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Alina da Valáquia

Capítulo 1 – Valáquia
ERAM MEADOS do século XIX nas planícies da Valáquia. Aquela tinha sido uma
temporada extenuante de muito trabalho no campo. Notícias trazidas do Norte dos montes
Cárpatos anunciavam rebeliões camponesas por todo território da Moldávia, o que
dificultaria ainda mais o cultivo e o transporte das uvas para as vinícolas num futuro
próximo. As tropas russo-turcas coibiam com rigor os protestos dos aldeões na vizinhança,
aumentando ainda mais seu domínio, oprimindo gente que vivia da terra. Gente como a
minha família.
Meu nome de batismo era Alina Grigorescu, filha única de Grigore e Ruxandra, um casal de
camponeses valaquianos que morava há quase vinte anos naquela fazenda de poucos
hectares. Viviam do que plantavam até mesmo antes do meu nascimento e nunca tiveram
medo do trabalho duro, sempre se gabando de sua saúde invejável.
Naquele verão, minha mãe caiu de cama vítima de varíola e nunca mais se levantou de lá. A
praga assolava a Europa infectando países quase inteiros, segundo diziam os viajantes
vindos do Norte, e era muito provável que um daqueles al naibii tivesse trazido a doença
para próximo do rio Danúbio, ao Sul de Cárpatos, onde ficava a fazenda onde eu morava.
Nós enterramos mama na manhã seguinte e aquele dia meu pai foi obrigado a trabalhar
sozinho nos campos de uva. Chorei em meu quarto a tarde toda pela morte de minha mãe.
Quando a noite caiu, tínhamos visitas em casa e elas não iriam embora tão cedo.
Grigore tinha mantido um relacionamento extraconjugal com uma mulher chamada
Constanta por mais de dezoito anos e dessa relação tinha nascido um filho, meu meio-irmão
Costel. Quando Grigore os apresentou a mim em pleno luto, dizendo que a partir de agora
eles iriam morar conosco na casa onde a minha mãe viveu e morreu, eu fugi dali
desesperada, não parando de correr até que caísse estafada. Fui encontrada coberta de lama
e trêmula de frio dois dias depois por Grigore e Costel, que me carregaram de volta para a
fazenda à força, ainda inconformada.
Três anos mais tarde, a Guerra da Criméia eclodia na Europa, com tropas russas e austríacas
começando a invadir a Valáquia. Rumores diziam que as regiões ao Sul dos Cárpatos e a
Moldávia formariam uma nova nação denominada Romênia e era só o que se discutia nas
tabernas da cidade. Eu estava com dezessete anos à época, entendia pouco de política, mas
era eficiente no cultivo da uva e na fabricação de vinho. Grigore agora era sócio de uma das
vinícolas que abastecia as regiões vizinhas — de Ploiesti, passando por Craiova e chegando a
Dundrea —, eu participava da fermentação, Constanta do engarrafamento, Costel cuidava
das videiras.
Com o tempo, eu fui obrigada a tolerar a presença de meu meio-irmão e de sua mãe em
casa, e às vezes eu quase já conseguia achar engraçadas suas tentativas vãs de me fazer
gostar dele. Todas as manhãs ele colhia rosas frescas do campo e as deixava à minha porta.
Contava-me histórias sobre vircolacs e strigois que ouvira na infância em Brasov para me
assustar, e fazia de tudo para me ver sorrir, embora eu tivesse poucas razões para
demonstrações de afeto. Ele era quatro anos mais velho que eu, tinha sido o primeiro filho
de meu pai, e por mais que eu o quisesse continuar odiando — como símbolo de minha
consternação pela traição de meu pai à minha mãe —, algo naquele carinho que Costel tinha
por mim estava me fazendo enxergá-lo por outra perspectiva.
Estávamos na primavera daquele ano. Eu e Costel tínhamos concluído nossa colheita
semanal e descansávamos num dos depósitos da fazenda, perto do feno para os cavalos.
Havia dezenas de caixas de madeira carregadas de uva empilhadas contra a parede e outra
boa parte ainda carecia de armazenamento adequado.
— Creio que ficará para amanhã. — Falei, indo me sentar em seguida.
Ele enxugava o suor do rosto com as costas das mãos, quando decidiu sentar-se mais perto
de mim do que jamais o tivera. A fenda de suas vestes me permitia ver o peito nu e ossudo,
seu rosto estava mal barbeado e os cabelos negros estavam sujos de fuligem da velha
caldeira. Costel era alto e esguio, tinha uma pele tão clara quanto a minha e qualquer esforço
que fazia lhe acentuava as veias grossas dos braços. Raramente eu o observava daquela
forma, todavia, ele estava próximo o suficiente para que eu sentisse até o cheiro de seu suor.
— Por que me odeia tanto, Alina? — Soou sua voz, rouca aos meus ouvidos, estimulante ao
resto todo.
— Eu não o odeio.

Seus olhos azuis pareceram analisar minhas expressões por um momento.


— Então por que faz essa cara sempre que estou por perto?
— Qual cara?
— A que está fazendo agora, Miere. Cara de quem quer me devorar vivo.
A vida na Valáquia era de muito trabalho e nenhuma diversão. Antes de Costel, eu nunca
tinha conhecido nenhum rapaz com idade próxima a minha, o que me fazia conviver quase
sempre com homens velhos, ébrios ou rudes. Estava aprendendo a ver e ser vista com desejo
pela primeira vez, o que me deixava insegura perto dele, preferindo manter distância… Até
aquele momento.
— Não quero devorá-lo...
Estávamos sozinhos no galpão e então decidi não rechaçar o atrevimento de sua
aproximação. Sua mão grande de dedos compridos afagou meus cabelos, arrastando-os para
trás da minha orelha. Meu ombro ficava levemente exposto pela alça do vestido, Costel
notou que eu tinha ficado arrepiada com seu toque.
— Tem certeza?
Após desviar seu olhar por um segundo, o bastardo esquadrinhou a região da minha cintura,
dando atenção ao meu quadril. Após passar a língua obscenamente entre os lábios grossos,
ele então começou a aproximar seu rosto do meu, segurando agora a parte lateral de meu
pescoço. Estava trêmula, mas outra vez não o impedi.
— Tenho certeza.
Nossos lábios se tocaram pela primeira vez e o resultado daquele contato tão íntimo entre
nós dois causou-me labaredas por todo o corpo, o que me incitou a deixar acontecer o que
veio depois. Levando em consideração minha total inabilidade, Costel cuidou para que eu
me sentisse segura em seus braços e teve que agir diferente da forma como fazia com as
meretrizes que tanto ele quanto Grigore tomavam nas noites pós-temporada de colheita, nos
bordéis de Dundrea. Naquela tarde, um novo horizonte se descortinou para mim. Ele me
penetrou pela primeira vez ali e escondidos no depósito, repetimos aquele ato proibido
muitas outras vezes até o final da primavera. Jamais tinha sentido sensação tão prazerosa.
Agora que já o aceitava melhor como um membro da família, eu passei a gostar cada vez
mais da presença de Costel, tanto que me vi sentindo sua falta à noite, quando todos se
recolhiam para dormir. Eu sabia que, devido nossos laços sanguíneos, aquilo que fazíamos
com cada vez mais frequência pelas sombras da fazenda não podia ser considerado correto,
embora não me impedisse de ansiar por mais. Ouvia histórias tenebrosas sobre criaturas
geradas de relações incestuosas, de monstros deformados que atacavam pessoas à noite, e
aquilo me dava pesadelos quando me deitava para dormir, o que me fazia querer ficar
acordada com Costel entre minhas pernas.
Foi uma sucessão de equívocos que nos levou a cair em desgraça, e na metade do verão da
Romênia, nós dois fomos tentados a nos relacionar em plena luz do dia, confiando em
nossos instintos que nunca antes tinham falhado em detectar a presença de curiosos nos
arredores. Estávamos dentro do estábulo, enquanto os cavalos que montávamos na colheita
se alimentavam do feno, amarrados do lado de fora.
— Isso. Erga um pouco mais seu quadril.
Eu estava apoiada a uma das grades de madeira da cavalariça, ele segurando minha saia
amontoada na altura de minha cintura, me penetrando vigoroso por trás, da forma como ele
mais gostava de fazer.
— Oh, Costel!
Fazíamos sons de cópula, audíveis, perniciosos. Eu estava de olhos fechados, sentindo seu
falo grande entrando e saindo entre as minhas pernas. Ele curvado às minhas costas,
segurando a saia com uma das mãos e meus cabelos com a outra. Dizia-me obscenidades ao
pé do ouvido enquanto me tomava com força, ora me espremendo contra as tábuas do
estábulo, ora me comprimindo contra seu corpo suado, puxando-me com firmeza.
— Oh, meu Deus!
Andreea era uma das camponesas que moravam na vizinhança. A segunda de quatro irmãs,
filha do casal Balan. Passeava por nossa fazenda com grande frequência, uma vez que
trabalhava nas videiras e às vezes me ajudava com minhas tarefas na vinícola. Nos
conhecíamos desde a infância. Dividíamos as bonecas de pano que a minha mãe costurava
para nós duas. Brincávamos de pegar e dançávamos alunelul junto de suas irmãs até cansar.
Jamais imaginei que ela teria uma atitude tão intempestiva ao me flagrar com meu meio-
irmão — por mais que aquilo lhe fosse chocante — em situação tão delicada, mas aquilo me
ensinou uma lição para todo o resto da minha vida — e da minha morte —; as pessoas eram
imprevisíveis.
Liderada pelos pais de Andreea, ambos cristãos fervorosos e defensores dos bons costumes,
uma turba enraivecida surgiu diante da casa de meu pai naquela mesma noite, exigindo com
tochas e pedras em punho, que Grigore lhes entregasse os dois pecadores que ele abrigava.
— Entregue os incestuosos! — Exigiu de um só fôlego a senhora Balan.
— Deixe-nos mostrar a fúria de Deus a esses pecadores! — Bradou uma de nossas outras
vizinhas, a que tinha uma ótima mão para fazer papanasi.
— Que a chama divina queime seus pecados!
Todos eles estavam enlouquecidos. Suas vozes e fisionomias lá embaixo, quando espiei pela
janela, estavam transfiguradas para algo que se assemelhava à encarnação do ódio. Eram
quase duas dezenas, todos vizinhos amorosos e, até então, amigos de minha família.
Transformados pela sede de justiça, modificados pelo ódio aos pecados alheios.
— Não temos chances. Precisamos fugir!
Naquele instante, eu percebi que não havia mais o que fazer se quiséssemos salvar a fazenda
da fúria cristã dos pais de Andreea, e sem conseguir conter as lágrimas que nasciam
desenfreadas de meus olhos, eu segurei firme a mão de Costel e corri com ele para longe
daquele lugar.
— Păcătoși! Peguem os dois păcătoși!

Enquanto meu pai procurava argumentar inutilmente com a multidão enraivecida diante de
sua casa, o líder deles nos viu fugir pelos fundos e nos perseguiu, arremessando pedras até
bem próximo da fronteira com Ploiesti, a muitos quilômetros de distância da fazenda. O véu
da noite e as ruas escuras da cidade vizinha ajudaram a nos ocultar, o que permitiu que
escapássemos das pedras e do fogo daqueles que tinham passado a nos odiar por nossa
relação mais que fraternal.
— Acho que os despistamos.
Quando paramos na primeira esquina, estávamos exaustos e incapacitados de dizer mais
uma só palavra. Tudo que tinha nos restado eram as roupas que trazíamos no corpo e a dura
certeza de que jamais poderíamos retornar para nossa casa. Tínhamos desonrado a família
Grigorescu para sempre e agora só tínhamos um ao outro.
Por algum tempo, a companhia de Costel nos dias extenuantes e nas noites frias de sarjeta
bastou, mas logo, a necessidade de sobreviver nas ruas perigosas de Bucareste — para onde
tínhamos fugido muito tempo depois — começou a criar conflitos entre nós dois. Tínhamos
nos tornado dois pedintes em busca constante de abrigo e alimento, o que nos fazia brigar a
todo momento.
— Temos que pedir ajuda, Costel.
— Não seja estúpida, Alina! Quem nessa cidade iria nos ajudar?
Sofríamos diariamente para encontrar um teto sobre a cabeça ou mesmo roupas adequadas
para suportar a temperatura baixíssima do outono europeu. Feito andarilhos, mudávamos de
um endereço para outro logo que as autoridades nos identificavam, e naquele período,
encontramos pelo caminho o que de pior a recém-formada Romênia tinha a nos oferecer.
Passamos frio, fome e muito medo nas ruas por alguns meses, até encontrarmos aquele que
parecia ser o esconderijo perfeito na torre de uma velha igreja católica.
Datada do século XVIII, cada pedra das paredes grossas da construção cheirava a suor dos
escravos que a tinham erguido. O andar térreo não tinha mais do que vinte metros
quadrados e uns poucos bancos de madeira enfileirados diante de um altar decadente e
mórbido pareciam esperar por fiéis que quase nunca apareciam.
— O Jesus pregado naquela cruz parece deformado! — Ironizou Costel, de olho na imagem
feiosa esculpida em madeira, ao centro do altar. — O artesão não deve ser dos melhores!
Os degraus que levavam ao alto da torre ficavam na parte de trás da igreja e tivemos que
arrombar sua tranca para entrar. O lugar era sujo e escuro, mas suas paredes de pedra
mantinham uma temperatura ambiente em seu interior. Dividimos o espaço inicialmente
com ratazanas do tamanho de gatos domésticos, mas na queda de braço acabamos vencendo
os antigos inquilinos.
— Devem dar um belo banquete por alguns dias!
Durante as manhãs, saíamos para pegar restos de comidas nas feiras da província e à noite
descansávamos no alto da igreja, protegidos da temperatura baixa que castigava a cidade. Às
vezes, lá de cima, ouvíamos toda a ladainha rezada pelo padre em latim, além dos
resmungos dos poucos fiéis que frequentavam a missa, mas aquele era um preço baixo
demais a se pagar pelo teto que agora tínhamos sobre nossas cabeças. “Que Deus possa nos
perdoar de nossos pecados”, rogava eu de vez em quando, em voz baixa, ouvindo os sons da
cerimônia religiosa e pensando nos atos que tinham conduzido a mim e a meu irmão àquela
situação penosa. Mal eu sabia que ainda podia piorar.
Esgotadas nossas fontes de restos de alimento nos mercados locais, eu e Costel nos vimos
obrigados a roubar para nos sustentar, o que criou diversos conflitos com os comerciantes,
além de fugas constantes pelas ruas inóspitas. A guarda policial responsável pela ronda na
cidade começou a fazer a proteção dos nossos pontos preferidos de assalto e começamos a
nos ver sem alternativas. Na situação mais crítica, cheguei a passar uma semana inteira sem
ter o que botar no estômago e a morte por inanição passou a se tornar uma possibilidade
para nós dois.
Numa das noites mais frias que passamos no alto da igreja, entre um delírio febril e outro
pela falta de comida, eu vi Costel sair escondido pela porta pequena de madeira que dava
acesso à torre e pareceu um sonho quando ele retornou horas mais tarde, me sacudindo no
chão, sob os trapos que eu usava para me proteger da temperatura baixa.
— Eu consegui um lugar para ficarmos. Estamos salvos.
Meu corpo estava muito fraco pela falta de alimento de dias, sentia a cabeça girando e meus
dentes batiam pelo frio intenso que estava sentindo. Desci as escadas da torre que davam
para o beco atrás da igreja quase a esmo, sem saber bem o que estava fazendo. Sentia a
presença de Costel a meu lado, mas de repente, havia outra voz ali, na penumbra, ecoando
cavernosa em meus ouvidos sensíveis.
— Ela está muito maltratada, mas nada que alguns dias de descanso e boa comida não a
revigorem.
Eu tinha dificuldade para focar tal eram as minhas adversidades físicas e a falta de
iluminação do lugar, mas havia um homem alto, usando cartola e uma longa capa rubra
falando com meu irmão. Seu rosto não ficava visível em nenhum momento, só podia ouvir
sua voz. Tinha cabelos compridos a cair nas costas, pareciam brancos ou grisalhos, mas não
havia como ter certeza naquela escuridão.
— Você receberá o pagamento como combinado, Grigorescu. Agora permita-me levá-la até
meu castelo.
Eu tive apenas mais alguns instantes de consciência após aquele diálogo sem sentido à
primeira vista, e quando voltei a abrir meus olhos, sentia como se não o fizesse há meses.
Uma nuvem espessa e úmida cobria minha visão, me impedindo de enxergar o entorno de
onde eu havia despertado. Sentia um tecido fino sobre minha pele e via apenas pequenas
luzes bruxuleantes à minha volta, como velas compridas a iluminar o escuro do lugar.
— Finalmente está entre nós mais uma vez. — A voz pegou-me de surpresa. Parecia ecoar
de todos os lugares do espaço fechado e de nenhum lugar ao mesmo tempo. — Dormiu por
quase doze horas seguidas. Deve estar faminta.
Foi como se ele tivesse se materializado à minha frente. Meus olhos voltaram a focar no
instante em que a figura de um homem pálido, de rosto carrancudo, aparentando meio
século, ofereceu sua mão para que eu me apoiasse ao me levantar. Um sorriso lânguido
escapava-lhe por entre os lábios finos e ressecados, enquanto madeixas grisalhas faziam
sombra em seu rosto maduro, caindo-lhe em frente aos olhos. Enquanto me incomodava
olhar a pele quase transparente das mãos frias de meu anfitrião, notei que eu estivera deitada
numa cama muito grande de finíssimos lençóis escuros e que não vestia mais a roupa com a
qual fugira naquela noite da fazenda de Grigore.
— Pedi para que minhas aias lhe dessem um banho enquanto estava adormecida. Dei ordens
para que elas se livrassem dos velhos trapos que usava também, bela Alina. Quero que fique
confortável em sua estadia.
Eu estava numa espécie de aposento de luxo construído com grossas paredes de pedra,
impenetráveis até mesmo para a luz do sol ao que parecia. As janelas estavam cerradas com
trancas e ferrolhos. A única iluminação naquilo que me parecia um calabouço, provinha das
dezenas de velas presas aos castiçais. “Eu sou uma prisioneira? ”, pensei, enquanto olhava
apavorada o espaço ao meu redor.
— Você não é uma prisioneira, jovem dama. — “Como ele consegue ler minha mente? ”, voltei a
pensar, me arrependendo no instante seguinte em que perguntei. — Você é minha convidada
dentro desse castelo. Desejo que se sinta à vontade para partir caso assim o queira. Até lá,
quero que seja bem-vinda.
Aquele homem grande e magro tinha o olhar mais assustador que eu já tinha fitado em
minha vida, e quando encarei aquelas pupilas que pareciam brilhar num tom carmesim, foi
como se ele tivesse me desvendado inteira, dos pés à cabeça. Senti um frio percorrer minha
espinha, aliado a uma vontade muito grande de desabar em prantos. "Como é que eu vim parar
aqui?".
Durante o jantar oferecido por Dumitri Ardelean, como o homem assustador dizia se
chamar, descobri que ele tinha feito um acordo com Costel e que meu irmão havia me usado
como uma espécie de garantia até que ele fosse cumprido.
— Eu fui vendida a você?
Meu tom pareceu rude em excesso e uma empregada corpulenta que me servia um suculento
prato de ciorbă de burtă congelou com a concha cheia no ar. Meu estômago roncava, o cheiro
da sopa de tripas estava me dando ainda mais fome.
— Por assim dizer, minha cara. — E ele sinalizou para que a serviçal de olhos esbugalhados
se retirasse, tão logo ela me serviu. O prato dele permaneceu vazio sobre a mesa que se
estendia por uns seis metros. Da cabeceira, ele degustava um vinho Bordeaux numa taça de
cristal e mais nada. — O senhor Grigorescu quis se certificar que sua bela irmã estaria segura
em minha companhia. Ele foi muito bem pago por isso.
Um sentimento de abandono mesclado a ódio me tomou logo em seguida, e em
pensamento, eu amaldiçoei Costel. Depois de tudo que tínhamos passado juntos nos últimos
meses, não considerava justo que ele me vendesse daquela forma a um total desconhecido.
Estávamos famintos, necessitados, mas podíamos dar um jeito na situação, fazê-la melhorar
a nosso favor. “Não podíamos? ”, pensei, desolada.
Embora condenasse a atitude de meu meio-irmão, eu continuava morta de fome, o que me
fez aceitar sem grande cerimônia os três pratos diferentes oferecidos por Dumitri no jantar.
Depois do ciorbă de burtă, veio um delicioso sarmale, fechando com uma saborosa zanusca,
que me fez lamber os beiços e lembrar de minha mama. Há muito tempo eu não comia de
me fartar daquele jeito — não pelo menos desde os banquetes oferecidos por minha santa
mãe, festejando as temporadas de muita colheita — e embora fosse desconfortável estar à
mesa com aquele homem estranho de pele branco-gelo, eu não podia reclamar de sua
hospitalidade, nem da de seus empregados — os oito diferentes que eu tinha contado apenas
durante a refeição.
Como se tivesse realmente lendo meus pensamentos, Dumitri ficou quase que o tempo todo
apenas me observando, degustando vagarosamente seu vinho. Eu estava constrangida, o
vestido que haviam me dado era fino demais e deixava muito à mostra, com um decote
profundo. Eu sentia frio, e procurando cobrir o volume de meus seios do olhar indecente
daquele homem misterioso, usando um dos braços, o ouvi querer saber mais sobre a vinícola
de Grigore e como funcionava.
— Grigorescu mencionou a fazenda do pai de vocês. Conte-me mais sobre ela.
Contei-lhe brevemente o processo desde a colheita das uvas à fermentação do vinho e logo
em seguida ele me deu uma taça de seu Bordeaux para que eu provasse. Voltando a sorrir sem
mostrar os dentes, ele disse que encomendaria uma caixa da bebida fabricada por Grigore
pessoalmente.
— Não quero que sinta saudades de casa enquanto for minha hóspede, Alina.
Me tremi de cima a baixo quando ele disse aquilo, e mais tarde, após o jantar, quando fui
induzida a voltar para meu quarto-prisão e a porta grossa de carvalho se fechou atrás de
mim, chorei sozinha em minha nova cama, praguejando Costel por ter me usado feito uma
mercadoria. "Se o encontrar novamente algum dia, arranco-lhe o pau com meus dentes!", jurei.

Nos dois primeiros dias que passei como hóspede do enigmático Dumitri, eu fui muito bem
tratada por ele e seus lacaios. Embora não tivesse autorização para conhecer os demais
ambientes do soturno castelo que mais parecia um intrincado labirinto de corredores
sombrios, todos agiam com extrema cortesia, me acompanhando do quarto ao banheiro, de
lá para a sala de jantar e dali de volta para o meu quarto. Eu tinha roupas limpas à minha
disposição, a água do banho estava sempre aquecida e eu não podia me queixar da comida,
que era sempre farta. Experimentei pratos que nunca antes tinha ouvido falar, de receitas
vindas da Bulgária e até da Índia. Dumitri fazia questão que eu estivesse sempre bem
alimentada, me encarando de perto enquanto eu comia, sem nunca botar nada na própria
boca. Parecia não sentir fome, mas sua sede era insaciável. Todos os dias tinha uma garrafa
nova de vinho sobre a mesa.
— Pedirei a sobremesa agora. Vamos ver o que meus cozinheiros prepararam hoje. — Ele
batia duas palmas e logo tinha um par de empregados trazendo uma nova leva de
guloseimas, a fim de me empanturrar. Realmente eu não tinha do que reclamar, não depois
de ficar uma semana sem comer nada na rua.
Passaram-se sete dias naquela rotina e eu comecei a me sentir como uma leitoa num
processo de engorda antes do abate. Numa tarde, enquanto me banhava imersa na água
quente, notei que minhas ancas tinham ganhado alguns centímetros a mais, enquanto meu
ventre parecia mais arredondado do que o normal. Sempre que retornava ao quarto após as
refeições, sentia ânsias terríveis, além de tonturas ao me erguer rápido da cama depois de
acordar. "Ando comendo até demais agora! Vou acabar gorda feito uma égua prenha!".

Enquanto os dias se arrastavam em minha clausura, eu me entretinha em tentar adivinhar se


era dia ou noite do lado de fora. Dumitri parecia ter grande sensibilidade à luz solar,
ordenando que todas as portas e janelas do castelo estivessem sempre cerradas. Os
corredores eram iluminados por candeeiros, enquanto os aposentos que eu visitava, tinham a
luz proveniente de velas de cera grossa. Além da penumbra que ele exigia que se mantivesse,
me permitindo enxergar pouco no interior daquele lugar enorme, Dumitri dava ordens
expressas para que seus lacaios não falassem nada comigo além do essencial. Havia uma
grande rotatividade de serviçais trabalhando para o homem pálido, o que me fez perceber
que raramente eu conseguia reconhecê-los de um dia para o outro.
— Obrigada pelas roupas, Viktor.
— Me chamo Augusto, senhorita Alina.
— Ah, perdão… Augusto.
Além dos comprimentos, das indicações de onde eu deveria ir ou o que deveria fazer, eles se
limitavam a consentir com gestos discretos, a dizer "sim, senhorita", "não, senhorita" ou
"não tenho autorização para dizer, senhorita" quando eu lhes fazia alguma pergunta um
pouco mais elaborada. Estava cada vez mais solitário ali dentro e havia dias que nem
durante o jantar Dumitri aparecia para me fazer companhia à mesa, quase como se sua
aparência envelhecida dissesse a verdade sobre sua saúde debilitada. "Estaria ele padecendo de
alguma moléstia incurável? Seria ele apenas um velho doente querendo companhia nos últimos dias de
vida?".
Em meu isolamento dentro de meus aposentos, além de aguçar meus ouvidos aos sons
noturnos da cidade a nosso redor, passei a me dedicar na contagem dos dias, criando uma
espécie de calendário numa das paredes. Riscando a pedra espessa com a ponta de um
prego, descobri que devíamos estar próximos das comemorações do dia de Santo André, em
novembro. Os Grigorescu não eram religiosos, mas era muito comum se festejar aquele
feriado na vila onde morávamos na Valáquia. O dia do padroeiro dos lobos também
antecedia o meu aniversário, por isso me era tão especial. Eu estava prestes a completar
meus dezoito anos.
A véspera do dia de Santo André foi marcada por uma mudança climática intensa, que fez
com que nem as paredes antes impenetráveis do castelo mantivessem o frio afastado. Ainda
era outono na Europa e aquela noite eu me mantive acordada, atormentada por uivos
incessantes de lobos e chacais que ecoavam ao longe.
— Deixem-me dormir, malditos!
Um desconforto abdominal absurdo também estava me impedindo de me manter quieta sob
as cobertas em minha cama e tinha a sensação cada vez mais nítida de que havia algo vivo se
revirando dentro de mim. Fui acometida por um pânico agoniante, enquanto lembranças das
histórias contadas a mim na infância sobre strigois e morois vinham à minha mente. "Eu não
posso estar grávida! Que tipo de aberração poderia sair de mim se eu viesse a ter um filho de Costel? Um
filho de meu próprio irmão!".
Quando o uivo dos animais noturnos cessou, eu finalmente consegui adormecer, embora
pesadelos com monstros e bruxas não quisessem me deixar em paz. Acordei em minha cama
dum pulo, com o corpo encharcado em suor, apesar do frio quase negativo dentro de meu
quarto. Senti imediatamente cada pelo de meu corpo eriçar, não conseguia gritar. Eu estava
muda, sentindo o ar solidificar-se a meu redor. Havia algo errado. "A porta… Quem deixou a
porta aberta?".
A resposta a meus pensamentos surgiu quase de imediato, na forma de uma figura esguia
que me espreitava ao lado da penteadeira do quarto negro. Não havia qualquer vela acesa ali
dentro e apenas a luz que vinha de um dos candeeiros, ao final do corredor, me permitia ver
a silhueta curvada, movendo-se feito um animal de olhos vermelhos e brilhantes, deslizando
até mim. Senti meus movimentos congelarem junto de minha voz e embora eu tentasse
balbuciar um pedido de socorro, eu estava incapacitada, petrificada sobre a cama.
— Não pode evitar. Sua pulsação soa feito uma melodia daqui.
A voz era sibilante, aguda. Vibrava em meus ouvidos como o uivo dos chacais do lado de
fora. Ele estava agora em cima de mim, forçando meus ombros contra a cama, os cabelos
longos a roçarem meu rosto.
— Mal consigo conter a minha sede.
Seu hálito fedia à morte, a língua úmida e áspera percorria meu pescoço, meu rosto, sem que
eu pudesse evitar. As mãos compridas de dedos finos puxavam a barra de meu vestido,
tornando-me nua. Eu continuava tentando balbuciar. Não saía um sussurro sequer de minha
boca. A língua dele agora penetrava-me lá embaixo. Eu estava imóvel.
— Doce como uma fruta fresca.
A figura grotesca não se prolongou muito no que fazia, logo voltando a subir sobre meu
corpo estático. Eu tremia, num misto de horror, asco e frio. Muito frio. A coisa dentro de
mim movia-se, como que tocada pelo mal representado pelo monstro a me possuir. Eu
estava seca, o que me fez sentir dor, angústia. Uma lágrima escorria de meus olhos, virando
gelo antes mesmo de atingir o lençol. Gritava em pensamento para que a criatura me
soltasse, mas sadicamente ela me prendia ainda mais, parecendo ouvir minha mente.
— Sinto-a pulsar. Cada vez mais alto. Mais alto!
Os movimentos pélvicos fortes e intensos cessaram no momento em que ele virou meu rosto
de lado, para a parede do calendário, e forçou-me contra a cama. Dava para sentir sua
respiração muito próxima da minha pele, com ele sentindo o medo exalar junto do meu
suor. A língua voltou a passear em meu pescoço e um grunhido anteviu a dor lancinante que
me acometeu naquele momento.
— P-Por favor--
Quando minha voz finalmente ecoou, ela foi abruptamente interrompida por um berro que
emiti ao sentir duas presas cravando-se em minha carótida. Meu corpo havia sido liberado
do transe e eu espasmei de dor, sentindo o líquido quente e vibrante escapar de meu corpo.
Os dentes pontiagudos me soltaram apenas o suficiente para que eu os visse escorrer do meu
próprio sangue, retornando logo em seguida para o mesmo lugar, sugando-me ainda mais
intensamente.
— S-Socorro--
Sentia a pele do pescoço queimar em brasa. O fluido vermelho vertia de mim para ele,
parecendo incapaz de saciá-lo.
— Tão quente! Tão doce!
Eu não sei quanto tempo durou, mas quando ele terminou e se levantou, meu corpo estava
pesado, rígido. Sua voz agora parecia distante a meus ouvidos, os uivos eram apenas ganidos
longínquos, não me incomodavam mais. A minha consciência estava abandonando meu
corpo vagarosamente. Meu raciocínio foi sendo minguado aos poucos e meus olhos estavam
cada vez mais escurecidos. Eu estava morrendo pela primeira vez.
Capítulo 2 – Sangue em Bucareste
EU ENXERGUEI duas velas negras quase completamente derretidas no bocal de um
castiçal de ferro dourado e lustrado logo que abri as pálpebras. Minhas pupilas demoraram
para focar o objeto atado à uma das paredes petrificadas do castelo, mas quando o fizeram,
foi como se a luz do sol tivesse retinido em meu rosto. Vozes cada vez mais nítidas e
próximas enchiam-me os ouvidos, trazendo-me desconforto. Uma carroça carregando
esterco passava ruidosa pela via de paralelepípedos, um cachorro pulguento erguia a pata
traseira em direção à parede lateral de um armazém, enquanto um líquido quente e
asqueroso era direcionado a ela, em jatos intermitentes. "O cheiro! Oh, Deus! O cheiro!".
Voltei a sentir meus braços logo que percebi que estava viva. Levei minha mão em direção a
meu rosto e quase não a consegui controlar, metendo um dedo bem dentro do olho. Não
senti dor alguma e então tentei erguer meu tronco que pesava mais que o normal,
comprimindo-me contra a cama. Uma senhora de sotaque búlgaro tentava pedir um quilo de
farinha de trigo ao lojista, confundindo-se com a pronúncia. "E-Eu não entendo búlgaro…
Como--".
Eu estava só dentro do quarto. As janelas estavam cerradas a ferrolhos, como de costume,
mas as vozes continuavam explodindo em meus ouvidos, cada vez mais altas. Senti as
pernas pela primeira vez quando resvalei as costas de uma das mãos em minha coxa
esquerda. De tronco erguido, sentei-me na cama e senti uma película áspera e seca sobre a
pele. O quarto agora estava mais iluminado que um dia ensolarado e havia uma mancha
escura tomando toda minha saia. Dominando quase que totalmente minha coordenação
motora, procurei erguer meu vestido, foi quando me deparei com o que tinha acontecido.
— Oh, meu Deus! Não!
Havia uma massa espessa de sangue seco e pútrido sobre o lençol, e meu ventre estava todo
banhado daquela substância escura, assim como minhas coxas e joelhos. O feto que se
formava em minha barriga nos últimos quatro meses havia se liquefeito e se esvaído de
dentro de mim quando meu corpo morreu. Eu tinha sido atacada mortalmente, e uma
espécie de infecção tinha me causado algo semelhante a uma morte cerebral, expulsando o
organismo em formação de meu corpo. Logo que eu morri, meu filho também morreu.
— Isso não pode estar acontecendo!
Senti meu rosto bater violentamente no chão no instante seguinte, ainda tendo dificuldades
de controlar meus músculos e com um gosto intenso de sangue na boca. Passei os minutos
seguintes procurando reunir forças e fazer com que as sinapses de meu cérebro voltassem a
funcionar normalmente, rastejando no piso rústico. O que antes era uma tarefa banal,
tornou-se um trabalho complexo, me fazendo levar horas para levantar de onde havia caído.
Após um esforço muito grande, eu consegui chegar até o sanitário, onde uma banheira de
água morna parecia me esperar. Minha pele estava fria em excesso e eu mal conseguia sentir
a temperatura agradável da água. O sangue grosso e seco demorou a soltar de meu corpo.
Quanto mais eu esfregava, mais eu me sentia suja, mais eu me sentia asquerosa. "Eu estive
mesmo esperando um bebê!".
As vozes voltaram a agredir meus ouvidos, e odores diversos se misturavam em meu olfato,
tornando-me incapaz de distingui-los com clareza. Cobri meus ouvidos e submergi na
banheira. A água abafou os sons e os cheiros, dando-me alguma tranquilidade. "O que está
acontecendo comigo?".
Após horas dentro da banheira, de alguma forma, eu consegui bloquear as vozes e os odores
que pareciam vir de dentro do castelo de tão nítidos e próximos. Me levantei, me enxuguei e
consegui caminhar de volta para o quarto, ainda nua. Ele estava lá, com o ombro apoiado na
janela, me esperando. Não parecia mais um velho de cinquenta anos. Dumitri estava quase
que totalmente rejuvenescido e saudável.
— Como está se sentindo, bela Alina?
Ele continuava a me olhar daquele jeito indecente, esquadrinhando cada curva do meu
corpo, cada detalhe da minha nudez.
— O que você fez comigo, seu monstro?
Os cabelos de Dumitri agora brilhavam negros e lisos, ainda escorridos no rosto, mas
deixando os traços delicados à mostra. Ele não andava mais encurvado, tinha ganhado
músculos nos braços e a blusa vermelha que usava marcava um peitoral estufado. Parecia ter
agora uns vinte e cinco anos. Talvez menos. Estava jovial, como se meu sangue o tivesse
revigorado.
— Eu lhe dei uma dádiva, querida. Eu lhe presenteei com a vida eterna.
Dumitri deu dois passos e chegou até a cama, encarando o sangue seco ainda a manchar o
lençol. Eu queria odiá-lo, queria sentir nojo dele, mas era como se não houvesse nada em
meu peito naquele momento. Eu estava me sentindo oca, vazia, incapaz de sentir qualquer
coisa. Nem mesmo estar totalmente sem roupa diante dele me causou qualquer
constrangimento. Até porque não havia nada ali que ele já não tivesse visto e… Possuído.
— Você me violentou. Me atacou covardemente à noite. Você não me deu vida eterna
alguma. Você me matou!
— Sim! — Respondeu ele, dando uma risada sádica. — Para que você recebesse a dádiva da
vida eterna, era necessário que você morresse antes de tudo, para renascer ainda mais forte,
mais poderosa. Não está sentindo as mudanças em seu corpo? Não está percebendo o quanto
você foi melhorada?
Eu deveria estar assustada com aquilo, mas só conseguia perceber o vazio em meu âmago.
Se ele realmente tinha o poder de me dar a vida eterna, eu não queria viver daquele jeito,
sem sentir nada. Oca como uma concha.
— Eu era uma prisioneira, estava trancada dentro desse castelo, indefesa. Você não tinha o
direito de me atacar. Por que fez isso?
— Você não entende, Alina. Sua mente ainda é jovem demais para compreender. — Ele
moveu-se incrivelmente rápido da cama até mim. Quando notei, ele estava em minha frente,
tocando meu rosto com a mão comprida. — Quando a vi perambulando pelas ruas com seu
irmão, mendigando restos de comida, eu senti uma atração muito forte por você. Embora
fosse uma menina, eu conseguia farejar o potencial em seu sangue, o poder que já exalava de
dentro do seu corpo.
Seus olhos não estavam vermelhos e não havia o cheiro de morte vindo de sua boca. Nem as
presas estavam lá. Dumitri agora era quase um humano normal de pele muito pálida.
— Sua linhagem é especial, Alina. Quando bebi seu sangue, ele me fortificou de várias
maneiras possíveis. Eu não podia simplesmente matá-la para saciar minha sede. Eu tinha
que transformá-la em alguém como eu.
— O que você é? — Perguntei, confusa. Desde pequena eu ouvia histórias sobre criaturas
que atacavam pessoas à noite com dentes afiados, Grigore me contava fábulas sobre strigois
e strigas, mas eu não conseguia acreditar que aquilo fosse verdade.
— Ainda não percebeu o que eu sou? O que você agora também é após ter bebido do meu
sangue?
Logo após sugar todo meu fluido corporal, Dumitri tinha rasgado a própria língua e me
dado de beber do seu sangue, num beijo caloroso e demorado. Eu já estava apagada quando
aquilo aconteceu e embora eu achasse que tivesse dormido por apenas uma noite, tinham-se
passado dois dias desde que eu havia sido transformada na véspera de Santo André. Meu
corpo havia se regenerado após a mordida violenta em meu pescoço e até mesmo minha
silhueta tinha voltado ao normal após a rejeição ao feto dentro de mim. Dumitri esperou que
eu me vestisse e me acompanhou até o lado de fora do castelo, pela primeira vez desde que
eu havia sido vendida por Costel. Fazia uma noite muito agradável na cidade e da sacada de
um dos andares mais baixos, nós dois ficamos a observar a movimentação nas vielas sob o
castelo, enquanto ele me explicava tudo que começava a mudar em mim.
— Logo que despertou, você deve ter percebido o quanto seus cinco sentidos estavam
aguçados. A visão mais nítida mesmo no escuro, o olfato captando odores a quilômetros de
distância, a audição mais sensível ao menor ruído próximo de você, seu tato capaz de
distinguir a diferença entre o linho cru e o puro. Tudo isso é só o começo. — Enquanto ele
falava aquilo, fui atraída por um rapaz que passava apressado abaixo de nós, carregando um
embrulho de peixe fresco. "Consigo sentir daqui sua carótida pulsando… Seu sangue deve ser
delicioso!". Logo em seguida me arrependi por ter pensado aquilo. — Em breve você vai
sentir que sua força física também foi aumentada e que mesmo o ar que respira já não é tão
importante assim quanto era antes, em sua vida mortal.
Senti um desejo impulsivo de usar minha força e então eu agarrei Dumitri pelo pescoço,
começando a estrangulá-lo. Sentia mesmo que podia esmagar sua traqueia com meus dedos
e não parei, até ser contida por ele. Com um simples gesto ele se desvencilhou de mim,
impedindo meu ataque. Eu não era páreo para sua força e sua experiência… Ainda.
— Aprecio seu esforço, mas não há como você me matar, criança. Guarde suas forças para
um humano normal.
Não estava frustrada apesar de tudo.
— Somos mesmo imortais?
— Sim e não. — Lá embaixo, outro homem caminhava com uma caixa de uvas nos braços.
Eu conseguia contar dali quantas batidas seu coração dava por minuto. Ele era atlético e
forte, parecia um touro. — Há várias maneiras de sermos mortos por um outro vampiro ou
mesmo por um mortal, mas nenhuma que não possa ser evitada. Manter-se em segredo e
discretamente é o grande trunfo para que possamos gozar plenamente de nossa vida eterna.
Me apoiei na amurada da sacada e continuei observando os moradores daquela vila
comercial. Um vento forte soprava fazendo tremular uma bandeira posta logo acima de um
dos mercados de frutas da esquina, mas eu quase não podia senti-lo em minha pele.
— Os seus empregados… Eles não sabem sobre você?
— Apenas os de maior confiança. Os humanos não costumam aceitar bem quando
descobrem que seu empregador é um vampiro.
— Por isso tem tantos deles trabalhando em seu castelo?
— Sim. À medida que um ou outro descobre o que realmente acontece do lado de cá do
portão, eles fogem apavorados. Aí sou obrigado a dar um jeito na situação.
Dumitri riu sarcástico ao dizer aquilo. Eu estava me sentindo cada vez mais fria e distante
das pessoas agora que começava a entender minha nova natureza. Eu não tinha pedido para
me tornar uma criatura que se alimentava de sangue, mas começava a pensar nos privilégios
que a minha atual condição podia me proporcionar. Enquanto pensava o quanto podia ficar
rica e poderosa usando minha força, um mal-estar me acometeu, me fazendo dobrar meus
joelhos.
— O que está acontecendo comigo? Pensei que eu fosse imortal!
Dumitri riu mais uma vez e me ensinou a principal lição de todas:
— Até os imortais precisam se alimentar, minha bela Alina. Seu corpo precisa de nutrientes
para manter-se forte. Você precisa de sangue.
Naquela noite, meu terrível companheiro saiu comigo em caçada e me ensinou tudo que eu
necessitava saber sobre minha nova forma de se alimentar. Por mais que carnes, frutas,
legumes ou doces ainda pudessem causar alguma satisfação a meu paladar, eu não podia
mais viver sem beber sangue, e ele tinha que ser quente, se possível direto da fonte. Eu estava
faminta em minha primeira caçada e mal tinha pensado nas consequências de meus atos ao
atacar mortalmente um morador de rua que se protegia do frio embaixo de uma marquise.
Senti seu sangue quente encher-me a boca, tocando satisfatoriamente minha língua,
descendo-me pela garganta, sem qualquer remorso. Eu sorri sentindo-me satisfeita e só
quando o olhei no chão a estrebuchar, soltando seu último suspiro de vida, é que eu pensei
no que estava fazendo. "Eu me tornei um monstro!".
Dumitri me acompanhou mais algumas noites em caçada, e vê-lo matando pessoas
desavisadas tão discriminadamente e de forma tão sádica me causou certo desconforto.
Havia prazer nele em tirar uma vida humana e embora eu agora fosse dependente de sangue
para sobreviver, algo dentro de mim se recusava a aceitar aquela nova rotina. Quando
chegou minha vez de caçar sozinha, escolhi que não queria tirar a vida de pessoas inocentes
e fui em busca de gente que valesse a pena matar. Comecei a espreitar becos e vielas, onde
ladrões e estupradores costumavam fazer suas vítimas e ali comecei a caçar de verdade, me
passando por presa.
Eu circulava por aquelas bandas usando vestidos decotados de tecido claro e fino, o que
facilitava minha identificação pelos pervertidos da cidade. Eu havia sido transformada em
vampira em minha melhor forma física. Era jovem, bonita, tinha curvas bem acentuadas
para uma garota de dezessete anos — agora dezoito — e aquilo chamava a atenção dos
homens. Nada em minha nova aparência, excetuando o tom bem mais pálido de minha pele,
dizia que eu era uma sanguessuga, o que facilitou minhas abordagens. Todas as noites eu era
atacada por algum estuprador como uma moça indefesa desavisada, e só então eles
percebiam — tarde demais — que tinham caído numa cilada, virando meu banquete. Por
muito tempo, eu usei aquele tipo de armadilha para me alimentar durante as longas noites e
foi numa dessas minhas caçadas que eu o reencontrei.
Meu faro aguçado tinha me conduzido até próximo das docas do Porto de Constanta, uma
das principais vias de acesso à Romênia. Aquela era uma noite de nevoeiro e fiquei
espreitando quatro marginais que jogavam cartas sobre uma mesa de madeira, perto do cais.
De onde eu estava, era possível ver o Mar Negro, bem como sentir a maresia trazida até
mim. Jamais tinha saído da Valáquia até meus dezessete anos e sentia-me como uma criança
trancada em casa que nunca sequer vira o próprio quintal. O mundo agora podia ser meu
quintal, e me peguei divagando enquanto a jogatina prosseguia a alguns metros de mim. Eu
podia ouvir a pulsação de três dos homens, bem como o cheiro quase insuportável que vinha
de dentro de suas roupas. Já os tinha visto nas ruas de Bucareste, roubando e assediando
mulheres. Sabia que se tirasse suas vidas, de nada poderia me arrepender depois. O problema
era o quarto homem sentado à mesa.
— Anda logo, branquelo! Não temos a noite toda. Mostre suas cartas!
O homem de mãos pálidas mantinha o rosto encoberto pela sombra de uma boina e sua voz
era quase um sibilo. Eu estava escondida atrás de uma pilastra, não conseguia identificá-lo.
Ele não era do bando e parecia não ter pulsação. Mas o seu cheiro… "Eu… Eu conheço esse
cheiro!".
O homem branco simplesmente jogou as cartas sobre a mesa, mostrando um Rei e uma
trinca de Ases. No momento seguinte, ele saltou em direção ao homem diante dele e torceu
seu pescoço sem o menor esforço. Assustado, o segundo homem sacou um punhal do bolso
do paletó encardido, mas nem teve tempo de erguer a arma. O de pele branco-gelo o
subjugou movendo-se extremamente rápido, dando-lhe uma mordida na jugular.
— Desgraçado! Você é um demônio!
O terceiro homem gritou e saiu correndo pelo cais, fazendo a madeira ranger sob seus pés.
Caiu ensanguentado no chão antes que pudesse saber o que o tinha atingido. O punhal do
colega estava cravado em sua nuca e eu nem tinha conseguido ver o branquelo arremessá-lo.
— Obrigado pelo jogo, amigos. Depois da diversão vem o banquete.
A boina tinha caído no chão após a rápida ação do homem, foi então que me revelei, saindo
de trás da pilastra e vendo-o ali abaixado, servindo-se de uma de suas vítimas.
— Costel!
Meu meio-irmão havia sido transformado em vampiro por Dumitri pouco após o acordo que
me tornou propriedade do homem de cabelos longos. Diferente de mim que não tinha tido
escolha, Costel queria aquele destino, o que Dumitri achou justo, uma vez que ele me teria
eternamente em troca. Se antes ele era um andarilho pedinte procurando esmolas, agora ele
estava no topo da cadeia alimentar, matando não só para sobreviver, mas também para se
apoderar dos bens de suas vítimas. Ele tinha se instalado num casebre de dois cômodos
próximo do Porto de Constanta — o mesmo nome de sua mãe — e acumulava joias,
dinheiro e outras riquezas roubadas na calada da noite.
— Não há mais nada para nós dois nesse país, minha irmã. Venha comigo. Vamos fugir para
outro lugar. Começar uma nova vida. Ninguém mais pode nos deter.
Naquela noite, eu retornei para o castelo com um plano em mente. Agora que eu sabia que
Costel também tinha se tornado um vampiro e que eu jamais tinha sido uma mera
mercadoria de troca para ele — a nossa transformação havia sido planejada por ele desde o
início, para que nos tornássemos poderosos —, não fazia mais sentido continuar sendo a
companhia de luxo de Dumitri. Eu precisava me livrar dele e sabia como ia fazê-lo.
Duas noites se passaram desde que eu tinha reencontrado meu meio-irmão e durante o
jantar, enquanto comíamos um filé malpassado acompanhado de uma taça de Bordeaux, fui
surpreendida pelo meu velho anfitrião.
— Como tem passado Costel? Ainda matando marginais no porto?
Se eu ainda tivesse o fluxo sanguíneo de uma humana, certamente eu teria corado naquele
momento.
— Você me seguiu?
— Achou mesmo que eu deixaria a minha mais preciosa posse livre por aí à noite, sem
tomar conta dela?
Dumitri sorriu, com um filete de sangue da carne escorrendo no canto da boca. Logo em
seguida, ele deu mais um gole em seu vinho.
— Eu não sabia que era tão preciosa assim para você, Dumitri. Nem que eu era sua posse.
No segundo seguinte, o homem que havia me transformado em vampira estava arfando,
engasgado. A taça foi derrubada no chão por um de seus movimentos bruscos e Viktor, o seu
serviçal de confiança, fez menção de que queria ajudá-lo, no que foi contido por mim de
longe. Agora que ele não podia mais ler meus pensamentos, fora difícil saber o que eu estava
tramando, até começar a engasgar com o sangue frio de um cadáver que eu tinha misturado
a seu Bordeaux preferido. Costel tinha me dado um frasco com o líquido envelhecido em
nosso último encontro e não tinha sido difícil colocar algumas gotas em cada uma das
garrafas da adega, enquanto ele descansava. A minha taça permaneceu intocada sobre a
mesa.
— É mesmo um desperdício de um vinho tão bom, mas agradeço por ter me apresentado a
ele. Entendo porque gosta tanto dessa safra. Seu gosto lembra sangue.
Dumitri estava no chão arfando, os olhos vermelhos e uma gosma saindo de sua boca. O
sangue frio de uma pessoa morta há muito tempo era quase fatal para um vampiro. Ele não
podia me impedir de fugir do castelo aquela noite e com certeza seria incapaz de me seguir.
Algumas horas mais tarde, eu me encontrei com Costel e nós partimos juntos para a Rússia,
atravessando o Mar Negro em uma embarcação que ele havia conseguido. Era hora de
conhecer o restante do quintal do mundo. O nosso novo mundo.
Capítulo 3 – Uma estrangeira em Moscou
ERA INVERNO na Europa quando eu e Costel chegamos à Kainsk — atual Kuibysev —
localizada 315 km a Oeste de Novosibirski. Situada às margens do rio Om, a cidade tinha
área em torno de 110 km² e havia sido fundada como um forte militar ainda no século
XVIII. Com uma população pequena, formada principalmente por camponeses e lavradores,
a cidade sofreria diretamente com o que estava para acontecer no restante do país nos
próximos anos, no governo do czar Alexandre II. Com uma gestão humanitária, voltada
para o povo, Alexandre II assumiu sua função de governante um ano após a minha chegada
à Rússia. A Guerra da Crimeia ainda estava movimentando o Velho Continente e o czar
havia decidido manter as forças russas em combate, o que mais tarde se mostrou um erro
hediondo. A Inglaterra e a França esmagaram a Rússia um ano mais tarde, o que fez com
que Alexandre repensasse toda sua estratégia de guerra e começasse a investir em poderio
bélico. Não era como se eu e Costel tivéssemos chegado em um país pronto a explodir, mas
as coisas estavam tensas por ali.
Nós nos instalamos em um chalé muito bem localizado em Kainsk, a Oeste do Mar Negro
— por onde havíamos entrado no país — e Costel usou todos os recursos que havia
adquirido ilegalmente em Bucareste para comprar a casa. Passamos por todo um processo de
adaptação no primeiro ano e tivemos que obter ajuda com o idioma, os costumes e a cultura
local. Tudo ali era bem diferente do que conhecíamos em nosso antigo lar e tivemos que
voltar à nossa vida marginal antes de se misturar com os vizinhos. Tão logo aprendeu o
básico da língua, Costel passou a aplicar pequenos golpes com o carteado, como fazia no
cais de Constanta, e eu comecei a seduzir alguns donos de fazenda da região, a fim de roubar
seus bens. Os truques que sabíamos deram certo por um tempo e logo tínhamos conseguido
grana suficiente para bancar nossos pequenos luxos.
No segundo ano em Kainsk, nós dois contratamos um serviçal búlgaro que morava na região
e que prestava serviços como cozinheiro, faxineiro e ajudante geral. Seu nome era Nikolai e
se encaixou exatamente naquilo que precisávamos num primeiro momento. Muito astuto e
habilidoso, era do tipo calado e nunca se metia no que não era chamado. Fazia todas as suas
funções com grande excelência e nunca questionava nenhum tipo de ordem que lhe era
dada. O tipo de pessoa perfeita para se ter por perto para não se levantar suspeitas de nossos
hábitos agora um tanto quanto extravagantes.
A segunda pessoa que passou a frequentar nosso chalé foi um estudante de nome Ivan, o
qual Costel contratou para nos dar aulas do idioma russo, além da história pregressa do país.
Ivan tinha apenas dezessete anos e fazia o tipo intelectual tímido, algo do qual meu meio-
irmão soube aproveitar bastante, pagando pouco e ainda se divertindo às suas custas. Ivan
nos visitava três vezes por semana ao cair da noite — uma vez que, antes disso, anulávamos
totalmente nossas atividades devido a luz solar e seus malefícios a nós — e pacientemente
nos ensinava pronúncia, escrita e também um pouco sobre o passado da ex-nação eslava.
Tínhamos planos de entrar para a aristocracia russa muito em breve e para que aquilo
funcionasse, nós teríamos que deixar de ser Alina e Costel Grigorescu da Valáquia.
Os primeiros anos passaram lentamente em Kainsk e enquanto ouvíamos boatos de que
Alexandre II estava se preparando para autorizar uma emancipação da servidão no país —
como já o vinha ocorrendo em outros lugares do mundo — eu e Costel começamos a dar
início a nossos planos de ascender na alta sociedade russa. Falávamos o idioma local agora
quase que fluentemente e devorávamos tomos gigantescos sobre a história da Rússia,
trazidos por Ivan durante as nossas aulas. Nas noites em que não precisávamos aprender
nada, meu meio-irmão começou a promover pequenas orgias dentro do chalé, contratando
várias prostitutas locais para que ele se refestelasse. Costel tinha um apetite sexual voraz, o
que o incitava a ter três e às vezes até quatro parceiras de cama por noite. Solitária em meu
quarto, enquanto eu me entretinha devorando pequenos roedores e outros animais silvestres
que caçava para me alimentar, eu podia ouvir os gritos escandalosos das putas ecoarem no
casebre.
— Maldito seja, Costel! Se pudesse, ele não parava nunca de foder!
Nikolai não costumava dormir em nossa casa à noite, e foi numa manhã costumeira de
silêncio matinal que o pobre coitado chegou para trabalhar e encontrou três corpos
femininos empilhados na cozinha. Havia um bilhete escrito à mão por Costel preso à cinta-
liga de uma delas: “Caro, Nikolai. A noite foi meio agitada, como pode perceber. Tenha a bondade de
se livrar furtivamente dessas três putas em meu nome. Estou certo que ninguém dará pela falta delas e
sei que posso contar com sua discrição. ”.
Como era de se esperar, Nikolai cumpriu sua tarefa à risca e não mencionou nada a respeito
enquanto nos servia uma vitela malpassada — sua especialidade gastronômica — no horário
do jantar. Ele trabalhava há algum tempo conosco e tinha aprendido a respeitar as
excentricidades que às vezes era obrigado a presenciar completamente calado. Sua eficiência
era tão grande que fizemos questão de levar o búlgaro para trabalhar para nós quando
decidimos mudar para um palacete a 100 km de Moscou. Nosso novo lar estava mais de
acordo com a identidade que pretendíamos assumir junto à alta sociedade russa e a partir de
então nos tornamos os irmãos Lukyan Grigorevich Vassiliev e Dasha Grigorevna Vassilieva.
Os primeiros oito anos que passamos na Rússia nos modificou completamente do que
éramos em nossa juventude camponesa na Valáquia. As habilidades vampirescas tinham
levado muito de nossos escrúpulos e passamos um bom tempo apenas aplicando golpes nos
endinheirados para acumular nossa própria riqueza pessoal. Quando os irmãos Vassiliev
foram apresentados à alta sociedade russa, nós dois já tínhamos mais dinheiro do que
sonhávamos quando partimos naquele barco do Porto Constanta, mas a cobiça nos fazia
querer mais. Para os aristocratas russos, éramos dois jovens órfãos que haviam herdado uma
fortuna considerável de um casal de magnatas e que agora tocavam os negócios da família
com unhas e dentes. Nas festas noturnas para as quais passamos a ser convidados
frequentemente, éramos tratados com toda pompa e circunstância, enquanto os bajuladores
caíam a nossos pés, de olho em nossa fortuna. No interior de nosso palacete, ainda éramos
Alina e Costel, planejando nosso próximo golpe e meu meio-irmão continuou com seu
hábito de contratar prostitutas de luxo para festejar nosso sucesso, além de se acabar com
elas em orgias regadas a sangue. Eu ainda me recusava a matar pessoas que considerava
inocentes para saciar minha sede, mas estava cada vez mais inclinada a aceitar os convites
insistentes de “Lukyan” para cair na esbórnia junto com ele e suas putas.
Naquele período, entre minha partida da Romênia até minha consolidação como uma
proeminente dama da sociedade russa, minhas novas habilidades físicas tinham evoluído
bastante, o que me ajudou a manipular as pessoas envolvidas em meus jogos de poder. Além
de meus sentidos aguçados, eu tinha desenvolvido certo grau de telepatia e quanto mais eu
treinava, mais fácil se tornava a leitura de mentes. Eu sabia que um vampiro podia ler os
pensamentos alheios devido minha experiência com Dumitri, logo, passei a treinar com
pessoas que considerava inferiores intelectualmente a mim. Quando ainda perambulava
pelas ruas de Kainsk, usando o velho truque da donzela em perigo que aplicava em
Bucareste para atrair vítimas para o abate, eu conseguia escutar as perversidades que aqueles
homens asquerosos diziam mentalmente sobre mim e meu corpo. Mesmo a metros de
distância, dava para ouvir seus pensamentos impuros e todas as crueldades que eles
desejavam fazer comigo depois de subjugada. Nenhum deles teve a menor chance de sequer
me tocar, mas foi com eles que comecei a aperfeiçoar minha telepatia.
Costel não tinha sido agraciado com o dom de ler mentes como eu — ou pelo menos nunca
o tinha treinado corretamente —, mas ele possuía uma capacidade que eu não tinha de
manipular outras mentes através do olhar. Poucas das prostitutas que ele carregava para a
cama tinham sido levadas para lá por vontade própria, ainda mais quando ele mostrava sua
natureza vampira, exibindo-lhes as presas. Menos ainda delas sentiam prazer em serem
praticamente devoradas vivas, como as moças demonstravam até pouco antes de que seu
coração parasse de bater no peito. Já em nosso palacete, eu tinha aceitado participar de uma
ou outra orgia promovida por ele e vi com meus próprios olhos como Costel as manipulava
para que elas parecessem em orgasmo até mesmo enquanto ele lhes rasgava o pescoço. Era
brutal e por muitas vezes eu me perguntei se aquele poder mental de controle funcionava
também comigo. “Estaria eu sendo controlada mentalmente por meu irmão esse tempo todo? Seria eu
apenas um fantoche nas mãos de Costel, fazendo-lhe todas as vontades sem nem questionar? ”. Aquilo
me preocupara.
A situação política estava mudando rapidamente na Rússia sob o reinado de Alexandre II e
além da abolição da servidão promulgada pelo czar, uma nova Assembleia Constituinte
instalada por grupos radicais começava a discutir ideias socialistas dentro do país. Enquanto
intelectuais e estudantes viam no campesinato uma classe revolucionária contra o regime de
estado atual, a aristocracia via com preocupação o fim de certos privilégios antes fortemente
gozados por ela. Aqueles assuntos eram amplamente comentados durante as festas que agora
eu e Costel frequentávamos como os irmãos Vassiliev, e graças as aulas de Ivan,
conseguíamos discutir de igual para igual com os prolixos. Nos passávamos facilmente entre
eles como os órfãos de magnatas à frente das empresas dos pais, mas foi numa daquelas
noites que me deparei com alguém que parecia saber muito bem sobre nosso passado.
Era verão na Europa quando adentrei o salão principal onde um festejo em nome de
Natasha Petrova Semyonova tinha sido organizado. Semyonova era a noiva de um
importante conde moscovita e o casal comemorava a união deles na presença de grande
parte da elite russa. Eu estava particularmente linda aquela noite. Meus cabelos negros
estavam presos em um coque com uma tiara prateada e eu usava um vestido longo com
detalhes em vermelho e preto. Um corpete afinava ainda mais minha cintura, enquanto a
saia rodada escondia a sinuosidade sempre tão elogiada de minhas pernas. Meu busto estava
avolumado pelas linhas do corpete e minha maquiagem ressaltava meus traços joviais. Eu
não tinha mais meus dezoito anos, mas minha aparência não tinha se alterado em nada
desde que havia sido mordida naquela véspera do feriado de Santo André.
— Vestido tão lindo quanto seus belos olhos azuis, jovem dama.
O galanteio surgiu de um homem alto vestindo um terno azul de veludo, ornado com uma
gravata carmesim. Ele ergueu a mão direita espalmada e recebeu a minha estendida, dando-
lhe um beijo em cumprimento. O toque de seus lábios era macio e deu para ouvir o ritmo
compassado de sua pulsação dentro do peitoral largo.
— Gentil de sua parte me notar em um salão tão repleto de beldades.
— De fato. — Sorriu ele, exibindo uma dentição tão alinhada quanto alva. — Nenhuma
delas, no entanto, apresenta um sotaque tão aprazível.
Era a primeira pessoa que falava sobre o meu sotaque estrangeiro. Ninguém havia
mencionado aquele detalhe em muitos anos, desde que eu havia me mudado para Moscou.
— Como disse que se chama?
— Não disse. — E ele então recolheu o sorriso, encarando-me com seus olhos cinzentos. —
Me chamo Adon, senhorita. Adon Gorky.
— Gorky? Como na lenda do fantasma do condenado na estrada de Gorky? — Procurei
mudar o foco da conversa, citando uma das histórias sobrenaturais que constavam num dos
livros de Ivan. Ele insistiu:
— Vejo que andou estudando sobre a cultura russa, senhorita... — e ele aguardou que eu
completasse.
— Dasha. Dasha Grigorevna Vassilieva.
— Ah, sim, claro. Do clã dos Grigorevich. Não havia uma família na Valáquia chamada
Grigorescu? É de lá o seu sotaque?
Aquele comentário pegou-me de surpresa e senti meu humor mudar completamente. Um
garçom passou servindo algumas taças de bebida e farejei de longe a safra do Bordeaux que
Dumitri bebia. Também era meu preferido. Com gosto de sangue. “Será esse homem um
enviado de Dumitri? ”.
— Não conheço a Valáquia, senhor. — E eu sorri, meio desconcertada. Achava que não
podia mais ficar sem graça agora que era uma morta-viva, mas Adon tinha conseguido.
— Não se preocupe. A maioria dessas pessoas — e ele olhou ao redor de nós, pela multidão
que transitava pelo salão de festas — vive em fingimento eterno. Uns fingem que são
inteligentes, outros fingem que são fieis e há ainda aqueles que fingem viver em outra
realidade que não a sua. Todos aqui estão em uma constante farsa, seja por um motivo ou
outro. Seu segredo está a salvo comigo.
Adon tinha um brilho intrigante nos olhos. O rosto quadrado de linhas de expressão bem
marcadas parecia uma máscara ocultando muito secretamente a real natureza de seu ser. Eu
precisava recuperar a dianteira que ele havia conquistado, mas sua mente estava fechada
para mim, instransponível.
— E qual seria o seu segredo, senhor Gorky?
— Meu desejo quase palatável de sair desse salão e respirar ar puro.
O palácio de inverno cedido para o noivado do conde com a futura esposa possuía um
aprazível jardim frontal onde aceitei caminhar com meu misterioso acompanhante. Embora
não pudesse ler os pensamentos de Adon, sua pulsação era alta e clara para minha audição.
As batidas por minuto mantinham-se inalteradas mesmo quando ele subia o tom da voz ou
respondia uma pergunta mais capciosa e aquilo começou a me deixar intrigada. Nada além
de seu bloqueio psíquico dizia que aquele homem de cabelos bem penteados para trás podia
ser um vampiro como eu, mas até então, eu também tinha poucas evidências para provar o
contrário.
— Como descobriu que eu era romena, além de meu sotaque? — Fui logo com o dedo na
ferida.
— As notícias correm soltas nos prostíbulos, minha cara. Diferente de você, seu meio-irmão
não é dado a muitas sutilezas.
“O bastardo andava falando mais do que devia nos puteiros. Estava querendo nos foder! ”, pensei
irada.
— Meu irmão tem um apetite sexual voraz, eu diria.
— E a língua tão solta quanto voraz! — Completou Adon, dando um gole no champanhe
em sua taça. — Não vejo problemas em vocês assumirem uma nova identidade para
escaparem do passado tortuoso, mas quanto mais pessoas sabem a verdade, mais rápida é a
queda do topo. Consegue me entender? — Acenei que sim com um movimento leve da
cabeça. — Lukyan chegou ao poder de forma rápida e isso o tornou arrogante, descuidado.
O poder em excesso costuma mostrar a real natureza do ser humano, e a de seu irmão não é
algo saudável para alguém como você.
— “Alguém como eu”?
— Você é uma mulher determinada e calculista que deseja chegar ao poder e manter-se lá.
Com Lukyan a seu lado, esse desejo jamais se realizará.
— Ora, Adon. Não me insulte! Você só me conhece há alguns minutos. Como pode saber
tanto sobre mim?
Com um riso sinistro, Adon largou a taça vazia sobre a amurada que cercava o jardim e
segurou minhas mãos firmemente. Uma vez mais seus olhos cinzas fitaram os meus e eu me
senti acuada, como Dumitri me fazia sentir.
— Desde que os sussurros sobre um casal de irmãos da Valáquia começaram a ser ouvidos
nos bordéis, eu passei a prestar maior atenção em vocês dois. Eu investiguei. Sei tudo que
aconteceu entre vocês na estrebaria, após a fuga para Bucareste e até mesmo no castelo do
senhor Ardelean.
Minha mão moveu-se mais rápido do que ele podia perceber e no instante seguinte eu estava
esmagando sua traqueia com meus dedos.
— O deixei falar até agora para descobrir o que sabia, mas seu tempo acabou, amigo.
Mandarei seu corpo para Dumitri como um aviso de que jamais voltarei a ser sua
prisioneira.
Eu estava mesmo disposta a quebrar seu pescoço a fim de silenciá-lo, mas de repente, sua
voz emergiu em um grunhido:
— E-Espere! V-Você não entendeu...
Ele não estava conseguindo falar, então afrouxei um pouco os dedos, mantendo as unhas
cravadas em sua pele.
— N-Não estou aqui a mando de Dumitri. Nunca o vi pessoalmente. Foram meus
informantes... Eles que investigaram sobre você e seu irmão. Não tenho nenhum vínculo
com esse homem.
A pulsação dele estava acelerada devido à pressão em sua garganta, mas ele não estava
mentindo. Soltei seu pescoço, deixando-o respirar.
— Se sabe tanto sobre mim, não acha que se arriscou me ameaçando dessa forma?
— Não foi uma ameaça. Eu sei que você não queria ter sido transformada nisso que agora
você é. Eu sei que no fundo, a alma da jovem e doce camponesa da Valáquia ainda reside
em você, querendo retomar a vida que lhe foi tirada. Eu estou aqui para lhe fazer uma
oferta. Uma oferta que pode trazer de volta tudo que lhe foi roubado.
Adon passou a hora seguinte falando-me sobre magia e como ele a tinha conhecido. Falou
de seu passado pobre na Ucrânia, de como ele e os pais se mudaram para a Inglaterra ainda
em sua juventude e como ele tinha sido treinado nas artes arcanas. Contou-me que ele já
tinha cruzado o caminho de outros seres como eu e que conhecia bem o destino reservado
para aqueles que deixavam sua natureza animal dominar o lado humano.
— É um caminho sem volta, Dasha. Uma vez que alguém com os seus dons permite que seu
lado selvagem domine aquilo que você era antes da transformação, não há retorno. Você não
quer isso, não é mesmo?
Mais uma vez eu estava sendo confrontada com histórias de ninar de minha infância e que
agora tomava formas reais, diante de meus olhos. “Ele está mesmo falando que magia é real? ”.
— Você pode me curar? Meu lado selvagem pode ser arrancado de mim?
Adon olhou-me do alto com semblante confiante e após deslizar o polegar pela maçã de meu
rosto, falou:
— Não posso te curar, mas conheço uma pessoa que pode reprimir sua sede por sangue.
Naquela madrugada, não consegui pregar meus olhos, embora soubesse que precisava
revigorar minhas forças. O quarto de Costel estava silencioso e eu tinha certeza que ele não
havia retornado para casa após a festa no palácio de inverno. Sentimentos eram detalhes
efêmeros que eu não me dava mais ao luxo de ter depois que tinha sido transformada e já
quase tinha me esquecido como era ser mais do que uma casca vazia. Se ainda pudesse
sentir algo, estaria angustiada por não saber o paradeiro de meu irmão, em vez disso, fiquei
deitada no caixão que usava como cama — como assim o fazia Dumitri em seu castelo —
contendo os raios solares que já apareciam no horizonte, com a tampa feita de um metal
reforçado, sem poder dormir.
Dois dias depois, o sumiço de Costel era agora uma certeza e após procurá-lo em todos os
bordéis que conhecia na cidade, eu voltei a ser abordada por Adon.
— S-Seu irmão está morto.
Eu achava que não era mais capaz de chorar, mas lágrimas de sangue inundaram meus
olhos quando ouvi a sentença. Adon estava com as roupas rasgadas e marcas de garras e
presas em seu pescoço provavam que ele tinha estado em companhia de um vampiro. Eu
podia farejar o cheiro de Costel nas roupas e na pele de Adon, não era uma mera bravata.
— Eu o confrontei na noite anterior. Ele estava saindo de um bordel, na companhia de uma
jovem prostituta ruiva. A moça gritou quando percebeu as presas na boca de Lukyan e ele a
matou diante dos meus olhos, por pura diversão. — Adon colocou a mão num dos
ferimentos do pescoço e gemeu de dor. — Logo em seguida, ele me atacou, tão veloz quanto
você ao tentar me estrangular. Ele chegou a fincar seus dentes em minha carne e eu tive
segundos para reagir. Usei um encantamento arcano para afastá-lo de mim e mesmo ferido,
pude atingi-lo com uma chama concentrada, arremessando-o para dentro de um rio. Ele
jamais conseguiria escapar de um feitiço tão devastador.
Em nosso último encontro, Adon tinha feito de tudo para me convencer de que Costel era
uma péssima influência para mim e que seu lado impulsivo iria acabar condenando nós dois
a um destino do qual seria impossível escapar com vida. Embora eu soubesse que podia estar
sendo manipulada por meu meio-irmão o tempo todo desde que o havia reencontrado no
Porto de Constanta, ainda na Romênia, parte de mim acreditava que ele era o mesmo garoto
que fazia de tudo para me ver sorrir na fazenda e que acabou me conquistando de um jeito
inegável. “Ele me vendeu para Dumitri. Disse que havia feito aquilo para me salvar de um destino
cruel, mas tinha me jogado nos braços de um vampiro terrível. De uma criatura das trevas que fez de
mim um monstro! ”. Meus pensamentos eram conflitantes naquele momento, mas levei Adon
para o palacete dos Vassiliev e cuidei de seus ferimentos. Ele tinha escapado por pouco da
fúria assassina de meu irmão. “Oh, Costel. Por que foi agir assim? ”.
Uma semana se passou desde que Adon tinha enfrentado Costel tentando fazê-lo entender
que ele precisava ser cauteloso sobre nosso passado na Romênia, e naqueles dias, eu tomei a
decisão que considerei a mais acertada no momento.
— Me leve até a mulher que pode me curar de minha maldição.
Adon tinha se recuperado bem dos ferimentos quase mortais e esperamos a noite para
tomarmos uma embarcação que iria nos levar desta vez para a Espanha, país onde morava
Iolanda Columbus, uma bruxa capaz de me curar. Devido minhas condições, eu era
obrigada a me esconder nos porões do barco sempre que o sol raiava do lado de fora e os
ratos eram tudo que eu tinha para me banquetear lá embaixo por dias inteiros. Tinha
aprendido logo em minhas primeiras semanas como vampira que a radiação solar era
extremamente nociva em contato com minha pele e que eu não podia perambular por aí
durante o dia se quisesse durar. Ainda como prisioneira de Dumitri, tinha descoberto que
artefatos religiosos como crucifixos, terços, água benta, estátuas de santos ou mesmo a Bíblia
não surtiam qualquer efeito negativo em mim e só mais tarde descobri o que o alho e o
sangue gelado podiam fazer a um vampiro. Nesse quesito não havia nada de lenda nas
histórias e o próprio Dumitri serviu para me comprovar.
Eu não sabia nada sobre a Espanha e quando firmei os pés em solo espanhol, descobri que
ela era quente demais para um notívago. Após alguns dias sacudindo dentro do barco,
depois de uma viagem que nos levou pelo Mar Mediterrâneo através das ilhas gregas e da
Sicília, enfim desembarcamos em Barcelona, onde ainda teríamos algumas horas até chegar
em Córdoba, terra natal da senhora Columbus. Uma carruagem contratada por Adon nos
levaria diretamente à cidade, e já pela metade do caminho, eu tinha dúvidas se conseguiria
chegar viva até lá. Eu tinha me alimentado apenas de ratos durante vários dias e me sentia
fraca demais até mesmo para conversar com meu acompanhante. Faminta, eu ouvia as veias
e artérias do condutor da charrete pulsando enquanto eu me via deitada no colo de Adon.
Embora o veículo fosse coberto, eu conseguia sentir todo o calor excessivo daquele país
queimando minha pele, o que estava me exaurindo ainda mais as forças.
— Você está protegida aqui dentro, querida. Tenha calma.
Adon usou um cobertor para me cobrir e isolar a luz solar, mas eu estava cozinhando. “Por
que fui aceitar fazer essa viagem idiota? ”. Quando respirava fundo, lembrava que estava ali para
me curar daquela maldição e que em breve estaria livre para andar sob o sol, como em
minha juventude na Valáquia. “Queria que mama pudesse me ver curada também! ”.
Eu despertei algum tempo depois num lugar escuro com cheiro de incenso. Estava
desorientada e não conseguia enxergar direito, mesmo com minha capacidade de ver claro
como o dia, até em condições péssimas de iluminação. Estava deitada sobre uma mesa de
mármore com uns dez centímetros de espessura e havia algo preso a meu braço esquerdo,
um objeto fino o bastante para penetrar minha pele.
— A-Adon?
Ao tentar mover meu braço direito, percebi que ele também estava atado ao mármore, me
impedindo de levantar. Sentia-o dormente e ao sacudi-lo, tentando reestabelecer sua
sensibilidade, ouvi o som de correntes. Meus braços estavam presos, assim como meus pés.
— O que está acontecendo?
A próxima coisa que me lembro é de ter sido acordada com um tapa desferido em meu rosto
por uma senhora de cabelos pretos com mechas grisalhas evidentes no coque malfeito.
Enquanto tentava enxergar direito o que estava à minha frente, ouvi a voz de Adon à minha
direita.
— Ela está enfraquecida o bastante. O extrato tirou suas habilidades principais. Podemos
começar.
A sala onde eu estava presa ainda era escura demais. Eu podia ver apenas vultos se
movimentando a meu redor e de repente, a fagulha de uma chama surgiu bem diante de
meus olhos, faiscante, quente. A mulher estava agora à minha esquerda, falando num
idioma que eu não conhecia. Da mão dela pendia uma espécie de amuleto preso a uma
corrente fina e o metal do objeto ardia em chamas. Adon encontrava-se do outro lado da
mesa, repetindo exatamente o que a mulher dizia, ipsis litteris. Além do incenso que
empesteava o ambiente e do perfume adocicado que vinha da velha, havia o cheiro de alho,
me enfraquecendo, me queimando as veias.
— S-Solte-me, Adon... Eu--
Naquele exato momento, o amuleto foi encostado em minha testa e eu senti meu corpo
inteiro em brasa. Meu grito ecoou feito a nota mais aguda de um violino e a casa estremeceu
até sua fundação. A mulher estava queimando minha testa com aquele colar e a dor era
agoniante. Forcei ao máximo meus músculos para tentar me libertar das correntes que me
mantinham imóvel sobre aquele mármore, mas foi em vão. Se aquele ritual a que estava
sendo submetida era o preço a se pagar para que eu voltasse a ser uma humana normal, eu
estava profundamente arrependida de ter aceitado participar daquilo.
Eu voltei a apagar depois de ser queimada viva e me lembro de ter sido despertada
violentamente outras três vezes pela mulher velha, que voltou a falar naquele idioma
desconhecido e tornou a me queimar com o amuleto em chamas. Além de minha testa, a
maldita queimou-me entre os seios e a parte interna de minha coxa esquerda, sempre
entoando aquele cântico mais alto enquanto meus gritos ecoavam na câmara. Na última
sessão, forcei minha audição para captar o que eles diziam, mas estavam falando na língua
dela, algo que não compreendi na época.
— No está funcionando. Ella es más fuerte de lo que pensábamos.
A quarta vez que fui despertada foi de forma menos brusca e antes de abrir meus olhos, senti
algo ser arrancado de meu braço esquerdo. Um rapaz de cabelos longos, presos num rabo de
cavalo, segurava um tipo de candeeiro à sua frente e ele possuía uma ferramenta que estava
usando para abrir os grilhões de minha prisão.
— Levántate. No es seguro aquí.
Eu não conseguia entende-lo, mas claramente ele estava me libertando daquele lugar. A luz
do objeto faiscante me permitiu ver pela primeira vez o entorno daquela câmara e ela se
assemelhava a um porão. Tinha mofo no teto, marcas de fogo em todas as paredes e não
havia qualquer janela para ventilação. A única abertura para entrar ou sair daquele lugar era
a porta de madeira maciça por onde aquele rapaz me arrastou com muito esforço. Eu não
conseguia sentir minhas pernas e estava tão debilitada quanto na noite em que despertei no
castelo de Dumitri, dois dias após ter sido transformada em vampira. “Eu fui curada! Eu voltei
a ser humana!".
O jovem tomou-me nos braços tão logo chegamos a um quintal arborizado, e seguimos por
uma trilha calçada com pedras negras e rodeada por orquídeas e lírios do campo. O perfume
era agradável e a noite estava enluarada. O meu braço esquerdo estava tão dormente quanto
minhas pernas, mas eu o sentia queimar por dentro. O cheiro de alho ainda me atormentava
e quando avistamos uma carruagem escura presa a dois cavalos brancos, o rapaz voltou a
falar em seu idioma.
— Te llevaré desde aquí. Eres demasiado débil y no la dejaré morir como los demás.
Desmaiei de novo no momento seguinte.
Eu fui despertada por um odor forte de sangue que enlouqueceu meus sentidos, colocando-
me em alerta. Eu estava deitada num lugar sujo e escuro, decorado por teias de aranhas
enormes em cada canto do teto baixo. “Ótimo! Estou em outro porão”, ironizei em
pensamento. Minhas presas tinham saltado para fora instintivamente e percebi que estava
faminta. Minha visão noturna funcionava um pouco melhor agora e só depois que me mexi
é que reparei nos dois homens próximos da escada. Um estava a meio degrau da parte
superior, o outro jazia agonizante no sopé, com o pescoço rasgado.
— Você está fraca. Precisa se alimentar.
O rapaz que tinha me tirado da prisão estava tentando se comunicar num russo meio
errático, mas que pude compreender. O coração da presa que ele me oferecia estava prestes a
parar de bater e se ele morresse, não me serviria mais de alimento.
— E-Eu não me alimento de inocentes...
— No se preocupe. José es um sinvergüenza. Me ha debido dinero por ãnos. — E a parte final ele
falou em russo. — Não fará qualquer falta ao mundo.
Senti que não podia me dar ao luxo de duvidar do juízo de valor de meu salvador e no
momento seguinte me arrastei até o agonizante José, não deixando uma gota só de sangue
em seu corpo. Ainda estava faminta.
Algumas horas se passaram desde que tinha terminado meu banquete, então ouvi o alçapão
ser aberto e ele surgiu descendo as escadas. Olhou com semblante assustado o corpo de José
estatelado largado num canto e então estendeu sua mão até mim, ali sentada no chão feito
uma mendiga, maltrapilha e despenteada.
— Acho que não vai me atacar agora que está alimentada, certo, chica?
Balancei a cabeça negativamente, em seguida apanhei sua mão e caminhei com ele escada
acima.
Estávamos num tipo de veleiro antigo com três mastros denominado charrua. Aquele tipo de
embarcação à vela era comumente utilizado para o transporte de mercadorias e munição de
guerra. Ao nosso redor só conseguia ver o mar, escuro, calmo, refletindo o céu salpicado de
estrelas. A alguns quilômetros de onde estávamos, conseguia enxergar um arquipélago e nos
aproximávamos rápido dele. Meu acompanhante movia uma das velas habilidosamente,
tornando o vento favorável para que a embarcação nos conduzisse na direção certa. Notei-o
olhando disfarçadamente através de meu decote, logo depois, encarou-me nos olhos e falou,
ainda num russo sofrível.
— Me chamo Alejandro. A velha que fez esse estrago em você — e ele apontou entre meus
seios — é minha mãe, Iolanda.
Meus olhos foram levados até o decote feito à força em meu vestido rasgado e então tateei a
cicatriz já quase totalmente curada em meu peito.
— Sua mãe tem um jeito meio invasivo de curar os outros! — Ironizei, torcendo para que o
russo de Alejandro fosse um pouco mais além do que ele já tinha tentado falar.
— Curar? — Ele olhou-me sério, os olhos castanhos grandes focados nos meus. Seus cabelos
compridos mal amarrados esvoaçavam ante o vento forte que soprava à estibordo. — Ela
não estava tentando te curar. Ella estaba tratando de dominarte.
Eu não tinha entendido completamente o que ele dissera, mas seu semblante me mostrou
que eu estava enganada quanto as intenções de Adon e Iolanda naquele ritual. Embora não
fosse mais uma vampira juvenil, eu notei quase tarde demais que tinha sido ingênua em
confiar tão cegamente nas palavras persuasivas de Adon. “Por isso ele estava tão empenhado em
tirar Costel do meu caminho. Meu meio-irmão era um empecilho para seus planos de me dominar! ”.
Uma lágrima espessa e quente de sangue inundou meu olho direito naquele instante.
Alejandro percebeu e se aproximou.
— Há anos minha mãe e aquele ucraniano arrastam vampiros semimortos para o porão de
nossa casa em Córdoba e os torturam com rituais macabros de possessão. Você deve ser a
vigésima ou trigésima tentativa dos dois. Nunca os vi tentar curar ninguém. Pelo contrário.
Cada um da sua raça que entrou naquele porão só saiu de lá morto. Eu não podia deixar o
mesmo acontecer com você.
As ilhas estavam ainda mais próximas do barco. Dava para ver um cais e mais três
embarcações ancoradas ao lado dele.
— Por que resolveu me ajudar, Alejandro?
Ele foi até a bombordo e ajustou a outra vela. Deu um nó na corda presa ao assoalho do
barco e se voltou para mim.
— Eles estavam muito próximos de conseguir dominar você. Assim como tinham feito com
os outros notívagos, eles estavam usando magia para controlar as suas vontades, para deixá-
la totalmente à mercê de seus desejos. Nenhum outro tinha resistido tanto quanto você
resistiu e eles iam continuar tentando inúmeras vezes até que sua mente se curvasse aos
feitiços.
“No está funcionando. Ella es más fuerte de lo que pensábamos”. Aquela frase dita por Iolanda me
veio à mente. Ela dizia que não estava funcionando o encantamento, mas que ao mesmo
tempo eu era forte demais, bem mais do que eles esperavam.
— O amuleto com que minha mãe a queimou funciona como uma espécie de condutor entre
o mundo físico e o metafísico. Ela estava abrindo uma passagem para que um poder maior
do que podemos compreender entrasse em sua mente e dominasse sua vontade. Eu também
sou versado em magia. Nem perto do que minha mãe e Adon são capazes de fazer, mas o
suficiente para compreender que nada ia poder impedi-los se uma vampira poderosa como
você se tornasse aliada deles. Os dois estão juntos nessa busca por poder há mais tempo do
que eu e você temos de vida e já vi forças poderosas demais serem invocadas naquele porão
para querer que aquilo passasse a fazer parte de nosso mundo.
Tateei mais uma vez a cicatriz em meu peito e senti a da testa arder quando meus cabelos
esvoaçaram sobre ela. Logo em seguida olhei as feridas em meu braço esquerdo e o ouvi
continuar.
— Eles sintetizaram um tipo de extrato à base de alho para enfraquecer vampiros. Seu
organismo deve estar lutando agora para expelir tudo que injetaram em você. Vai demorar
até que esteja completamente recuperada. Seus dons estarão enfraquecidos até que
cheguemos à América do Sul.
— Aquelas ilhas... Estamos indo para a América do Sul?
— Não, claro que não. — Ele pareceu divertir-se com minha ignorância geográfica. — Você
não ficou tanto tempo desacordada para que conseguíssemos chegar à América enquanto
dormia. Saímos das Ilhas Canárias, e aquelas — e ele apontou à nossa frente — são as ilhas
portuguesas de Açores. Tenho um conhecido lá que vai nos ceder espaço numa grande
embarcação que irá nos conduzir por muito tempo até o Brasil, um país sul-americano que
tem aceitado bem imigrantes portugueses.
— O que vamos fazer nesse país... Brasil?
— Nos esconder de minha mãe por ora. Depois, nós vamos deixar o tempo nos dizer.
Eu sentia verdade nas palavras de Alejandro e embora eu tivesse sido enganada muito
recentemente pelo charme misterioso de outro homem, percebi que eu não tinha muita
escolha no momento, além de confiar no espanhol. Eu não podia retornar para a Rússia já
que tinha sido desmascarada lá por Adon e embarcar de volta para a Romênia estava fora de
cogitação, uma vez que eu podia ser localizada pelos informantes do ucraniano ou pior, pelo
próprio Dumitri, que não devia estar nada feliz depois que eu o tinha feito beber sangue
velho. Eu era agora uma fugitiva e meu destino era totalmente incerto do outro lado do
mundo, num país tropical do qual eu nunca tinha ouvido falar. “Oh, Costel. Se pelo menos você
estivesse aqui comigo! ”.
Capítulo 4 – Emboscada em Cusco
ERA DIFÍCIL SABER com precisão, mas segundo o que Alejandro relatou algum tempo
depois, a viagem a bordo daquele barco, entre os Açores e a América do Sul, levou algo em
torno de dois meses. Talvez mais, mas com certeza não menos. Parei de contar os dias por
volta da terceira semana enfurnada em outro porão sujo e malcheiroso, onde os marujos
jogavam todo tipo de resto de alimento consumido lá em cima, bebidas e às vezes até
cadáveres que seriam jogados ao mar posteriormente. Alejandro tinha feito um acordo com
o capitão do barco impedindo que outras pessoas além dele descessem ao porão por minha
causa, e assim, eu tinha sempre a oportunidade de vê-lo, já que ele era o responsável por
trazer e levar as cargas guardadas ali. Usando bastante de sua lábia, ele tinha convencido seu
colega comandante que eu era uma pessoa muito doente, que necessitava de cuidados
especiais longe da luz do sol, e sabe-se lá como, o homem e seus tripulantes tinham
acreditado. Voltei a me alimentar somente dos ratos que passeavam pelo lugar,
banqueteando-se com os restos de comida em fartura ali, mas quando eu os exterminei
todos, comecei a sofrer por inanição. Os homens, mulheres e às vezes até crianças cujos
corpos eram desovados ali, vítimas fatais de doenças que contraíam ao longo da viagem, já
chegavam em estado muito debilitado para que de seu sangue eu pudesse me alimentar e
comecei a acreditar que logo seria o meu corpo lá, junto ao deles.
Num dia de muita tempestade do lado de fora, Alejandro me encontrou quase morta no
chão imundo do barco e ele tomou uma das atitudes mais impensadas a meu respeito.
— Venha. Beba de meu sangue. Não posso deixá-la morrer aqui.
O espanhol ergueu meu tronco com os braços fortes e em seguida segurou minha nuca,
posicionando meu rosto próximo de seu pescoço. Senti suas veias pulsando, irrigadas por
um sangue puro e doce que chegou a me encher a boca d’água.
— N-Não posso... N-Não sei se consigo controlar minha sede... P-Posso matá-lo!
Alejandro olhou-me nos olhos e então, fazendo um gesto de aceitação com a cabeça, falou,
encorajado:
— Confío em ti.
Mesmo que quisesse, eu não pude resistir, e no momento seguinte, estava cravando minhas
presas no pescoço daquele que tinha feito de tudo para me resgatar das garras de sua mãe
bruxa e seu assecla. Eu jamais tinha interrompido uma mordida antes de matar minhas
vítimas e não sabia quando devia parar. Estava faminta, mas não podia simplesmente sugar
todo o sangue de Alejandro. Ele tinha confiado em mim, cedendo o próprio corpo para que
dele eu me alimentasse e não acabasse morta junto ao lixo do porão. Não podia me
descontrolar e acabar com sua vida. “Mas seu sangue é tão doce... Tão delicioso! ”.
Alejandro soltou um gemido segundos antes de eu sentir seus batimentos cardíacos se
acelerarem em excesso, prontos a anunciarem um último tamborilar. Desprendi os caninos
de seu pescoço a tempo de não o matar, mas tinha sido por muito pouco. Ele me deu um
sorriso meio débil antes de cair desmaiado diante de mim, e tive que me afastar, tentada
demais pelo filete de sangue que lhe escorria para dentro da blusa branca que usava.
Demorou para que usasse o treinamento que Dumitri tinha me dado para resistir ao sangue
de uma vítima por mais faminta que eu estivesse, e eu cuidei dos ferimentos de Alejandro até
que ele estivesse restabelecido. Ele tinha aprendido a lição da forma mais dura possível, e
após quase cometer suicídio me deixando morde-lo, o espanhol arrumou outras formas de
me alimentar, sem que tivesse que arriscar a própria vida.
Havia cerca de cinquenta pessoas a bordo do barco quando ele deixou Açores, e mais de um
mês depois, a embarcação comportava menos de trinta. Alguns desses passageiros eram
ladrões e estelionatários que fugiam de Portugal convencidos de que enriqueceriam de forma
fácil no Brasil, iludidos pela promessa de encontrar no país tropical minas de ouro fartas e
riquezas inimagináveis à espera de europeus oportunistas como eles. Depois que restabeleci
minha saúde, dei um jeito de ficar um pouco mais aprazível aos olhos dos homens, e passei a
subir ao deque durante as noites, com a desculpa de que estava me curando de minha
moléstia fictícia. Gostava de estar sempre à vista enquanto Alejandro jogava cartas com
esses contraventores e o velho truque do decote exageradamente aberto sempre funcionava.
Homens eram tolos em qualquer lugar do mundo. Enquanto Alejandro era derrotado
propositalmente no carteado, após ter apostado a mim como último recurso, eu era obrigada
a me deitar com o vencedor. Toda noite eu fazia uma cena diferente diante de todos,
parecendo revoltada.
— Acuéstate contigo. ¿Por qué yo, Alejandro?
— Ahora, cállate, Dasha! ¿Prefieres que me pele com vida em nombre de mi deuda?
Tínhamos tido bastante tempo para que Alejandro me ensinasse um pouco de espanhol, sua
língua materna, nos vários dias que passamos juntos naquele porão fétido, e a mim, aquelas
discussões forjadas sempre me pareciam mais convincentes ditas no linguajar falado na
Espanha do que em russo. Havia um quê de dramático naquele idioma.
O fato é que nenhum dos homens que “ganhavam no carteado” de Alejandro conseguiam
encostar um dedo que fosse em meu corpo. Aquele jogo não servia para mais nada além de
me dar vítimas para que delas eu pudesse me saciar, e funcionou perfeitamente por um bom
tempo. Haviam muitos apostadores a bordo, e meu amigo espanhol era bastante convincente
na jogatina, ganhando muito de seus adversários antes de entrar quase sempre numa “maré
de azar” e perder todo o dinheiro que apostava.
— Perdeu tudo de novo, espanhol. Vai ter que apostar sua namoradinha gostosa outra vez.
Eu fazia outra cena e lá ia eu para mais uma “noite de amor forçada” no porão do barco. O
truque deu certo muitas vezes, até que começaram a sentir falta dos meus amantes
ocasionais, foi quando Alejandro parou de me usar em suas apostas. Naquele ritmo, não
demorariam a perceber minha real natureza e que todo aquele mise en scene não passava de
um engodo para ocultar uma vampira a bordo. Não havia para onde fugir em alto mar.
Nas últimas semanas de viagem até a América do Sul, eu tive que me contentar a me
alimentar dos peixes que os marujos conseguiam pescar e jamais consegui esquecer o gosto
horrível do sangue frio e não-oxigenado das criaturas marinhas. Poucos alimentos
satisfaziam meu paladar depois que eu tinha me tornado uma vampira — na verdade eu nem
precisava mais de alimentos sólidos e só comia por puro hábito —, mas peixe estava no topo
da lista daqueles que eu nunca mais gostaria de pôr na boca se assim pudesse escolher.
— Sinto muito, Dasha. Estamos sem muitas opções no cardápio para você.
Ironizou-me Alejandro certa vez, vendo-me morder um robalo com feição de asco.
— Faria qualquer coisa por um pescoço humano agora!
Ele apressou-se em cobrir as marcas que ficaram em seu próprio pescoço da vez que o mordi
e nós dois rimos em seguida. O peixe não era tão horrível assim, afinal.
Era uma tarde tempestuosa quando meu sono fora perturbado pelo som de uma explosão
violenta que estremeceu toda a embarcação. Comecei a ouvir gritos e lamentos vindos da
parte superior, e de repente, vi o porão encher-se de água, abundante e salgada. Os rangidos
de ferro e madeira se partindo estavam confundindo minha audição extrassensível e não
precisava ser nenhuma intelectual para perceber que o barco estava afundando.
— Dasha! Dasha! Aqui!
Encontrei Alejandro no deque, correndo desesperado vindo da proa. Assim como os demais
sobreviventes do impacto que parecia ter arrancado metade da embarcação, ele estava
encharcado pela tempestade ruidosa que caía sobre todos. Não havia sol, o céu estava
encoberto por nuvens escuras que faziam o dia parecer noite, mas mesmo assim, eu estava
sentindo os efeitos em minha pele. A mão de Alejandro segurou meu braço um segundo
antes de uma nova explosão partir o que tinha sobrado da embarcação em dois e no instante
seguinte me vi sendo projetada direto para o mar. Nós não tínhamos como saber naquele
momento, mas nosso barco tinha virado alvo de forças militares peruanas, chilenas e
bolivianas que se concentravam na costa, prontas a deter o avanço espanhol sobre suas
terras. Naquele ponto, o barco onde viajávamos dava uma volta desnecessária pelo Pacífico,
após um erro de cálculo do capitão, e nós estávamos muito perto do território peruano, o
que fez que fossemos confundidos com inimigos e atacados ainda no mar. O Peru era uma
antiga colônia espanhola, assim como boa parte dos países que formavam a América do Sul,
e os peruanos lutavam naquele momento para impedir que a Espanha implantasse enclaves
na costa de seu país. Não era um bom momento para se estar a bordo de um barco, fosse ele
português, como o nosso, ou espanhol.
— Alejandro! Segure minha mão!
As ondas do mar começaram a nos afastar em meio ao caos e eu tive que usar toda minha
força para ir contra a água e segurar Alejandro. Ainda dava para ouvir os gritos atrás de nós.
Homens, mulheres e crianças começavam a se afogar em meio à tempestade violenta que
caía sobre nós e eu nada podia fazer por eles. O espanhol em meus braços estava tendo
dificuldades para manter-se na superfície, e fazendo-o se apoiar em meu pescoço, ordenei:
— Segura firme. No lo dejes ir!

Eu dependia muito menos de oxigênio do que ele e abusei de minha vantagem pulmonar
para levar Alejandro até a margem. Logo que chegamos em terra firme, larguei-o exausto no
chão e só então pude ver o desastre. O barco tinha sido quase que totalmente engolido pelas
ondas negras do Pacífico e mesmo a quilômetros de distância deles, eu ainda conseguia
ouvir os gritos dos tripulantes e dos passageiros que restavam. Jamais soube se mais alguém
havia sobrevivido àquele ataque, mas tratei de arrastar Alejandro comigo mata a dentro
quando captei o cheiro de chumbo e munição vindo das armas dos soldados que se
certificavam que ninguém havia sobrevivido por terra.
Depois de passar algum tempo em El Callao, próximo à capital peruana Lima, eu e
Alejandro começamos a viajar pela costa do Peru, ainda na esperança de que em breve
pudéssemos enfim chegar ao Brasil. Não sabíamos nada acerca daquele país, e só quando
chegamos em Trujillo, após algumas semanas passando fome e sede em Chimbote, é que
descobrimos o que tinha ocasionado o ataque a nosso barco. Os locais falavam espanhol
devido a colonização da qual só tinham se libertado há quarenta anos, graças à intervenção
do general argentino José de San Martín, portanto, a nossa comunicação era um tanto
quanto clara — mesmo eu não sendo fluente. Eles estavam em meio a uma batalha para
impedir que a Espanha retomasse seu território e com certeza eles estavam abatendo
qualquer embarcação que se aproximasse de sua costa. Era um motivo justo, embora eles
tivessem matado dezenas de vidas inocentes e quase acabado com nós dois no processo.
Trujillo era uma cidade muito aprazível com área total de 1100 km² conhecida como a
“Capital da Cultura do Peru”, e apesar de estrangeiros — com o agravante de um de nós ter
ascendência espanhola — fomos muito bem recebidos por seu povo. Minha temporada na
calorenta Espanha não tinha sido longa o bastante para que eu já estivesse acostumada ao
calor dos trópicos que fazia na América do Sul, e demorei a me adaptar ao clima
insuportavelmente árido que fazia no litoral dali. Nos instalamos em um casebre rústico à
beira-mar que Alejandro conseguira alugar vendendo um cordão de ouro que trazia desde a
Europa no pescoço — e escondido muito bem dos apostadores no barco — e com o que
sobrara do dinheiro, ele conseguiu abastecer o lugar com mantimentos que durariam cerca
de um mês. Para que eu não tivesse que viver de peixe mais uma vez, comecei a caçar
pequenos animais que viviam na região à noite, e assim, começamos a nossa estadia na
cidade.
Embora não soubesse a razão daquilo naquele tempo, sempre numa mesma época do ano,
entre novembro e abril — aproximadamente entre o dia de Santo André, padroeiro dos lobos
e o dia de São Jorge —, eu sentia meus poderes saírem de meu controle, e não foi diferente
enquanto estava em Trujillo. Havia uma linha muito tênue entre o que restara de meu lado
humano e meus instintos animais, e naquele período, eu costumava experimentar o que
aconteceria se eu ultrapassasse aquela linha. Numa noite, após uma caçada insana em que
vitimei de forma violenta algumas lhamas, animais muito comuns naquela região, eu
retornei para casa faminta, mas por outro tipo de alimento. Encontrei Alejandro a dormir
sobre sua cama, nu sob as cobertas. O cheiro de sua pele máscula e a lembrança do gosto de
seu sangue que ficara impresso em minha língua desde que o experimentara, aguçou todos
os meus sentidos, me impelindo a atacá-lo.
— Dasha! O que você--
Ele tentou resistir, mas não teve qualquer chance contra a minha força sobrenatural. Senti o
gosto de seu sangue uma vez mais em minha língua, enchendo-me a boca e eu não
conseguia parar de sugar-lhe o pescoço. Enquanto chupava, senti o falo de Alejandro
enrijecer-se entre as minhas pernas e foi inevitável me encaixar nele. Algo em sentir meu
corpo sobre o dele daquela forma tão animal o tinha excitado, o que resolvi aproveitar.
Contive a mordida antes que o matasse acidentalmente e passamos o resto da noite a foder
violentamente, até que estivéssemos ambos saciados.
Naquele período, entre novembro e abril, inexplicavelmente voltamos a fazer amor várias
vezes, sempre com arranhões, tapas e sangue envolvido. Ele era o primeiro humano com
quem eu copulava depois de Costel, e para um homem comum, ele tinha um fôlego
invejável na cama. Nossa relação era barulhenta e voraz, o que fez com que agradecêssemos
posteriormente em morarmos numa região tão pouco habitada. Se tivéssemos vizinhos,
certamente eles teriam ficado incomodados.
Passamos cerca de quatro meses naquele lugar, até que a região começou a se tornar
insuportável para minhas condições físicas. Os dias eram ensolarados demais, e mesmo
dentro do caixão que Alejandro havia construído para mim, eu sentia como se tivesse sendo
cozida viva. Após muita procura, encontramos um farol abandonado na costa de Trujillo, a
uns 30 km de nossa antiga casa, e com o dinheiro que Alejandro tinha arranjado trabalhando
como pescador, nós conseguimos alugar outra casa próxima da construção que se erguia uns
dez metros do chão. O farol tinha quatro aberturas como janelas que cobrimos com pedras e
cimento, e depois disso, tornou-se meu refúgio perfeito para os dias e tardes quentes do Peru.
De dia, Alejandro ia para alto-mar pescar junto dos colegas da cooperativa de pesca, e ao
cair da noite, eu o fazia companhia em casa, quando não saía para caçar ou para tentar meu
velho truque da mocinha em perigo que atraía bandidos e estupradores. Eu estava bem mais
maltratada e minhas roupas eram bem menos luxuosas que as que eu usava na Rússia,
quando gozava de todo o poder que os rublos roubados por mim e por meu meio-irmão me
ofereciam, mas eu ainda era suficientemente atraente. Seja na Europa ou na América Latina,
os homens sempre se deixavam levar por uma boceta jovem.
Quando completamos dois anos em território peruano, com nosso antigo desejo de chegar
ao Brasil pelo coração do Peru esfriado temporariamente, Alejandro conheceu uma jovem
chamada Pietra, por quem acabou se apaixonando. A menina era filha de um dos pescadores
com quem ele trabalhava e sua mãe era empregada na cozinha da cooperativa. Sem que o
colega de trabalho desconfiasse, uma vez que ele tratava a própria filha como uma joia rara
intocável, Alejandro começou a viver um amor proibido com Pietra, algo que arrebatou
ambos de forma avassaladora. Em nossas noites de conversas e estudos sobre a cultura Inca
herdada pelos peruanos, meu robusto companheiro se dizia irremediavelmente encantado
pela belíssima local de traços indígenas e pele escura de sol. Chegava a suspirar falando
sobre ela, e eu ouvia seu coração tamborilar agitado dentro do peito todas as vezes que ele
repetia o nome Pietra Del Cuzco. Naquele ano, embora meu apetite sexual tivesse
igualmente aguçado entre novembro e abril, eu não o pude saciar com o espanhol, que
preferiu estar nos braços de sua amada peruana.
Conforme os meses passavam depressa, Alejandro descobriu que Pietra era descendente dos
mesmos incas que a cultura peruana citava repetidas vezes em seus escritos históricos e
aquilo atraía incrivelmente o interesse da menina pelas artes arcanas que ele dominava.
Logo, ele começou a ensinar-lhe magia, enquanto ela o fazia aprender mais sobre os
preceitos de Viracocha, o deus de tudo segundo os incas. Hábeis na arquitetura e na
agricultura, os antigos ancestrais de Del Cuzco tinham grande interesse pela magia, o que a
tornou uma excelente aprendiz para Alejandro. Embora o espanhol abominasse a forma
como sua velha mãe praticava a arte mística que ele tinha aprendido ainda na infância, o
rapaz sabia que o caminho escolhido por ele só podia trazer benefícios a quem manipulasse
tais dons. Os dois passavam horas noite adentro praticando, e mesmo quando a menina era
obrigada a se despedir do amante dado o avançado do horário, para não enfurecer o pai
severo, ela continuava praticando sozinha em casa, tendo memorizado todos os
ensinamentos que ele lhe passara.
Foi no final do verão daquele ano que o velho pescador descobriu da pior forma que sua
filha de dezenove anos não era mais intocada, após flagrá-la nos braços de Alejandro em
plena cópula, na cama de sua casa. Uma fuga desesperada precisou ser feita na calada da
noite, e quando os dois bateram à porta do farol onde eu era obrigada a ficar presa todas as
vezes que o casal queria foder livremente em nossa casa, estavam praticamente nus e
esbaforidos.
— Precisamos fugir daqui. Agora!
Nós três passamos algumas semanas em viagem para escapar da ira mortal do pai de Pietra,
e acabamos fixando residência em Cusco, após muito tempo procurando o lugar ideal.
Diferente de Trujillo, Cusco era uma cidade mais urbana nos Andes peruanos e era formada
em grande parte por uma arquitetura colonial espanhola. A antiga capital do Império Inca
era também conhecida por seus ricos vestígios arqueológicos, além de possuir um “clima
favorável à prática da magia”, de acordo com Alejandro e sua aprendiz de feiticeira. Pietra
agora sabia que eu era uma vampira e ajudou o amante a me manter segura da luz do sol
durante os dias quentes dos trópicos. Ali era mais fácil conseguir presas em minhas caçadas
noturnas, mas o que eu não sabia era que nossos dias de tranquilidade na América do Sul
estavam prestes a acabar. Eu e Alejandro também estávamos sendo caçados, e nossa fuga de
Trujillo tinha chamado a atenção de pessoas que nos procuravam há muito tempo: Iolanda e
Adon.
Os dois bruxos haviam desembarcado na América do Sul há cerca de quatro meses,
seguindo pistas diversas que apontavam para o Brasil e aos países vizinhos. Não fora difícil
para que os dois descobrissem que eu e Alejandro jamais tínhamos pisado na antiga colônia
portuguesa que era nosso destino inicial, e dispondo de um recurso milionário bem
empregado na contratação de informantes e caçadores de recompensa, Iolanda ficara
sabendo que seu herdeiro tinha desposado a jovem filha de um pescador em Trujillo contra a
vontade dele, seguindo então seu rastro até Cusco. Eu retornava de uma bem-sucedida
caçada noturna, satisfeita com o gosto do sangue de um corruptor de menores ainda na
boca, quando encontrei Alejandro e Pietra numa batalha mística ferrenha contra a
experiente bruxa. A princípio eu não consegui compreender o que estava acontecendo, mas
quando minha audição captou aquele dialeto desconhecido ser proferido por Iolanda,
enquanto glóbulos de uma energia esverdeada escapava de seus dedos, precipitando-se sobre
o filho e sua namorada, imediatamente eu me vi sobre a mesa de mármore, sendo torturada
por ela e Adon em Córdoba.
— Nunca mais, velha maldita!
Naquele momento, eu me vali da velocidade que meus dons vampiros me proporcionavam e
ataquei Iolanda com toda fúria. Mirei minhas presas em sua jugular, a fim de matá-la com
um só golpe, foi quando senti meu corpo ser erguido do chão e ser arremessado com
violência por metros de distância. Eu tinha sido atirada para longe covardemente por Adon,
que surgira no último segundo para proteger a parceira. Ele parecia controlar algum tipo de
campo de energia invisível que me impedia de levantar do chão. Eu havia caído sobre o
terreno rústico da calçada do outro lado da rua de nossa casa e sentia a força contrária
manipulada pelo ucraniano me esmagar. Morávamos relativamente afastados de outras
pessoas na região e ninguém mais além de mim conseguiu presenciar o momento exato em
que Adon se juntou a Iolanda e os dois juntos conseguiram subjugar Alejandro.
— Achava mesmo que era páreo para o nosso poder unificado, garoto tolo?
Ao dizer aquilo, Adon prendeu os braços de Alejandro com seu poder invisível, enquanto
Iolanda fulminava o próprio filho com uma esfera incandescente arroxeada liberada por suas
mãos. O grito de Pietra ao vê-lo cair desfalecido no chão ecoou na vila onde morávamos há
pouco tempo e a menina se colocou a chorar abaixada sobre o rapaz, incapaz de reagir. Os
dois bruxos voltaram sua atenção para mim, que ainda estava paralisada, jogada na calçada
a metros deles. Iolanda trazia consigo o amuleto metálico com a qual havia me queimado
em suas tentativas anteriores de me dominar por meio de magia, e rosnei em agonia,
tentando me libertar da pressão invisível exercida sobre meu corpo. As pupilas de Adon
brilhavam brancas enquanto ele controlava seu poder e ele já caminhava em minha direção,
certo de que voltaria a me ter sob seu jugo.
— Não devia ter fugido de mim, Alina da Valáquia. Agora terei que ser ainda mais
coercitivo com você.
Senti cada um dos ossos de meu corpo começar a se partir ante a força descomunal daquele
abraço psicocinético, e quando eu achava que ia ceder de tanta dor, um brilho esverdeado
explodiu entre Adon e Iolanda, desequilibrando-os por um segundo. Pietra havia reunido
forças, munida do ódio que estava sentindo por aqueles dois e havia atacado, usando tudo
que havia aprendido com Alejandro nos últimos meses de treinamento. Aquilo não era
capaz de deter os poderosos bruxos, mas tinha feito Iolanda largar o amuleto, que rolou pelo
chão. Aproveitando que Adon tinha perdido o controle momentâneo do campo de energia
que me mantinha imóvel, eu pulei sobre ele, começando a abrir seu pescoço com a força de
meus dedos, cravando-lhe as unhas.
— Tente escapar dessa vez, desgraçado!
O sangue de Adon já começava a jorrar do ferimento, com ele sob mim no chão. Eu estava
em vantagem física, tinha a força, a vontade, estava prestes a acabar com o ucraniano,
quando então Iolanda decidiu agir impulsivamente, sem a posse de seu amuleto, desistindo
de me ter sob seu controle. Ela tinha apenas uma chance de me fazer largar Adon e a bruxa
colocou tudo que tinha numa magia indefensável, que me atingiu sem qualquer chance de
esquiva, mesmo com minha velocidade sobre-humana. Eu fui arremessada para trás com
uma violência ainda maior com que Adon tinha me atingido antes e eu senti meu corpo ser
dilacerado enquanto eu caía. A dor que eu sentia era lancinante, mas ela durou apenas os
segundos em que percebi que minha vida estava abandonando meu corpo. Eu tinha morrido
pela segunda vez.
Capítulo 5 – De volta dos mortos
COMEÇOU COM um zumbido. Depois pareciam sussurros ouvidos através de uma parede.
Então era o tamborilar de dois corações. Um jovem, vigoroso, o outro errático, irregular. O
ruído de martelo e cinzel sobre pedra sólida ecoava no que parecia ser uma câmara oca.
Havia outros sussurros mais distantes, indefiníveis. Podiam ser dez ou vinte. O som de
máquinas mecânicas fazia estremecer as paredes externas. Os sussurros agora eram vozes,
firmes, nítidas. Eram dois. Falavam num idioma anasalado, estrangeiro. Me parecia inglês.
— Ei, Peter! Traga aqui a lanterna. Acho que tem algo dentro dessa câmara.
Estavam perto o suficiente agora para que eu sentisse o odor de suor em suas peles. O velho
cheirava a colônia vagabunda de alfazema. O mais jovem tinha cheiro de leite estragado
dentro das calças e suas mãos tremiam segurando um instrumento pontiagudo de metal.
— Parece um... Um...
— Um cadáver, Peter. Encontramos um cadáver aqui.
Sangue. Um deles estava ferido. Um corte feito por pedra afiada na altura do tornozelo. Suas
vozes ecoavam na câmara. Uma abertura de um metro e vinte tinha sido feita na parede.
Dava para ouvir pássaros do lado mais externo. Árvores agitadas sob vento forte. Era uma
floresta.
— Chame a equipe do Herb aqui. Temos que remover esse corpo dessa câmara.
O batimento cardíaco mais jovem então se afastou e o velho fedendo a alfazema se
aproximou mais. Devia ter uns cinquenta ou sessenta anos, era difícil saber. Seus pulmões
pareciam comprometidos, sua respiração era ofegante. Movia-se devagar, com movimentos
calculados. Puxava o fôlego sempre que falava, aumentando sua pulsação. Seu hálito era
cáustico, a barba e as roupas amarfanhadas cheiravam a tabaco. Era fumante.
— Quem terá sido você, meu amigo? Por que foi guardado tão secretamente nessa câmara
de pedra?
Eu conseguia entender romeno, russo, espanhol e algo de português, mas inglês estava fora
da minha alçada na época. Não conseguia identificar o que ele dizia. Tudo que me restava
eram os sons a meu redor e a percepção de espaço que eles me traziam. Estava
impossibilitada de me mover ou de sequer abrir meus olhos. Sentia como se meu corpo
estivesse preso dentro de uma casca petrificada, uma espécie de casulo. Algum tempo
depois, eles me removeram do espaço que parecia ter uns dois metros quadrados e me
expuseram à luz. Luz do sol.
— ¡Llévalo de vuelta adentro!
Meu corpo reagiu instantaneamente à exposição ao sol e começou a queimar. Os homens ao
meu redor carregaram-me de volta para o interior da câmara e lá dentro suas vozes voltaram
a ecoar no espaço, gélidas, a maioria falando num idioma indecifrável. Embora efêmero,
meu contato com o sol tinha derretido parte da camada seca que recobria minha pele
dilacerada e automaticamente comecei a ter sensibilidade à dor. A equipe ficou o que se
pareciam horas discutindo sobre o que tinham visto do lado de fora após a combustão de
meu corpo e os que falavam espanhol diziam coisas sobre túmulos, câmaras faraônicas e
pirâmides. Uma dupla mais afastada do grupo principal, do lado de fora, sussurrava entre
eles procurando evitar que os demais ouvissem. Era algo sobre uma bruxa da floresta que já
tinha sido vista na região entoando cânticos demoníacos.
— Dicen que ella ha vivido en el bosque durante años, mucho antes de que descubrieran esta
construcción Inca.

Os sons da noite já invadiam a câmara quando voltei a sentir a pulsação errática do velho
fumante e de seu jovem ajudante. O restante da equipe, que parecia ser de exploradores,
estava fora do alcance de minha audição. Os dois tinham entrado sozinhos, querendo saber
um pouco mais sobre seu precioso achado arqueológico. Agora eu já conseguia sentir o
toque em minha pele castigada e os dois passaram a varrer a poeira e as teias de aranha de
cima de mim com um tipo de pincel de cerdas duras. Chegavam com o rosto mais perto do
meu para analisar melhor, dava para sentir sua respiração. Um deles tentou abrir o que tinha
restado de minhas pálpebras. Não conseguiu. Algo como um antigo desejo, uma sede que
precisava ser saciada, começou a me tomar, enquanto ouvia no corpo do jovem Peter sua
circulação sanguínea, fluida feito a água num rio, calma e serena. O ferimento em seu
tornozelo agora estava coberto, mas eu ainda conseguia sentir seu cheiro, chegando a meu
olfato como que trazido por uma brisa fresca.
— Oh, meu Deus! Peter!
Eu não sabia se conseguiria, até avançar em sua jugular, cravando-lhe as presas na pele
laminada de suor e começando a me alimentar de seu sangue. Meu corpo mal respondia a
meus comandos, mas tinha reagido o suficiente para que eu alcançasse Peter. Em desespero,
o garoto tentou afastar minha cabeça segurando firme e empurrando, mas foi perdendo a
força à medida que seu sangue abandonava seu corpo, vindo para o meu. Senti um êxtase
enquanto a vida parecia soprada de volta para dentro de mim, ao mesmo tempo que o
sangue quente do rapaz me queimava a garganta, abrindo um canal que parecia fechado há
muito tempo. Suguei-lhe inteiro. Não sobrara uma gota de seu fluido primário nas veias.
Larguei seu cadáver logo que me senti suficientemente saciada, mas meus músculos e ossos
ainda pareciam petrificados. Qualquer movimento mais brusco me causava dor. Demorei a
notar que o velho tinha fugido da câmara enquanto eu me alimentava de seu assistente.
Concentrei meus sentidos e captei seus passos lentos indo em direção à floresta. A falta de
calcificação num dos joelhos o impedia de correr mais rápido. Eu só precisava deixar que o
sangue de Peter me revigorasse um pouco mais e eu já seria capaz de segui-lo. Precisava de
mais alimento. Precisava de mais uma vítima.
Quando o restante da equipe de exploradores chegou ao local na manhã seguinte, eu já
estava bem longe, escondida numa caverna que encontrei no coração da floresta. Tinha
desaparecido com os corpos dos dois arqueólogos, que mais tarde descobri se tratarem de
cidadãos norte-americanos ao revistar seus bolsos e pertences. O documento na carteira do
jovem Peter dizia que ele tinha vinte e um anos, mas sua data de nascimento não parecia
correta. O ano estava registrado como 1891, o que me colocava num futuro muito afastado
da época em que eu me lembrava de estar. Minha memória estava confusa para que eu
sequer soubesse meu nome, tinha dificuldades para lembrar o último lugar em que estivera e
não fazia ideia de onde estava. “O que aconteceu comigo? Por que meu corpo está tão devastado? ”.
A primeira vez que vi meu rosto refletido na água de um rio que cortava a floresta, eu me
assustei. Meus olhos ainda não conseguiam focar objetos muito distantes e diferente de
minha audição e de meu olfato, que pareciam perfeitos, os demais sentidos estavam bem
fragilizados. Toda a minha pele tinha sido queimada e apresentava agora uma camada preta
e espessa em sua superfície. Não havia cabelos em minha cabeça e meu nariz tinha sido
reduzido a duas cavidades nasais, por onde eu conseguia sentir odores. Tinha feito um
esforço descomunal para abrir minha boca e usar os dentes nos arqueólogos, e minhas
pálpebras só tinham se aberto muitas horas depois de consumir o sangue dos dois. Tocando
meus braços e pernas com as mãos, era difícil sentir a textura e tudo que restara de meu tato
eu usava para apanhar objetos e perceber sua forma. Tinha pouca sensibilidade.
Quando a equipe de escavadores retornou ao monumento onde meu corpo tinha sido
descoberto, eu passei a espreitá-los nas sombras. Ainda não podia confiar totalmente em
minha visão noturna, mas com os ouvidos bem apurados consegui descobrir que estávamos
no Peru e que a estrutura semelhante a uma pirâmide onde eles se espalhavam, era uma
espécie de achado arqueológico recente, que tinha se mantido oculto no meio da floresta por
séculos, desde a queda do Império Inca. Mesmo os colonizadores espanhóis jamais tinham
se deparado com tal riqueza histórica e aqueles homens faziam parte de um grupo estado-
unidense que procurava vestígios dos povos incas na região que eles chamavam de Machu-
Picchu.
Embora tivessem dado pela falta de Henry — o velho cheirando alfazema — e Peter, os
demais homens não pareciam muito preocupados em encontrá-los, dando mais atenção em
localizar outros corpos mumificados dentro da câmara de pedra e recuperar o meu, já que
eles julgavam que tinha sido roubado. Já estava próximo da madrugada quando ataquei
outro membro da equipe norte-americana, arrastando-o habilmente para a floresta antes que
me vissem. O processo de regeneração de meu corpo estava lento e eu precisava de mais
alimento. O homem de pele negra nem teve tempo de reagir e eu o matei enquanto seus
amigos cortavam a mata, abrindo caminho para a passagem de um tipo de carruagem
movida a um motor à combustão. Tinha a noção exata de que nunca tinha visto nenhuma
máquina como aquela antes, o que me causou uma sensação ainda maior de deslocamento
temporal. Enquanto o sangue do americano agia em meu corpo, restituindo vagarosamente
minhas forças, pus-me a seguir os veículos que chamavam de “automóvel”, embora eles se
deslocassem muito mais rápido do que eu podia acompanhar. Com meus outros sentidos
ampliados, pude rastrear parte da equipe de exploradores, o que me conduziu a um centro
urbano em Cusco.
Logo que cheguei à cidade, a achei estranhamente familiar, mas me preocupei em encontrar
um lugar seguro para passar o dia, já que em breve os raios do sol começariam a alcançar a
superfície terrestre. A torre de uma antiga igreja me serviu como abrigo ao longo do dia e
quando a noite voltou a cair, comecei a caçar novas presas. Duas a três vítimas por noite, ao
longo de quase dois meses, começou a instaurar um clima de terror entre os moradores
locais, que passaram a se esconder em suas casas quando o sol se punha. Logo, devido ao
pânico que minha sede desesperada tinha causado, não haviam mais seres humanos em
abundância nas ruas para que eu me alimentasse de seu sangue, me obrigando a voltar
minha atenção às matas e sua vida animal.
Deixei um rastro de morte por onde passei naquele período e enquanto as autoridades de
Cusco buscavam saber o que estava matando pessoas e animais na floresta, eu usava as
manhãs para me esconder, esperando meu organismo vampiro recuperar minha saúde. Num
espaço de tempo de quase um ano, me alimentando sobretudo de sangue, minha pele tinha
recuperado muito de sua antiga aparência, mantendo apenas algumas cicatrizes arroxeadas
onde tinha sido mais afetada. Os cabelos já nasciam no alto de minha cabeça e meu rosto já
podia ser distinguido ante as crostas escuras que antes se acumulavam frente a meu crânio.
Meus contornos femininos voltaram a ser conspícuos após oito meses e todos meus sentidos
tinham voltado a funcionar normalmente. Já era possível reconhecer uma mulher onde antes
havia apenas um cadáver carbonizado ambulante e quando roubei roupas do varal de uma
jovem peruana que morava próximo à igreja onde eu me escondia, eu voltei a me embrenhar
na mata de Cusco, pronta a me encontrar com a tal bruxa de que tanto se falava por ali.
Embora eu não soubesse na época, algo me dizia que ela tinha as respostas para aquilo que
eu tão ansiosamente esperava desde que tinha sido despertada dentro de uma câmara
mortuária.
Machu-Picchu tinha sido descoberta em 1911, em meio a uma floresta que ocultava aquilo
que parecia ser os restos de uma civilização que não existia mais há muito tempo. O Império
Inca sempre despertou interesse da humanidade devido sua disciplina incrivelmente aguçada
para com a agricultura e arquitetura, mas além disso, havia muito a ser descoberto sobre o
lado místico dos antigos habitantes da região onde agora ficava o Peru. Quando a encontrei,
guiada até ela por uma espécie de magia pululante que emitira propositalmente na calada da
noite, a velha bruxa estava sentada diante de uma fogueira, de olhos fechados, em meio a
uma clareira na floresta, em meditação. Parecia mais idosa do que sua real idade provava.
Tinha a pele escura, traços indígenas e fartos cabelos pretos já perdidos entre os muitos fios
grisalhos que desciam do alto de sua cabeça. Vestia um tipo de roupão vermelho-sangue e à
frente dela estava pousado um cajado cheio de fitas e enfeites amarrados em torno do tronco
principal.
— Eu a esperei por muito tempo, Dasha. Sabia que um dia ia acabar encontrando o
caminho de volta.
“Dasha”. Eu me chamava Dasha, e de repente, como que trazida à tona após uma
tempestade em alto mar, vários flashes de memória começaram a me assaltar, me levando a
um salão de festa dentro de um palácio russo, a uma noite de amor com um rapaz magro de
belos olhos azuis numa cama de lençóis indianos e a um jardim muito florido, na companhia
de um homem alto, vestindo veludo.
— Você é a bruxa de que todos falam?
Era a primeira vez em muito tempo que ouvia a minha própria voz. Ela me parecia rouca,
quase cavernosa. Falei em russo, o idioma que mais me era familiar, mas ela podia me
compreender.
— Eu sou o que sou. O que importa é o que a trouxe até mim.
Eu seguia instintos que me mandavam procurar a velha feiticeira que vivia reclusa na
floresta de Machu-Picchu, mas eu jamais consegui explicar a mim mesma o que exatamente
pensava encontrar ali. Tinha retornado do mundo dos mortos há pouco menos de dois anos,
e até então, minhas memórias do passado pareciam um imenso caderno de páginas mal
preenchidas, cheio de espaços em branco e fragmentos de histórias que não se conectavam.
A mulher tomou-me as mãos sem qualquer medo da minha natureza animalesca, como se
eu realmente fosse uma velha conhecida sua, e fez eu me sentar diante dela. A fogueira
queimava a nosso lado, exibindo um brilho esverdeado incomum. Seu semblante era plácido
e seus olhos pareciam escondidos atrás das bolsas de pele que o mantinham semicerrados,
porém, estavam radiantes, vivos. Ficamos em silêncio por um tempo só ouvindo a floresta a
nosso redor. Quando a bruxa voltou a abrir os olhos, ela começou a me contar sua história e
o ponto onde a sua vida se cruzou com a minha.
Depois daquele primeiro encontro, eu passei alguns dias com a mulher chamada Pietra Del
Cuzco nas ruínas do Império Inca, e usando sua magia, aprendida ao longo de décadas de
prática na região mística de Machu-Picchu, ela me ajudou a restaurar minhas lembranças há
muito suprimidas, após o trauma de minha morte física. Foi um processo lento e tortuoso,
mas Pietra foi paciente, gastando muito de sua energia para unificar os fragmentos de
memórias espalhados dentro de meu cérebro. Eu havia sido atingida mortalmente por uma
magia arcana muito poderosa e meu organismo sobre-humano tinha guardado um mínimo
de energia a fim de que eu sobrevivesse, embora não pudesse recuperar meu corpo com a
mesma eficiência. Enquanto eu hibernava, incapaz de recuperar minha consciência, muito
tempo tinha se passado e o mundo tinha mudado radicalmente do lado de fora de minha
cripta. Era difícil conceber tudo que eu tinha perdido naquele período, mas um sentimento
de vingança começou a preencher meu coração ao saber quem tinha me causado todo aquele
sofrimento.
— Depois que você foi atingida pela esfera mística, Iolanda Columbus e Adon Gorky
deixaram muito claro que só me manteriam viva para que eu pudesse testemunhar tudo que
eles fariam contra aqueles que eu amava. A mãe de Alejandro achava que eu era a culpada
pelo ódio que o filho nutria por ela. A mulher o levou embora aquele dia e eu nunca mais
pude ver meu amado espanhol. — Havia tristeza em seu semblante. — No dia seguinte, ela
voltou para Trujillo e incendiou a vila de pescadores onde eu e meus pais moravam, não
deixando ninguém escapar com vida. Sem ter para onde ir, eu cuidei de seu corpo
carbonizado e o carreguei comigo em viagem até aqui. Já tinha ouvido falar das ruínas que
abrigavam a cidade das mulheres escolhidas pelos soberanos incas e que servia como palco
para a adoração ao deus Sol, por isso, seguindo os mapas de escritos antigos de meus
ancestrais, eu acabei chegando à mata que circunda as construções de pedra, encontrando a
câmara onde eu a enterrei.
— Como sabia que eu ia acordar um dia? Não achava que eu estava morta?
— Eu tinha fé. — E ela esboçou um sorriso nos lábios enrugados. — A magia me dizia que
ainda havia uma centelha de energia dentro de seu corpo quando a enterrei, e que de alguma
forma, um dia você ia conseguir retornar à vida.
A jovem e sorridente Pietra que eu tinha conhecido há muito tempo agora era uma idosa de
quase setenta anos que carregava em suas costas uma vida de muitas perdas e abdicações.
Ela tinha passado mais da metade de sua vida solitária em uma floresta perdida no meio do
nada, sonhando única e exclusivamente com o dia em que se vingaria pela morte dos pais,
além do desaparecimento do único homem que amara no mundo. Graças ao poder
incalculável que ela agora controlava, eu tinha recuperado boa parte de minha memória e a
saúde de meu corpo imortal. Quando me despedi dela, jurei que ia retornar para a Europa
um dia e que ia fazer Iolanda e Adon pagarem por tudo que eles tinham feito a nós duas.
— A vingança não trará o conforto que você almeja, Dasha querida. Ela só vai deixar o
pouco que resta de sua alma ainda mais negra. Sei por experiência própria.
Eu precisava seguir meu caminho, apesar de tudo, e nem mesmo as palavras sábias de Pietra
me fizeram desistir de meu intento. Agora que eu tinha recuperado meu vigor de quarenta
anos atrás e minha antiga aparência de uma jovem de dezoito anos, eu já podia usar meus
outros talentos de sedução, o que me ajudou a atravessar o Peru e chegar ao Brasil
finalmente. A antiga colônia de Portugal agora era um país próspero que recentemente tinha
abolido a escravidão e derrubado a Monarquia, tendo proclamado sua República a pouco
mais de vinte anos. Fazia exportação de café em grande escala para o exterior e nos doze
meses em que me refugiei em suas terras, me adaptando à sua cultura e esquematizando meu
plano de vingança, vi o país ser o principal mercado de grãos no mundo, bem na época em
que eclodiu a Primeira Guerra Mundial.
Quando eu retornei para a Europa, o Velho Continente era como um barril de pólvora
prestes a explodir, o que não demorou a acontecer. A Revolução Industrial iniciada nas
últimas décadas do século XIX tinha acirrado os ânimos entre os principais países europeus,
e por uma disputa grande de territórios vizinhos, teve início também o que muitos
historiadores chamaram de corrida armamentista ou “paz armada”. O conflito entre o
Império Austro-Húngaro — fundado após meu período de hibernação em Cusco —, a
Bósnia e a Sérvia, fez com que a Rússia também entrasse na contenda, o que ocasionou
outras unificações e agravou a crise entre os países da chamada Tríplice Aliança — formada
pela Alemanha, o Império Austro-Húngaro, o Império Otomano, a Itália por um tempo e a
Bulgária — e a Tríplice Entente, que entre outros países principais era encabeçada pela
Rússia, França e Reino Unido, tendo como aliados principais a Romênia — somente a partir
de 1916 —, Bélgica, Portugal e Brasil. Era um péssimo momento para retornar ao continente
onde eu tinha vivido boa parte de minha vida humana, mas eu sabia que não teria outra
chance de encontrar tanto Iolanda quanto Adon ainda com vida. Ambos agora deviam ser
quase centenários, mas segundo o que Pietra havia me alertado, os dois há muito tempo
tinham encontrado na magia maneiras de se manterem saudáveis e vigorosos,
independentemente da idade que tinham. Eu sabia que ainda podia me deparar com eles em
pé de igualdade de condições físicas e levei minha busca por vingança até as últimas
consequências.
Nos três anos que se seguiram, até bem próximo do fim da Primeira Guerra Mundial, eu
percorri diversas áreas de conflito na Europa e presenciei muita carnificina. Enquanto eu
hibernava, o homem havia desenvolvido máquinas terrestres e aéreas capazes de feitos tão
incríveis quanto terríveis, e mesmo para mim, que já tinha visto muita matança em minha
vida — algumas orquestradas por mim mesma — a guerra militar era algo bem
impressionante. Percorri diversos países em busca de pistas que me levavam a possíveis
localizações onde tanto Iolanda quanto Adon pudessem ter passado separados, persuadi
uma infinidade de pessoas, matei outras, viajei por lugares que jamais havia conhecido e fui
apresentada a prazeres que igualmente desconhecia, mas jamais voltei a topar com os dois
bruxos. Se eles estavam vivos em algum lugar, ainda praticando a magia terrível que tinha
tirado a família de Pietra e me roubado mais de quarenta anos, ambos estavam muito bem
escondidos, fora de qualquer radar.
Frustrada e cansada, acabei seguindo uma última pista que me levou a visitar o cemitério de
Nuestra Señora de La Almudena em Madri, Espanha. À noite, o lugar era pouco iluminado,
mas fazia muito tempo que a escuridão não era mais um problema para mim. O véu noturno
era meu esconderijo a céu aberto preferido e andei com total segurança entre os
monumentos e sepulcros do vasto território daquele lugar dedicado aos mortos. A pista dizia
que alguém que eu conheci na juventude estava enterrado ali e precisei de alguns minutos
diante de seu túmulo para enfim aceitar a verdade estarrecedora.
— Meu querido amigo espanhol.
Alejandro Columbus tinha morrido em 1909 por causas ditas naturais e tinha sido enterrado
em Madri, onde vivera seus últimos anos ao lado da esposa e de um casal de filhos. Tinha
sido levado de volta para a Espanha pela mãe e por Adon, e pelo que se sabia, jamais tinha
saído do país depois disso. Ele nunca soubera o que realmente tinha acontecido a seu grande
amor Pietra, mas era provável que sua velha mãe o tinha informado que ela a matara junto
de sua família em Trujillo. Desencantado, ele parara de praticar magia e casou-se alguns
anos depois, saindo de Córdoba e indo viver na capital espanhola, a fim de afastar a família
que formara do passado sangrento envolvendo Iolanda. Quando recuperei minhas
memórias, todos os nossos momentos juntos desde a viagem até a América do Sul à nossa
estadia no Peru, ficaram guardados como os acontecimentos mais importantes de minha
vida. “Jamais esquecerei o que você fez por mim, meu querido Alejandro”.
Após a descoberta da morte de Alejandro, eu decidi voltar para a Romênia, onde minha
história tinha começado, e estava pronta para amarrar nós que tinha deixado desamarrados
por lá. A viagem entre os países europeus agora era facilitada por trens e automóveis e eu
não precisava mais levar semanas e às vezes até meses me deslocando de um lugar para
outro. A tecnologia moderna influenciada pela Revolução Industrial ainda me soava de
maneira estranha e tinham momentos em que eu me sentia antiquada com relação aos novos
costumes. Tinha curiosidade em saber o que tinha acontecido com minha família depois que
os tinha abandonado para fugir da Valáquia, para salvar minha vida, e uma das primeiras
coisas que fiz de volta à minha terra, foi visitar a velha fazenda dos Grigorescu, valendo-me
dos meios de transporte atuais.
As gerações que sucederam a minha agora moravam numa cidade bem populosa e com
características menos rurais do que em minha época. A grande atividade econômica do lugar
era a extração de mineral de ferro e bauxita, mas ainda havia espaço para a cultura das
videiras e a fabricação de vinho. Os parentes vivos de meu pai enfrentavam forte
concorrência dos vinicultores da vizinha Moldávia, em especial de Cotnari, um de seus
distritos, mas não tinham desistido do principal negócio da família. A antiga vinícola de
Grigore agora exportava todo tipo de vinho para outras cidades romenas e tinha até uma
marca própria, além de um novo sistema de produção, impulsionado também pela
Revolução Industrial. Quem estava à frente de tudo era Valeriu Grigorescu, um dos vários
bisnetos de meu pai, e quando o vi a primeira vez de longe, agindo como uma compradora
de vinhos em sua loja, era como se tivesse vendo meu próprio pai aos seus quarenta anos de
idade em minha frente. Tudo nele lembrava o velho Grigore, desde a fisionomia severa, o
jeito meio bronco de falar e à falta de cabelos no topo da cabeça. Valeriu parecia ser o único
dos filhos que tinha pulso para dirigir os negócios, enquanto seus irmãos e irmãs preferiam
estudar fora e morar por lá.
— Você é da cidade, moça? — Perguntou ele, fitando-me com seus olhos azuis e me
entregando uma caixa de vinhos. — Tenho a impressão que já a vi por aqui antes.
— Estou só de passagem. — Menti. — Conhecendo melhor o lugar.
— É uma bela cidade. Tenho certeza que ia gostar de morar aqui.
Eu o agradeci, e após carregar a caixa para fora da loja, eu sorri, como se tivesse acabado de
reencontrar o meu próprio pai. “O que teria acontecido se eu nunca tivesse saído da Valáquia e
abandonado meu pai? ”, divaguei, enquanto ia embora.

Grigore e Constanta haviam falecido ainda no século XIX. O casal de filhos que tiveram
juntos depois que eu havia deixado a cidade cuidou da fazenda e da primeira vinícola que
ele suara para lhes deixar como herança. O rapaz assumiu-se homossexual numa época em
que provavelmente ninguém nem usava esse termo, o que fez com que ele logo fosse expulso
da cidade pelos católicos fervorosos — provavelmente descendentes dos carolas que tinham
corrido atrás de mim com pedras e tochas. Coube então à moça perpetuar a família, se
casando com um rico fazendeiro moldavo e tendo quatro filhos com ele. Esses meus
sobrinhos distantes se espalharam pela Valáquia e pela Romênia, e foram os que resolveram
ficar que tomaram conta dos negócios da família. Não era difícil conseguir informações
numa vila tão pequena onde as pessoas bebiam tanto álcool nos bares noturnos, e levei
poucas semanas para montar a árvore genealógica inteira de minha família.
Quando me dei por satisfeita em saber que todos os Grigorescu tinham prosperado após
minha fuga, eu me mudei para a Transilvânia e comprei um castelo fronteiriço com o
dinheiro que acumulei desde que tinha retornado para a Europa. Ainda sabia usar meus
velhos truques de sedução e manipulação, e continuava sendo fácil enganar velhos abastados
perto da morte, convencendo-os a deixarem suas heranças em meu nome. Um desses velhos
era viúvo e sem herdeiros, o que facilitou para que eu assumisse o nome de sua família
quando ele morreu de infarto embaixo de mim, após uma agitada noite de amor selvagem.
Naquele dia, eu passei a me chamar de Alexia Rodchenko e assumi todos os bens que ele
havia deixado para mim.
O sexo era a principal arma que eu tinha para conseguir aquilo que eu almejava, e eram
raros os mortais que conseguiam resistir ao meu charme aliado à minha aparência de uma
eterna ninfeta de dezoito anos. As noites eram incrivelmente solitárias em meu novo refúgio
e as caçadas noturnas passaram a funcionar mais como uma diversão do que somente um
modo de sobrevivência. Um livro sobre um conde vampiro ambientado na Transilvânia,
escrito por um irlandês no final do século XIX, tinha feito muito sucesso no mundo literário,
o que começava a atrair muitos turistas para a cidade agora famosa por “abrigar vampiros”.
Muitos castelos da região viviam repletos de visitantes querendo conhecer o lar do tal
Drácula, e aquilo começou a ser uma vantagem, já que em meio à fantasia, eu podia agir
livremente, tornando as histórias ainda mais verossímeis. Em minhas caçadas noturnas, me
alimentei de muitos turistas desavisados só por farra e não demorou até que os jornais locais
estivessem noticiando ataques ferozes de “animais selvagens” aos visitantes.
Numa noite em que resolvi não sair para me alimentar, minha leitura sobre seres mitológicos
foi interrompida por um farfalhar de asas na torre principal de meu castelo. A minha suíte
ficava diretamente abaixo da torre e fui obrigada a verificar o que estava acontecendo lá em
cima, deixando o livro aberto sobre a escrivaninha na página em que tinha parado de ler. Eu
estava vestida apenas com um robe de seda e logo que subi os degraus de pedra que levavam
até a torre, fui arrebatada por um perfume que eu jamais poderia esquecer. Abri a porta de
madeira grossa com violência e o som da maçaneta se chocando contra a parede ecoou no
espaço fechado. Ele estava de costas para a janela aberta da torre, vestindo um casaco preto
e calças escuras. Os cabelos lisos esvoaçavam ante a brisa que soprava e o farfalhar de asas
era ainda mais audível agora.
— Sabia que se segurasse o meu amiguinho aqui, deixando-o se debater, ia acabar
chamando a atenção do seu ouvido sensível.
Ele então se virou e exibiu um morcego a guinchar, preso por seus dedos pelas pontas das
asas. Aquele sorriso me fez estremecer e no momento seguinte eu o estava atacando, com
fúria. Minhas mãos agarraram seu pescoço mais rápido do que ele pudesse evitar e então eu
o fiz se chocar com força contra a parede grossa da torre. Com o impulso, ele largou o
morcego, que voou meio troncho janela afora.
— Isso é jeito de tratar seu irmãozinho?
Sem pensar, eu desferi um soco contra Costel, que se esquivou com agilidade. Abri um
rombo na pedra onde antes estava sua cabeça e então ele teve tempo suficiente para se
projetar contra mim, me atirando no chão com um estrondo.
— Maldito! Como foi que me achou?
— Você não tem sido muito discreta ultimamente. Todas aquelas mortes de turistas
estrangeiros... As pessoas comentam! Só precisei seguir o rastro de morte.
Me movimentei depressa, e meu próximo soco resvalou em seu nariz. Ele conteve meu
punho sem desmanchar o penteado ou o sorriso canalha do rosto.
— Eu odeio você! ODEIO!
Empurrei-o para trás com os pés e Costel foi arremessado sobre uma pilha de caixas de
vinho vazias que eu armazenava ali. Num pulo já estava em pé novamente, rindo.
— Ei, ei! Achei que fosse ficar feliz em saber que estou vivo. Por que tanto ódio?
Meu robe agora estava todo aberto na frente, o que não me impediu de avançar mais uma
vez sobre ele e atirá-lo contra a porta. O impacto nos fez rolar escada abaixo e quando
atingimos o piso inferior, ele segurou meus punhos com toda força, me prendendo ao chão.
— Você me deixou sozinha todos esses anos. Eu passei o inferno. Eu odeio você!
Eu era mais forte que Costel, mas naquele momento eu senti que não queria mais me libertar
das suas mãos compridas. Sobre meu corpo, me comprimindo no chão, ele continuou
sorrindo, como se o tempo não tivesse passado. Meu meio-irmão estava idêntico ao que eu
me lembrava dele. O rosto fino, os olhos azuis brilhantes, o sorriso largo, o nariz levemente
pontiagudo. Peguei fogo quando ele olhou obscenamente pelo meu robe aberto, analisando
meu corpo nu, o mesmo que ele desvendou pela primeira vez. Foi inevitável eu me entregar
novamente.
Depois daquela noite, meu meio-irmão veio morar comigo no castelo e por algum tempo
voltamos a ser Alina e Costel Grigorescu da Valáquia. O fogo entre nós ardia como se nunca
tivesse sido apagado, mesmo com as trapaças e traições dele ao longo de nossa história.
Voltamos a ser amantes e as noites na Transilvânia passaram a ser embaladas por nossos
sussurros de amor, enquanto trepávamos vigorosamente em meu quarto. O sexo recarregava
nossas energias como mais nada fazia e saíamos para caçar juntos pelas ruas da Romênia
agora infestadas de soldados estrangeiros. A Primeira Guerra ainda não havia acabado e
abater militares de outras nações só por divertimento tornou-se nosso principal esporte
naquele período. A volta de Costel à minha vida deu-me algum significado, uma vez que
minha vingança estava paralisada devido o desaparecimento de Adon e Iolanda, e até que
eles ressurgissem ou eu encontrasse algum outro sentido que valesse a pena seguir, eu queria
estar com ele, como no começo de tudo.
Capítulo 6 – A dançarina húngara
MEU CORPO AINDA estava enterrado em uma câmara mortuária no Peru enquanto a
Guerra dos Balcãs agitava os países do Sudeste europeu. O conflito bélico pela posse dos
territórios remanescentes do Império Otomano fez com que Sérvia, Grécia, Turquia — a
nação sucessora do Império Otomano — e a Romênia, lutassem umas com as outras para
expandir suas fronteiras. Quando retornei para a Europa, o Tratado de Bucareste havia
cedido parte de Dobruja aos romenos — a outra metade tinha ficado para os búlgaros — e
entre a Bessarábia e a Transilvânia, optou-se pela segunda para se manter como parte do
território do país onde eu havia nascido.
Em 1916, enquanto eu vagava pela Europa atrás de vestígios de Adon e Iolanda, a Romênia
se juntou à Grã-Bretanha, França, Rússia e Itália em outro conflito armado contra a Áustria
e a Hungria. A Primeira Guerra Mundial fez com que o Rei Ferdinando I, o governo e o
exército romeno se refugiassem na Moldávia, longe de Bucareste — a sede do governo até
então — e ficasse sob a proteção do czar Nicolau II, da Rússia. Naquele mesmo ano, a
derrota das potências centrais na grande guerra fez com que a Romênia anexasse a seu
território não só a Transilvânia e a Bessarábia, como também Bucovina e Banato, duas
nações que pertenciam a outros países fronteiriços.
Dez anos após meu retorno à Europa, o partido comunista havia sido considerado ilegal na
Romênia, o governo havia suspendido a lei marcial e a censura de imprensa, o Rei
Ferdinando I havia morrido e seu sucessor, o Rei Carol, estava prestes a estreitar relações
com o grupo moldavo fascista denominado Guarda de Ferro, a fim de enfraquecer os velhos
governos e se aproveitar da crise econômica da Europa. Ao mesmo tempo, eu e meu irmão
Costel vínhamos estudando melhores formas de empregar nossas riquezas ainda na
Transilvânia, em nosso castelo, quando uma luz surgiu ao fim do túnel com a crise europeia.
— Por que não entramos no ramo da mineração extrativista, irmãzinha?
Desde que havíamos abandonado a Rússia, após nosso infeliz encontro com Adon Gorky,
fato que mudou nossos destinos completamente, os bens que havíamos adquirido como os
proeminentes herdeiros Vassiliev haviam caído nas mãos de diversos aproveitadores
moscovitas, que de repente, se viram com uma mina de ouro abandonada embaixo do nariz.
Por meios ilegais, era possível estabelecer que tanto eu quanto Costel éramos herdeiros
legítimos de Dasha e Lukyan, e através de diversas falsificações de documentos, escrituras e
licitações — provando que éramos parentes de nós mesmos — conseguimos reaver boa parte
de nossa fortuna avaliada em rublos. Àquela altura dos fatos, ninguém poderia sequer
imaginar que Alexia Rodchenko e Theodor Constantinescu — o nome adotado por Costel
após sua suposta morte — eram na verdade os próprios Dasha Grigorevna Vassilieva e
Lukyan Grigorevich Vassiliev. Não havia qualquer registro de nossa primeira passagem pela
Rússia no século anterior e nossos documentos forjados não abriam qualquer margem de
dúvida sobre quem dizíamos que éramos perante a justiça russa.
Logo que recuperamos o dinheiro dos Vassiliev, aproveitamos a bancarrota do presidente de
uma antiga mineradora extrativista e adquirimos toda a sua empresa, reabrindo alguns
meses depois suas portas agora como a Rassvet — “madrugada” em russo, em homenagem
ao significado de Ruxandra, o nome de minha mãe — a nossa própria mineradora no Norte
da Rússia. Tínhamos estudado todo o processo de extração mineral utilizado pelas principais
empresas mundiais do ramo e sabíamos que aquela atividade estava em franca expansão
pela Europa, o que ia nos render bastante retorno financeiro pelas próximas décadas.
Começamos pela extração do carvão, mas logo estávamos avançando para o níquel, paládio
e até o ouro, o que fez com que a Rassvet prosperasse muito mais do que imaginávamos
num espaço curto de tempo. Nos primeiros anos, eu e Costel — agora o rico empresário
Theodor Constantinescu — acompanhávamos de perto todo o processo de mineração, desde
a fragmentação primária, a granulação, a moagem, a classificação e até a concentração da
matéria-prima. Na segunda metade da década, tínhamos empregados o suficiente para que
só precisássemos acompanhar o lucro com a venda do que era extraído da terra, deixando
todo o resto para que nossos competentes subordinados na Rússia fizessem. Enquanto isso,
aproveitávamos nossa vadiagem no castelo da Transilvânia.
Naquele período de estabilidade financeira, eu me dividi em administrar a riqueza que o
velho Rodchenko havia me deixado de herança e supervisionar o que entrava de lucro com a
Rassvet em um escritório adquirido próximo de Cluj. Ao mesmo tempo, meu meio-irmão
gastava sua imortalidade com as belas cortesãs do Clube Plăcere, o principal bordel de
Oradea. Seu velho hábito de frequentar puteiros e se refestelar com moças de fino trato não
tinha se acabado com o tempo, e como eu bem sabia, seu apetite sexual continuava voraz,
como em sua juventude. Apesar desse Costel lembrar muito aquele que empilhava
prostitutas mortas no chão da cozinha de nosso antigo serviçal Nicolai em Kainski, uma
mudança profunda havia acontecido com meu irmão naquele ano. Ele estava enamorado de
uma cortesã húngara chamada Hajna.
Hajna Kovács era uma moça de vinte anos e belos olhos cor esmeralda. Tinha seios fartos
como bem Costel gostava e do alto de sua cabeça despencavam lindos cachos de fios
dourados. Era de longe a principal atração dos palcos de Plăcere, onde ela se apresentava
dançando czardas com um grupo de violinistas. A dança húngara de ritmo apressado era
apenas uma das atrações que a loira apresentava no palco do movimentado bordel, mas seus
principais talentos eram guardados para o quarto, onde ela demonstrava todo seu potencial
lascivo na presença de seus amantes. Meu irmão passou a frequentar o Plăcere todas as
noites, pagando com dinheiro vivo a companhia exclusiva de Hajna. Diferente da maioria
das mulheres que ele havia levado para a cama ao longo de sua vida como um vampiro,
aquela húngara não precisou ser hipnotizada por seus poderes. A garota também tinha se
apaixonado perdidamente pelo charme misterioso de Costel, o que levou os dois a viverem
um breve caso de amor nas noites de Oradea, próximo à fronteira com a Hungria.
Após minha transformação em uma sanguessuga, eu havia me tornado um ser de pouca
empatia com o ser humano, o que me fazia, na maioria das vezes, sentir quase que um
desprezo por aquilo que eu mesma era antigamente, ainda nos campos das videiras
valaquianas. Eu me sentia oca, indiferente na maior parte do tempo, mas de vez em quando
minha porção humana ainda tinha forças para me fazer ter sentimentos como compaixão,
empatia e até amor. Eu havia sofrido com a suposta morte de Costel quando ainda
estávamos na Rússia e senti também a perda de meu bom amigo Alejandro. Não era
indiferente a todo o sofrimento pela qual Pietra havia passado em sua longeva vida solitária
em Machu Picchu, após a morte dos pais, e certamente entendia o que meu irmão estava
sentindo por Hajna. Assim como acontecia comigo às vezes, Costel estava sendo tocado por
sua fração humana e algo naquela prostituta húngara havia despertado nele a paixão do qual
tanto gozávamos quando éramos apenas os dois irmãos Grigorescu. Eu não tinha como
condená-lo e até o invejava.
No outono de 1928, eu senti que a história estava se repetindo, quando mais uma vez Costel
desapareceu após visitar um bordel. Desde que havia conhecido Hajna, era comum que ele
se deitasse com ela nos quartos do Plăcere durante a noite e retornasse para nosso castelo
perto do nascer do sol, para dormir em seu caixão de mármore carrara. Naquela madrugada,
no entanto, ele não tinha retornado, o que me fez sentir uma pontada de preocupação
quando notei sua ausência no início da noite posterior, logo que despertei de meu sono. Sem
esperar muito, me dirigi até o bordel de sua amante e procurei por ela. Madame Ilka, a dona
do estabelecimento, me informou que a húngara tinha saído na madrugada anterior em
companhia de um dos frequentadores assíduos do Plăcere, e que não havia retornado desde
então.
— Não é do feitio de minhas garotas se evadirem do Clube por muito tempo. Ainda mais na
companhia de um cliente tão importante quanto Theodor Constantinescu.

Após o diálogo com Madame Ilka, a rotunda proprietária do Plăcere, decidi montar guarda
no telhado de um prédio de dois andares em frente ao puteiro e até que os primeiros raios de
sol começassem a surgir no horizonte, não vi qualquer sinal de Costel ou de Hajna. “Não é
possível que vou passar por tudo isso de novo! ”, pensei, me recordando da noite em que
traiçoeiramente Adon havia atingido meu irmão quase que mortalmente para tirá-lo
definitivamente de seu caminho.
Três dias após o sumiço de meu irmão, comecei a imaginar o pior e fui obrigada a persuadir
com violência uma das companheiras de trabalho de Hajna, enquanto ela copulava na cama
com um cliente de ralos cabelos pretos em sua cabeça arredondada.
— Um endereço. Eu preciso de um endereço. — Eu estava estrangulando a garota magricela
de fartos cabelos crespos ainda nua à minha frente. Erguida no alto por minha força
extraordinária, ela se debatia, desesperada. — Antes de trabalhar aqui, Hajna devia morar
em algum lugar. Me diga o endereço.
O homem que exibia uma gordura abdominal indecente fez menção de sair correndo pela
porta ao ver minhas presas saltarem ameaçadoras na boca e fui obrigada a coibir sua fuga,
atingindo-o com um soco que o fez cair desacordado no chão, ainda nu. Os grunhidos da
moça já eram suficientemente estridentes para chamar a atenção das demais funcionárias do
bordel, mas eu continuei pressionando sua laringe.
— Um endereço. Me diga um endereço ou eu acabo com você agora mesmo!
Os olhos vidrados da garota horrorizada começaram a verter lágrimas e eu nem precisei
deixá-la falar para obter aquilo que eu desejava. Os pensamentos dela eram altos e claros
para mim e enquanto ela resmungava, quase totalmente sem ar, descobri onde Hajna
morava antes de se tornar uma das meninas da Madame Ilka.
O condado de Szolnok era localizado cerca de 100 km da capital húngara Budapeste e tive
trabalho para encontrar o sobrado de esquina onde a amante de meu irmão devia estar
escondida. Após frequentar o bordel onde ela trabalhava e interrogar algumas das prostitutas
casualmente acerca do sumiço de Hajna, eu havia descoberto através de minha telepatia que
Shirley, a magricela que eu havia abordado mais visceralmente, era a melhor amiga da loira
dançarina de czardas. O endereço que ela havia me fornecido de maneira indireta era preciso
e eu invadi o local pelo telhado, ouvindo a pulsação acelerada da garota no quarto, a fazer as
malas.
— Está indo viajar, prostituta?
Os olhos verdes de Hajna se arregalaram quando ela me viu despencando do telhado frágil
logo em cima dela, começando a comprimi-la contra o chão rústico do quarto de pouco mais
do que cinco metros quadrados.
— Não me mata, por favor!
A loira começou a chorar assim que minhas unhas começaram a perfurar a carne de seu
pescoço e logo o ar começou a faltar em seus pulmões.
— Onde está Theodor? O que aconteceu com ele?
Os pensamentos de Hajna não eram tão claros para mim quanto os de Shirley e naquele
momento, ela parecia que estava entoando algum tipo de oração em seu idioma nativo. Eu
não conseguia entendê-la por telepatia, então tive que afrouxar a mão de sua traqueia.
— Só vou perguntar mais uma vez. Onde está Theodor e o que você fez a ele?
— Eles... Eles o levaram. — Gemeu ela, começando a ofegar desesperada, puxando ar pela
boca. — Assim que saímos do Clube... Eles o atingiram e o levaram desmaiado.
Costel era quase tão resistente quanto eu, o que me levou a supor que, seja lá quem o tivesse
capturado, devia ter usado algum artifício que o enfraquecesse para poder abatê-lo.
— Quem eram eles? Quantos?
— Cinco... Eles o atingiram com dois tiros de rifle... Me jogaram no chão...
— Quem eram eles?
Voltei a apertar seu pescoço e seu rosto começou a arroxear, como se sua cabeça fosse
explodir a qualquer momento.
— D-Disseram que... Pertenciam a... Uma seita... Ordo Ignis Veni...
Eu não sabia do que se tratava a tal seita e por mais que eu quisesse arrancar toda a verdade
de Hajna de forma violenta, não havia como obter dela a informação que eu necessitava. A
prostituta parecia saber tanto quanto eu sobre os tais raptores. Naquele momento, eu contive
minha ira e a deixei respirar, enquanto me levantava de cima dela. Minha mente começou a
trabalhar imediatamente em meios urgentes de descobrir quem eram os homens que tinham
capturado meu meio-irmão e o que podiam querer dele. “Estariam eles ligados de alguma forma
à Adon ou a Iolanda? Depois de tanto tempo, esses dois bruxos das trevas ainda estariam atrás de
vampiros para dominar e usar a seu bel prazer? ”. Enquanto eu raciocinava, Hajna ergueu-se
cambaleante e jogou-se sobre a mala que estava arrumando na cama logo que despenquei do
teto. Seu coração estava disparado e naquele momento, seus pensamentos a traíram:
— Se essa vadia branquela descobrir sobre o dinheiro, eu estarei perdida!
Eu estava de costas e nem precisei me virar em direção a Hajna para farejar o conteúdo
dentro da mala que ela se apressava em fechar. Embaixo de uma muda de roupas íntimas
femininas, havia uma pilha considerável de cédulas de rublos soviéticos, a moeda usada nos
países pertencentes à Rússia.
— Por que está em posse de tanto dinheiro, prostituta?
Hajna arregalou os olhos mais uma vez a me encarar surpresa e então apertou a mala grande
contra o peito, sentada sobre a cama. As lágrimas escorriam abundantes dos dois faróis
esmeraldas e num súbito ato de desespero, ela precipitou-se para a porta, tentando escapar,
gritando em pensamento:
— Meg fog ölni! Ela lê minha mente! Meg fog ölni!

A garota não tinha qualquer chance de escapar de alguém capaz de se mover como o vento e
num espaço tão pequeno. Eu obstruí a porta antes que ela descesse da cama. Usando uma
das mãos, eu a empurrei de volta para trás e ela rolou aturdida sobre o lençol ordinário,
derrubando a mala no chão.
— Eles iam me matar se eu não o entregasse. Eu não queria...
Hajna voltou a chorar e enquanto ela implorava por sua vida, a ouvi confessar.
— E-Eles me abordaram dois dias antes pela manhã... D-Disseram que sabiam sobre o
segredo de Theodor e que iam me matar se eu não os ajudasse a capturá-lo.
— E você aceitou o dinheiro em troca da vida de Theodor, meretriz? — Indaguei, com um
tom assustador que a fez se tremer inteira, jogada na cama, a me olhar.
— E-Eu sinto muito. Eu não tive escolha.
Eu não senti qualquer remorso ao tirar a vida de Hajna. Após morder sua jugular e
abandonar seu corpo sobre a cama para que os ratos daquele lugar se banqueteassem com
ela, eu deixei o sobrado fétido e imundo, transtornada. Não conseguia raciocinar com
clareza e andei quase a esmo até uma estação ferroviária. O dia já estava quase nascendo e
se eu não quisesse me transformar numa pilha de cinzas antes mesmo de descobrir o que
tinha acontecido com Costel, eu precisava achar abrigo.
Passei aquela manhã nublada amotinada dentro do vagão de uma velha locomotiva sem
funcionamento da estação de trem de Budapeste, e tão logo a noite caiu, embarquei num
expresso dentro do Terminal Keleti que ia de Szolnok a Cluj, na Romênia. De volta a meu
escritório particular, comecei a planejar meus próximos passos para tentar salvar meu irmão
da tal seita e após acabar com uma garrafa inteira de um Bordeaux de ótima safra, me
desloquei até o último lugar onde Costel havia sido visto com vida. Enquanto os transeuntes
passavam por mim na agitada esquina do bordel mais famoso de Oradea, eu tentava captar
com meu olfato hipersensível vestígios deixados nas paredes ou na calçada que pudessem me
indicar o paradeiro de meu irmão. Já tinham se passado quatro dias desde seu rapto e as
pistas, se é que elas um dia haviam existido, estavam frias. Como último recurso, adentrei o
Plăcere mais uma vez, e sentada numa mesa da plateia, enquanto um grupo de prostitutas
apresentava uma coreografia de polca no tablado, agucei meus sentidos sobre-humanos e
minha telepatia na esperança de captar algo que me levasse à tal Ordo Ignis Veni. Enquanto
eu me concentrava em ler as mentes pervertidas dos mais de cinquenta homens que assistiam
ao show no palco, eu fui pega desprevenida por um rapaz que se aproximou rápido de meu
assento e segurou-me pelo braço:
— Eu sei o que aconteceu com seu irmão.
O garoto aparentava ter uns vinte e poucos anos, usava um par de óculos de aro redondo e
uma das hastes pendia meio troncha na orelha. Ele tinha olhos tímidos e sua voz soou
trêmula ao me abordar. Dava para sentir o odor do seu medo de onde eu estava.
— Solte meu braço antes que eu arranque os dedos de sua mão. — Sussurrei num tom alto o
suficiente para que só ele me ouvisse, mesmo entre os assobios e gracejos dos outros
devassos a assistir as garotas dançarem seminuas.
— P-Perdão... Eu não quis --
O suor chegava a abundar em sua testa, por baixo dos cabelos castanhos e crespos. Ele não
conseguia me encarar por muito tempo com seus olhos dourados por trás das lentes
embaçadas dos óculos e naquele momento me levantei, empurrando-o para fora, o fazendo
sair pela porta do bordel. Um grupo de jovens chegava à esquina de forma barulhenta logo
que senti o ar noturno de Oradea encher meus pulmões. Eu os deixei entrar no Plăcere
primeiro e então interpelei meu misterioso e medroso informante:
— Você tem um minuto para explicar o que sabe sobre meu irmão antes que eu quebre todos
os ossos do seu braço. — Agarrei-o pelo úmero e comprimi, fazendo-o falar.
— E-Eu sei que ele é um vampiro... E-Eu o vi exibindo as presas para uma das meninas da
Madame Ilka numa noite... Q-Quero ajudar a encontrá-lo.
Soltei o braço fino do rapaz um segundo antes de partir o osso principal em dois, e em
seguida ele o pressionou, gemendo de dor.
— Eu não devia tê-la abordado daquela forma... Eu pensei que --
— Quem é você e por que acha que pode ajudar a encontrar meu irmão?
Ainda massageando o braço que eu quase havia quebrado, o rapaz que vestia um sobretudo
pardo sobre uma camisa branca de botões disse que se chamava Gavril Georghiev. Ele era
formado em Antropologia e trabalhava como consultor no Museu Nacional de História, em
Bucareste.
— Eu cruzei o caminho de Theodor por acaso numa noite qualquer dentro do Clube. Ele
estava rodeado por quatro garotas da Madame Ilka, chamando todas as atenções das outras
mesas. Ele bebia muito e jogava notas de dinheiro tiradas do bolso, dizendo que se quisesse,
podia comprar todas as prostitutas só para ele. — Os batimentos cardíacos de Gavril já
estavam desacelerando. Ele dizia a verdade. — Eu costumava vir ao bordel apenas para ver
as apresentações de dança... Nunca... Paguei...
— Nunca pagou para foder uma delas, você está querendo dizer? — Indaguei, apressada, no
que ele assentiu timidamente.
— Eu estava saindo de meu assento ao final do show de uma delas, a loira de cabelos
cacheados. — “Hajna”, pensei na mesma hora. — Theodor surgiu do nada em minha frente
e eu acabei me chocando contra seu bíceps. Parecia feito de mármore. Rígido e frio ao toque,
mesmo por dentro da jaqueta que usava.
— Onde está querendo chegar, Georghiev?
— Bem... A partir daquele contato involuntário, e por estranhar a palidez sobrenatural da
pele daquele homem, somado com seu olhar ferino, eu voltei ao Clube nas noites seguintes e
comecei a observá-lo melhor de longe. Ele passou a ter predileção pela companhia de apenas
uma das garotas, a dançarina de czardas, e mais à vontade com ela antes que subissem
juntos para o quarto, não demorou para que ele mostrasse sua verdadeira natureza,
comprovando as minhas suspeitas de que ele era um vampiro.
— Isso não prova muita coisa além de que você é um voyeur nojento! — Irrompi. — Como
descobriu que eu era irmã de Theodor e por que me abordou?

— Eu o segui numa madrugada logo que ele deixou o Plăcere, após passar a noite com a
dançarina húngara. Estava fascinado em saber que havia um vampiro de verdade na cidade e
então decidi arriscar minha própria segurança para descobrir onde ele morava.
“Diferente de você, seu meio-irmão não é dado a muitas sutilezas”. As palavras de Adon naquela
noite no jardim do palácio de inverno soaram como uma certeza absoluta e ecoaram em
minha mente. “Você é um idiota, Costel! ”. Gavril continuou.
— Ele parecia alcoolizado e talvez por isso não tenha me visto segui-lo até o castelo na
Transilvânia. Depois disso, não foi difícil descobrir que a construção estava em nome de
uma mulher russa chamada Alexia Rodchenko desde 1917 e que além dela, somente o
próprio Theodor frequentava o lugar. Quando a vi chegar ao Clube esta noite, percebi a
semelhança entre vocês dois. Os traços, os cabelos negros, os olhos azuis brilhantes... Você
só podia ser Alexia, a irmã dele. Não havia outra razão para que estivesse em um bordel,
destacando-se entre um público majoritariamente masculino, além do fato de que estava
procurando pistas sobre o paradeiro de seu irmão.
Inesperadamente eu empurrei aquele garoto de voz vacilante contra a parede e apertei seu
peito, tirando-lhe o ar.
— Pare de rodeios e diga de uma vez o que aconteceu com Theodor!
Seu olhar assustado ao ser pressionado contra a parede me causou uma sensação inédita de
pena, e então eu o fui soltando aos poucos da compressão torácica. Apesar da abordagem
estúpida, ele não parecia ser uma pessoa má. Parecia realmente que queria ajudar.
— S-Seu irmão foi capturado pela Ordo Ignis Veni. Eles querem dissecá-lo para arrancar de
seu corpo o segredo da vida eterna dos vampiros e eu sei para onde eles foram.
Capítulo 7 – A Ordem do Portal de Fogo
O ESCRITÓRIO DE ANTROPOLOGIA Social onde Gavril trabalhava ficava localizado
numa das últimas salas de um corredor mal iluminado e abandonado, nos fundos do Museu
Nacional de História. O aspecto em seu interior era tão caótico quanto parecia do lado de
fora e um sem número de bugigangas e manuscritos volumosos se empilhavam em estantes
pessimamente organizadas. Enciclopédias de capa dura brigavam por espaço com
quinquilharias de todo tipo e perdi um tempo observando as divisórias de madeira
entulhadas em três das quatro paredes do local que mais parecia um depósito para objetos
obsoletos. Logo que entrei, meu olfato foi agredido por um odor acre de mofo proveniente
do acúmulo de papel velho naquela sala e o rapaz me indicou uma poltrona desgastada
largada num canto, enquanto ele se dirigia até a estante à direita da porta de entrada.
— Deve estar aqui em algum lugar. Me dê um minuto... Um minuto...
Ele havia largado o sobretudo em cima da mesa cocha que usava como escrivaninha e
caminhava de um canto a outro da estante alta que chegava quase até o teto, de olho nas
prateleiras acima de sua cabeça. Olhava um volume, dava uma folheada, o abandonava e em
seguida fazia o mesmo com outro e mais outro. Todos eram muito parecidos. “Como alguém
pode achar alguma coisa nessa bagunça? ”.
— Acho que estamos perdendo tempo aqui. — Me impacientei, ainda em pé de costas para a
poltrona ruída, a olhá-lo andar para lá e para cá.
— Já vou encontrar. Só um minuto. Um minuto...
Tinham se passado cinco.
— Aqui. Achei!
Gavril caminhou da estante desarrumada até a escrivaninha trazendo embaixo do braço um
livro grande com a espessura de um tijolo. Quando ele liberou espaço na superfície da mesa,
jogando para um canto um estojo de ferramentas de escavação, um Atlas de páginas
amareladas e seu sobretudo, o livro com capa de couro foi colocado com cuidado na lâmina
de madeira, como se algo pudesse despertar de dentro dele caso fosse derrubado por
descuido. Eu me aproximei da mesa, olhando incrédula para o jovem antropólogo, que me
indagou:
— Você sabe o que é um grimório?
Acenei que não com a cabeça, apoiando minhas mãos na mesa e sentindo-a pender para um
lado, com um dos pés meio troncho.
— Um grimório é basicamente um livro de feitiços, rituais e encantamentos utilizado por
praticantes das artes místicas. — Ele ajeitou os óculos acima do nariz e continuou falando,
abrindo o livro em uma página marcada. — Eu consegui esse exemplar em uma viagem que
fiz para a Inglaterra, há dois anos. Aqui está o que eu queria mostrar a você, Alexia. — E ele
apontou para o título escrito em uma tipologia irregular.
— Não consigo ler. Em que língua está escrito?
— Hebraico, a primeira língua falada após o Pecado Original. — Franzi a testa, em dúvida.
— Bem, aqui está escrito “magia enoquiana”. Esse capítulo descreve com riqueza de
detalhes alguns rituais de evocação de criaturas angélicas usados a partir do século XVI por
dois ocultistas que cunharam esse termo magia enoquiana, embora eles preferissem chamar
de magia angélica. — Eu estava ainda mais incrédula.
— Angélica? Você está querendo dizer que eles evocavam anjos?
Gavril me olhou com certa curiosidade, e vendo meu desdém, rebateu:
— Você e Theodor são vampiros, assim como o cara que mordeu vocês dois. Devem haver
centenas, talvez milhares de outros seres fantásticos espalhados pelo mundo. Por que é tão
difícil acreditar em anjos?
Ele tinha um ponto. Eu o deixei continuar sem mais desconfianças.
— Há poucos indícios de que os dois descobridores desse tipo de magia ou seus subsequentes
discípulos a tenham usado para outros fins além de conjurar criaturas celestes e absorver
seus conhecimentos, mas a partir disso, eu comecei a estudar algumas seitas que
desvirtuaram os rituais ensinados pelos angelicais e acabaram estreitando ligações com o
outro lado, o mais maligno.
— Demônios?
— Exato. Leia isso. — Gavril me entregou um manuscrito enrolado feito um pergaminho
que ele pegou da gaveta da escrivaninha e eu consegui ler no papel o nome da seita que
Hajna havia mencionado:
— Ordo Ignis Veni. Quem são eles?
— A Ordem do Portal de Fogo. São ocultistas que usaram pela primeira vez os
ensinamentos da magia de Enoque para se comunicar com o Sheol, com o limbo, ou mais
vulgarmente dizendo, o mundo dos mortos. — O rapaz falava depressa, quase sem pausas
entre as frases. — Eles acreditam que um dos segredos da vida eterna está em aprender a
manipular o espírito após a morte física, algo como obter o controle da essência do ser
humano e possibilitar uma reentrada em nosso mundo mesmo após o fim da estrutura
carnal.
— Mas você disse que eles se comunicavam com o outro lado, com o inferno. — Lembrei.
— Sim, eu disse. O Sheol é apenas um dos estágios que eles podem alcançar, porém há
outros. Um bruxo bem treinado é capaz de evocar espíritos malignos para que eles lhe
concedam poderes ilimitados a fim de que eles possam vencer seus adversários. Esse contato
com o oculto é feito através da abertura de portais entre mundos, daí o nome da seita.
“O amuleto com que minha mãe a queimou funciona como uma espécie de condutor entre o mundo
físico e o metafísico. Ela estava abrindo uma passagem para que um poder maior do que podemos
compreender entrasse em sua mente e dominasse sua vontade”. Me lembrei imediatamente das
palavras de Alejandro, quando ele me explicou o que Iolanda havia tentado fazer comigo
após eu ser aprisionada por Adon naquele calabouço em Córdoba. Estava mais do que
convencida de que a Ordem do Portal de Fogo ia tentar fazer o mesmo com Costel.
— Precisamos localizar meu irmão antes que eles usem esse conhecimento para dominar sua
vontade. Eles poderiam se tornar invencíveis com alguém possuindo os dons de Theodor a
seu lado.
— Não creio que eles queiram simplesmente dominar a mente de seu irmão, Alexia. —
Disse ele, chamando a atenção mais uma vez para o pergaminho em minha mão. — Esse
documento diz que a Ordo Ignis Veni busca a imortalidade desde sua criação e que a seita
detém um poder financeiro muito grande para usufruir de todos os meios que desejar para
conseguir o que quer. Depois de Enoque, o primeiro imortal de que se tem notícia, os
vampiros são as criaturas mais próximas da eternidade a pisarem na Terra. A Ordem vai
fazer de tudo para escavar bem fundo seus segredos tão logo bote a mão em um.
Embora eu não soubesse na época, meu novo aliado fazia parte de uma rede secreta de
informação que atuava em toda a Europa a fim de desvendar o oculto e tudo aquilo que
fugia da normalidade mundana. Ter uma vampira de verdade a seu lado era provavelmente
um dos momentos mais extraordinários da vida do jovem Gavril e ele demonstrava isso
tentando saber mais sobre meus dons, me enchendo de perguntas irritantes ao longo do
caminho. Eu tinha comprado um Ford Model A recém-saído da fábrica para minhas viagens
curtas entre a Transilvânia e meu escritório em Cluj, e tão logo deixamos o Museu Nacional
para trás, indiquei que meu motorista particular, Fabrice, nos levasse até um endereço em
Galati, perto da fronteira com a Ucrânia, onde Gavril afirmava ser uma das sedes secretas da
Ordem.
— Minha rede de informação descobriu esse endereço após um dos membros se infiltrar na
Ordo, se fazendo passar por um novo iniciado. — Disse ele cheio de entusiasmo, mas ainda
com o mesmo tom gaguejante, nervoso.
Seguindo minha orientação, Fabrice estacionou o automóvel uma quadra antes do endereço
e eu segui o restante a pé, com Gavril a meu lado.
— Fique atrás de mim. Não quero que se machuque. — Indiquei, empurrando o rapaz para
trás, com truculência.
A tal sede ficava num depósito de tecidos para alfaiataria no centro de Galati e já pelo lado
de fora, não aparentava em nada com o que deveria ser o esconderijo de uma seita satânica.
Uma neblina espessa ajudava a nos ocultar àquela hora da noite do outro lado da rua e atrás
de um poste de iluminação, agucei minha audição a fim de captar sinais de vida dentro do
armazém. O único som que eu ouvia era o dos dentes de Gavril, que batiam atrás de mim
descompassados. O garoto estava com frio tanto quanto com medo da situação de risco a
que estava se expondo, mas não titubeou em me acompanhar, quando escalei o muro do
local e me certifiquei que não havia uma viva alma do lado de dentro.
Na noite seguinte, Gavril trouxe outro endereço conseguido com seus informantes para que
seguíssemos a pista, e Fabrice nos levou a bordo do Ford desta vez para um prédio em
Bacau, a 44 km da Moldávia. O lugar ficava escondido entre dois edifícios de arquitetura
bizantina e passava desapercebido por transeuntes que porventura caminhassem pela calçada
que cruzava a rua principal. O rapaz trazia consigo um revólver que tinha comprado de um
contrabandista búlgaro em Bucareste e sua resposta quando o interpelei sobre ele saber usar
uma arma de fogo foi surpreendente:
— Nunca tinha segurado uma dessas antes na vida.
Invadimos o prédio pelos fundos, e segui na dianteira a fim de me certificar que Gavril não
fosse ferido caso algum membro da seita fosse versado nas artes místicas. O andar térreo era
formado por uma galeria de salas e na última delas, após um corredor lateral, nós
encontramos dois homens que se precipitaram a fugir tão logo nos avistaram. Falando entre
si num idioma que eu desconhecia, os dois me viram surpresos ganhar dianteira na corrida e
eu quebrei a rótula do primeiro dando-lhe um pontapé. Em agonia, ele caiu no chão
segurando o joelho arrebentado, enquanto eu subjugava seu colega, pressionando-o com o
rosto contra a parede do corredor, segurando seu braço para trás.
— Não estou com paciência para jogos de adivinhação hoje, amigo. Fale o que sabe sobre a
Ordo Ignis Veni ou eu farei com você algo muito pior do que destroçar seu joelho. — O outro
dava um grunhido, se revirando no chão de tanta dor. Aquilo incentivou o colega a soltar a
língua.
Os dois homens não tinham mais do que vinte e cinco anos cada um e eram novatos na
Ordem. Como uma forma de ganhar a confiança dos líderes da seita, ambos tinham aceitado
montar guarda em uma das bases àquela noite, certos de que nada de incomum fosse
acontecer dentro ou fora do prédio. Nenhum deles era versado em qualquer arte mística e
ainda estavam sendo testados como membros reservas, antes da efetivação definitiva. Não
possuíam qualquer informação sobre o paradeiro de Costel.
A segunda semana sem notícias de meu irmão foi a mais cruel de todas, e de repente,
comecei a acreditar que não conseguiria mais salvar Costel das garras de seus raptores,
passado tanto tempo. Eu conhecia bem o que era ser torturada e queimada viva por bruxos
malignos que tentavam dobrar minha vontade psíquica e sabia também que as defesas
mentais de meu irmão podiam não ser tão fortes quanto as minhas. Adon e Iolanda tinham
tentado ferrenhamente dominar minha mente com o auxílio de sua magia arcana e eu só
tinha conseguido sair com vida daquele porão por causa da ajuda de Alejandro. Eu tinha
passado horas sob o jugo dos dois e carregava até aquele momento as cicatrizes que o
amuleto incandescente havia me causado na pele. Costel já estava preso há uma semana. Os
danos agora podiam ser irreversíveis. “Oh, meu irmão. Aguente firme, por favor! ”.
Alguns dias depois, a rede de inteligência do qual Gavril fazia parte nos conduziu a um
terceiro endereço localizado na região da Subotica, dentro do território da antiga Iugoslávia
— atualmente dividida entre a Bósnia e Herzegovina, a Croácia e Montenegro — e lá, nós
dois nos encontramos com outro membro da chamada “A Teia”, que ia nos ajudar a chegar
até o local indicado. Chamando a si mesmo de Marco Polo, o sujeito era um grandalhão que
se destacava em uma multidão e que não levava o menor jeito de agente secreto. Logo que
desembarcamos do Ford, deixando Fabrice na retaguarda mais uma vez, nós vimos Marco
encostado num muro a fumar um cigarro. Ele usava uma boina cobrindo os cabelos loiros
ensebados e exibia os braços musculosos pelas mangas arregaçadas da camisa curta. A calça
estava presa a um suspensório vermelho e o rosto quadrado parecia não ver uma lâmina de
barbear há mais de um mês.
— Eu já contei. Tem pelo menos uma dúzia de fulaninhos do lado de dentro. — E Marco
apontou para o prédio a uns dez metros da esquina onde estávamos, falando em romeno,
mas com um sotaque italiano carregado. — Desta vez nós encontramos os cabeças da
Ordem do Portal de Fogo.
Ele falou olhando em direção a Gavril, que tinha quase a metade da sua estatura e parecia
um menininho magricela a seu lado. Logo em seguida, ele me encarou, e deu uma última
tragada no cigarro, passando a língua lascivamente nos lábios. Me senti despida, embora
estivesse usando calça, botas e um casaco por cima de uma blusa fechada até o pescoço.
— Precisamos que alguém vá pelos fundos caso os canalhas tentem fugir. — Falou Gavril,
com o costumeiro tom assustado saindo da boca.
Marco abaixou-se e meteu a mão por dentro de uma bolsa larga que descansava sob seus
pés. Tirou de lá uma submetralhadora Thompson e a exibiu feito um mastro em riste.
— Deixe comigo. Nada vai passar por mim e pela minha Tommy Gun aqui. — Em seguida, o
italiano beijou o cano da arma como se ela fosse sua amante. Seria aquele um sinal de que o
que ele tinha dentro das calças não era tão grande assim a ponto de ele querer compensar
exibindo uma arma de cano longo como uma conquista amorosa?
Eu sabia que os riscos que corríamos naquela missão de resgate eram altíssimos e que tudo
poderia ir para o Diabo caso os homens no interior daquele prédio fossem minimamente
versados em magia. Iolanda quase havia acabado comigo com uma única esfera mística
lançada de suas mãos, o que me custou mais de quarenta anos de recuperação lenta. O
próprio Costel não tinha se saído melhor ao enfrentar Adon no mano a mano, sendo atirado
num rio e passando mais de uma semana ao fundo dele, sendo devorado por peixes. Uma
dúzia de magistas capazes de manipular energias destrutivas das mãos era mais do que
suficiente para eliminar a mim, Gavril com seu revólver .38 e Marco Polo com sua Tommy
Gun, todavia, eu precisava salvar meu irmão, não importava quão grandes eram as barreiras
entre mim e ele.
Valendo-me de minha resistência e força física sobre-humana, eu bati forte na porta de
entrada, botando-a no chão com um só golpe de minha mão direita. Sobressaltados com o
estrondo, os oito homens e as quatro mulheres no interior do saguão levantaram-se de suas
cadeiras rapidamente, onde antes pareciam participar de uma reunião de bruxos. A fim de
impedir que eles conseguissem reagir a tempo de deter nossa entrada explosiva, eu
impulsionei os músculos de minha perna e saltei sobre os dois primeiros membros mais
próximos da porta. Antes que eles pudessem resistir, eu choquei suas cabeças com força
contra a superfície da mesa arredondada em que estavam sentados ao redor e os tirei de
ação. Um grito anteviu um clarão esverdeado que passou a milímetros do meu rosto.
— Noctem daemonium!
Outros três deles gritaram a mesma frase em latim, me chamando de “demônio da noite” e
novos clarões luminosos foram direcionados contra mim, tentando me atingir. Movendo-me
o mais rápido que eu podia, consegui atingir mais um deles, encaixando um chute forte bem
em seu peito, fazendo-o expelir sangue pela boca.
— Onde está meu irmão, seus assassinos?
Naquele momento, Gavril engatilhava seu revólver e ele começou a atirar em direção a um
dos membros, um de pele negra que parecia ser o líder deles. O garoto fracote mal conseguia
conter o coice que a arma dava a cada disparo, e logo estava sendo dominado por duas das
mulheres que faziam parte daquela reunião. Marco Polo fez uma entrada triunfal pelos
fundos do saguão do prédio e sua Thompson começou a cuspir chumbo em direção aos
adversários vestidos com toga vermelha. Dois deles foram fulminados sem qualquer esquiva
e já caíram no chão sem vida. A metralhadora deu uma engasgada após o ímpeto inicial e
Marco foi obrigado a se jogar atrás de um balcão ao fundo do salão largo, se protegendo de
uma torrente de glóbulos esverdeados direcionados contra ele. A energia liberada por uma
trinca de conjurações silenciosas de feitiço começou a rimbombar na parede reforçada do
balcão, ameaçando derrubá-la. Aproveitei aquele momento de distração para render mais
três componentes da Ordem, quebrando-lhes os braços com minha força.
— Costel! COSTEL!
No calor do momento, chamei meu irmão por seu nome real, tentando fazer com que ele se
pronunciasse seja lá onde estivesse no interior daquele prédio, mas não havia resposta. As
duas mulheres estavam prestes a matar Gavril ali no chão, à mercê delas. Um punhal tinha
sido sacado de uma bainha e o metal já estava sendo direcionado para o peito do rapaz
quando intervi velozmente. Com um só golpe, eu derrubei as duas, mas naquele momento
senti algo queimar minhas costas. Marco Polo já havia se recuperado e desengasgado sua
Thompson, que voltou a disparar contra os elementos sobressalentes. Mais três deles foram
alvejados, e sozinho, o italiano conseguiu render também o líder da seita, aplicando-lhe um
cruzado de direita e o jogando desnorteado em cima de uma cadeira.
— Alexia! Suas costas!
Gavril me alertava sobre o punhal de prata cravado bem próximo de minha coluna vertebral
e eu já começava a sentir minhas forças se exaurirem pelos efeitos do metal nocivo a
vampiros. Pedi que ele fosse rápido:
— Arranque de uma só vez. Não hesite!
O garoto foi corajoso e puxou com força o punhal pelo cabo, jogando-o de lado embebido
em meu sangue. Minhas pernas fraquejaram na mesma hora em que senti a arma pontiaguda
ser expelida do meu corpo e ele me amparou antes que eu fosse a nocaute. Naquele mesmo
instante, Marco surrava o homem de pele negra, procurando fazê-lo falar:
— Onde está o vampiro? Diga logo, seu monte de estrume!
Os golpes ecoavam no rosto do homem, que não parava de sorrir nem por um segundo
enquanto repetia:
— O poder do portal é invencível. Nós somos imortais.
As outras duas mulheres se rastejavam no chão atingidas pelas balas da Tommy Gun de
Marco e mesmo gemendo de dor, elas engrossavam o coro:
— O poder do portal é invencível. Nós somos imortais.
Até mesmo aqueles que tínhamos tirado de ação já se levantavam de onde haviam sido
jogados e repetiam aquelas frases, quase em uníssono:
— O poder do portal é invencível. Nós somos imortais.
— O poder do portal é invencível. Nós somos imortais.
Fabrice nos viu de longe correndo para escapar dos remanescentes da seita que vinham em
nosso encalço e o siciliano silencioso foi rápido em descer do Ford, abrir as duas portas e nos
ajudar a embarcar. Chamas esmeraldas explodiam ao nosso redor, ameaçando nos fulminar.
Quando o motorista deu a partida no veículo, fazendo-o disparar em potência máxima pela
avenida a nossa frente, um dos espelhos retrovisores foi arrancado com violência após um
estrondo metálico assustador que fez a lataria estremecer. Gavril estava sentado no banco do
passageiro, abaixando a cabeça ainda ouvindo as esferas de energia explodirem do lado de
fora do carro e eu estava no banco de trás, deitada no colo do grandalhão italiano, prestes a
desfalecer de dor. A prata tinha chegado à minha corrente sanguínea.
— Fanculo quella macchina! Dai! — Berrou Marco Polo a Fabrice, mandando que ele
acelerasse ainda mais o carro.
— L'auto va a tutta velocità, diavolo! — Respondeu o motorista na mesma língua, dizendo que
o Ford já estava dando tudo que podia.
Depois daquele diálogo cheio de testosterona entre os dois italianos, eu desmaiei e só fui
acordar algum tempo depois.
Eu estava deitada de bruços em uma cama de colchão duro e lençóis ásperos quando
despertei. Sentia minha cabeça latejar como se tivesse levado uma surra de um boxeador
habilidoso e quando procurei me movimentar, senti minhas costas arderem. O quarto onde
estava era escuro e decadente. As paredes apresentavam uma tinta verde desgastada, havia
mofo nos cantos do teto e uma película de poeira na superfície dos poucos móveis dispostos
sobre o chão gasto. Havia um conjunto de três gavetas ao lado da cama, um armário de duas
portas — com uma delas estropiada, entreaberta — e uma cristaleira vagabunda perto da
entrada. “Onde eu estou? ”.
— Buona notte, princesa. Como está se sentindo?
A voz do italiano foi sussurrada da minha direita e ao me virar, eu o vi sentado com as
pernas bem afastadas em uma poltrona e o tronco projetado para a frente. A luz do luar que
entrava pela janela banhava os músculos de seu braço num tom de azul claro. A camisa
estava aberta até a terceira casa dos botões. Ele tinha um peitoral incrível.
— Quanto tempo eu apaguei?
Eu ainda estava aturdida e só então percebi que estava sem blusa, com os seios nus. Marco
os encarou sem nem disfarçar antes que eu os pudesse cobrir com um dos braços.
— Quase doze Horas.
— Minha blusa... O que --
— Foi necessário. — Apressou-se ele em explicar. — A prata estava sendo levada para sua
corrente sanguínea. Suguei o máximo que consegui e cuspi fora. O ferimento estava
infeccionado. Agora você vai ficar bem. Eu cuidei de tudo.
Minha blusa estava jogada num canto da cama de casal espaçosa e desconfortável. Virei-me
de costas para Marco e me vesti em seguida. “Está escuro, ele não vai ver muita coisa”, pensei.

— O que aconteceu depois que saímos daquele inferno?


— Seu motorista pisou fundo e nós conseguimos escapar por um triz. Estamos num hotel
barato em Craiova, perto de Bucareste. Gavril está lá embaixo montando guarda para o caso
de alguém ter conseguido nos seguir. Estamos seguros por enquanto.
A missão de resgate de Costel tinha sido um fracasso total e não só tínhamos saído feridos,
como não tínhamos encontrado o menor sinal de meu irmão desaparecido. A Ordem do
Portal de Fogo era bem mais poderosa do que supúnhamos e a maioria de seus membros era
tão perigosa quanto Iolanda e Adon juntos. Eu tinha arrastado dois humanos comuns para
um abatedouro e tinha sido muita sorte que nenhum deles estivesse morto após aquele
ataque impensado. A recuperação física daqueles homens e daquelas mulheres estava muito
além do que eu esperava, o que começava a me fazer crer que talvez eles já estivessem de
posse da fórmula da imortalidade. “E se eles dissecaram meu irmão e conseguiram arrancar dele o
segredo que torna os vampiros as criaturas imortais que são? ”. Aquele pensamento me assolou o
restante da noite e também a madrugada. Eu precisava encontrar Costel, nem que fosse para
enterrar seus restos mortais.
Na semana seguinte, meus talentos como empresária foram requisitados em uma mina de
carvão na Rússia e eu tive que viajar para Moscou para representar a Rassvet mais uma vez.
Agora que Costel havia desaparecido, todas as funções de supervisão da empresa tinham
recaído sobre mim, o que me manteve ocupada por um bom tempo no país gelado. Era
inverno na Europa e apesar de aquilo significar cada vez menos luz solar e menos
desconforto durante o dia, a neve abundante que caía naquela época do ano dificultava
bastante o transporte entre as cidades, mesmo com trens e automóveis à disposição.
Eu estava na sede da Rassvet em Moscou resolvendo algumas pendências jurídicas da
mineradora, quando recebi um telegrama endereçado a mim, escrito por Gavril. Ele e a Teia
haviam encontrado enfim o paradeiro de meu irmão e a mensagem me mandava embarcar
imediatamente para Donetsk, no país vizinho onde eu estava, a Ucrânia.
A temperatura abaixo de zero na Rússia estava dificultando bastante o bom funcionamento
do transporte público e eu só consegui chegar à Estação Ferroviária Paveletsky quatro horas
após deixar a sede da Rassvet. Havia um trem que cruzava Moscou com parada em Donetsk
e eu embarquei no primeiro deles que parou na plataforma. A viagem de quase mil
quilômetros levou bem mais tempo do que eu esperava, e eu tive que suportar os efeitos da
luz do dia refletindo em meu rosto pela janela daquela lata sobre trilhos durante um longo
período. A neve que caía cobria grande parte dos raios solares que teimavam em escapar por
entre as nuvens espessas e mesmo com aquele visual de noite em pleno dia, me senti
enfraquecida quase que a viagem inteira, cozinhando dentro de meu casaco de frio, do
sobretudo negro, da calça grossa e das botas que usava.
Encontrei Gavril e Marco Polo a me esperarem na estação de trem de Donetsk e com eles
estava uma linda francesa de pele negra e de sorriso fácil. Seu sotaque era encantador,
mesmo ela arranhando o romeno, idioma com a qual mais costumeiramente nos
comunicávamos entre si.
— Me chamo Jacqueline Bazelaire. É um prazer enfim conhecer a senhora!
Era a primeira vez que alguém me chamava de senhora e embora àquela altura de minha
vida eu realmente fosse uma mulher quase centenária, aquilo me soou ofensivo.
— Esqueça o “senhora”, Jacqueline. Me chame apenas de Alexia, oui?
— Oui, pardon! Não vai se repetir.

Jacqueline era uma moça mirrada de um metro e sessenta que era especialista em armadilhas
e explosivos. Na Teia, ficava sempre a cargo de missões com alto teor destrutivo e sua
presença ali parecia querer dizer que, tanto Gavril quanto Marco, queriam soterrar de vez a
Ordem do Portal de Fogo debaixo de seu esconderijo. Filha de um militar de alta patente no
exército francês e de uma camaronesa repatriada, a garota sempre fora versada em muitos
idiomas devido as mudanças constantes de país que fazia para acompanhar o pai general.
Além do francês e do romeno, ela também dominava fluentemente o inglês — segunda
língua oficial de Camarões —, o russo, o espanhol e até mesmo um pouco de italiano. Ela
parecia encantada em estar ao lado de uma vampira como eu e não era raro notá-la a me
encarar boquiaberta de vez em quando, enquanto eu dialogava com seus companheiros. Eu
estava me tornando uma espécie de ídolo para aquele grupo.
A cor da pele de Jacqueline não demorou a chamar a atenção pelas ruas esbranquiçadas de
neve da friorenta Ucrânia, enquanto nos deslocávamos até o endereço de um dos
esconderijos da Ordo. Praticamente não haviam pessoas negras naquela parte da Europa e
muitos aristocratas russos e ucranianos ainda enxergavam como um insulto pessoal a
abolição da servidão de negros e camponeses, que nos dois países, havia sido promulgada
em 1861 por Alexandre II. Olhares cruzados e viradas de rosto para a francesa foram
constantes em todo o trajeto, o que não a abalou emocionalmente. Ela sabia que seu tom de
pele não a tornava pior do que ninguém e que seu valor como pessoa não podia ser definido
por uma cor.
— Au diable! — Xingou ela, próximo de chegarmos a nosso destino.

O Rolls-Royce Phanton preto dirigido por Marco Polo foi estacionado do outro lado da rua
de um galpão cinzento e imponente de uma das principais avenidas de Donetsk. Jacqueline
estava ao lado dele no banco passageiro e eu dividia o banco de trás com Gavril, que tremia
de frio e nervoso. Estava fazendo uns quatro graus negativos do lado de fora e os vidros do
Phanton estavam congelando. A fumaça do cigarro de Marco formava uma nuvem no
interior do veículo, atacando a rinite de Gavril, enquanto o garoto falava e espirrava:
— Piotr vai me apresentar como um novo recruta da Ordem daqui a uma hora. Ele está
infiltrado na seita há pelo menos dois meses e parece que vai haver uma espécie de
graduação de membros lá dentro esta noite. — E ele apontou para o galpão do outro lado da
rua.
— E como mesmo você vai se comunicar com a gente aqui do lado de fora? — Questionou
Marco, com um dos braços apoiado no encosto de seu banco, olhando em nossa direção e
dando mais uma tragada no cigarro.
— Através de telepatia. — Apressei-me em responder por Gavril, deixando Marco e
Jacqueline incrédulos.
— Quer dizer leitura de mentes? — Perguntou-me Jacqueline. — Você pode ler mentes?
— Sim, eu posso. — Respondi.
— Quer dizer que todo esse tempo você esteve lendo nossas mentes sem que soubéssemos?
— E Marco tirou o cigarro da boca e ficou segurando, deixando-o apenas fazer fumaça.
— Só quando me convinha. Não preciso estar na mente das pessoas o tempo todo. Isso é
desgastante.
Os olhos da francesa estavam arregalados num misto de espanto e admiração. Marco ficou
em silêncio apenas me encarando do banco da frente. Eu sabia o que ele estava pensando:
— Sim, Marco. Todas as vezes que você desejou me ver nua na sua frente eu soube. Seus
pensamentos pervertidos são altos e claros para minha telepatia.
Era a primeira vez que eu via o italiano ficar sem graça na minha frente, logo em seguida
Gavril retomou a explanação dos planos para aquela noite.
— Uma vez dentro como um membro da seita, eu estarei descrevendo tudo que estará
acontecendo no interior do galpão para que vocês estejam informados. Assim que eu
identificar Theodor e me certificar que ele está bem, darei o sinal para que Alexia invada o
local e resgate seu irmão. Eu e Piotr vamos dar cobertura a ela do lado de dentro, enquanto
isso, Marco aciona os fogos de artifício para chamar a atenção da Ordem para o lado de fora
e assim que estivermos eu, Piotr, Alexia e seu irmão em segurança, Jacqueline manda o
prédio para os ares.
— Barbecue du sorcier!
Exclamou a francesa, abrindo um sorriso.
— Sim, churrasco de bruxo! — Repetiu Gavril.
Aquele era um plano ousado que dependia de muitas variáveis para que funcionasse. Eu só
tinha a palavra do tal Piotr, o agente ucraniano da Teia, sobre Costel estar vivo, mas era
difícil confiar em alguém que eu nunca tinha sequer visto pessoalmente. Gavril parecia ter
total confiança em seu colega espião e aquilo teve que me bastar naquele momento. Assim
que a noite caiu por completo sobre as ruas nevadas de Donetsk e afastou os transeuntes das
calçadas em frente ao galpão, Jacqueline saltou do Phanton e começou a preparar os fogos
de artifício, os explosivos ao redor do prédio da Ordem e o detonador que ela usaria para pôr
tudo abaixo. A garota era tão ágil, que mal conseguíamos vê-la do lado de fora, correndo de
um canto a outro do galpão do outro lado da rua, carregando duas bolsas pesadas, repletas
de dinamite. O relógio de bolso de Gavril marcava quase meia-noite quando ele começou a
se preparar para a tal graduação.
— Tem certeza que eles não vão reconhecer você de nossa outra missão fracassada em
Subotica, Gavril? — Indaguei, já o vendo tirar os óculos redondos de cima do nariz e
começando a puxar os cabelos para trás com um pente que tirou do bolso interno do casaco.
— Tenho um rosto comum. Sem meus óculos e com os cabelos penteados para trás me torno
ainda menos destacável na multidão.
Ele deu um sorriso breve em minha direção, mas eu conseguia ouvir sua pulsação acelerada
a seu lado. O garoto não estava totalmente convencido de que aquela incursão ao coração da
Ordem do Portal de Fogo teria retorno, mas ele era bem corajoso e não pensava em desistir.
— Espere. Antes de partir, tenho algo para você.
Ele já estava prestes a descer do veículo, quando o puxei pelo braço e dei-lhe um beijo
intenso, segurando-o pela nuca. Gavril tinha sido pego de surpresa e sob o olhar de inveja de
Marco Polo, ele ficou estático, com o corpo teso, sem reação. Quando terminei, ele ainda
ficou alguns segundos, na mesma posição, de olhos fechados. Seu coração parecia que
queria saltar do peito.
— Minha conexão mental funciona melhor com quem mantenho contato físico mais direto.
Quero ouvir cada um de seus pensamentos daqui de fora enquanto você estiver naquele
galpão.
Eu não sabia explicar a física exata daquilo, mas eu conseguia ler com muito mais clareza a
mente das pessoas com quem tinha algum tipo de contato mais íntimo. Quanto mais
profundo era meu vínculo, mais fácil era para entrar em seu cérebro. Era assim com
Alejandro em Trujillo, com o barqueiro que me levou do Peru ao Brasil pela Amazônia, do
mercador de ouro brasileiro em Minas Gerais, do soldado em Leningrado em meu retorno à
Europa, do executivo em Praga... Todos aqueles pensamentos, límpidos e transparentes para
mim como a água de um riacho. Aquilo só não funcionava com Costel, meu irmão vampiro.
— O que pode acontecer se o seu irmão ler a mente de Gavril enquanto ele estiver lá dentro
do galpão? — Indagou-me Marco, olhando o rapaz se restabelecendo vagarosamente após o
beijo.
— Theodor não é capaz de ler mentes como eu. Os pensamentos de Gavril estarão seguros.
Gavril saiu do carro ainda meio aparvalhado e nós dois o vimos acertar o prumo em
seguida, atravessar a avenida que cortava a frente do galpão e desaparecer na neve, do outro
lado da rua. Eu já começava a me concentrar para captar apenas os seus pensamentos,
quando a voz rouca de Marco irrompeu:
— Da próxima vez eu vou fazer o papel de agente infiltrado. Vou adorar me conectar mais
com você.
Ele me encarava no banco de trás do Rolls-Royce com um meio-sorriso no rosto, cheio de
malícia no olhar. Retribuí fitando-o friamente e em seguida pedi que ele se calasse. A partir
daquele momento, as vidas de Gavril, Piotr e de Costel dependiam muito de minha total
concentração telepática. Eu não podia falhar com eles.
Haviam muitas vozes e ecos no interior do galpão atrapalhando meus sentidos e demorei a
me sintonizar com Gavril. Sua mente era um caos e as frases “vai dar tudo certo” e “estou
fodido” se repetiam diversas vezes em mesma proporção. Ele havia guardado o revólver .38
entre as pernas, certo de que não seria revistado ali na entrada, e assim, ele passou
facilmente por um irmão da seita que estava fazendo trabalho de guarda para todos que
chegassem ao prédio. Gavril não sabia precisar, mas havia quase uma centena de outros
irmãos no interior daquele lugar, todos devidamente trajados com a mesma toga vermelha
que os doze membros usavam no prédio em Subotica. Ele encontrou Piotr logo que adentrou
o saguão principal e o rapaz, que tinha a mesma idade que ele, o levou em direção a um
totem, onde uma espécie de cuia com um líquido espesso e vermelho os esperava.
— Piotr desenhou um símbolo em minha testa com o líquido vermelho. Deve ser o mesmo
que os demais membros ostentam em suas cabeças. Parece runa antiga, não consigo ler. —
Assim como havíamos combinado antes, Gavril descrevia mentalmente tudo que via e
acontecia diante de seus olhos para que eu tivesse a noção exata da hora de agir. Nossa
ligação física não tinha sido tão intensa a ponto de eu conseguir fazer aquilo com facilidade
e ora ou outra, eu perdia a conexão telepática com ele, quando algum outro irmão passava
muito perto do garoto ou sua voz mental soasse como um grito para minha percepção.
— Eu o estou perdendo. Não consigo ouvi-lo o tempo todo. — Gemi, ainda de olhos
fechados dentro do Phanton.
— Será que ele foi capturado? Será que --
— Cale a boca, Marco. — Interrompi antes que ele continuasse. — Não abra mais a boca e
apague esse maldito cigarro. O cheiro dessa fumaça tóxica está atrapalhando meus sentidos.
— Eu gosto de fumar quando estou apreensivo. Isso me acalma.
— Apague. Agora!
Eu o olhei com fúria e minhas presas saltaram da boca, no que um Marco assustado abriu o
vidro do carro e arremessou longe o cigarro que mal dera duas tragadas. Voltei a me
concentrar e localizei os pensamentos de Gavril. Não podia mais perdê-lo.
— Estamos enfileirados diante de um altar com uns oito metros de largura. Há uma banheira
enorme em nossa frente, suspensa a um metro e meio do piso onde estamos. No altar há
uma escada de cinco degraus que chega até a banheira. O cheiro é forte. Tem algo quente
borbulhando dentro... Parece... Parece... Sangue. Espera... É Sangue! O mesmo líquido com
a qual a runa foi desenhada em minha testa. Os irmãos estão ficando mais agitados ao nosso
lado agora. Está acontecendo alguma coisa.
Eu conseguia sentir a agitação mencionada por Gavril do lado de fora. Alguns deles diziam
como um mantra “o poder do portal é invencível, nós somos imortais”, outros apenas
pensavam, mas as vozes ecoavam em meus ouvidos.
— Você está me ouvindo, Alexia? Tem uma porta se abrindo ao fundo do altar. Um homem
se aproxima. Ele é alto e forte. Cabelos grisalhos penteados para trás. Um olhar cinzento.
Está usando um robe escuro. Dois membros o foram recepcionar à porta, deram as mãos a
ele e o estão acompanhando até os degraus da banheira de sangue borbulhante. Um deles é o
negro que encontramos em Subotica, o que parecia ser o líder. A outra é uma mulher de
longos cabelos pretos e ondulados. Os dois possuem a marca de runa na testa, como eu.
No momento em que Gavril descreveu o homem entrando pela porta dos fundos, eu sabia
que só podia ser ele. Estávamos na Ucrânia, a terra dele. Não parecia ser apenas uma
coincidência que aquele ritual de graduação fosse acontecer exatamente onde ele havia
nascido e que muito provavelmente ele estivera escondido todo aquele tempo. “Adon, seu
maldito. Eu o encontrei”.
— O cara negro e a mulher estão despindo o grandalhão... Ele... Ele... Oh, meu Deus! É
enorme! Ele tem um p--
Naquele momento, vozes muito altas irromperam a conexão mental e eu senti muita dor.
Com as mãos apoiando minhas têmporas, eu caí deitada no banco de trás do carro, no que
Marco Polo procurou me ajudar, sem saber exatamente o que fazer. Jacqueline tinha
terminado de instalar os explosivos do lado de fora do galpão e a moça já esperava meu
comando na mesma calçada onde estávamos estacionados, com as mãos firmes no gatilho
do detonador de mina conectado a um cabo que atravessava a rua.
— O PODER DO PORTAL É INVENCÍVEL, NÓS SOMOS IMORTAIS! O PODER DO
PORTAL É INVENCÍVEL, NÓS SOMOS IMORTAIS! O PODER DO PORTAL É
INVENCÍVEL, NÓS SOMOS IMORTAIS! O PODER DO PORTAL É INVENCÍVEL,
NÓS SOMOS IMORTAIS!
Fazendo um esforço descomunal, consegui encontrar a voz mental de Gavril mais uma vez e
ele estava assustado:
— Seu irmão, Alexia. Ele também está no piso superior do altar e está vivo. Eles o
trouxeram em uma cadeira... Ele parece enfraquecido... Tem um cateter ligado a seu braço e
vários deles saindo por suas costas... Eles... Eles estão drenando seu sangue. É o seu sangue
borbulhando na banheira! — Depois de semanas, enfim nós havíamos localizado Costel. —
O homem grande está descendo agora os degraus. Ele está submergindo no sangue de
Theodor. Estão todos se ajoelhando diante do altar e eu também preciso me curvar. O braço
direito do líder deles, o homem negro, se chama Elliot Cole. Ele está lá em cima nesse
momento, nos observando. Será que ele... Me reconheceu?
— Mande Jacqueline se preparar... — Gemi para Marco, ainda deitada no banco de trás. —
Meu irmão... Meu irmão está lá dentro.
Marco saiu do carro em disparada e seguiu em direção à francesa, que estava quase
congelando do lado de fora, enfrentando corajosamente a temperatura que parecia cair cada
vez mais em Donetsk.
— Alexia! Alexia! Eles estão me empurrando para o altar. Eu não sei onde está Piotr... Tem
uns dez de nós sendo levados para o altar. Vamos servir como sacrifício. Seu irmão vai nos
devorar!
Como soubemos depois, todos aqueles que tinham se unido recentemente à Ordem seriam
sacrificados para que a imortalidade dos demais, representada pelo sangue vampiro de
Costel, pudesse ter continuidade. Como Gavril havia percebido, meu irmão parecia bem
debilitado enquanto servia de fonte para a banheira de sangue onde Adon se banhava e eles
não podiam permitir que ela secasse. Costel precisava de alimento e os dez novatos tinham
sido escolhidos para saciar a sede vampira de meu irmão.
Marco Polo retornou para próximo do carro a tempo de me ver sair dele e começar a correr
em direção ao galpão, do outro lado da rua. Minha voz ecoou na noite fria:
— Espere cinco minutos e dispare os fogos de artifício. Eles vão sacrificar Gavril!
Abandonei o casaco pesado que usava assim que cheguei perto o suficiente da porta.
Precisava de toda mobilidade possível para salvar Gavril e sair de lá com vida. Me joguei
com o ombro esquerdo entre as duas divisórias da porta que cerrava o galpão cinzento e
senti a madeira grossa esmagar o irmão que servia de guarda quando ela caiu com o
impacto. Saltei por cima do homem caído e já nocauteei mais dois que vieram a meu
encontro, alarmados pelo som da porta sendo derrubada. Havia uma turba entre mim e o
altar. Quase cem pessoas, como tinha alertado Gavril. De onde eu estava, conseguia ver
Costel amarrado a uma cadeira, magro, lânguido e com fios saindo dos braços e costas. Os
dez jovens já estavam ajoelhados diante de Elliot e de seus asseclas, prontos a serem
sacrificados. Punhais de prata semelhantes ao que tinham me espetado nas costas em
Subotica já pendiam no alto, prontos a abrir suas jugulares e servir Costel de seu sangue.
Eles tinham me visto. Eu não tinha sido nem um pouco sorrateira.
— Noctem daemonium! Noctem daemonium!

O grito de Elliot serviu como um alerta à beira da banheira onde Adon ainda estava
submerso. Os irmãos que antes estavam ajoelhados no chão, adorando e saudando seu
mestre em seu banho da imortalidade, se viraram para mim e já começaram a se precipitar,
procurando me capturar.
— Não a deixem escapar! Ela servirá de alimento à fonte!
Sem usar magia, os membros da Ordem avançaram sobre mim, procurando me subjugar
fisicamente. Eu era mais forte que dez homens juntos, mas não podia me dar ao luxo de um
confronto físico àquela hora. Gavril estava à mercê de uma lâmina mortal, qualquer segundo
contava. Saltei o mais alto que consegui, e o impulso de minhas pernas me lançou a oito
metros à frente. Senti meu sobretudo ser agarrado por mãos firmes que me puxaram para
baixo, de volta ao chão e eu tive que lutar para me libertar. Senti ossos se partindo ante a
força de minhas mãos, e de repente, eram chamas esmeraldas viajando em velocidade contra
mim. Elliot e mais dois magistas que também estavam em Subotica moviam as mãos
habilmente, conjurando esferas de energia lá de cima, tentando me surpreender do altar.
Dois tiros foram disparados de baixo e rolando no chão para escapar das bolas mágicas, vi
um rapaz de cabelos curtos atirando contra Elliot.
— Rápido! Salve Gavril!
A voz era de Piotr, o agente infiltrado da Teia dentro da Ordem que atirava com uma arma
calibre .38, e tão logo me apoiei no chão mais uma vez, saltei até o altar, caindo sobre a
mulher que mirava o punhal em meu colega assustado. Antes que ela pudesse ter qualquer
chance de reação, eu rasguei seu pescoço com minhas unhas e a arremessei para baixo,
fazendo seu corpo ensanguentado rolar contra os irmãos, que naquele momento começaram
a subjugar Piotr. Um rapaz de nariz proeminente foi o primeiro a se recuperar e ele atingiu o
peito de Piotr com um punhal que sacou de uma bainha na perna. Mesmo ferido, o agente
ainda atirou mais uma vez contra seus agressores, matando um deles. No instante
subsequente, mais dois punhais se cravaram em suas costas, tirando sua vida.
— NÃO!
O grito de Gavril soou como um lamento ao ver o amigo ser atingido covardemente lá
embaixo e como que tirado de um transe, o rapaz botou as mãos dentro das calças, puxou o
seu próprio revólver e fulminou dois dos asseclas de Elliot que ainda ameaçavam ele e os
demais jovens que serviriam de sacrifício a Costel. Com um estrondo, naquele momento,
uma figura gigante emergiu da banheira incandescente e seu berro paralisou a todos a seu
redor. Adon parecia agora uma fera saindo da jaula e eu percebi que tínhamos pouco tempo
para escapar dali. Puxei Gavril pela blusa e o arrastei de perto de Elliot e os outros, que já
preparavam novas esferas místicas para disparar contra nós. O garoto ainda atirou a esmo e
quando percebeu, já estava perto de Costel.
— Oh, meu irmão! O que fizeram com você!
Gavril começou a me ajudar a arrancar os cateteres fincados na pele quase translúcida de
Costel e sua expressão era distante, como se sua consciência tivesse sido arrancada de seu
corpo ali sentado, enquanto tinha o sangue drenado.
— Acorde, Costel. Precisamos fugir daqui!
Às minhas costas, a cinco metros, Adon saía de dentro da banheira de sangue e era agora
auxiliado por Elliot. Assim como Costel, apesar do ímpeto inicial ao emergir do líquido
quente, ele agora parecia tão enfraquecido quanto meu irmão, como se o banho da
imortalidade arrancasse suas forças temporariamente. Todos os cateteres já tinham sido
arrancados e eu fazia menção de apoiar o braço esquerdo de Costel em meu ombro, para
ajudá-lo a se levantar, quando a voz de Adon ecoou, enquanto ele era carregado para a porta
ao fundo do altar:
— Nunc licet mihi libere. Excitare agere.
As palavras em latim ditas por Adon libertaram a mente de Costel e naquele momento, meu
meio-irmão voltou a si, começando a me encarar com fúria nos olhos azuis. Apesar do corpo
ossudo e aparentemente frágil, ele agarrou meu pescoço com força e começou a me
estrangular. No mesmo momento em que as garras de Costel tentavam me matar, os fogos
de artifício de Marco começaram a explodir do lado de fora do galpão, tornando o lugar um
pandemônio. Aturdidos, os irmãos começaram a se dividir em tentar avançar sobre o altar
para me capturar e saber o que estava acontecendo do lado externo.
— É um ataque! Estamos sendo atacados!
Costel estava descontrolado. Suas presas saltaram da boca e ele já avançava em meu
pescoço, pronto a me morder. Dois tiros atingiram suas costas vindos da arma de Gavril,
que havia esgotado sua munição. As balas não podiam matá-lo, mas tinham servido para
distraí-lo o suficiente para que eu retomasse o controle. Apliquei um soco no rosto de Costel
e tão logo me vi livre de suas mãos, dei-lhe um chute no peito, jogando-o para longe. Ele
estava fora de si e era bem claro que Adon havia conseguido fazer com ele o que tanto o
ucraniano e sua amaldiçoada parceira espanhola haviam tentado fazer comigo há mais de
sessenta anos em Córdoba. “Eles dominaram a mente de meu irmão. Eu o perdi para sempre”.
Meu próximo ato foi puxar Gavril daquele altar com toda força e segurando-o firme, saltei
por cima dos quase quarenta irmãos que tentavam me alcançar. Quando atingimos o chão,
vi a porta que tinha derrubado completamente obstruída pelos demais membros da Ordem
que saíam para ver o que eram os fogos explodindo ininterruptamente e então me dirigi à
janela. Me atirei contra ela usando meu corpo, protegendo Gavril e nós dois caímos na
calçada do lado de fora. Tiros eram disparados do meio da rua contra as pessoas que corriam
de dentro do galpão e a submetralhadora de Marco parecia um dragão raivoso cuspindo
fogo. Jacqueline estava abaixada, de joelhos diante do detonador, com as duas mãos sobre a
alavanca, a uns três metros do nosso Rolls-Royce preto.
— Detona. DETONA!
Coloquei Gavril em pé novamente e corremos em direção ao carro, com Marco ainda dando
cobertura para nossa fuga. Ele saltou sobre o carro e deslizou sobre a lataria do capô,
largando a Thompson nos braços magros de Gavril. Rapidamente, ele assumiu o volante,
enquanto eu e Gavril embarcávamos. Os irmãos que haviam sobrevivido aos tiros, já faziam
menção de nos alcançar, foi quando ouvi a voz da francesa, ainda do lado de fora, um
segundo antes dela apertar o gatilho:
— Barbecue du sorcier!
Várias explosões subsequentes começaram a ser ouvidas no quarteirão em seguida e
sentimos a terra tremer embaixo do Rolls-Royce. Jacqueline correu para dentro do carro tão
logo viu seus explosivos acionados e Marco não esperou mais nada para sair cantando pneu
pela avenida principal de Donetsk. O prédio da Ordem do Portal de Fogo foi pelos ares
numa explosão fenomenal que iluminou a noite atrás de nós. Aquele tinha sido nosso mais
forte golpe contra a seita satânica, mas nenhum de nós estava comemorando.
Capítulo 8 – A batalha de Düsseldorf
A PRIMEIRA GUERRA havia causado um impacto gigantesco ao redor do planeta, o que
enfraqueceu de maneira drástica a economia mundial após seu término, sobretudo nos países
da Europa. A Grande Depressão de 1929 encontrou os alicerces europeus bastante
estremecidos, colaborando assim para um período longo de recessão que só teria fim
próximo ao final da década de 40. A chamada Crise de 1929 abalou o sistema capitalista,
causando altas taxas de desemprego, diminuição na produção industrial e queda no preço
das ações em medidores de atividade econômica pelo globo. Por onde se andava, seja lá qual
fosse o idioma nas ruas, todos só falavam no mesmo assunto.
Quatro anos após a missão de resgate em Donetsk, eu fixei residência em solo russo devido
os negócios com a Rassvet, e por ali, era como uma manhã ensolarada de domingo. A
Federação Russa havia se unido à Ucrânia, Belarus, Azerbaijão, Armênia e a Geórgia desde
1922, formando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, na época, ainda sob a
chancela de Lenin. Em 1931, já sob o comando de Stalin — que tinha assumido a secretaria-
geral do partido socialista ainda em 1922 — a URSS tinha sido a federação menos afetada
pela Grande Depressão, uma vez que seu modelo econômico não dependia em nada de
outros países, em especial de suas novas tecnologias. Não havia lugar melhor para se estar
na época, pensava eu. Ledo engano.
Enquanto um cara chamado Adolf Hitler ganhava cada vez mais notoriedade na alquebrada
Alemanha pós-guerra, na Romênia, o Rei Carol, sucessor de Ferdinando I, estreitava
relações com o novo regime alemão, se aproveitando da crise econômica mundial para
destituir o Partido Nacional Camponês de suas paragens. O país que havia ficado contra a
Tríplice Aliança durante a Primeira Guerra, agora se mostrava favorável às ambições
alemãs, iniciando um período de muita instabilidade política em minha nação materna. Em
1934, Hitler assumia não só o governo alemão como o controle absoluto de seu exército,
fixando com grande força os ideais distorcidos do Partido Nazista que ele ajudara a fundar.
A Crise de 1929 tinha causado grande descontentamento na alta burguesia alemã, nos
empresários e na Igreja. A Alemanha tinha sido destroçada durante a Primeira Guerra, e
isso — somado à insatisfação popular — motivou a alta sociedade a apoiar a extrema-direita
representada pelo Partido Nazista, ascendendo Hitler ao poder. A partir de então, campos de
concentração e de contenção para eliminar pessoas com deficiência física, ciganos,
homossexuais, opositores políticos e judeus, tornaram-se cada vez mais frequente na
Alemanha nazista, espalhando um caos que mais tarde deflagraria uma Segunda Guerra
Mundial. O planeta estava à beira de um colapso.
Enquanto chamas de tensão cada vez mais crescentes começavam a querer incendiar o
mundo, a Teia estava conseguindo cada vez mais adeptos pela Europa, tornando o grupo a
principal frente contra as forças ocultas malignas espalhadas pelo globo terrestre. À medida
em que a inteligência da equipe se unia para localizar, rastrear e cercar seres das trevas, as
equipes de campo partiam para a ação, dando cabo de bruxos manipuladores de magia
negra, assassinos seriais magistas e até mesmo vampiros dominados mentalmente. Eu fazia
parte agora da equipe de campo da Teia e era recrutada sempre que a missão exigia mais
força e vigor físico que os membros humanos do grupo tinham a oferecer. Estávamos em
Eindhoven, na Holanda, a 100 km da fronteira com a Alemanha, quando saímos em
perseguição a um strigoi mortis que estava barbarizando a vizinhança de uma cidade local.
Com requintes de crueldade poucas vezes vistos por meus colegas, o vampiro estava
deixando um rastro de morte por onde passava, totalmente fora de controle. Eu e Marco
Polo tínhamos cercado o monstro no celeiro de uma fazenda, depois que ele havia
dilacerado duas irmãs gêmeas de onze anos numa cidade a 8 km. Devíamos aguardar a
chegada de Jacqueline e Nadine com os explosivos, mas eu estava com sede de vingança.
— Alexia, não!
Eu destrocei a porta do celeiro antes que Marco pudesse me deter e então avancei sobre o
vampiro, que naquele momento sugava o sangue de uma cabra que ele havia roubado na
fazenda ao lado. Diferente de mim, de Costel ou mesmo de Dumitri, os vampiros que eu
conhecia, aquela criatura parecia totalmente irracional, incapaz sequer de formular uma
frase simples. Ele tinha a estatura de um homem comum, possuía cabelos longos e pretos na
cabeça, mas seu olhar era vazio. Sua mente havia sido deteriorada em nível profundo por
magia e tudo que ele sabia fazer era agir instintivamente. Eu era bem rápida, mas descobri
que quanto mais bruta fosse a força de vontade vampira, mais ágeis nos tornávamos. Eu fui
superada em combate. Enquanto eu saltava sobre ele, o vampiro arremessou a cabra de lado,
me agarrou pelo pescoço e me jogou em direção à parede do celeiro, onde senti minhas
costas serem trespassadas por um tipo de lança de madeira. Havia uma ripa grossa e pontuda
solta ao lado de um jogo de ferramentas de arado pendurado na parede, e eu fui atingida em
cheio. A estaca estava a centímetros de meu coração e por pouco aquela criatura bestial não
tinha me matado com um só golpe. Ele guinchava feito um morcego me vendo sangrar,
pronto a me dar o golpe fatal, e eu fui salva no último segundo por Marco, que entrou no
celeiro atirando com duas pistolas Berettas M1923 de 9mm.
— Morre, monstro maledetto!
Tiros com munições comuns não eram capazes de afetar a estrutura física de um vampiro
severamente, mas a Teia havia começado a fabricar balas revestidas com nitrato de prata, o
que causava sérios danos internos a nosso corpo. Embora não me parecesse inteligente andar
na companhia de pessoas com poderio bélico suficiente para exterminar a minha própria
raça se assim o quisessem, eu entendia que era necessário o trabalho que eles estavam
executando, tirando de circulação seres capazes de matar crianças inocentes como aquele
lixo vampírico.
Acuado pelos tiros, o vampiro que vestia apenas uma calça puída e apresentava vários
ferimentos pelo corpo muito antes de o alcançarmos, tentou fugir pela parede dos fundos do
celeiro, mas foi surpreendido por Jacqueline e Nadine — a namorada belga da garota
francesa — que chegaram por trás e o explodiram com uma granada contendo nitrato de
prata e alho em sua composição. Quando Marco me ajudou a descer da parede onde havia
ficado empalada, tudo que vimos ao fundo do quintal da fazenda foi uma enorme mancha
gosmenta onde antes estava nosso fugitivo vampiro. As duas garotas se beijaram
apaixonadamente em seguida, comemorando a vitória. Por um momento, pensei se elas
fariam o mesmo comigo com tanta facilidade, caso um dia eu perdesse o controle de minha
mente. A simples ideia me incomodou.
Eu possuía um fator de cura que me ajudava a sarar rápido de ferimentos, mas estava sem
me alimentar há quase dois dias. Quando chegamos ao casebre que estávamos usando como
esconderijo em Eindhoven, percebi que o rombo em meu peito não estava cicatrizando
como deveria. Enquanto Jacqueline e Nadine montavam guarda do lado de fora,
preocupadas que nossa movimentação fora do comum chamasse mais atenção do que devia
dos populares nas redondezas, Marco ficou comigo, tentando remediar meu ferimento.
— Está bem feio. Preciso suturar.
— Não... Não iria adiantar. Eu preciso me alimentar. Preciso de sangue. Só assim vou me
recuperar mais rápido.
O italiano pediu para que Nadine tomasse conta da casa e de mim, em seguida saiu para
caçar. Nossos anos de convívio o tinham ensinado que eu raramente me alimentava de
sangue humano quando estava com a Teia e ele saiu para me buscar comida, levando um
rifle com ele. Quando ele voltou, cerca de uma hora depois, trazia consigo vivas duas
martas, mamíferos mustelídeos que viviam na região. Eu precisava de sangue quente para
me alimentar e dadas as circunstâncias de me estado físico, não me dei ao luxo de esperar
mais nada para rasgar o pescoço dos dois animais e começar a beber seu sangue. Não deve
ter sido uma visão muito aprazível aos olhos de meu colega de equipe.
Eu passei a manhã seguinte inteira adormecida sobre a cama rústica do casebre. Jacqueline e
Nadine tinham se prontificado de cobrir todas as aberturas do pequeno abrigo para impedir a
entrada dos raios solares, e quando despertei, já era noite. Marco estava sentado ao lado da
cama, vigilante, esperando que eu acordasse. A fauna noturna do campo soava do lado de
fora, estridente, e não havia qualquer sinal das duas namoradas pela casa. O quarto
reservado a elas ao fundo, depois da cozinha, estava vazio.
— Onde estão as garotas? — Indaguei, me sentindo ainda um pouco cansada.
— Foram visitar uma feira de antiguidades na cidade adjacente e ainda não voltaram.
Estamos só nós dois aqui.
Havia um leve desconforto na altura do ferimento feito pela estaca de madeira e eu abri os
botões da blusa manchada de sangue para verificar como estava o processo de cicatrização.
Agora tinha restado uma mancha arroxeada onde antes havia um buraco na carne e em
breve eu estaria pronta para voltar à ação. Eu já fechava os botões, quando notei Marco a
olhar fixamente entre meus seios. Ele estava sentado a dois metros da cama. Estava sem
camisa e os músculos pareciam ainda mais tesos embebidos de suor. Fazia calor nos Países
Baixos. Eu conseguia ler seus pensamentos dali. Não eram claros, mas eu queria que se
tornassem. Era o mês de novembro. Período em que minha sede vampira ficava ainda mais
aguçada. Não dava para resistir.
A minha blusa foi jogada de lado no instante em que Marco deitou seu corpo pesado e forte
sobre o meu. Seu beijo era quente e envolvente, e se eu dependesse tanto de oxigênio quanto
ele, teria ficado sem fôlego com sua volúpia. O toque em meus seios ainda me doía, mas eu
o deixei continuar a apertá-los com as duas mãos ásperas e calosas. Lá embaixo, seu falo era
grande e hirto, afinal. O fascínio que ele tinha por armas de fogo nada tinha a ver com
alguma deficiência da qual ele poderia sofrer com o que tinha entre as pernas. “Quem diria! ”,
pensei, ao senti-lo entrando dentro de mim vigoroso, rígido e incontrolável. O italiano tinha
esperado por anos para saciar seu desejo comigo e era justo que ficássemos algumas horas a
sós dentro daquele casebre, aproveitando cada segundo do prazer que atingimos
mutuamente. Era bom voltar a fazer sexo sem que aquilo fosse por obrigação. Me fazia falta.
Após a batalha em Donetsk, a Teia tinha perdido completamente o rastro da Ordo Ignis Veni
e passamos muito tempo apenas correndo atrás de fantasmas. Todas as pistas que seguíamos
davam no máximo em dissidentes da Ordem ou membros da seita que haviam abandonado
o mundo da feitiçaria para sempre. Em Bratislava, hoje a capital da Eslováquia,
interrogamos um ex-membro que nos contou, por intermédio de tortura, que a Ordo estava
reunindo os maiores magistas do mundo a fim de abrir um portal para uma dimensão que
eles chamavam de limbo. Adon e seus seguidores, pelo menos uma parte deles, haviam
sobrevivido à explosão na Ucrânia e agora estavam reclusos, juntando forças para abrir uma
fenda no tecido da realidade para esse tal mundo dos mortos. Segundo as pesquisas de
Gavril, aquela era só a primeira de uma série de incursões que os ocultistas planejavam fazer
pelos mundos que existiam paralelamente à nossa Terra e que quando eles aprendessem o
caminho para o inferno, nada seria capaz de deter a horda demoníaca que invadiria nosso
planeta.
— Mas o que esses caras ganham trazendo demônios para a Terra? — Indagou Marco a
Gavril, num dos esconderijos da Teia em Praga.
— Poder. Através da magia, a Ordo já consegue fazer contato com esse mundo maligno,
apesar de ainda não poder abrir um portal tão grande a ponto de trazê-los para o lado de cá.
É por meio desse contato que eles conseguem emanar chamas das mãos e outros tipos de
mágica. Aliados aos demônios, eles não encontrariam em nosso mundo adversários à altura
e destruiriam a nossa realidade como a conhecemos.
Era com o intuito de abrir esse grande portal para o inferno que Adon buscava
incessantemente a imortalidade. Ele vivia na Terra há muito mais tempo do que eu e agora
que havia encontrado no sangue dos vampiros a chave para se manter jovem por um tempo
indeterminado, ele estava muito perto de conseguir o seu intento. Eu precisava encontrá-lo o
mais rápido possível e destruir o maldito antes que fosse tarde demais para o mundo.
Os cinco anos subsequentes foram bem movimentados para a Teia e destinei parte dos lucros
obtidos pela Rassvet para financiar as incursões da organização pela Europa. Enquanto
engenheiros elétricos, químicos, biólogos e até mesmo um físico se juntavam ao grupo, nós
começamos a defender o mundo das forças das trevas que ameaçavam destruir a nossa
realidade. Melhor equipados e favorecidos pelo avanço tecnológico mundial, nossas missões
eram cada vez mais bem-sucedidas. Naquele período, de 1934 a 1939, a Teia foi até
Belmopon, na América Central, para exterminar um grupo de criaturas rastejantes que
estava aterrorizando as famílias de uma periferia, passou por Tegucigalpa para deter um
vircolac irracional de dois metros de altura e ainda ajudou um espírito obsessor a fazer a
passagem para o mundo dos mortos, após atormentar uma garota cega por anos seguidos em
San José, na Costa Rica. De volta à Europa, continuamos a seguir os rastros da Ordo Ignis
Veni e desbaratamos uma célula da seita que escravizava um vampiro adolescente em Madri,
drenando seu sangue em busca da imortalidade. Após eliminar os magistas malignos, o
professor Douglas Rashford, nosso ocultista, conseguiu libertar a mente do menino da
influência mística e eu permiti que ele fosse embora sem qualquer agressão.
— Você tem certeza que quer libertar esse monstro por aí, Alexia? — Indagou-me Nadine,
ainda com seu rifle apontado para a cabeça do vampiro.
— Esse “monstro”, como você diz, Nadine, é só um garoto. Ele não escolheu ser um
vampiro e certamente já sofreu o bastante nas mãos da Ordem. Eu vou garantir sua
liberdade.
O menino-vampiro era pequeno e esquelético. Parecia muito assustado a olhar Nadine
mirando em sua testa. Seus olhos grandes e piedosos piscaram duas vezes num gesto de
agradecimento em minha direção e no instante seguinte, eu o deixei partir. Ele correu até
uma mata vasta e escura, desaparecendo de vista.
Estávamos em Viena caçando dois fugitivos da Ordem do Portal de Fogo em 1º de setembro
de 1939, quando a Alemanha invadiu a Polônia. O país era uma ambição territorial de Hitler
desde a Primeira Guerra Mundial, quando então a Alemanha havia perdido parte de suas
terras para a Polônia. Naquele ano, o chanceler austríaco do Partido Nazista havia decidido
retomar o território à força, indo contra os interesses da Inglaterra e da França, que tinham
um acordo de proteção com Varsóvia — a capital polonesa. As ações de Hitler haviam
causado um desagrado mundial — além da invasão à Polônia, o mundo se preocupava com
o crescente aumento de poder do Führer na Alemanha — e aquilo deflagrou a Segunda
Guerra Mundial.
A contragosto, a maioria dos agentes da Teia tiveram que retornar a seus países de origem e
se alistar em suas respectivas forças armadas para lutar na guerra. Gavril tinha ascendência
búlgara e se juntou ao exército que nos primeiros anos lutava pelo lado do Eixo —
Alemanha, Itália e Japão —, Marco Polo voltou para Roma e integrou as forças italianas de
Benito Mussolini, o professor Rashford era britânico e se uniu ao exército inglês contra o
Eixo, pelo lado dos Aliados — Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos — e
vários outros membros da organização se espalharam pela Europa, começando a lutar numa
batalha que ia totalmente contra seus ideais.
Entre 1939 e 1944, coube às mulheres da Teia continuarem o trabalho de combate às forças
ocultas e seres fantásticos, o que garantiu mais algum tempo de sobrevida à nossa
organização. Notícias de rituais ocultistas envolvendo nazistas fervilhavam agora nas redes
de informação, e as Aranhas — como passamos a denominar nosso grupo de garotas —
partiram para a Alemanha, na tentativa de desmantelar suas ambições. Em Düsseldorf, a
564 km de Berlim, nós nos deparamos com um grupo dissidente da Ordo Ignis Veni que
estava ajudando ocultistas nazistas a abrirem um portal para uma dimensão paralela, a fim
de trazerem para a Terra uma força poderosa que ia ajudá-los a vencer a guerra contra os
Aliados. Quando chegamos ao estaleiro onde eles haviam montado uma estrutura gigantesca
com duas hastes paralelas energizadas por um gerador elétrico, ao lado do rio Reno, a
abertura do portal já estava em estágio avançado. Um vento sobrenatural soprava em
direção oposta à nossa posição, parecendo querer nos sugar para dentro da película
translúcida que se formava entre as duas hastes. Alguma coisa estava realmente se abrindo
entre a nossa realidade e outro mundo naquele momento, e nós decidimos que não
queríamos esperar para ver o que era.
Nadine liderou um grupo de outras cinco garotas que partiram para cima dos bruxos e dos
nazistas com metralhadoras, dando o tempo necessário para que Jacqueline desse a volta por
trás do estaleiro e armasse os explosivos que iam derrubar as duas hastes paralelas,
interrompendo a abertura do portal. Os alemães estavam fortemente armados e decidiram
revidar, dando início a um combate que obrigou as Aranhas a recuarem. Eu era o elemento
surpresa naquela operação e desci a campo para bater de frente com os bruxos. Felizmente,
para minha sorte, os sete irmãos da Ordem haviam gasto boa parte de suas energias místicas
para abrir o portal e não foi difícil superá-los. Eu não contava, no entanto, que eles também
tinham um elemento surpresa esperando por mim, e naquele momento, eu fui atingida nas
costas por dois tiros que me abalaram mais do que deviam. O portal ainda estava ativo,
ameaçando sugar tudo ao redor para dentro de si, fazendo-o se tornar ainda mais forte, e
caída no chão, comecei a ser arrastada em direção a ele, enquanto lutava para me manter
consciente.
— Não devia ter se metido com a Ordem Negra, noctem daemonium! — Disse o sujeito de
cabeça desnuda que saía das sombras, com um tipo de pistola que eu nunca havia visto a
fumegar pelo cano em uma das mãos. — Diferente de Adon e sua obsessão ridícula pela sua
raça de sanguessugas, nós desprezamos vocês. Por isso desenvolvemos várias maneiras de
acabar com a sua laia.
A Ordem Negra era o grupo dissidente da Ordo Ignis Veni mais radical que havíamos
encontrado e seu modus operandi era diferente de quase tudo aquilo que Adon pregava com
sua seita. A arma que o homem careca me apontava era um aparato tecnológico
desenvolvido por uma empresa alemã designada como Die Maschine, pioneira em
armamentos e equipamentos de engenharia experimental. As hastes que vibravam um tipo
de campo energético sobre nossas cabeças, o gerador elétrico que as alimentava e até a
máquina que comandava a abertura do portal, eram todas invenções da tal empresa. Um
novo tiro explodiu em meu ombro naquele momento e eu pude sentir o gosto de metal em
minha língua. Eles tinham se baseado nas balas revestidas com nitrato de prata criadas pela
Teia para desenvolver sua arma e eu tinha certeza que não era a primeira vampira a sentir os
efeitos devastadores daquela munição.
— A Die Maschine lhe manda os devidos cumprimentos, demônio. Gute Reise!
Usando um último resquício de força que me restava, eu impulsionei os músculos da perna e
saltei sobre o alemão sem cabelos. Ele mirava sua arma em minha cabeça, ali comigo
ajoelhada no chão, pronto a me executar, quando usei minha velocidade para contra-atacar.
Senti a bala atingir meu abdômen logo que me aproximei, mas aquele foi o último tiro que o
careca conseguiu disparar. Eu destronquei seu pescoço antes mesmo que ele pudesse dizer
mais qualquer uma de suas frases arrogantes e então eu caí no chão, sentindo a prata me
enfraquecer cada vez mais. Ali perto, Jacqueline tinha terminado de armar seus explosivos e
ela surgiu para me ajudar a levantar. Mais além, os nazistas sobressalentes atiravam contra
as Aranhas, protegidas atrás de contêineres de ferro nos estaleiros. Nós duas não tínhamos
como alcançá-las.
— Vamos nos afastar daqui. Os explosivos vão detonar a qualquer segundo. Eu acionei o
pavio.
As palavras da francesa se perderam quando uma explosão fenomenal pôs abaixo uma das
hastes gigantes, derrubando seus destroços metálicos sobre as cabeças dos soldados alemães.
Nós duas fomos arremessadas para a frente com o impacto da detonação e caímos do cais,
dentro das águas frias do rio Reno.
Eu não sei quanto tempo passei submersa após a destruição do portal da Ordem Negra com
os nazistas, mas quando acordei, meu corpo estava a muitos pés de profundidade no interior
do rio Reno. Por um breve instante, achei que havia morrido mais uma vez, mas quando
cheguei à conclusão que sentia dor demais para estar morta, reuni forças para nadar e
emergir. Enquanto estava desmaiada, eu tinha sido arrastada por mais de 200 km de
Düsseldorf até a cidade de Mannheim, e quando saí da água, tive que buscar abrigo
imediatamente. Fazia um dia muito ensolarado. No trajeto até uma igreja de arquitetura
gótica, minha pele foi quase totalmente queimada e quem me viu passar correndo
desesperada, provavelmente imaginou que eu fosse uma tocha humana. A sacristia da igreja
era o local mais escuro e longe do sol que eu podia encontrar naquele momento, e decidi
ficar ali até que a noite caísse mais uma vez.
Envenenada por quatro balas de prata e queimada pela luz solar após ficar possivelmente
dias submersa dentro de um rio, eu não sabia quanto tempo ainda ia conseguir resistir sem
alimento, o que me fez sair para caçar na noite de Mannheim. Agora era uma questão de
sobrevivência e eu não podia me dar ao luxo de escolher vítimas.
As ruas da cidade estavam incrivelmente vazias após um toque de recolher imposto pelo
governo nazista e eu fui atraída pelo estampido de tiros disparados a alguns quilômetros dali.
Eu mal conseguia andar de tanta dor, mas minha audição ainda estava funcionando
perfeitamente. À medida que eu me aproximava, eu ouvia quatro soldados alemães dando
ordens aos gritos, enquanto tentavam invadir uma propriedade local. A casa era um sobrado
de subúrbio e na parte de cima, eu conseguia contar quatro batimentos cardíacos distintos. A
pulsação acelerada do que parecia ser uma família, mostrava que eles estavam desesperados,
encolhidos juntos dentro de um quarto de três metros quadrados. Era certo que os soldados
não estavam ali para uma visita cordial e eu cheguei à esquina da casa no momento exato
em que o portão de ferro cedeu e os homens invadiram.
Aqueles soldados alemães me dariam um suculento banquete, e uma vez que eles estavam
ameaçando uma aparente família indefesa, seria como matar dois coelhos com uma só
cajadada. A porta de madeira no andar superior resistiu o bastante aos pontapés dos
coturnos para que eu me arrastasse até o alto das escadas e os surpreendesse por trás. Eu
estava fraca demais quando uma rajada de metralhadora me atingiu o peito e varou minhas
costas logo que eu consegui matar o primeiro deles, esmagando sua cabeça contra a parede
do corredor estreito, com acesso ao quarto da família escondida. As balas de chumbo normal
não costumavam me ferir tanto, mas em meu atual estado deplorável, comecei a sentir meu
sangue vertendo sem parar dos ferimentos. Segurando o cano da arma e a forçando para
baixo, avancei na jugular do segundo soldado, começando a sugar seu sangue. O terceiro
veio por trás e me atingiu com dois tiros no ombro. As balas atravessaram meu corpo e
explodiram a cabeça daquele com a qual eu me alimentava. Acertei um chute em meu
agressor e o joguei escada abaixo.
— Verdammter Hund! Ich bring dich um!

Eu não tinha estudado muito o idioma alemão com Gavril e Jacqueline, mas tinha quase
certeza que o quarto soldado estava me dizendo muitas coisas feias enquanto me atingia
com socos. Ele tinha deixado sua pistola cair quando os surpreendi à porta daquela família,
e o espaço em que estávamos era estreito demais para que ele conseguisse abaixar para pegá-
la. Enquanto aquele que eu tinha jogado pelas escadas se recuperava e já fazia menção de
subir de volta os degraus, eu ataquei seu colega, mordendo seu pescoço. Seu sangue
começou a encher minha boca, descendo quente pela minha garganta, enquanto ele se
debatia tentando se libertar. Eu ainda não tinha terminado meu lanche quando o irritante
cara das escadas me alcançou e pôs-se a me dar mais tiros com sua Luger P08. A família
alemã gritava no interior do cômodo, a apenas alguns metros de nós, sem saber o que
exatamente estava acontecendo. Eu deixei o soldado descarregar todas suas balas em mim e
então eu o subjuguei, segurando seu braço para trás e batendo seu rosto com força contra a
parede do corredor.
— O que vocês querem com essa família, seus nazistas nojentos?
Eu falei em romeno e ele não parecia ser capaz de compreender. Tentei em alemão e ele
respondeu:
— Recebemos informações do alto comando... — E ele gemeu, com o braço quase sendo
partido em dois pelas minhas mãos — Podem ser judeus! Têm sobrenome judeu!
Hitler vinha tentando exterminar todas as minorias desde que havia assumido o poder em
solo alemão e os judeus, assim como os negros e os homossexuais, eram seus principais
alvos. Aqueles quatro soldados estavam ali porque havia a suspeita de que a família
encolhida no quarto ao lado podia ser judia e aquela era a razão de tamanha truculência. Eu
ainda estava faminta e ferida. Tão logo obtive minha resposta, eu cravei minhas presas no
pescoço daquele jovem soldado alemão e não o larguei até que não restasse uma única gota
de sangue em seu corpo. A cena do lado de fora do quarto era assustadora. Havia um
soldado com a cabeça aberta por dois tiros, outro cujos miolos estavam espalhados na
parede e dois deles sugados até a morte. Havia sangue e restos de massa cinzenta por toda
parte, inclusive em minha roupa. A maçaneta da porta não resistiu muito a meu empurrão e
fui recepcionada por gritos. O pai e a mãe estavam agarrados a um menino loiro de pele suja
e a uma menina, trajando um vestido rasgado.
— Não vou lhes fazer mal. Eu estou aqui para salvar vocês.
Minha pronúncia alemã era bem medíocre e eu não tinha certeza se eles tinham me
compreendido. O marido tinha um bigode espesso no rosto redondo e lágrimas escorriam de
seus olhos. O menino devia ter uns seis anos e estava agarrado ao pai, não querendo soltá-lo
por nada. A mulher nem conseguia me encarar, aterrorizada, e a garotinha tremia dos pés à
cabeça, com os olhos azuis encharcados.
— Esses soldados estavam aqui para matar sua família. — E eu apontei para os corpos do
lado de fora, largados no corredor. — Disseram que vocês são judeus e que tinham recebido
ordens de execução.
— Judeus? N-Não somos judeus.
O homem enfim conseguir dizer alguma coisa e passei os minutos seguintes tentando
acalmá-lo. Eu não estava mais com as presas de fora e apesar de minha aparência surrada e
ensanguentada, eu agora me assemelhava a uma humana. O marido contou com voz
gaguejante que se chamava Konrad e que aquela não era a primeira vez que seu sobrenome
era confundido com o de judeus foragidos. Schneider era um nome muito comum a famílias
judias na Alemanha e ele não entendia todo o ódio que o regime nazista nutria por aquele
povo.
— Pegue sua família e fuja desse país, Konrad. As coisas tendem a piorar por aqui até que
essa guerra acabe. Embarque em um navio, vá para a Argentina, Peru, Brasil. Qualquer
lugar bem longe daqui. Salve sua família.
Os Schneider decidiram acatar minha sugestão e naquela mesma noite eles partiram de
Mannheim para o Brasil, país que estava atuando na guerra pelo lado dos Aliados. Eu os
acompanhei até bem próximo da saída da cidade, para me certificar que ficariam bem e
algum tempo depois, caí desfalecida em uma sarjeta, ainda sentindo as mazelas provocadas
por meus ferimentos.
Alguns dias se passaram após o encontro com os Schneider, e eu saí de Mannheim direto
para Stuttgart, onde procurei apoio de um dos membros da Teia que morava por lá. Erich
Brandt era um químico alemão aposentado que morava com a esposa e dois filhos num
chalé aprazível nos arredores da cidade, e em todo aquele tempo atuando com o grupo, eu só
o tinha visto pessoalmente uma vez. Cheguei à sua porta quase morta naquela noite e ele e a
mulher me ajudaram imediatamente, eliminando parte da prata que estava envenenando
meu sangue em seu laboratório. Passei três dias em sua casa e enquanto me recuperava, ele
me contou que havia recebido notícias da rede de informação da Teia, dizendo que as
Aranhas sobreviventes, incluindo Jacqueline, que havia sobrevivido à explosão, estavam
sendo caçadas pela Ordem Negra em toda a Alemanha.
— Os líderes da Ordem Negra não ficaram nada satisfeitos com o que vocês fizeram em
Düsseldorf e começaram a perseguir as responsáveis. Agora que eles contam com o suporte
tecnológico dessa nova empresa Die Maschine, eles não vão parar até conseguir eliminar
todas as Aranhas. — Disse aquele senhor de cabelos e barbas grisalhas a minha frente. Seu
tom era soturno.
No último dia em Stuttgart, eu recebi duas das piores notícias que poderia receber através de
Brandt e seus contatos com a central da Teia. Prestes a partir, eu já estava vestindo as roupas
de sua filha Stella que sua esposa gentilmente havia me cedido, quando ele irrompeu no
quarto com semblante triste.
— Acabamos de saber que Nadine foi capturada e executada em Düsseldorf. Seu corpo foi
encontrado decapitado próximo a um aterro sanitário da cidade.
Mais uma vez meus sentimentos humanos afloraram em detrimento da frieza vampira que
me era mais comum, mas ainda podia piorar.
— E tem mais. Outro de nossos agentes foi abatido em Szeged, em batalha das forças
militares búlgaras e húngaras contra invasores alemães. Ele lutou bravamente, mas parece
que sua tropa foi cercada por soldados inimigos após uma emboscada. Gavril Georghiev está
morto.
A notícia da morte de Gavril na Segunda Guerra me abalou mais do que eu gostaria de
admitir, e em todo o trajeto de Stuttgart até a região da Floresta Negra — próximo à
fronteira com a França — eu me peguei pensando em tudo que havíamos vivido juntos
naquele período de convivência quase constante. Ele não era nada mais do que um recém-
formado antropólogo tímido e medroso quando me abordou no Clube da Madame Ilka em
Oradea, e eu o tinha visto se tornar um proeminente estudioso e especialista no ocultismo
naqueles mais de dez anos de trabalho na Teia. Era fascinado por magia, criaturas místicas e
tudo que era minimamente ligado a isso, e tinha se tornado um bom amigo, num mundo que
temia e odiava quem eu realmente era.
Quando cheguei a Schwarzwald, pronta para atravessar a fronteira para a França e de lá
conseguir transporte para a União Soviética, descobri que meu sentimento de vingança pela
morte de Gavril jamais poderia ser saciado, uma vez que ele tinha sido abatido numa
batalha sem sentido em que ele nem deveria estar. A Bulgária, havia começado a guerra
atuando pelo lado do Eixo, apoiando Hitler, e só quando o novo primeiro-ministro Ivan
Ivanov Bagrianov assumiu o governo é que o país decidiu assinar um acordo com os
Aliados, passando a lutar junto do Exército Vermelho soviético. Gavril havia lutado por
obrigação à sua pátria boa parte do tempo do lado errado e não me parecia justo que ele
também tivesse sido sacrificado em meio àquele conflito insano que já tinha tirado a vida de
mais de 80 milhões de pessoas no mundo todo. “Que pelo menos você possa descansar em paz,
meu bom amigo”.
Eu não sabia na época, mas quando cheguei à fronteira perto da Floresta Negra, um
destacamento das tropas do general francês Charles de Gaulle estava em conflito armado
contra insurgentes alemães que brigavam para manter seu território. Eu fui apanhada no
calor da batalha. Um tanque Panzer havia encurralado soldados franceses e belgas num
bairro pobre da cidade alemã, enquanto um Tiger desfilava barulhento pelas ruas, disparando
de sua base a esmo contra casas e prédios da já devastada vizinhança. Por mais forte que
fosse, eu sabia que ainda não estava em condições de enfrentar dois tanques de guerra
praticamente indestrutíveis, e naquele momento, percebi que aqueles soldados aliados
estariam por conta própria. Quando um disparo de tanque atingiu a marquise de um prédio
acima da minha cabeça, fui obrigada a me esconder dos destroços que despencaram pesados
e ruidosos na calçada onde eu andava. Ainda era o meio da tarde daquele dia e mesmo com
o céu encoberto por nuvens espessas, o sol por trás delas ainda estava me enfraquecendo,
bem como queimando minha pele. Meu plano era esperar no interior daquele prédio até que
a noite caísse. Se até lá aqueles soldados alemães ainda estivessem na rua, eu mesma ia dar
cabo deles.
Meu plano foi por água abaixo quando do térreo, eu ouvi o choro de uma criança vindo do
segundo andar. O lamento era estridente e agudo, o que não demoraria a chamar a atenção
dos soldados que marchavam a poucos metros dali, acompanhando o tanque Tiger. O prédio
residencial era decadente e frágil, e conforme eu subia as escadas, sentia os degraus
tremularem embaixo de meus pés, prontos a ruírem. Eu já ouvia os gritos dos alemães do
lado de fora e era quase certo que eles também tinham ouvido o choro do bebê. A entrada do
lugar agora estava obstruída pelos entulhos da marquise que tinha sido derrubada pelo tiro
do tanque, mas era uma questão de tempo até que os homens entrassem.
O segundo andar possuía quatro apartamentos divididos em dois blocos. Eu podia ouvir o
bebê resmungando ao final do corredor, enquanto uma mão feminina procurava abafar seu
choro. Elas tinham o mesmo cheiro. Eram mãe e filha. Haviam pessoas mortas empilhadas
nos outros três quartos e pelo odor que exalava de dentro, dava para imaginar que estavam
ali há vários dias. Do corredor, eu ouvia a mãe cantar uma antiga canção de ninar francesa,
tentando forçar a criança a dormir, mas ela não parava de chorar, faminta. A mulher
também estava aos prantos, e quando abri a porta, ela desesperou-se:
— Ne tue pas mon bébé! S’il vous plaît! S’IL VOUS PLAÎT!
Ela estava implorando para que eu não matasse a menina em seu colo e eu fui rápida a
encurralá-la no canto da parede, colocando minha mão sobre sua boca. Sussurrei:
— Cale-se! Eles vão nos ouvir!
Os homens lá embaixo já tinham detonado a entrada com uma granada e começavam a
ganhar espaço no saguão do térreo. Era uma questão de tempo até que estivessem no
segundo andar e completassem o serviço que tinham começado nos apartamentos ao lado.
Aquele era um bairro ocupado por algumas famílias francesas ainda em território alemão e
era bem claro que os soldados do Eixo não estavam felizes em abrigar descendentes de seus
inimigos de guerra em seu país. Aquela mulher de cabelos escuros e belíssimos olhos azuis
que chorava copiosamente à minha frente tinha se fingido de morta por dois dias com sua
bebê e somente por isso ela tinha escapado da fúria dos soldados que àquela altura da guerra,
estavam atirando até em cachorro vira-latas na rua. Ela era francesa, como seus vizinhos e a
bebê loira em seu colo era fruto de seu casamento com um metalúrgico alemão que estava
servindo ao exército na Hungria quando havia morrido há cinco meses. Ela me contou tudo
aquilo num idioma que ia do alemão ao francês.
— Não faça barulho. Eu vou distrair os soldados para tirar você e a bebê daqui.
Eu sabia bem que não estava em condições de entrar em outro combate após ser quase morta
por quatro balas de prata que ainda me custavam dores intensas pelo corpo, mas comecei a
tentar alcançar as escadas com cautela, pronta a bater de frente com os soldados. Quando
passei em frente à janela de vidros foscos ao final do corredor que dava acesso às escadas,
acabei chamando a atenção do piloto do tanque do lado de fora e ele disparou. O projétil
explodiu a parede lateral do corredor e senti meu corpo ser projetado com violência para
trás. A luz do dia começou a invadir o prédio que até então estava na penumbra pela falta de
energia elétrica e a minha pele voltou a queimar. Eu estava caída embaixo dos destroços da
parede e contabilizava pelo menos três costelas quebradas, além de um ferimento na base do
rim direito. Havia um fragmento do tamanho da lâmina de uma catana japonesa fincado
dentro de mim, mas eu tive que reagir quando dois dos soldados surgiram ao pé da escada,
já dando ordens de rendição. Eu sabia que não podia contar com a benevolência dos
alemães, por isso, mesmo em frangalhos, eu me ergui, arranquei o espeto metálico em meu
rim e o arremessei com toda força feito um dardo em direção à cabeça do soldado na ponta.
— Töte ihn! TÖTE IHN!
Vendo a cabeça do colega ser partida ao meio pelo fragmento de ferro, mais dois soldados
vieram em seguida, disparando suas barulhentas MP40 contra mim. Eu estava mais lenta do
que imaginava e eu fui alvejada antes que pudesse me esquivar. Caída mais uma vez, eu ouvi
o bebê voltar a chorar ao fundo do corredor e aquilo me encheu de adrenalina. Os dois
primeiros soldados com as submetralhadoras em punho já tinham passado por mim, em
busca da fonte do choro infantil e eu só consegui deter o terceiro, agarrando-o pelo tornozelo
e virando-o para trás. Eu tinha fraturado o pé do homem de maneira irreversível e enquanto
ele gritava de dor, seu dedo acionou o gatilho. Dei-lhe um soco para deter sua ação e sem
alternativa, ainda largada no chão, eu fuzilei seus companheiros, que já se aproximavam da
entrada do apartamento onde a francesa se escondia. Eu nunca tinha usado uma arma de
fogo antes, mas a sensação de ter aquele monstro de ferro em meus braços cuspindo chumbo
e fazendo explodir meus inimigos era de certa maneira satisfatória. A parede ao fundo do
corredor estava agora toda impregnada de sangue, vísceras e miolos e eu me arrastei até o
apartamento, mandando que a mulher agisse:
— Não temos muito tempo. Precisamos fugir.
Ela estava me olhando aterrorizada do chão, ali me vendo diante da porta toda
ensanguentada. A perfuração em meu rim estava encharcando a blusa emprestada pela filha
de Erich e naquele momento eu sorri, quando imaginei que a moça não teria sua roupa de
volta.
Usando meus sentidos aguçados, consegui ouvir o alemão dentro do tanque dizendo que
aguardava novo comando para voltar a atirar lá embaixo da rua. Mais seis homens entravam
no prédio pelo saguão munidos de metralhadoras e explosivos. Eu mal estava conseguindo
parar em pé, com as costelas quebradas e um rim perfurado, além das queimaduras na pele.
Eu não estava me aguentando sozinha e agora tinha a tiracolo uma mulher assustada com
um bebê indefeso de dois meses para proteger. “No que eu estou pensando? Eu não vou conseguir
passar por esses soldados e proteger essa mulher ao mesmo tempo”, pensei, enquanto atingíamos o
primeiro andar. Conseguia ouvir o engatilhar de armas na metade das escadas e dali já sentia
o fedor dos alemães. De súbito, empurrei a francesa para dentro de um dos quatro
apartamentos daquele corredor.
— Se protege.
O primeiro soldado deu as caras logo em seguida e ele começou a atirar para todos os lados,
tentando me acertar. Com toda a força que tinha na perna, eu o chutei e o pontapé afundou
sua caixa torácica, enquanto ele continuava disparando sua arma a esmo. O alemão rolou
escada abaixo e derrubou os colegas que vinham em seguida. Ao pé do último degrau, um
deles se recuperou a tempo e me fulminou com uma rajada que me atingiu bem na virilha.
Eu caí desequilibrada na escada e o homem se precipitou sobre mim, procurando explodir a
minha cabeça com sua metralhadora infernal. Minha audição sensível foi prejudicada com
aquele barulho ensurdecedor ecoando em espaço tão restrito e tão perto de meu rosto. Me
guiei pelo olfato para agarrar o cano da arma e o empurrar para o lado, direcionando os tiros
para a parede. A cuspidora de chumbo engasgou quando o pente de munição se esvaziou e
eu a usei como uma lança, empalando o soldado com o cano. Sem força nas pernas, me
joguei sobre os soldados feridos lá embaixo e os matei mesmo caída, batendo suas cabeças
contra o piso das escadas. A fragilidade dos degraus fez com que o chão cedesse sob nós três
e despencamos para o térreo, causando um estrondo que estremeceu o restante do prédio
envelhecido. Extremamente ferida, soterrada em meio aos restos da escada, eu agora mal
conseguia me manter consciente. Os outros três soldados que haviam invadido o prédio já
miravam suas armas contra a minha cabeça, a quatro metros de mim. Meus braços tremiam
enquanto eu tentava me soerguer, e mesmo dolorida, cuspindo sangue, esbravejei:
— Q-Quem é o próximo?
Quando o som de tiros ecoou mais uma vez em meus ouvidos zunindo, eu achei que tinha
terminado. Àquela distância eu não tinha como me esquivar e dado meu atual estado físico,
mesmo se eles não explodissem meu corpo com seus malditos explosivos, eu sangraria ali até
a morte. Quando abri meus olhos novamente, não era eu quem tinha sido atingida. Os três
alemães jaziam fuzilados, caídos de frente no chão, e um soldado de ombros largos, barba
por fazer e capacete na cabeça adentrava o lugar.
— Alexia? É mesmo você?
O soldado italiano Enzo Di Grassi, mais conhecido com o pseudônimo de “Marco Polo”
havia desertado ainda nos primeiros meses da Segunda Guerra Mundial e fazia parte agora
de um esquadrão de elite destinado a exterminar soldados nazistas. Quando ele percebeu
que estava sendo usado como massa de manobra do governo fascista de Benito Mussolini e
apontando sua arma contra aqueles que na verdade ele queria defender, Di Grassi decidiu
pular fora do barco, levando consigo três outros colegas do batalhão italiano. Os quatro
juntos se aliarem a dois franceses e um espanhol, que igualmente se sentiam insatisfeitos
com os rumos que a grande guerra havia tomado, começando a chamar a si mesmos com a
infame alcunha de “Os Batedores de Ferro”. Os Batedores vinham combatendo nazistas pela
Europa da mesma forma que a Teia combatia ocultistas malignos pelo mundo, e aquilo fez
com que Marco Polo se sentisse em casa ao longo daqueles últimos anos, ao lado de seus
companheiros.
Após render o piloto do tanque Tiger estacionado no meio da rua de Schwartzwald e ajudar
os combatentes franceses e belgas com o Panzer a alguns quilômetros dali, Marco e seus
rapazes uniram esforços para resgatar a moça francesa que tinha ficado no andar de cima,
protegendo seu bebê. Eu ainda estava muito enfraquecida, sentindo o cheiro de sangue nos
corpos daqueles homens mortos no saguão ao mesmo tempo que sentia a boca encher-se de
água por conta disso, quando a voz de Marco me chamou a atenção do alto do rombo que
havia se formado pelo desabamento da escada. Ele trazia em seus braços enormes a pequena
criança enrolada em uma manta suja de sangue, e naquele momento, eu esperei o pior.
— A francesa deve ter sido apanhada em meio ao tiroteio enquanto você lutava na escada.
Ela está morta.
Eu tentei me erguer, sentindo o meio de minhas pernas latejar com os tiros que havia levado
na região. Um dos rapazes dos Batedores me ajudou a ficar em pé, então perguntei, já
sentindo a voz ficar embargada:
— A criança... Ela está --
Um choro irrompeu naquele momento entre as dobras da manta e então Marco falou,
abrindo um sorriso.
— Ela está bem. Até mijou em mim!
Capítulo 9 – O Château de Avignon
O SUICÍDIO de Adolf Hitler e a rendição dos japoneses aos Aliados havia encerrado a
Segunda Guerra Mundial em 1945, mas as consequências daquele conflito ainda seriam
sentidas por várias gerações que nasceriam a partir dali. O mundo nunca mais seria o mesmo
depois de tanta dor e sofrimento, o que na época, me fez tomar a decisão mais acertada: Me
isolar da violência que eu parecia atrair desde que havia me tornado uma vampira. Assim
que a guerra acabou, eu me mudei para a França.
Vaucluse era uma região localizada no Sudeste francês, cujas montanhas ocupavam metade
de sua região. A aproximadamente 200 km de distância de Lyon, o distrito, e sua capital
Avignon, abrigavam na década de 40 museus, teatros e até mosteiros, tendo servido como
sede papal da Igreja Católica no século XIV. Me valendo do lucro paulatino que a minha
mineradora russa agora rendia, dados os danos causados pela Segunda Guerra na economia
— e também pelo sistema socialista onde a empresa estava fixada —, eu comprei um castelo
próximo ao Mont Ventoux, o que permitia uma vista magnífica de Avignon lá de cima. A
região era repleta de penhascos, mas também era rica em vegetação, com uma variedade
muito grande de plantas em sua encosta. Era o lugar perfeito para se criar uma filha.
Meu organismo não era mais capaz de me fazer gerar uma criança em meu ventre desde que
Dumitri havia me inoculado com a infecção vampírica que me tornava jovem para sempre,
mas que ao mesmo tempo havia matado metade do ser humano que eu era. Meu sistema
reprodutor estava tão seco quanto inválido e nenhum poder no mundo era capaz de, pelos
meios naturais, me tornar mãe novamente. Eu havia sentido uma vida crescendo dentro de
mim uma vez, quando ainda era somente Alina da Valáquia, mas aquilo fazia parte de um
passado muito distante, que aos poucos estava se apagando em minha memória. Ser uma
vampira também me tornava, em boa parte do meu tempo, indiferente aos sentimentos
humanos, fria, antipática. Raras vezes eu sentia meu próprio corpo reagir a qualquer tipo de
sofrimento alheio, preocupação ou mesmo alegria. Naqueles quase cem anos, meu lado
humano tinha reagido somente em raríssimos casos, pela perda de um amigo — como
Alejandro e Gavril — ou por amor, como quando Costel partiu meu coração inúmeras
vezes. Depois dos horrores da guerra, no entanto, percebi que estava bem mais fragilizada do
que já estivera em mais de cinquenta anos, e algo nos inocentes olhos de Alexandra mexeu
comigo.
Cinco anos após a guerra, eu decidi que era hora de estabelecer uma família, por isso, aceitei
o pedido de casamento de Enzo Di Grassi. Fizemos uma cerimônia simples para poucos
convidados em Veneza, na cidade onde ele havia nascido e crescido, e após os ritos
costumeiros no cartório civil, — até porque não faria sentido nos casarmos dentro de uma
igreja — nós nos mudamos de vez para Vaucluse. Eu estava extremamente exausta da vida
agitada que estava levando, seja como empresária na União Soviética ou como agente
operativa da Teia, e senti que aquela pausa me seria bem-vinda. Minha perspectiva de vida
havia se alterado completamente depois que eu havia decidido criar o bebê órfão que
havíamos resgatado em Schwarzwald, pouco após as ações que praticamente destruíram a
Teia, e a partir de então, eu estava decidida a dedicar minha vida inteira à educação de
Alexandra, como eu registrei a menina.
— Alexandra Di Grassi soa bem, não é mesmo? — Disse-me Enzo à época, encantado com
os belos azuis que quella bambina ostentava.
Agora que eu queria ser uma mãe exemplar para Alexandra, eu precisava de empregados
para me ajudar a cuidar da menina dentro daquele castelo enorme que havia adquirido no
monte francês, e então, fiz uma sessão de recrutamento para escolher os melhores
disponíveis na região. Cécille era uma experiente governanta austríaca que já havia
trabalhado em palácios europeus servindo condes e príncipes, e ela foi a primeira a me
chamar a atenção com sua educação refinada, o sotaque vienense, as roupas asseadas e os
cabelos presos impecavelmente num coque. Logo depois, vieram Danielle, a babá de vinte e
três anos de olhos grandes e castanhos que cuidaria de Alex em minha ausência e Maurice, o
chef de cozinha alto e magro de Nice. Também tinha Remy, o ajudante-geral — cuja
discrição me fazia lembrar de Nikolai, meu serviçal búlgaro de Kainski — e Pierre, que
ficaria responsável pelo jardim e pelos estábulos. Ele agora era um senhor aposentado
ostentando fartas madeixas grisalhas, mas logo que soube que ainda estava na ativa e
necessitando de emprego, tratei de contratar meu bom Fabrice para continuar como o
motorista oficial da família Di Grassi. Enzo sentia falta de ter alguém para conversar em seu
próprio idioma nos alpes franceses e o siciliano lhe supriu essa necessidade.
Os primeiros cinco anos em Vaucluse foram muito tranquilos e por muito tempo, tudo com
que tinha que me preocupar era com Alex, que estava crescendo linda e a olhos vistos. Ela
agora tinha cachos dourados volumosos caindo do alto da cabeça e seus olhos irradiavam de
alegria. Adorava brincar de pega-pega com a babá francesa e quase extenuava a moça de
tanto correr pelo quintal nos dias ensolarados. Sua risada gostosa podia ser ouvida de
qualquer canto do castelo de quase meio quilômetro de extensão, e toda aquela sua
felicidade infantil era contagiante. A beleza da mãe francesa — e muito provavelmente
também do pai alemão — tinha sido reproduzida em seu rosto simétrico e rosado com
exatidão, e eu me pegava sorrindo sozinha a olhá-la brincando no quintal sob o sol,
acompanhando tudo de dentro do castelo, através da janela.
Nem Alex nem os empregados — exceto Fabrice — sabiam que eu não saía de casa durante
o dia porque era uma vampira, e tratei de manter aquele mistério em torno de meus hábitos
noturnos. Para todos os efeitos, eu sofria de uma rara enfermidade dermatológica que me
impedia de tomar sol, e enquanto eu cuidava das questões da Rassvet trancada em meu
escritório sem janelas durante o dia, era Danielle e Pierre quem cuidavam de minha filha do
lado de fora. Isso quando o próprio Enzo não se encarregava de levá-la para passear de
cavalo no bosque até o fim da tarde, se divertindo horrores na companhia da pequena.
No quinto ano em Vaucluse, um telefonema em meu escritório me pegou de surpresa, e ouvi
minha secretária em Moscou começar a dizer, esbaforida:
— Senhora Alexia? Um grupo ucraniano tem comprado ações da Rassvet nos principais
mercados econômicos da Europa nos últimos seis meses e dizem que ele quer assumir a
empresa já no próximo semestre. Não sabemos mais o que fazer.
A Rassvet havia se tornado uma empresa de capital aberto ainda na década de 30, quando a
recessão aumentou em todo o mundo obrigando os grandes grupos a fazerem restruturações.
O acúmulo de dívidas no início da década seguinte também havia me obrigado a permitir
que ações fossem liberadas nas principais Bolsas de Valores, e aquilo ajudou minha empresa
a se manter ativa. Agora que a economia voltava a se recuperar lentamente, eu planejava
abrir filiais na América, mas aquele avanço ferino do tal grupo ucraniano ameaçava meus
planos de expansão. Eu precisava salvar minha principal fonte de renda, e não podia esperar
mais.
Era outono na França quando me despedi de Alex no portão do castelo, deixando-a sob os
cuidados de Cécille e Danielle.
— A mamãe promete voltar logo, Alex. É só uma viagem curta até Genova. Em alguns dias
papai e eu estaremos de volta.
A menina era extremamente apegada a mim e a Enzo, e enquanto nos despedíamos dela,
caminhando até o Alfa Romeo 1900 prata estacionado em frente ao portão, lágrimas
rolavam de seus olhinhos.
— O papai promete trazer na volta aquele chocolate suíço que você adora, mia piccola. —
Disse Enzo, já sentado no banco do carona, ao lado de Fabrice, tentando deixar Alex menos
triste com nossa partida.
— Te amo, papa! — Disse a pequena em italiano, com a voz embargada, no colo de Danielle,
acenando para ele no alto da escada. Era a primeira vez que me separava dela por um
período tão longo e mais um pouco, lágrimas de sangue iam escorrer também de meus
olhos.
A nossa viagem até Genova era com o intuito de nos encontrarmos com Miguel Harone, um
velho conhecido de Enzo dos tempos de guerra. O espanhol era formado em administração
de empresas antes mesmo de se aventurar a caçar nazistas ao lado dos Batedores de Ferro, e
ele foi a primeira opção de meu marido quando mencionei os problemas que estava tendo
com a Rassvet. Harone havia aberto uma empresa de consultoria administrativa na Itália
desde o fim da guerra, e estava lucrando bastante cuidando de casos como o meu. Ele estava
disposto a viajar comigo para Moscou a fim de estabilizar a compra e a venda de ações da
minha mineradora, e sugeriu um escritório de advocacia local para investigar o tal grupo
ucraniano que estava querendo absorver meus negócios extrativistas.
— Os donos são conhecidos meus dos tempos de faculdade, nosso campus era bem perto um
do outro. Eles têm um escritório aqui em Genova, mas em breve pretendem expandir para
outros lugares do mundo. Pode confiar.
Harone me deu o cartão do tal escritório de advocacia, e nele estava impresso CASAVETTE
& MONTANARO em letras vermelhas garrafais. Valia a pena tentar.
A briga jurídica pela retenção de meus 51% como acionista majoritária da Rassvet foi longa
e extenuante, mas em junho de 1951, eu perdi o controle principal da empresa para o grupo
ucraniano conhecido apenas como Novyy Kordon. Aquilo me obrigou a diminuir os gastos no
castelo de Vaucluse e reduzir o efetivo de empregados do lugar. Embora ainda detivesse
parte das ações e ainda pudesse ser ouvida como conselheira na tomada de ações, eles não
dependiam mais de mim para dar a palavra final. Enzo passou a trabalhar com Harone em
seu escritório na Itália, procurando reaver meu controle sobre a Rassvet, mas em outubro
daquele ano, a empresa mudou de nome, invalidando praticamente tudo que ela havia
representado sob meu comando nas últimas décadas. Eu tinha perdido minha principal fonte
de lucro.
Em 1952, na festa de aniversário de oito anos de Alexandra, Miguel me apresentou quatro
possíveis aquisições empresariais que podiam me interessar e eu fiquei de estudar cada uma
das propostas com mais calma. Embora boa parte da fonte da Rassvet tivesse secado, eu
havia mantido um percentual considerável da riqueza do velho Rodchenko em meu nome,
convertida principalmente em joias e em imóveis. Se as coisas não melhorassem pelos
próximos meses, a saída ia ser transformar aqueles bens em dinheiro e investir numa nova
empresa. O amigo espanhol de Enzo parecia realmente interessado em nos ajudar, e ele
tornou-se um excelente padrinho para Alex, sempre a cobrindo de bonecas caras e outros
presentes diversos quando nos visitava no castelo. A menina também o adorava.
No verão de 1953, Enzo caiu de cama febril e parecia que não haviam meios de impedi-lo de
delirar, suar em bicas e falar coisas desconexas. Eu tinha chamado um velho médico suíço
para examiná-lo em nosso quarto, no segundo andar do castelo, mas fora os comprimidos
antitérmicos e a sugestão de fazer muita compressa com água morna em seu corpo, ele nada
mais pode fazer por meu marido. Eu mesma cuidei de Enzo nos três dias em que ele foi
tomado por aquele mal-estar e não deixei que Alex se aproximasse naquele período. Com a
contenção de gastos, eu tinha sido obrigada a dispensar Cécille, Pierre e Maurice, mas fiz
questão de manter Danielle morando conosco. Naqueles dias, ela foi a melhor companhia
que minha linda filha podia ter e quando o pai melhorou, tudo voltou ao normal.
Na semana seguinte da febre, uma lua cheia maravilhosa ganhou espaço no céu estrelado do
Sudeste francês e Enzo e eu fizemos amor em nosso quarto como há muito tempo não
fazíamos. Agora que tínhamos uma filha pequena em casa e empregados dormindo em
nosso castelo, não podíamos mais nos amar como fazíamos em nosso tempo de agentes da
Teia, seja no casebre em Eindhoven, no campo de orquídeas em Madri ou naquele telhado
em Viena. Os grunhidos animalescos, os gemidos uivantes e os arranhões profundos tinham
se convertido em sussurros e gritos abafados por travesseiros de penas de ganso. Não nos
dávamos ao luxo de fazer sexo selvagem há muito tempo. Aquela noite, no entanto, abrimos
uma pequena exceção aos arranhões, deixando marcas de cortes um nas costas e nos braços
do outro.
Após duas horas quase ininterruptas, paramos para que Enzo retomasse o fôlego, e após me
servir de uma taça do excelente vinho tinto produzido no vinhedo de Côtes du Luberon, perto
de Apt, a poucos quilômetros dali, voltei a me deitar na cama, ainda nua e de bruços. Ele
ainda estava ofegante e me reservei a lhe fazer carinhos na barba cada vez mais tomada por
pelos grisalhos, tal qual a vasta cabeleira já quase toda descolorida em sua cabeça. Apesar de
não ter demonstrado enquanto me tomava de quatro sobre os lençóis ou enquanto eu
cavalgava sobre ele momentos antes, Enzo parecia preocupado, se expressando em seguida.
— Tenho uma coisa para te contar sobre aquela febre, Alexia.
Depois do casamento, raramente meu eterno Marco Polo me chamava pelo nome que eu
havia adotado em meu retorno à Europa, ainda no início do século. Apelidos carinhosos
eram muito mais comuns tanto no espaço privado quanto no público. Havia realmente algo
errado em sua atitude e eu deixei que ele continuasse.
— Essa não foi a primeira vez que me vi tomado por um surto febril. Já aconteceu outras
vezes. É sempre numa mesma época do ano que antecede a primeira lua cheia do verão ou
no limiar de um novo eclipse, seja do sol ou da lua. Nesse período, eu costumo ficar febril e
acontecem mudanças em mim.
Nós dois tínhamos aprendido muita coisa sobre todo tipo de criatura da noite em nosso
convívio com Gavril, Jacqueline e o professor Rashford na Teia. Eu sabia bem o que Enzo
estava prestes a me dizer e então me sentei na cama, olhando fixamente em seus olhos.
— Você lembra aquela vez em Honduras, quando perseguimos aquele monstro nas favelas
de Tegucigalpa? — Indagou-me ele, se referindo a uma de nossas missões na América
Central, antes do início da Segunda Guerra Mundial.
— Sim. Nós detivemos um vircolac gigante pouco depois de você disparar atrás dele
sozinho, no escuro, usando apenas uma lanterna e uma escopeta com balas de alho.
Ele sacudiu a cabeça ao me ouvir, como que assentindo.
— Naqueles minutos entre eu correr atrás dele sozinho e você chegar para dar apoio com
Gavril, Nadine e o professor, a criatura me mordeu, Alexia. Bem aqui. — E ele apontou a
região do pescoço, onde uma cicatriz se estendia de centímetros abaixo da orelha esquerda
até bem próximo da clavícula.
— Você disse que não era uma mordida, que o bicho tinha te acertado com suas garras.
Você afirmou isso logo que o encontramos em cima da criatura crivada de balas.
— Eu menti, Alexia. — Ele segurou em meu braço, procurando me fazer entender. — Eu
estava assustado na época, não sabia bem o que podia me acontecer em seguida, por isso,
preferi esconder de vocês.
— Esconder que você tem se transformado num monstro meio-vampiro, meio-lobisomem
por anos? É isso, Enzo? — Eu estava irada. — Escondendo um segredo terrível como esse da
mulher que você pediu em casamento e que diz amar?
Eu me levantei da cama e saí em busca de meu robe de seda que estava pousado sobre uma
poltrona, no canto esquerdo do quarto. Raramente eu usava a janela com acesso à sacada do
castelo, mas naquele dia, eu o fiz. Me debrucei na amurada de pedra rústica a um metro e
meio do piso e fiquei a encarar os campos relvados ao redor da propriedade. Uma brisa
fresca soprava em minha direção e tudo que a vista alcançava brilhava num tom prateado
pela luz da lua. Enzo se aproximou em seguida, sem se preocupar em vestir uma roupa.
Senti seu cheiro antes que ele me tocasse o ombro.
— Me desculpe, amor. — Disse com voz amena. — Depois que fiquei quase dois anos sem
ter febre, achei que tinha sido só um susto, que eu não havia sido contaminado por aquela
fera. Por isso não contei nada depois de Honduras.
— Você está colocando em risco a vida da minha filha. Da menina que você diz amar tanto.
— Eu sou completamente maluco pela Alex, você sabe disso. Jamais colocaria a vida dela
em risco. — Disse-me ele, subindo um pouco o tom. — Eu não contei sobre a mordida para
que você não se preocupasse, para que não me afastasse da Alex.
— E o que acha que quero fazer agora?
Aquela discussão causou um desconforto entre nós dois, bem como uma rusga em nossa
confiança mútua. Depois daquele dia, Enzo passou uma temporada em Genova, sem voltar
para casa, e ficou na companhia do amigo Harone, sua esposa e o filho do casal que ela
carregava na barriga. Ele não havia confiado a mim seu grande segredo, algo de extrema
importância que mudaria completamente nossa relação e aquilo me criava dúvidas se eu
deveria realmente aceitá-lo de volta. Todas as noites em que ele estivera fora, eu brincava
com Alex e suas bonecas no quarto que ela havia empilhado de brinquedos, e me cortava o
coração vê-la dizer que estava com saudades do pai, perguntando se ele iria demorar. Para
não estender o assunto, eu inventava mil desculpas para mudar o foco da conversa, mas logo
aqueles olhos piedosos e brilhantes voltavam a me encarar, perguntando sobre Enzo
novamente, me deixando ainda mais culpada. Eu não podia simplesmente afastar de sua
vida, daquela maneira tão brusca, o único homem que minha filha conhecia como pai e no
outono seguinte eu o aceitei de volta.
Enzo retornou ainda mais amoroso com sua bambina de bochechas coradas e seu afeto para
com Alex me provou de uma vez por todas o quanto ele era incapaz de machucá-la
racionalmente. Os dois passaram tardes inteiras juntos no bosque, no jardim frontal — agora
meio abandonado após a demissão de Pierre — e cuidando dos cavalos no estábulo. A
menina tinha sua própria égua, a quem ela dera o nome de Ragazza, e adorava sair para
cavalgar com o pai, montada em seu animal de pelos alvos. Numa daquelas muitas tardes
em que passavam o tempo juntos, Alex entrou em casa esbaforida e enlameada dos pés à
cabeça, chamando por mim à porta:
— Mama! Mama! Venha correndo. Papa caiu do cavalo!
O sol estava prestes a se pôr no Oeste quando desci as escadas do andar superior às pressas.
Senti seu calor queimar minha pele logo que me expus do lado de fora, mesmo vestindo uma
calça, botas e uma blusa de manga comprida. Usei toda a minha força para carregar Enzo
para dentro e o deitei no sofá da sala de estar, enlameando também seu tecido nobre.
— Enzo? Fale comigo. O que aconteceu?
Danielle e Remy olhavam assustados as queimaduras que haviam surgido em meu rosto e
em minhas mãos ao mais leve toque do calor do ocaso, mas eu os ignorei, vendo meu
marido recuperar lentamente a consciência.
— V-Vai começar, meu amor. T-Tenho que ir.
Aquele fenômeno era muito raro de acontecer, mas naquele outono, um eclipse lunar total
estava prestes a mudar a estrutura biológica de Enzo, transformando-o numa criatura
enraivecida conhecida nas lendas romenas como vircolac. Em minha juventude, eu ouvia
histórias infantis sobre um monstro meio-homem e meio-lobo que tentava devorar a lua no
céu, procurando exterminar com isso a vida no planeta Terra. Mais do que um mero
lobisomem, um vircolac tinha uma vasta gama de habilidades que o fazia ser superior em
praticamente tudo a um vampiro, embora ambos se alimentassem de sangue e possuíssem
fraquezas como o alho. Ele era mais forte, mais ágil e mais sagaz que os strigois, e às vezes,
nem ataques físicos eram capazes de aniquilá-lo, já que ele era capaz de projetar sua essência
de forma astral, tornando-se etéreo. Se Enzo havia adquirido todas aquelas características,
nem eu seria capaz de vencê-lo, o que me fez levá-lo para bem longe do castelo naquela
noite, antes que o eclipse começasse.
Alex estava aos berros na sacada de seu quarto, segura por Danielle, quando comecei a
caminhar até o coração do bosque ao lado de Enzo. Eu tinha dado ordens expressas para
que a babá não tirasse os olhos em nenhum momento de cima da menina e nem abrisse as
portas ou janelas até que eu retornasse. Remy tinha me trazido correntes de aço enroladas
em dois aros, como eu havia lhe pedido e o homem magro de bigode fino no rosto
circunspecto me ouviu dizer, paciente:
— Volte para o interior do castelo e tranque todas as entradas e saídas. Tome conta de
Danielle e de Alex até eu voltar.
A noite começava a cair paulatina, enquanto eu e Enzo nos embrenhávamos na mata escura
do bosque, a alguns quilômetros do château. A ideia de amarrá-lo com firmeza junto a uma
árvore de copa larga e grossa, antes de sua metamorfose, tinha sido dele mesmo, e quanto
mais a lua ganhava o céu, mais debilitado ele parecia ficar sob seus efeitos nocivos.
— Acorrente meu tórax e meus braços de modo que eu não possa me movimentar ou
mesmo me debater. Era assim que os Batedores de Ferro faziam comigo durante a guerra,
com o intuito de impedir que eu escapasse em minha forma de lobo.
Assim como ele havia me instruído, eu havia acorrentado Enzo de joelhos junto a árvore,
deixando pouca sobra entre seu corpo forte e os elos de metal. Seus braços estavam
amarrados de tal maneira que ele não pudesse esticar as mãos para alcançar um alvo a meio
metro dele, e tão logo fiz como meu marido queria, eu me afastei, ficando vigilante a três
metros dali, sobre uma pedra pontuda que emergia do chão repleto de heras venenosas e
outras ervas-daninhas. A lua já brilhava intensa sobre nossas cabeças quando ela passou a
adquirir um tom cada vez mais avermelhado. Um breu quase completo tomava a floresta e a
fauna noturna estrilava aguda, como que incomodada com nossa presença. Uma variação
muito grande de odores assaltava meu olfato aguçado, enquanto eu permanecia em alerta
sobre a pedra. Era uma mistura do cheiro da relva, das flores silvestres e do orvalho. Meus
ouvidos captavam o mais leve farfalhar das asas e penas dos pássaros sobre as árvores, e foi
naquele momento que começou a transformação. Uma sombra monumental cobria
lentamente a lua vermelha no céu, e enxergando claro como o dia mais a frente, passei a
assistir seu corpo começar a se modificar ante meus olhos atentos.
— Oh, não! Enzo!
Sua cabeça parecia que estava se expandindo à medida que o tórax inchava e produzia sons
como o de ossos se partindo. Os membros, mesmo acorrentados, agora dobravam de
tamanho, ganhando pelos espessos, musculatura avantajada e garras pontiagudas nas
extremidades de mãos e pés. Um focinho canino havia assumido o lugar onde antes estava o
nariz e a boca de meu marido. Dentes afiados e grandes saltavam de sua mandíbula,
enquanto uma gosma esbranquiçada escorria até o chão do que antes eram lábios humanos.
O monstro de mais de dois metros de altura estava agora sendo enforcado pelos elos
resistentes da corrente e procurava se debater para se libertar, grunhindo feito um lobo
enjaulado. Eu jamais havia presenciado um espetáculo tão assustador quanto aquele, mesmo
já tendo presenciado os piores horrores que a guerra humana tinha a oferecer. Eu estava
mortificada em ver o belo homem que eu conhecia há quase quinze anos transformado agora
em nada mais do que uma besta irracional e em meu âmago, eu sabia que não podia mais
deixá-lo por perto daquela maneira. “Não posso arriscar a segurança da minha filha inocente. Eu
preciso acabar com isso”, pensei em um momento dos longos sete minutos que duraram aquele
eclipse e a transformação de Marco Polo.
De setembro daquele ano a meados de junho do seguinte, eu e Marco voltamos a nos ocupar
com os negócios de mineração que nos permitia continuar levando a vida confortável que
dávamos a Alex. Daquela maneira, ao mesmo tempo que eu mantinha nossa filha afastada
dele, eu conseguia ficar de olho em meu marido, caso sua transformação assumisse
características diferentes daquelas que só permitiam que ela acontecesse em período de
eclipse ou na primeira lua cheia do verão. Seguindo a dica de Miguel Harone, eu estava
negociando a compra de uma estação petrolífera no Oriente Médio e uma sociedade com
uma empresa de extração na Venezuela. Eu planejava usar os últimos recursos da fortuna
que ainda me restava para que minha filha fosse dona de uma herança milionária no futuro e
não tivesse nunca que passar por apertos financeiros, por isso, estava investindo pesado no
ramo de mineração com a ajuda de Enzo.
No verão daquele ano, meu marido voltou a apresentar os mesmos sintomas que anteviam
sua transformação e ele caiu de cama a dois dias da primeira lua cheia da estação. Sua febre
estava atingindo os 40° e nem mesmo os remédios antitérmicos o estavam estabilizando. Ele
costumava melhorar sozinho depois de cair febril e tudo que tive que fazer foi esperar,
enquanto ele delirava em nossa cama, suando e tendo visões com uma lua sangrenta num
céu em labaredas. Não era bonito de se ver.
Na noite em que a lua nasceria cheia pela primeira vez naquele verão, eu decidi ficar em
casa para acalmar Alex, que perguntava insistentemente pelo pai enquanto Remy o
acompanhava até o bosque, a fim de amarrá-lo. Nosso leal serviçal já tinha compreendido
todas as coisas estranhas que envolviam nossa família, e sem fazer questionamentos, ele
aceitou montar guarda na floresta, enquanto seu patrão se transformava numa feroz criatura
das trevas. O francês havia lutado na Segunda Guerra com os Aliados e estivera em
Normandia no chamado “Dia D”, o que o tornava experiente em combate. Por precaução,
ele tinha levado consigo uma escopeta carregada com munição de prata e alho, o que
deixava a todos os envolvidos mais tranquilos quanto a sua segurança.
— Aonde o papai está indo? Por que não posso ir com ele?
Alex já estava prestes a completar seus dez anos e estava cada vez mais difícil esconder as
coisas dela. A menina já tinha reparado as queimaduras que apareciam em minha pele ao
menor contato com a luz solar e ela estranhava os cortes e arranhões no corpo do pai todas
as vezes que ele retornava da mata, após o sumiço de uma noite quase inteira. Não íamos
conseguir esconder toda a verdade de quem realmente éramos dela por muito mais tempo.
“E se ela começar a me odiar por eu ser uma vampira? E se ela não aguentar a verdade sobre seu pai ser
um híbrido vampiro-lobisomem e fugir de casa? Como vou aguentar ficar sem minha linda filha? ”,
pensava eu, quase entrando em desespero, enquanto inventava mais uma desculpa a ela.
— Papai foi caçar com o Remy na floresta, meu bem. Amanhã bem cedo ele estará aqui para
tomar café com você. Não se preocupe. Agora vamos dormir. Você tem aula amanhã.
Eu tinha liberado Danielle aquela noite, já que ficaria eu mesma de olho em Alex, e a moça
tinha aproveitado para ir até o centro de Avignon visitar o Teatro Romano de Orange com
uma amiga da cidade. Enquanto Alex dormia, eu estava na sacada de meu quarto,
observando atentamente o campo em volta do castelo, estranhando todo aquele silêncio.
Faziam mais de duas horas desde que a lua cheia havia nascido no céu e pouco mais do que
isso desde que Enzo e Remy tinham se metido na mata. As transformações não costumavam
demorar tanto. Tinha algo errado.
Sabendo que Alex estava segura em seu quarto, decidi sair do castelo e caminhar até a
entrada do bosque. Minha audição conseguia captar sons muito distantes mesmo no caos de
uma cidade urbana. Na tranquilidade de um campo, as condições eram ainda mais
favoráveis e eu decidi explorar meus dons. Eu não pretendia me afastar muito de casa já que
minha filha tinha ficado sozinha e ela chamaria se precisasse de algo durante a noite, por
isso, me reservei a ficar a apenas alguns metros de distância, próximo da entrada da floresta.
Não haviam uivos, grunhidos ou mesmo som de correntes se agitando na mata. Estava tudo
quieto demais, exceto por um gemido e o som de um coração falhando, perto de seu último
tamborilar.
— Remy!
O grito estridente de Alex vindo do castelo me estremeceu dos pés à cabeça e sem hesitar, eu
voltei correndo para casa, dando tudo que tinha na musculatura de minhas pernas. Eu tinha
entrado em pânico pelo mais leve pensamento de que minha filha pudesse estar ferida, de
que algo monstruoso a pudesse ter machucado e entrei no castelo à toda velocidade,
derrubando a porta de entrada no processo. Saltei os dois lances de escadas incapaz de subir
os degraus um a um e em segundos estava no corredor de acesso ao quarto da menina. A
porta estava fechada como eu a havia deixado antes de sair, mas lá dentro eu ouvia dois
batimentos cardíacos, o dela e um outro, mais acelerado, mais forte, mais vigoroso.
— Não! Isso não pode estar acontecendo!
Entrei em seu quarto com tudo e vi a criatura de mais de dois metros a ameaçar a pequena,
na borda de sua cama a salivar sobre sua presa. Alex estava toda encolhida contra a parede,
chorando desesperada, abraçada à sua boneca suíça preferida, presente do padrinho Miguel.
A fera estava a menos de um metro dela, mostrando-lhe os dentes e com as costas curvadas,
em posição de ataque. A janela do quarto por onde o monstro havia entrado estava inteira
esgarçada, com a cortina esvoaçando pela força da brisa que entrava no ambiente. Usando
toda minha força, eu o segurei pelo pescoço, me lancei com ele pela abertura na parede,
derrubei a mureta da sacada e caí em seguida do segundo andar.
— MAMÃÃÃEEE!
O berro de Alex chamando por mim ainda ecoava em meus ouvidos, comigo estirada no
chão, quando notei que a criatura já tinha se recuperado e ameaçava saltar de volta os quase
três metros e meio que o separavam da janela da menina. Eu não podia permitir que ele
voltasse a ameaçar minha filha e então eu o agarrei com força, tentando cravar minhas
presas em seu pescoço peludo. Ele se desvencilhou de mim com um único golpe e eu senti
sua cotovelada fraturar uma de minhas costelas, me atirando longe. Enquanto rolava no
chão pedregoso que dava acesso aos estábulos, atrás do castelo, eu tentava pensar em algo
que pudesse usar contra ele, algo que o pudesse ferir para valer, mas nem tive tempo. Senti
uma mordida em meu pescoço começar a me arrancar um pedaço, enquanto suas garras
afiadas penetravam a carne de meu ombro.
— NÃO!
Tive segundos para me livrar daquela mordida quase fatal e então cravei a unha de meu
polegar esquerdo dentro de seu globo ocular vermelho. Ele ganiu como um cão ferido,
sentindo o olho rasgado, e partiu com ainda mais ferocidade para cima de mim, quase me
dividindo em duas com suas garras. Eu tinha agora um rasgo de quase um metro do
abdômen até o pescoço e estava sangrando muito. “Nesse ritmo, ele vai acabar comigo. Eu não
posso deixar. Ele não vai voltar lá para cima para machucar minha filha”. Instintivamente, eu ainda
tentei abatê-lo, dando-lhe um murro forte na cara de lobo enraivecido e o monstro mal sentiu
o golpe. Num movimento rápido de pernas, ele girou seu corpo e me acertou o rosto com
uma pancada indefensável com as costas de uma das mãos enormes. Senti como se meu
maxilar tivesse sido arrancado e quando percebi, estava caindo de costas na parede lateral do
estábulo. Minha chegada súbita assustou os quatro cavalos que mantínhamos ali desde que
havíamos adquirido a propriedade. Ragazza começou a relinchar alto, como se tivesse
sentindo o perigo se aproximar e seus companheiros começaram a se agitar dentro de suas
estrebarias. Olhando a meu redor, comecei a procurar algum objeto pontiagudo que pudesse
usar contra meu adversário, mas eu tinha poucas opções.
— ALEXXXX... ALEXXXX...
De repente, o monstro estava à porta do estábulo, murmurando o nome de minha filha,
como que querendo me amedrontar. Os cavalos agora ameaçavam escapar de suas celas,
coiceando a madeira. Eu arremessei um balde de alumínio em sua cabeça, na falta de uma
arma mais eficaz, mas aquilo não o deteve nem por um segundo. A criatura retesou os
músculos poderosos e saltou sobre a estrebaria, cravando seus dentes na égua de pelos
brancos. O animal estava agora indefeso sob o ataque feroz e eu me lancei contra ele,
conseguindo arrastá-lo comigo. Rolamos no chão do estábulo nos agredindo e o sangue de
Ragazza escorria do focinho do monstro para meu rosto. Nossa força conjunta foi suficiente
para arrebentarmos a parede dos fundos da área dos cavalos e continuamos nos
engalfinhando pelo fundo do quintal do château. Uma nova mordida daquela mandíbula que
parecia ser feita de ferro me atingiu certeira no braço, e por um momento, eu achei que ele o
tinha arrancado. Comecei a bater insistentemente na cara da criatura, tentando fazê-lo largar
meu outro braço, mas ele não soltava.
— Solta, seu desgraçado! SOLTA!
Apelei mais uma vez para minhas próprias presas e então eu as cravei em seu pescoço,
começando a sugar seu sangue. O gosto era horrível, mas aquilo serviu para que ele abrisse
sua mandíbula e libertasse meu braço. Eu mal estava conseguindo sentir meu membro
superior esquerdo quando ele aproveitou meu instante de dor para fechar seus dedos
poderosos ao redor de meu pescoço, me erguer no alto e me arremessar como uma bola de
borracha. Eu jamais tinha enfrentado um ser tão forte, dotado de tamanha resistência e já
começava a acreditar que eu não ia conseguir superá-lo. “Ele matou Remy, tirou a vida de
Ragazza e agora vai me matar. Não haverá nada entre ele e minha filha. Alex! ALEX! ”.

— ALEX!
Eu tinha sido jogada para dentro do galpão onde Enzo costumava guardar seus antigos
equipamentos de combate. Ninguém mais além dele mesmo tinha acesso àquele lugar e
havia muita coisa ali que eu podia usar contra o monstro do lado de fora. A parede do lugar
era forrada por armas de fogo diversas que meu marido havia usado em sua época de agente
da Teia e também de suas incursões na Alemanha nazista, em seu tempo de membro dos
Batedores de Ferro. Sua Tommy Gun, usada em Donetsk, estava em uma posição de
destaque, pendurada ao lado de seu pente de munições, bem perto da escopeta com a qual
ele havia matado o vircolac em Tegucigalpa. “Meu braço está muito ferido... Eu não teria força
para apoiar uma dessas armas para apertar o gatilho com a outra. Preciso de algo que possa ser usado
com apenas uma mão”. Enzo não era de usar armamento branco em combate, valendo-se
sempre de armas robustas com a qual ele pudesse explodir seus alvos, mas dentro daquele
galpão, em meio a armários recheados de submetralhadoras, rifles de assalto de várias
nacionalidades diferentes, pistolas italianas — como as duas Berettas que ele tinha usado em
Eindhoven —, ele guardava em um suporte de vidro uma lâmina que ele havia recolhido da
parede de um palácio espanhol como um troféu, após uma de nossas missões em Madri. A
rapieira media menos de um metro de comprimento, possuía uma guarda prateada com
detalhes em formato de aro e era fácil de ser manuseada por apenas uma mão, como um
florete de esgrima. “É uma arma de perfuração, mas se eu o atingir no ponto certo, posso tirá-lo de
ação”. Pronta a quebrar o suporte de vidro, um cilindro de plástico marcado com uma
etiqueta me chamou a atenção, guardado num dos armários de madeira, bem ao lado de
onde Enzo mantinha o nitrato de prata para as munições anti-vampiro.
O monstro de pelos negros e costas curvadas se movimentava agilmente pelo campo em
frente ao castelo, mas eu o surpreendi pouco antes dele saltar mais uma vez para o interior
do quarto de Alex. Por alguma razão, ele estava obstinado a alcançar a menina, tanto que
havia me ignorado completamente dentro do arsenal, apenas para retornar a seu plano
inicial de ferir a criança.
— Enzo!
Minha voz ecoou no bosque, chamando a atenção da criatura que se virou, me encarando
com um dos olhos refletindo a luz da lua. O outro jazia fechado, ferido, ainda cicatrizando
após meu ataque.
— Eu sei que você ainda está aí em algum lugar dentro dessa massa bestial que estou
encarando agora. — Eu estava trêmula. O braço ferido pendia para o lado, praticamente
inutilizado, enquanto eu apontava a rapieira para o peito de meu marido vircolac. O rasgo
que suas garras haviam feito em meu peito ardiam como em chamas, e a mordida no
pescoço não estava menos dolorida. — Se você ainda pode resistir ao poder do vircolac,
volte para nós. Volte para mim, volte para sua filha Alex.
Como que entendendo o que eu tinha dito, o animal olhou para o alto, em direção à janela
do quarto da menina. Naquele momento, Alex surgiu entre as cortinas, vacilante, atraída por
minha voz.
— Mamãe?
A criatura rosnou ao perceber a presença da menina lá em cima e os músculos de sua perna
já se flexionavam para saltar e a alcançar. Eu tinha uma fração de segundos para agir e
usando toda minha velocidade eu o ataquei, fincando a lâmina fina da rapieira inteira no
peito do vircolac.
— MAMÃE!
Com o susto de ver a mãe toda ensanguentada avançando sobre um lobo gigante e feroz, a
menina deixou escapar sua boneca, que despencou janela abaixo, enquanto ela se segurava
no que havia restado da amurada da sacada de seu quarto. Feito um animal ferido em
agonia, Enzo começou a espasmar, e ganindo, ele me atingiu com força no rosto. Ele tinha
me atirado quase cinco metros de distância e naquele momento seu corpo começou a
fraquejar. As pernas antes poderosas, vacilaram, e seus joelhos se dobraram ante seu peso de
mais de trezentos quilos. Agora vomitando um tipo esverdeado de gosma que passava por
entre os dentes cerrados, ele tentava a todo custo se livrar da arma pontiaguda cravada até o
cabo dentro dele, mas a substância em que eu havia embebido a lâmina não permitia sua
reação. O cheiro do extrato de alho sintetizado pela primeira vez na base da Teia por Erich
Brandt anos atrás, também estava me enfraquecendo, mesmo à distância. Minha mão tinha
sido queimada por uma simples gota que havia me tocado enquanto eu derramava o líquido
do cilindro plástico em todo o metal da rapieira. Meu último ataque tinha sido fatal e eu
comecei a ouvir o poderoso coração de Enzo fraquejar.
— Mamãe! Mamãe! Fala comigo!
Enquanto a bela loirinha que eu havia salvado tentava chamar minha atenção do alto da
janela, eu comecei a me arrastar pelo gramado do jardim, fraca demais até mesmo para me
levantar. Enzo agora havia despencado no chão e seu ganido era débil, quase inaudível. Ele
não representava mais perigo e eu o alcancei, começando a acariciar sua cabeça. A pelagem
negra já começava a assumir o tom grisalho dos cabelos do italiano, logo ele estaria
totalmente revertido à sua forma humana, a forma pela qual havia feito eu me apaixonar por
ele há muitos anos. Eu conseguia ouvir agora os pezinhos de Alex descendo correndo as
escadas que levavam do segundo andar até o átrio, pronta a me alcançar ali largada diante
do castelo. Quando ela surgiu à porta, em sua camisola branca com bordados dourados,
senti seu coração se acelerar ao perceber que o monstro gigante que a ameaçava há algum
tempo, tinha se transformado em seu pai. A menina correu até nós dois e começou a chorar.
— Papa! Papa! É o meu papa! É O MEU PAPA!
Alex estava em choque, mas não havia mais nada que pudéssemos fazer por Enzo. O golpe
da rapieira espanhola havia perfurado seu coração e o extrato de alho havia garantido que
ele jamais voltasse a se transformar num vircolac. Estava acabado. Eu tinha salvado Alex.
Capítulo 10 – Irmãos de sangue
NÓS ENTERRAMOS Enzo Di Grassi num dos jazigos de sua família em Veneza e aquela
cerimônia foi tão curta quanto dolorosa. Eu estava vestindo um sobretudo preto sobre um
conjunto de blusa e saia de mesma cor e havia prendido meus cabelos num rabo de cavalo
desleixado. Além de dois ou três familiares de Enzo, que eu mal havia conhecido na
comemoração de nosso casamento, estavam presentes a babá francesa Danielle, meu
motorista siciliano Fabrice e todos os Batedores de Ferro. Miguel Harone parecia
inconsolável ao lado da esposa, vendo o caixão de meu marido ser abaixado até a cova
enquanto os presentes começavam a jogar pétalas de rosa. Alex tremia aos prantos, com suas
mãozinhas segurando firme em minha roupa, com o rosto cheio de lágrimas em meu peito,
incapaz sequer de dar o último adeus ao pai. Ela ainda passaria as próximas semanas
inconsolável em seu quarto.
Antes do enterro de Enzo, com a ajuda de Miguel, nós enviamos o corpo de Remy de volta a
sua família em Strasbourg, e lá, meu fiel ajudante foi enterrado, ao lado de várias outras
gerações de serviçais franceses que haviam trabalhado para inúmeras famílias europeias. Ele
havia sido a primeira vítima de meu marido naquela fatídica noite em que as correntes não
haviam sido suficientes para aprisionar sua fúria junto ao tronco da árvore, e mesmo que
tivesse tentado acionar o gatilho da escopeta que devia protegê-lo, Remy havia sido
degolado sem dar nenhum tiro. Um vircolac era rápido demais até mesmo para um vampiro,
o que um mero humano poderia fazer contra ele? Para sua família, eu havia informado que
Remy tinha sido vítima de um animal selvagem na floresta, o mesmo que também havia
tirado a vida de meu marido. De uma certa maneira, aquela não era uma mentira completa.
Por mais que quisessem animar Alex e estivessem se esforçando para tirá-la do luto nas
semanas seguintes, Danielle e Fabrice não conseguiam lhe arrancar mais do que simples
acenos de cabeça. A moça agora era responsável por acompanhar minha filha nos passeios a
cavalo pelo bosque, e nem mesmo a compra de uma nova égua de pelagem prateada para
substituir Ragazza tinha conseguido tirar-lhe um sorriso.
— Quero Ragazza de volta. Ela era minha amiga.
Alex retornou às aulas no colégio particular de Avignon duas semanas depois da morte do
pai, e como era de costume, Fabrice a levava e a buscava à porta, a bordo de nosso Alfa
Romeo. Na volta para casa, ele sempre passava na chocolataria preferida dela em
Châteauneuf-du-Pape ou na Confiserie Artesanal Denis Ceccon, em Apt, onde ele a enchia de
doces e frutas cristalizadas. Mesmo assim, Alex continuava irredutível, cada vez mais
tristonha.
Eu tinha adiado aquela conversa por tempo demais e no aniversário de dez anos de Alex, em
vez de uma festa para comemorar, eu decidi levá-la para passear no bosque e contar toda a
verdade sobre mim. Ela vestiu sua roupa tradicional de montaria e eu a acompanhei,
aproveitando que o tempo nublado e frio me permitia sair do castelo mesmo durante a tarde.
O estábulo havia sido reformado por um cavalariço de Avignon com a ajuda do ainda viril
Fabrice e eu montei no corcel preferido de Enzo, enquanto Alex assumia as rédeas de sua
nova égua, batizada por Danielle como Belladona. Cavalgamos alguns quilômetros além do
bosque e na primeira oportunidade toquei no assunto.
— Alex, tem algo que a mamãe precisa contar sobre o que você presenciou diante do castelo
na noite em que seu pai morreu.
Os olhos tristes de Alex foram da crina imponente de Belladona para meu rosto, e ela me
encarou, dizendo com tom firme:
— Você é uma vampira.
A mente de Alex era uma das únicas que eu mantinha inviolável de minha telepatia e eu não
lia seus pensamentos nem mesmo quando seu rosto não deixava transparecer seus
sentimentos. Por mais que aquela revelação tivesse me pegado no contrapé, não era de todo
uma surpresa que ela já soubesse sobre minha real natureza. A menina já tinha me visto
queimar em contato com o sol, sabia que eu me escondia dentro do castelo a maior parte do
dia, que as janelas de meu quarto eram grossas e maciças tornando incapaz que a luz solar
atravessasse e principalmente havia me visto em ação contra um vircolac gigante. Minha
filha era extremamente inteligente, possuía um raciocínio lógico impressionante para a idade
que tinha e era mais do que óbvio que ela seria capaz de ligar os fatos. “Ela viu a mãe se esvair
em sangue, inteira mutilada pelas garras de um lobo gigante e no dia seguinte só arranhões haviam
restado nos ferimentos. Ela só precisava somar um mais um”, pensei, enquanto procurava a melhor
forma de contar a Alex toda minha história.
Após amarrar os cavalos a uma árvore, nós nos deitamos de costas numa relva macia e
ficamos a olhar as primeiras estrelas a ganharem o céu já quase totalmente enegrecido. Alex
havia aprendido com Enzo a reconhecer as constelações estelares e ela esboçou um sorriso
ao localizar Órion, com suas estrelas principais Mintaka, Alnitak e Alnilam brilhando
intensas bem ao centro das demais. Eu contei sobre como às vezes eu me deitava com seu tio
Costel em meio as videiras da Valáquia e ficávamos a dar nomes às estrelas, um tentando
superar o outro nas invencionices. Eu raramente falava de meu meio-irmão a ela e Alex
sorriu quando me olhou descrever como ele era fisicamente. Ela espantou-se em saber que o
trabalho no campo ao Sul dos Cárpatos, a fabricação artesanal de vinho e a doença de minha
mãe haviam acontecido na metade do século anterior e que eu era uma mulher de mais de
cem anos.
— E você não tem uma única ruga no rosto, mamãe! — Disse ela, agora curiosa pela minha
história e acariciando a maçã de meu rosto pálido.
Por motivos óbvios, pulei a parte da razão pela qual eu e Costel tivemos que fugir da fazenda
dos Grigorescu, poupando minha filha da história de incesto, mas tive que falar das semanas
em que passei em cárcere no alto do castelo do vampiro Dumitri Ardelean, em Bucareste.
Alex deitou-se de bruços no gramado e ficou a ouvir com as duas mãos apoiadas no queixo
todos os acontecimentos que me levaram a escapar para a Rússia, e como posteriormente me
tornei a dama da alta sociedade moscovita chamada Dasha Grigorevna Vassilieva. Ela
adorou a parte em que eu descrevia os palácios e castelos que frequentava com Costel nas
noites de festejos aristocratas e todos os vestidos de gala que eu tinha à minha disposição.
— Você foi uma princesa russa, mamãe?
— Quase isso, querida. Quase isso.
Contei a Alex sobre Adon Gorky e como ele havia me enganado para tentar dominar minha
mente junto de sua parceira Iolanda. Contei também como fui resgatada por Alejandro
Columbus, o filho da velha bruxa, e como foram movimentados nossos dias rumo à América
do Sul, a bordo de uma embarcação portuguesa. Falei como fazia calor no Peru e como
Alejandro acabou conhecendo o grande amor de sua vida, a filha de pescadores Pietra Del
Cuzco. Alex ficou fascinada com a história do povo Inca que vivia naquela região antes
mesmo da exploração espanhola e como Pietra aprendeu a manipular magia ao lado de
Alejandro. Ela disse que o espanhol de cabelos longos e barba por fazer lembrava os heróis
fortes e corajosos que ela conhecia pelos livros de história que Enzo lhe dera de presente, e
eu não podia discordar.
— Ele era sim, Alex. Um herói.
Minha filha ficou chocada com o fato de eu ter passado mais de quarenta anos mumificada
em Machu Picchu, no Peru, e naquele momento ela me abraçou forte, penalizada por todo o
sofrimento que Adon e Iolanda haviam causado a mim, Pietra e Alejandro.
— Eu os odeio. — Disse ela, acariciando de leve meus cabelos.
Continuei minha história falando sobre o Brasil e tudo que havia descoberto sobre a extração
mineral naquele país. Falei como eram bonitas as florestas amazônicas, bem como suas
lendas que contavam sobre botos, cobras de fogo e sereias. Falei de meu retorno à Valáquia,
de como foi bom reencontrar os descendentes de meu pai e como um de meus sobrinhos
distantes se parecia com o velho e rude Grigore.
— Um dia posso conhecer nossa família romena, mamãe?
— Quem sabe um dia, meu amor? Podemos nos apresentar como parentes distantes de Alina
Grigorescu. Que tal?
Ela riu e então tocou a ponta do meu nariz com seu indicador repetidas vezes, enquanto
dizia, pausadamente.
— É feio mentir. Papai do céu castiga.
Eu não consegui segurar meu próprio riso.
Eu terminei minha longa história cortando logo para o momento em que tinha conhecido
seu pai em Subotica, na antiga Iugoslávia, e como na época ele só me parecia um
brutamontes mal-educado e idiota.
— Seu pai se apresentava na época como Marco Polo, o mesmo nome de um explorador
veneziano que viveu entre os séculos XIII e XIV. Ele fazia o tipo pugilista bronco, mas já era
muito bonito. Penteava os cabelos loiros para trás quando não estava usando uma boina,
mas os fios estavam sempre lhe caindo pelo rosto. Tinha os braços fortes e os músculos
saltavam da blusa, quase rasgando o tecido. Eu já gostava da presença dele, mas não
admitia. Acho que ele havia me encantado desde o início, apesar de me irritar às vezes me
chamando de principessa, de bela signora ou de belladona quase o tempo todo, com aquele
sotaque italiano.
Alex entristeceu-se e aninhou-se em meu peito enquanto lágrimas começavam a escorrer de
seus olhos claros. Ela entendia a razão pela qual eu havia sido obrigada a atingir Enzo
mortalmente com uma espada naquela noite, mas de certa forma era como se ainda me
culpasse internamente por tê-la tirado da convivência do pai. Não fora fácil para a garota
digerir tudo que tinha acontecido em sua vida nas últimas semanas, mas eu estava lá para
apoiá-la o quanto ela precisasse.
— Eu sinto muito a falta do papai. — Disse com a voz embargada.
— Eu sei, Alex. Eu também sinto muito a falta dele.
No outono de 1954, eu precisei me ausentar de casa para as negociações presenciais com
minha nova aquisição na Arábia Saudita e eu viajei para o Oriente Médio com Miguel
Harone, cujo filho Jorge estava prestes a nascer no Brasil, para onde ele havia se mudado
recentemente. O espanhol havia aberto uma filial de sua consultoria administrativa na
América do Sul e passaria a operar de lá a partir do nascimento de seu primeiro herdeiro.
Após aquela negociação com os empresários árabes que me tornaria a proprietária de uma
das mineradoras mais rentáveis do Oriente, seria bem mais raro que eu me encontrasse com
Harone e sua esposa por aí, e ele fez aquele último trabalho para honrar sua amizade com
Enzo Di Grassi. Todos os trâmites legais levaram alguns dias e mesmo instalada num
luxuoso hotel de Riad, com toda a riqueza e o conforto oferecidos por um xeque árabe que
intermediava a transação, eu só pensava em retornar logo para casa, para perto de Alex.
Eu me despedi de Miguel ainda no Aeroporto Internacional de Nice, após uma turbulenta
viajem do Oriente à Europa a bordo de um jato de fabricação britânica De Havilland Comet.
Desejei felicidades pela vinda em breve de seu primeiro filho e à sua nova vida no Brasil, e
logo que ele partiu para seu portão de embarque, rumo à América do Sul, eu me sentei num
banco de espera, onde fiquei a aguardar a chegada de Fabrice. Em toda a sua vida como
meu motorista particular, seja em minha atribulada rotina como agente da Teia ou como a
dona de casa pacata na França, o velho siciliano jamais havia se atrasado a um compromisso
um minuto que fosse. Eu tinha comunicado a ele por telefone o horário exato que meu voo
chegaria em Nice, ainda do aeroporto em Riad, e era estranho que ele não tivesse ali já me
esperando. Meu relógio de pulso suíço marcava 21h00, foi quando decidi pegar um táxi que
me levou da porta do aeroporto direto até Avignon.
As mais de duas horas que separavam Nice de Avignon foram as mais torturantes que eu já
havia passado no banco de trás de um automóvel. Enquanto o chofer conduzia o veículo
vagarosamente, respeitando todas as leis de trânsito que faziam dele um bom condutor
urbano, um sem número de situações horríveis começavam a me encher a cabeça, me
tornando ansiosa. Eu havia me mudado para aquela cidade pacata nos alpes franceses em
busca da tranquilidade que não encontraria em outro lugar do mundo após a guerra, e ao
lado de Enzo e de nossa filha, havia vivido longos anos de calmaria, que só tinham se
quebrado com a revelação de que meu marido havia sido mordido por um vircolac em
Honduras e sua subsequente transformação. Nenhum outro perigo havia nos assombrado
em nosso château até então e eu achava quase impossível que algum dos vários inimigos que
tínhamos feito ao longo da vida nos tivesse finalmente alcançado. A sensação em meu peito,
todavia, me dizia outra coisa. Havia algo muito errado.
As moedas com que paguei o chofer à porta de seu carro quase escaparam de minhas mãos
trêmulas quando avistei de longe o Alfa Romeu prateado de Fabrice a alguns metros da
porta do castelo. O táxi deu a volta no terreno em frente ao bosque e começou a tomar seu
rumo pela estrada, retornando para Nice. Larguei as malas que carregava assim que comecei
a caminhar e a sensação de sentimentos humanos como medo, angústia e apreensão
passaram a me tomar à medida que eu me aproximava do carro. A visão dentro do Alfa
Romeo era estarrecedora. O bom Fabrice estava com a garganta cortada e com os olhos
esbugalhados. Sua cabeça estava encostada no banco do motorista. Seja lá qual fosse o
animal que o tinha atingido, o tinha pego de surpresa, já que ele parecia em posição de
arrancar com o carro, como sempre fazia. O motor do modelo italiano vibrava dentro do
capô e a chave estava no contato.
Assim que me deparei com o corpo de meu motorista de longa data no interior do carro,
corri desesperada para dentro do castelo e o encontrei com a porta principal arrombada.
Comecei a chamar por Alex na tentativa de tirá-la de onde quer que ela estivesse para me
encontrar, mas não houve qualquer resposta. Subi as escadas como da vez que corri para
salvar a menina das garras de seu pai ensandecido e alcancei o corredor de seu quarto de um
só pulo. A porta estava aberta, com uma marca de pontapé que havia avariado a lâmina de
madeira. O trinco e a maçaneta estavam retorcidos e lá dentro havia um corpo.
— Danielle? Danielle? Me responda!
O corpo da babá francesa jazia frio no chão, em frente à cama de Alex, e ela segurava
firmemente uma haste de lareira, com a qual havia tentado se defender e proteger minha
filha.
— Oh, não, Alex. Onde está você? Onde está você?
Eu procurei vestígios que me levassem ao sequestrador de Alex por toda a casa, mas haviam
poucos indícios de quem a havia raptado tão covardemente. Os sinais nos pescoços de
Fabrice e de Danielle indicavam garras que podiam ser de um lobisomem, um vircolac ou
mesmo das unhas afiadas de outro vampiro. Andei por toda a propriedade na tentativa de
descobrir mais sinais que me dessem um Norte de onde eu poderia começar a procurar, e
acabei encontrando marcas de pneu frescas na saída traseira do château, em direção à
Avignon. O taxista que havia me trazido tinha dado a volta pelo outro lado e embora a
estrada para sair dali fosse a mesma nos dois sentidos, eu sabia que aquelas marcas não
tinham sido feitas pelo chofer e sim por outra pessoa que visitara o castelo recentemente.
Embora vê-los daquela forma me doesse, voltei para perto dos corpos de meus empregados e
passei a usar meu faro aguçado para descobrir mais sinais da pessoa que havia levado Alex.
A colônia italiana de Fabrice era bem forte, mas mesmo através dela, eu conseguia sentir um
cheiro familiar no paletó do siciliano. Seu agressor o havia agarrado pelo casaco antes de
desferir o golpe que o matara instantaneamente e o odor ali presente me era familiar. Era o
mesmo que estava na pele arranhada do ombro direito de Danielle lá em cima no quarto de
Alex e apesar de fraco, ele era inconfundível.
— Bordeaux. Tem cheiro de Bordeaux.
Eu havia evitado aquele reencontro por quase cem anos, mas quando senti traços do vinho
francês preferido de Dumitri nos corpos de meus fieis amigos e serviçais, eu parti de
Vaucluse na França direto para Bucareste, na Romênia. Apesar de ter feito várias visitas à
minha terra ao longo de minha vida eterna, eu nunca tinha tido coragem de retornar àquela
parte de Bucareste desde que havia envenenado o vinho daquele que havia me transformado
em vampira. Tinha se passado muito tempo. A Guerra dos Balcãs, a Primeira e a Segunda
Guerra Mundial podiam ter acabado com o castelo daquela abominação, mas quando lá
cheguei, ele estava intacto. Sua fachada apresentava um tom mais encardido, ele estava
decadente, com buracos de bala enfeitando a região próximo da nave frontal, mas ele ainda
estava erguido na paisagem soturna da cidade.
Era noite quando cheguei na Romênia. Eu estacionei o Alfa Romeo ainda com o banco
manchado do sangue de Fabrice numa esquina e segui dali a pé. Encarei por um instante o
alto da sacada de onde o vampiro de cabelos compridos havia me ensinado sobre minhas
novas habilidades físicas e mentais, algumas horas após meu despertar, e em seguida chutei a
porta de dois metros, que se abriu com um rangido de suas dobradiças. Eu trazia comigo a
mesma rapieira embebida em extrato de alho com a qual havia sido obrigada a apunhalar
meu marido e se aquilo não fosse o bastante, uma Beretta com balas de nitrato de prata
estava escondida em seu coldre, do lado de dentro do sobretudo preto que usava. Eu queria
minha filha de volta e não sairia dali sem ela, nem que para isso eu tivesse que matar
Dumitri.
O homem estava de costas para a porta do quarto quando eu adentrei o lugar subitamente.
Os cabelos ainda eram compridos, mas agora pareciam esgarçados, enchendo sua cabeça
num menor volume com os fios prateados. Os ossos eram evidentes por dentro da blusa
vermelha e justa que ele usava e o sujeito me parecia bem menor em estatura do que eu me
lembrava. Eu o tinha visto diversas vezes em meus pesadelos desde então. Em todos ele me
violentava e me mordia o pescoço, às vezes em ordem alternada.
— Cheguei a pensar que não conseguiria seguir a pista que eu havia deixado, bela Alina.
Dumitri se virou para me encarar e ele estava com expressão cansada no rosto envelhecido.
Os olhos carmesins não apresentavam qualquer brilho e quase se escondiam dentro das
olheiras escuras manchando as bolsas de pele morta. As mãos eram magras e compridas
como eu me recordava. O mesmo anel dourado brilhava em seu dedo anelar direito
enquanto ele levantava a taça de Bordeaux à sua frente.
— Eu vim por Alex. Entregue a menina ou eu acabo com você, velho maldito!
A ponta da rapieira estava mirada entre seus olhos e uma risada cavernosa emergiu de seus
lábios ruídos. Ele sorveu mais um gole do vinho com gosto de sangue que tanto apreciava e
não tirou seus olhos de mim. De forma obscena, como fazia enquanto eu cobria minha
nudez com os vestidos de seda que seus empregados me davam para usar, o vampiro
esquadrinhou minha silhueta de cima a baixo.
— Você cuidou muito bem de seu corpo ao longo de todo esse tempo. Não envelheceu um
só dia desde que me abandonou à mesa, arfando com aquele vinho envenenado por sangue
apodrecido. — O sorriso no rosto ossudo tinha se desfeito e eu já olhava em volta, na
tentativa de encontrar Alex. Havia um caixão de mogno no lado esquerdo do quarto,
próximo de onde ficava o banheiro. Eu não captava sinais vitais em seu interior.
— A menina, Dumitri. Onde ela está?
Eu era incapaz de controlar minhas emoções naquele momento e o florete em minha mão
começou a tremular, ainda apontado para o rosto do velho Dumitri. Ele começou a se
divertir com minha angústia.
— Olhe só para você. Em vez de se tornar uma vampira por completo, deixou-se impregnar
por seu lado humano, tornando-se frágil, medrosa.
Eu queria sacar a pistola e explodir sua cabeça naquele momento, mas em vez disso, fiquei
parada, apontando-lhe a espada.
— Eu senti em você o cheiro da linhagem poderosa a qual você ascendia logo a primeira vez
que a vi imunda, andando feito uma mendiga nas ruas de Bucareste, ao lado de seu irmão
imprestável. Desde o início, eu tinha certeza que você se tornaria uma vampira poderosa, a
mais poderosa de todas. — Dumitri agora caminhava lentamente, sem me perder de vista.
Estava indo em direção ao caixão erguido sobre uma mesa. Ele ignorava o florete apontado
para ele. — Quando a transformei, eu queria que enxergasse todo potencial que seu sangue
real já trazia mesmo antes de se tornar uma imortal. Eu queria que você fosse a minha
rainha e que reinássemos juntos pelo mundo.
— Sangue real?
Ele tinha alcançado o caixão lentamente e agora tamborilava os dedos finos e brancos sobre
a madeira.
— Seu pai camponês nunca falou de suas origens? As suas verdadeiras origens?
Ele me olhava com proveitosa curiosidade agora. Eu estava confusa.
— Os Grigorescus descendem de uma linhagem de trabalhadores rurais. Meu avô, meu
bisavô... Todos antes deles eram servidores do campo. Não há nada de especial em meu
sangue.
— Mas, e quanto à linhagem de sua mãe? O que tem a me dizer sobre seus antepassados
maternos?
Eu não conhecia nada sobre a família de Ruxandra e era estarrecedor constatar que aquele
velho decrépito parecia saber mais sobre meus parentes do que eu mesma. “Mama nunca me
falou nada sobre seus pais ou mesmo como ela havia acabado na Valáquia. Sua vida pregressa era um
imenso vazio antes dela conhecer Grigore e se casar com ele”.
— Você está protelando, Dumitri. Não vim aqui para falar sobre meu passado. Eu quero a
Alex. Me entregue a menina!
— “Alex”? A criança daquela prostituta francesa que você encontrou na Alemanha e adotou
como sua filha? — Como ele podia saber tanto sobre nós? Como Dumitri tinha tantas
informações sobre minha vida e por que ele não tinha me deixado em paz? — Ela está bem
aqui.
As mãos magras de Dumitri abriram o caixão e senti um torpor quase como se pudesse
sentir meu coração batendo outra vez quando vi o corpo inerte de Alex lá dentro. Ela estava
com o semblante sereno e seus dois braços estavam cruzados em seu peito. A rapieira caiu
de minhas mãos e eu corri para abraçá-la, empurrando Dumitri.
— Minha filhinha! Oh, minha filhinha! O que ele fez a você?
O vampiro deu outra risada, me vendo abraçar o corpo frio de minha pequena filha. Ele
começou a caçoar:
— O que foi feito daquela corajosa e indolente vampira que saiu da Romênia para tornar-se
uma princesa russa? Como aquela valente conquistadora foi se tornar esse arremedo de ser
humano sentimental e fraco?
Eu não conseguia controlar meu choro. Eu buscava sinais vitais dentro do corpinho
paralisado de Alex, mas não encontrava nada. “Ela não pode estar morta, não pode! ”.
— Você se mudou para a França e se tornou uma dona de casa inútil. Casou-se com uma
abominação peluda travestida de homem, arranjou uma criança humana para chamar de
filha... Isso é lamentável! Você possui sangue real. Você é uma rainha!
Naquele momento de fúria, eu enfiei minha mão por dentro do sobretudo e saquei a Beretta.
Ainda estava com as mãos trêmulas, mirei na cabeça, mas atingi seu pescoço.
— Você matou a única esperança que eu ainda tinha de viver uma vida feliz nesse mundo de
violência e dor, seu saco pútrido de pele. Você matou a minha Alex e agora eu vou acabar
com você!
Os dois tiros começavam a fazer efeito e a prata já estava agindo no organismo de Dumitri.
A região onde as balas o tinham acertado agora apresentava um tom acinzentado e formava
veias inchadas, confirmando o envenenamento pelo nitrato. O velho vampiro agora
começava a engasgar com seu próprio sangue, e ajoelhado próximo da porta, segurando o
ferimento, ele ainda tentou falar:
— Eeee... Eeeu ainda... Posso... salvar...
Eu engatilhei a pistola puxando sua base para trás. Segurei a arma com as duas mãos, agora
eu não ia mais errar.
— Meu sangue... Eu ainda posso... Salvá-la...
Para transformar um ser humano em um vampiro, primeiro era necessário sugar todo seu
sangue do corpo, depois, era necessário que a vítima bebesse do sangue do próprio vampiro
antes de morrer para que ele enfim pudesse se tornar um morto-vivo. O processo costumava
demorar horas — e até dias, como no meu caso —mas sempre funcionava. As lágrimas de
sangue desciam quase escaldantes de meus olhos para meu rosto e enquanto Dumitri arfava,
com o próprio fluido corporal a engasgá-lo, eu examinei o corpo de Alex. Havia uma marca
de mordida do lado esquerdo de seu pescoço.
— Você a raptou para me atrair até aqui. Por que, Dumitri? Por que você não podia me
deixar em paz com minha bebezinha? — A Beretta agora tremia, estava difícil manter a mira.
— Eu a ia ver crescer, se tornar uma linda moça. Ela ia se formar, tornar-se uma jornalista...
Ela queria ser uma repórter famosa de jornal. Ela ia se casar, talvez ter filhos... Eu ia vê-los
crescer... Se multiplicar...
— E eles iam morrer, Alina. Como todos aqueles humanos fracos que a cercaram desde que
saiu de Bucareste. — Ele cuspiu sangue no chão, procurando um fôlego que já lhe faltava.
Era uma questão de tempo até que a prata o matasse. — Como o serviçal búlgaro em
Kainski, o seu acompanhante espanhol em Cusco, o antropólogo na Hungria, a mulher
belga em Düsseldorf... Todos mortos. Mortos como sua preciosa humana Alexandra vai
estar se não me deixar salvá-la.
O sangue de Dumitri bastaria para que ela voltasse à vida em dois dias, plena e saudável.
Nós duas poderíamos viver juntas para sempre, explorando o mundo, aproveitando as
belezas que ainda tínhamos a desvendar, inseparáveis. Eu mesma já tinha considerado a
ideia de transformá-la numa vampira para que assim eu jamais fosse privada de sua
companhia, mas não tinha levado aquele desejo muito adiante. Eu não queria que minha
criança fosse privada de seu livre-arbítrio assim como Dumitri tinha feito comigo, me
comprando das mãos de meu irmão inescrupuloso e me tornando uma morta-viva quase sem
sentimentos. Alex era uma menina doce, generosa que não merecia ter o destino privado
num repente, sem que ela mesma escolhesse isso. Ela não ia querer viver presa eternamente
no corpo de uma menina de dez anos, sem que nunca pudesse frequentar a faculdade que
tanto almejava ou que pudesse sentir a força avassaladora do amor por outra pessoa. Não
era justo. Eu sabia disso.
— Por que você a tirou de mim, seu monstro maldito?
Meus olhos estavam inundados de sangue naquele momento e por um breve instante, achei
que meus outros sentidos também estivessem se confundindo. Eu tinha visto um vulto atrás
de Dumitri passando diante da porta escancarada do quarto, aquele mesmo onde eu havia
sido aprisionada e atacada pelo velho vampiro há mais de oitenta anos. Um cheiro muito
familiar também tinha me assanhado o olfato. Tinha sido por uma fração de segundos.
Tempo mais do que suficiente.
— NÃÃÃOO!
A cabeça de Dumitri rolou ensanguentada pelo quarto, encontrando apoio na ponta de
minha bota. Seu corpo decapitado vacilou alguns segundos e então caiu para frente, com o
som de um saco de esterco a ser jogado no chão. A região onde a prata agia, havia sido
cortada. O vulto escuro ganhou forma quando ele deu dois passos para a frente e se revelou
ante a luz fraca do candeeiro que iluminava mediocremente o ambiente sobre sua cabeça.
Ele estava vestindo uma jaqueta de couro escura. Os cabelos lisos estavam penteados para
trás e ele segurava uma catana japonesa com a lâmina ensanguentada na mão direita.
— Há quanto tempo, minha irmã! Se importa de eu sugar o sangue desse lixo velho antes
que ele se torne inútil para mim?
Costel estava com uma expressão sombria que eu nunca antes tinha visto em seu rosto e
num segundo, ele puxou o corpo decapitado de Dumitri para trás, o arrastou para fora e
desapareceu de vista. Meu corpo inteiro tremia e eu fui até o caixão me certificar uma última
vez de que Alex estava mesmo morta. Ela permanecia imóvel, como uma linda estátua de
um anjo, plácida e serena.
Diferente do que acontecia com qualquer mortal, eu não conseguia captar os sinais vitais de
Costel e aquilo tinha garantido que sua presença só fosse descoberta por mim num último
instante antes dele degolar Dumitri. Meu meio-irmão tinha me privado de minha vingança
contra o único homem que eu já havia temido na vida e agora só me restava caçá-lo e puni-
lo por seu erro. Não havia qualquer sinal de outras pessoas no interior daquele castelo
sombrio e eu o percorri inteiro tentando encontrar Costel. Ele não tinha mais do que poucos
minutos para sugar o que restara do sangue do corpo de nosso mentor antes que o líquido
frio se tornasse indigesto e foi exatamente esse tempo que ele levou para reaparecer. Meu
meio-irmão estava na sala espaçosa do lugar, a encarar a lareira apagada. A catana estava
presa a uma bainha de couro às suas costas e ele parecia me esperar ali. Eu tinha recuperado
minha rapieira.
— Ele não podia mais conceder vida eterna à minha sobrinha, Alina. Ninguém mais
poderia. — Ele virou-se devagar e me encarou com seus olhos azuis penetrantes. — A
menina está morta há várias horas. Nem mesmo Dumitri poderia transformá-la numa
vampira com tanto tempo de intervalo. Ele só estava protelando para tê-la de volta.
— Eu nunca voltaria a ser daquele monstro! — Falei, engrossando meu tom de voz,
apontando-lhe o florete.
— Dumitri serviu a seu propósito. Eu vazei pistas de onde qualquer um poderia encontrar
você e sua família idiota. Ele a encontrou, raptou a menina e voltou para o único lugar onde
essa história poderia se encerrar. Aqui. — E ele abriu os braços, olhando ao redor da sala
decadente de paredes rígidas e sujas. — O castelo onde a nossa história realmente começou.
Nosso velho mentor sempre foi previsível.
— Por que você disse a ele onde eu estava vivendo, Costel? Qual a razão dessa loucura?
Eu já sentia a Beretta roçando meu seio esquerdo, por dentro do casaco.

— Eu passei um bom tempo procurando pistas do paradeiro de Dumitri pelo mundo todo,
mas esse velho maldito parecia ter desaparecido. Eu cheguei a contratar pessoas para ficarem
de olho nesse castelo decadente, à espera de que um dia ele retornasse para cá, mas isso não
aconteceu por mais de vinte anos pelo menos. Ele estava desaparecido do radar e só havia
uma coisa que seria capaz de tirar esse morcego decrépito de sua caverna. — E ele abriu um
meio-sorriso, apontando para mim.
— Qual seu interesse em Dumitri? Por que se deu a esse trabalho todo para me atrair, para
atrair a ele?
— O que mais poderia ser, minha bela e doce irmãzinha? O sangue, claro. É ele quem nos
move, é ele quem comanda nossas ações. Eu precisava do sangue daquele que havia me
transformado correndo em minhas veias, para me tornar ainda mais poderoso.
Havia um tom arrogante na voz de Costel, ele estava ainda mais distante de sua
humanidade, ainda mais perverso.
— Adon e sua seita de bruxos pervertidos me ensinou tudo que eu precisava saber para que
eu deixasse de ser um lacaio e me tornasse o alfa. O sangue de um humano comum pode nos
manter vivos por mais uma noite, regenerar nossos ferimentos, mas o sangue de outro
vampiro? Esse sim contém todo o poder que necessitamos. O verdadeiro poder.
Eu nem tive chance de usar a rapieira e na velocidade de um piscar de olhos, Costel deslizou
para trás de mim e quebrou o braço que eu segurava a lâmina. Senti seu hálito indo em
direção a meu pescoço, com ele segurando meu membro fraturado. Eu estava imóvel e
lascivamente ele lambeu minha pele.
— O sangue de Dumitri agora corre em minhas veias, minha irmã. Enquanto ele se une ao
meu, eu estou me tornando o vampiro mais forte e resistente que você já conheceu. Logo,
nenhum outro sanguessuga vai ser capaz de me deter, nem mesmo você e esse seu florete
obsoleto.
A rapieira estava caída no chão aos meus pés. Costel havia quebrado meu braço direito, eu
não podia alcançar o coldre da Beretta no lado oposto do sobretudo com a outra mão.

— C-Costel... Eu sou sua irmã. Nós passamos por muitas coisas juntos... Por que--
— Por que eu me tornei esse ser vil e impiedoso? — Pela primeira ele tinha conseguido ler a
minha mente. Costel nunca antes havia sido capaz de usar a telepatia vampira. — Por uma
questão de sobrevivência, minha cara. Depois que Adon me raptou em frente ao bordel em
Oradea e começou a me usar como uma fonte viva para seu desejo ridículo de se tornar
imortal como nós dois, depois que meus poderes de manipulação passaram a ser usados
inversamente, eu me libertei daquele ucraniano idiota e passei a buscar o meu próprio
caminho. Comecei a caçar vampiros pelo mundo e cada um que eu capturava,
experimentando seu sangue em seguida, me deixava ainda mais forte. Logo percebi que eu
precisava derrotar aquele que tinha me criado. Se vampiros comuns já me deixavam
extremamente vigoroso, o que o sangue do rei deles teria a me oferecer? E o da sua rainha?
As presas de Costel saltaram de sua boca e se cravaram em meu pescoço com uma força
descomunal. Suas mãos agarraram meus dois seios e me forçaram para baixo, dobrando
meus joelhos. Meu sangue começou a jorrar do ferimento que ele havia aberto em minha
jugular e eu sabia que só tinha uma chance de fazer aquilo direito. Eu não tinha mais o
controle de meu braço direito, mas com o esquerdo, eu alcancei o cabo da rapieira no chão e
trespassei a lâmina em minha própria barriga, atingindo também Costel. Todo o extrato de
alho na superfície do metal havia sido injetado diretamente em minha corrente sanguínea,
tornando meu sangue indigesto para meu meio-irmão. Enquanto ele me empurrava para a
frente ferido no abdômen, começando a cuspir o sangue com o gosto de alho ainda em sua
boca, eu abri o casaco com a mão esquerda e arranquei o coldre do bolso interno com meus
dentes. Saquei a arma que Enzo havia usado para balear aquele vampiro no celeiro de
Eindhoven e apertei o gatilho inúmeras vezes, mirando a cabeça de Costel. Com as pupilas
esbranquiçadas e guinchando, com todo aquele alho queimando dentro de seu organismo —
e também do meu —, ele protegeu o rosto com o braço e eu o atingi seis vezes, até que o
pente se esgotou.
— Eu o amo, Costel. Sempre o amei, mas agora você precisa morrer.
Doía como se o próprio Diabo estivesse tirando seu braço de dentro de mim, mas eu
arranquei a lâmina da rapieira de meu abdômen e a puxei pelo cabo, partindo para cima de
Costel. Ele estava inteiro crivado de balas, com o nitrato de prata fazendo seu sangue se
esvair do corpo, mas mesmo assim, eu me precipitei contra ele como uma esgrimista,
decidida a apunhalar seu coração. Um movimento rápido por puro reflexo o salvou da morte
certa e eu o atingi por entre as costelas. Ele gritou de dor e como um último ato de
autopreservação, ele se afastou, projetando o corpo contra a janela em seguida. Eu ainda
corri até o lado de fora, mas Costel havia desaparecido, deixando para trás um rastro de
sangue. Eu estava devastada.
Capítulo 11 – Vingança em Belgrado
NAS PRIMEIRAS NOITES ela vinha me visitar com frequência. Dava-me um beijo com os
lábios úmidos em minha testa, levantava-me o lençol e se aninhava em meu peito. Ficava-
me a fazer carícias no rosto enquanto me falava como havia sido seu dia. Contava das
falésias onde cavalgava com Ragazza ao pôr do sol, dos vales verdejantes onde caminhava
de mãos dadas com o pai e das colinas que visitava com Danielle. Fabrice a levava para ver
o mar, mas tirava-lhe da água quando as ondas quebravam muito próximas da costa,
preocupado. Remy a ajudava a colher conchas na praia, parando para lhe fazer companhia e
ouvir o barulho ressonante do mar dentro delas. Cada lembrança, terminava com um
risinho, doce, suave. O calor que seu pequeno corpo me transmitia embaixo das cobertas era
reconfortante. Fazia meu coração pulsar apressado. Pulsar como se eu estivesse viva. E eu
ficava esperando que ela retornasse no outro dia.
Em meu quarto ano de reclusão dentro do castelo em Vaucluse, após esgotar a adega de
vinho, eu adormeci em sua cama e ela veio se despedir de mim em sonho. Estava radiante.
Os olhos azuis brilhavam como a luz de um farol, trajava um vestido branco de renda e
estava descalça. Os cabelos loiros esvoaçavam livres sob a força de uma brisa delicada que
soprava e nós duas andávamos de mãos dadas pelo bosque. Era dia. O sol estava alto no céu,
mas eu não me importava. Sentamos no gramado, ela segurou minhas mãos e falou,
sorridente, com os dentinhos perfeitos a se exibirem:
— Eu vou ficar bem, mamãe. O papai vai cuidar de mim.
Eu senti uma presença atrás de mim e uma sombra foi projetada contra o sol. Virei-me para
enxergar quem havia chegado e naquele momento ela correu para seus braços. Costel estava
sorridente e ele a segurou com firmeza no colo:
— Agora tudo vai ficar bem, Alina. Tudo vai ficar bem.

A polarização política entre os Estados Unidos e a União Soviética agitava o mundo desde o
fim da Segunda Guerra Mundial, e enquanto nações de todos os continentes escolhiam seu
lado, a Guerra Fria seguia sem solução, com ameaças de ataques nucleares — como os que
tinham dizimado as cidades japonesas de Hiroshima e Nagazaki em 1945 — para todos os
lados. Os anos 60 se iniciavam com tensões crescentes entre os dois lados da Guerra Fria, e
só nos primeiros anos daquela década, o mundo já tinha visto o desenrolar da Guerra do
Vietnã — iniciada em 1955 —, o nascimento da NASA —representando a corrida espacial
entre EUA e URSS —, a construção do muro de Berlim, que dividiu a Alemanha em duas
áreas, uma Ocidental e outra Oriental, e a crise dos mísseis cubanos. Embora agora os meios
de comunicação fossem um grande diferencial como fonte de informação, eu ainda preferia
me manter alheia a tudo aquilo, vagando a esmo pelo mundo, sem um propósito definido.
Os anos subsequentes após a tragédia ocorrida em Bucareste tinham sido os mais terríveis
em minha vida e eu não sabia quando ia finalmente me livrar do peso da culpa que
carregava por ter trazido Alexandra para minha existência torturada. Eu tinha sido afetada
de maneira profunda pelas mortes de Alex, Enzo, Fabrice e todos os outros que me serviam
em Vaucluse. Sangue e vinho tinto eram as únicas coisas que me faziam esquecer por alguns
segundos todo aquele terror. Mas nunca era o bastante.
Eu estava em um bar com aparência de taverna medieval em Dublin, quando fui abordada
por um sujeito mal barbeado que fedia a cerveja barata. Era o começo da noite, o
estabelecimento mal tinha sido aberto, mas eu já havia arrastado uma garrafa de Jameson
para a mesa mais afastada do balcão. Tinha ignorado o copo que o taberneiro havia me
oferecido junto à garrafa e bebia goles pouco generosos no gargalo.
— Aqui era o último lugar no mundo que eu esperava encontrar você.
O ambiente estava pouco iluminado, o rádio do bar tocava uma ruidosa música folclórica da
banda The Clancy Brothers. O fedor de cerveja agora estava ainda mais perto.

— Foda-se, colega! Cai fora!


Limpei o uísque que havia escorrido em minha boca com a manga da minha jaqueta e nem
me preocupei em levantar os olhos quando o barbudo resolveu ignorar meu pedido e sentar-
se à mesa, à minha frente.
— Foram anos difíceis, eu sei.
Meu fator de regeneração não permitia que eu ficasse alcoolizada por um período muito
grande de tempo, mas eu já tinha acabado com quatro garrafas de vinho mesmo antes de
pisar naquele bar. Meus sentidos aguçados estavam bem prejudicados e eu segurei o homem
pelo colarinho, olhando-o através dos fios desgrenhados de meus cabelos que me caíam no
rosto.
— Já disse pra se mandar!
— Calma, garota. Calma. Não está me reconhecendo? Sou eu, Douglas.
O professor Douglas Rashford tinha se mudado da Inglaterra para a Irlanda quando a
Ordem Negra passou a caçar todos os membros remanescentes da Teia, ainda na década de
40, e tinha sido por puro acaso que ele havia me reconhecido do lado de fora do bar
enquanto estacionava seu Mini Cooper azul na porta da farmácia em frente. Embora eles
vivessem agora nas sombras, os operativos da Teia ainda estavam na ativa, procurando
desmantelar as intenções de conquista tanto da Ordem Negra quanto da Ordo Ignis Veni.

— Não tenho interesse em fazer parte, professor. — Disse ainda à mesa, esvaziando a última
gota da bebida na garrafa. — Talvez seja mesmo o destino da Terra ser vassalada por uma
horda de monstros. Nós, criaturas das trevas, já estamos por todas as partes, infectando tudo
que é inocente e belo com a nossa presença contagiosa. Talvez não devamos salvar o
mundo. Talvez devamos deixá-lo que se foda!
Eu me levantei da mesa e em seguida caminhei cambaleante até o balcão, onde deixei uma
nota de vinte Libras irlandesas ao taberneiro. O homem me olhou agradecido recolhendo o
dinheiro e me viu sair de seu estabelecimento, sendo seguida de perto por Rashford. Eu já
tinha dado cinco passos, indo em direção Norte, quando sua voz soou:
— Eu estou morrendo, Alexia. Câncer intestinal maligno. O professor Brandt também não
deve ter muito mais anos de vida pela frente e Jacqueline Bazelaire anda instável
emocionalmente, procurando vingança pela morte de seus colegas. Você é a única que vai
passar por tudo isso intacta fisicamente. A única que pode nos ajudar a pôr um ponto final
na história da Ordem para sempre. Não nos vire as costas.
“Intacta fisicamente”. Eu tinha gostado da ironia.
Eu não sentia que tinha nenhum tipo de dívida moral com a Teia ou que eles realmente
precisavam de minhas habilidades físicas extraordinárias, mas resolvi voltar à ativa pelo
simples desejo de explodir algumas cabeças e me refestelar com a carnificina. Eu havia sido
desconectada de meu lado humano mais uma vez e agora sentia como se fosse definitivo.
Alex e Enzo tinham carregado com eles para o túmulo tudo que ainda restava da velha
Alina Grigorescu da Valáquia. O que tinha sobrado era apenas uma casca vazia e sem
sentimentos. Assim sendo, acabar com a Ordem do Portal de Fogo e suas facções era apenas
uma questão de amarrar as pontas que haviam sido deixadas soltas, não exatamente de um
acerto de contas. Foi o que pensei.
O professor Rashford havia montado uma base provisória da Teia no subsolo de um edifício
centenário localizado bem no centro de Dublin e foi lá que acabei reencontrando alguns
operativos que não via há anos. Eu havia chegado à ilha apenas e tão somente por causa de
seus famosos bares e suas bebidas de alto teor alcóolico, e por ali já estava há alguns meses,
arrumando brigas ocasionais em becos sujos e em lugares mal frequentados. Nem lembrava
mais por qual razão estava naquela parte do planeta, tudo que me interessava era a cerveja e
o uísque do lugar, embora o vinho tinto continuasse sendo mais agradável a meu paladar
apurado.
Jacqueline Bazelaire não parecia tão melhor do que eu mentalmente e reencontrá-la viva
depois do que havíamos passado juntas em Düsseldorf e principalmente após tanto tempo,
tinha sido estranho. Quando ela chegou para a reunião na base, eu já estava lá há algumas
horas, empunhando uma garrafa de Knappogue Castle e analisando uma pilha de impressos
com informações de Adon e seu bando de bruxos malignos.
— Nunca pensei que fosse encontrá-la um dia bebendo algo além de vinho.
A francesa veio a meu encontro e me deu um abraço. Os cabelos curtos agora apresentavam
vários fios brancos e ela já não era mais a jovem e sorridente agente que conheci em
Donetsk, há mais de trinta e cinco anos. Sua expressão cansada era de alguém que havia
sofrido muito nos últimos anos e uma cicatriz corria atravessada em seu olho esquerdo. Ela
havia perdido 70% da visão após uma detonação malsucedida de um explosivo plástico.
— Mas ainda tenho um olho em perfeitas condições. — Vangloriou-se ela. — Ainda consigo
me virar.
Após a explosão que me jogou no fundo do rio Reno e cuja correnteza me arrastou por mais
de 200 km de distância depois disso, Jacqueline me contou que tinha conseguido nadar até a
margem após me procurar nas águas escuras e que tinha sido obrigada a fugir da Ordem
Negra e dos nazistas que estavam em seu encalço. Embora aquilo fosse perigoso e
completamente insano, ela ainda havia mandado uma equipe de buscas para me achar no
rio, mas eu já estava longe dali. Logo na sequência, sua namorada Nadine foi capturada,
torturada e decapitada pelos membros nazistas da Ordem Negra e a francesa foi obrigada a
fugir do país em plena Segunda Guerra Mundial, sem conseguir se vingar.
— Eu jamais consegui botar minhas mãos nos desgraçados que mataram Nadine. Eu estou
em dívida com ela. Nós precisamos acabar com a Ordem Negra.
Após a tentativa frustrada de abertura do portal em Düsseldorf, ainda durante a Segunda
Guerra, a Ordem Negra começou a trabalhar num plano menos engenhoso, mas tão ardiloso
quanto no Reino Unido. Dois dias após nossa reunião no subsolo do prédio em Dublin, nós
viajamos até a região de Salisbury, no condado de Wiltshire. A cidade ficava a pelo menos
136 km da capital londrina, e dali, conseguíamos chegar facilmente ao monumento
megalítico Stonehenge. O professor Rashford tinha descoberto que os ocultistas iriam
realizar um ritual de evocação bem no centro do antigo obelisco circular formado por pedras
de mais de 50 toneladas e que a cerimônia seria favorecida pelas energias cósmicas do
solstício de verão do Hemisfério Norte. Aquela era uma chance imperdível de pegar todos os
membros da seita de uma só vez, num mesmo lugar.
— A estrutura do Stonehenge com suas lajes e pilares formando círculos concêntricos é
perfeita para a evocação de entidades e outras práticas ritualísticas. Seja lá o que eles querem
trazer para a Terra desta vez, vai ser algo que não vamos vencer com facilidade. — Disse o
professor, com seu sotaque britânico.
O solstício de verão marcava a época do ano em que a luz solar refletia com maior
intensidade num dos hemisférios terrestres — nós estávamos no Norte —, o que significaria
morte quase instantânea para mim em caso de exposição, enquanto o ritual estivesse
acontecendo. Tendo em vista que eu era uma vampira que teria que agir pela primeira vez
durante o dia, Erich Brandt formulou em seu laboratório uma espécie de pomada à base de
dióxido de titânio e óxido de zinco que tornaria minha pele resistente ao sol por pelo menos
dez minutos. O material opaco da pomada agiria como uma espécie de refletor da luz por
aquele período curto de tempo, se a exposição fosse maior, aquela seria minha última
missão.
O sol estava à pino quando os carros da Teia se aproximaram da região rural onde ficava o
Stonehenge. A estrutura era gigantesca, e mesmo de onde estávamos, era possível ver o
monumento ao longe. A equipe se espalhou pelo local cercando a formação rochosa, e lá no
centro, o ritual já havia começado. Eu estava no carro cujas janelas estavam revestidas por
lâminas de madeira para impedir que os raios do sol entrassem e dali eu seria acionada
quando a situação estivesse muito ruim para o restante da equipe. Brandt havia ficado
comigo no carro, no volante, enquanto eu estava deitada na parte de trás, escapando da luz
que entrava pelo para-brisa. O homem, que na época já era bem idoso, tremia dos pés à
cabeça com o coração acelerado. Ele nunca antes tinha precisado sair em missão de campo,
atendo-se sempre à sua área de atuação dentro dos laboratórios da Teia. O número pequeno
de pessoal ainda ativo o tinha obrigado a sair da base pela primeira vez e ele estava em
pânico.
Do banco de trás do carro, meus sentidos captavam toda a movimentação do nosso entorno
e além de nossos agentes que corriam com submetralhadoras e rifles em punho pelo terreno,
havia uma concentração de pelo menos quarenta membros da seita no território, além de
uma pulsação mais fraca que eu captava de uma pessoa amarrada a um tipo de totem. O
carro estava afastado demais para que eu conseguisse obter mais detalhes, mas naquele
momento, o transceptor manual de Brandt foi acionado e ele começou a falar com
Jacqueline via rádio:
— Tem pelo menos uns quarenta deles, Erich. Não sei se damos conta, câmbio.
— O que eles estão fazendo lá? — Indagou o velho alemão posicionando o rádio próximo da
boca.
— A maioria deles está entoando algum tipo de cântico ao redor de um círculo de fogo na
parte mais interna do monumento. Tem um altar na extremidade, de costas para o pilar mais
alto do Stonehenge e há duas pessoas amarradas em dois totens de pedra. A mulher à
esquerda está se movendo, mas o homem à direita está inconsciente.
A voz de Douglas Rashford irrompeu de outro canal do rádio:
— É um ritual de evocação. O círculo de fogo está sendo mantido pelo cântico que eles estão
entoando em um tipo de linguagem celta e a mulher vai ser possuída pelo que sair do portal.
O homem à direita vai ser sacrificado. Para que uma alma seja tomada, outra deve ser
oferecida em seu lugar.
— Temos que interromper esse ritual agora!
A voz de Jacqueline foi sobreposta pelo som de rajadas de metralhadora no rádio e Brandt
quase derrubou o transceptor com o susto. Havia menos de vinte agentes da Teia em campo,
o que claramente seria insuficiente se todos os membros da Ordem Negra fossem versados
em magia. Apesar do cheiro forte da pomada que protegia agora minha pele atrapalhar meu
olfato, eu consegui sentir daquela distância o fedor de enxofre exalando do meio do círculo
de fogo que queimava a relva onde o Stonehenge estava fixado. A primeira linha de defesa
dos ocultistas tinha sido abatida pelos tiros incessantes da equipe de Jacqueline, mas a
segunda já estava se preparando para contra-atacar, conjurando chamas das mãos e
lançando em direção à Teia. Uma terceira linha de membros da Ordem havia se mantido
firme, entoando agora ainda mais alta a canção que estava mantendo a fenda entre as
realidades aberta. Esferas de fogo começaram a apanhar os operativos da Teia em ação,
fazendo-os queimar enquanto rolavam no chão em agonia. A mulher em cima do altar não
era mais totalmente humana. Eu conseguia sentir a presença maligna dentro dela.
— Preciso agir agora. Se esperar mais, será muito tarde!
Erich me viu abrir a porta do carro em desespero, tentando me dissuadir, mas não dava mais
para esperar. Eu estava enfraquecida pelo simples fato de estar acordada durante o dia e
quando a luz do sol me atingiu diretamente, senti como se não fosse conseguir nem chegar
até o monumento megalítico a alguns metros de distância de onde o carro estava
estacionado. Eu sabia que a pomada havia funcionado porque eu ainda não tinha virado
uma pilha de cinzas no chão, mas tinha também a noção exata que a partir de então, o
tempo era meu maior inimigo.
Eu alcancei o Stonehenge logo que a mulher vestida com um tipo de toga negra e com os
cabelos ruivos desgrenhados começou a forçar as correntes que a prendiam ao totem,
arrebentando-as. Eu trazia em uma bainha presa à minha cintura, a rapieira que vinha me
acompanhando em minhas últimas incursões, mas preferi usar primeiro as duas Berettas de
Enzo, que saquei dos coldres embaixo de meu sobretudo. Os tiros começaram a atingir os
membros que formavam o círculo mais interno da evocação e eles começaram a cair uns por
cima dos outros. Havia pelo menos vinte de outros bruxos disparando esferas incandescentes
contra os agentes da Teia, que passaram a ser fulminados facilmente em campo aberto, sem
ter atrás de onde se esconder. A região em volta do monumento era de relva que se estendia
por quilômetros, sem nenhum outro local que oferecesse alguma proteção. Aquela não tinha
sido a estratégia de ataque mais brilhante que eles tinham executado.
— Noctem daemonium! Noctem daemonium!
Alguns dos membros começaram a me chamar de demônio da noite, como havia acontecido
em Düsseldorf em 1944 e antes disso em Donetsk, em 1928. Era mais do que óbvio que eu
era persona non grata para eles desde que a Ordem do Portal de Fogo ainda não havia se
dividido em outras facções menores, mas eu tinha pouco tempo sob o sol para que aquilo me
preocupasse. Tirei do caminho aqueles que me impediam de chegar ao altar e usei minha
última bala na testa de um deles, que ainda tentou segurar minha roupa, diminuindo minha
velocidade. A mulher de cabelos vermelhos já havia se libertado de suas correntes e sibilava
entre os dentes. Ela movimentava-se com as costas curvadas e os braços abertos, já rodeando
o homem preso no totem vizinho. Ele era calvo, possuía uma barba grisalha longa e vestia
um tipo de roupão de tecido rústico e acinzentado. Era um alvo fácil para a ruiva, que
claramente agora não estava mais em domínio das próprias ações.
— Ei, monstrenga! Deixe o velho em paz!
A mulher virou-se para mim e naquele momento senti um arrepio na espinha, do tipo que
não sentia há muito tempo. As pupilas haviam desaparecido de dentro de seus olhos que
agora brilhavam num tom ainda mais vermelho que seus cabelos. Haviam cortes em seu
rosto, como se algo estivesse prestes a rasgar sua pele de dentro para fora e fosse assumir sua
forma. Os dentes eram pontiagudos e amarelados e ela os exibiu para mim ao rosnar,
fazendo exalar um cheiro cáustico de enxofre de dentro da sua boca. “Eles conseguiram. Eles
trouxeram um demônio para nossa realidade”. Eu tinha pouco tempo e minha ação seguinte foi
sacar a rapieira e infligir um ataque à mulher-demônio. Eu havia mirado em seu peito, mas
com uma agilidade fora do comum ela se desviou e em seguida se atirou sobre mim, me
derrubando no centro do círculo que ainda ardia em chamas. A barra de meu sobretudo
resvalou na fogueira e o tecido começou a queimar em seguida. O sol estava me deixando
lenta e fraca. Eu não conseguia resistir à força que aquele monstro estava imprimindo contra
mim, me mantendo contra o chão.
— Seu corpo... Forte... Recipiente... Bom...
O demônio estava usando a mente da mulher que lhe servia como receptáculo para formular
aquelas palavras, e de repente, eu percebi que ele queria se transferir para o meu corpo,
sentindo todas as vantagens que minhas habilidades vampíricas poderiam lhe oferecer. Eu
tinha poucos minutos para ficar sob o sol e num último raciocínio lógico, pensei que aquela
seria uma maneira perfeita de executar aquele monstro. “Ele vai dominar minha mente e vai
transferir sua essência para mim. Assim que a transferência se completar, o efeito da pomada já terá
passado e o sol vai incendiar meu corpo, destruindo o demônio no processo”. Enquanto os olhos
vermelhos penetravam os meus e a mulher-demônio começava a falar em uma língua
desconhecida sobre mim, arrancando minha vontade própria e começando a me subjugar, eu
parei de resistir. A mão que segurava a espada vacilou no gramado e o fogo continuou
consumindo minha capa. Eu tinha vivido bastante até ali. Tinha perdido todas as pessoas
com que um dia eu havia me importado e não via mais nenhum tipo de propósito em uma
vida eterna. Deixar o sol esfacelar meu corpo tomado por um demônio me parecia um
sacrifício válido de uma vida tão sofrida e aquela me parecia ser uma maneira heroica de
morrer. Eu estava em paz naquele momento.
Eu não sei dizer o que aconteceu entre os segundos em que tive meu último pensamento
lúcido, ainda dona de meu próprio corpo e o momento em que miolos foram projetados
contra meu rosto. Quando voltei a mim, a mulher-demônio estava caída sobre a chama da
base do círculo de fogo e meu sobretudo já começava a queimar até o braço.
— Alexia! Alexia!
A voz de Jacqueline soava fora da roda de fogo e quando olhei, ela estava segurando um
rifle cujo cano fumegava.
— Seu sobretudo!
Ainda desorientada, me vi tirando o casaco e o jogando de lado, enquanto ele queimava. A
mulher ruiva apresentava agora um rombo entre os dois olhos, provocado pelo tiro de rifle
disparado pela francesa, mas ela não havia sido abatida. Erguendo-se como se a bala não
tivesse arrancado metade de seu cérebro, a figura avançou mais uma vez sobre mim, quando
outro tiro lhe acertou o ombro.
— Afaste-se, demônio das trevas!
A francesa já engatilhava sua IMI Galil de fabricação israelense mais uma vez, mas desta vez
fui eu quem agi, espetando o coração da criatura com a ponta de minha rapieira. Eu tinha
me movido numa fração de segundos e a peguei desprevenida. Os tiros de Jacqueline tinham
ferido o corpo que ela usava como invólucro mais do que imaginava e o monstro não
conseguiu resistir muito mais. Emitindo um urro animalesco ensurdecedor, o demônio se
esvaiu de dentro da mulher ruiva em forma de vapor e um cheiro de enxofre muito forte
empesteou o lugar. Quando olhei em volta, havia corpos por todos os lados do gramado do
Stonehenge, tanto de membros da Ordem Negra quanto dos agentes da Teia. Os poucos
sobreviventes caminhavam em nossa direção e o professor Rashford já libertava o homem no
totem, tornando-o consciente novamente, fazendo-o cheirar um pouco de éter em um frasco.
O sol começou a me queimar logo em seguida.
Algum tempo depois, a Scotland Yard passou a investigar o que havia acontecido próximo de
um dos principais pontos turísticos ingleses, mas quando a polícia chegou, a Teia já havia
recolhido os corpos de seus agentes, deixando apenas a bruxa de cabelos vermelhos e os
corpos dos quase quarenta membros da Ordem Negra no local. Como envolvia ocultismo,
bruxaria e forças demoníacas, o caso foi abafado pelas autoridades e teve pouca repercussão
nos jornais londrinos. Tinham sido publicadas apenas notas especulativas nos tabloides mais
populares da região. A Teia — ou o que havia sobrado dela — continuava incólume e foi
assim que descobrimos o paradeiro do último adversário que iríamos enfrentar juntos: Adon
Gorky.
Alguns meses após o ocorrido em Salisbury, por intermédio de um feitiço de localização, o
homem conhecido como Thomas Blackwood apontou num mapa-múndi os possíveis
esconderijos que tanto Adon quanto seus asseclas podiam estar usando para se ocultar e os
sete últimos agentes da Teia começaram a investigar. Blackwood se dizia o guardião do
portal entre as realidades naquela região onde ficava o Stonehenge, e agradecido pela Teia
ter salvado sua vida, ele nos indicou as possíveis posições da Ordo Ignis Veni em nossa base
em Dublin. Logo que o velho barbudo nos ajudou captando sinais de magia negra pelo globo
terrestre, ele retornou para a Inglaterra, onde montava guarda no tecido da realidade há
muito tempo, segundo ele próprio.
— Ser feito de refém por uma seita satânica não é nem de longe a coisa mais terrível que já
me aconteceu nessa vida. — Disse o velho de mais de duzentos anos, pouco antes de partir.
O mundo da magia me causava dor de cabeça.
Em setembro de 1963, após algumas buscas infrutíferas por cidades como Berlim, Córdoba,
Belfast, Belmopan e Tikrit, encontramos o rastro mais significativo deixado pela Ordem em
Belgrado, na época, a capital da antiga Iugoslávia — hoje território sérvio. Após torturar um
dos integrantes da seita que encontrei em um dos galpões usados por eles como base,
descobri que Adon estava preparando o terreno para a abertura em Belgrado do maior portal
místico de que se tinha notícia, ligando de maneira irreversível a Terra com o reino das
fossas demoníacas. Toda sua corja de bruxos malignos estava reunida na cidade naquele
período e o ritual para a abertura do tal portal estava marcado para dali a três dias, na
primeira noite de lua cheia.
Através de estudos feitos pelo professor Rashford, a Teia tinha descoberto que o ritual feito
em Salisbury por seus rivais da Ordem Negra, tinha servido como um teste para saber se os
ocultistas tinham o poder necessário para começar a trazer demônios para nossa realidade e
que aquilo tinha servido como um alerta para Adon, que não podia permitir que os
dissidentes de sua própria seita obtivessem sucesso antes mesmo dele. O demônio que havia
habitado o corpo da sacerdotisa ruiva de nacionalidade irlandesa se chamava Sephiræd e ele
fazia parte de uma legião maligna do próprio inferno com poderes de manipulação, capazes
de dominar outros seres com tendências perniciosas. Sephiræd havia enxergado as sombras
que habitavam meu corpo e por isso havia tentado me dominar assumindo minha forma.
Adon queria liberar aquela legião de demônios na Terra para que ele pudesse controlar todos
os seres malignos que habitavam o planeta, tornando-se assim o invencível senhor de todos
os vampiros, lobisomens, vircolacs e strigas. Aquele bruxo já tinha ido longe demais.
A casa de dois andares de arquitetura vitoriana ficava situada numa esquina tranquila de
Belgrado, a apenas 8 km do Musej Jugoslavije, o museu de história iugoslavo. O vapor
quente ainda saía do banheiro enquanto ele caminhava até o bar de dois metros de largura e
se servia de uma vodca ucraniana. Ele vestia uma calça fina de seda e havia mantido o torso
nu após o banho. Os cabelos estavam penteados para trás, como todas as vezes que eu o
tinha visto de perto e uma vitrola no quarto em frente tocava uma canção soviética chamada
“Proschalnaia Komsomolskaya” sobre um jovem casal que havia se separado pela guerra
civil. A sala estava escura, a luz do luar entrava debilmente pela janela. Ele não me viu, até
ser tarde demais.
Adon sentiu os dois tiros no ombro esquerdo e de repente, se sobressaltou, olhando em
direção de onde eles haviam partido. Eu estava sentada confortavelmente numa poltrona de
couro marrom, preenchida com um estofado macio, logo de frente para o sofá de dois
lugares. Calmamente acendi um abajur na mesinha ao lado para que ele pudesse me ver com
clareza e tão logo meu rosto se iluminou, ele deixou o copo de vodca escapar por entre os
dedos. O vidro espatifou-se no chão e espalhou por um tapete felpudo a bebida que ele mal
tinha experimentado.
— Um desperdício de uma ótima marca de vodca, sem dúvidas.
Minha voz estava cheia de ironia e assim que ele me ouviu pela primeira vez, tentou
alcançar os dardos que eu tinha atirado em suas costas, com a pistola que eu descansei na
mesinha com o abajur, ao lado do cinzeiro de prata. Ele não conseguia encostar nos dardos e
viu seu corpo começar a enrijecer. Sentou-se no sofá em seguida, de frente para onde eu
estava.
— E-Elliot...
Adon tentava balbuciar o nome de seu guarda-costas enquanto sentia as cordas vocais e os
músculos da face congelarem. O senhor Cole não podia mais ouvi-lo.
— Poupe seu fôlego, Adon. Elliot não vai vir até aqui. Eu o matei lá embaixo, na entrada da
cozinha usando isso.
E exibi minha rapieira com a mão esquerda, erguendo-a o suficiente para que ele visse o
sangue de seu colega nela.
— Ele tentou fazer seu truque de incendiar as próprias mãos com aquele fogo verde, mas
não deu tempo. — Os olhos de Adon estavam vidrados em minha direção. — Você vai ter
que arrumar outro capanga para te chupar.
— Vo-Você... Não... Me... Assusta...
— Provavelmente não mesmo. Um cara tão poderoso como você, tão vivido e com tanta
experiência, não tem porque temer uma vampira sem nada mais a perder como eu. Tudo
que podia ser arrancado de mim já não existe há algum tempo. Você, Iolanda, Dumitri e
Costel me tiraram tudo. Eu não tenho mais nada, exceto o último prazer em acabar com sua
vida.
Eu havia injetado no corpo de Adon uma toxina que paralisava seus músculos, mas que o
mantinha consciente. Ele estava sentado no sofá com o torso ereto e os braços pendendo
para os lados. Suas pálpebras já não piscavam mais e sua voz estava cada vez mais fraca.
— Eu podia simplesmente cortar sua cabeça logo que entrei nessa casa confortável que você
arranjou para passar os últimos dias antes de transformar o mundo num inferno, mas achei
que seria mais dramático te ver sofrer pelo menos uma fração do que você e sua amiga bruxa
me fizeram passar em Cusco.
Ele fez menção de retrucar, mas o interrompi.
— Não se preocupe. Não pretendo te mumificar e deixá-lo petrificado vivo dentro de uma
câmara mortuária por mais de quarenta anos. Eu não faria isso com você. Eu serei muito
mais generosa.
Eu abri um sorriso e me deleitei com suas tentativas de esboçar reações através do rosto
quadrado.
— Caso você esteja se perguntando o que estou planejando fazer enquanto a toxina do
doutor Brandt paralisa seu corpo, é só ter paciência. Daqui a pouco você irá descobrir.
Antes, preciso dizer o que meus amigos estão fazendo enquanto estamos aqui tendo essa
conversa agradável. — Eu ajeitei a rapieira ao lado da poltrona e cruzei minhas pernas. Senti
as duas Berettas fazerem volume sob meu sobretudo preto de couro e então continuei. —
Nesse momento, Jacqueline lidera uma equipe de quatro agentes que vão explodir o prédio
em Patrijarha Pavla com todos os equipamentos para a abertura do seu tão precioso portal lá
dentro. Se dermos sorte, vamos poder ver as labaredas daqui!
— M-Meus... irmãos... Vão--
— Seus irmãos vão continuar o plano mesmo sem você? Nós já havíamos pensado nisso, por
isso, nós localizamos cada um deles em seus hotéis e casas alugadas de Belgrado. Nesse
momento devem estar todos mortos.
Embora não pudesse exprimir todo o ódio que estava sentindo, os olhos de Adon brilharam
diferente naquele momento. Ele sabia que eu estava falando a verdade e que antes de encará-
lo pessoalmente, eu e a Teia havíamos eliminado cada um de seus irmãos de seita. Ele e
Elliot Cole eram os últimos membros da Ordo Ignis Veni que restavam. Seu plano de
conquista estava liquidado.
— Deve ser frustrante viver quase duzentos anos buscando um único intento e acabar sem
vê-lo se realizar. Eu imagino o que deva estar sentindo agora, Adon, mas eu não me
importo. O mundo vai estar melhor sem sua presença maligna nele. O ser humano já é cruel
o suficiente sozinho, não precisa que uma horda de demônios venha para torná-lo ainda
pior. Eu sei que você se esforçou para chegar até aqui, que buscou inúmeras maneiras de se
tornar imortal, que fez tudo a seu alcance para que não morresse antes de ver o mundo em
chamas, mas eu não posso deixar que isso aconteça.
Adon tentava abrir um sorriso naquele momento. Saliva começou a escorrer de seus lábios
rijos e seus olhos brilharam das lágrimas que procuravam lubrificar seus globos oculares.
Com o resto de controle que ele ainda tinha no corpo, ele balbuciou suas últimas palavras:
— O p-poder do portal é i-invencível... Nós somos...
A rapieira penetrou-lhe no peito e com ela fincada bem em seu coração, eu fiz questão de
torcê-la lá dentro, sentindo além do músculo partido, o forro do sofá às suas costas,
atravessado pela lâmina. Um jorro de sangue foi expelido por entre os lábios levemente
abertos do ucraniano e naquele momento um brilho cintilante pode ser visto no horizonte,
pela janela, causado pela explosão do prédio em Patrijarha Pavla. Fui até o bar particular de
Adon no canto esquerdo da sala de estar, me servi de um copo de vodca e voltei a me sentar
na poltrona em frente ao sofá. Fiz questão de esperar até que o coração de Adon parasse de
vez e não houvesse mais sinais vitais oriundos de seu corpo. Ele estava estático com a espada
cravada no peito, mas seus olhos continuavam arregalados. “Melhor me certificar de que a frase
da Ordem do Portal de Fogo não passa de uma bravata! Nós somos imortais! Nós somos imortais. Nós
somos imortais”. Aquela vodca era uma das melhores que eu já havia experimentado.
Epílogo
EM 1964 minha mineradora petrolífera na Arábia Saudita havia faturado mais nos seis
primeiros meses do ano do que em todo o ano fiscal anterior e aquele crescimento
exponencial me deu ânimo novo para voltar aos negócios e participar mais ativamente de
seu gerenciamento. Eu havia transformado a mineradora venezuelana em uma filial de
minha empresa principal e com a contratação de vários técnicos e engenheiros petrolíferos
para trabalhar em ambos os lugares, coloquei a Rux-Oil no topo das listas das companhias
mais bem-sucedidas da década.
Os advogados da Casavette & Montanaro que eu havia contratado há mais de dez anos
haviam descoberto que um financiador ucraniano misterioso estava por trás da diretoria da
Novyy Kordon — a empresa que havia comprado minhas ações da Rassvet — e quando o
grupo começou a pedir diversas concordatas, fazendo com que o valor de suas ações
despencasse no mercado logo após a última vitória da Teia em Belgrado, não era difícil
imaginar que Adon Gorky era o homem forte por trás da Novvy Kordon. Assim como eu,
Gorky era um empresário de mais de cem anos e para que ele se mantivesse à frente dos
negócios que permitiam que ele continuasse milionário e poderoso, de tempos em tempos ele
precisava mudar de identidade, bem como criar personagens que permitissem que ele
continuasse atuando sem que ninguém mais percebesse a sobrenaturalidade da coisa.
Assim que vendi as ações que ainda tinha em meu poder da Rassvet — agora chamada
Novvy Kordon —, meu grupo de advogados descobriu que outra pessoa havia entrado na
jogada e assumido o controle do grupo ucraniano. Assim como Gorky, o nome dessa tal
pessoa era envolto em segredos. “Será que Adon tinha herdeiros? ”, pensei eu na época. Eu não
demoraria a descobrir a verdade.
Agora que meus negócios estavam estabilizados e saudáveis, decidi me ater a outra questão
que havia surgido nos últimos anos sobre minha ancestralidade e voltei mais uma vez para a
Valáquia. Embora eu soubesse que Dumitri Ardelean era dado a intrigas e jogos mentais, a
história de que eu possuía sangue real me incomodou, o que me fez investir pesado em
descobrir, afinal, quem era minha mãe. Por mais que já fizesse muito tempo e que gerações
inteiras já tivessem crescido e morrido naquela região da Romênia, eu comecei pelo mais
básico, visitando os cartórios da região. A Valáquia não possuía uma área muito extensa e
nem possuía muitos cartórios, mas minha tarefa era bastante dificultada pelo fato de que eu
nem sabia o nome completo de solteira de minha mãe. Ruxandra era um nome bem comum
na região e sem saber seu sobrenome antes de se casar com Grigore, eu tinha poucas chances
de encontrá-la nos registros de nascimento. Eu me guiava pela idade aproximada que ela
deveria ter na época do casamento — ela tinha dezoito anos quando se casou e vinte e
quatro anos quando me deu à luz —, isso nas primeiras décadas do século XIX, mas a
maioria dos cartórios só arquivavam registros de 1900 em diante. Aquilo estava sendo
cansativo.
Minha próxima tentativa era encontrar alguma pista nos cemitérios da região e em seus
registros, mas para minha surpresa, os corpos da maioria das pessoas que haviam sido
enterradas ali antes da virada do século XX tinham sido retirados de lá há muito tempo. Não
havia mais qualquer sinal de minha mãe no cemitério onde eu e Grigore a havíamos
enterrado e seus restos mortais haviam sido descartados, sem que houvesse nem mesmo um
túmulo para que eu visitasse. Ela tinha sido riscada da existência.
Quem era Ruxandra antes de se tornar minha adorada mãe ou de quem ela descendia, ainda
era um mistério quando viajei da Valáquia para Veneza. Aquelas podiam ser simples
palavras vazias que Dumitri havia usado para tentar me seduzir e fazer com que eu me
sujeitasse a seus caprichos, mas era bem claro agora que eu jamais saberia a verdade sobre
minha possível ascendência nobre. “Quando a transformei, eu queria que enxergasse todo potencial
que seu sangue real já trazia mesmo antes de se tornar uma imortal. Sangue real. SANGUE REAL”.

Eu não voltava à Itália desde que havia enterrado o corpo de minha doce Alexandra num
túmulo ao lado de seu pai Enzo, e todo o trajeto até o cemitério em Veneza foi lúgubre.
Cheguei ao local no começo da noite e caminhei sozinha até o jazigo da família Di Grassi,
carregando um buquê de orquídeas, as flores preferidas de minha filha. Embora tivesse
passado mais de dez anos desde sua morte, eu sabia bem a localização de seu túmulo e tinha
certeza que jamais iria esquecer do dia em que enterrei aquela doce criança que eu havia
arrastado irresponsavelmente para o meio do rastro de sangue e de dor que era minha vida.
O ramo de flores tremulou em minha mão quando me deparei com sua lápide e tratei de
chamar a atenção de um funcionário do lugar que varria algumas folhas num jazigo vizinho.
— O que aconteceu a essa lápide? Por que ela foi vandalizada dessa maneira?
— Não sei não, dona. — Respondeu-me o rapaz que vestia um macacão cinza e que tirou o
boné ao se dirigir a mim. — Eu trabalho aqui há seis meses. Já estava assim quando cheguei.
— Exijo falar com o administrador do cemitério.
O rapaz magro cujo corpo lânguido mal preenchia o macacão me acompanhou até o
escritório do local, onde o administrador me atendeu. Após um cumprimento de mãos, o
homem de ascendência africana, com sotaque estrangeiro, me indicou que eu sentasse na
cadeira em frente à sua escrivaninha e eu fui direta.
— A lápide do túmulo de minha filha foi depredada. Está em pedaços. Mal consigo ver sua
foto no monumento. O que aconteceu?
— Senhora...?
— Di Grassi. — Eu ainda usava meu nome de casada.
— Senhora Di Grassi, eu lamento pelo que aconteceu com o túmulo de sua filha. Nós
tentamos contato com a família na época, mas ninguém retornou nossas ligações.
— Quando isso aconteceu? — Indaguei, curiosa.
— Foi dois dias após o sepultamento da menina. Eu me lembro bem do ocorrido. Eu havia
assumido a administração há pouco mais de quatro meses, mas no mesmo dia em que
ocorreu o vandalismo na lápide, um de nossos coveiros foi atacado por um animal selvagem
próximo a um dos muros do cemitério, por isso me marcou tanto.
Eu estava muito surpresa.
— E ele sobreviveu?
— Infelizmente não. — Disse ele, com pesar. — O bicho que o atacou rasgou sua jugular.
Ele não teve nenhuma chance. Foi algo muito incomum na época, mas as autoridades
alegaram que haviam lobos selvagens na região e tudo ficou por isso mesmo.
“Lobos selvagens no meio de uma área urbana? ”, pensei, completamente desconfiada com
aquela história. “Teria um vampiro atacado o homem? E nesse caso... O que isso teria a ver com
Alex? ”.
— E quanto à lápide?
— A pessoa que depredou a lápide do jazigo também destruiu a laje que cobria o túmulo.
Acreditamos que era alguém muito forte e com uma marreta pesada para ter feito todo
aquele estrago. Como eu disse, senhora, tentamos entrar em contato com sua família, mas
não conseguimos encontrar ninguém. Nós reformamos a laje do túmulo, mas deixamos a
lápide como ficou até que algum parente resolvesse aparecer aqui. A senhora é a primeira a
vir até nós para prestar esclarecimentos sobre o ocorrido.
Eu saí daquele lugar estarrecida com tudo que tinha ouvido do administrador. Não entrava
em minha cabeça que alguém havia depredado o túmulo de Alex aleatoriamente, sem um
propósito definido, e intrigada, resolvi passar mais alguns dias na cidade, pelo menos até que
substituíssem a lápide e se certificassem que o corpo de minha filha ainda estava enterrado
lá. “Quem teria motivos para destruir o último lugar de descanso de minha pequena Alex? E nesse caso,
por que só o túmulo dela havia sido vandalizado? Se alguém tinha algo contra minha família, por que o
túmulo de Enzo permanecia intocado? ”.
Eu retornei para a França ainda cheia de dúvidas sobre o que havia acontecido em Veneza e
visitei o castelo em Vaucluse uma última vez, aproveitando que estava remoendo todos os
momentos de tragédia que havia vivido. Decidida a nunca mais retornar àquele lugar onde
eu havia sido tão feliz por um período curto, mas que agora só me trazia lembranças de
sofrimento, eu coloquei a propriedade à venda e não demorou a aparecer interessados na
compra junto à imobiliária. A meu pedido, após os quatro anos de reclusão em que passei
ali, me afogando em vinho e em autopiedade logo após as mortes de Alex e Enzo, o lugar
tinha sido reformado quase que completamente por dentro e por fora. Eu havia me desfeito
dos animais no estábulo, vendendo-os para uma fazenda em Avignon e havia desmantelado
o galpão onde meu marido guardava seus equipamentos de guerra, enterrando sobre
toneladas de concreto a maioria das armas. Eu sabia que muitas delas seriam valiosos itens
de colecionadores em lojas de antiguidades, mas em memória de meu marido, preferia dar
um sumiço em tudo, exceto no par de Berettas que tinham me acompanhado em minhas
últimas aventuras — e que guardei em um cofre de um banco suíço — e na rapieira de
guarda prateada, que doei a um museu espanhol como artigo de luxo. A França agora me
trazia lembranças muito tristes e eu parti dali sem pretensões de retornar um dia.
No final daquele ano, eu me mudei para um castelo em Edimburgo, na Escócia e de lá
fiquei a tocar os negócios da Rux-Oil, tendo minha presença requisitada raras vezes tanto na
sede em Riad quanto em sua filial na Venezuela. Depois de tudo que havia me acontecido
em Vaucluse, depois de tantas perdas, decidi contratar apenas um empregado para cuidar do
castelo, mas suas características físicas peculiares faziam dele o servo perfeito: Ele era um
licantropo. Eu havia conhecido Sergio Gutierrez em Caracas, numa de minhas visitas à
mineradora e era uma noite comum de final de expediente quando eu o encontrei escondido
no banheiro de meu escritório, sujo, rasgado e ensanguentado. Ele não devia ter mais do que
dezessete anos na época e os moradores do bairro onde ele vivia haviam descoberto no que
ele se transformava em noites de lua cheia, passando a persegui-lo. Vi na história daquele
menino a minha própria história humana refletida e algo fez com que eu me afeiçoasse a ele.
Eu o mantive em meu quarto de hotel por alguns dias, até decidir o que iria fazer, e quando
me preparei para voltar a Edimburgo, sugeri que ele me acompanhasse.
— Você pode cuidar de meu castelo, tomar conta do lugar em minha ausência em troca de
um salário justo e moradia. O que me diz, Sergio?
Ele não tinha família em Caracas e seus olhos brilharam com a oportunidade que eu estava
lhe dando. O menino de cabelos lisos e traços indígenas estava muito agradecido e no dia
seguinte ele embarcou num voo a meu lado, se mudando de vez para a Escócia.
Devido minha convivência de anos com Alejandro Columbus e Pietra Del Cuzco no Peru,
eu me virava bem com o espanhol e a comunicação com Sergio não era problema. Ele havia
se adaptado bem à sua nova vida de mordomo e eu não demorei a revelar a ele que eu era
uma vampira. Suas transformações eram sazonais e o que ele fazia ou deixava de fazer
quando virava um lobisomem não era de meu interesse, assim como ele não se metia em
meus costumes vampiros. Dentro do castelo, sob minha orientação, ele estava se tornando
um excelente ajudante e às vezes até me fazia companhia durante o jantar. Numa daquelas
noites, após meu sono reparador ao longo de toda a manhã e à tarde, Sergio me entregou
uma correspondência pouco antes de servir o jantar e a carta me deixou curiosa. “Quem pode
saber que estou morando aqui? ”.
— Quando esse envelope chegou, Sergio?
— Hoje pela manhã, señora Alexia.
Havia um carimbo de uma agência dos correios de Bucareste no envelope e a carta havia
chegado sem remetente. Sergio havia retornado para a cozinha, de onde me traria a vitela
malpassada de costume e naquele ínterim, abri o envelope. Havia um convite para uma festa
em seu interior. “Aos cuidados de Alexia Di Grassi, um convite especial. Baile de máscaras na
Transilvânia. Venha à caráter”.
Eu cheguei à Romênia próximo das 18h00 e quando botei os pés naquele lugar mais uma
vez, eu tinha certeza que estava sendo atraída para uma armadilha da qual eu ia fazer quem
a estivesse armando se arrepender. O endereço marcado no tal convite dava num salão de
festas abandonado, mas um Jaguar 1961 azul marinho me aguardava estacionado do outro
lado da rua. O chofer desceu do veículo, abriu a porta traseira e convidou:
— Queira entrar, senhora Di Grassi. Fui designado para levá-la a seu destino.
Coloquei todos os meus sentidos à prova e farejei cada milímetro dentro daquele carro, me
certificando que não havia nada ali pronto a me matar. O homem ao volante também estava
tranquilo, seu coração batia sem grandes rompantes e não havia nenhum tipo de arma com
ele. Era bem óbvio que o tal baile de máscaras era só um engodo para me atrair para meu
antigo país, mas minha curiosidade em saber quem estaria armando aquela presepada toda
fez com que eu me permitisse entrar no jogo. “Se você quer brincar, vamos brincar”. A viagem
levou quase uma hora e quando o Jaguar embocou numa certa avenida escura próximo a um
desfiladeiro, eu sabia exatamente onde estávamos indo. O carro estacionou em frente ao
portão e educadamente o chofer desceu do veículo, abriu a porta traseira e estendeu a mão
para que eu me apoiasse ao desembarcar.
— Obrigada.
Eu não havia vestido qualquer traje à caráter para um baile de máscaras, e tinha dado
preferência a minhas roupas de batalha costumeiras, a blusa de gola alta, as calças de couro,
as botas até as canelas e meu sobretudo preto. Quando abri o portão do castelo, senti falta
das minhas Berettas. “Vou ter que cuidar do bastardo com minhas próprias mãos”, pensei, após
fechar as grades que rangeram atrás de mim em suas dobradiças.
O lance de escadas até o hall de entrada era tão grande quanto eu me lembrava e quando bati
na porta, um mordomo trajando um elegante fraque me recebeu. Ele tinha sotaque francês e
o bigode fino característico, e me encaminhou até a sala de jantar. Senti um ódio irracional
me queimar as entranhas quando eu o encarei na cabeceira da mesa de carvalho, e o aroma
da mesma vitela que comíamos em Kainski me revirou o estômago, causando-me asco. “E
eu adoro carne malpassada”, pensei, infeliz. Um outro serviçal de aparência nórdica servia uma
segunda taça de vinho à mesa e ele ergueu a sua, em cumprimento:
— Já mandei preparar seu vinho predileto. Sabia que ia chegar com sede da viagem.
Era o Bordeaux francês. O mesmo que havia sentido o cheiro nos corpos de Danielle e
Fabrice em Vaucluse há dez anos.
— Mande os empregados embora. Não quero que eles vejam o que pretendo fazer com você.
Minha voz soou firme e senti o mordomo francês e o serviçal nórdico engolirem seco, com
medo.
— Não seja indelicada, Alexia. O que nossos empregados vão pensar de você?
O castelo na Transilvânia havia sido reformado desde a última vez que eu havia estado nele,
mas ainda mantinha suas principais características. Tinhas as janelas vedadas, luminárias
espalhadas pelas principais paredes e corredores e até mesmo os móveis pareciam ser os
mesmos da época.
— Cuidei para que o castelo mantivesse o mesmo charme daquela época. O último morador
acabou me vendendo por uma pechincha, embora agora dinheiro não me seja mais um
problema. A Novyy Kordon está lucrando horrores com a alta do petróleo no mercado. À
propósito, como vai a Rux-Oil?
Eu detestava a ideia de que agora meu meio-irmão Costel podia ler minha mente
deliberadamente, o que fazia de minhas ações previsíveis a ele. Eu tinha gana de saltar sobre
aquela mesa e rasgar sua jugular com minhas próprias mãos, tirando aquele sorriso canalha
de seu rosto, mas ele estaria me esperando, ele poderia evitar.
— Por que toda essa encenação, Costel? Tudo isso só para me trazer de volta ao lugar onde
vivemos juntos na Transilvânia? — Os dois serviçais se retiraram logo que disse aquilo. —
Qual é seu jogo? De que maneira está tentando me apunhalar dessa vez?
Ele deu um gole em seu vinho e em seguida me encarou sem dizer nada. Com um gesto, ele
me convidou para sentar a seu lado à mesa, mas eu me mantive estática, à quatro passos da
porta de entrada da sala de jantar.
— Desta vez não há jogo algum, minha irmã. Eu a trouxe aqui para compensá-la pelos anos
terríveis que tem vivido desde a tragédia em Vaucluse. Eu não pude expressar meus
sentimentos naquele nosso breve encontro em Bucareste — e ele deu um risinho irônico,
olhando para o lado rapidamente. —, mas eu lamento profundamente o que houve com seu
marido.
— Não fale de Enzo. Você não sabe nada sobre o que ele representou para mim.
— Você tem razão. Eu não sei. Mas eu acredito que você vai querer reencontrar o fruto que
nasceu da sua relação com aquele italiano.
Aquelas palavras me atingiram como uma explosão de granada. Reações puramente
humanas dominaram meu corpo e eu comecei a tremer dos pés à cabeça. Costel fez um
gesto e o mordomo francês ressurgiu da cozinha, aguardando o comando de seu patrão à
dois passos da mesa.
— Pode trazê-la, por favor, Jean.
“Trazê-la? Trazer quem? Do que esse bastardo desgraçado está falando? O fruto que nasceu da minha
relação com Enzo? Do que ele está falando? ”
Eu estava aturdida e comecei a acompanhar com os olhos o mordomo subir as escadas que
davam para o andar superior.
— Você vai querer uma taça de vinho antes da surpresa, Alina... Quer dizer, Alexia. Ainda
me confundo.
Costel não tirava aquele sorriso irritante do rosto. Uma lágrima de sangue começou a
escorrer de meu olho esquerdo quando ouvi passos vindos de cima, passos leves, ao lado do
mordomo.
— Do que você está falando, Costel? Que surpresa? Do que está falando?
Ele juntou as duas mãos entrelaçadas e apoiou os cotovelos sobre a mesa. Seus olhos azuis
me encararam uma última vez e então ele passou a olhar em direção às escadas, aguardando
o retorno do mordomo que acompanhava outra pessoa. Eu não conseguia controlar minhas
mãos trêmulas, e de repente, aquele perfume tomou meu olfato. O perfume de sua pele. “É o
cheirinho dela”. Antes que aparecesse ao pé da escada, eu já sabia quem era a tal surpresa, o
tal fruto da relação entre mim e Enzo.
— Eu tinha certeza que você ia ficar feliz, minha irmã. — Disse Costel, ao ver minha reação
diante da aparição em minha frente.
A menina não esperou mais nada. Ela largou a mão do mordomo e correu até mim, me
abraçando forte, calorosamente.
— Mamãe! Eu senti tanta saudade!
Era mesmo ela. Sem truques. Sem engodos. Sem mais trapaças. Minha Alex estava viva e
em meus braços. Era o momento mais feliz da minha vida.

Fim, por enquanto...

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