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Artigo Psicologia Genero Comp Aprisionamento
Artigo Psicologia Genero Comp Aprisionamento
as lógicas de aprisionamento
Gender technology and the imprisonment logics
Tânia Pinafi
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Faculdade de Ciências e Letras de Assis
tania.pinafi@gmail.com
Abstract
That article tries to make an analogy between the technologies of gender and the binary
prisoner/free, illustrating the logics of subjectivities imprisonment and how the modern
society is ruled in norms and binarisms for the production of the know-power on itself.
This way, we intend to articulate the Foucault's reflections about the operation of the
power with the gender's normatives, which are structured in manners of existences of
coercive, moralized and valued characteristics. That normatives are produced in the
social relationships in which we lived our private existences. We will explore the
imprisonment, first, through the subversion of the norm, in the case of the physical
institution of the prison, and, second, in the norm, questioning the illusion of those that
are believed free. The most hermetic of the prisons and the most effective surveillance is
the one that each person exercises on him/herself; the more subjectivated in the
gender's normative, more prejudiced will be the heteronomy.
Keywords: Gender. Sexualities. Imprisonment. Binarism.
268
Introdução
Este artigo propõe fazer uma analogia entre a forma como as pessoas
são marcadas pelos gêneros e as lógicas de funcionamento da prisão. Para tal,
articularemos as formas de funcionamento do binário preso/livre às práticas
relacionadas às amarras de gênero e sexualidade.
E por que fazer uma analogia da prisão com o gênero? Porque
propomos o questionamento das normas de gênero a que todos são, logo na
infância, enquadrados. Com isso, dizemos dos modos de existência rígidos,
ortopédicos, que delimitam as existências humanas nos classificando e
qualificando como melhores ou piores com base na capacidade mimética da
assunção das expressões de gênero instituídas a cada um dos sexos. Dessa
forma, qualquer proposta de câmbio na escala do gênero é mal vista. No caso
das mulheres, elas devem corresponder aos padrões instituídos de feminilidade
de seu contexto sócio-histórico-cultural, assim, quanto mais se afastarem
desses papéis e expressões de gênero, maior será a discriminação, o controle, a
estigmatização, a violência e a tentativa de reenquadramento que recairão
sobre ela. Da mesma forma, são instituídas a todas as pessoas as normativas
de sexualidade. Sobre isso, Rubin (1989) compõe uma escala hierárquica da
sexualidade com base nos padrões de sexo/gênero instituídos, no quais os
casais heterossexuais, ligados pelo casamento, estariam sozinhos no topo do
que a autora chama de “pirâmide erótica”. Abaixo deles, estariam os casais
heterossexuais monogâmicos não casados, seguidos pelos/as heterossexuais
solteiros, mas de vida sexual ativa. Mais embaixo viria o sexo solitário, que se
situaria acima de casais estáveis de lésbicas e de gays, os quais estariam mais
“próximos da respeitabilidade”. Debaixo destes, viriam as lésbicas de bares e
homossexuais “promíscuos”. Os que se situam na parte mais baixa, as
categorias sexuais mais desprezadas, seriam: os/as transexuais, os/as travestis,
os/as fetichistas, os/as sadomasoquistas, os/as trabalhadores/as do sexo e,
abaixo de todos os outros, os/as pedófilos/as.
Desse modo, no caso das mulheres, corresponder às normativas de
gênero e de sexualidade seria: 1) obedecer aos padrões de feminilidade de seu
contexto sócio-histórico-cultural e 2) serem heterossexuais, monogâmicas,
especialmente dentro da instituição do casamento. Estariam assim no topo da
hierarquia dos corpos generificados e sexuados.
Ainda, dilatando o pensamento de Rubin, para pensar nessas
hierarquias que estão no modo de organização de nossa sociedade, é
importante levar em conta os marcadores sociais da diferença, como: classe
socioeconômica, nível de escolaridade, raça/etnia, orientação sexual, geração,
270
própria representação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato
imaginária” (LAURETIS, 1994, p. 220).
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oferecer algum perigo de transbordar a categoria na qual se encerra. Nessa
sociedade capitalista erigida sob o modelo do contrato social, em que todos são
livres e iguais, seríamos realmente todos livres e iguais? Ou viveríamos falácias
tão reiteradamente repetidas que por fim vieram a adquirir estatuto de
verdades? E por quais vias fomos levados a comprar essas ideias, sem
questionar, e que hoje nos soam tão familiares?
No binarismo das categorias homem/mulher, uma construção sócio-
histórica androcêntrica produziu o primeiro termo carregado de positividade e
edificou seu significado a partir de um procedimento de desqualificação do
segundo termo, produzindo uma hierarquia entre eles. Assim, sobre essa
desqualificação erige-se uma suposta inferioridade e objetificação da mulher,
de tal modo que algumas teóricas, como Irigaray e Lauretis1, chegam a
questionar a categoria mulher por sua construção a partir de um referencial
androcêntrico. Isto é, elas partem da postura objetificante com que a ciência
tem tratado as mulheres em suas análises, tentando privá-las de sua categoria
de sujeito.
O sistema binário não só recusa o entre como também é resistente a
pensar que o polo negativo desse modelo possa ter sua valência alterada em
qualquer situação. Aceitar de pronto o binarismo homem/mulher remete a
aceitar sem questionar a sexualização discursiva dos corpos pelas tecnologias e
instituições.
Ainda nesse sentido, Preciado (2008, p. 262) aponta que quando se
leva em conta que não somos naturalmente homens ou mulheres, masculinos
ou femininos, passamos a nos perceber e perceber os outros como
efeitos mais ou menos realistas de repetições performativas
decodificáveis como masculinas ou femininas. Ao
caminhar por entre os corpos anônimos, suas
masculinidades e suas feminilidades [...] aparecem [...]
como caricaturas daquelas que, sozinhas, graças a uma
convenção tacitamente pactuada, parecem não ser
conscientes2.
1
Para Irigaray, o discurso é falogocêntrico e somente podem emergir sujeitos homens; enquanto Lauretis pontua
que o lugar ocupado pela mulher é no silêncio. Sobre essa questão, ver Irigaray (1976, 1974) e Lauretis (2000).
2
Tradução livre: “efectos más o menos realistas de repeticiones performativas descodificables como masculinas o
femeninas. Al caminar entre sus cuerpos anónimos, sus masculinidades y feminidades [...] aparecen […] como
caricaturas de las que, ellos solos, gracias una convención tácitamente pactada parecen no ser conscientes”.
3
Tradução livre: “eficientes ficciones performativas y somáticas convencidas de su realidad natural”.
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Foucault (1979, 1995) demonstra que as relações de poder
implicam, de modo produtivo e/ou coercitivo, modos de subjetivação. Nesse
sentido, encontramos autores que consideram que a subjetividade “é
essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências
particulares” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 33). Em outras palavras, é
produzida por uma maquinaria das autoridades religiosas, legais ou científicas,
da medicina, da mídia, da família, da religião, da pedagogia, da cultura
popular, dos sistemas educacionais, da psicologia, da arte, da literatura, da
economia, da demografia etc. É através dessa maquinaria produtiva que os
sujeitos se formam e podem ocupar o lugar de sujeitos de conhecimento e,
consequentemente, estabelecer relações de verdade. Tais modos de
subjetivação são produzidos por discursos e práticas discursivas
normatizadores de lógica binária e de características coercitivas, moralizantes
e/ou valorativas do poder.
Então é aí que entramos na especificidade das relações de poder,
quando pensamos a ideia binária de prisão/liberdade. Não há poder sem a
insubmissão da liberdade a resistir-lhe. Sem se antagonizar, posto que são
constitutivos, poder e liberdade provocam-se mutuamente. É preciso que os
indivíduos se acreditem livres, existindo, assim, também os presos, para que
essa forma de existência livre se faça inteligível. É necessário que os sujeitos se
pressuponham livres para confrontar-se, para disputar, para resistir ao poder.
Porém, diferente das relações preso/livre dos sistemas penitenciários,
pois nesse caso o que se diz “bem (ou bom)” é o livre, no caso das amarras de
gênero, quem está “bem” ou é “bom” é quem está dentro das normativas
hegemônicas e binárias do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, ou
seja, aquele que é considerado normal, saudável, é quem está preso.
Foucault (2000) faz menção a duas tecnologias de poder que incidem
nos corpos. Uma ele nomeia de “anátomo-política do corpo humano”, e a
outra, de “biopolítica”. Ambas atuariam justapostas e estabeleceriam
processos de disciplinarização dos corpos e de regulação dos prazeres. A partir
dessas tecnologias são produzidos corpos úteis e dóceis que são servis aos
interesses políticos e econômicos. A importância capital dada à sexualidade se
deve ao fato de ela estar localizada “exatamente na encruzilhada do corpo e da
população. Portanto, ela depende da disciplina, mas depende também da
regulamentação” (FOUCAULT, 2000, p. 300). Essa forma de atuação difusa e
autorregulatória do poder, uma vez que cada um é seu próprio carrasco (pois
interioriza as disciplinas e as regulamentações ditadas pelas normas
hegemônicas), Foucault chamará de “biopoder” – por se centrar na gestão
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tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão
interrelacionados, mas devem ser analiticamente
diferenciados. O núcleo da definição repousa numa
conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma
forma primária de dar significado às relações de poder.
Conclusão
O que queremos apresentar com isso é que é possível localizar
resistências aos aprisionamentos dos gêneros e apreender o quanto as
tecnologias de gênero esquadrinham os corpos e as subjetividades para que
continuem a produzir a estabilidade instituída hierarquicamente no gênero.
Lauretis (1994) fala então do processo que ela chama de
“investimento”, aquele no qual se investe no que ela denomina de “posição de
sujeito”. A autora utiliza-se de Foucault para falar que é o poder que motiva os
investimentos dos sujeitos em uma posição discursiva concreta.
Se em um dado momento existem vários discursos sobre a
sexualidade competindo entre si e mesmo se contradizendo
– e não uma única, abrangente ou monolítica, ideologia –,
então o que faz alguém se posicionar num certo discurso e
não em outro é um “investimento” [...] algo entre um
comprometimento emocional e um interesse investido no
poder relativo (satisfação, recompensa, vantagem) que tal
posição promete (mas não necessariamente garante)
(LAURETIS, 1994, p. 225).
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contemporaneamente, tendo como contraponto a imagem do sujeito “preso”.
Como estamos em “liberdade”, não nos percebemos oferecidos aos controles e
coerções que delimitam nossa existência. Respaldados pela lógica binária
sustentada pelo preso/livre, os mecanismos de controle operam nas relações de
maneira a estabelecer como naturais os padrões hegemônicos. Tomamos como
mensagens de nossa consciência ou individualidade as construções binárias do
viver e consideramos que os presos estão submetidos ao poder, sem perceber
que existem milhares e sutis formas de aprisionamentos de nossas existências.
O que não paramos para pensar a partir dessa ótica binária é o entre:
nem em um polo, nem em seu oposto, mas o que circula, racha, bifurca,
atravessa e contradiz. Por que a nossa forma de pensar continua sendo binária?
Por que continuamos buscando a razão instrumental, a identidade pura, a
lógica dualista e o universalismo antirrelativista, se sabemos que nossa
realidade é tão mais múltipla? Será que nos permitimos saber realmente?
Butler (2003) fala de como estamos ainda aprisionados pelo sistema
sexo/gênero, que produz e separa o corpo dualmente, e pelo sistema
heteronormativo, que hierarquiza as relações. Ambos esses sistemas produzem
desigualdade e opressão entre as pessoas e, portanto, poder de uns sobre
outros. Butler (2003, p. 41) nos diz:
Para Wittig, a restrição binária que pesa sobre o sexo atende
aos objetivos reprodutivos de um sistema de
heterossexualidade compulsória; ela afirma,
ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade
compulsória irá inaugurar um verdadeiro humanismo da
“pessoa”, livre dos grilhões do sexo.
4
Tradução livre: “La primacía de la diferencia es tan constitutiva de nuestro pensamiento que le impide realizar
ese giro sobre sí mismo que sería necesario para su puesta en cuestión, para captar precisamente el fundamento
constitutivo”.
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