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AUTOCONHECIMENTO

Contemplação e
educação da
vontade ■ Por EVELYN UNDERHILL*
© JUPITERIMAGES

“Deixe sua alma entrar em seus olhos.”

2 O ROSACRUZ ■ 2º TRIMESTRE 2008


contemplação é o meio de expres- que o místico é inclinado a praticar no curso

A são do místico. Numa forma


extrema, ela é a retração da
atenção do mundo exterior e a
de toda sua vida – que se desenvolve passo a
passo, juntamente à sua visão e seu amor –
exige daquele que a empreende o fastidioso
dedicação total da mente que, por meios e em trabalho e o longo treinamento da vontade,
graus diferentes, condiciona igualmente a que presidem a toda grande realização e que
atividade criativa do músico, do pintor e do são o preço de toda verdadeira liberdade. É o
poeta: liberando a faculdade que permite desejo não preenchido desse treinamento –
apreender o Bem e o Belo, eles conseguem desse “exercício supra-sensível” – o respon-
entrar em comunhão com o Real. Assim sável por aquele misticismo vago, ineficaz e
como as “visões” e as “vozes” são geralmente às vezes nocivo que sempre existiu: a emoção
o meio pelos quais a consciência mística cósmica diluída e a espiritualidade claudi-
torna conhecidas suas descobertas à mente cante que, poder-se-ia dizer, dependuram-se
de superfície, assim também a contemplação na barra da saia dos verdadeiros buscadores
é o meio pelo qual essa mesma consciência do Absoluto e que descreditam sua ciência.
faz suas descobertas e percebe o supra- Nesse campo, como em todas as outras
sensível. O crescimento do gênio efetivo do artes, inclusive as menores, desenvolvidas
místico desenvolveu a arte da concentração: e pela espécie humana, a educação consiste em
esse crescimento é amplamente condicionado grande parte na vontade humilde de se
por sua formação. submeter à disciplina e de tirar proveito das
O pintor, quaisquer que sejam suas lições do passado. A Tradição caminha de
faculdades naturais, não pode abster-se de mãos dadas com a experiência, o passado
certa formação técnica; o músico é sábio ao colabora com o presente. Cada alma nova e
se familiarizar pelo menos com os elementos ardente que se lança rumo à meta única do
do contraponto. O mesmo é válido para o Amor encontra em seu caminho os marcos
místico. É bem verdade que às vezes ele deixados por outros na via que conduz à
parece se elevar bruscamente às alturas e Realidade. Se for sábia, ela os observa e neles
conhecer o êxtase, sem preparação, como um encontra auxílios para alcançar sua meta, e
poeta pode surpreender o mundo com uma não obstáculos à liberdade que procede da
súbita obra-prima. Mas, se não repousarem própria essência da ação mística. Essa ação, é
sobre uma disciplina, esses súbitos e isolados bem verdade, é, em última instância, uma
lampejos de inspiração não continuarão experiência solitária, “o vôo do solitário ao
produzindo grandes obras. “Ordina Solitário”, ainda que nenhuma realização da
quest’amore, o tu che m’ami”: este é o pedido alma tenha lugar “in vacuo” nem modifique o
imperativo que a Bondade, a Verdade, a Beleza universo das almas. Ao mesmo tempo, o ser
e cada um dos aspectos da Realidade dirigem humano não pode separar sua história
à alma humana. O amante e o filósofo, o pessoal da história da espécie humana. A
santo, o artista e o cientista devem, sem melhor e mais verdadeira experiência não
exceção, obedecê-lo, ou fracassar. acontece ao excêntrico ou ao peregrino
Assim, o gênio transcendental, que individual que tem como única lei suas
também precisa ser cultivado, obedece às leis intuições, mas, sim, àquele que procura tirar
que regem todas as outras formas de genia- proveito da cultura da sociedade espiritual em
lidade: com efeito, ele não pode desenvolver que ele se encontra, e que submete sua
todas as suas faculdades sem um processo intuição pessoal aos conselhos dispensados
educativo. A estranha arte da contemplação, pela história geral do misticismo. Os que

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rejeitam esses conselhos expõem-se a todos Convido todos a quem essas proposições
os perigos que ameaçam os individualistas, pareçam uma mistura de psicologia e metafí-
da heresia, num dos pratos da balança, à sica medíocres a liberarem sua mente de todo
loucura, no outro. “Vae Soli!” Em nenhuma preconceito e a submeterem essa questão a
outra parte observamos tão claramente, como um teste experimental. Se forem pacientes e
na história do misticismo, a solidariedade honestos – e a menos que não pertençam
essencial do gênero humano e a sanção paga àquela minoria que é, por temperamento,
por aqueles que não a querem reconhecer. incapaz do menor ato contemplativo – sairão
A educação que a tradição sempre prescre- dessa experiência enriquecidos de um conhe-
veu consiste no desenvolvimento gradual de cimento novo acerca da relação entre a mente
uma extraordinária faculdade de concentra- humana e o mundo externo.
ção, de um poder de atenção espiritual. A
mera “consciência do Absoluto” não é sufi- ❖ ❖ ❖
ciente se a pessoa não é capaz de contemplá-
lo, da mesma forma como a visão e a audição, Tudo o que peço é que você fixe o olhar por alguns
por mais aguçadas que possam ser, necessi- instantes, com toda a atenção requerida, numa
tam ser completadas por faculdades treinadas coisa simples, concreta e externa. O objeto dessa
de percepção e receptividade para poderem contemplação pode ser uma coisa que o agrade:
realmente apreciar – ver e ouvir – as obras- uma pintura, uma estátua, uma árvore, a encosta
primas da arte ou da música. Mais ainda, a de uma colina, uma planta que brota, um curso
natureza pouco revela de seus segredos a d’água, pequenas coisas vivas. Não é necessário ir,
quem nada mais faz que olhar ou escutar com com Kant, a céus estrelados. “Uma coisa peque-
o olho e o ouvido físicos. A condição para nina, não maior que uma avelã” poderá bastar,
tudo ver e ouvir, em cada plano de consciên- como aconteceu com Lady Julian, há séculos.
cia, não consiste em aguçar os sentidos, mas Lembre-se de que se trata de uma experiência
em adotar, no nível da personalidade inteira, prática e não de uma bela meditação panteísta.
uma atitude especial: uma atenção em que a Olhe para essa coisa que você escolheu. Rejeite,
pessoa esquece de si mesma, uma profunda com muita vontade mas tranqüilamente, as
concentração, uma fusão do Eu que opera mensagens que inúmeros outros aspectos do
uma verdadeira comunhão entre aquele que mundo lhe enviam e concentre toda sua atenção
vê e aquilo que é visto; numa palavra, a nesse único ato de contemplação amorosa, de
contemplação. Assim, a contemplação, em maneira a excluir do seu campo de consciência
sentido mais geral, é uma faculdade que todos os outros objetos.
amiúde pode e deve ser aplicada à percepção, Não pense, mas aja de modo a que toda sua
não somente da Realidade divina, mas de personalidade penda para essa coisa: deixe sua
tudo o que existe. É uma atitude mental em alma entrar em seus olhos. Quase instantanea-
que todas as coisas nos entregam o segredo mente, esse novo método de percepção fará
de sua vida. Todos os artistas são, em certa aparecer qualidades insuspeitadas no mundo
medida, necessariamente contemplativos. Na externo. Você primeiro perceberá à sua volta um
medida em que se entregam sem preocupação estranho silêncio, cada vez mais profundo, e a
egoísta, eles vêem a Criação do ponto de vista diminuição da atividade de sua mente febril. Em
de Deus. “A inocência dos olhos” nada mais seguida, tomará consciência de que a coisa que
é, praticamente, do que isso: e é somente você observa adquire mais significado, de que sua
através dela que eles podem ver realmente as existência se intensifica. Enquanto se debruça
coisas que desejam mostrar ao mundo. sobre ela, com toda sua consciência, você receberá

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em resposta um fluxo que virá ao encontro do seu. emprega – é bem verdade que em outros
É como se a barreira entre a vida dela e a sua, níveis e submetendo-se ao sentido transcen-
entre o sujeito e o objeto, houvesse desaparecido. dental – na apreensão da Realidade invisível.
Você se fundiu com ela num ato de comunhão Uma coisa é ver fielmente, por alguns
verdadeira; conhece agora o segredo de seu ser, instantes, a flor na fenda do muro, outra é se
profundamente e de modo inesquecível, e, não elevar até a apreensão da “Verdade Eterna, do
obstante, de uma forma que você jamais poderá amor verdadeiro e da Eternidade”; ambas
esperar exprimir. estas coisas são, todavia, cada qual em seu
nível, funções do olho interno que atua
❖ ❖ ❖ quando a mente se retrai provisoriamente.
A receptividade humilde e a contemplação
Vista desse ângulo, uma urtiga terá tranqüila e sustentada, nas quais a emoção, a
qualidades celestes, uma galinha malhada vontade e o pensamento se fundem, são o
terá qualquer coisa de sublime. Nossos segredo do grande contemplativo, abrasado de
grandes amigos, as árvores, as nuvens, os amor por aquilo que lhe foi permitido ver.
rios, nos iniciam a vastos segredos. “O olho Mas, enquanto a contemplação da natureza
que contempla a eternidade” aproveitou uma implica em nos voltarmos para uma coisa que
ocasião. Fomos imersos, por um instante, na está indubitavelmente fora de nós, a contem-
“vida do Todo”: um amor calmo e profundo plação do Espírito, na forma com que esta
nos uniu à substância de todas as coisas, um aparece para os que a praticam, requer uma
“casamento místico” ocorreu entre a mente e rejeição deliberada das mensagens dos senti-
alguns aspectos do mundo externo. “Cor ad dos, uma “introversão” das nossas facul-
cor loquitur”: a vida falou à vida, não à inteli- dades, uma “viagem ao centro”. “O reino dos
gência de superfície. A inteligência de super- Céus”, dizem eles, “está em ti”: procura-o,
fície sabe somente que essa mensagem foi então, nos recônditos mais secretos da alma.
verdadeira e bela: nada mais. O místico deve aprender a concentrar todas
Essa experiência acalmou a consciência de as suas faculdades, todo seu ser no invisível e
superfície e reuniu todos os nossos centros intangível; deste modo, ele pode esquecer
de interesse dispersos: nós nos entregamos todas as coisas visíveis e se concentrar tão
inteiramente a essa única atividade, abando- intensamente nele que todas as outras coisas
nando toda consciência de nós mesmos, todo se esfumam. Ele deve reunir suas faculdades
pensamento refletido. Refletir é sempre dispersas através de um exercício deliberado
deformar: nossa mente não é bom espelho. O da vontade, deve esvaziar seu cérebro de todas
contemplativo, qualquer que seja o plano em as efervescentes imagens e do tumulto de
que suas faculdades ajam, contenta-se em seus pensamentos. Em linguagem mística,
absorver e ser absorvido; e, através dessa deve “mergulhar no vazio”, naquele espaço
aproximação humilde, ele atinge um plano de virgem onde a Razão ativa e hábil não pode
conhecimento de que nenhum procedimento penetrar. O todo desse processo, a reunião
intelectual consegue chegar perto. das faculdades do Eu para voltá-las ao “inte-
Isso não significa que essa simples expe- rior”, a contemplação do território da alma, é
riência seja comparável, de qualquer forma a isto que se chama introversão. ■
que seja, à contemplação transcendental do
místico. Entretanto, ela utiliza, em pequena
* Excerto do livro “Misticismo”, publicado pela
escala e em relação à natureza visível, as AMORC-GLP, de leitura recomendada a todo
mesmas faculdades naturais que o místico místico Rosacruz.

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