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Análise de alguns excertos de Os Lusíadas

Análise da Proposição – O poeta define o tema: "Eu canto o peito ilustre Lusitano..."

1 As armas e os barões assinalados


Que, da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

2 E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3 Cessem do sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Os Lusíadas (I, 1-3)

VOCABULÁRIO:
- As armas – as hostes; aqueles que contribuíram para o esforço da descoberta e conquista mas
cujo nome não ficou na História.
- Os barões (varões) assinalados – os homens ilustres, aqueles cuja fama ficou registada.
- A expressão inicial pode ser entendida como “Os feitos e os homens ilustres”. É um decalque do
1º verso da Eneida: Arma virumque cano.
- ocidental praia Lusitana – Portugal.
- Taprobana – nome clássico da ilha de Ceilão; ao sul da Índia.
- em perigos e guerras esforçados - ultrapassando perigos e vencendo combates com esforço
perseverante.
- gente remota - povos distantes.
- Novo Reino – império português no Oriente.
- sublimaram - tornaram sublime, engrandeceram.
- dilatando – aumentando.
- a Fé - a religião católica.
- terras viciosas – terras não cristãs, onde não se pratica a religião católica, terras pagãs.
- devastando – percorrendo, descobrindo.
- valerosas – valorosas.
- lei da Morte – esquecimento.

Clarinda Serrano ________________________________________________________________________ 1


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- se vão da lei da morte libertando - vão ganhando fama que lhes sobreviverá, serão lembrados
pelas gerações futuras.
- engenho – talento.
- arte – eloquência, a arte de dizer.
- Cessem – deixe de se falar.
- sábio Grego – Ulisses, herói da Odisseia. Ao voltar a casa, depois da guerra de Tróia, navegou
durante dez anos pelo mar Mediterrâneo.
- Troiano – Eneias, herói da Eneida. Camões chama-lhe “troiano”, porque era filho do rei de Tróia,
Príamo. Após a destruição de Tróia, navegou com os companheiros pelo Mediterrâneo,
procurando um lugar para fundar uma nova cidade (Roma).
- Alexandro – Alexandre Magno, cujo império ia da Grécia às proximidades do rio Indo.
- Trajano – imperador romano, conhecido pelas suas campanhas militares na Ásia.
- peito ilustre Lusitano – povo português.
- Neptuno e Marte – Respectivamente, deus do mar e da guerra, para os romanos.
- Musa antiga – poesia antiga (da Antiguidade greco-romana).

Como vimos, a finalidade da proposição, em qualquer epopeia, é a enunciação do assunto


que o poeta se propõe tratar. Assim é, também, n’ Os Lusíadas: Camões está decidido a tornar
conhecido em todo o mundo o valor do povo português (“o peito ilustre lusitano”). E para isso
estrutura a sua proposição em duas partes: nas duas estâncias iniciais, enuncia os heróis que vai
cantar; na segunda parte, constituída pela terceira estrofe, estabelece um confronto entre os
portugueses e os grandes heróis da Antiguidade, afirmando a superioridade dos primeiros sobre
os segundos.

Que o herói desta epopeia é colectivo, é um facto incontestável. Quanto a isso, o próprio
título é inequívoco: os “lusíadas” são, afinal, os portugueses — todos, não apenas os passados,
mas até os presentes e futuros, na medida em que assumam as virtudes que caracterizam, no
entendimento do poeta, o povo português e que ele sintetiza, na dedicatória a D. Sebastião, desta
forma:
amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno

O facto de o seu herói ser colectivo e a sua acção se estender por um intervalo de tempo
muito vasto permite-lhe desdobrá-lo em subgrupos, conforme verificaremos a seguir. O plural
utilizado para designar cada um deles confirma o carácter colectivo do herói: “barões
assinalados”, “Reis”, “aqueles”.
A inversão da ordem sintáctica nessa primeira frase, que engloba as duas estâncias iniciais,
pode tornar difícil, à primeira leitura, a compreensão do texto. A ordem normal seria esta:
Cantando, espalharei por toda a parte as armas e os barões...
Pode esquematizar-se o conteúdo dessas duas estrofes da seguinte maneira:

Através da poesia,
se tiver talento para isso,
tornarei conhecidos em todo o mundo

os homens ilustres
que fundaram o império português do Oriente

Clarinda Serrano ________________________________________________________________________ 2


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os reis, de D. João I a D. Manuel,


que expandiram a fé cristã e o império português

todos os portugueses
dignos de admiração pelos seus feitos.

Pelo esquema, vemos que Camões apresenta três grupos de agentes (“agentes” e não
heróis, porque herói é “o peito ilustre lusitano”).
O primeiro é constituído pelos “barões assinalados”, responsáveis pela criação do império
português na Ásia. É evidente que o poeta destaca principalmente a actividade marítima, a gesta
dos descobrimentos (“Por mares nunca dantes navegados, / Passaram ainda além da Taprobana”).
O segundo grupo inclui os reis que contribuíram directamente para a expansão do
cristianismo e do império português (“foram dilatando / A Fé o Império”). Aqui é sobretudo o
esforço militar que se evidencia (“andaram devastando”).
No terceiro grupo incluem-se todos os demais, todos os que se tornaram dignos de
admiração pelos seus feitos, quaisquer que eles sejam.

A enumeração é apresentada em gradação descendente: em primeiro lugar, os envolvidos


na expansão marítima; depois, os reis envolvidos na expansão militar; finalmente, todos os outros.
Essa valorização relativa é confirmada pelo espaço textual: oito versos, para o primeiro grupo;
quatro, para o segundo; dois apenas, para o terceiro.
No entanto, este terceiro aparece como um grupo aberto: nele se incluem não apenas
heróis passados, mas todos aqueles que se venham a evidenciar no futuro. Note-se que, para os
dois primeiros grupos, o poeta utiliza o pretérito perfeito, enquanto aqui recorre ao presente
perifrástico — “vão”.

Ao contrário das epopeias primitivas, aqui o herói é colectivo, o que o próprio título logo
indica — Os Lusíadas. Por outro lado, na proposição, como vimos, a indicação dos heróis além de
ser desdobrada em grupos diferenciados, é utilizado em cada um deles o plural.
A proposição não é uma simples indicação dos seus heróis, mas obedece já a uma
estratégia de engrandecimento dos portugueses. A expressão “por mares nunca dantes
navegados” evidencia o carácter inédito das navegações portuguesas; observe-se o destaque dado
à palavra “nunca”. A exaltação continua com a referência ao esforço desenvolvido, considerado
sobre-humano (“esforçados / Mais do que prometia a força humana”).

Na segunda parte, esse esforço de engrandecimento continua, desta vez através de um


paralelo com os grandes heróis da Antiguidade. O confronto é estabelecido com marinheiros
famosos (Ulisses e Eneias), eles próprios heróis de duas epopeias clássicas, e conquistadores
ilustres (os imperadores Alexandre Magno e Trajano). A escolha de navegadores e guerreiros não
é inocente, visto que é exactamente nessas duas áreas que os portugueses se destacam. E quase a
concluir, uma nota final, na mesma linha: “... eu canto o peito ilustre lusitano, / A quem Neptuno e
Marte obedeceram”. A submissão do deus do mar e do deus da guerra aos portugueses (“o peito
ilustre lusitano”) é uma forma concisa e muito expressiva de exaltar o valor do seu herói.

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Análise do Consílio dos Deuses no Olimpo

24- "Eternos moradores do luzente,


19- Já no largo oceano navegavam, estelífero Polo e claro Assento:
as inquietas ondas apartando; se do grande valor da forte gente
os ventos brandamente respiravam, de Luso não perdeis o pensamento,
das naus as velas côncavas inchando; deveis de ter sabido claramente
da branca escuma os mares se mostravam como é dos Fados Grandes certo intento
cobertos, onde as proas vão cortando que por ela se esqueçam os humanos
as marítimas águas consagradas, de Assírios, Persas, Gregos e Romanos."
que do gado de Proteu são cortadas.
25- "Já lhe foi (bem o vistes) concedido,
20- Quando os Deuses no Olimpo luminoso, cum poder tão singelo e tão pequeno,
onde o governo está da humana gente, tomar ao Mouro forte e guarnecido
se ajuntam em consílio glorioso, toda a terra que rega o Tejo ameno.
sobre as cousas futuras do Oriente, Pois contra o Castelhano tão temido
pisando o cristalino Céu fermoso, sempre alcançou favor do Céu sereno:
vem pela Via Láctea juntamente, assi que sempre, enfim, com fama e glória,
convocados, da parte de Tonante, teve os troféus pendentes da vitória."
pelo neto gentil do velho Atlante.;
26- "Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
21- Deixam dos Sete Céus o regimento, que co a gente de Rómulo alcançaram,
que do poder mais alto lhe foi dado, quando com Viriato, na inimiga
Alto Poder, que só c'o pensamento guerra romana, tanto se afamaram.
governa o Céu, a Terra e o Mar irado. Também deixo a memória que os obriga
Ali se acharam juntos num momento a grande nome, quando alevantaram
os que habitam o Arcturo congelado um por seu capitão, que, peregrino,
e os que o Austro têm e as partes onde fingiu na cerva espírito divino."
a Aurora nasce e o claro Sol se esconde.
27- "Agora vedes bem que, cometendo
22- Estava o Padre ali, sublime e dino, o duvidoso mar num lenho leve,
que vibra os feros raios de Vulcano, por vias nunca usadas, não temendo
num assento de estrelas cristalino, de Áfrico e Noto a força, a mais se atreve:
com gesto alto, severo e soberano; que, havendo tanto já que as partes vendo
do rosto respirava um ar divino, onde o dia é comprido e onde breve,
que divino tornara um corpo humano; inclinam seu propósito e porfia
com ua coroa e ceptro rutilante, a ver os berços onde nasce o dia."
de outra pedra mais clara que diamante.
28- "Prometido lhe está do Fado eterno,
23- Em luzentes assentos, marchetados cuja alta lei não pode ser quebrada,
de ouro e de perlas, mais abaixo estavam que tenham longos tempos o governo
os outros Deuses, todos assentados do mar que vê do Sol a roxa entrada.
como a Razão e a Ordem concertavam Nas águas têm passado o duro Inverno;
(precedem os antigos, mais honrados, a gente vem perdida e trabalhada;
mais abaixo os menores se assentavam); já parece bem feito que lhe seja
quando Júpiter alto, assi dizendo, mostrada a nova terra que deseja."
cum tom de voz começa, grave e horrendo:

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29- "E porque, como vistes, têm passados e o outro, pelas honras que pretende,
na viagem tão ásperos perigos, debatem, e na porfia permanecem;
tantos climas e céus exprimentados, a qualquer seus amigos favorecem.
tanto furor de ventos inimigos,
que sejam, determino, agasalhados 35- Qual Austro fero ou Bóreas na espessura
nesta costa africana como amigos; de silvestre arvoredo abastecida,
e, tendo guarnecido a lassa frota, rompendo os ramos vão da mata escura
tornarão a seguir sua longa rota." com impeto e braveza desmedida,
brama toda montanha, o som murmura,
30- Estas palavras Júpiter dizia, rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
quando os Deuses, por ordem respondendo, tal andava o tumulto, levantado
na sentença um do outro diferia, entre os Deuses, no Olimpo Consagrado.
razões diversas dando e recebendo.
O padre Baco ali não consentia 36- Mas Marte, que da Deusa sustentava
no que Júpiter disse, conhecendo entre todas as partes em porfia,
que esquecerão seus feitos no Oriente ou porque o amor antigo o obrigava,
se lá passar a Lusitana gente. ou porque a gente forte o merecia,
de entre os Deuses em pé se levantava
31- Ouvido tinha aos Fados que viria (merencório no gesto parecia)
ua gente fortíssima de Espanha o forte escudo, ao colo pendurado,
pelo mar alto, a qual sujeitaria deitando para trás, medonho e irado.
da Índia tudo quanto Dóris banha,
e com novas vitórias venceria 37- A viseira do elmo de diamante
a fama antiga, ou sua ou fosse estranha. alevantando um pouco, mui seguro,
Altamente lhe dói perder a glória por dar seu parecer se pôs diante
de que Nisa celebra inda a memória. de Júpiter, armado, forte e duro.
E dando ua pancada penetrante
32- Vê que já teve o Indo sojugado co conto do bastão no sólio puro,
e nunca lhe tirou Fortuna ou caso o Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
por vencedor da Índia ser cantado um pouco a luz perdeu, como enfiado.
de quantos bebem a água de Parnaso.
Teme agora que seja sepultado 38- E disse assi: –"Ó Padre, a cujo império
seu tão célebre nome em negro vaso tudo aquilo obedece que criaste:
d'água do esquecimento, se lá chegam se esta gente que busca outro hemisfério,
os fortes Portugueses que navegam. cuja valia e obras tanto amaste,
não queres que padeçam vitupério,
33- Sustentava contra ele Vénus bela, como há já tanto tempo que ordenaste,
afeiçoada à gente Lusitana não ouças mais, pois és juiz direito,
por quantas qualidades via nela razões de quem parece que é suspeito."
da antiga, tão amada, sua Romana;
nos fortes corações, na grande estrela 39- "Que, se aqui a razão se não mostrasse
que mostraram na terra Tingitana, vencida do temor demasiado,
e na língua, na qual quando imagina, bem fora que aqui Baco os sustentasse,
com pouca corrupção crê que é a Latina. pois que de Luso vêm, seu tão privado.
Mas esta tenção sua agora passe,
34- Estas causas moviam Citereia, porque enfim vem de estâmago danado
e mais, porque das Parcas claro entende (que nunca tirará alheia inveja
que há-de ser celebrada a clara Deia o bem que outrem merece e o Céu deseja)."
onde a gente belígera se estende.
Assi que, um, pela infâmia que arreceia,

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40- "E tu, Padre de grande fortaleza, 41- Como isto disse, o Padre poderoso,
da determinação que tens tomada a cabeça inclinando, consentiu
não tornes por detrás, pois é fraqueza no que disse Mavorte valeroso
desistir-se da cousa começada. e néctar sobre todos espargiu.
Mercúrio, pois excede em ligeireza Pelo caminho Lácteo glorioso
ao vento leve e à seta bem talhada, logo cada um dos Deuses se partiu,
lhe vá mostrar a terra onde se informe fazendo seus reais acatamentos,
da Índia, e onde a gente se reforme." para os determinados aposentos.

VOCABULÁRIO por estância:


19)
Proteu – divindade marinha, guardadora dos seres do mar;
20)
Deuses – no final d'Os Lusíadas Camões reconhece que os deuses são apenas um artifício
narrativo;
Olimpo – monte nos Balcãs que, segundo a mitologia grega, era a morada dos deuses;
Consílio – Conselho;
Tonante – Júpiter, deus do trovão e divindade suprema;
neto do velho atlante - Mercúrio, mensageiro dos deuses.
21)
regimento - governo;
Alto Poder – poder divino (de Júpiter);
Arcturo congelado – Norte, Árctico;
Austro – Sul;
partes onde a aurora nasce e o claro Sol se esconde - Oriente e Ocidente.
22)
Padre – Pai, Júpiter;
Dino – digno;
que vibra os feros raios de Vulcano - Vulcano, filho de Júpiter, forjava os raios que o Pai
arremessava;
ua - uma.
23)
Marchetados – incrustados;
perlas – pérolas;
concertavam – mandavam, justificavam;
mais honrados - mais veneráveis;
cum - com um;
horrendo - que infunde temor ou respeito;
24)
estelífero Pólo - Céu;
claro Assento - brilhante Morada (Céu);
gente de Luso - Lusitanos, Portugueses;
Fados Grandes – supremo destino, determinação divina;
25)
guarnecido – bem armado e protegido (por castelos);
os troféus pendentes da vitória - alusão ao facto de serem entregues a um comandante vitorioso,
após a batalha, os estandartes pendentes dos derrotados;
26)
co a gente de Rómulo - contra os Romanos;

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um por seu capitão que, peregrino - referência a Sertório que também comandou os Lusitanos e,
sendo romano, estava longe da Pátria;
fingiu na cerva espírito divino - Sertório tinha uma gazela que dizia ter sido presente dos deuses e
possuir dons sobrenaturais;
27)
cometendo - acometendo, enfrentando;
duvidoso - incerto, perigoso;
lenho leve - pequeno navio;
Áfrico e Noto – nomes de ventos;
partes vendo onde o dia é comprido e onde breve - refere-se à extensão, em latitude, da viagem.
28)
do mar que vê do Sol a roxa entrada - do mar oriental, do Oceano Índico (roxa- rubra, vermelha);
perdida e trabalhada - sem ter encontrado o destino e extenuada pelas canseiras.
29)
inimigos – contrários, adversos;
lassa – cansada;
30)
sentença - opinião;
padre Baco - deus Baco, mítico introdutor da técnica de preparação do vinho;
31)
Ouvido tinha aos Fados – estava destinado;
Espanha – Península Ibérica;
tudo quanto Dóris banha - tudo o que o mar banha (Dóris era uma divindade associada com o
mar);
ou sua, ou fosse estranha - a fama dele, Baco, ou doutro qualquer (toda a fama antiga);
Nisa – lugar mítico onde Baco teria crescido;
32)
de quantos bebem a água de Parnaso - dos poetas (o Parnaso é um monte na Grécia cujas fontes
eram supostas inspirar os poetas);
água do esquecimento - água do mítico rio Letes que era suposta provocar amnésia nos que a
bebessem;
33)
estrela - predestinação;
terra Tingitana - Norte de África (de Tânger);
língua (...) que com pouca corrupção crê que é a latina - a língua portuguesa (que, diga-se em
abono da verdade, apesar de semelhante a um dialecto latino que se falava na Península Ibérica
no tempo dos romanos, é muito diferente do Latim puro);
34)
Citereia – Vénus;
Parcas – divindades do destino dos homens;
há-de ser celebrada a clara deia onde a gente belígera se estende - há-de ser cultivado o amor
(Vénus é a deusa do amor) onde chegarem os portugueses;
um... e o outro – Baco e Vénus;
35)
Austro e Bóreas – nomes de dois ventos (o Vento Sul e o Vento Norte) que, na Mitologia Clássica,
correspondiam a duas divindades menores;
36)
que da deusa sustentava - que a deusa apoiava;
partes em porfia - opiniões em disputa;
porque o amor antigo o obrigava - referência à antiga paixão de Marte por Vénus;

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merencório - o mesmo que "melancólico";


gesto – semblante;
37)
sólio - trono;
Apolo um pouco a luz perdeu – Apolo conduzia o carro do Sol e, portanto, simboliza-o;
38)
a cujo império - a cuja vontade;
vitupério - desonra, grande humilhação;
juiz direito - justo;
razões de quem parece que é suspeito - argumentos de quem não é independente (lança sobre
Baco a suspeita de ser parte interessada na perdição dos navegadores que buscam a Índia);
39)
sustentasse – apoiasse;
de Luso vêm, seu tão privado - refere-se à origem mítica dos portugueses, de Luso companheiro
(privado) de Baco;
estâmago danado - índole perversa, "maus fígados" (estâmago é o mesmo que estômago);
40)
Mercúrio – mensageiro dos deuses;
onde a gente se reforme - onde os navegantes se recuperem;
41)
consentiu – concordou;
Mavorte - Marte;
néctar - bebida dos deuses;
fazendo seus reais acatamentos - fazendo vénias, reverenciando Júpiter.

ANÁLISE DA ESTRUTURA:

Est ANÁLISE Est ANÁLISE


19 Plano da Viagem. Descrição do 33 Vénus lidera a parte a favor dos
ambiente vivido na frota de Gama portugueses por dois motivos
(calmo, soprando uma brisa, o explícitos: acha-os parecidos com os
suficiente para inchar as velas e romanos na coragem e na língua. Por
empurrar as naus). outro lado, esconde um outro motivo:
De notar o uso do gerúndio se ajudar os portugueses ganhará
(apartando, inchando, cortando) que prestígio na Índia e virá a ser adorada
dá uma ideia de movimento contínuo naquelas paragens.
e calmo.
20 Passagem para o plano do 35 Estrofe que descreve, através de
Maravilhoso. A simultaneidade de expressões auditivas e visuais, a
acções é dada pela conjunção grande discussão que se gerou no
temporal QUANDO (ao mesmo tempo Olimpo.
que as naus navegavam, os deuses
reuniam-se).
Motivo da reunião: decidir o destino
dos portugueses. É Júpiter que manda
convocar todos os deuses. Quem
convoca é Mercúrio, mensageiro de
Júpiter.

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22 Descrição de Júpiter através de 36 Introdução da personagem Marte


adjectivação abundante. para pôr fim à discussão. Coloca-se a
São apresentados 3 símbolos de favor de Vénus por dois motivos: crê
Júpiter: os raios de Vulcano, o trono que os Portugueses merecem a ajuda
de estrelas, a coroa e o ceptro. e esconde uma antiga paixão pela
deusa. Início da descrição de Marte.
23 Apresentação da pirâmide social dos 37 Continuação da descrição de Marte e
deuses, semelhante à dos humanos posicionamento deste deus frente a
(primeiro os mais importantes e Júpiter. Põe fim à discussão batendo
depois os de menor importância). com o seu bastão no chão.
Esta “arrumação” aproxima os deuses
dos humanos, valorizando estes
últimos, tal como pretendia o
humanismo e o antropocentrismo.
Quem decide esta “arrumação” social
dos deuses do Olimpo são a Razão (a
lógica) e a Ordem (a regra). Esta
estrofe introduz o discurso directo de
Júpiter através dos dois pontos.
24 Início do discurso de Júpiter com uma 38 Início do discurso de Marte. Dirige-se
Apóstrofe e, ao mesmo tempo, uma a Júpiter, dando-lhe o primeiro motivo
Perífrase: Eternos moradores do para que este ajude os portugueses:
luzente, / Estelífero Pólo = deuses. Júpiter já ali tinha chegado com
Apresentação da decisão dos Fados: aquela decisão e não devia dar
os portugueses hão-de fazer esquecer ouvidos a quem é suspeito de não
os outros heróis através dos seus gostar dos lusos.
feitos. Atenção à apóstrofe do 1º verso: Ó
Padre. Uso do presente do conjuntivo
com valor imperativo no 7º verso em
Não ouças.
25 Exposição das grandes batalhas e 39 Segundo motivo dado por Marte a
conquistas travadas pelos Júpiter: Baco tem mau coração e
portugueses (contra os mouros e inveja dos portugueses.
castelhanos).
26 Exposição dos antigos heróis que 40 Terceiro motivo dado por Marte a
lutaram pela Lusa Pátria: Viriato e Júpiter: um rei não volta com a
Sertório. palavra atrás porque isso revela
fraqueza. Marte pede a Júpiter que
envie Mercúrio, por ser muito rápido,
para mostrar à frota onde fica a Índia.
28 Júpiter reforça os desígnios traçados 41 Júpiter concorda com Marte, oferece
para os portugueses, que governem a aos deuses o néctar da vida eterna e
Índia e que a frota fatigada de Vasco manda-os para os seus aposentos.
da Gama seja conduzida ao seu
destino.
29 Júpiter expõe os motivos que o levam 42 Passa-se do Plano do Maravilhoso
a ter este desejo: já passaram por para o Plano da viagem, de novo. A
muitos perigos, por condições simultaneidade é dada pela conjunção
climatéricas adversas e, pela sua temporal ENQUANTO. Nesta estrofe,

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valentia, merecem ser ajudados. Fim os dois planos aparecem juntos. É


do discurso de Júpiter. dada a informação geográfica da
posição da frota e, mais uma vez, há
referência ao clima: faz um sol
abrasador.
30 A hipótese de ajuda aos portugueses
31 fica à discussão democrática do
32 consílio, mas os deuses não são todos
da mesma opinião. Baco é líder da
parte contra, uma vez que tem medo
de vir a ser substituído na Índia pelos
portugueses e lá perder o seu
prestígio, frente a esta gente tão
destemida.

O consílio dos Deuses no Olimpo é um modo de interligar os deuses com a viagem. Será no
Olimpo que se decidirá “sobre as cousas futuras do Oriente”. Este concílio foi convocado por
Júpiter, o pai dos deuses, que se serve de Mercúrio, o deus mensageiro, para convocar todos os
deuses que vão chegando de todas as partes do planeta. Os deuses sentam-se segundo a
hierarquia que dá mais importância aos deuses mais antigos.

Quando todos os deuses estão sentados nos seus "luzentes assentos", Júpiter inicia o seu
discurso dizendo que está decidido pelos Fados que o povo lusitano fará esquecer através dos
seus feitos os Assírios, os Persas, os Gregos e os Romanos.
Júpiter começa por lembrar a todos os deuses que os portugueses eram um povo guerreiro
e corajoso que já tinham conquistado o país aos mouros e vencido por diversas vezes os temidos
castelhanos.
Refere, ainda, as antigas vitórias de Viriato, chefe lusitano, frente aos romanos e termina o
seu discurso chamando a atenção dos deuses para os feitos presentes dos portugueses que
corajosamente, lutando contra tantas adversidades, empreendiam importantes viagens pelo
mundo e que, por isso, mereceriam ser ajudados na passagem pela costa africana.
Júpiter anuncia assim a sua boa vontade em relação ao prosseguimento da viagem dos
lusitanos e que estes fossem recebidos como bons amigos na costa africana.

Após este discurso, são consideradas outras posições em que se destaca a oposição de
Baco, pois este receia vir a perder toda a fama que havia adquirido no Oriente caso os
portugueses atinjam o objectivo. Baco, o deus do vinho, insurge-se de imediato contra os
portugueses, pois sentia uma enorme inveja pela imensa glória que o destino lhes reservava. Na
Índia prestava-se culto a Baco, e o invejoso deus temia que os seus seguidores rapidamente o
esquecessem com a chegada dos portugueses.
Uma outra posição de destaque é a de Vénus que defende os portugueses, não só por se
tratar de uma gente muito semelhante à do seu amado povo latino e com uma língua derivada do
Latim, como também por terem demonstrado grande valentia no norte de África.

Após as intervenções de Baco e de Vénus, todos os deuses se lançam numa  feroz


discussão comparada pelo poeta a uma temível tempestade, até que Marte, o deus da guerra,
toma a palavra, e, dirigindo-se a Júpiter, relembra-lhe que era a ele, Júpiter, o pai dos deuses, que
cabia a decisão, que aliás já estava tomada desde o início e, sublinha ainda, que não se devia dar
ouvidos a Baco pois não passava de um invejoso.  Marte simpatizava naturalmente com os

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portugueses por serem um povo guerreiro e também para agradar a Vénus com quem tinha tido
no passado uma relação amorosa.
No seu discurso, Marte pretende que Júpiter não volte atrás com a sua palavra e pede a
Mercúrio – o Deus mensageiro – que colha informações sobre a Índia, pois começa a desconfiar da
posição tomada por Baco.

Após ouvir as palavras de Marte, Júpiter inclinou a cabeça em sinal de consentimento, e


desfez a reunião, tendo sido então tomada a decisão de ajudar os portugueses na sua viagem para
a Índia. Este concílio termina assim com a decisão favorável aos portugueses e cada um dos
deuses regressa ao seu domínio celeste.

Neste belo episódio, Camões destaca o valor dos portugueses, relatando-nos um


episódio mitológico, no qual os deuses do Olimpo (deuses da mitologia romana) se reúnem em
"consílio glorioso" para decidir sobre o destino dos portugueses no Oriente. Não estava em causa
a chegada dos portugueses ao Oriente, pois essa já tinha sido determinada pelo destino, tratava-
-se, sim, de decidir se os deuses ajudariam ou não os portugueses a chegar rapidamente e de um
modo seguro à Índia.

CARACTERIZAÇÃO DOS DEUSES

Vamo-nos concentrar agora na caracterização dos deuses, analisando também a intenção


do poeta ao imprimir-lhes um ar de sublime nobreza e de grandeza majestática. Os deuses são-nos
apresentados como seres superiores respeitados e temidos pelos homens.

Assim, em relação a Júpiter, o poeta diz: o Tonante, o Padre sublime e digno, com gesto
alto, severo e soberano, do rosto respirava um ar divino, Júpiter alto, grave e horrendo.
Mercúrio, o mensageiro dos deuses, é caracterizado, salientando-se a sua simpática
presteza e resistente velocidade: o neto gentil do velho Atlante.
Os deuses são ainda caracterizados pelos ricos ambientes onde se movem, pela maneira
de vestir e pela grandeza das regiões que dominam ou governam: Vêm pisando o cristalino céu
formoso; deixam dos sete céus o regimento que do poder mais alto lhes foi dado; num assento de
estrelas cristalino; com uma coroa e um ceptro rutilante, /de outra pedra mais clara que diamante;
Em luzentes assentos, marchetados de ouro e de perlas, os outros deuses todos assentados;
eternos moradores do luzente, estelífero polo e clar assento (magnificência do Olimpo).

Todas estas expressões nos revelam os deuses como seres superiores aos homens,
imponentes no aspecto e nos ambientes que frequentam. Esta imponência está de acordo com a
função do maravilhoso n' Os Lusíadas: uma alegoria de enaltecimento dos feitos portugueses, que,
por acção dos deuses, adquiriram uma grandeza transcendente. A sublime majestade dos deuses
reflecte-se na sublimidade dos feitos lusos.

Razões de Júpiter para que se ajudem os portugueses

Segundo Júpiter, deve-se não só permitir a viagem dos portugueses, mas até ajudá-los a
alcançar o seu objectivo, pelas seguintes razões:
- o seu grande valor e forte coragem já revelados em tão grandes vitórias contra os
mouros, castelhanos e romanos;
- os Fados (o destino) já tinham determinado que o povo luso ultrapassasse a glória dos
assírios, gregos e romanos (os povos greco-romanos acreditavam que o Fado (Destino)
era mais poderoso do que os próprios deuses);

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Análise de alguns excertos de Os Lusíadas

- os portugueses já tinham feito grande parte da viagem em luta vitoriosa contra os


elementos marítimos e o Fado já determinara que eles tivessem, por largo tempo, o
domínio do Oriente.
Por todas estas razões e, como prémio de tantos perigos já vencidos e de "tanto furor de
ventos inimigos", Júpiter determinava que os nautas fossem agasalhados na costa africana, para
depois seguirem a sua rota até à Índia.

Razões de Baco, adversário dos portugueses

Razões que levam Baco a contrariar a viagem dos portugueses:


- Baco sabia pelos fados que os portugueses dominariam todo o Oriente, que era seu
domínio e que não queria perder;
- ele tinha dominado toda a Índia e ainda nenhum poeta tinha cantado a sua vitória,
temendo agora que o seu nome caia no esquecimento, se os fortes portugueses lá
chegarem (se os portugueses chegarem à Índia ganharão o estatuto de deuses, pois
realizarão algo que só um deus tinha realizado; Baco perderá o seu estatuto, pois simples
humanos conseguiram igualá-lo).

Razões de Vénus, favorável aos portugueses

Razões que levam Vénus a ser favorável ao povo luso:


- ela gostava da gente lusitana pelas qualidades, que via neste povo, semelhantes às do
povo romano, que ela tanto amava;
- gostava também dos portugueses pela língua que ela achava ser, com pouca diferença,
a língua latina;
- ela sabia que seria celebrada em todos os lugares onde os portugueses chegassem.

Razões de Marte, favorável aos portugueses

Razões que levam Marte a favorecer os portugueses:


- o grande amor que antigamente tivera a Vénus, também favorável aos portugueses;
- a bravura dos portugueses, reconhecida até pelo próprio Júpiter;
- a falsidade das razões apresentadas por Baco (que é suspeito).

Caracterização de Marte

A gravidade, a força, a majestade de Marte são bem visíveis, no seu aspecto, nas suas
atitudes e no efeito que estas atitudes tiveram na natureza e nos próprios deuses: " Marte se
levantava de entre os deuses, merencório no gesto, o forte escudo, ao colo pendurado,... medonho
e irado... pôs-se diante de Júpiter, armado, forte e duro; e dando uma pancada penetrante com o
bastão... o céu tremeu, e Apolo, de torvado, um pouco a luz perdeu, como enfiado".
O poeta faz surgir, diante de Júpiter, o deus Marte com uma força e autoridade, quase
igual à do pai dos deuses. Não era apenas por se tratar do deus da guerra; a intenção do poeta era
mostrar o deus Marte como o símbolo da força, da coragem, da vitória. Marte aparece aqui como
que para personificar a força dos portugueses (povo que a Marte tanto ajuda), o seu amor à luta,
as suas vitórias passadas e futuras.
Reparem que, após o discurso de Marte, favorável aos portugueses, nenhum deus se
atreveu a contrariá-lo, e o próprio Júpiter, o Padre poderoso, a cabeça inclinando, consentiu no
que disse Mavorte valeroso.

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Análise de alguns excertos de Os Lusíadas

Valor simbólico do maravilhoso pagão n' Os Lusíadas

A navegação dos portugueses obriga os deuses a reunirem-se em consílio, envolvendo-se


uns com os outros em luta acesa, uns como oponentes, outros como adjuvantes da acção
marítima dos portugueses.
A intervenção dos deuses pagãos constitui não apenas um adorno externo do poema de
Camões, tornando-o semelhante às grandes epopeias antigas. Mas esta bela alegoria dos deuses
reveste-se de um alto valor simbólico, relacionado com a própria intenção do poema: exaltar o
empreendimento marítimo dos portugueses.
A descoberta da Índia era tão importante que interessou às próprias divindades. A
convivência das deusas, na Ilha dos Amores, com os nautas portugueses representa não apenas
uma concessão formal do poeta aos processos e mentalidade renascentistas, mas insere-se dentro
de uma linguagem altamente literária e simbólica: o empreendimento marítimo da descoberta da
Índia era de tal forma extraordinário que o poeta se serviu desta fábula dos deuses para realçar a
transcendência dessa descoberta.
É este portanto o valor simbólico da mitologia n' Os Lusíadas: uma alegoria de exaltação
do grande feito dos portugueses.

NOTAS:

1. O episódio do Consílio dos Deuses insere-se na mais longa parte da estrutura interna da
obra: a Narração (Canto I).
2. A primeira estrofe deste episódio indica que a narração da viagem se inicia quando Vasco
da Gama já vai no Oceano Índico, processo narrativo chamado in media res (a meio da
história), típico das epopeias clássicas e aqui usado por Camões.
3. A introdução de um episódio repleto de deuses pagãos faz com que a verdadeira história
(viagem à Índia) se anime e se torne mais interessante e viva, existindo, assim, duas
histórias paralelas: a da viagem e a dos deuses.
4. Face à Santa Inquisição, a introdução de deuses pagãos nesta obra serve, apenas, de
ornamento, devendo o leitor ter em conta que eles são falsos e que só o Deus cristão deve
ser venerado.
5. O uso dos deuses romanos é também uma regra das epopeias clássicas cumprida por
Camões.
6. Este episódio é do tipo mitológico, uma vez que recorre à mitologia como fonte de
inspiração.
7. Pela razão anterior, o episódio é baseado, apenas, no Maravilhoso Pagão, uma vez que o
Deus Cristão (Maravilhoso Cristão) não é nele invocado.
8. A introdução deste episódio no início da Narração, faz com que os humanos sejam
valorizados, no sentido em que todos os deuses se reúnem para decidirem o seu destino e,
mais do que isso, a reunião acaba a favor dos valentes mortais. Neste sentido, reforça-se a
ideia de Humanismo (valorização do ser humano) e de Antropocentrismo (os humanos são
o centro das preocupações e das atenções dos deuses).

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Análise de alguns excertos de Os Lusíadas

Análise do Episódio de Inês de Castro

Neste episódio lírico, o tom optimista e eufórico da epopeia é


deixado de lado. Agora conta-se a derrota. O amor é a causa da morte de
Inês e culpado do seu sofrimento.
O amor surge neste episódio personificado como causa da morte de Inês. É apresentado
como um sentimento negativo e antitético, pois seduz mas gera as maiores tragédias e tem em
Inês uma heroína trágica, vítima desse amor cruel e despótico. É caracterizado negativamente:
“puro amor com força crua”, “fero...áspero e tirano”.
Camões altera a verdade histórica e orienta o episódio para uma intensa poetização. O
poeta insiste na inocência de Inês como vítima do amor, mais do que vítima de razões políticas ou
de estado. O amor é um engano.
A estrutura do episódio assenta no contraste entre a felicidade amorosa de Inês (estrofes
120 e 121) e a precipitação trágica dos acontecimentos (estrofes 122 a 130). Todo o episódio tem
características trágicas que o aproximam da tragédia clássica:
 Acção trágica que culmina na morte da protagonista;
 Terror: “horríficos algozes”; “morte crua”; “ministros rigorosos”; “peitos
carniceiros”;” brutos matadores”, etc.
 Piedade: a transição da felicidade despreocupada para a desgraça
inesperada.

ANÁLISE DA ESTRUTURA:

Est. Análise
118-119 Introdução: localização temporal da acção e apresentação do caso da morte de
Inês de Castro. Vasco da Gama relata ao rei de Melinde o episódio trágico de
Inês de Castro, cujo responsável é o amor, o causador da sua morte.
120-121 Situação inicial de felicidade, ainda que a estrutura trágica se anuncie desde o
início. Inês vivia tranquilamente nos campos do Mondego, rodeada por uma
natureza alegre e amena, recordando a felicidade vivida com D. Pedro o seu
amor. O narrador vai introduzindo indícios de que essa felicidade não será
duradoira e terá um fim cruel:
“Naquele engano da alma, ledo e cego”;
“Que a fortuna não deixa durar muito”;
“De noite, em doces sonhos que mentiam”.
122-125: Razões que levam D. Afonso IV à decisão de mandar matar Inês: D. Pedro
recusa-se a casar de novo e o murmurar do povo. Em conformidade com as
necessidades do Reino, a morte de Inês é para o rei a única forma de terminar
com o amor que a unia a D. Pedro. Inês é trazida diante do rei e prepara-se para
suplicar ao rei que lhe poupe a vida.
126-129 Discurso de Inês de Castro: compara a crueldade dos seres humanos a animais
selvagens capazes de maior piedade. Baseia a sua argumentação na
humanidade do rei (perante os netos); refere não ter cometido qualquer crime;
pede a substituição do castigo da morte pelo castigo do desterro, teme deixar
os filhos órfãos.
130-132: O rei é apresentado como estando comovido com as palavras de Inês, disposto
a perdoá-la. O rei vacila, com piedade, mas as razões do Reino levam-no a
prosseguir. O povo e o destino são apresentados como culpados da decisão
final.

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Análise de alguns excertos de Os Lusíadas

Inês é comparada a Polycena (filha de Príamo, rei de Tróia, que foi sacrificada
sobre o túmulo de Aquiles). A estrofe 132 descreve o culminar da tragédia: a
morte de Inês de Castro.
133-135 Consequências da morte de Inês de Castro na natureza. Reflexões do narrador.
O narrador repudia a morte de Inês que compara à da própria natureza. As
lágrimas das ninfas do Mondego fazem nascer a fonte dos amores, eternizando
esta tragédia.
136-137 Vingança de D. Pedro. Quando sobe ao trono, vinga-se mandando matar os
carrascos de Inês.

PARTES em que podemos dividir o episódio:

- EXPOSIÇÃO (estrofes 118 a 121):


• Apresentação do caso que se vai contar;
• Atribuição das responsabilidades ao Amor;
• Descrição de um amor feliz e correspondido.
- CONFLITO (estrofes 122 a 131):
• Causas da oposição do rei D. Afonso IV;
• Decisão de matar Inês de Castro;
• Objectivos dessa decisão;
• Dia fatal: Inês é trazida junto ao rei;
• Discurso de defesa Inês: pedido de clemência; proposta alternativa; apelo para situação de
mãe e consequentemente de avô;
• Reacção positiva do rei;
• Interferência do povo: sentença mantém-se.
- DESENLACE (estrofes 132 a 137):
• Assassínio de Inês de Castro;
• Considerações do poeta sobre a sua morte;
• Reacções da natureza;
• Vingança de D. Pedro.

DISCURSO DE INÊS DE CASTRO


É um discurso argumentativo/persuasivo, com o objectivo de convencer o rei a desistir do
seu assassínio. Inês censura a falta de compaixão, apela à situação de mãe inocente e pede
desterro em vez da morte. Na sua forma destacam-se: a utilização da 2ªpessoa (“Ó tu”;“
tens”,”te”; “sabes”; “viste”, etc.) e o uso do imperativo (“tem respeito”;”mova-te”; “sabe”; ”põe-
me”, etc.).

CARACTERIZAÇÃO DE INÊS DE CASTRO


Inês de Castro surge como uma figura angélica e piedosa. É sugerido na caracterização
como tendo a nobre elegância de uma rainha. Ela é vítima do amor, de si própria, da sua beleza:
- estrofe 120: “Estavas linda Inês posta em sossego / De teus anos colhendo doce
fruito, (...) De teus fermosos olhos...”;
- estrofe 123: “ua fraca dama delicada.”;
- estrofe 124: “Ela com tristes e piedosas vozes”;
- estrofe 125: “ ...olhos piedosos”;
- estrofe 132: “colo de alabastro que sustinha/As obras com que Amor matou de
amores...”.

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