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Projeto UNIRIO1
Projeto UNIRIO1
DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CCH
PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA PPGH
Tema: A produção de história pública e a memória da escravidão no Brasil
Baía Formosa e a divulgação do passado histórico no tempo presente
Candidata: Caroline Bárbara Ferreira Castelo Branco Reis
(2015)
1
I Introdução
Como historiadora, identifico desde a graduação, a importância em valorizar, divulgar e
construir conhecimento histórico sobre o passado de escravidão de diversos africanos no Brasil.
Esse interesse surge não apenas pelo desejo em compreender e revelar o contexto de violência e
opressão vivido por esses grupos, mas também de identificar e analisar as ações que divulgam as
histórias e memórias do passado escravista no tempo presente. Nos últimos dois anos, entre as
ações de divulgação mais recentes, estão a formação da Comissão Nacional da Verdade da
Escravidão, que tomou posse em Brasília no dia 6 de fevereiro de 2015, uma iniciativa da Ordem
dos Advogados do Brasil, que claramente tem como inspiração a Comissão Nacional da Verdade
instituída em 16 de maio de 2012, ligada aos crimes da ditadura civilmilitar no país e o projeto
Passados Presentes: memória da escravidão no Brasil
, um trabalho desenvolvido pelo
Laboratório de História Oral e Imagem/UFF encabeçado pelas historiadoras Keila
Grinberg/UNIRIO, Hebe Mattos/UFF e Martha Abreu/UFF desde 2014, com o financiamento do
Edital Petrobras Cultural 2012 e apoio do convênio FAPERJ/Columbia Global Center.
Sobre a implementação da Comissão da Verdade da Escravidao, de acordo com Marcus
Vinicius Furtado Coelho, presidente nacional da OAB, esta é uma ação afirmativa cujo intuito é
de não apenas contribuir com a valorização da memória da escravidão, mas também de reforçar a
1
importância das ações de afirmação como método de reparação aos grupos negros
. Advogados e
historiadores compõem o conjunto de membros selecionado pela OAB para dar início aos
trabalhos que têm objetivos e propostas voltados para a análise e investigação dos detalhes
referentes aos crimes cometidos contra africanos e seus descendentes no período de escravidão no
país, bem como identificar os principais responsáveis por esses crimes.
Passados Presentes
Com o projeto a publicização da história da escravidão e da trajetória
de africanos e seus descendentes no Brasil tornase ainda mais real. Uma das principais propostas
é desenvolver “um aplicativo de geolocalização para o turismo de memória, iniciando com
quatro roteiros ligados ao patrimônio imaterial do Rio de Janeiro (jongos, quilombos e lugares
1
Disponível em:
http://www.oab.org.br/noticia/28065/comissaodaverdadedaescravidaonegratomapossenaoabnacional
.
Acessado em: 21/07/2015.
2
históricos da capoeira) listados no Inventário UFF/UNESCO dos Lugares de Memória do Tráfico
2
Atlântico de Escravos e dos Africanos Escravizados no Brasil”
, bem como a organização de uma
exposição permanente e de um roteiro histórico para o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Os
moradores das comunidades remanescentes de quilombo de São José da Serra, em Valença/RJ,
Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis/RJ e da cidade de Pinheiral estão diretamente
envolvidos com os trabalhos ligados ao projeto indicando os lugares que estarão nos roteiros
turísticos mapeados por satélite e registrados no aplicativo.
Ambas iniciativas sinalizam a intensa mobilização de agentes e instituições em torno da
reparação e divulgação do passado escravista no país e evidenciam a importância de tornar
pública a história e a memória não apenas da escravidão e seus efeitos, mas também da
experiência africana e de seus descendentes no Brasil, além de possibilitarem o diálogo entre o
meio acadêmico e não acadêmico.
Há, a meu ver, urgência em trabalhar na construção de uma
consciência histórica que cada vez mais compreenda o processo da escravidão não pela cor, nem
pelas chibatas, tão pouco pela submissão, mas sim pelo protagonismo de homens e mulheres que
mesmo na condição de escravos foram sujeitos da própria história.
Nesse sentido, acredito que tanto as pesquisas acadêmicas, quanto a produção de história
pública referentes a passados traumáticos precisam se conectar à luta por direitos humanos, com
o intuito de evitar que se olhe para o passado de forma acrítica e sem transformações,
contribuindo para a formação de olhares menos vitimizadores e mais conscientes dos processos
de luta e resistência vivenciados por grupos e sujeitos históricos, o que contribui, por exemplo, na
luta contra o racismo e na valorização da cultura afro nos dias de hoje. Em entrevista ao jornal O
Globo, o historiador Andreas Huyssen, falou sobre a importância de fazer com que os estudos
relacionados à memória estejam conectados não apenas com a divulgação e entendimento sobre o
passado, mas com as demandas do presente e preparação para o futuro. Para ele:
Uma abordagem que relacione os dois discursos [memória e direitos humanos] me parece mais
frutífera para ambos. Nos EUA e Europa, há cada vez mais estudos sobre memória, muitos
deles apenas autoindulgentes, sem vitalidade política. Um risco do discurso da memória é
buscar legitimação para o presente olhando para o passado, mas sem pensar no futuro. Já o
2
Disponível em:
http://conversadehistoriadoras.com/2015/06/30/memoriadaescravidaonobrasil/
. Acessado em:
21/07/2015.
3
discurso dos direitos humanos olha também para o futuro, porque deseja transformar a
legislação. Por outro lado, o típico discurso liberal sobre os direitos humanos individuais
muitas vezes não presta atenção na história, nem nas culturas locais fazendo uma mera
transposição de valores ocidentais para contextos onde essas questões se estruturam de outras
formas. Quando falamos de direitos culturais de minorias, seja na Ásia ou na Amazônia, o
discurso da memória pode abrir caminho para a compreensão de particularidades históricas e
3
sociais que o discurso de direitos humanos individuais relega ao segundo plano.
A produção de história pública é uma discussão que ganha força no cenário
historiográfico e cada vez mais movimenta a produção de discursos históricos e memorialísticos
voltados para o grande público. Para além de se tornar um nicho de trabalho para profissionais
que não querem ou não conseguem ingressar em instituições acadêmicas e escolares, a história
pública relacionase a outros propósitos que vão além dos programas de pósgraduação e de
pesquisa. Passa pela relação com a consciência histórica, assim como pela relação com memórias
individuais e coletivas, pela mobilização de comunidades, entre outros. Há cada vez mais a
urgência em não apenas refletir sobre a importância de se construir discursos problematizados,
mas de pensar os caminhos que conduzem os trabalhos de história pública a alcançarem
resultados de qualidade, o que a meu ver dialoga com os incentivos direcionados a participação
do historiador na organização de atividades direcionadas ao público não especializado.
O acesso ao conhecimento histórico é irrestrito através da história pública e pode se dar de
algumas maneiras, como através dos bancos escolares, dos chamados “lugares de memória”, da
produção de documentários, filmes de viés histórico, etc. Todos esses exemplos são
compreendidos como canais de divulgação de histórias e memórias, que não excluem
necessariamente um caráter historiográfico e científico. Assim, o processo de formação de uma
4
educação histórica do senso comum mantém diálogo com o universo acadêmico
. A história
pública leva a história científica à praça pública, discute problemas históricos semelhantes se
não idênticos aos da história produzida academicamente.
3
Entrevista cedida por Andreas Huyssen ao jornal O Globo, no dia 24/05/2014. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2014/05/24/usosabusosdamemoriaentrevistacomandreashuyssen53
6931.asp . Acessado em: 21/06/2014.
4
ALBIERI, Sara. "História pública e consciência histórica" In: ALMEIDA, Juniele Rabelo de; ROVAI, Marta
Gouveia de Oliveira (Orgs). Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011, p.1928.
4
Diante disso, acredito ser imprescindível trazer à tona o debate em torno dos diferentes
campos de atuação do historiador. Primeiro, porque essa é uma discussão que reforça a
necessidade de refletir sobre a função social da carreira do profissional da história; pensar sobre o
seu papel na sociedade dos dias de hoje, papel esse que está ligado, principalmente, a um
alargamento dos campos de atuação do historiador, o que com frequência não ocorre em função
de uma desvalorização curricular que se atribui aos trabalhos com a história pública e com a
educação básica. Os próprios cursos de graduação quase não incentivam tal reflexão e pouco
estimulam os graduandos a compreenderem a importância de agregar os saberes científicos com o
que é produzido para o grande público e para estudantes escolares. Segundo, porque o campo do
turismo histórico cultural vem crescendo com força ao longo do tempo e cada vez mais com o
propósito de organizar eventos e atividades culturais, cujas narrativas divulguem informações e
contextos históricos. A atuação do historiador, nesse sentido, dará teor científico ao que está
sendo produzido para o grande público justificando a importância de incentivar a participação do
profissional da história na produção de história pública. De acordo com Keila Grinberg:
(...) São pouquíssimos os cursos de graduação em história que têm disciplinas como
“Patrimônio” ou “Relações internacionais” em seus currículos. Candidatos a historiadores
pouco estagiam em museus ou em centros culturais. Mesmo a área de ensino de história na
educação básica é frequentemente negligenciada. O resultado disso é que a maioria dos
graduados na área foge das salas de aula dos ensinos fundamental e médio e nenhum curso de
pósgraduação se dedica a formar professores para a educação básica. Seguindo esse
(...)
padrão, perdemos todos: pesquisadores, professores e alunos; perdem os programas de
pósgraduação, viciados em produzir apenas o que é bem pontuado na avaliação da Capes;
perdem os alunos universitários, que têm uma formação voltada para um trabalho que
dificilmente exercerão e que deixam de ser qualificados em competências que fatalmente
5
deverão desenvolver.
O campo do turismo histórico cultural possui relevante papel nos projetos de divulgação
da história ao possibilitar a difusão de diversos trabalhos de história pública para além do circuito
midiático. Na região do Vale do Paraíba fluminense, desde a década de 1990, proprietários de
fazendas históricas investem na recepção de turistas e atualmente conseguem movimentar um
5
GRINBERG, Keila. Historiadores pra quê? In Revista Ciência Hoje, 09/03/2012. Disponível em:
. Acessado em: 14/09/2014.
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/emtempo/historiadorespraque
5
intenso fluxo de visitantes em suas propriedades, sobretudo, nos períodos que ocorrem festivais
gastronômicos e culturais na região, como o
Festival Vale do Café e o
Festival Café, Cachaça e
Chorinho
. As fazendas Florença, em Conservatória/RJ, Ponte Alta, Arvoredo e Taquara, em
Barra do Piraí/RJ e São Luís da Boa Sorte, em Vassouras/RJ, são exemplos de propriedades que
fazem parte do roteiro histórico da região e através da organização de visitas guiadas, saraus e
uma gama de serviços, como hospedagem, almoços, entre outros, conseguem atrair numeroso e
variado grupo de turistas, apostando fortemente na oferta de atividades culturais e de lazer.
As ações em torno da divulgação do passado histórico através do turismo histórico
cultural, no entanto, não estão restritas ao trabalho desempenhado por guias e proprietários de
fazendas do Vale do Paraíba fluminense. Comunidades quilombolas como São José da Serra, em
Valença/RJ, cada vez mais se consolidam como territórios de identidade e protagonismo.
Atualmente, uma das principais frentes de ação da comunidade é a organização de visitas guiadas
Festa da Cultura Negra
e a . Ambos simbolizam algumas das articulações feitas pela comunidade
que possibilitam manter no presente a memória acerca da história de seus antepassados, bem
como divulgar o quilombo nos dias de hoje para o grande público. A festa é organizada duas
vezes ao ano e as visitas guiadas são agendadas. Ambas fazem parte do circuito do turismo
histórico cultural da região do Vale fluminense e são divulgadas pelo
Guia Cultural do Vale do
Café
.
A comunidade São José da Serra, em Valença/RJ, é apenas um dos exemplos de
quilombolas que embarcaram na organização de atividades culturais com o intuito de divulgar o
passado histórico e realizar a manutenção de suas lutas e reivindicações enquanto descendentes
de africanos escravizados no país. No litoral fluminense, a comunidade quilombola Baía
Formosa, em Búzios/RJ, cada vez mais se insere no circuito do turismo histórico através da
mobilização de lideranças e grupos de moradores interessados em não apenas contar a história do
quilombo e usála como ferramenta para suas demandas atuais, como também ampliar o
conhecimento sobre as histórias que os mais velhos, os griôs de Baía Formosa, contam para as
gerações de quilombolas mais recentes. A comunidade luta para ganhar visibilidade e adquirir ao
longo do tempo não apenas o reconhecimento dos limites de suas terras, mas também de sua
6
própria identidade enquanto quilombo. De acordo com Elizabeth Fernandes Teixeira, presidente
da Associação de moradores do quilombo:
Tudo começou na fazenda Campos Novos., que fica nas terras de Baía Formosa e a gente não
vê nada nosso em lugar nenhum. Também sabemos pouca coisa sobre nossa própria história.
O que sabemos é o que os nossos griôs contam, porque muitos já morreram e pouco nos
contaram. (...) Fomos até o prefeito. Falamos com ele. A gente queria um terreno para
montarmos uma casa de farinha e um restaurante. Uma área pra gente dançar ciranda,
capoeira, etc. [...]. O quilombo começou a mais ou menos quatro anos. Começou em 2011.
Nós fazíamos parte do quilombo da Rasa. Nos emancipamos, porque não conseguíamos ter
visibilidade. Então, a gente ficava dependente do quilombo de Rasa. Por isso, solicitamos
uma reunião com o pessoal da Fundação Cultural Palmares, que esteve lá, no quilombo.
Falamos que queríamos nos emancipar, se tornar um quilombo. E a Fundação falou que sim,
porque Baía Formosa era um bairro e Rasa era outro (...) Nós temos processo de
reconhecimento, o certificado da Fundação Palmares, mas ainda não temos a titulação da
terra, e estamos buscando isso. Nós fomos atrás do prefeito. Pedimos um terreno e ele nos
deu uma quadra. Nós montamos o projeto do que queríamos na cartolina e levamos. Aí ele
falou que nós estávamos sozinhos arquitetando tudo, que não queríamos a contribuição da
Prefeitura. Eu rebati e disse que queríamos sim ajuda, mas que a comunidade sabia o que
queria, que é divulgar a própria história. Diante disso, ele disse que realmente sabíamos o que
estávamos propondo, que isso seria muito bom para Búzios, porque a região não tem turismo
cultural. Então, ele disse que para Búzios seria bom e para o mandato dele também seria bom.
Por isso que ele está apoiando o projeto da gente e a nossa titulação. Hoje tem um secretário
6
que está lá nos ajudando a fazer a topografia .
A partir da fala de Elizabeth Fernandes é possível identificar a existência de disputas de
memória entre os quilombos de Rasa e Baía Formosa tanto pela separação entre as duas
comunidades, quanto pela fala da liderança em afirmar que houve a separação “porque a gente
7
não conseguia ter visibilidade, então a gente ficava dependente do quilombo de Rasa”
. Ainda de
acordo com ela, a iniciativa pela separação não foi mobilizada por todos os moradores, mas por
parte deles que decidiram ir até a Fundação Cultural Palmares e a Prefeitura local expôr suas
demandas. Ao aceitarem a proposta de separação entre os quilombos, tanto a Prefeitura de
Búzios, quanto a Fundação Cultural Palmares deram início junto com boa parte dos moradores de
Baía Formosa à organização de práticas culturais que passariam a ser identificadas como próprias
do quilombo, como a ciranda, o artesanato, a gastronomia com comidas típicas o escaldado , as
histórias referentes ao passado do quilombo contadas pelos griôs os mais velhos da comunidade
6
Entrevista cedida por Elizabeth Fernandes Teixeira, em Ferradura, Búzios/RJ, no dia 27/07/2015.
7
Idem.
7
, bem como a organização da Associação de Moradores e a inserção de Baía Formosa em
projetos como o QUIPEA quilombos no projeto de educação ambiental financiado e
organizado pela SHELL.
Todo este contexto nos leva à busca pela compreensão acerca das disputas de memória
que estão em jogo no quilombo, além de investigar os interesses que estão presentes no desejo de
parte da comunidade de Baía Formosa em divulgar suas histórias e manter sua trajetória ligada ao
passado de escravidão de milhares de africanos que desembarcaram nas regiões do litoral sul
[esse sul se refere ao do Brasil ou ao Rio de Janeiro? Se for RJ é região norte, sul fluminense é a
região do vale e Mangaratiba] para servirem como mão de obra escrava. Desse modo, o presente
estudo para além de defender a produção de história pública como ferramenta de divulgação do
passado histórico através do diálogo com as produções acadêmicas pretende investigar de que
forma grupos como comunidades remanescentes de quilombo estão criando narrativas e se
apropriando das mesmas para tornar pública suas histórias, bem como identificar de que maneira
os saberes científicos podem contribui e dialogar com os trabalhos
desenvolvidos por
comunidades como Baía Formosa.
II. Justificativa e relevância
Pesquisas e reflexões sobre o uso da história pública e de sua importância enquanto
ferramenta de divulgação histórica ocupam um importante espaço no cenário acadêmico entre
pesquisadores e historiadores. Cada vez mais se ampliam os debates em torno da importância de
se investir na formação histórica do grande público a fim de contribuir com a construção de uma
consciência histórica mais problematizada sobre os fatos e contextos históricos do passado e do
presente. Somado a isso,
os estudos e trabalhos voltados para a trajetória de africanos
escravizados no país se multiplicam, o que evidencia uma crescente preocupação, nacional e
internacional, com a divulgação da história e da memória de homens e mulheres mantidos aqui
como escravos desde o período colonial. A historiografia sobre o tema vem crescendo bastante e
desde a década de 1980 se inclina fortemente nos debates em torno do protagonismo dos
escravizados e na problematização da dinâmica do sistema escravocrata no Brasil. Cada vez mais,
os estudos acadêmicos ligados à escravidão analisam a experiência africana para além do trabalho
8
e açoitamento, para além da submissão e coisificação do indivíduo, com o intuito de divulgar o
sistema escravista a partir de sua complexidade e múltiplas facetas.
Para além disso, a problematização em torno da escravidão e da experiência africana no
Brasil também está presente em estudos acadêmicos recentes sobre o tema, como a elaboração do
Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos
escravizados no Brasil8, proposto no ano de 2011, coordenado pelo Laboratório de História Oral e
Imagem (LABHOI) da Universidade Federal Fluminense, em parceria com o Comitê Científico
Internacional do Projeto da UNESCO “Rota do Escravo: Resistência, Herança e Liberdade” e que
possibilitou, a nível internacional, publicizar, tornar pública a memória da escravidão e da
trajetória dos negros africanos no país. O trabalho reúne cem lugares de memória e foi construído
a partir da indicação e contribuição de diversos historiadores, antropólogos e geógrafos do país,
após consultas e trocas de informações,
o que motiva os argumentos defendidos ao longo deste
projeto sobre a importância de cada vez mais aproximar do grande público os estudos, pesquisas
e análises produzidos no meio acadêmico.
Há de se pensar a história pública não apenas como uma ferramenta de divulgação do
passado histórico a partir do diálogo com as produções acadêmicas, mas também como um
mecanismo capaz de estimular mudanças políticosociais, que possibilite a grupos e indivíduos
problematizarem o mundo em que vivem e influenciarem na construção de um aparato legislativo
mais justo e menos desigual, por exemplo. Toda essa discussão, sem dúvida, está diretamente
relacionada ao espaço do quilombo enquanto um território que não apenas se ressiginifou ao
longo do tempo, mas que também abarca disputas e demandas.
Este estudo, portanto, através da comunidade remanescente de quilombo Baía Formosa,
localizada em Búzios/RJ, busca compreender de que forma a história pública pode contribuir com
a visibilidade do quilombo entre o grande público, bem como possibilitar a construção de uma
consciência histórica mais problematizada não apenas em torno da experiência africana e de seus
descendentes no período da escravidão, mas também do espaço do quilombo como um território
ressignificado, de lutas, resistência e identidade. A escolha por Baía Formosa se deu por dois
motivos: em função de conversas com pesquisadores da área ao indicarem a recente e crescente
8
Mais informações disponíveis em:
http://www.labhoi.uff.br/memoriadotrafico
. Acessado em: 21/05/2014.
9
mobilização da comunidade em torno da divulgação da história do quilombo, o que foi possível
identificar durante a entrevista com Elizabeth Teixeira Fernandes, presidente da Associação de
Moradores e pelo engajamento da comunidade em projetos financiados por empresas como a
Shell, que atualmente patrocinam cursos de guia turístico, artesanato, entre outros, e também
pelas disputas memorialísticas e culturais que existem dentro da comunidade. Exemplo disso,
atualmente, é o fato de boa parte da comunidade ser protestante, o que determinou a escolha da
ciranda e não do jongo como uma prática cultural entre os moradores e de divulgação da história
do quilombo.
É importante, contudo, especificar não apenas com qual comunidade remanescente de
quilombo estamos aqui trabalhando, mas também com qual entendimento sobre comunidades
quilombolas este projeto opera. Sem dúvida, os quilombos existentes nos dias de hoje possuem
inúmeras especificidades, várias formas de entender a própria luta e o passado de escravidão de
seus antepassados e olhares diferentes sobre como conduzir suas reivindicações. Muitas
comunidades hoje em processo de titulação de suas terras, como é o caso de Baía Formosa,
tiveram percurso semelhante em relação à ocupação de terras após a abolição. Inicialmente, a
ocupação foi consensual, mas ao longo do tempo com o crescimento da urbanização, das redes de
turismo e da intensa especulação imobiliária os conflitos vieram à tona. Eliane Cantarino
Apresentação do Caderno Terra de Quilombos
O’Dywer, na , em 1995, explica que:
Contemporaneamente,
a expressão “quilombo” não se refere estritamente a
resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou comprovação
biológica. Também não se limita a grupos isolados, uma população
homogênea ou que necessariamente se tenha constituído a partir de
movimentos de insurreição. São, de fato, grupos que desenvolveram práticas
cotidianas de resistência em manter e reproduzir modos de vida
característicos e de consolidação de um território próprio. A identidade
quilombola não se define pelo tamanho e número dos membros da
comunidade, mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua
9
trajetória comum e da continuidade enquanto grupo.
9
O’Dwyer, Eliane Cantarino. Apresentação do Caderno Terra de Quilombos. Rio de Janeiro: UFRJ/ABA, 1995.
10
apontar para a necessidade de cada vez mais tornar a história um instrumento capaz de interferir
na construção de uma consciência histórica que problematize os diferentes tempos e espaços.
Contextos traumáticos como o da escravidão, por exemplo, podem e devem ser cada vez mais
trabalhados entre o grande público, a fim de contribuir para a formação de olhares menos
preconceituosos, vitimizadores e mais conscientes da cultura e da luta de africanos e seus
descendentes no Brasil.
Nesse sentido, acredito na importância do papel do turismo histórico cultural como
porta de entrada para a organização e realização de atividades voltadas para o grande público,
não apenas por mobilizar estratégias de divulgação, mas também por se tornar uma ponte entre
o turista e experiências que o permita estabelecer contato com diferentes hábitos e costumes,
com narrativas que explorem o binômio tempoespaço. Para tanto, se deve problematizar a
prática turística escapando das teorias que limitam o turismo ao passeio, ao lazer e se aproximar
das definições que apontam o turismo como uma experiência histórica e o turista como um
10
“ser” histórico em construção
.
Tendo em vista as considerações acima, investigar e analisar de que forma o quilombo
Baía Formosa se apropria da divulgação de seu passado histórico enquanto comunidade
remanescente de quilombo é de extrema importância para compreender não apenas de que
forma as narrativas sobre a escravidão e a experiência africana e de seus descendentes são
organizadas e apresentadas ao grande público, mas também de que forma o campo da história
pública pode contribuir para que atividades organizadas pela comunidade contribuam com a
formação histórica do grande público. Acredito que ao optar pelo espaço do quilombo como
objeto de investigação, este estudo está contribuindo com a divulgação e a problematização da
trajetória histórica das comunidades remanescentes de quilombo, inclusive, de suas lutas e
demandas recentes.
A escolha por Baía Formosa, neste sentido, está pautada por suas singularidades
relacionadas às práticas culturais apropriadas pela comunidade, que muito falam sobre as disputas
de memória existentes no espaço do quilombo, por estarem localizados em uma região que
construiu sua imagem turística a partir das praias, dos resorts e de outros elementos voltados para
10
NETTO, Alexandre Panosso. São Paulo: Aleph. 2 ed., 2011, pg. 36.
Filosofia do turismo: teoria e epistemologia.
11
o turismo de passeio, pela recente
emancipação da comunidade remanescente de quilombo Rasa,
também situada em Búzios/RJ e por manifestarem o desejo e o anseio de angariar apoio para a
elaboração de atividades culturais que promovam a circulação de turistas dentro do quilombo.
III. Objetivos da pesquisa
Identificar de que forma a história pública pode contribuir com a divulgação do passado
histórico de escravidão do quilombo e com a manutenção das lutas e reivindicações atuais dos
quilombolas de Baía Formosa;
Verificar quais são as narrativas referentes ao passado de escravidão que circulam entre os
moradores e através de quais ações pretendem divulgálas, a fim de evidenciarem ao grande
público o espaço do quilombo como um território de luta, resistência e identidade;
Compreender o interesse que mobiliza parte dos moradores do quilombo em tornar público o
passado da comunidade;
Analisar de que forma o próprio quilombo, bem como agentes e instituições que atuam ou
podem vir atuar em projetos de divulgação do histórico da comunidade, podem estabelecer e
proporcionar novas relações com o passado configurado no espaço do quilombo e possibilitar a
construção de um olhar menos vitimizador e mais consciente da cultura e da luta de africanos e
seus descendentes.
IV. Quadro teórico metodológico:
(...)
A história pública se relaciona a propósitos que vão além da realização de testes de
doutorado e programas de pesquisa. Passam pela relação com a consciência histórica, ou
mesmo por sua produção, pela relação com as memórias individuais e coletivas, pela
11
mobilização de comunidades, pela disponibilização de acervos de conhecimento.
O trecho acima problematiza a produção de história pública e ressalta sua importância
frente à sociedade e comprometimento com a formação histórica de grupos e indivíduos.
Sinaliza seu papel como uma porta de entrada, nos dias de hoje, para a divulgação das
pesquisas científicas e os entraves enfrentados por profissionais da área pelo reconhecimento da
legitimidade daquilo que produzem. O termo história pública significa “acesso irrestrito de um
11
FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. "Mídias e divulgação do conhecimento histórico" In
Revista do corpo discente
do Programa de PósGraduação em História da UFRGS. V.4, n.11, 2012, pg.132.
12
conhecimento histórico franqueado a todos”, enquanto consciência histórica é aquilo que
“designa o modo como os seres humanos interpretam a experiência da evolução temporal de si
12
mesmos e do mundo em que vivem”
, de acordo com a historiadora Sara Albieri. Ao
apresentar tais definições, a autora busca articular argumentos em torno da importância em
estabelecer uma sintonia entre a pesquisa histórica realizada na academia e a publicização da
mesma, a fim de facilitar o acesso à História e contribuir para a construção de uma consciência
histórica problematizada. No entanto, há um sentido prático e de relação com a comunidade na
produção de história pública que não necessariamente está atrelado ao campo do ensino, mas
que a meu ver, não torna a história pública um campo descomprometido com a formação
histórica da sociedade. De acordo com a Rede Brasileira de História Pública:
A noção de história pública é tão ampla que quase qualquer atividade que o historiador
desenvolva fora do campo de ensino e da pesquisa universitária pode ser considerada como
história pública. Este sentido prático e de relação com a comunidade chamou atenção dos
historiadores e tem contribuído para a resolução de problemas sociais mediante o uso de
testemunhas para processos de memória histórica, pósconflito, recuperação de identidade
das comunidades e do patrimônio material e imaterial das regiões. Ademais, levou a
consideração de novos projetos de história aplicada em âmbitos públicos e privados, como
também empreendimentos de historiadores que criaram empresas lucrativas onde a história
se afasta totalmente do ensino para atuar no setor de serviços, como na contribuição para
organização de arquivos empresariais (memória empresarial/institucional), ou no
fornecimento de "produtos" para a definição e litígios legais, como nos casos de definição
dos territórios naturais de certas comunidades. Também se incluem no campo da história
13
pública a assessoria em restauração e conservação patrimonial.
Por muito tempo a produção de história pública implicou na banalização do historiar à
medida que a chamada "cultura de massas" significou para a mídia de grande circulação encarar
o público leigo como um grupo acrítico, meramente inclinado a alimentar o mercado
consumidor cultural o que favoreceu o surgimento de produções pouco qualificadas e
14
distantes do meio acadêmico e científico do fazer história
, o que não deve estabelecer uma
imagem da grande mídia como vilã, tão pouco a produção de história pública como
desqualificada, mas sim contribuir para a aproximação entre acadêmicos e profissionais da
12
ALBIERI, Sara. "História pública e consciência histórica" In: ALMEIDA, Juniele Rabelo de; ROVAI, Marta
Introdução à história pública.
Gouveia de Oliveira (Orgs). São Paulo: Letra e Voz, 2011, p.1928.
13
Disponível em: . Acessado em: 03/07/2014.
http://historiapublica.com.br/
14
LIDDINGTON, Jill. "O que é história pública?" In ALMEIDA, Junilele Rabelo de; ROVAI, Marta Guveia de
Introdução à história Pública.
Oliveira (Orgs). São Paulo: Letra e Voz, 2011, p.3152
13
história pública. A ideia de que “o passado, ou ao menos suas formas populares, estão a nos
15
rodear
” dialoga em grande parte com o chamado “boom” da memória exposto por boa parte
da historiografia recente ligada aos debates memorialísticos. A rememoração se torna algo
comerciável, que circula entre o grande público para além da divulgação de um passado
histórico e do contato com o mesmo, a partir da suposta emergência, nos dias atuais, em tornar
16
viva a presença do passado
.
A história pública, nesse sentido, tornase importante ferramenta de circulação da
memória e de divulgação de histórias referentes ao passado e contribui para a formação
histórica do público leigo. Afinal, a sala de aula não é o único espaço a tornar possível a
formação de uma consciência histórica. Sobre essa ideia Jorn Rusen esclarece:
Com a expressão “formação histórica” me refiro aqui a todos os processos de
aprendizagem em que a “história” é o assunto e que não se destinam, em primeiro lugar, à
obtenção de competência profissional. Tratase de um campo a que pertencem inúmeros
fenômenos do aprendizado histórico: o ensino de história nas escolas, a influência dos
meios de comunicação de massa sobre a consciência histórica e como fator da vida humana
prática o papel da história na formação dos adultos como influente sobre a vida cotidiana
em suma, esse campo é extremamente heterogêneo. É nele que se encontram todos os
demais que servem à orientação da vida prática mediante consciência histórica, e nos quais
o ensino de história (no sentido mais amplo do termo: como exposição do saber histórico
com o objetivo de influenciar terceiros) desempenha algum papel. (..) São as situações
genéricas e elementares da vida prática dos homens que constituem o que conhecemos
17
como consciência histórica .
No fragmento acima é possível, portanto, compreender que a consciência histórica não
necessariamente é construída nos bancos escolares, através de deveres de casa e aulas montadas.
A experiência cotidiana dos indivíduos e dos grupos serve como fonte principal de formação
histórica e, no caso das visitas guiadas, o turismo histórico cultural representa parte dessa
experiência que contribui para a construção de uma cultura histórica sobre o passado. São as
experiências e interpretações do tempo que constituem o saber histórico e, portanto, aquilo que
fica sobre os eventos passados e presentes. Desse modo, é imprescindível que as atividades
culturais produzidas para o grande público tenham a responsabilidade de atrelar às suas narrativas
informações minimamente comprometidas com a verdade histórica e metodologicamente capazes
15
Idem, p.33
16
HUYSSEN, Andreas. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia.
17
RUSEN, Jorn. Brasília: UNB, 2001, pg.54.
Razão histórica.
14
de fazer com que o público compreenda o que está sendo contado, problematize os fatos que
estão sendo apresentados e reflita sobre o contexto narrado. Rusen acrescenta que:
A consciência histórica (...) é uma das formas da consciência humana que está relacionada
imediatamente com a vida humana prática. É este o caso quando se entende por consciência
histórica a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência
da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar,
18
intencionalmente, sua vida prática no tempo .
Um importante e necessário debate que cresceu bastante entre acadêmicos diz respeito
às representações midiáticas que são criadas acerca do contexto escravista e de que forma estas
mesmas representações interferem na formação histórica do público não especializado na área
de História. Ao longo do tempo, muitos discursos foram construídos, sobretudo no âmbito da
histórica pública, com base na exibição da violência como característica principal do período
escravista, o que contribuiu para a formação de uma cultura histórica acerca da escravidão e dos
africanos quase que incapaz de apontar o protagonismo dos negros e as diferentes formas de
resistência e relações que foram construídas dentro do sistema escravocrata. Não levanto a
bandeira da omissão e do silenciamento da violência física e moral produzida pela escravidão,
mas defendo a ideia de que cada vez mais a história pública, seja ela produzida dentro ou fora
da escola, esteja interessada e fortemente preocupada em desconstruir estereótipos e acredito
que um dos caminhos é estreitar cada vez mais o diálogo entre história pública e academia.
A historiadora Ana Lúcia Araújo, professora da Universidade de Howard, publicou
AfroÁsia
recentemente uma resenha, na revista Doze anos de escravidão
, sobre o filme ,
ganhador do Oscar de melhor filme, em 2013, e dirigido pelo britânico Steve Mcqueen. Ao
longo do texto, Araújo constrói seu argumento em torno das cenas surpreendentemente reais
dos açoitamentos, torturas, estupro e humilhações, alegando que embora tenha sido uma das
produções mais bem feitas e de maior sucesso dos últimos anos sobre o tema da escravidão, o
filme se mostra como mais uma produção no âmbito da história pública que explora o tema da
escravidão sob o foco da violência física e moral, o que limita a afirmação da ideia de que esses
mesmos africanos escravizados eram sujeitos da própria história e que o sistema escravista não
pode ser reduzido às ações de violência. Para a autora:
18
Idem, pg.57.
15
(...) Mesmo sendo a grande ênfase nas punições físicas apresentadas no filme
esclarecedoras para a compreensão da escravidão e da violência contra os afroamericanos,
que continuou a se intensificar no período pósemancipação, esse foco coloca homens e
mulheres escravizados em posição indefesa, negandolhes qualquer tipo de protagonismo e
meios de resistir aos horrores da escravidão. Tal imagem, aliás, não e diferente da que
predomina na memória pública e coletiva da escravidão no Brasil, nos EUA, na Inglaterra,
e em outros países de passado escravocrata, e que é particularmente visível em exposições
sobre a escravidão em vários museus nesses países. (...) Mas, ao mesmo tempo, seria
importante ter em mente, que quem nasceu escravizado e que não teve a oportunidade de
ser libertado também encontrou numerosas maneiras de resistir e negociar suas vidas,
mesmo vivendo sob um assombroso sistema de extrema violência. Esses homens e
mulheres também foram ativos combatentes e sobreviventes, e não apenas vítimas passivas
como são às vezes retratados no filme. A desunamização é representada pela perda do
controle dos escravos sobre seus próprios corpos. Isso é visível nas repetidas cenas de
castigos físicos com chicotes, correntes, algemas e outros instrumentos de tortura. O filme
também enfatiza a promiscuidade imposta a homens, mulheres e crianças escravizados.
Northup [um dos personagens] e outros cativos mantidos com ele dormiam e tomavam
19
banho juntos, compartilhando seus corpos nus e feridos.
A problemática acima nos convida a refletir sobre os usos da história pública e seus
efeitos na formação da consciência histórica do grande público e, nesse sentido, atividades
como as visitas guiadas, exposições em museus, documentários, teatro, desfiles de escola de
samba, entre outras, assumem a responsabilidade de influenciarem e contribuírem na
construção de saberes sobre o passado histórico e na reflexão crítica sobre o presente. Há de se
pensar sobre os agentes que atuam na produção de história pública e como atuam; quais os
temas que estão sendo divulgados e de que forma essa divulgação ocorre. Isso não quer dizer
que a história pública estará necessariamente sob monopólio de historiadores, tão pouco estará
restrita a escolha de temáticas, mas é fundamental que o trabalho com o grande público tenha
para além de qualidade, responsabilidade histórica. Nas últimas décadas, os meios de
divulgação do conhecimento histórico se alargaram e a história pública passou a ser pensada
dentro e fora da academia como uma ferramenta de democratização do conhecimento.
Outra contribuição importante para a construção teórica deste projeto está relacionada
ao campo do turismo histórico cultural. A proposta é analisar o turismo enquanto movimento,
deslocamento humano e, nesse sentido, o homem está inserido nesta ideia, já que é considerado
20
objeto e sujeito de seus deslocamentos turísticos
. Desse modo, se ultrapassa a visão positivista
19
ARAÚJO, Ana Lúcia. "Doze anos de escravidão e o problema da representação das atrocidades humanas" IN
, n.50, ed.2015, p.263.
Revista AfroÁsia
20
PANOSSO, Op.Cit., pg. 26.
16
que reduz o turismo à diversão, ao passeio de férias ou do final de semana e se prioriza uma
reflexão filosófica do termo, o que acredito facilitar o entendimento sobre a interação entre o
quilombo e o turismo histórico cultural. Isso não quer dizer que participar de visitas guiadas e
de atividades culturais não seja divertido ou não esteja atrelado ao lazer e à ideia de passeio,
mas é importante refletirmos a prática turística para além dessa definição.
O turismo histórico cultural vem sendo pensado ao longo do tempo como uma atividade
contrária aos turismos de massa das décadas de 1960/1970, que estavam fortemente atrelados às
praias, por exemplo. Os termos
turismo cultural e
turista cultural têm sido usados para se referir
a um novo tipo de atividade turística e de pessoa turista. Em linhas gerais, o turista cultural não
busca somente viajar para se distanciar por um tempo de seu local de vida rotineira, mas sim
21
viver experiências significativas, entrando em contato com diferentes hábitos culturais
. Esse é
um dos principais fatores que distingue o turismo histórico cultural do chamado turismo de
massa: a motivação do viajante em ter contato com uma dimensão cultural do local de destino.
Mas, o que pode ter contribuído para que a cultura tenha se tornado uma fonte de demanda do
turismo? Para o Ministério do Turismo:
As razões para o aumento deste tipo de demanda turística são várias (...). Um argumento que
se sobressai é o de que isto se deve à necessidade de ir ao encontro de “identidades culturais”
específicas, que no imaginário desses potenciais turistas, estariam fadadas ao
desaparecimento com a alardeada globalização. (...) No caso brasileiro, podese adicionar a
esse fluxo aquele intranacional que provém de regiões mais abastadas economicamente
(centros industriais, urbanizados e cosmopolitas) para outros onde o turista cultural pode
22
entrar em contato com uma cultura preservada de propalada globalização
23
Esta forma de turismo está inserido no chamado “novo turismo”
. Desde a década de
1980, que a cultura passou a se fazer presente na prática turística de muitos grupos e a ser
incorporada por ofertantes dos serviços de turismo em seus pacotes de viagens. O velho padrão
de turismo tinha como características férias padronizadas, com pacotes inflexíveis. Além disso, a
clientela alvo era tratada de forma homogênea. As férias pareciam ser consumidas em massa, sem
21
Ver Estudos de Competitividade do turismo brasileiro. Documento de propriedade do governo federal, com o
objetivo de ampliar o debate nacional sobre o futuro do setor turístico e fomentar a pesquisa nesse campo de
conhecimento. Produzido na década de 2000 por profissionais e teóricos da área. Disponível em:
http://www.turismo.gov.br/turismo/o_ministerio/publicacoes/cadernos_publicacoes/13estudos.html . Acessado em:
29/07/2014.
22
PANOSSO, Op.Cit., pg.8.
23
Idem, pg.10.
17
a menor consideração pela cultura e meio ambiente dos locais que recebiam os turistas. À nível
global era esse o modelo de turismo que se tinha difundido e que passou a movimentar a
economia de vários países. Aos poucos, a política de atração hoteleira, as novas tecnologias no
que diz respeito ao transporte, a prosperidade do pósguerra entre outros fatores deixam de
alimentar esse tipo de turismo. Em todo o mundo, o turismo de massa parece aos poucos perder
sentido, mas não espaço e o turismo histórico cultural se constitui enquanto manifestação desse
24
“novo turismo”
.
Pensar o turismo somente enquanto prática não é o bastante. É importante também
refletílo enquanto conceito. No final de 2003, por iniciativa do Ministério do Turismo, um grupo
técnico temático sobre turismo cultural, composto por representantes de diversas organizações da
área foi criado com o intuito de chegar a uma definição mais precisa do termo, afim de nortear o
debate e a criação de políticas relacionadas à área. Tanto o IPHAN, como o Ministério da Cultura
fizeram parte desse esforço de definir com mais precisão o fenômeno do turismo histórico
cultural. A partir dessa comissão, foi possível delimitar uma definição mais precisa para o termo
que foi expressa no documento “Marcos conceituais dos segmentos de turismo”, que veio a
público no salão do turismo de São Paulo, em junho de 2006. A definição adotada foi a seguinte:
Turismo cultural corresponde às atividades relacionadas à vivência do conjunto de elementos
significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e
25
promovendo os bens materiais e imateriais da cultura .
Ao longo do processo de pesquisa acredito poder reunir um cabedal maior de conceitos e
teorias que somadas aos debates propostos neste projeto contribuam de fato para o
enriquecimento do trabalho proposto, bem como o estudo e análise de documentos que permitirão
entender o histórico do quilombo Baía Formosa, bem como suas ações, lutas e reivindicações
atuais.
Entrevistar moradores e lideranças do quilombo será de extrema importância para
identificar e analisar não somente as disputas de memória e as relações estabelecidas entre os
moradores, mas também compreender os propósitos envolvidos com o desejo pela divulgação da
Idem, pg.12.
24
25
Ver: “Marcos conceituais dos segmentos do turismo”, junho de 2006. Disponível em:
http://www.turismo.gov.br/turismo/o_ministerio/publicacoes/cadernos_publicacoes/14manuais.html
. Acesso em:
02/08/2014.
18
comunidade e de seu histórico, quais são as memórias sobre o passado que circulam entre os
moradores e quais as histórias que se deseja narrar para o grande público. Além disso, acredito
ser relevante produzir entrevistas com a prefeitura local, a fim de investigar se há uma ação
coletiva entre o prefeito e os moradores de Baía Formosa que estimule o desenvolvimento do
turismo histórico cultural na região de Búzios, local que consolidou sua imagem frente às
propagandas turísticas a partir das praias e do comércio local, mas que pode e deve ceder maior
abertura aos eventos e práticas culturais existentes na região.
A inserção de Baía Formosa em projetos como o QUIPEA quilombos no projeto de
educação ambiental organizado pela SHELL, nos dá indicativos acerca da mobilização existente
dentro do quilombo em torno da divulgação da comunidade e de sua história não apenas por
terem aceito fazer parte de um projeto voltado para as comunidades tradicionais localizadas na
26
Bacia de Campos/RJ
, mas pelo fato de terem optado receber como financiamento da SHELL
cursos de especialização em guia de turismo, artesanato, entre outros, o que traz à tona o desejo
de grande parte dos moradores em investir e conduzir as ações de divulgação da comunidade
Baía Formosa.
Os documentos alocados na Associação de Moradores da comunidade também serão de
grande importância. O registro de reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, o estatuto, as
atas, o documento de cadastro das famílias pertencentes à comunidade são registros que
permitem identificar de que forma a identidade quilombola está posta para os moradores, de que
maneira se organizam enquanto comunidade e quilombo, além das demandas e reivindicações
atuais.
Baía Formosa se apropria de diversas manifestações culturais nos dias de hoje e que
refletem a forma como a comunidade compreende o passado de escravidão vivenciado por seus
antepassados, além de evidenciarem as disputas e os conflitos existentes entre os moradores. De
maioria evangélica, se optou por escolher a ciranda como uma prática identitária da comunidade
ao invés do jongo. De acordo com Elizabeth Teixeira, as músicas são compostas por eles mesmos
e suas letras narram episódios do período de escravidão. O artesanato, a culinária e as histórias
26
A existência do QUIPEA é condicionante ao licenciamento ambiental federal para as atividades de exploração e
produção de petróleo e gás natural. Baía Formosa faz parte do projeto desde o ano de 2010. Em 2012, o projeto
entrou em sua segunda fase da concretização das principais reivindicações das comunidades envolvidas.
19
contadas pelos griôs também são apropriadas como forma de construção identitária da
comunidade. É inclusive através das histórias contadas pelos griôs, os mais velhos do quilombo,
que os moradores constroem saberes sobre a escravidão e a origem das terras onde vivem. A
análise destes documentos permite não somente identificar quais são as histórias sobre a
escravidão que circulam na comunidade, mas também quais histórias os moradores querem tornar
pública.
O método, portanto, é combinar a análise das ações de divulgação do quilombo no tempo
presente com o debate historiográfico sobre história pública, turismo histórico cultural, políticas
patrimoniais, memória e a análise dos registros históricos mencionados acima, com o intuito de
compreender e identificar de que forma a história pública pode contribuir para estabelecer e
proporcionar novas relações com o passado configurado no espaço do quilombo e possibilitar a
construção de olhares menos vitimizados e mais conscientes da cultura e da luta de africanos e
seus descendentes no país.
V. Cronograma de atividades
Reuniões com X X X X X X X X
orientador
Coleta de X X X
dados
Análise dos X X X X X
dados
Escrita da tese X X X X X X
Defesa X
20
VI. Bibliografia
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