1996), que defende a tese de que, no pós-Guerra Fria, as identida-
des culturais e religiosas dos povos seriam a principal origem dos conflitos da humanidade.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 97
2
O Decreto no 4.805 foi publicado no DOU de 13 de agosto de 2003. A “Estrutura regimen-
tal do Ministério da Cultura” é o Anexo I do decreto e está disponível em: <http://www.dji.
com.br/decretos/d-004805-12-08-2003.htm>.
3
Ver discurso proferido em 14 de abril de 2005 pelo ministro Gilberto Gil sobre a promoção
da economia criativa pelo governo brasileiro. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/
foruns_de_cultura/economia_da_cultura/industrias_ criativas>. O ex-ministro Juca Ferrei-
ra, que o sucedeu, manteve as diretrizes.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 99
4
Documento do Itamaraty do período “autonomista” de Itamar Franco, “O repensar do Ita-
maraty e da política externa brasileira”, apud Barros (1994).
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 103
5
Esse grupo não pertence aos quadros do Itamaraty, e vem significando um primeiro movi-
mento importante de reflexões sobre política externa que se situa no espectro da política mas
fora da corporação diplomática.
104 Política externa brasileira
6
Entre outros, é esclarecedor o discurso proferido pelo presidente Lula durante a cerimônia
de lançamento do Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual, em 13 de outubro de 2003
(disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos>), no qual
ressaltou que “a cultura está investida de um papel estratégico, no sentido da construção de
um país socialmente mais justo e de nossa afi rmação soberana no mundo”.
7
Essa expressão define um setor econômico que congrega atividades como artes, música,
dança, cinema, fotografia, desenho, arte multimídia, arquitetura, design, web design, moda,
publicidade, criação de videogames, softwares e as atividades ligadas à TV e ao rádio. Ou
seja, reúne a “criatividade, a arte, o negócio e a tecnologia”. Essa definição foi originariamen-
te formulada pelo Department for Culture, Media and Sport (DCMS) do Reino Unido.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 105
Digo isso porque o Museu Afro-Brasil, que hoje está sendo inaugurado
[…] vem se somar a esse conjunto de ações que nos aproximam vivamente
da África. Este novo museu vai nos ajudar a preservar o muito do próprio
continente africano que ainda existe entre nós […] O grande legado dos
artistas, artífices, cientistas políticos e demais cidadãos negros que contri-
buíram para a originalidade e diversidade da cultura brasileira fica, agora,
disponível para ser amplamente apreciado e estudado.9
8
Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido em Porto Alegre, no Santander
Cultural, em 5 de outubro de 2003, por ocasião da 4a Bienal de Artes Visuais do Mercosul.
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos>.
9
Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido em São Paulo, em 23 de outu-
bro de 2004, durante inauguração do Museu Afro-Brasil. Disponível em: <http://www.mre.
gov.br/portugues/politica_externa/discursos>.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 107
10
Ao tratar da dimensão externa da política cultural do governo Lula, o então ministro da
Cultura, Gilberto Gil, sempre enfatizou que a ação internacional do governo brasileiro não
se dava somente pela promoção da cultura brasileira em seus aspectos simbólico e econômi-
co, mas que essas ações eram articuladas com base em uma perspectiva mais ampla, orienta-
da pela defesa da diversidade cultural, a fim de combater as assimetrias sistêmicas do mundo
afetado pelo fenômeno da globalização. E nesse sentido, o ministro Juca Ferreira, que o su-
cedeu na pasta, deu continuidade às políticas de seu predecessor.
108 Política externa brasileira
11
Ver Brasil planeja eventos culturais na Alemanha. Rio de Janeiro, 6 jan. 2006. Últimas no-
tícias. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas/2006/01/06/ult59u98828.
jhtm>. Acesso em 22 abr. 2010.
12
Gil (2007:59). O ex-ministro Juca Ferreira deu continuidade às políticas de Gil.
13
Discurso do ministro Gilberto Gil no encerramento do Fórum Internacional das Indús-
trias Criativas, realizado em Salvador, em 20 de abril de 2005. Disponível em: <http://www.
cultura.gov.br/site/2005/04/19/discurso-do-ministro-gilberto-gil-no-encerramento-do-fo-
rum-internacional-das-industrias-criativas/>.
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 109
14
Trecho de transcrição própria de discurso do embaixador Edgard Telles Ribeiro no Fó-
rum Internacional das Indústrias Criativas. Disponível em: <www.cultura.gov.br/foruns_
de_cultura/economia_da_cultura/industrias_ criativas/index.php>.
110 Política externa brasileira
Mas alguns desafios nacionais devem ser enfrentados para que se possa
atingir, no que diz respeito ao consumo da cultura, índices mais expres-
sivos e mais de acordo com o tamanho populacional do Brasil. Dados do
MinC revelaram números espantosos sobre o consumo da cultura no país:
apenas 13% dos brasileiros frequentam alguma vez no ano uma sala de ci-
nema; 92% nunca visitaram um museu; 93,4% jamais estiveram presentes
em uma exposição de arte; 78% nunca assistiram a um espetáculo de dan-
ça; mais de 98% dos municípios não dispõem de salas de cinema, teatros,
15
Observe-se que o Itamaraty tem longa tradição em abrigar diplomatas escritores ou diplo-
matas artistas, como analisa o embaixador Alberto da Costa e Silva (2002).
Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema 111
16
Dados disponíveis no aplicativo Mais Cultura/MinC, em <http://www.cultura.gov.br>.
112 Política externa brasileira
Desde então, o país tem sido demandado por uma série de parceiros a respei-
to da compatibilidade entre duas posições vistas por muitos como distintas.
De um lado, a defesa, junto aos foros como a Unesco, a rede internacional dos
Ministros da Cultura e a Reunião de Ministros da Cultura do Mercosul, do
princípio da diversidade cultural; e, de outro, a atuação no Conselho de Servi-
ços da OMC, na qual fazemos pedidos para que países outros permitam que
suas populações tenham acesso à produção audiovisual brasileira.17
17
Pronunciamento do secretário Orlando Senna na XII Reunião da Conferência de Autori-
dades Cinematográficas de Ibero-américa (Caci), em Óbidos, Portugal, em 22 de junho de
2003. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/politicas/identidades>.
18
A CIC foi criada para garantir a cooperação horizontal entre os Estados, de forma a pro-
mover as relações culturais entre os países participantes, contribuir para a proteção e o desen-
volvimento da diversidade cultural sustentável e informar, qualitativa e quantitativamente, o
Observatório Interamericano de Políticas Culturais, de forma a subsidiar as Reuniões Intera-
mericanas dos Ministros da Cultura e das Altas Autoridades da Cultura do Conselho Inte-
ramericano de Desenvolvimento Integral (Cidi), bem como a Comissão Executiva Perma-
nente do Conselho Interamericano do Desenvolvimento Integral (Cepcidi). Desde 2002,
encontram-se também em estudo estratégias para a construção dos Sistemas de Informação
Cultural (CIS), com atividades compartilhadas entre os países.
114 Política externa brasileira
A princípio a Assembleia Geral [da Ompi] deste ano deveria decidir ba-
seada em propostas feitas ao longo dos últimos dois anos, mas na última
reunião, de junho, houve tentativa dos Estados Unidos, em conjunto com a
União Europeia, o Grupo B (de países desenvolvidos) […] de tirar da agen-
da vários itens propostos pelo Grupo de Amigos do Desenvolvimento, que
inclui Brasil, Argentina, África do Sul, Egito, Irã, entre outros, e que rece-
bem maciço apoio do Chile e da Índia. Por consequência, o último grupo
mencionado se negou a continuar nas discussões, argumentando que havia
tentativa de se esvaziar a Agenda [Paranaguá, 2006].
Considerações finais
19
Ver <http://www.bndes.gov.br/cultura>.
116 Política externa brasileira
Bibliografia
Monique Badaró
1
Segundo Simon Harel, o conceito de mobilidade descreve antes de tudo a aptidão de mo-
vimento entre mais de um domínio cultural.
124 Política externa brasileira
2
Ver edital DG EAC/09/2009 do Directorate-General for Education and Culture.
126 Política externa brasileira
3
Criada em 1922, foi transformada em CulturesFrance e recentemente no Institut Français.
4
Ver Soares, 2008; Wyszomirski, Burgess e Peila, 2003; e Lapa, 2009.
128 Política externa brasileira
5
Há também um prêmio de residência no Brasil concedido pela Fundação Álvaro Penteado
(Faap), de São Paulo.
136 Política externa brasileira
A efetividade do programa
6
Depoimento de Caetano Dias, artista visual baiano que já participou de outros quatro pro-
gramas de residência além do PAR.
7
Depoimento de Gaio, artista visual baiano que já se beneficiou de duas bolsas de residên-
cia através do PAR.
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 139
8
Agência de promoção cultural francesa criada pelos ministérios de Assuntos Estrangeiros
e Cultural, e sucessora da Affa.
Mobilidade artística internacional e a política cultural internacional da Bahia 141
9
Algumas dessas sugestões são encontradas em Jobbé-Duval (2008).
142 Política externa brasileira
Considerações finais
Bibliografia
Educação
5.
Política externa e educação: confluências
e perspectivas no marco da integração
regional*
Leticia Pinheiro
Gregory Beshara
* Agradecemos a todos aqueles que colaboraram na realização desta pesquisa, contribuindo com
suas pesquisas, seus comentários e depoimentos, em especial a Maria Regina Soares de Lima
(Iesp/Uerj), Monica Hirst (UTDT), José Flavio Sombra Saraiva (UnB), Alessandro Candeas
(MRE), Daniel Lopes (MRE), Milene Reis (MEC), Magda Coelho (MEC), Ana Clara Abreu
(PUC-Rio), Tatiana Santos Oliveira (Iesp/Uerj) e Sol Marques (PUC-Rio). Agradecemos tam-
bém aos alunos do Curso de Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio, que, nas dis-
ciplinas Tópicos de relações internacionais e Atores e agendas da política externa brasileira, entre
2006 e 2010, nos ajudaram a refletir sobre a nova configuração da arena de formulação da políti-
ca externa brasileira. Dedicamos a eles este capítulo, na certeza de que nele reconhecerão alguns
dos debates travados em sala de aula e de que continuarão a contribuir para o aprofundamento
dessa reflexão, assim como para o aprimoramento dessa prática. As entrevistas foram realizadas
graças ao apoio do CNPq, por meio da rede Expansão, Renovação e Fragmentação das Agendas
e Atores da Política Externa, coordenada por Leticia Pinheiro.
150 Política externa brasileira
1
Conforme Weber, “uma comunidade cuja ação social é dirigida para a subordinação de um
território e da conduta das pessoas dentro dele à dominação ordeira por parte dos participan-
tes, através da disposição de recorrer à força física, incluindo normalmente a força das armas”
(1978:901, apud Oliveira, 1999).
2
Entre esses tantos elementos, podemos citar as influências neoliberais e seus efeitos sobre o
papel de liderança do Estado na regulação da economia e da sociedade; o fortalecimento de
organizações políticas regionais e supranacionais, reduzindo os poderes do aparato estatal
em determinadas áreas; os efeitos que a diversidade, a heterogeneidade e mesmo a fragmen-
tação das sociedades modernas operaram sobre o conceito de identidade nacional; a crescen-
te participação de atores não estatais (nacionais ou transnacionais) na definição das políticas
do Estado etc.
152 Política externa brasileira
3
Para um excelente mapeamento das funções constitucionais e regulares dos órgãos que in-
tegram o Poder Executivo Federal brasileiro, ver França e Sanchez Badin (2010); e Cintra
(2010).
Política externa e educação 153
4
Ver Cintra (2010), Faria (2008), Figueira (2010), França e Sanchez Badin (2010) e Pinheiro
(2009).
154 Política externa brasileira
bloco. Para tanto, nossa escolha recaiu sobre iniciativas que se voltam para
a tentativa de construção de uma identidade comum potencialmente capaz
de estimular e consolidar o projeto de integração regional. Nesse caso, trata-
se da utilização de projetos educacionais distintos — a alfabetização bilín-
gue e o ensino das disciplinas de história e geografia — para fomentar uma
identidade que fortaleça um projeto de aproximação entre os Estados. Em
outras palavras, pontuamos que os projetos educacionais buscaram operar
como instrumentos na construção de uma identidade regional sul-americana
em direção ao adensamento do projeto de integração regional. Nesse plano,
levantamos a hipótese de que, tal como no caso de outros ministérios e agên-
cias, o Ministério da Educação é protagonista do exercício de uma diploma-
cia — a educacional —, embora não tenha exatamente uma agenda própria
de política externa.
Nesta investigação constatamos que, se nos restringíssemos a defi-
nições muito rigorosas de autoria, ou aos pré-requisitos que definem uma
instituição ou um indivíduo como uma unidade de decisão em política ex-
terna (Hermann, 2001), o que ganharíamos em precisão conceitual perde-
ríamos em capacidade explicativa do processo de formulação da política
externa contemporânea. Assim, embora determinadas instituições, como o
MEC, não detenham o grau de autonomia necessária na política externa
brasileira para serem caracterizadas como uma unidade decisória de polí-
tica externa, isso não deve impedir o reconhecimento do impacto substan-
tivo de sua presença sobre o conteúdo da política. Assim, apesar de não ser
propriamente um ator, no sentido da plena capacidade de atuação, o MEC
possui considerável poder de agência (Bretherton e Vogler, 1999).
Sublinhamos que a presente pluralização de atores — causa e efeito
da diversificação temática da política externa — também deve ser pensada
como um elemento central na compreensão da política externa brasileira
contemporânea. Duas categorias ou expressões complementares ajudam
a entender esse novo quadro: dispersão disciplinada, como sugere Beshara
(2008), e horizontalização controlada, como sugere Pinheiro (2009). Ambas,
como veremos, resumem os dois movimentos por que passa atualmente a
formulação e a implementação da política externa brasileira em suas di-
ferentes modalidades diplomáticas: participação crescente e diversificada
de atores na formulação e implementação da política externa, conceden-
do maior respaldo interno, legitimidade externa e eficiência às políticas e
às decisões; e busca incessante de coordenação e controle sobre essa nova
configuração da política externa brasileira por parte do Itamaraty.
Política externa e educação 155
5
Ver <http://www.mercosul.gov.br/organograma/organograma-mercosul/view>.
6
“En todos los países signatarios del Tratado de Asunción, se percibió con claridad que la
educación debía jugar un rol principal y que el Mercosur no podía quedar supeditado a me-
ros entendimientos económicos” (Plano de Ação 2006-2010, p. 4).
156 Política externa brasileira
7
Ver Mercosul social e participativo (2007:35). Disponível em: <www.secretariageral.gov.
br/internacional/mercosulsocialeparticipativo>.
Política externa e educação 157
8
A atual estrutura organizativa do Mercosul Educacional foi estabelecida na XXI Reunião dos
Ministros da Educação, ocorrida em Punta del Este em 2001, sendo aprovada pela Decisão
no 15/01 do Conselho do Mercado Comum. Os principais órgãos deliberativos são: a) Reu-
nião de Ministros da Educação (RME): instância decisória máxima, responsável pela definição
das políticas a serem implementadas na área educacional; b) Comitê Coordenador Regional
(CCR): órgão assessor da RME, composto por membros políticos e técnicos dos países-mem-
bros, propõe políticas de integração e de cooperação no âmbito da educação, assessora a Reu-
nião de Ministros e coordena o desenvolvimento da atuação do SEM; c) comissões regionais
coordenadoras de área (CRCs): divididas em comissões técnicas correspondentes a áreas de
ensino (educação básica, educação tecnológica e educação superior), devem assessorar o CCR
na definição das estratégias de ação do SEM e propor mecanismos para a implementação dos
objetivos e linhas de ação definidas no plano de ação do setor; d) grupos gestores de projetos
(GGPs): responsáveis pela elaboração e implementação desses projetos, são constituídos como
instâncias temporárias específicas convocadas ad hoc pelo CCR, estando vinculados a uma
CRC ou ao próprio CCR. A instância à qual o GGP está vinculado é responsável pelo acom-
panhamento da gestão e da execução do projeto (Ata da XXI Reunião de Ministros da Edu-
cação, 2001, anexo IV). Há ainda o Sistema de Informação e Comunicação (SIC), instância
responsável por suprir as necessidades de comunicação, gestão do conhecimento, informação
e trabalho cooperativo no âmbito do SEM, respondendo pela manutenção da página do Mer-
cosul Educacional na internet. O Brasil é encarregado da coordenação do SIC. Ver Mercosul
social e participativo (2007:40); e Beshara (2008:63-65).
9
Outro espaço em que o MEC vem sendo muito atuante é nos projetos levados a termo no
âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, seja através de acordos de coope-
ração técnica, concessão de bolsas de estudo ou mesmo da criação de universidades, como
a Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), oficial-
mente criada em 20 de julho de 2010.
158 Política externa brasileira
10
Essa iniciativa inspirou-se no Bologna Process da União Europeia, que tem por objetivo a
criação de uma European Higher Education Area, onde aos estudantes seria facultada a sele-
ção de cursos diversos e da maior qualidade em qualquer país-membro da UE, com a garan-
tia do aproveitamento dessa experiência na universidade de origem. Vale notar que, embora
a educação tenha se tornado um dos campos de atuação da Comissão Europeia apenas com
o art. 126 do Tratado de Maastricht (1992), muito antes o tema já fazia parte da agenda de
discussões (Petit, 2007). Num universo em que abundam estudos sobre o desenvolvimen-
to de uma identidade europeia a partir de iniciativas tomadas no escopo da UE, o papel da
educação nesse processo vem se somando à discussão. Um exemplo são as investigações so-
bre o projeto Erasmus (European Region Action Scheme for the Mobility of University Students),
criado em 1987 e concebido como uma ferramenta auxiliar na construção de um novo tipo
de identificação política — a identidade europeia, que buscaria manter a identidade nacional
e com ela conviver (Abreu, 2009:4, Bennhold, 2005).
11
Trata-se de uma universidade criada pelo governo brasileiro, com sede em Foz do Iguaçu,
Paraná, na tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, em campus estabelecido com
o apoio da hidrelétrica de Itaipu Binacional, cujo objetivo é fortalecer o Mercosul por meio
do ensino e da pesquisa de assuntos pertinentes à integração regional. Assim, serão preconi-
zados temas como recursos naturais, biodiversidade, ciências sociais, linguística e Relações
Internacionais, em aulas ministradas tanto em português quanto em espanhol. A previsão é
de que a Unila, cujas atividades tiveram início em 2010, venha a comportar cerca de 10 mil
alunos, somando graduação e pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. O corpo do-
cente da universidade deve ser composto por cerca de 500 profissionais, metade permanentes
e metade temporários, periodicamente preenchido por professores visitantes. Os professores
também serão divididos por nacionalidade, sendo metade brasileiros e metade originários
dos demais países do Mercosul. O corpo discente também será constituído por brasileiros e
por alunos dos Estados-membros do bloco. Por isso, o processo seletivo para o ingresso na
instituição será oferecido em duas versões — em português e em espanhol — e contemplará
conteúdos referidos à América Latina em geral e não ao Brasil especificamente.
Política externa e educação 159
Escolas de fronteira
Com relação ao primeiro projeto, é importante sublinhar que o ensino do
espanhol e do português é uma política que, desde o início, tem sido en-
fatizada nas deliberações do SEM. Já em sua fundação, o Protocolo de
Intenções, de 1991, atestava “o interesse de difundir o aprendizado dos
idiomas oficiais do Mercosul — espanhol e português — através dos sis-
temas educacionais formais, não formais e informais”. O recente Plano de
Ação 2006-2010 do SEM voltou a defender “el fomento de la enseñanza
del español y del portugués como segundas lenguas” (p. 16). Validando essa
perspectiva, foi aprovada, no Brasil, a Lei no 11.161/2005, que tornou obri-
gatória a oferta do ensino do espanhol como língua estrangeira nas escolas
de nível médio.12
No que tange particularmente ao projeto Escolas de Fronteira, deve-
se notar que sua criação decorreu de protocolo assinado entre o ministro da
Educação, Ciência e Tecnologia da Argentina e o ministro da Educação do
Brasil em junho de 2004, tendo como meta promover o ensino do espanhol
e do português como segundas línguas, com o objetivo declarado de for-
talecer a integração regional. Implementado com o apoio operacional das
secretarias municipais e estaduais de Educação, cuja colaboração é consi-
derada essencial para o bom funcionamento do projeto,13 a ideia foi imple-
mentar uma educação bilíngue no ensino fundamental de escolas públicas,
de modo a promover o intercâmbio cultural a partir do aprendizado do idio-
ma do país vizinho, dessa forma levando a cabo “proyectos educativos cuyas
actividades se orientaron a instituir un nuevo concepto de frontera”.14 Com
12
Ver p. 50 do Relatório da Assessoria Internacional do Ministério da Educação, de 2007.
13
Entrevista de Milene Reis, da Assessoria Internacional do MEC, a Leticia Pinheiro, em
Brasília, em 9-7-2009.
14
Grifo nosso. Ver <http://www.mercosul.inep.gov.br/index.php?option=com_content&task=
view&id=270&Itemid=96&lang=es>. Note-se que há uma grande semelhança entre esse proje-
to e o Lingua Programme da União Europeia (Petit, 2007:13). Outra iniciativa semelhante im-
plantada na Europa e comparável a esta é a do governo da Turquia, relatada por Yanik (2004). A
autora mostra como o governo desse país investiu nessa prática ao longo da década de 1990, por
meio de uma política de intercâmbio educacional com as repúblicas turkics da antiga União So-
viética e da Eurásia. Conscientes da importância da educação como um poderoso mecanismo de
criação de identidade e mudança social, conforme explica Yanik (2004:294), as autoridades turcas
pretenderam com essa política “to create a stratum of people who would be well versed in Turk-
ish culture and language, which then would act as a bridge between their countries and Turkey.
The students coming out of this educational experience were expected to bear the ‘Turkic iden-
tity’ that the Turkish elites thought was in the making since the Turkic republics gained their in-
dependence in 1991”. Independentemente dos resultados concretos alcançados por essa política,
Política externa e educação 161
Yanik (2004:304) reitera que “education can be used as one of the most direct means to mould
the political culture of a target country by attempting to create a generation of elites familiar with
and sympathetic to the culture and to the country that provides education”.
15
O projeto piloto propunha desenvolver atividades conjuntas em quatro escolas, duas brasileiras
e duas argentinas: a Escola Estadual de Educação Básica Theodureto Carlos de Faria Souto, em
Dionísio Cerqueira (SC); a Escola de Educação Geral Básica Mayor Juan Carlos Leonetti,
em Bernardo de Irigoyen, província de Misiones; a Escola Municipal de Ensino Fundamental
localizada no Caic de Uruguaiana; e a Escola de Educação Geral Básica Vicente Eládio Verón
(ver <http://www.unesco.org.br/noticias/releases/2005/ciencia/mostra_documento>).
16
Entrevista de Milene Reis, da Assessoria Internacional do MEC, a Leticia Pinheiro, em
Brasília, em 9-7-2009.
17
Segundo Milene Reis, em sua entrevista de 9-7-2009, com o projeto já em andamento, o
depoimento dos professores acusou disparidades culturais entre as partes (Brasil e Argenti-
na), revelando estarem de fato as populações locais de costas umas para as outras, cada uma
com sua cultura, em particular no que dizia respeito à distinta relação de hierarquia e rela-
cionamento entre professores e alunos brasileiros e argentinos.
162 Política externa brasileira
18
Ver Ata no 2/99 da XVII Reunião de Ministros da Educação dos Países Signatários do
Tratado do Mercado Comum do Sul, disponível em: <http://www.sic.inep.gov.br/index.
php?option=com_docman&task=cat_view&gid=48&Itemid=32&lang=br>.
Política externa e educação 163
não há, nos livros escolares de história do Brasil, nenhum capítulo sobre
Guerra com a Argentina, mas existe, nos livros argentinos, um importante
capítulo sobre a Guerra contra o Império do Brasil. Trata-se do que no Bra-
sil é ensinado como a Guerra Cisplatina, que deu origem ao Uruguai inde-
pendente. Histórias diferentes? Não, perspectivas diferentes sobre os mes-
mos fatos históricos. A aproximação e o conhecimento recíproco podem
auxiliar na superação de preconceitos e estereótipos. Ensinam-se com mui-
to maior frequência nas escolas aspectos da história moderna e contempo-
rânea da Europa e sobre seus rios e montanhas [do] que sobre os processos
coloniais, de independência e de modernização e desenvolvimento, tão mais
próximos de nossos vizinhos. Não se trata de uma historiografia revisionista
164 Política externa brasileira
Não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mes-
mos, está associada à história que nos ensinaram quando éramos crianças.
19
Como nos lembra Beshara (2007:4), inúmeros exemplos validam essa perspectiva: “Na
Índia, as conquistas territoriais feitas pelo país, ainda que ocorridas à força, como as do
Camboja, de Java e de Sumatra, são narradas pela história oficial como “libertação”, sendo
a indianização encarada como adesão voluntária ao modo de vida indiano (Ferro, 1983:34).
Na antiga União Soviética, a legitimidade do poder do PC baseava-se na história, tornando-a
um assunto de Estado, “visto que o Partido Comunista se apresenta como a vanguarda e a ex-
pressão da classe operária a que, segundo a visão marxista da história, cabe a tarefa de realizar a
passagem ao comunismo” (ibid., p. 17). No Japão, “toda a história do país devia se adaptar a um
dogma fundamental: o de que o status do imperador e de seus vassalos fora fixado para sempre
[…] quando da criação do Japão pelos deuses” (ibid., p. 35).
Política externa e educação 165
Ela nos marca pelo resto da vida. Sobre essa representação, que é para cada
um de nós uma descoberta do mundo e do passado das sociedades, enxer-
tam-se depois opiniões, ideias fugazes ou duradouras, como um amor.
Não estaríamos carregando muito as tintas sobre uma história anterior que
“deve” convergir para o esforço de integração do presente? Não seria essa
uma forte intervenção ideológica, presentista e teleológica sobre a história
da região?
Há uma exagerada tendência, nos novos enfoques integracionistas, para
a acomodação dos conflitos históricos e para o silêncio acerca dos perío-
20
Trecho de Fado tropical, de autoria de Chico Buarque e Ruy Guerra.
166 Política externa brasileira
21
Em 1938, Vargas baixou decreto impondo a Campanha de Nacionalização da Educação no
Brasil. Com essa decisão o governo buscava integrar, mesmo que tardiamente, os imigrantes
europeus — em especial alemães, italianos e japoneses. Mas mais que isso: tratava-se de fo-
mentar a identidade nacional proibindo a utilização de língua estrangeira e a publicação de
qualquer tipo de comunicação pública ou privada em outra língua que não o português. E
foi nesse quadro que, entre 1938 e 1940, foram nacionalizadas inúmeras escolas nos núcleos
de colonização alemã, principalmente no Sul do país. No entanto, o período compreendi-
do entre 1938 — ano em que foi inaugurada a Campanha de Nacionalização — e o final de
1940 coincidiu justamente com o período em que Vargas ainda perseguia aquilo que Moura
Política externa e educação 167
cunhou como uma política de equidistância pragmática, ou seja, uma política de aproximações
alternadas e simultâneas com os Estados Unidos e a Alemanha, visando a tirar proveito da
disputa latente entre os dois (Moura, 1980). Foi com o fim da política de equidistância prag-
mática que a aliança do Brasil em oposição aos países do Eixo passou a se favorecer e foi mes-
mo usada em favor da Campanha de Nacionalização (contra japoneses, alemães e italianos).
Afinal, se antes a utilização do nazismo como justificativa para controlar toda a comunidade
teuto-brasileira, que de resto não era toda nazista, constituía uma ameaça aos interesses do
país, tendo em vista suas ligações econômicas com a Alemanha, agora essa justificativa po-
dia ser intensificada e mesmo apoiada. Afinal, já não se tratava “apenas” de reafi rmar a na-
cionalidade, mas também, e principalmente, de uma questão de segurança máxima, no bojo
da guerra mundial. Foi apenas em um segundo momento, ou seja, já alcançando o período
1941-1943 e quando a própria Campanha de Nacionalização já arrefecera que, aí sim, como
bem notaram Schwartzman, Bomeny e Costa (2000:159-160), “[d]esagregar o grupo alemão
[passou a ser obviamente] garantir a unidade nacional e combater as influências nazistas no
território brasileiro. Com esse novo ingrediente, o governo poderia eximir-se das acusações
de propulsor de uma política nacionalista xenófoba — de resto atribuída ao fascismo e ao
nazismo —, legitimando-se como protetor de uma identidade nacional contrária à doutrina
nazifascista (agora sim em linha com a opção diplomática), ou seja, ação legítima em face da
ameaça de nível internacional e sistêmico”. E continuam: “Tudo se passa como se a nacio-
nalidade brasileira, já constituída, estivesse sofrendo a ameaça de ser destruída pela ação de
grupos estrangeiros afinados com o nazismo, e não o contrário, ou seja, que sua construção
estivesse condicionada à eliminação dos grupos e culturas diferenciadas”, agora sustentada
e legitimada pela ação aliada. Daí se entende que foi justamente quando a campanha come-
çou a perder força que mais se intensificou a nacionalização de núcleos germânicos — das 2
mil escolas desses núcleos nacionalizadas, a maioria o foi após 1942. Trata-se aqui, de modo
muito interessante, de uma prática de erguimento de fronteiras internas, de exclusão do ou-
tro no interior do país; portanto, de fazer política externa internamente.
22
Grifo nosso. Ver <http://www.mercosul.inep.gov.br/index.php?option=com_content&task=
view&id=270&Itemid=96&lang=es>.
168 Política externa brasileira
A diplomacia da educação
Por essa breve descrição de projetos elaborados pelo MEC, pode-se per-
ceber que a atuação do Brasil nesse arranjo tanto reflete a dilatação dos
assuntos tratados pelo Mercosul quanto, sem dúvida, uma expansão de
atores na política externa brasileira.23 Tal expansão de atores, porém, ain-
da causa algum desconforto na agência diplomática brasileira.24 Como
23
Entre os ministérios mais ativos nesse campo, o da Saúde, sem dúvida, merece destaque.
Sua atuação no campo da cooperação internacional é de grande visibilidade, sendo sua as-
sessoria internacional a que talvez mais se pronuncie, possuindo inclusive um boletim es-
pecífico, o Cooperação Saúde, cujo primeiro número foi lançado em outubro de 2009, e que,
com periodicidade trimestral, busca fornecer informações atualizadas sobre a atuação inter-
nacional do ministério. É digno de nota a clareza com que o editorial desse primeiro número
do boletim afi rma a inserção da saúde na política externa brasileira e a atuação particular —
embora não isolada do MRE e da ABC — do Ministério da Saúde nesse campo.
24
Na década de 1990, quando já era clara a inevitabilidade desse novo cenário, alguns diplo-
matas se posicionaram a respeito. Em sua investigação sobre a presença da saúde na agenda
externa, por exemplo, Rubarth (1999:226) afi rmava: “a incorporação sistemática dos temas
sociais, especialmente os da saúde, na formulação da política exterior do Brasil reforça a le-
gitimidade do trabalho diplomático, na medida em que este ficará alinhado não só com as
prioridades programáticas do governo, mas também com as aspirações de grande parte da
sociedade. A fim de assegurar a efetividade desta tarefa, sugeriu-se que ela seja desenvolvida
preferencialmente de forma integrada entre a Chancelaria e os órgãos setoriais do governo,
em particular os da saúde, e seja conduzida externamente pelo Itamaraty”. E, em palestra
na Escola Superior de Guerra, pontuava o então secretário-geral das Relações Exteriores,
embaixador Sebastião do Rego Barros (1996): “Inspirado por objetivos permanentes, o Ita-
maraty desempenha duas tarefas primordiais que antecedem a execução da política externa:
a formulação de suas diretrizes gerais e a coordenação com os demais órgãos do governo e
entidades civis. […] A importância do trabalho de coordenação deve-se à grande multipli-
cidade e complexidade dos temas da política externa. A multiplicidade de temas exige do
diplomata transitar por áreas tão distintas quanto comércio exterior, meio ambiente, desar-
Política externa e educação 169
O Itamaraty […] é o nosso norte. Ele norteia as ações, ele acompanha para
que não haja nenhum problema de nível de diplomacia. Nas reuniões de mi-
nistros da Educação nós temos um representante do Itamaraty, ele não tem
poder de palavra, de voto, nada […]. Ele é consultado. Ele está lá mais para
27
Pesquisa recente sobre a atribuição de competências aos órgãos do governo concedida pela
Lei no 10.683/2003 e pelos decretos específicos que estabelecem a estrutura regimental dos
ministérios, secretarias e conselhos que compõem o Poder Executivo Federal indica que a
nada menos que 45% dos ministérios é atribuída competência relacionada à política externa
(Cintra, 2010:339).
Política externa e educação 171
28
Entrevista de Milene Reis, da Assessoria Internacional do MEC, a Leticia Pinheiro, em
Brasília, em 9-7-2009.
29
Entrevista de Alessandro Candeas, assessor internacional do MEC de 2005 a 2007, a Le-
ticia Pinheiro, em Brasília, em 31-3-2009.
172 Política externa brasileira
30
Discurso do ministro da Educação, Fernando Haddad, na cerimônia de posse da comis-
são para implantação da Unila, em 6 de março de 2008. Disponível no site institucional do
Mercosul Educacional.
31
Discurso do ministro da Educação, Fernando Haddad, em Belo Horizonte, na cerimônia
de encerramento do III Fórum Educacional do Mercosul, em 24 de novembro de 2006. Dis-
ponível no site institucional do Mercosul Educacional.
Política externa e educação 173
32
Aula magna intitulada “A diplomacia do governo Lula”, proferida pelo chanceler Celso
Amorim no Instituto Rio Branco em 10 de abril de 2003.
174 Política externa brasileira
Conclusão
33
É de notar que no projeto Escolas de Fronteira implantado com a Bolívia previa-se o ensi-
no trilíngue, incluindo, além das línguas oficiais do português e do espanhol, o guarani. En-
trevista de Alessandro Candeas a Leticia Pinheiro, em Brasília, em 31-3-2009.
176 Política externa brasileira
Bibliografia
Alessandro Candeas
Este capítulo tem como objetivo propor que o Brasil fortaleça sua diplo-
macia acadêmica, intelectual e científica. Tal diretriz se inscreveria no âm-
bito de um soft power1 compatível com as tradições da política externa bra-
sileira, em benefício de uma agenda positiva na qual todos os parceiros
ganham. Para tanto, é preciso afirmar a educação mais sistematicamen-
te como parte de uma diplomacia voltada para a “civilização do conheci-
mento”. A natureza desta, que tem sido descrita por expressões como soft/
weightless economy e “cognitariato”, tende a transferir a batalha contra as as-
simetrias para o campo dos hiatos cognitivos.
A elevação do Brasil a patamares mais importantes de poder e in-
fluência no cenário internacional resulta, entre outros fatores, de seu pa-
pel impulsionador de uma agenda de desenvolvimento e de cooperação
Sul-Sul. Nessa perspectiva, o prestígio externo da agenda educacional do
Brasil abre amplas possibilidades de cooperação e intercâmbio, que são
cada vez mais demandados por nossos parceiros. A educação é uma das
áreas nas quais políticas públicas nacionais podem se projetar mundial-
mente, levando soluções brasileiras a problemas enfrentados por diversos
países, sobretudo os mais pobres.
1
“Soft power is the ability to achieve desired outcomes in international affairs through at-
traction rather than coertion. [...] Soft power can rest on the appeal of one’s ideas [...] If a sta-
te can make its power legitimate in the perception of others [...], it may not need to expend as
many of its costly traditional economic or military resources” (Nye, 1990:3).
182 Política externa brasileira
Cooperação bilateral
2
Programa desenvolvido pelos ministérios das Relações Exteriores e da Educação que ofe-
rece oportunidades de formação superior a cidadãos de países em desenvolvimento com os
quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais.
3
O programa visa ao enriquecimento mútuo da União Europeia e países terceiros na área do
ensino superior, através de intercâmbio acadêmico e cultural. O intercâmbio é realizado por
intermédio de consórcios e cooperação institucional. As bolsas são destinadas a estudantes,
pesquisadores e acadêmicos. O processo de seleção é estabelecido por cada consórcio e suas
instituições parceiras, com base em critérios estabelecidos pela União Europeia. O apoio ao
selecionado inclui custeio de passagens e seguro-saúde, além de bolsa para sua manutenção
durante o período de intercâmbio. É publicado um edital regulamentando o programa.
4
Promovido pela Capes, o Colégio Doutoral visa a incentivar o intercâmbio de doutorandos
brasileiros e de países parceiros, matriculados em programas de excelência de instituições de
ensino superior (IESs), em regime de co-orientação ou cotutela, visando à formação de re-
cursos humanos de alto nível.
184 Política externa brasileira
Cooperação multilateral
O Brasil tem atuação cada vez mais destacada em foros como Mercosul,
Unesco, Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação,
a Ciência e a Cultura (OEI), OEA, CPLP e Ibas, o que contribui para a
transformação de agendas substantivas e o aprimoramento dos mecanis-
mos em favor do fortalecimento da cooperação Sul-Sul e Norte-Sul-Sul
5
Para mais detalhes sobre a cooperação bilateral com os principais parceiros do Brasil, ver
relatório da Assessoria Internacional do MEC de 2005, disponível em: <http://portal.mec.
gov.br/ai/arquivos/pdf/relatorio2005_07.pdf>.
Educação e política externa 185
6
A UAB é um projeto elaborado pelo Ministério da Educação em parceria com estados, muni-
cípios e universidades públicas de ensino superior para a oferta de cursos de graduação, pós-gra-
duação e de extensão universitária, visando a ampliar o número de vagas da educação superior
para a sociedade, e a promover a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério
e dos profissionais da administração pública.
186 Política externa brasileira
7
De 6 a 8 de setembro de 2000, a ONU realizou a chamada Cúpula do Milênio, na qual foi
gerada a Declaração do Milênio, documento em que representantes das Nações Unidas lista-
ram suas maiores preocupações, ou seja, os principais problemas que podem colocar em risco
o futuro da humanidade. Esses problemas seriam solucionados através dos chamados objeti-
vos do milênio: i) erradicar a pobreza extrema e a fome; ii) atingir o ensino básico universal;
iii) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; iv) reduzir a mortali-
dade infantil; v) melhorar a saúde materna; vi) combater o HIV/aids, a malária e outras do-
enças; vii) garantir a sustentabilidade ambiental; viii) estabelecer uma parceria mundial para
o desenvolvimento.
Educação e política externa 187
8
Em 2000, mais de 160 países assinaram o compromisso Educação para Todos, que prevê o
cumprimento de seis metas, entre as quais universalização do ensino fundamental, redução
da taxa de analfabetismo e melhoria da qualidade do ensino. Para tanto, a Unesco criou um
Índice de Desenvolvimento de Educação para Todos (IDE).
9
A FTI é uma parceria global, lançada em 2002 entre países doadores e países de baixa ren-
da com vistas a realizar os objetivos do milênio no plano da universalização da educação pri-
mária. Liderada pelo Banco Mundial, a FTI coordena, de certa forma, a aplicação da ajuda
oficial ao desenvolvimento (ODA, na sigla em inglês) da educação.
10
A parte relativa às boas práticas brasileiras inclui os seguintes programas: Bolsa Família,
Brasil Alfabetizado, Fazendo Escola, Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
(Saeb), Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) e Proformação. Os outros países do E-9 apresentarão projetos semelhan-
tes de cooperação Sul-Sul, que deverão compor um “banco de boas práticas” a serem adota-
das por outros países em desenvolvimento.
188 Política externa brasileira
11
Para mais informações sobre a cooperação bilateral com os principais parceiros do Brasil,
ver relatório da Assessoria Internacional do MEC de 2005, disponível em: <http://portal.
mec.gov.br/ai/arquivos/pdf/relatorio2005_07.pdf>.
Educação e política externa 189
12
Plano 2006-2010 do setor educacional do Mercosul, disponível em: <http://www.sic.inep.
gov.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=27&Itemid=32>.
13
Plano 2006-2010 do setor educacional do Mercosul, disponível em: <http://www.sic.inep.
gov.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=27&Itemid=32>.
190 Política externa brasileira
14
Para informações detalhadas, consultar o site do Sistema de Informação do Mercosul
Educacional: <http://www.sic.inep.gov.br/>. O Plano de Ação 2006-2010 e o Plano Opera-
cional encontram-se no segmento “documentos e referências”.
Educação e política externa 191
15
Não há, por exemplo, nos livros escolares de história do Brasil nenhum capítulo sobre
Guerra com a Argentina, mas, nos livros argentinos, existe um capítulo sobre a Guerra con-
tra o Império do Brasil, que no Brasil é ensinado como Guerra Cisplatina. Ensina-se com
maior frequência a história da Europa do que os processos coloniais, de independência e de
desenvolvimento de nossos vizinhos. Não se propõe aqui uma historiografia revisionista e
dirigista, preocupada em criar dogmas integracionistas, mas um ensino mais completo, que
mostre as convergências e realidades compartilhadas pelos países da região.
192 Política externa brasileira
16
Ver site da Unila: <http://www.unila.net.br/edital/index.php>.
17
Consultar o Academic Rank of World Universities, em <http://www.arwu.org/>.
18
A metodologia utilizada está disponível no site <http://www.arwu.org/ARWU
Methodology2009.jsp>.
194 Política externa brasileira
Ranking
Instituição País Alumni Award HiCi N&S PUB
mundial
Entre 100 e 150 USP Brasil 0,0 0,0 10,3 12,6 69,3
Universidade
Entre 152 México 14,5 0,0 7,3 11,6 48,7
Autônoma do México
e 200
UBA Argentina 18,9 25,3 0,0 5,7 36,6
Entre 200 e 300 Unicamp Brasil 0,0 0,0 7,3 6,9 41,2
Entre 300 UFMG Brasil 0,0 0,0 7,3 6,6 33,0
e 400 UFRJ Brasil 0,0 0,0 0,0 11,3 39,5
Entre 400 e 500 UFRGS e Unesp Brasil
19
É a seguinte a lista das 20 melhores, segundo o critério aqui empregado: Harvard, Stanford,
Berkeley, Cambridge, MIT, California Institute of Technology, Columbia, Princeton,
Chicago, Oxford, Yale, Cornell, Los Angeles, San Diego, Pennsylvania, Washington,
Wisconsin, San Francisco e Johns Hopkins.
Educação e política externa 195
20
Dados da Capes, com base em estatísticas de 2008 do Institute for Scientific Information
(ISI). Esse crescimento é reflexo do maior número de doutores (o Brasil deve formar 16 mil
doutores em 2010).
196 Política externa brasileira
21
As posições são as seguintes, com base igualmente no ISI 2008: Estados Unidos, China,
Alemanha, Japão, Inglaterra, França, Canadá, Itália, Espanha, Índia, Austrália, Coreia do
Sul e Brasil.
Educação e política externa 197
22
Para mais informações sobre o programa Escola de Altos Estudos da Capes, ver <http://
www.capes.gov.br/cooperacao-internacional/multinacional/escola-de-altos-estudos>.
23
Lei no 11.487, de 15 de junho de 2007. Ver, em especial, o art. 19-A e os respectivos pa-
rágrafos.
198 Política externa brasileira
Bibliografia
NYE, Joseph. Bound to lead: the changing nature of American power. New York:
Basic Books, 1990.
PARTE IV
Saúde
7.
Saúde pública, patentes e atores não
estatais: a política externa do Brasil ante
a epidemia de aids
1
Nem a gripe espanhola de 1918/1919, que, segundo estimativas, matou de 3% a 6% da popu-
lação mundial, foi foco de políticas internacionais, em parte por ter coincidido com a I Guerra
Mundial.
204 Política externa brasileira
2
A política externa brasileira tem também desafiado o regime global de propriedade intelectual
com outros propósitos, como na Agenda para o Desenvolvimento, proposta juntamente com a
Argentina no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), e na defesa
da proteção de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados na Convenção sobre
Diversidade Biológica, na Ompi e na OMC. Não obstante, a defesa da saúde pública, e particu-
larmente dos programas contra a aids, representou a mais significativa iniciativa de flexibilização
das regras internacionais de propriedade intelectual.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 205
3
A licença compulsória quebra o direito de monopólio da patente, permitindo que seu objeto
seja utilizado, produzido ou comercializado por quaisquer agentes no país, mediante o pagamen-
to de royalties ao detentor da patente.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 207
4
Ver Unaids, 1998; World Bank, 1999:178-181, 202; Zimmerman e Schoofs, 2002; Marseille,
Hofmann e Kahn, 2002:1851.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 209
5
O art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 afirma particularmente
que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econô-
micas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitá-
rio às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
6
O Banco Mundial sustentava que, ao tratar a saúde como um direito do cidadão e tentar ofere-
cer serviços gratuitos para todos, o SUS adotava uma abordagem equivocada; e previa um cres-
cimento “explosivo” nas demandas desses serviços no Brasil (World Bank, 1987:3 e 1989:xviii;
Mattos, 2001:40).
210 Política externa brasileira
7
Ver Martins, 1996; Siqueira, 1996; Levy, 1996; Nogueira, 1996; Ventura, 1999:284-293.
8
A exceção era o antirretroviral zidovudina, mais conhecido como AZT, já produzido no Bra-
sil desde 1993.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 211
Importados Nacionais
1) Abacavir 1) Efavirenz
2) Amprenavir 2) Estavudina
3) Darunavir 3) Indinavir
4) Didanosina 4) Lamivudina
5) Enfuvirtida 5) Nevirapina
6) Fosamprenavir 6) Saquinavir
7) Lopinavir/ritonavir 7) Zidovudina
8) Ritonavir 8) Zidovudina/lamivudina
9) Atazanavir* 9) Tenofovir
10) Raltegravir*
Fonte: Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), aids e Hepatites Virais (2011).
* Antirretrovirais que serão produzidos por laboratórios públicos no Brasil até 2016.
212 Política externa brasileira
Notas: (a) antirretrovirais ainda não disponibilizados pelo Ministério da Saúde no ano indicado; (b) aquisição não programada no ano indicado;
(c) doação do laboratório fabricante; (d) antirretrovirais que não eram mais adquiridos pelo Ministério da Saúde no ano indicado.
* Antirretrovirais adquiridos em reais e convertidos em dólares norte-americanos, utilizando-se a taxa de câmbio e o valor médio do ano.
213
Medicamento
antirretroviral 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Zidovudina susp. inj. 10 mg/ml
13,400 11,930 11,074 2,463 2,109 1,808 3,780 1,400 1,399 1,739 1,850 1,850
fr 20 ml
Zidovudina + lamivudina comp.
(a) (a) 3,379 2,015 0,703 0,676 0,420 0,460 0,456 0,548 0,583 0,583
300 + 150 mg
Efavirenz cáp. 200 mg (a) (a) (a) 2,320 2,320 0,840 0,840 (b) (b) 0,641 0,641 ——
Efavirenz comp. 600 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 2,100 1,590 1,592 1,592 1,592
Política externa brasileira
Efavirenz sol. oral 30 mg/ml fr. 180 ml (a) (a) (a) (a) (a) (a) 28,790 28,790 21,800 21,800 21,800 21,800
Nevirapina comp. 200 mg (a) (a) 3,040 3,020 1,280 1,250 0,260 0,280 0,276 0,332 0,353 0,353
Nevirapina susp. oral 10 mg/ml
(a) (a) (a) (a) 55,87 (b) (b) 33,330 30,940 33,400 39,575 39,575
fr. 240 ml
Amprenavir cáp. 150 mg (a) (a) (a) (a) (a) 0,745 0,520 0,550 0,683 0,820 0,872 0,872
Amprenavir sol. oral 15 mg/ml
(a) (a) (a) (a) (a) 102,964 91,210 83,230 83,162 99,880 106,255 ——
fr. 240 ml
0,470/
Indinavir cáp. 400 mg 2,000 2,000 1,940 1,914 1,337 0,470 0,370 0,389 0,468 0,498 0,498
0,390
Lopinavir/ritonavir cap. 133 + 1,500/
(a) (a) (a) (a) (a) (a) 1,600 1,300 1,170 0,630 1,040
33 mg 1,480
Notas: (a) antirretrovirais ainda não disponibilizados pelo Ministério da Saúde no ano indicado; (b) aquisição não programada no ano indicado;
(c) doação do laboratório fabricante; (d) antirretrovirais que não eram mais adquiridos pelo Ministério da Saúde no ano indicado.
* Antirretrovirais adquiridos em reais e convertidos em dólares norte-americanos, utilizando-se a taxa de câmbio e o valor médio do ano.
Fonte: Coordenação Nacional de DST e Aids/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.
Medicamento Preço por unidade em US$*
antirretroviral 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Lopinavir/ritonavir sol. oral
(a) (a) (a) (a) (a) (a) (c) (c) (c) (c) (c) (c)
80/20 mg/ml fr. 160 ml
Nelfinavir comp. 250 mg 1.5 (a) (a) 1,530 1,450 1,360 1,075 0,525 0,520 0,468 0,468 0,468 0,468
Nelfinavir pó p/ susp. oral fr. 7,2 g (a) (a) 52,400 52,400 (b) 42,100 42,100 42,100 42,100 (c) (c) (c)
Ritonavir cáp. 100 mg 0,900 0,900 0,880 0,880 0,880 0,760 0,490 0,460 0,440 0,512 0,545 0,545
Ritonavir sol. oral 80 mg/ml
(a) 222,410 168,943 168,943 168,940 (b) 57,010 57,010 57,010 57,010 80,426 ——
fr. 240 ml
Saquinavir cap. 200 mg 1,310 1,310 1,190 1,190 0,750 0,480 0,480 0,480 0,530 —— —— 0,660
Atazanavir 150 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 3,250 3,250 3,000 3,000 2,910
Atazanavir 200 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 3,250 3,250 3,130 3,130 3,040
9,04/
Tenofovir 300 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 7,680 7,680 3,800 3,800
7,96
Talidomida 100 mg —— —— —— —— —— —— —— —— 0,064 0,120 0,128 0,128
Didanosina ec 250 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 1,560 1,250 1,250 1,250
Didanosina ec 400 mg (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 2,500 1,540 1,540 1,540
Enfuvirtida (T-20) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) (a) 1.422,00 1.333,13 1.333,13
Notas: (a) antirretrovirais ainda não disponibilizados pelo Ministério da Saúde no ano indicado; (b) aquisição não programada no ano indicado;
Saúde pública, patentes e atores não estatais
(c) doação do laboratório fabricante; (d) antirretrovirais que não eram mais adquiridos pelo Ministério da Saúde no ano indicado.
* Antirretrovirais adquiridos em reais e convertidos em dólares norte-americanos, utilizando-se a taxa de câmbio e o valor médio do ano.
215
9
A Merck concordou em reduzir os preços do efavirenz em 59% e do indinavir em 64,8% (ver
tabela). Os laboratórios públicos tinham suspendido a produção do indinavir em razão de pro-
blemas na qualidade de seus princípios ativos importados. Essas reduções representaram uma
economia anual de cerca de US$ 40 milhões para o Ministério da Saúde (Bailey, 2001:9). Simi-
larmente, a Roche aceitou um corte de 40% no preço do nelfinavir seis meses depois (ver tabela).
Como resultado, o Ministério da Saúde passou a economizar, aproximadamente, US$ 35 mi-
lhões por ano (Sá e Malavez, 2001:11; Tribune de Genève, 2001). Concomitantemente, a Abbott
chegou a acordo semelhante com o ministério, oferecendo um desconto de 46% para sua combi-
nação patenteada do lopinavir e do ritonavir (ver tabela).
10
Por acordo com a Bristol, no final de 2003, o Ministério da Saúde obteve uma redução de
76,4% no preço de mercado do novo antirretroviral atazanavir, poupando US$ 66 milhões
(Coordenação Nacional de DST/Aids, 2003). Em resposta a novas ameaças de licenciamento
compulsório do Ministério da Saúde, a Merck concordou, uma semana mais tarde, em reduzir
Saúde pública, patentes e atores não estatais 217
em mais 25% o preço do efavirenz (BBC, 2003). Da mesma forma, no início de 2004, foi anun-
ciado que a Roche e a Abbott ofereceriam cortes adicionais de 10% e 13,3%, respectivamente,
nos preços do nelfinavir e da combinação lopinavir/ritonavir (ver tabela). Apesar dos descon-
tos anteriores, o efavirenz, o nelfinavir e o lopinavir/ritonavir representavam ainda 63% dos
gastos governamentais com antirretrovirais em 2003. Finalmente, a Gilead também reduziu
os preços de seu novo antirretroviral tenofovir em 43,35%. Esses cinco últimos descontos
representaram uma economia de US$ 107 milhões para o Ministério da Saúde brasileiro em
2004 (Coordenação Nacional de DST/Aids, 2004).
11
O projeto de lei introduz uma emenda ao artigo 18 da Lei de Propriedade Industrial brasileira
que trata das exclusões da patenteabilidade. Nos termos dessa lei, o que se segue não é patenteá-
vel: “o medicamento assim como seu respectivo processo de obtenção, específico para a prevenção
e o tratamento da aids”. Lei no 22/03, junho de 2005.
218 Política externa brasileira
12
As únicas concessões oferecidas pelo presidente do laboratório no Brasil foram um descon-
to de 2% e a transferência de tecnologia para a Far-Manguinhos em 2012, ano em que expira
a patente do medicamento. Após intervenção do embaixador dos Estados Unidos, Clifford So-
bel, o presidente mundial da Merck apresentou uma proposta de 30% de desconto, reduzindo o
preço da dose do efavirenz de US$ 1,59 para US$ 1,10. Contudo, versões genéricas do mesmo
medicamento custavam US$ 0,65 na Tailândia — onde foi licenciado compulsoriamente — e
US$ 0,44 na Índia. O laboratório também ofereceu antecipar a transferência de tecnologia para
2010, mas o país seria obrigado a comprar o princípio ativo da própria Merck (Paduan, 2008,
Fiocruz, 2009).
Saúde pública, patentes e atores não estatais 219
13
Ver “Abaixo-assinado em apoio à emissão da licença compulsória do medicamento efavirenz”,
disponível em: <http://www.rebrip.org.br/_rebrip/pagina.php?id=1496>.
220 Política externa brasileira
antirretroviral usado por 64 mil pessoas com aids no Brasil (além de ou-
tras 1,5 mil com hepatite) que é o segundo mais caro do coquetel, respon-
dendo por 10% dos gastos com medicamentos do Programa Nacional de
DST/aids. Segundo estimativas do governo, até 2016 a economia com a
produção genérica do antirretroviral será de R$ 440 milhões. Significati-
vamente, a produção local genérica do tenofovir só foi possível porque o
antirretroviral teve pedido de patenteamento da Gilead negado no Bra-
sil. Após a Far-Manguinhos e a Associação Brasileira Interdisciplinar de
Aids (Abia) contestarem esse pedido no Instituto Nacional de Proprieda-
de Industrial (INPI) e o Ministério da Saúde declarar o interesse público
do tenofovir, em 2008, o patenteamento do antirretroviral foi indeferido
(Formenti, 2011).
Parcerias público-privadas firmadas em 2011 também permitirão a
produção local dos antirretrovirais atazanavir e raltegravir até 2016. No que
pode constituir uma alternativa promissora para o fornecimento de antir-
retrovirais genéricos e para a contenção dos custos na obtenção desses me-
dicamentos pelo Ministério da Saúde, tais parcerias foram firmadas entre
a Far-Manguinhos e a Bristol/Nortec para a produção do atazanavir; e en-
tre o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) e a
Merck/Nortec para a produção do raltegravir (Ministério da Saúde, 2011).
14
Ver Weissman, 1996:1083; D’Amato e Long, 1997:242-243; Gervais, 1998:9-10; Durán e
Michalopoulos, 1999:853; Pretorius, 2002:184. A Ompi seguia um procedimento decisório de
um voto por país, permitindo aos mais numerosos países em desenvolvimento se sobreporem aos
Estados Unidos e seus aliados (Drahos, 1995:9; Jackson, 1997:64; Ryan, 1998:91).
224 Política externa brasileira
15
As propostas de precificação diferenciada dizem respeito à cobrança de preços relativamen-
te mais altos para medicamentos essenciais nos países ricos e preços próximos ao custo de pro-
dução nos países pobres. Tais propostas garantiriam os lucros das empresas farmacêuticas mul-
tinacionais, que advêm em sua maior parte dos mercados dos países ricos, assim como o acesso
Saúde pública, patentes e atores não estatais 225
aos medicamentos essenciais nos países pobres. Claramente, medidas efetivas contra o contra-
bando teriam de ser adotadas para que esse lucro não fosse afetado. A precificação diferencia-
da pode ser vista como uma forma de os países ricos subsidiarem o acesso a medicamentos nos
países pobres.
226 Política externa brasileira
16
Outros membros fundadores foram Chile, França, Noruega e Reino Unido.
228 Política externa brasileira
Concordamos que o Acordo Trips não impede e não deve impedir que os
membros adotem medidas de proteção à saúde pública. Deste modo, ao
mesmo tempo em que reiteramos nosso compromisso com o Acordo Trips,
17
Rich, 2001; Nassif, 2001; O Estado de S. Paulo, 2001; Correio Braziliense, 2001.
18
Em conversas informais que precederam as negociações, representantes dos Estados Unidos
apresentaram propostas de extensão do período de transição para cumprimento do Acordo Trips
no que tange a produtos farmacêuticos para países relativamente menos desenvolvidos, e ofere-
ceram uma moratória em disputas na OMC envolvendo países da África subsaariana e as medi-
das por eles adotadas para combater a pandemia de aids. Caso os países africanos tivessem aceito
essas propostas, os Estados Unidos certamente poderiam vetar a proposta da ampla coalizão de
80 países em desenvolvimento liderada pelo Brasil e pela Índia.
Saúde pública, patentes e atores não estatais 229
Considerações finais
19
Desenvolvo esse argumento em outro projeto de pesquisa, que aborda comparativamente o ati-
vismo social ligado aos direitos de propriedade no Brasil, na África do Sul e na Índia.
232 Política externa brasileira
20
Para uma defesa e explicação da inserção internacional soberana brasileira e os direitos de pro-
priedade intelectual, ver Mercadante (2004).
Saúde pública, patentes e atores não estatais 233
21
Entre os trabalhos representativos do realismo político que ressaltam o papel do poder mate-
rial na determinação dos resultados de disputas internacionais e na configuração dos regimes e
acordos multilaterais, encontram-se Krasner (1976 e 1991) e Strange (1983).
234 Política externa brasileira
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8.
Brasil e saúde global
O “breve” século XX, como definido por Eric Hobsbawm (1995), foi mar-
cado por importantes avanços econômicos, sociais e técnico-científicos,
que melhoraram a qualidade de vida e as condições de saúde de milha-
res de pessoas em todo o mundo. Contudo, como “era dos extremos” —
na mesma definição —, o processo de globalização vigente também tem
242 Política externa brasileira
1
Ver WHO/Afro, 2006; WHO, 2009; FAO, 2008; e Intergovernmental Panel on Climate
Change (IPCC), disponível em: <http://ipcc.ch>.
Brasil e saúde global 243
2
Muitos autores e organizações têm se debruçado criticamente sobre a governança global em
saúde, como Garret (2007); Bloom (2007); Birn, Pillay e Holtz (2009); Gostin e Mok (2009).
O leitor interessado deve consultá-los, já que a cooperação internacional não é o foco central
deste capítulo, e somente aspectos pertinentes serão aqui desenvolvidos quando necessário.
Brasil e saúde global 245
3
Ver Cassels (1997); Brown et al. (2001); Hutton e Tanner (2004).
Brasil e saúde global 249
The responsibility for the development of the South lies in the South,
and in the hands of the people of the South
Julius Nyerere, 1990
4
Ver The South Commission (1990), relatório que se tornou um clássico e uma referência
mundial sobre o tema.
Brasil e saúde global 251
5
Ver <http://www.aseansec.org>. O Conselho de Ministros da Saúde da Asean atuou viva-
mente em conjunto nas epidemias de Sars e influenza aviária, duas ameaças exponenciais à
saúde humana que se originaram exatamente na região.
6
Ver <http://www.nepad.org>. A Nepad desenvolve projetos nas áreas de segurança alimentar,
abastecimento de água e saneamento, ambiente e mudanças climáticas, saúde e ciência e tec-
nologia (com inovações em saúde), todos com repercussões importantes no campo da saúde no
continente africano.
252 Política externa brasileira
7
Ver <http://www.caricom.org>. O Conselho de Ministros da Saúde e o Conselho para o De-
senvolvimento Humano e Social da Caricom têm desenvolvido importantes iniciativas conjun-
tas no controle de doenças, complementação assistencial e cooperação internacional em saúde.
8
Mais detalhes sobre a reunião encontram-se disponíveis em: <http://ictsd.org/i/news/
pontesquinzenal/40746>.
9
Para compreender a abrangência da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira, con-
sultar Desafios brasileiros na Era dos Gigantes, do embaixador Pinheiro Guimarães (2006), até
há pouco secretário das Relações Exteriores do Brasil.
Brasil e saúde global 253
do Sul: o Mercosul, desde 1991; o Ibas, que inclui Índia, Brasil e África do
Sul; um novo bloco regional, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul),
integrado por 12 países da América do Sul; e um bloco de base linguística,
a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), constituído por
oito nações, distribuídas em quatro continentes. O G-20, o Ibas, a Unasul
e a CPLP vêm sendo apontados como prioridades da política externa bra-
sileira, caracterizando essencialmente uma abordagem Sul-Sul da coope-
ração internacional do país.
Ainda no campo das alianças políticas do Sul, o Brasil teve partici-
pação decisiva na realização das cúpulas América do Sul-Países Árabes
(Aspa), realizadas em Brasília, em 2005, e em Doha, em 2009, e América
do Sul-África (ASA), realizadas na Nigéria, em 2006, e na Venezuela, em
2009. Bilateralmente, o Brasil e a União Africana estabeleceram um amplo
acordo de cooperação técnica, assinado em 2007 e promulgado em 2009
(ACTB-UA, 2009). A integração nas Américas se expandiu para além do
Mercosul e da Unasul, com as recentes realizações das cúpulas da América
Latina e do Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (Calc), no Brasil,
em 2008, e no México, em 2010.
Outra vertente orientadora da cooperação foram as diversas missões
do presidente da República a países da África, da Ásia e do Oriente Mé-
dio, que acabaram se traduzindo em diversos acordos bilaterais de coopera-
ção, que, por sua natureza, se inscrevem no âmbito da cooperação Sul-Sul
do Brasil. Os principais objetos de tal cooperação estão nas áreas de agri-
cultura, saúde, educação e construção de institucionalidade.
10
Ver <http://www.who.int/fctc/en/>.
256 Política externa brasileira
11
Para mais detalhes sobre o Pecs/CPLP, ver Buss e Ferreira (2010b).
Brasil e saúde global 257
12
Em 2010, foram comemorados os 35 anos de independência de todos os Palops, que ocor-
reram imediatamente após a Revolução dos Cravos, em Portugal.
258 Política externa brasileira
13
Para mais detalhes sobre a reunião na Bahia, consultar <http://www.unasur.org>; e para
questões de saúde, ver <http://www.unasur-health.org>.
260 Política externa brasileira
Reflexões finais
devem ser propiciadas aos países pela cooperação brasileira, e também ar-
ticuladas internamente.
Finalmente, nossa experiência mostra quão é difícil para a cooperação
internacional a ausência de uma legislação brasileira a respeito. A regula-
ção da cooperação brasileira é tarefa urgente, para que o país possa, com
mais competência, cumprir o destino que lhe cabe como nação emergente
na cooperação Sul-Sul e na diplomacia da saúde.
Bibliografia
Paradiplomacia
9.
A dimensão subnacional da política externa
brasileira: determinantes, conteúdos
e perspectivas
Mónica Salomón
1
Ver Carlsnaes (2002); Neack, Hey e Haney (1995); Hill (2003); Hudson (2005).
A dimensão subnacional da política externa brasileira 271
ator coletivo um ator estatal ou não estatal? No sistema das Nações Unidas,
as organizações internacionais de governos locais costumam ser tratadas
como outros atores não estatais, à semelhança das ONGs (estão acredita-
das como ONGs no Conselho Econômico e Social). Visto que são forma-
das por governos eleitos, as associações internacionais de governos locais
reivindicam um status diferente. O reconhecimento desse status diferente
é precisamente um dos objetivos principais de Cidades e Governos Locais
Unidos (CGLU), uma organização mundial de governos locais estabeleci-
da em 2004 (UCLG, 2004, art. 3o c). Até que ponto essas demandas se jus-
tificam? É possível transferir a legitimidade individual das unidades para
o grupo? Acredito que para responder a essa pergunta é preciso examinar
a representatividade de cada uma dessas organizações, o processo de esco-
lha dos líderes etc. Mas, a princípio, parece-me que a maioria dos agrupa-
mentos de governos subnacionais (com exceção daquelas instituições que
fazem parte de esquemas de integração regional mais amplos, como o Co-
mitê das Regiões na União Europeia ou o Fórum Consultivo das Cidades
e Regiões do Mercosul) deveria ser considerada atores não estatais, embora
tenham acesso mais fácil aos canais e recursos estatais.
2
Ver Aldecoa e Keating (1999); Paquin (2004a); Lecours (2002); Velázquez Flores (2006).
274 Política externa brasileira
pode ser definida como o envolvimento dos governos subnacionais nas re-
lações internacionais, através do estabelecimento de contatos formais e in-
formais, permanentes ou ad hoc, com públicos estrangeiros ou com entidades
privadas, com o objetivo de promover questões socioeconômicas ou políti-
cas, assim como qualquer outra dimensão externa de suas próprias compe-
tências constitucionais.
3
Ver Sizoo et al. (2008). Esse é o significado restrito do termo. Usa-se por vezes também “city di-
plomacy” como sinônimo de paradiplomacia de cidades, como, por exemplo, em Pluijm (2007).
276 Política externa brasileira
4
Isso fica bem claro nas doutrinas elaboradas para justificar as atividades externas de regiões
semiautônomas como Flandres — doutrina in foro interno, in foro externo — (Criekemans,
2007) ou Quebec — doutrina Gerin-Lajoie (Paquin, 2004a).
278 Política externa brasileira
5
Os Quatro Motores da Europa é uma associação para a cooperação entre as regiões de Baden-
Württemberg, Rhône-Alpes, Lombardia e Catalunha, estabelecida em 1988.
6
O protocolo de intenções para a institucionalização da rede latino-americana do projeto
“Quatro Motores para o Mercosul” foi assinado em 17 de novembro de 2008 em Córdoba,
Argentina.
7
O Fala é uma iniciativa vinculada ao Fórum de Autoridades Locais para a Inclusão Social
(FAL), espaço de discussão (e também rede permanente) de governos subnacionais para tra-
tar de problemas globais vinculados à luta contra a exclusão social. Foi criado pela Prefeitu-
ra de Porto Alegre em 2001, como espaço de discussão paralelo ao Fórum Social Mundial.
A primeira assembleia do Fala aconteceu na edição do Fórum Social Mundial, realizada em
Belém, Pará, em janeiro de 2009.
282 Política externa brasileira
Agendas e influências
As funções desempenhadas pelas estruturas institucionais paradiplomáti-
cas dos governos subnacionais refletem a maneira pela qual a paradiplo-
macia é concebida no Brasil e também as influências (ou determinantes de
política externa) subjacentes a essa concepção. Ao mesmo tempo, o con-
teúdo e as influências/motivações que explicam as relações internacionais
dos governos subnacionais brasileiros apontam para características peculia-
res das relações internacionais subnacionais no Sul.
As principais funções identificáveis — apesar das muitas diferenças
existentes na organização e nas dimensões dessas estruturas — são três:
cooperação internacional, captação de recursos e promoção comercial e
econômica.
Praticamente todas as estruturas institucionais (assessorias, secretarias
etc.) de unidades subnacionais com atividade externa sistemática se ocu-
pam de cooperação internacional — tanto bilateral quanto multilateral —,
podendo esta ser considerada a área principal da agenda paradiplomáti-
ca brasileira. Os irmanamentos entre cidades ou estados, outros acordos
de cooperação mais específicos, intercâmbios de “melhores práticas” ou a
participação em redes transnacionais de governos subnacionais são todos
iniciativas que se enquadram nessa grande categoria. Na maioria dos ca-
sos, a participação brasileira em esquemas de cooperação multilateral ou
a assinatura de acordos bilaterais com contrapartes estrangeiras resulta de
iniciativas alheias: raramente são os governos brasileiros que procuram ati-
vamente os vínculos de cooperação ou potenciais doadores. Pelo menos em
parte, creio que a explicação para isso está na ausência de pressões de ou-
tros atores interessados em que a prefeitura ou o governo estadual estabe-
leça esses vínculos de cooperação. Na Europa ou nos Estados Unidos, onde
as atividades de cooperação descentralizada exercidas pelos governos sub-
nacionais consistem fundamentalmente em proporcionar ajuda a comuni-
dades do Sul, existem normalmente grupos organizados da sociedade civil,
como ONGs, que pressionam as autoridades a oferecerem cooperação e
frequentemente colaboram com as autoridades na gestão dos projetos. No
caso do Brasil (e provavelmente do Sul em geral) são as próprias autorida-
des municipais ou estaduais que aceitam ou rejeitam propostas de coope-
ração com contrapartes estrangeiras. Quando há algum envolvimento de
grupos de cidadãos locais, este é posterior, acontecendo na fase de imple-
mentação do projeto de cooperação.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 285
8
Porém, nesse mesmo ano (2004), perdeu as eleições e não conseguiu ser reeleita prefeita de
São Paulo.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 287
9
Especialmente no caso de São Paulo, a ênfase das autoridades locais na condição de “cidade
global” da capital econômica do país tem gerado bastante controvérsia com a academia (Vai-
ner, 2000; Wanderley, 2006).
10
Em janeiro de 2010, Porto Alegre acolheu algumas atividades do FSM, desta feita cele-
brado de maneira descentralizada e concomitante em várias cidades.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 289
11
A ONG Viva Rio, com sede no Rio de Janeiro, colabora com alguns governos municipais
não brasileiros em projetos de prevenção da violência, mas como essa colaboração não é feita
em associação com nenhum governo subnacional brasileiro, são atividades que não podem
ser consideradas city diplomacy.
290 Política externa brasileira
12
Ver os planos plurianuais de 2004-2007 — um Brasil para todos: crescimento sustentável,
emprego e inclusão social — e de 2008-2011 — desenvolvimento com inclusão social e edu-
cação de qualidade — do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
A dimensão subnacional da política externa brasileira 291
foi estabelecida com um duplo objetivo: como um lobby para obter maior
participação dos governos municipais no processo de integração e como
fórum de cooperação técnica permanente para o intercâmbio de experi-
ências e a realização de projetos conjuntos. Apesar do ritmo desigual de
evolução do Mercosul, foram feitos progressos significativos nas duas áreas.
Além de estimular o diálogo e as iniciativas de seus membros (atualmen-
te mais de 200 cidades) relacionadas com o desenvolvimento urbano con-
junto, os governos das cidades-membros da Mercocidades conseguiram a
criação, no Mercosul, de um órgão representativo dos governos locais: o
Fórum Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Depar-
tamentos do Mercosul — também conhecido simplesmente como Fórum
Consultivo de Cidades e Regiões —, que começou a funcionar em 2007.
No Fórum Consultivo, cujo principal modelo foi o Comitê das Re-
giões da União Europeia, participam os governos intermediários dos dois
parceiros com estrutura federal, isto é, os das províncias argentinas e os
dos estados brasileiros. O curioso é que a proposta original da Merco-
cidades era criar um órgão constituído exclusivamente de governos mu-
nicipais. Mas o governo central argentino, e sobretudo o brasileiro, era
partidário da participação de estados e províncias no fórum e argumentou
que a inclusão destes favoreceria a cooperação transnacional entre os go-
vernos intermediários dos dois países e, consequentemente, o processo de
integração regional em geral (Rodrigues e Kleiman, 2007). Assim sendo,
os estados e províncias foram incluídos sem terem feito (pelo menos no
caso brasileiro) qualquer demanda nesse sentido. Essa é mais uma prova
do papel ativo, e mesmo de liderança, do governo federal brasileiro nas
relações internacionais dos governos locais e estaduais. De fato, até agora
tem sido o governo brasileiro, por meio da SAF (coordenadora do capítu-
lo brasileiro do fórum), o principal promotor de sua agenda.
Outro ponto que merece destaque é que, do lado brasileiro, são as
prefeituras controladas pelo PT (todas, salvo a de Belo Horizonte), que
correspondem a cidades médias ou pequenas, os governos subnacionais
brasileiros verdadeiramente envolvidos nas atividades do fórum e que par-
ticipam mais ativamente das diferentes instâncias da Mercocidades.
294 Política externa brasileira
Conclusão
Bibliografia
Alberto Kleiman
colaborador: Gustavo de Lima Cezario
Entre os novos atores das relações internacionais surgidos nas últimas dé-
cadas, os governos subnacionais — entendidos como todas as unidades
governamentais infraestatais, como municípios, estados, províncias, depar-
tamentos, aglomerações urbanas, regiões etc. — compõem um grupo cuja
compreensão da ação internacional, o alcance, as potencialidades e os limi-
tes requerem uma análise ampla, minuciosa e despida de preconceitos.
Pelas lentes da política externa tradicional, a ação internacional dos go-
vernos locais é muitas vezes vista como algo menor, marginal, ou até mesmo
indesejável. Da perspectiva local, porém, pelo olhar do gestor familiariza-
do com seu universo dinâmico, ela é vista como a principal, a mais legítima
e inovadora alternativa ao velho modelo de cooperação internacional. Os
novos estudiosos do tema se depararão com seus limites materiais, legais e
constitucionais, da mesma forma que se encantarão com suas inúmeras pos-
sibilidades de ação e inovação. Os juristas tentarão compreender como essa
atividade pôde se desenvolver (e se desenvolve) sem qualquer norma ou lei
que a reconheça nem regule. Os cientistas políticos e os internacionalistas
debaterão sobre sua natureza, perguntando-se se, como objeto de análise,
trata-se de tema de política pública interna ou de política externa, nacional
ou internacional.
Este capítulo almeja discutir essas e outras questões sem preten-
der, no entanto, dar respostas definitivas a todas elas. A opção feita foi
tentar escapar de uma leitura asséptica e pretensamente neutra, que vê a
ação internacional dos governos locais apenas da perspectiva das relações
internacionais, como se fossem desprovidas de visões definidas por suas
302 Política externa brasileira
1
A sigla ODA corresponde ao inglês official development assistance. Para mais informações,
consultar: <http://bit.ly/ccrq0j>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 305
2
Para informações sobre a França, ver <http://cncd.diplomatie.gouv.fr/frontoffice/article.
asp?menuid=166&lv=2&aid=235>; para a Espanha, consultar: <http://www.observ-ocd.
org/estadisticas.asp>.
306 Política externa brasileira
3
Para mais informações sobre o Comitê de Regiões, ver <http://europa.eu/institutions/
consultative/cor/index_pt.htm>.
4
O Observatório da Cooperação Descentralizada Europa-América Latina, conduzido pela
Intendência de Montevidéu e Diputació de Barcelona, é hoje o principal banco de dados so-
bre cooperação descentralizada do continente.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 307
5
Sobre o programa URB-AL, ver <http://ec.europa.eu/europeaid/where/latin-america/
regional-cooperation/urbal/index_es.htm>.
308 Política externa brasileira
6
Ver a íntegra do discurso de posse da prefeita em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
cotidiano/ult95u18164.shtml>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 313
para prefeitos e para boas práticas —, percebe-se hoje que, passada a fase
de novidade da cooperação descentralizada, o tema perdeu espaço consi-
derável na agenda política dos governos locais brasileiros, sobretudo na
dos prefeitos. Por outro lado, a experiência acumulada, apesar de pequena,
garantiu a criação de uma pequena burocracia de gestores locais especiali-
zados, que fazem com que os temas internacionais sejam conduzidos com
maior profissionalismo e, assim, conquistem pouco a pouco seu espaço na
agenda municipal brasileira.
Outro elemento para a preservação da cooperação descentralizada na
agenda dos governos locais tem sido o papel desempenhado pelas três as-
sociações municipalistas de âmbito nacional: a Frente Nacional dos Prefei-
tos (FNP), a Confederação Nacional de Municípios (CNM) e a Associação
Brasileira de Municípios (ABM). Atuando como órgãos de representação
política, fóruns de debate e troca de experiências, mas também como presta-
doras de serviços, as associações descobriram na cooperação descentralizada
um filão a ser explorado e se colocam como incentivadoras e facilitadoras
da ação internacional dos municípios brasileiros. O papel das associações é
fortalecido pela burocracia especializada internacional das prefeituras, que,
juntas, conseguem obter maior espaço e alcance no cenário político nacio-
nal, compensando a relativa apatia dos prefeitos, e buscando envolvê-los
pontualmente, na medida em que o tema assim exija.
É o caso da iniciativa conduzida pela FNP para criar uma plataforma
de cooperação entre prefeituras brasileiras e haitianas, inserindo os gover-
nos locais brasileiros no esforço de reconstrução do país caribenho. Ou ain-
da o Projeto de Fortalecimento de Capacidades para o Desenvolvimento
Humano Local, uma parceria entre a CNM e o Pnud para a capacitação de
gestores locais sobre os objetivos do milênio. Nos dois casos, a iniciativa
de ação ou projeto parte da associação, mas tendo o município como par-
ceiro. Este, por sua vez, para implementá-la, precisa de servidores mini-
mamente especializados (embora uma ação no Haiti requeira muito mais
de um município do que a participação em um curso de capacitação).7
Outro resultado desse esforço de articulação foi a criação do Fórum
de Secretários e Gestores Municipais de Relações Internacionais (Fonari),
7
Para mais informações sobre a FNP, ver o site <http://www.fnp.org.br/>; no caso do projeto
da CNM em parceria com o Pnud, ver <http://cdhl.cnm.org.br/>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 315
8
Consultar o site da CNM: <http://www.cnm.org.br/institucional/biblioteca.asp?iIdGrupo
=11686>.
316 Política externa brasileira
9
No âmbito dos assuntos federativos, compete à Afepa promover a articulação entre o MRE,
os governos estaduais e municipais, e as assembleias estaduais e municipais, com o obje-
tivo de assessorá-los em suas iniciativas externas, atendendo às consultas formuladas. Em
sua interlocução com os estados e municípios, a Afepa é auxiliada pelos escritórios de re-
presentação do Itamaraty, localizados em diversos estados brasileiros, aos quais compete
coordenar e apoiar, junto às autoridades locais das respectivas jurisdições, as ações desenvol-
vidas pelo MRE. Para mais detalhes, ver o site do Itamaraty: <http://en.mre.gov.br/index.
php?option=com_content&task=view&id=389&Itemid=1273>.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 317
10
“Empreender, sob a liderança do presidente Lula, esforços para a inclusão do REDD na
15a Conferência do Clima (COP-15) da ONU, contemplando as florestas tropicais com me-
canismos de mercado compensatórios e não compensatórios por desmatamento evitado, em
especial como parcela das obrigações adicionais dos países ricos, reafirmando a posição bra-
sileira em Copenhague, nos termos do Relatório da Força-Tarefa. Tais recursos são cruciais
para o financiamento de investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia, capacitação
e apoio à produção, necessários à transição do atual modelo econômico para uma [posição]
socioeconômica sustentável, de baixo carbono e alto conteúdo tecnológico.”
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 319
11
Segundo o Relatório do desenvolvimento humano 2007/2008, do Pnud, o Brasil entrou pela
primeira vez no grupo de países com elevado desenvolvimento humano, com um índice de
0,800 em 2005. Em 2006, obteve uma melhora no índice de 0,007, chegando a uma pon-
tuação de 0,807. Em 2009, o país se encontra na 75a colocação mundial, com um índice de
0,813, valor considerado alto desenvolvimento humano.
320 Política externa brasileira
12
O documento pode ser acessado no site do MRE, Divisão de Atos Internacionais: <http://
www2.mre.gov.br/dai/b_fran_185.htm>.
13
Ver Constitución de la Nación Argentina, art. 124: “Las provincias podrán crear regiones
para el desarrollo económico y social y establecer órganos con facultades para el cumplimien-
to de sus fines y podrán también celebrar convenios internacionales en tanto no sean incompati-
bles con la política exterior de la Nación y no afecten las facultades delegadas al Gobierno federal o el
crédito público de la Nación; con conocimiento del Congreso Nacional. La ciudad de Buenos
Aires tendrá el régimen que se establezca a tal efecto”.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 325
Considerações finais
14
Em março de 2003, na VI Marcha em Defesa dos Municípios a Brasília, o governo fede-
ral e as entidades municipalistas assinaram um protocolo criando o Comitê de Articulação
Federativa (CAF). Esse comitê tornou-se o principal espaço de negociação entre União e
municípios, contemplando vários pontos da pauta de reivindicações do movimento munici-
palista. É um compromisso do governo federal fortalecer, revigorar e repactuar a agenda fe-
derativa. Em 2007, o CAF foi institucionalizado por decreto como instância consultiva da
Presidência da República, no âmbito da Secretaria de Relações Institucionais. O comitê é
formado por representantes de 18 ministérios e igual número de representantes das entida-
des municipalistas. Ainda em 2007, o governo federal assinou um novo Protocolo de Coo-
peração Federativa, repactuando uma agenda comum, para os dois anos seguintes, com as
entidades nacionais que representam os municípios.
Um olhar brasileiro sobre a ação internacional dos governos subnacionais 329
Bibliografia
Leticia Pinheiro
Carlos R. S. Milani
1
Lembrando que também a definição de políticas públicas se encontra sob o escrutínio de
seus especialistas (Souza, 2006), postulamos que a própria assunção da política externa como
uma política pública deve ser incorporada à discussão sobre a conceituação desta última.
Conclusão 333
Estado brasileiro para além dos muros do Itamaraty. Cabe saber se pode-
mos chamá-la de política externa, no sentido de uma política pública au-
torizada pelo Estado. Dito de outra forma, parece-nos que, empiricamente,
os capítulos desnudaram a pluralidade dinâmica e a constante evolução da
ação externa do Estado brasileiro, muito embora ainda falte, em muitos ca-
sos, a construção de um arranjo institucional, político e jurídico que reflita
essa realidade empírica e que assegure o caminho institucional mais demo-
crático (sujeito, inclusive, a controles da própria sociedade), ao final do qual
poderíamos falar mais apropriadamente de uma política externa. O cami-
nho mais fácil seria o de reconhecer que da pluralidade de ações externas
decorre, ipso facto, a pluralidade da política externa. Embora analiticamente
mais fácil, não acreditamos, no entanto, ser este o caminho mais democráti-
co para a construção de novos arranjos institucionais no campo da política
externa brasileira. Mesmo nos casos em que o adensamento da presença de
diversos órgãos da burocracia federal em temas internacionais vem acom-
panhado da busca de capacitação para executarem suas agendas por meio
de assessorias internacionais cada vez mais especializadas e robustas (Fran-
ça e Sanchez Badin, 2010), a nosso ver a isso não deveria se seguir um mo-
vimento em direção à criação de escritórios setoriais de relações exteriores
(algo como um para-Itamaraty), em vista dos riscos da fragmentação de
agendas e de uma eventual ambiguidade e inconsistência da política.
A abertura intelectual dos estudos de política externa que propomos
para o campo analítico das políticas públicas demanda, outrossim, quebrar
a associação da política externa com as versões mais cruas da escola teórica
do realismo, isto é, com o pressuposto de que o comportamento do ator es-
tatal só pode ser entendido ou orientado em referência ao interesse nacio-
nal (Hill, 2003). É fato que o interesse nacional surge como ideia política
em oposição à ideia de interesse do príncipe, acompanhando a própria evo-
lução do sentimento nacional e ganhando envergadura com o desenvolvi-
mento das instituições estatais democráticas (Renouvin e Duroselle, 1995).
A ambiguidade do interesse nacional diz respeito, porém, à tentativa de
objetivar as finalidades, temporalmente próximas ou distantes, que deve-
riam ser atribuídas à nação. Como lembram esses historiadores franceses,
nomeadamente na introdução ao décimo capítulo de sua obra, o interesse
nacional ou os chamados “interesses superiores do Estado”, tão frequen-
temente invocados por estadistas e diplomatas, não seriam, salvo raros ca-
sos, um meio para disfarçar interesses infinitamente menos nobres ou, pelo
menos, interesses particulares?
334 Política externa brasileira
2
A propósito, mesmo considerando o Itamaraty um ministério pouco partidarizado em
comparação com os demais, não custa lembrar o alerta de Amorim Neto (2006:57) de que
seus chefes podem “também ser simples asseclas do presidente”, o que, indiretamente, o
“contaminaria” pela dinâmica política. Também devem ser lembradas as relações do Itama-
raty com a ditadura militar no Brasil, mormente no que diz respeito ao papel nada neutro do
Centro de Informações do Exterior (Ciex) (Penna Filho, 2009).
Conclusão 335
Seja por que caminhos for, a questão é que, quando se trata da par-
ticipação, para além do Itamaraty, de outros órgãos do Poder Executivo
Federal, estadual ou municipal, não há como negar que estes são mais per-
meáveis às injunções da política e que isso alcança o plano da definição
do conteúdo da política externa. De fato, ao contrário do que ocorre com
o Itamaraty, cuja chefia poucas vezes foi objeto de disputa política, nesses
órgãos e unidades, o líder, seus liderados e respectivas linhas de atuação
tendem a refletir as coalizões políticas que formam e dão sustentação ao
governo. A política externa, assim, se politiza.
Cabe aqui, porém, uma ressalva importante com relação a essa refe-
rência a um novo momento da política externa brasileira, caracterizado
por forte politização. Embora compartilhemos da tese que postula a inten-
sificação do componente político na política externa, é nosso dever aler-
tar para um possível desdobramento suscitado por essa afirmação que não
gostaríamos de endossar. Ao identificar o presente como politizado em
comparação com o passado, corremos o risco de despolitizar a política ex-
terna pretérita, o que seria o mesmo que conferir correção à tese da sepa-
ração estanque entre burocracia e política, com a qual não concordamos
(Loureiro, Abrucio e Pacheco, 2010:11). Mas, principalmente, é preciso es-
clarecer o que entendemos por politização. Sem cairmos nas armadilhas do
estiramento conceitual (Sartori, 1970), posto que não pretendemos redu-
zir diferenças importantes entre significados em nome de semelhanças se-
cundárias, entendemos por politização a intensificação do debate de ideias,
valores e preferências sobre escolhas políticas, como também, et pour cause,
de disputas inter e intraburocráticas, debates entre atores sociais distintos
quanto à melhor forma de contemplar suas demandas. Enfim, ao adotar-
mos o termo politização pretendemos reforçar o fim da crença de que, por
sua natureza supostamente particular, o campo da política externa mere-
ceria um tratamento que o retirasse da arena do embate político. Não por
acaso, o título deste livro sugere a multiplicidade de práticas da política ex-
terna, assim como a condição política das práticas pelas quais ela se reali-
za. O Estado, em sua complexidade e multiplicidade, gera relações externas
de várias naturezas, contribuindo para a politização das agendas de política
externa (Smith, 1998:77). Os distintos atores trazem para o campo da po-
lítica externa uma política plural, constituída de linguagem, ideais, valores,
símbolos e demandas materiais diferenciadas. A politização das agendas
de política externa decorre da pluralidade dos atores e de suas visões, das
ideias e princípios que trazem para o campo.
340 Política externa brasileira
pública revela um quadro em que o Itamaraty não pode mais ser conside-
rado a única ilha de profissionalismo e de competência no conjunto das
burocracias da administração pública nacional. Em linha com essa nova re-
alidade, a presença de uma agenda internacional nessas burocracias — novi-
dade em alguns casos e fortalecimento em outros — não pode ser dissociada
de uma realidade contemporânea em que a cooperação internacional para o
desenvolvimento, em particular a cooperação técnica, científica e tecnoló-
gica, ganhou enorme visibilidade e importância, nesse sentido politizan-
do as relações de troca entre os países, assim como a própria concepção de
valores e interesses.
Um terceiro ponto a se sublinhar é que a investigação sobre essa te-
mática não deve se restringir nem ao período que nos é contemporâneo —
embora este com certeza seja particularmente rico —, nem ao plano ex-
clusivo da realidade brasileira. A investigação sobre experiências pretéritas,
nas quais se, por um lado, inexistiam os vetores da globalização e suas con-
sequências sobre a dicotomia doméstico/internacional, por outro, também
inexistiam distinções claras entre as políticas públicas e seus responsáveis,
poderá nos ajudar a compreender melhor os caminhos traçados pela polí-
tica externa do país. Da mesma forma, a incorporação da perspectiva com-
parada temporal e espacial poderá alargar nossa capacidade analítica acerca
desses contextos e tensões no campo da política externa. Não se trata aqui
de propor uma retomada dos projetos desenvolvidos nos anos 1960, mais
interessados em metodologias quantitativas e em definir correlações entre
fatores comparando um número expressivo de países. A pesquisa compa-
rativa, no sentido que aqui estimulamos, poderia buscar entender como se
envolvem, nos distintos contextos nacionais, os múltiplos atores, estatais e
não estatais, domésticos e inter/transnacionais, nas agendas de política ex-
terna. Essa comparação pode ensejar novos sentidos e compreensões sobre
como se dão os processos de politização da política externa. Como Hill
(2003:10) salientou, a análise da política externa deveria ser “aberta, com-
parativa, conceitual, interdisciplinar e atravessar as fronteiras entre o nacio-
nal, o internacional e o global”.
Por fim, gostaríamos de sublinhar nossa crença em que essas linhas
de reflexão não só nos ajudarão a compreender e explicar melhor as práti-
cas da política externa e sua natureza política, como serão ferramentas im-
portantes para sua própria realização, trazendo para o exercício cotidiano a
análise e a construção de diálogos profícuos com os atuais e potenciais par-
ceiros internacionais do Brasil.
344 Política externa brasileira
Bibliografia