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PARADOXO

PARADOXO (conto título)


PROJETO TITÂ
ESTIGMA
O BICHO PAPÃO
O MANDA-CHUVA
APARÊNCIAS
GRANDE CIDADE: QUIMERAS
ARMAGEDOM

CARLOS AFFONSO

ANO DE PUBLICAÇÃO: 2015


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Este livro é uma obra de ficção. Todo o conteúdo é fruto da imaginação do autor. Qualquer
semelhança com o real e o virtual é mera coincidência.
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PARADOXO

A guerra calou-se. Não foi por falta de argumentos nem porque terminou o assunto. Ela está
à espreita. Como fera à caça espera o melhor momento para atacar, não para saciar a fome,
sobreviver, mas para satisfazer seus desejos de ambição e poder. Caprichos, muitas vezes, de apenas
um homem, que em seus delírios deseja algo que não é seu, mas julga ser, e o faz crer ou impõe a
toda uma nação. Homens que herdam vestígios genéticos primitivos de ancestrais guerreiros.
Alguns animais irracionais demarcam seu território com suas próprias fezes ou urina; o
homem o faz, racionalmente, com sangue, de outro.
Em uma incursão solitária, o comandante do batalhão azul de cinquenta homens - reduzido a
apenas doze pelas baixas da guerra - foi surpreendido pelo inimigo. Tendo a frente pelo menos uma
dezena de soldados de fardas vermelhas, armados, prontos para atirar, sentiu que a guerra, para ele,
terminaria ali.
Lembranças da família vêm a sua mente, quadro a quadro, como flash de um filme: os filhos
chorando a sua morte; a esposa amada, com quem fez tantos planos e os teria que realizar sozinha,
consola-os, sem ter quem a console; sua casa; sua cidade; o velho cemitério onde seus pais estão
enterrados no tumulo da família e, quiçá, seu corpo seja resgatado e enterrado ao lado deles ou,
então, jogado numa vala profunda juntamente com outros desgraçados designados como anônimos
heróis de guerra.
Há alguns dias, com este mesmo grupo inimigo sob a mira de sua arma, teve os mesmos
pensamentos em relação a eles: seria ele o verdugo que faria tanta gente chorar, lamentando a morte
do pai, do filho, do irmão, do amado? Seria ele lembrado pelos parentes destes pobres homens
como um monstro sem rosto, sem nome, cruel, desumano, amaldiçoado por toda a vida? Os
inimigos passaram sob sua mira lentamente, sem saber que ele os havia poupado; abaixou a arma e
se benzeu.
Seus pais o ensinaram a perdoar os opressores; mesmo àqueles que covardemente
assassinaram seu irmão mais novo para lhe roubar a moto; perdoou o médico que num erro fatal
durante o parto do seu filho, lhe tirou a vida e por pouco a da esposa também. Seria ele perdoado
agora? Teriam os inimigos os mesmos ensinamentos e o mesmo procedimento? Com certeza, sua
esposa e seus filhos lhes perdoariam por matar o esposo e pai querido: repassou os ensinamentos
paternos a eles.
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As miras das armas inimigas tinham o mesmo foco: o seu peito, onde um coração batia
acelerado, antevendo, a cada batida, o seu fim sem misericórdia. Não é covarde, mas não podia
morrer agora, tinha primeiro que realizar os planos que fizera com a esposa; ver os filhos crescerem,
formarem-se, casarem-se; morrer bem velhinho como seus pais; ser velado e sepultado no velho
cemitério da cidade, no lugar a que tem direito no túmulo da família, encimado com uma placa com
o seu nome, junto com os nomes de todos os entes queridos póstumos. Sempre pensou que sua vida
seria assim. Aí, surgiu essa guerra inesperada que até agora não entendeu direito; norte contra o sul,
vermelho contra azul, um querendo anular o outro como se fosse possível: pontos cardeais, cores,
não se anulam e as pessoas que moram no norte têm parentes no sul, já moraram no sul e vice-
versa.
Os dedos nervosos, trêmulos, daquele bando de soldados esfarrapados e cadavéricos,
recuavam lentamente, pressionando os gatilhos. Aparvalhado, o comandante azul vendo a vida por
um fio, tomou uma decisão lancinante: largou sua arma no chão e gritou ansioso para os oponentes.

_Parem! Parem! A guerra acabou! Paz! Paz!

Os soldados inimigos trajando fardas vermelhas, apalermados, olharam para seu comandante,
que, confuso, não sabia o que fazer diante de um quadro que nunca imaginara acontecer. Pasmo, o
comandante vermelho olhou para cada um de seus soldados sem nada ordenar. O comandante azul,
ante a indecisão deles, insistiu em sua mentira.

_Eu ouvi pelo radio, antes de ele quebrar, que foi assinado o tratado de paz com a
intermediação da ONU. Não ouviram, também, no radio de vocês?

Ele lutava pela vida, mentindo, desesperado. Mas, agora, a mentira já se tornava aflitiva.
Envolvera o radio para dar consistência a ela e o tiro poderia sair pela culatra, literalmente. Com
certeza as informações que recebiam pelo radio eram de ordem estratégicas para avançar e derrotar
os inimigos azuis. Morreria como um covarde jocoso; seria lembrado como herói de guerra no seu
país e como piada nos encontros de caserna, no lado inimigo.
_Não, não ouvimos nada! Respondeu o comandante vermelho.
_Como não? Foi noticiado durante todo o dia de ontem, argüiu o comandante azul, que lutava
por sua vida como um náufrago em busca da terra.
_Estamos sem radio há uma semana. Não sabemos nada do que acontece no mundo.
Confidenciou o comandante vermelho, ávido por ser verdade a informação do congênere inimigo.
Acreditava como homem, não como militar.
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O comandante azul suspirou aliviado. Estava salvo, pelo menos por enquanto.
Os soldados vermelhos na ânsia da paz esqueceram seus procedimentos militares, largaram as
armas e festejaram o fim da guerra. Choravam, riam, beijavam-se fraternamente, pulavam iguais
crianças, rolavam pelo chão, atingidos pela euforia da paz, semelhantes aos amigos que rolaram
mortos, atingidos, dessa vez, por balas assassinas.
De repente, os soldados do batalhão azul, preocupados com a demora de seu comandante e
intrigados com aquela algazarra em plena guerra, irromperam no local de armas em punho, prontos
para atirar em quem quer que fosse.

Os soldados do batalhão vermelho, estupefatos, num misto de medo e dúvida, vendo os


soldados azuis em posição de ataque, olharam interrogativamente para o comandante azul, autor do
suposto fim de guerra. Teriam sidos enganados e caídos numa armadilha?
A mente do comandante azul fervilhava diante da extensão de sua mentira. Daria ordem para
atirar e trairia a fé que aqueles homens – pais, filhos, maridos, irmãos: como ele – depositaram em
si, ou continuaria com a farsa, iludindo seus homens também? Afinal, a história do radio quebrado
era verdadeira. Também eles nada sabiam dos últimos acontecimentos da guerra. Há vários dias que
não se ouvia som de qualquer arma e nem a presença de aviões. Talvez a sua mentira fosse verdade.
A febre que a situação lhe impingia, convulsionava seu cérebro fazendo-o acreditar na
mentira como possível verdade. A verdade às vezes se mostra tão absurda que parece mentira,
inverossímil; a mentira não, ela é sempre verdadeira, verossímil. O mentiroso é que se trai.
Voltando do transe, percebendo que os seus comandados aguardavam apenas sua ordem para
atirar no inimigo prostrado, combalido, ordenou que baixassem as armas; reuniu-os, em posição de
sentido, afastados do pelotão inimigo e comunicou-lhes, como que confidenciando que a guerra
havia acabado; acabara de saber pela boca inimiga: essa foi a sua versão. Recomendou-lhes
discrição e manterem-se alertas no relacionamento com o inimigo.
O batalhão azul, timidamente, exultou a notícia inesperada, porém, tão sonhada. Primeiro
entre eles e depois, juntamente com o inimigo, miscigenando o azul com o vermelho.
Com o passar dos dias tornaram-se grandes amigos. Confidenciaram sobre suas famílias, seus
amigos, seus desejos, seus sonhos; enalteceram as maravilhas de suas terras; trocaram elogios,
admirações; revelaram segredos.
Os soldados azuis revelaram segredos nada relevantes, apenas simples planos estratégicos. Os
soldados vermelhos, porém, confessaram que estavam sem comer a vários dias e com pouca
munição; para não morrer de fome, comeram o braço de um soldado morto; mentiram, porém, ao
dizer que o soldado era do próprio batalhão, para não constranger os soldados azuis.
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Andando sem rumo pelos caminhos devastados, os miseráveis soldados sem cores no coração
encontravam horrores produzidos pela guerra: moradias totalmente destruídas, aterrando o que antes
foi um lar; civis e soldados - azuis e vermelhos - mortos, alguns sem membros, estraçalhados;
mulheres nuas, brutalmente assassinadas, com vestígios de estupros, tendo os pequenos filhos
mortos aos seus pés. Crianças inocentes, sem ideologias, sem racismo, sem preconceitos; recebiam
ordens apenas para estudar, se higienizar, respeitar os mais velhos, não falar nomes feios, não brigar
com os amiguinhos; jamais serão adultos, não serão soldados, não receberão ordem para matar.
Os sentimentos daquelas pobres almas também estavam no chão: a honra chafurdava na lama;
o orgulho, pulverizado, arrastado pela tempestade mental, ofuscavam-lhe os olhos, vermelhos e
lacrimejantes; a autoestima, despojada, misturava-se em meio aos entulhos. Assombrados com
aquele quadro de horror que se transformara a cidade se afastaram para o campo na esperança de
encontrar um ambiente bucólico que lhes dessem um pouco de paz espiritual.
Depois de muito caminhar, cruzaram com um campo de futebol. As redes estendiam-se das
traves como um véu de noiva; as bandeirinhas tremulavam em cada canto; a bola inerte no centro
do campo: tudo pronto para iniciar a partida, mas nenhum sinal dos jogadores e da torcida.
Provavelmente fugiram com a chegada de soldados inimigos; mas quem seria o inimigo, os
soldados vermelhos ou azuis, ou ambos? Os moradores da região devem estar juntamente com os
jogadores ainda escondidos na floresta que circunda o campo.
Os soldados aproveitaram a ocasião e decidiram disputar uma partida: azul versus vermelho.
Os jogadores foram escolhidos por dois capitães, líderes naturais, que não eram os comandantes
militares; a seleção começou pelo vencedor da disputa do par-ou-ímpar. Os jogadores, escolhidos
por afinidade no breve conhecimento, tiveram que trocar as túnicas para que um lado ficasse com a
parte superior do corpo todo azul e o outro todo vermelho. As vitórias se alternavam a cada partida
e não havia baixas, a não ser por alguma botinada casual: eram apenas adversários, não inimigos.
Cansados da peleja, deitaram-se à sombra das árvores, enquanto gozavam dos perdedores e dos
pernas-de-pau. A sombra era fresca e adormeceram na quente tarde de um belíssimo dia...
Foram acordando um após o outro e assim que estavam todos de pé, se dirigiram para trás das
árvores, onde avistaram uma casa bem ao fundo. Com certeza lá teria água e provisões para mais
algum tempo. Porém, chegando lá, eles só encontraram destruição. Os móveis, paredes, janelas e
utensílios domésticos estavam cravados de balas, mas estranhamente não havia nenhum corpo dos
moradores. Teriam fugido a tempo? Estariam naquele momento no campo de futebol e fugido
juntamente com os demais?

Na frente da casa a alguns metros de distância avistaram um trator. Foram até ele e o que
viram lhes deixaram aterrorizados: o pesado trator estava estacionado em cima da porta de um
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abrigo subterrâneo. O sistema de freio do trator fora travado de uma forma quase impossível de
restaurar. Tudo indicava que quem fez aquilo, o fizera com a intenção de impedir a abertura da
porta. Seria para ninguém entrar ou para ninguém sair? A segunda hipótese, a mais terrível, era a
mais provável. Alguns soldados encostaram a orelha na porta e nada ouviram; bateram com as mãos
na madeira e mesmo assim não obtiveram retorno. Os comandantes dos dois batalhões, então,
deram ordem para seus subordinados arrastarem o trator de cima da porta. Todos se recusaram,
alegando que seria impossível realizar tal tarefa e se afastaram para longe de cabeças baixas.
Acamparam a uma distancia de onde se avistava ao longe o sinistro trator que encerrava sob
o seu peso um insólito mistério. Permaneceram acampados naquele local durante vários dias
observando aquela máquina, que mais parecia uma lápide, sem cruz, sem nomes. Não conversavam.
Cada um imaginava o que encontrariam quando finalmente tivessem coragem para abrir aquela
porta.
Não seria melhor partir e deixar tudo como está? Viver na dúvida às vezes é melhor que a
desgraçada certeza de saber que o homem foi criado a imagem do diabo e não de Deus.

O sol a pino, queimando o solo, fazia subir ondas de calor, distorcendo a imagem do trator,
transparecendo uma pintura surrealista.

Um soldado, enlouquecido pela espera agonizante, armou-se de um pé de cabra e rumou,


como se fosse Don Quixote contra o moinho de vento, decidido a destruir, neste caso, o trator.
Todos o seguiram solidários com a sua vontade de terminar com o terrível mistério. Subiram no
trator e, enfurecidos, estraçalharem a trava do freio que impedia a locomoção daquele veiculo
transformado em grilhão. Enfim livre, a máquina monumental moveu-se levemente; empurrada pela
força dos templários, ela deslizou para a grama liberando a abertura da porta. Bastava agora alçar as
duas folhas da pesada porta, para saber o que havia do lado de dentro. Comparado à retirada do
trator, seria uma tarefa simples como abrir as páginas de um livro; mas a revelação do possível
enredo dantesco tornou a missão quase impossível. Finalmente, sob enorme esforço psicológico, as
folhas foram abertas e largadas para o lado com estrondoso barulho. Um fedor de carniça humana
invadiu o ar denunciando o que todos suspeitavam: os jogadores dos dois times, o árbitro, a torcida
e com certeza os moradores da casa e os animais domésticos lotavam o pequeno espaço daquele
abrigo subterrâneo. Os soldados horrorizados, enojados, se afastaram rapidamente, vomitando,
chorando, maldizendo o inimigo, suposto autor daquele genocídio. Travou-se uma batalha entre os
vermelhos e azuis, acusando-se mutuamente como os autores do holocausto. A luta ferrenha
causava novas vítimas e teria exterminado a todos, se o comandante azul não tivesse posto um
ponto final, atirando para o ar, dando ordem de sentido.
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_Parem com esta luta idiota. O que temos que fazer agora é enterrá-los, rezar por suas almas e
lhes pedir perdão por aqueles que ceifaram suas vidas de maneira tão covarde. Que importância tem
a cor da farda de quem cometeu esta monstruosidade? O tipo de roupa que vestimos não nos torna
diferente dos outros. Os homens, possuídos pelo espírito da guerra, cometem todos os tipos de
crimes hediondos.
O exército de Branca Leone deixando para trás uma plantação de cruzes no campo de futebol,
transformado em campo santo, partiu daquele lugar onde desejava nunca ter estado. As cruzes sem
nomes marcavam a plantação de corpos que foram ceifados de suas almas por monstros que se
utilizam da guerra para realizar atos maquiavélicos. Arrastavam-se lentamente, sem sonhos, sem
destino. O que menos queriam agora era voltar para suas casas, envergonhados por crimes de guerra
que não cometeram, mas temiam, eventualmente, ser capazes do mesmo infortúnio.
Num dia fatídico, andando a esmo sem saber onde estavam, encontraram um soldado morto,
por acaso do exercito vermelho, ao lado de um maldito radio em perfeito estado de funcionamento.
Sintonizaram o radio e souberam de toda a verdade: a guerra ainda não acabara. A farsa do
comandante azul fora descoberta. Imediatamente, chamados novamente pela guerra, os homens se
transformaram em soldados. Os dois batalhões se mobilizaram, mantendo posição cada um no seu
lado, apontando as armas para o inimigo, seus amigos poucos instantes atrás. O irônico em tudo isso
é que as fardas estavam misturadas em azul e vermelho em ambos os lados.

Os dois batalhões inquiriram o comandante azul, que ficara entre eles, tentando convencê-los
que a guerra deles tinha acabado. Acusaram-no de colocar promessas familiares acima dos anseios
da pátria. O comandante azul retrucou, negando ser impatriota e se explicou:
_Pátria é a comunhão de famílias que falam a mesma língua, têm os mesmos costumes e
coabitam a mesma terra. A minha família é a minha pátria; as nossas famílias é a nossa pátria: se
não zelarmos por nossas famílias, então seremos impatriotas. O Estado gera fronteiras político-
econômicas antagônicas com outros Estados criando conflitos que são resolvidos com a guerra. Esta
guerra é político-militar: utilizam-na como instrumento para se sustentarem no poder. Não estão
preocupados com as nossas famílias, pois se estivessem, resolveriam os problemas através das vias
diplomáticas, nunca pela guerra.
Os seus argumentos soavam, porém, falaciosos. A sua mentira descabida não lhe dava
crédito. O que fizera não era digno de um comandante militar. Agira de uma forma covarde e
inconseqüente. Inutilmente tentava impor a todos, uma coisa que ninguém admitia. Uma situação
que só ele aceitava, oriunda de um devaneio, que criara por temor a morte, por amor a vida, por
planos que ficaram por fazer que a guerra interrompera, e que ainda teimosamente tinha a esperança
de realizá-los: prometera isso á mulher e aos filhos quando partiu. Temia a morte não pelo
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sofrimento físico que a causa, mas pela dor da separação dos entes queridos. A guerra era uma
separação temporária, a morte, definitiva. Aos rogos da esposa para que voltasse para ela e juntos
criarem os filhos, garantiu que o faria; então, não podia morrer.

_Desculpe se menti para vocês. Não foi covardia como pode parecer. Os que me conhecem,
sabem que não sou isso, já o demonstrei em varias ocasiões. Foi um momento de desespero ao
pensar no sofrimento da minha família com a minha perda. Jurei que nunca os faria sofrer, mas
naquele momento achei que não seria capaz de cumprir. Então, só havia duas alternativas: mentir ou
travar um duelo com aqueles que me ameaçavam. Poderia morrer ou matar todos eles. O que era
possível, frente ao estado debilitado de vocês, soldados vermelhos, que confessaram não resistir a
mais um dia de guerra. Preferi mentir. E acredito que tomei a decisão certa. Todos nós desejávamos
a paz, cansados de uma guerra inócua, como todas são. A guerra é uma ação declarada por homens
com os genes dominantes primitivos da guerra, sobrepujando os recessivos da civilidade. Tornamo-
nos grandes amigos na paz, o que significa que a guerra nos torna soldados frios e insensíveis.
Trocamos confidências, abraços; trocamos até a farda...
Neste momento, os soldados de ambos os lados, olharam suas fardas, e, envergonhados,
dispararam contra o comandante azul, que trajava uma calça azul com uma túnica vermelha. Em
seguida, voltaram-se uns contra os outros e atiraram até que o último soldado caiu ao chão, morto.
A voz da guerra ecoou novamente como o uivo de um lobo: sinistra, lúgubre.
Alguns dias depois, a paz foi declarada. A guerra acabou; louvaram todos aqueles que não
têm o poder da guerra, mas desejam a paz; praguejaram aqueles que têm o poder da paz, mas
decidem pela guerra. Não houve vencedores. Todos perderam; mesmo aqueles que se consideraram
vencedores. O norte e o sul continuam apontando para os mesmos lugares; as cores, azul e
vermelha, continuam maravilhosas como sempre; só as pessoas não são as mesmas: estão piores
com certeza.

Dizem que essa historia é verídica. Quem a contou foi o comandante azul, único sobrevivente,
em uma cadeira de rodas, conseqüência das inúmeras balas que transpassaram suas pernas.
Sobreviveu, porque estando com a túnica vermelha, os soldados vermelhos em respeito atiraram
somente em suas pernas; os soldados azuis hierarquicamente tiveram desvelo ao atirar em seu
próprio comandante: todos erraram os tiros propositalmente.

Quando os ideais são puros e desejados com verdadeiro amor às vezes se realizam.
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PROJETO TITÃ

Dr. Alan Foster, renomado cientista brasileiro de descendência americana, reconhecido


internacionalmente por seus feitos excepcionais, luta contra o tempo para finalizar o seu maior
projeto, sonho de quando ainda era um jovem iniciante na pesquisa dos mistérios das ciências. A
publicação da sua obra, nas principais revistas científicas, irá causar polemicas jamais vistas, tanto
no meio cientifico, quanto na sociedade de modo geral e no meio eclesiástico, principalmente. Será
um divisor de tempo: a.F. - antes de Foster - e d. F. - depois de Foster. Não responderá a pergunta:
“Há vida após a morte?” Mas, morte será uma palavra encontrada somente em dicionários editados
a.F..

Phillip Foster, 38 anos, filho do Dr. Foster tem um câncer de progressão rápida que
em poucos meses o levará para sempre. Descoberto recentemente e diagnosticado como incurável,
deixou a família inconsolável. Dr. Foster assim que soube, procurou o filho e lhe prometeu
veementemente que iria curá-lo; já sabia como, era só uma questão de tempo; mas teria que ser um
tempo bem menor que aquele que a doença lhe dava. Por ironia do destino, seu filho será a primeira
pessoa a utilizar os benefícios do seu invento, desde que o finalize antes que ele morra.

A previsão dos médicos é que Philip tenha no máximo seis meses de vida, sendo que nos dois
últimos meses, passaria o tempo todo sob o efeito de morfina por causa das fortes dores decorrentes
da doença. A previsão do Dr. Foster, para o término do seu projeto, é, ainda, de alguns anos,
provavelmente dois, se tudo correr como espera. Porém, a doença do filho não lhe dá esse tempo;
terá que abreviá-lo para quatro meses, ou então, na pior das hipóteses, correndo um grande risco de
ser inútil para mais dois meses.

Dr. Foster, para ganhar tempo, pulou etapas preciosas que podem prejudicar a evolução do
trabalho, pondo a perder todos os anos de pesquisa e, conseqüentemente, a cura do filho. Todos
acreditam nele e contam com a cura como um fato pré-estabelecido. Phillip, nas raras vezes em que
o pai lhe visita, repete a todo instante o quanto é grato por lhe dar a vida pela segunda vez. A
confiança do filho aumenta a sua responsabilidade e também a preocupação: está em jogo não só a
vida do filho, o que não é pouco, mas, também, o seu futuro como cientista e o relacionamento
familiar.
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Finalmente, após quatro meses de exaustivo esforço, concluiu o projeto. Não foi possível
fazer testes preliminares, nem checar todos os procedimentos. O tempo era escasso e o seu filho
agonizava débil e impaciente. Pela importância do evento e possíveis conseqüências do resultado,
não quis assistente nem pediu a colaboração de outros colegas: estava sozinho na difícil missão de
pai e cientista.

Antes dos procedimentos de inicialização, que levaria oito horas, Dr. Foster orientou o filho,
que ele ficaria inconsciente enquanto isso; só recobraria a consciência quando o evento finalizasse
com sucesso; não se lembraria de nada do que ocorreu durante aquelas oito horas. Só não lhe falou
que poderia ficar inconsciente para sempre, ou seja, entraria em coma, até que o câncer lhe
consumisse. Abraçaram-se fortemente. Dr. Foster beijou o filho e lhe desejou muita sorte.

Os ponteiros céleres percorriam a circunferência do relógio pendurado na parede do


laboratório. O seu tique-taque se confundia com as batidas do coração do Dr. Foster e com os sons
dos equipamentos eletrônicos em uso; o coração de Phillip batia imperceptivelmente. Os
procedimentos estavam chegando ao ponto culminante da operação. Breve, chegaria o momento de
desligar os equipamentos eletrônicos, e o seu filho ficaria a mercê de si próprio: voltaria à
consciência ou não? Era uma pergunta que só seria respondido tardiamente, quando o filho,
submetido a sua nova condição, estaria desconectado dos equipamentos que lhe garantiam vida, não
sendo possível nenhuma correção.

Os procedimentos chegaram ao fim, Dr. Foster limpou o suor que lhe escorria na testa e
apertou a tecla que inicializava o retorno do seu filho a consciência, ou não. Os demais
equipamentos foram desligados. Após alguns minutos de processamento, apareceu na tela uma
janela indicando os últimos 30 segundos: 29, 28, 27..., 5, 4, 3, 2,1... Agora, só o que se ouvia, era o
tique-taque compassado do relógio e as batidas aceleradas do coração do Dr. Foster.

Então, a voz eletrônizada de Phillip ecoou no ambiente, chamando pelo pai, amedrontado,
confuso.

_Pai! Não estou enxergando nada, está muito escuro, reclamou Phillip, amuado.

_Calma, Phillip! Tenha paciência, em breve sua visão retornará. - Dr. Foster confortou o filho,
regozijando o sucesso dos primeiros sinais da transferência.
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_Estou vendo agora, mas muito embaçado e fora de foco.

_Tenha mais um pouco de paciência. Agora é questão de segundos para sua visão estabilizar.

_Já estou vendo bem. Mas, cadê o meu corpo, que não o vejo?

_O seu corpo carnal está sem vida. O câncer tomou conta completamente dele, e o mataria
também, se ainda estivesse lá. De agora em diante e para sempre, este será o seu corpo.

_Um robô? Você me transformou numa máquina?

_Não, você não é uma máquina. Você é um ser humano dentro de uma poderosa máquina,
capaz de fazer coisas inimagináveis. Eu transferi todas as informações do seu cérebro, do consciente
e do subconsciente, desde que você foi concebido, até um milésimo de segundo antes do inicio da
transferência. Mas, o mais importante - a excelência suprema do ato - o seu espírito, à semelhança
da criação divina, foi transferido, também. Acredito até, que o inverso seja mais verdadeiro: o
espírito transferido carregou consigo os conhecimentos, as experiências, as lembranças e os
sentimentos, do consciente e do subconsciente. Então, eu reafirmo: você é um ser humano que
possui uma super máquina com autonomia para se locomover na terra, no mar, no ar e no espaço
sideral. No solo desenvolverá velocidade maior que a de um carro de fórmula um; no mar, deixará
para trás os mais velozes navios e submarinos, alcançando profundidades abissais; no ar, os mais
modernos jatos não serão capazes de acompanhá-lo, tanto na velocidade quanto nas manobras
aéreas; no espaço, no vácuo infinito, livre da gravidade terrestre, chegará próximo da velocidade da
luz: o universo será pequeno para você. A estrutura do seu corpo é praticamente indestrutível; feita
de uma liga especial de metais, não metais e nano partículas, capaz de suportar grandes impactos,
pressões astronômicas e temperaturas estrelares. Se você entrar na cratera de um vulcão em plena
atividade, será como estar em uma banheira de hidromassagem. A explosão da mais poderosa
bomba atômica, mesmo que você esteja a alguns metros do epicentro, não será capaz de arranhar a
sua “pele”, nem tampouco de danificar, ou, ao menos, desajustar o seu sistema interno. A sua
alimentação é feita através de um conjunto de baterias nucleares recarregáveis, com carga para mil
anos; o seu consumo de energia é muito baixo, mesmo quando exceder os limites. A sua visão é
perfeita: pode ver um vírus na lua, caso haja lá, e dotada de raios-x. O seu cérebro é formado por
uma rede de milhões de nano computadores, cada um exercendo a função de um neurônio: um
sistema complexo integrado, e conectado com a Internet. Todo o conhecimento da humanidade,
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científico ou não, adquirido até o dia de hoje, está arquivado no seu sistema, e será atualizado
automaticamente, sempre que se fizer necessário. Você é o único homem do mundo que tem
arquivado em seu cérebro todos os conhecimentos documentados; capaz de resolver os mais
complicados cálculos matemáticos instantaneamente; capaz de sentir o tempo inexorável passar
lentamente: ver o passado se esvaindo, o presente acontecer e antever o futuro próximo; capaz de
perceber os níveis eletrônicos de um átomo. Não, você não é um homem máquina. Você é um super
homem, imortal, um semideus, um Titã. Você é perfeito, o ponto culminante da evolução; a
apoteose do ser humano. – Finalizou a sentença esticando o braço para cima com o dedo indicador
apontando para o alto.
_Não, pai. A perfeição está na morte: a transformação da matéria, o renascimento da vida.
Sem ela as espécies não evoluiriam, estaríamos, aí sim, ainda e para sempre, na fase larvária.
_Deus é imortal. Então, Ele é imperfeito? Isso vale para todos os demais seres vivos, não para
o ser humano. As estrelas, os planetas e os demais astros também são perecíveis, mas o Universo é
infinito, sempre haverá um planeta para o ser humano habitar: esta é a nossa missão. Nós somos
onipotentes, a representação de Deus no Universo.

_Pai, você me prometeu a cura. No entanto, me arquivou em um computador com cabeça,


tronco e membros; capaz de correr como um Guepardo; nadar como um Tubarão; voar como um
Falcão Peregrino; navegar pelo espaço como um facho de luz; e daí?

_Phillip, você é o homem do futuro. Muito em breve as pessoas terão os seus órgãos doentes
trocados por similares sintéticos, até que os troquem todos e fiquem como você já está. O corpo
carnal serve apenas para morada da alma, e nos submete aos seus desejos, angústias e dores. Temos
que cuidar dele 24 horas por dia: alimentando-o, hidratando-o, exercitando-o, higienizando-o,
protegendo-o, mesmo assim ele adoece e sucumbe, nos levando para onde não sei, mas daqui para
sempre, causando pesar a quem nos ama.

_Tenho vergonha de mim, preferia morrer, se lamuriou Phillip.

_Porque você é o único ainda. Logo eu e a tua mãe, tua esposa e teus filhos, e as demais
pessoas, estaremos como você. Então, seremos felizes para sempre. Dr. Foster consolou o filho.

_Não há felicidade em um chip que substitui o coração, filosofou Phillip.


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_Entendo o seu tormento. É compreensível que o primeiro ser humano se porte assim depois
de uma mudança tão radical. Até agora você só pensou nas desvantagens, quando se utilizar dos
seus super poderes as esquecerá.

_Eu as deletarei, você quer dizer. Phillip replicou, sarcástico.

_Bobagem, são apenas palavras. Não percebe que você continua agindo como um ser
humano: melancólico, rabugento, irônico.

_Eu ainda estou em duvida se sou um homem máquina ou uma máquina humana? Na verdade
não sei o que sou, acho até que nada sou: uma aberração.

_Phillip, deixe de ser insensível e agradeça a vida que lhe dei.

_Pai, quando eu era criança lhe pedi um cachorro. Todos os meus amigos tinham um, só eu
que não. Não lhe pedi antes por que a mamãe dizia que você não gostava deles e não me atenderia.
No dia seguinte, você o trouxe: era peludinho, fofinho, andava e latia, sentava-se e levantava as
patinhas dianteiras, parava e dava uma cambalhota para trás, e repetia isso até que as pilhas se
esgotavam ou a minha paciência: dava-lhe um chute, arremessando-o contra a parede, ejetando as
pilhas, e ficava assim, até que a mamãe o recompunha. Você não percebeu, mas eu detestei aquele
cãozinho mecânico. Você era o único que gostava dele. Toda vez que entrava no meu quarto, agora
com maior freqüência, se divertia com ele e o deixava ligado, até que eu lhe desse um novo chute,
assim que você saía. As pilhas se esgotavam e você as comprava novas. Mas, finalmente um dia, ele
não sobreviveu ao meu chute e foi parar na lata do lixo. Você, único descontente, me consolou e
prometeu que compraria um novo, só não o fez, porque a mamãe lhe desaconselhou. Agora, eu lhe
pedi a vida, e você me transformou naquele cachorrinho.

_Phillip, quando eu era criança adorava meu pai. Ele era um homem pragmático, conservava
os costumes e tradições de sua amada America. O quatro de julho – dia comum aqui no Brasil - nós
festejávamos sozinhos; íamos ao Ibirapuera ou a Cotia, jogar beisebol no campo dos japoneses.
Assim que chegávamos, hasteávamos a bandeira americana e cantávamos “A Bandeira Estrelada”
com amor e respeito. O campo nesse dia estava vazio, e nós, eu e meu pai, praticávamos arremessos
e rebatidas. Quando eu rebatia uma bola de jeito, meu pai me orientava a correr as bases, enquanto
demorava-se para alcançar a bola, dando-me tempo para correr todas elas (Home run). A minha
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mãe, era a líder de uma torcida de um único elemento, ela; dançava, agitando a bandeira norte-
americana, e cantava canções de incentivo, improvisadas na hora. No dia de Ação de Graças, meu
pai preparava, ele próprio, um peru e convidava amigos e parentes para participar da festa.
Reunidos na sala relembrava as festas da América. Contava fatos divertidos, como quando
esqueceram o peru no forno e ele se queimou, tiveram que substituí-lo por um pato, depois de
procurarem inutilmente por outro peru em toda a cidade. O pato assado, em uma bandeja sobre a
mesa, não foi mexido, mas, a boa intenção serviu para lembrar aquele dia com bom humor como o
“Dia do Pato”. Era sempre ele quem agradecia a Deus pela passagem de mais um dia de Ação de
Graças, reunidos com a família e amigos, e orávamos de mãos dadas, em volta á mesa.
_Ele veio para o Brasil como estagiário de uma empresa americana, continuou Dr. Foster.
Ficaria aqui por dois anos e voltaria para a America para exercer um cargo administrativo.
Conheceu e se apaixonou por Maria Rosa - sua avó, Philip - uma brasileira, funcionária da mesma
empresa em que ele estagiava. Casou-se com ela e resolveu ficar por aqui, exercendo o mesmo
cargo se voltasse para a América. Depois de dois anos, eu nasci e seria o filho único deles. Quando
eu tinha oito anos ele faleceu, vítima de um câncer fulminante. O meu mundo desmoronou; tudo
perdeu o valor, o encanto. Minha mãe para me consolar, substituiu o meu pai e me levava ao campo
de beisebol para jogar. Mas, ela não tinha jeito nem para arremessar a bola, que caía no meio do
caminho, entre mim e ela. Fazia-me lembrar do “Pato”, e este fato poderia ser cômico, se não fosse
trágico, pela morte do meu pai. Então, eu me chateava e sentava-me emburrado na grama do campo.
Ela tentava me agradar, mas não conseguia. Abraçávamo-nos e chorávamos muito; ela por mim, eu
por ela, e nós pelo homem que nos deixou.
Dois anos após, quando começava a assimilar a perda do meu pai, foi a vez da minha mãe me
deixar, vitima da mesma doença que o levou. O meu calvário recomeçou, redobrado. Então, eu jurei
que daria tudo de mim para eliminar esta maldita doença que tirou de mim as pessoas que mais
amava na vida. Dediquei-me aos estudos com afinco. Perdi horas de sono, momentos de prazer com
você e com sua mãe. Não vi você crescer. Não vi sua mãe envelhecer. Não vi o tempo passar. Mas,
consegui o meu único objetivo. Venci a maldita doença que me tirou a infância, que tirou a vida dos
meus pais, mas que não vai tirar a sua e nem a dos seus filhos; não vai tirar a vida do seu pai e nem
a da sua mãe.

_Seu pai - meu avô, o pai que eu sonhei - esteve presente durante oito anos da sua vida, os
melhores, como você acabou de contar. Mas você esteve ausente durante toda a minha vida.
Quantas vezes eu e a mamãe choramos a sua falta. Quantas vezes eu adormeci ao lado do seu
retrato. Quanta inveja eu senti das crianças passeando com seu pai. Quantos sonhos eu sonhei com
você; mas sonhar com o pai, é um sonho, bem diferente de estar com o pai.
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_Infelizmente a vida nos privou ambos de nossos pais. Eu chorei a lembrança do meu pai, e
você a minha ausência. Vou chamar a tua mãe, deve estar muito impaciente.

_Mãe? Eu tenho mãe? Adão e Eva tiveram um Criador, que no meu caso é você, mas não
tiveram mãe.

_Deixe de ser insolente. Vou chamá-la.

_Não, não a chame. Não quero que ela me veja assim. Aliás, não quero ver ninguém. Quero
ficar só, tentar assimilar o que aconteceu comigo. Se pudesse me beliscaria para ver se não estou
tendo um pesadelo. Mas, minha “pele” é impossível de beliscar, mesmo por mim. Eu sinto fome,
sinto sede, mas não necessito mais comer nem beber. Eu quero chorar, mas não tenho lágrimas:
característica única do ser humano. Eu sinto desejo, mas não posso mais saciá-lo. Eu trocaria o
privilégio da imortalidade, por um beijo da minha esposa.

_Phillip, você está mais humano que nunca.

_Por favor, pai, me deixe só também.

_E o que digo a tua mãe?

_A verdade! Diga a ela que você é deus, mas que a tua criatura é indolente.

Dr. Foster retirou-se do quarto contrariado, mas estava otimista, em breve o filho aceitaria a
sua nova condição. Lá fora o esperavam a esposa, a nora e os netos, ansiosos para ver a pessoa
querida. Dr. Foster recomendou-lhes paciência, Phillip estava ainda sob o efeito da anestesia e
necessitava de repouso absoluto; qualquer movimentação no ambiente, mesmo sedado, poderia
causar-lhe preocupação desnecessária.

Assim que o pai saiu, Phillip, acabrunhado, passou a observar melhor o seu novo corpo. O
tórax; os braços; as mãos - mexeu os dedos: perfeitos como os seus de carne e osso; as pernas, como
seria andar com elas? Desceu, cuidadosamente, da maca e apoiou os pés no chão. Sentiu-se como
um potrinho que acabara de nascer - as pernas trôpegas, sem saber fazer uso delas - ou um bêbado -
que tropeçava em suas próprias pernas. Mas, rapidamente conseguiu o equilíbrio e pôde andar pelo
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quarto elegantemente, lépido como um antílope; sentia-se capaz de voar. Voar? Sim, o seu pai lhe
garantiu que voaria como um falcão peregrino. Mas, cadê as asas, hélices, motor, turbina? Como
seria capaz de voar sem nada disso? Lembrou-se de procurar em seus arquivos. Foi ao Google...,
busca..., motor. Nossa! Apareceram mais de 20.000 indicações. Apelou para uma busca mais
especifica: motor próprio. Uma única indicação: inexistente. Resolveu fazer uma busca aleatória,
sem a ajuda do Google. Vasculhou os arquivos até que encontrou a indicação “Anti G”. O que será
isso? Uma janela se abriu e mostrou um painel com o numero 9,80463 seguido da unidade m/s ao
quadrado: aceleração da gravidade. À direita do painel o sinal + e à esquerda, o sinal -.
Experimentou clicar no sinal positivo e o numero foi aumentando: 10, 11, 12, 13; parou por que
teve a sensação que o peso do seu corpo ia aumentando enormemente; parecia que havia um
elefante em suas costas, querendo esmagá-lo contra o chão. Resolveu diminuir o numero: 9, 8, 7, 6;
agora, tinha a sensação de leveza; saltou, e o seu corpo se elevou suavemente até o teto - parecia
estar na Lua - e suavemente retornou ao solo. Continuou diminuindo o numero: 5, 4,..., -1, -2;
agora, o seu corpo achatou-se contra o teto, pressionado por uma força esmagadora que o
impulsionava para cima. Retornou com o marcador para o numero 9,8 m/s ao quadrado, e aterrissou
suavemente. Descobriu desta maneira como funciona o sistema de propulsão do seu corpo: se
aumentasse radicalmente a força “Anti G”, seria ejetado da terra como um foguete. Porem, esse
artifício fazia-o subir e descer, não lhe permitia navegar pela atmosfera terrestre, fazer manobras e
acrobacias melhor que os mais modernos jatos da força aérea como lhe garantiu também o seu pai.
Procurando um pouco mais, encontrou uma bússola sobre uma rosa dos ventos. Será que poderia ser
através da força magnética da terra? Mas, como? Ajustou a força “Anti G” até o seu corpo levitar
entre o solo e o teto do quarto, livremente. Utilizando os sinais + e – situados em cada ponto
cardeal, ele conseguia se movimentar horizontalmente de norte para o sul e vice-versa. Conjugando
as forças, gravitacional e magnética, ele se movimentava em todas as direções e sentidos possíveis:
de norte para o sul; de leste para oeste; de nordeste para sudoeste; de norte para sul, para sudoeste,
para centro oeste; subindo, descendo; ziguezagueando como um dinâmico morcego, polivalente
como um beija-flor, só não alçou grandes vôos por estar contido dentro de um minúsculo quarto.
Phillip, como um garotinho que acabara de ganhar um presente, divertia-se, esquecendo por um
breve momento a situação angustiosa que o deprimia tanto.
Movimentando-se no alto do quarto, podia ver tudo que estava abaixo dele, assentado no
chão. Então, viu o seu corpo humano deitado sobre uma maca, ligado a vários aparelhos que o
mantinham vivo. Mas, era um corpo vazio, sem alma. A sua alma estava ali, presa,
irreversivelmente, dentro de uma máquina. Irritado, ajustou imediatamente o marcador para 9,8 m/s
ao quadrado e caiu pesadamente no piso do quarto. Sentou-se em uma cadeira, amparou o rosto nas
mãos com os cotovelos apoiados nos joelhos, e choraria muito..., se pudesse.
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Duas horas da madrugada, o silencio era absoluto, todos dormiam, menos ele, que já não mais
podia. Saiu do quarto e foi para a varanda; a Lua brilhava na imensidão do Cosmo, fascinante,
tentadora. Ajustou a força “Anti G” e partiu em direção a ela como um raio. Pousou no solo lunar e
imitou os americanos quando lá estiveram. De lá, ficou observando a terra, uma imensa bola azul
girando solta no espaço, logo abaixo. Como em um sonho que tivera quando criança, ele via a terra,
olhando para baixo e não para cima, como seria na realidade. Lembrou-se do sonho e olhou para
cima, queria saber o que veria: apenas a escuridão infinita do Universo, pontilhado de estrelas. E, às
suas costas, o sol, imensa fornalha com temperaturas de milhares de graus. Somente ele poderia
mitigar a sua dor, bastaria que mergulhasse em suas profundezas, para que aquele corpo, que o seu
pai garantiu ser indestrutível, fundisse como uma barra de manteiga. Porém, o suicídio vai contra os
seus princípios. A vida é uma graça divina. Se ele a recebeu das mãos de Deus, somente a Ele a
devolveria, assim que Lha pedisse de volta.
Andando a esmo pela superfície lunar, veio a sua mente um trecho da letra de uma música dos
“Secos e molhados”:
“Um verme passeia na Lua cheia”
_Um verme... O Frankenstein da era moderna ironizou.
Sem vontade de retornar à Terra, ficou vagando na Lua, observando de lá o dia a dia na Terra.
Em especial, acontecimentos que envolviam seus entes queridos. Sentia comiseração pelo pai,
quando ele insistia em afirmar a todos, que o seu filho estava vivo: “... seu corpo carnal foi
consumido pelo câncer, mas ele vive em outro corpo - construído por mim – imortal, indestrutível,
fantástico, com poderes inimagináveis em algum lugar do Universo; em breve ele voltará
conformado e decidido a assumir o seu lugar na história; e o mundo se espantará com as coisas que
ele é capaz de fazer; e no futuro, prometo que farei todos, serem iguais a ele”.
Dr. Foster era ridicularizado, tachado de louco, e só não o internaram no manicômio porque a
família o levou para o ostracismo.
Dezembro de 2012; é o quarto ano que Phillip não comemora o natal com a família. Observa-
a da Lua, emocionado, principalmente quando oram em seu nome desejando-lhe paz no outro
mundo. Mal sabem eles que Phillip não está em outro mundo. Somente o pai sabe que ele está sim
em outro mundo, mas um mundo real, em algum lugar do Universo, que pode ser aqui mesmo na
Terra, porém, cala-se para não transtornar ainda mais a família; pacientemente espera pelo dia do
retorno do filho.
Mas, naquele ano, as coisas seriam bastante diferentes. Os noticiários da Terra alarmavam a
todos sobre um cometa que se aproximava da Terra em rota de colisão. A previsão do local e hora
do impacto era para o dia 21 de dezembro de 2012 às 20 horas – horário de Brasília - na cidade de
Macapá, Amapá, extremo norte do Brasil, sobre a linha do Equador.
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Phillip já havia lido várias profecias que relatavam que no ano de 2012 no mês de dezembro,
um cometa de proporções gigantescas se chocaria com a terra, causando a extinção de quase todas
as espécies de seres vivos da Terra, especificamente os seres humanos. O que mais lhe chamou a
atenção foi a precisão da previsão do calendário Maia, que inclusive habitaram próximo da zona de
impacto do meteoro.
O espantoso é que quando criança, Phillip também havia sonhado com um caso semelhante;
uma enorme bola de fogo vinda do espaço atinge a Terra, provocando tsunamis que cobriam as
copas das árvores, arrastando tudo o que havia pela frente. Phillip, levado pela força das águas,
surfava habilmente no topo das ondas, tendo como prancha uma grande bacia de alumínio, e pelo
caminho ia recolhendo seus familiares; despertou do terrível sonho, quando a bacia lotada,
emborcou com o peso da carga.
Phillip, daquele local privilegiado que lhe servia a Lua, observando Júpiter, percebeu um
grande objeto iluminar-se, na passagem pelo grande planeta. Entendeu que era um cometa, que com
o calor do sol emitiu gases que o tornaram visível e a formação de uma enorme cauda. Com o
passar dos dias a velocidade do cometa de oito quilômetros de diâmetro chegou a 60 quilômetros
por segundo. Phillip utilizando dos seus recursos fantásticos calculou que o cometa estava em rota
de colisão com a terra. Ela foi atirada das profundezas do espaço sideral para abater a ave azul da
via láctea, pensou. Lembrou-se de quando era criança do grande número de passarinhos que abateu;
a empunhadura do seu estilingue era toda riscada de marcas, registro de cada ave que havia abatido.
Bem-te-vis, pardais, rolinhas, pombas, jubilava-se o moleque malvado, de cada espécie ter matado
pelo menos um. Deve haver, nos confins do Cosmo, escondido em algum planeta, pronto para riscar
mais uma marca na empunhadura do seu estilingue, um moleque assim.
Isso, foi há quatro meses e já se passaram três. O sistema de segurança da Terra já enviara
diversos foguetes equipados com ogivas nucleares com a missão quase impossível de desviá-la da
trajetória de colisão da única morada dos seres humanos. Em vão.
Phillip sabia que ele era o único capaz de tal coisa. Mas, estava indeciso entre salvar a Terra e
mudar o curso da história. Se o destino da Terra era esse, caso fosse alterado, coisas piores
poderiam acontecer.
Dr. Foster saiu do ostracismo e anunciou ao mundo que o seu filho salvaria a Terra. No
momento certo ele sairia de onde está recluso e extirparia aquele câncer maligno que quer invadir as
entranhas da Terra, e plantar metástases por todos os quadrantes do globo.
As autoridades responsáveis pela segurança mundial, preocupados com coisas muito mais
importantes, não deram ouvidos para aquele cientista que tanto fez para a humanidade, mas que
agora, louco, nada mais poderia fazer.
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A gigantesca rocha recoberta de gelo, devido ao calor do sol, tinha uma cauda de centenas de
quilômetros. Philip a comparou com um avião da esquadrilha da fumaça, escrevendo simples
mensagens na atmosfera terrestre. Porém, a mensagem dessa imensa rocha era sinistra, fatal. Ela
estava agora a 10 minutos da entrada na atmosfera terrestre, dali até o local de impacto com a Terra
seriam menos de 10 segundos. Mas, mesmo antes de atingir a superfície, já causaria destruição por
causa das ondas de energia deslocada por ela e do calor emitido pelo atrito com o ar.
O ultimo foguete lançado pela desesperada Terra, imergiu da estratosfera e chocou-se
violentamente com a insensível pedra astronômica, que não se moveu nem um milímetro, e mesmo
que o fizesse, seria inevitável, pela distancia muito próxima, o choque com a Terra.
Philip ainda relutava entre as duas alternativas. Se salvasse a terra desta vez, a próxima
poderia ser muito pior. Os seres humanos devastam o planeta e as conseqüências serão desastrosas.
O aquecimento do planeta causará o degelo dos pólos ocorrendo tsunamis gigantes em todos os
continentes, destruindo todas as cidades; paralisará as correntes marítimas, que sem elas, os oceanos
morrerão; os oceanos mortos não mais liberarão oxigênio, vital para os seres vivos; sem oxigênio e
sem alimento a morte será lenta e agonizante, como os peixes que sucumbem no leito seco do rio.
Todavia, se não agisse imediatamente, ficaria eternamente só no Universo, amargurando o seu triste
destino. A catástrofe ocasional determinaria a extinção dos seres humanos e uma nova espécie
herdaria o domínio na Terra, assim como os mamíferos herdaram dos dinossauros.
As ondas eletromagnéticas e gravitacionais geradas pelo enorme corpo cósmico, já atingiam a
órbita da terra. Mesmo para Phillip, a hora H tinha chegado, se ele não agisse agora, nada mais
poderia fazer.
Na terra, a contagem regressiva acionada pelo avançado computador da NASA foi iniciada:
10, 9,...

Phillip lembrou-se do que seu pai lhe disse:

_Você é um super homem, imortal, um semideus, um Titã. Você é perfeito, o ponto culminante
da evolução; a apoteose do ser humano.
_Não, pai. A perfeição está na morte: a transformação da matéria, o renascimento da vida.
Sem ela as espécies não evoluiriam, estaríamos ainda e para sempre na fase larvária.
_Deus é imortal. Então, Ele é imperfeito?... Isso vale para todos os demais seres vivos, não
para o ser humano. As estrelas, os planetas e os demais astros também são perecíveis, mas o
Universo é infinito, sempre haverá um planeta para o ser humano habitar: esta é a sua missão. Nós
somos onipotentes: a representação de Deus no Universo.
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A contagem regressiva continuava inexorável. ...8, 7, 6, 5, 4, 3,...

Phillip refletiu: se ele está naquele local privilegiado em relação à Terra, num momento
crucial para a vida dos seres vivos, especialmente para os seres humanos, não é por acaso. Deve
haver uma razão divina, que só pode ser a missão épica de salvar a espécie humana.
Phillip, como um raio poderoso chocou-se contra o cometa lançando-o nas profundezas do
cosmo, apenas um quinto do material pulverizado projetou-se na Terra. O efeito causado pelas
minúsculas partículas em atrito com a atmosfera visto por quem estava na terra, foi fantástico. Os
países das Américas, sob a parte noturna do planeta neste momento, presenciaram aquele chuvisco
luminoso, como se fosse a queima de fogos de artifícios por toda a abóboda celeste, que durou
muitas horas. Aquele momento foi festejado como o início de uma nova era.
Phillip retornou a terra para verificar se a família estava bem, e também, para acabar de vez
com a sua rebeldia exagerada. Foi recebido com muita pompa, todos queriam lhe abraçar e beijar.
Seu pai regozijava com a volta do filho e o reconhecimento de suas afirmações.
Phillip, de repente sentiu uma pressão enorme na cabeça e uma luz muito forte ofuscava-lhe a
visão; tudo girava ao seu redor. Será que o choque com o cometa afetou-lhe os dispositivos
internos? Mas, o seu pai garantiu que nada lhe afetaria.
Pouco a pouco foi se restabelecendo. A tontura passou, a visão voltou e ele percebeu que
estava deitado numa cama de um quarto de hospital, com a cabeça enfaixada. Seus familiares em
torno da cama batiam palmas e gritavam seu nome, e um a um, apertavam sua mão e lhe beijavam o
rosto. O que mais estranhou, foi sentir o contato físico e o calor das mãos e dos lábios deles, coisa
que não sentia desde que o pai lhe colocara em outro corpo. Corpo? Olhou para o seu corpo e já não
era mais o corpo metálico, frio, insensível. Era de novo o seu velho corpo de carne, cheio de pêlos e
poros, exalando cheiros e expelindo suor, sensível ao contato gostoso e reconfortante de outro corpo
de carne...
Dr. Foster, americano radicado no Brasil, cirurgião chefe da equipe responsável pela delicada
cirurgia que livrou Felipe de um terrível câncer cerebral, avisado do retorno de sua consciência pós-
efeito anestésico cirúrgico, entrou no quarto e também o parabenizou.

_Como vai o nosso herói? Um verdadeiro Titã. Eu não cansava de repetir para os colegas
durante a cirurgia: um Titã! Teve momentos, nas oito horas que durou a cirurgia, que julgávamos
que você não ia resistir, mas, titanicamente, você reagia e seus sinais vitais se normalizavam.
_Eu sou o Dr. Foster, cirurgião chefe da equipe que realizou a cirurgia neste Titã, apresentou-
se para os familiares de Felipe, que o olhavam curiosos e orgulhosos.
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_Antes da cirurgia, eu e Felipe conversamos bastante, continuou Dr. Foster. Ele falou um
pouco da sua vida, eu também falei da minha, inclusive que tenho um filho de oito anos, Phillip, seu
homônimo em português, que gosta muito de jogar beisebol. Opinamos sobre o aquecimento global,
a devastação da floresta amazônica. E, enfim, estando relaxado, lhe expliquei todas as fases da
cirurgia; os perigos e as conseqüências. Felizmente tudo correu bem, e a vida continua.
_ Você agora vai descansar por uns cinco dias - dirigindo-se a Felipe - depois iniciaremos as
dez sessões de radioterapia. A quimioterapia você vai fazer quando estiver em casa. E daqui para
frente, vida nova. Pare de se preocupar com a extinção da Terra, ela vai estar sempre aí. Os homens
lá de cima, os todos poderosos do hemisfério norte, sabem que se não mudarmos o nosso modo de
vida, nós, seres humanos, é que seremos extintos; então, acredito que já devem estar agindo.
Trabalhar, também, apenas as oito horas diárias, de segunda a sexta. Sábado e domingo, lazer. Leve
a família para passear, praticar esportes, cinema, teatro. O câncer, do qual se livrou, é resultado da
vida estressante que levava.
E como você gosta de ciências, leia sobre a Teoria Geral da Relatividade de Einstein. O salto
científico de Isaac Newton para Albert Einstein é enorme e o fará apreciar os temas de ficção
cientifica com mais apuro.
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ESTIGMA

Maurício atraca seu Iate avaliado em vinte milhões de reais no ancoradouro do Guarujá.
Chegou de uma longa viagem pelos mares do mundo a procura de um devaneio. Como era noite
alta, resolve dormir no Iate e ir para casa ao raiar do dia. Deita-se na cama e fica revirando-se de um
lado para outro. Está deprimido, sem sono. Resolve reler um livro que achara abandonado no banco
de uma praça. Provavelmente deixado ali por quem o havia lido e se ludibriado, como ele se sentia
agora. Era um livro desgastado, sem capas, sem título e de autor ignorado. Contava a história de
duas pessoas carismáticas que viveram o amor mais intenso de todos os tempos. Fascinantes,
atraiam todos a sua volta gerando conflitos violentos. Então, Afrodite levou-os para uma ilha
solitária, único lugar onde poderiam viver este grande amor. Afirmava o autor, no final da história,
que a ilha se tornou encantada e quem ali desembarcasse receberia os carismas de Afrodite.

Graças a este livro, Mauricio passou boa parte de sua medíocre vida á procura desta ilha
encantada. Faltavam as primeiras páginas do livro, então a leitura da história inicia-se quando
Rodolfo Valentino cai do navio e fica a deriva nas águas plácidas do oceano Atlântico. Rodolfo
Valentino, quando nasceu foi registrado com o nome de Valentino, achando-o vulgar adotou o
nome do mítico ator americano. O livro termina com o encontro de Rodolfo Valentino e Madalena
os protagonistas de uma historia de amor jamais contada. Na ilha encantada, identificada como Hy-
Brasil por Rodolfo Valentino - havia visto um programa sobre esta famigerada ilha no “Discovery
Chanel” - puderam viver o maior dos amores até que a morte os levou para a eternidade.

Mauricio fechou o livro e suspirou profundamente, desolado, sem perspectiva futura. Era a
enésima vez que lia a historia de Rodolfo Valentino e Madalena. Quando a leu pela primeira vez,
tinha apenas 21 anos, acreditou na historia e navegou por todos os mares a procura da ilha
encantada. Encontrou diversas, algumas parecidas com aquela descrita no livro, mas em nenhuma
delas sentiu algo diferente, que pudesse lhe indicar ser aquela, a ilha em que eles viveram o amor
mais intenso de todos os tempos.

Mauricio foi persuadido pela historia de Rodolfo Valentino e Madalena, pois a sua vida
amorosa era um livro em branco. Aos 21 anos só não era virgem por recorrer às prostitutas, que não
o repeliam porque eram pagas, muito bem pagas, exigências das próprias ao verem semelhante
figura; as demais mulheres o evitavam como o diabo à cruz.
As prostitutas que lhe abriam as pernas eram as de rua, as que se deitavam nos becos, as
desclassificadas; aquelas que por dinheiro abriam as pernas até para o diabo... Mauricio, entre as
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pernas dessas pobres mulheres, buscava o aconchego da mãe que nunca teve: nem os carinhos, nem
a mãe; sonhava amar e ser amado pela amante que nunca teria, e refestelava-se com o contato físico
do corpo de uma mulher, cheio de curvas, a pele lisa, macia, que só sentia nestes momentos.
Arrebatado por estes desejos, demorava-se, esgotando a paciência e a energia daquelas pobres
mulheres deitadas no cimento frio e duro dos becos escuros. As putas alertavam sobre o direito de
cobrar dobrado e reclamavam: “Tá pensando que eu sou sua esposa e estou disponível a noite
inteira para você? Tá pensando que sou a sua mãe e pode ficar mamando minhas tetas até secar?
Sou mulher também, mas qualquer semelhança é mera coincidência, ou não?” Apressado pelas
putas, levantava-se e as agradecia pelos momentos felizes que lhe proporcionaram, e só não as
beijava na boca durante o ato sexual porque não lhe permitiam.

_Estranho, as putas: oferecem-me sexo vaginal, anal e até oral, mas me negam o beijo na boca
com veemência?

O que ele não daria por um beijo? Jamais foi beijado, nem por sua mãe, nem por outra mulher
qualquer. O desejo sexual pode-se abrandar com as próprias mãos, o beijo, não. Não tem como
beijar a si mesmo: masturbação labial, beijar os dedos em formato de boca, ridículo, abominável,
inominável. O sexo é prazer, é paixão; o beijo na boca é amor. O sexo é insípido, como a água,
necessário para a vida; o beijo na boca tem sabor, como o vinho, embriaga o espírito, torna a vida
mais gostosa de ser vivida. Numa relação mal sucedida, a primeira coisa que termina é o beijo na
boca, o sexo, talvez seja a última; o casal nem sequer percebe, e tenta reatar através do sexo, o que o
corte do beijo na boca, deixou bem claro que terminou. Os clássicos filmes românticos sempre
terminavam com um beijo na boca. Um grande amor sempre começa com um beijo na boca; uma
reconciliação; uma comemoração...

Quem já se esqueceu do seu primeiro beijo na boca? Revire sua memória, escarafunche os
escaninhos e lá estará ele, indelével, como marca de lábios tatuada em sua mente. Foi bom ou foi
ruim?

_Então, tem lógica a puta não beijar na boca.

Aliás, além de ser profissão, a prostituição e a literatura têm uma função em comum e
especial: fazer-nos sonhar, exceto tarados e editores.
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Infeliz no amor, feliz no jogo. Não, Mauricio também não era feliz no jogo, aliás, nem ao
menos jogava, repudiava quem não resistia á ilusão de riqueza fácil advinda de um golpe de sorte.
Mas era feliz nos empreendimentos: como o rei Midas, todo negócio que tocava, progredia. Carente
dos mínimos gestos de carinho, os investimentos financeiros eram um consolo moral. Sentia-se
realizado, era amado pela fortuna e com ela se casara. Aos vinte anos de idade era dono de uma
fortuna incalculável, e o capital inicial dessa riqueza toda foi um broche de ouro cravado de pedras
preciosas. Mas nem todo ouro do mundo, e quase que ele o possuía, era capaz de torná-lo atraente
para as mulheres. Havia entre ele e as mulheres um campo magnético que fazia parte do mesmo
imã; conviviam no mesmo ambiente, porem elas o repeliam como o norte e o sul magnético.

Mauricio fora abandonado na porta de um monastério e criado por monges. Os mais velhos,
aqueles que o recolheram, comentam que em volta do cesto em que ele foi deixado, havia dezenas
de escorpiões e aranhas; porém, não conseguiram entender se o defendiam ou se pretendiam atacá-
lo. Com uma vara comprida, os monges alçaram o cesto e o levaram para dentro do mosteiro. Os
insetos peçonhentos imediatamente atacaram os monges que foram obrigados a atear fogo no
caminho para impedir que eles invadissem o monastério.
A partir deste dia, coisas incríveis começaram a acontecer no interior do monastério. Aranhas
e escorpiões apareciam nos lugares mais incríveis; chegaram a encontrá-los até na taça de ouro onde
se guardam as hóstias.
Intrigados com os acontecimentos que envolvia aquele bebê recém-nascido, os monges
resolveram investigar a sua origem mais profundamente. Sabia-se, comentado pelos moradores das
redondezas do monastério, que ele foi deixado por uma jovem trajando uma japona de cor vinho
com frisos prateados nos braços e capuz também de cor vinho com bordas prateadas; o carro preto
que a trouxe, tinha as chapas encobertas, e a aguardava com a marcha engatada, pronto para
acelerar. Assim que ela retornou da missão degradante, o carro preto arrancou estridente,
queimando os pneus, esfumaçando o ar e sumiu na noite. Ficou a fumaça espessa esbranquiçada
esvaecendo no ar, um cheiro forte de borracha queimada, e uma pobre criança renegada, que veio
ao mundo sem amor e nele viverá mendigando afeto. Quem viu a suposta mãe desnaturada, não a
reconheceu, mas o ex-empregado do supermercado, quando lhe falaram que ela trajava uma japona
vinho com adornos prateados, jurou que era a filha do seu ex- patrão; já a tinha visto uma vez com
japona semelhante. Foi desacreditado, pois acharam que ele a incriminava para se vingar do pai e
também pelo seu mau caráter: fora demitido por justa causa por assédio sexual a uma funcionária do
supermercado.
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Sarah, a jovem acusada tinha apenas 17 anos, e na tenra idade já possuía a fama de ser mais
beata que a própria mãe, beata sacramentada. Como desconfiar de alguém que nunca namorou e se
dizia casada com Jesus Cristo. O acusador foi excomungado e expulso da comunidade.
Portanto, a única pista que os monges tinham era a japona vinho prateada. E ela foi achada
pelos moradores, largada no meio de um matagal, logo após o episódio da excomunhão do ex-
empregado do supermercado. Dentro de um dos bolsos havia um broche com ricos detalhes em ouro
e pedras preciosas com a imagem de Jesus Cristo. As pistas terminaram aí, pois a japona era
importada e devia ter sido comprada no exterior juntamente com o broche. Nenhum dos devotos
que freqüentavam regularmente a igreja do monastério havia viajado para o exterior nos últimos dez
anos. Provavelmente foi alguém de muito longe quem o abandonou certo de que jamais seria
descoberto. Não foi a primeira vez que uma criança havia sido abandonada na porta do monastério e
nem seria a última. Apenas, que desta vez, os insólitos acontecimentos que envolvia o ato
inconseqüente de uma mãe desequilibrada, levavam a crer em algo muito mais tenebroso.

Após o batismo de Mauricio aranhas e escorpiões deixaram de aparecer. Conseqüentemente


as investigações sobre a origem do pequeno bastardo também. A japona e o broche foram
inventariados como os únicos bens do enjeitado; apesar de a pessoa mais cara lhe virar as costas, a
fortuna lhe sorria: o broche de ouro valia uma considerável quantia, capaz de lhe assegurar um
futuro tranqüilo, financeiramente falando. Os monges não revelaram a ninguém a existência do
broche, e o guardaram no cofre a espera da maioridade de Mauricio.

Mauricio foi criado unicamente pelos homens, pois nenhuma mulher queria aproximar-se
dele, o rejeitavam alegando que ele era filho de coisa ruim; criança renegada e protegida por
aranhas e escorpiões, só podia ter sido concebida pelos espíritos do mal. Então, ele cresceu com este
estigma: causava aversão às mulheres, a todas as mulheres, até mesmo àquelas que não conheciam
sua história.

Alguns anos mais tarde, os monges, revendo velhas fotografias tiradas na nave da igreja,
observaram uma foto de Sarah usando um broche de Jesus Cristo, semelhante àquele encontrado no
bolso da japona, supostamente pertencente à mãe de Mauricio. A jóia era uma peça rara de
fabricação única, provavelmente encomendada sua confecção ao ourives. Os monges imediatamente
intimaram Sarah a comparecer no escritório do monastério.

Sarah estava preste a se enclausurar na ordem dos Carmelitas, voto feito desde que era
pequenina. Criada e orientada na religiosidade da igreja católica por sua mãe, ela escolheu servir a
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Jesus Cristo como freira da ordem de Nossa Senhora do Carmo. Tendo como modo de viver a Vida
Consagrada abnegaria de si mesma; seguindo os Conselhos Evangélicos viveria a restrita
uniformização com Cristo, sendo um novo Cristo para a igreja. Através dos votos religiosos viveria,
segundo o carisma dos Carmelitas, os conselhos evangélicos: pobreza, obediência e castidade. Os
Conselhos Evangélicos têm origem divina, fundamentados na vida de Jesus Cristo.

Os monges iniciaram a inquisição, dissertando sobre os dogmas da igreja, votos eclesiásticos,


fé, e finalizaram o discurso com os sete pecados capitais, dando ênfase à mentira como sendo o
oitavo pecado capital. Sarah ouvia tudo respeitosa, achando que aquilo se relacionava com a sua ida
para o convento dos Carmelitas. Ao terminar a exposição, um dos monges abriu uma pequena
caixinha e retirou dali o broche, único bem de Mauricio, único elo com sua mãe. Mostrando-o a ela,
perguntou-lhe se lho pertencia.

Sarah abriu um sorriso radiante, feliz por ter finalmente encontrado o broche que tanto
prezava e o julgava perdido para sempre; e o recuperava no momento mais importante da sua vida,
quando estava para iniciar sua clausura na fé de Jesus Cristo. Confirmou que era seu e perguntou
aos monges onde o encontraram, pois o havia procurado em todos os lugares possíveis.

Os monges reforçando sobre a mentira ser um pecado que encobre outros pecados, e por isso
ser um dos mais graves, fizeram-lhe a pergunta fatal.

_Você é a mãe do Mauricio?

Sarah de inicio não entendeu nada. O que tinha a ver o broche com o Mauricio? Mas, por fim
ela enrubesceu, pois, se não via ligação entre o broche e o Mauricio, entre ela e a pequena criança
havia um cordão umbilical que os uniram por nove meses de uma maneira física, mas não
sentimental. E se houve algum sentimento, foi rancor e desprezo. Todavia, insistiu na mentira e
negou ser a mãe do enjeitado.

Padre Gregório da igreja do mosteiro, o qual a havia batizado, lhe catequizou e lhe deu as
graças da primeira comunhão, repetiu a pergunta, depois de lhe fazer um sermão.

_Sarah, a mentira é um labirinto, que, se não sairmos logo no inicio, nos aprofundamos nos
seus becos escuros e frios e jamais encontraremos a saída. Reflita, enquanto é possível viver na
verdade, nos caminhos de Jesus Cristo. Você é a mãe do Mauricio?
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Sarah sentia-se bloqueada mentalmente; não conseguia pensar; precisava de tempo. Então,
respondeu asperamente.

_Não! Eu não sou a mãe desse menino.

Os monges então trouxeram a japona vinho prateada, a qual ela conhecia muito bem a
procedência e lhe revelaram que o broche foi encontrado dentro de um dos bolsos. Com certeza o
broche pertence ao dono da japona, se não, por que estaria contido dentro do seu bolso. A japona
pertence provavelmente à mãe do Mauricio, que a trajava no momento da desova. O broche você
confessou que lhe pertence, a japona, Ezequiel afirmou que lhe viu usando semelhante, então, lhe
perguntamos novamente.

_Você é a mãe do Mauricio?

Sarah refletiu, naquele pequeno espaço de tempo que levaram para trazer a japona, na
importância da sua resposta. Se fosse afirmativa, toda a sua vida consagrada a Jesus Cristo
terminaria ali. A negação lhe daria chances para pagar todos os pecados, dedicando-se dia e noite,
flagelando-se, viveria de pão e água e doaria todos os seus bens aos pobres como fez São Francisco
de Assis. Havia prometido a sua mãe não contar a ninguém sobre a maternidade de Mauricio, mas
daria assistência á distância a esta criança que atravessou sua vida sem que ela desejasse, querendo
destruir os seus votos eclesiásticos. Consolando-se com estas alternativas, negou pela terceira vez
ser a mãe da pobre criança.

Os monges benzeram-se, convencidos que ela mentia, mas não tinham como fazê-la
confessar. Não podiam obrigá-la, tinha que ser espontâneo. Sugeriram a ela que adiasse a ida para o
convento dos Carmelitas, se alojasse na solitária do monastério e orasse bastante, até que a razão
prevalecesse sobre o fanatismo; Jesus Cristo lhe mostraria o melhor caminho para servi-lo.
Ofereceram-lhe o broche, pois lhe pertencia, como ela própria confessou. Sarah recusou-o, alegando
que se enganara; o dela é semelhante, mas não é este.

Sarah retornou para sua casa e isolou-se em seu quarto, remoendo seus tormentos. Tudo
começou quando Ezequiel foi admitido para trabalhar como Repositor no supermercado do seu pai.
Ela tinha apenas 16 anos e ele 25. Quando ela o viu pela primeira vez sentiu-se atraída
imediatamente. Repugnou-se, não podia sentir aquilo por nenhum homem, tinha que tirá-lo do
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pensamento. Tratava-o mal, com rispidez, mas por dentro a sua vontade era de beijá-lo, de se
entregar totalmente para ele. Sonhava com ele a abraçando fortemente, beijando sua boca, seus
seios, seu ventre, seu sexo, e finalmente, realizando seus anseios e desejo, ele a possuía com
volúpia, com furor. Ela despertava gemendo, suando, extenuada, e percebia-se umedecida na
vagina, indigna. Desesperada, tomava um banho frio, e esfregava freneticamente a boca e a vagina,
conspurcadas. Passava o resto da noite orando, lutando contra sua libido. Pedia a Deus que lhe
livrasse daquelas tentações, tirasse aquele homem dos seus pensamentos para que ela pudesse
retornar a sua vida dedicada a servir Jesus Cristo.

Ezequiel sentiu desde o inicio o interesse de Sarah por ele. Pegou-a várias vezes olhando-o
escondida entre as gôndolas do supermercado; fingia não perceber e deixava-a comê-lo com os
olhos, furtivamente. Ele também se sentia atraído por ela, mas era apenas uma atração sexual;
exibia-se como um pavão quando se via admirado às escondidas por aquela garota desabrochando
para a vida sexual. Abria a camisa, deixando a mostra seu peito peludo; manipulava o seu sexo,
ajeitando-o dentro da calça Jeans apertada, realçando um grande volume, forjado por um tufo de
pano. Reparava que neste momento ela se agitava, colocava a mão entre as pernas espremidas e se
retirava apressadamente.

Com o tempo ele se tornou mais atrevido e passou a assediá-la diretamente. Insinuante,
segurava suas mãos, olhava-a maliciosamente nos olhos e dizia palavras galantes. Sentia-a
estremecer, mas ela retirava as mãos das suas, fugia aterrorizada e só reaparecia no supermercado
depois de vários dias. Nestas ocasiões, voltava com olheiras profundas, amargurada, e procurava
ansiosamente por Ezequiel entre as gôndolas e setores do supermercado. Quando finalmente o
encontrava, despistava e dissimulava procurar por alguma coisa qualquer próximo dele.
Sedutor, Ezequiel fingia desprezo e sumia da sua vista, escondendo-se estrategicamente onde
pudesse vê-la, correndo as gôndolas desesperada a sua procura; regozijava-se, vendo-a
alucinadamente apaixonada, e sabia que mais dia menos dia, ela entregaria o seu corpo ás sua
caricias...

A vida de Sarah era um barquinho a vela atravessando um mar tempestuoso á mercê das
ondas e dos ventos. Quem estava ao leme era Ezequiel, e conduzia o barco cada vez mais para
dentro da tormenta. Sarah era jogada de um lado para o outro, agarrando-se ao mastro e aos
cordames da vela, mas recusava o abrigo dos braços de Ezequiel, que os oferecia sorrindo, canalha;
ele usava a mesma calça jeans apertadíssima, ostentando seu volumoso lado esquerdo. Sara relutava
em aconchegar-se ao seu corpo, ou jogar-se ao mar; em um satisfaria seus desejos proibidos, no
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outro acabariam seus tormentos. Onde está Jesus que não atende suas preces? Por que não toma o
leme das mãos de Ezequiel e conduz o barco para mares calmos, para a bonança?

Ezequiel sentindo Sarah cada vez mais arredia resolveu finalizar aquele jogo de sedução.
Atraiu-a para um lugar ermo do almoxarifado, agarrou-a, jogou-a ao chão, arrancou-lhe a calcinha,
deitou-se sobre ela e forçou-a a abrir as pernas. Sarah lutava desesperadamente contra a tara de
Ezequiel e a tentação do sexo. Por fim, o extinto sexual falou mais alto e se entregou totalmente aos
anseios do seu corpo. Por instantes esqueceu-se dos seus tormentos e angústias, e gozou aquele
momento de desejo e prazer intensamente. Ah, como é bom viver despreocupadamente, sem medo,
sem culpa, nos braços da pessoa amada. Como é bom amar! Mas veio a lucidez (ou demência?) e
Sarah ficou estarrecida com o que acabara de acontecer: pecara contra a castidade, não era mais
digna de servir a Jesus Cristo. Empurrou Ezequiel para o lado - que não opôs resistência, pois já
estava satisfeito - recompôs-se e fugiu horrorizada. Foi a primeira vez que usou a japona vinho
prata, e só voltaria a usá-la no dia em que se livrou do fruto do seu pecado.

Dois meses de angústias e temores; Sarah não revelara a ninguém sobre o acontecido, nem
mesmo a sua mãe, com quem não tinha segredos. Porém, o momento havia chegado, não podia mais
esconder os sinais da gravidez. Em breve sua mãe desconfiaria, e seria muito pior se ela soubesse
pressionando-a, perderia a sua confiança, se já não a tivesse perdido pelo mal cometido.

Esther, mãe de Sarah - é uma mulher austera, discreta, prática e católica fervorosa. Passava a
maior parte do seu tempo cuidando dos problemas da igreja, sem se descuidar da sua casa e da
família. Há algum tempo observava Sara taciturna, mas relacionava seu comportamento com a
menarca, que havia acontecido há seis meses. Oliveira - marido de Esther e pai de Sarah - tinha todo
seu tempo tomado pelos negócios do supermercado. Raramente as via, nem notou que Sarah, após a
admissão de Ezequiel, passou a freqüentar o supermercado com maior assiduidade.

Esther, terceira filha de uma prole de nove, casara-se com o Oliveira, obrigada pela mãe. As
duas irmãs mais velhas se casariam com o mercenário Oliveira de olhos fechados, se uma delas
fosse do seu agrado, mas ele exigia que fosse Esther, e prometia uma gorda quantia mensal à
família, enquanto ela estivesse casada com ele. De família muito pobre, miserável mesmo, este
argumento fez com que Esther aos 16 anos, abdicasse dos votos religiosos e se subjugasse a um
casamento sem amor. Assim, Esther se tornou mantenedora dos pais e dos irmãos. Os irmãos, todos
se casaram e tiveram muitos filhos, e com isso aumentou a responsabilidade de Esther. A gorda
pensão se tornou magérrima com tantas bocas para alimentar. Ela reivindicou um aumento ao
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Oliveira, que prontamente a atendeu, ciente que quanto maior a quantia dispensada aos seus
familiares, mais ela se tornava sua dependente. Esther teve apenas Sarah, e designou a ela o seu
sonho abortado. A filha correspondeu aos seus anseios, e precocemente demonstrou ter herdado a
sua vocação religiosa, o que a deixou muito feliz e resignada.

Mas a sua felicidade estava chegando ao fim. O destino, como o raio que cai duas vezes no
mesmo lugar, repetiu-se: sua filha, assim como ela, teria que abandonar os sonhos eclesiásticos.
Sarah chegou-se á mãe e lhe contou toda a verdade. Esther ficou possessa. Como Jesus podia
fechar-lhe as portas pela segunda vez. Desesperada, pensou no primeiro momento em fazer a filha
abortar, mas esse era um pecado imperdoável, passível de excomunhão. Resolveu esconder a
gravidez da filha até o parto e, então, abandonar o recém-nascido no mosteiro. Fez a filha jurar não
contar nunca a ninguém sobre essa criança maldita. Ela ainda tinha a esperança de a filha realizar os
votos eclesiásticos.

Esther foi até o supermercado e contou tudo para o marido. Obrigou-o a punir Ezequiel com
rigor, mas de uma forma que não viesse a público a gravidez de Sarah. Oliveira não tinha
escrúpulos e mencionou a possibilidade de pagar para matá-lo. Esther foi contra, não conseguiria
viver com um crime de morte nas costas. Havia de ser uma coisa que o mantivesse preso por muito
tempo, para espiar o seu pecado. O seu pecado era o estupro, então Oliveira teve a idéia de acusá-lo
desse crime. Era um crime inafiançável e considerado hediondo pela sociedade. Havia uma
funcionária do supermercado que por dinheiro fazia qualquer coisa

Ezequiel foi condenado por estuprar Cléo, a funcionária do supermercado e demitido por justa
causa, mas jurava inocência. Sabia que a verdadeira razão era de ter aproveitado de Sarah, mas não
podia contar a verdade para não expor a sua culpa.
Cléo passou a chantagear o Oliveira. Ele pagou-lhe a primeira vez, mas não acreditando que
ela tivesse coragem de contar a verdade para a polícia, demitiu-a.
Cléo entrou em contato com o advogado de Ezequiel e se ofereceu por uma boa quantia
inocentá-lo, no que foi atendida. Em seguida foi a policia e contou que o acusou por ciúmes.
Ezequiel foi solto, mas não contou a ninguém que passou por tudo isso por ter aproveitado da
filha do patrão e nem desconfiava que ela houvesse engravidado.
Sarah deu à luz um menino. Esther fez o parto e nem se preocupou se ele respirava, cortou o
cordão umbilical e embalou-o em panos velhos. Mas a criança, perfeita e saudável, respirava
sossegadamente, sem saber do seu terrível destino. Sarah vestiu roupas que seriam descartadas após
a desova, inclusive a japona vinho prata, e entrou no carro que sua mãe alugara em outra cidade,
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carregando a carga indesejada. Em nenhum momento olhara para o rosto do filho, nem por
curiosidade.
Esther parou o carro na porta do mosteiro e antes que Sarah saísse para se despojar do filho,
seu neto, lançou-lhe uma maldição.
_Serás maldito entre as mulheres. Só te relacionarás com aquelas mais ordinárias, as
vagabundas que rastejam nos becos imundos da prostituição. Mas, mesmo a estas, terás que pagar
muito caro por aquilo que o seu pai conspurcou.

Esther obrigou o marido a vender o supermercado e mudar de cidade assim que Sarah lhe
contou que os monges sabiam de toda a verdade. Nunca mais foram vistos por ninguém.

O tempo sedimentou o passado. O presente, como a água cristalina de um lago que não
esconde o fundo lamacento, era tênue para que as personagens dessa história fossem felizes,
bastaria uma leve agitação na água para o lodo subir a tona.

Mauricio para se livrar do estigma maldito, se apegava a ficção de um escritor, que em seus
devaneios imaginou uma ilha encantada, que transformaria Quasímodo (corcunda de “Notre
Dame”) em Rodolfo Valentino. Viajou por todos os mares, desembarcou em todas as ilhas, aspirou
de todos os ares e nada aconteceu. Esta foi a sua última viagem. Aos 48 anos, 27 deles de infrutífera
procura, desistiu de encontrar a ilha encantada, que provavelmente é um mito, fantasia de um
escritor que como ele é infeliz no amor. Para aplacar os seus traumas, cria uma personagem, do qual
é o seu avesso, e dá a ela tudo que lhe foi negado; traça-lhe em poucas linhas uma vida inteira de
aventura, onde tudo gira ao seu redor. A ele todas as mulheres, todos os amores, e dentre as
mulheres, a melhor, e dentre os amores o maior. Até nas derrotas recebe os louros da vitória, por
sua magnanimidade. Maldito escritor que acha que tudo pode dentro das páginas do seu livro; lá, ele
é juiz, condena inocentes e absolve culpados; é rei déspota e ditador benevolente; é até Deus,
mesmo sendo ateu. E nós, pobres mortais leitores fechamos o livro, que pagamos bom preço,
transformados de alguma forma pela historia que acabamos de viver, não recebemos um muito
obrigado, nem um aviso de atenção: “Esta é uma historia de ficção, nenhuma personagem ou lugar
existe, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência”. Então, levantamos os olhos para
o céu e acreditamos ser o protagonista da vida, com todas as qualidades e poderes do herói da
historia que acabamos de ler.

Mas quem sou eu para julgá-lo prepotente e compará-lo às prostitutas, as desclassificadas,


aquelas que por dinheiro abrem as pernas até para mim? Não o comparando nos defeitos, que nada
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tem em comum, mas nas virtudes, ambos me prestam serviços relevantes: enquanto que elas
satisfazem minha necessidade fisiológica, proporcionando-me momentos de luxuria, sendo
Madalena e me tornando Rodolfo Valentino; ele disseca meus anseios psicológicos, dirimi minhas
duvidas e aplaca meus medos, mesmo quando expõe minhas feridas abertas que não cicatrizam; o
certo seria dizer: principalmente quando as expõe na pele de uma personagem.

Mauricio atracou o iate no cais e se dirigiu caminhando para sua casa à beira da praia, distante
500 metros dali. Não se preocupava com a sua aparência, nem havia espelho a bordo do iate,
abolira-o há muito tempo como inutilidade, e não se importava também com a opinião dos outros,
acostumado que estava com o desprezo alheio.

Cabeça baixa, olhos no chão, cabelos e barba crescidos sem tratos, camisa aberta deixando a
mostra o peito cabeludo, bermudão e chinelões arrastando o solado no chão arenoso; os cabelos
castanhos dourados contrastavam com a barba e sobrancelhas negras; era a imagem de um homem
rebelde e selvagem.

A sua frente vinham, em sentido contrário, quatro distintas mulheres, quatro gerações, a
bisavó, a avó, a mãe e a filha, esta com 16 anos e a matriarca com 81; todas usando óculos escuros e
sarong havaiano. Quando viram Mauricio, pararam estupefatas, maravilhadas com aquele homem
encantador, hastearam os óculos sobre a testa, e suspiraram em uníssono.

_Uuuaaaaaauuh!

Mauricio olhou-as surpreso. Virou-se para trás achando que o elogio era para alguma
personalidade que vinha logo atrás dele; porém lá não havia ninguém; a cantada era para ele.
Timidamente passou entre elas, entre a mãe e a filha, e levou dois beliscões no traseiro. E pelo
caminho até sua casa, várias mulheres paravam para vê-lo passar; as que estavam sozinhas, sem
uma companhia masculina, suspiravam e filosofavam romanticamente; as acompanhadas, olhavam-
no obliquamente ou disfarçavam, elucubrando comentários de algo na direção de Mauricio. “Ali,
olha, perto daquele homem alto, de barba negra, simpático”. Comentavam o algo, mas admiravam
Mauricio.

Mauricio ensimesmado, surpreso com esta atitude feminina que sempre foi o anverso,
começou a acreditar que havia encontrado a ilha encantada de Rodolfo Valentino e Madalena; a
brisa suave de Afrodite soprou os seus cabelos esvaecendo a maldição que coroava sua cabeça. Mal
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qual delas era a ilha encantada? Visitou todas, mas solitário não percebeu o efeito de encantamento;
só agora entre as pessoas, entre as mulheres, o encanto manifestou-se. Será impossível determinar o
local exato da ilha encantada. Mas, com certeza ela existe, o escritor não era ficcionista.

Chegando a sua casa, ligou a secretaria eletrônica, e uma mensagem de um dos monges do
monastério lhe deixou intrigado.

_Mauricio, por favor, entre em contato com o monastério o mais rápido possível. Assunto de
extrema importância.

Por coincidência, a mensagem era daquele mesmo dia, meia hora atrás. Ligou imediatamente
para o monastério e o mesmo monge que ligara, atendeu.

_Foi muito bom ter ligado para nós ainda hoje. Deixe tudo que estiver fazendo e venha para
cá imediatamente.
_Acabei de chegar, estou cansado. Não pode ser amanhã?
_Não! Amanhã pode ser tarde. Mais meia hora que você demorasse em nos responder,
poderia ser em vão.

Mauricio tomou um banho rápido, entrou no seu carro e partiu rapidamente para o
monastério. No caminho pensava o que seria de tão importante para os monges exigirem a sua
presença imediatamente. Há muito que ele era o mantenedor do monastério e designara uma equipe
especialmente para dar assistência financeira e social, enquanto estivesse distante. A sua equipe não
lhe comunicou nada, então, o assunto seria de foro intimo, para que os monges entrassem em
contato com ele diretamente.
Chegando ao monastério, o monge que ligara para ele o esperava. Cumprimentaram-se e o
monge pediu que lhe acompanhasse. Passaram por um corredor cheio de crianças sentadas em
longos bancos. Mauricio olhou para o monge com ar de interrogação.
_São crianças abandonadas, lamentou-se o monge. O número delas tem aumentado muito.
Duas menininhas de mãos dadas aproximaram-se de Mauricio e a maiorzinha lhe perguntou:
_Você veio nos buscar? – eram duas irmãzinhas que acabaram de chegar. Foram abandonadas
na estação do metro por sua mãe, com a promessa que um homem alto, de barba e cabelos
compridos, lhes buscariam.
_Sim, eu vim buscá-las... e a todas as outras crianças. Vou levá-las a uma terra encantada,
onde serão amadas e respeitadas, e jamais abandonadas.
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No final do corredor uma grande porta os levou a outro corredor cheio de salas. O monge
parou na porta de uma delas, abriu-a e indicando que devia entrar, disse-lhe:
_Alguém deseja lhe falar.
Dentro da sala uma senhora de cabelos grisalhos, aparentando sessenta e poucos anos, servia-
se de uma xícara de chá, sentada em uma poltrona. O monge retirou-se, fechando a porta com
cuidado.
A senhora depositou a xícara sobre a mesinha com as mãos trêmulas e olhou para Mauricio,
curiosa. Indagou-lhe:
_Mauricio?
_Pois não. Quem é a senhora? Não a conheço.
_Nós não nos conhecemos apesar de sermos tão íntimos, e eu sou a maior culpada... Eu sou a
sua mãe, respondeu a decrépita mulher com lágrimas nos olhos.
_Você é uma aranha ou um escorpião?
_Como assim, não entendi?
_A minha mãe, aquela que me protegia quando nasci, era de uma dessas espécies, só não
souberam definir exatamente de qual. Aliás, você é de uma espécie pior.
_Meu filho, desculpe. Levada pelo fanatismo de sua avó e pela minha imaturidade, eu cometi
o maior de todos os crimes.
_A minha mente é um quarto escuro cheio de fantasmas, os mesmos que me assombravam na
infância. São aqueles que desaparecem quando a mãe chega para aplacar o nosso choro, nos
acalenta e nos faz adormecer. Eu sempre os enfrentei sozinho. Eles me respeitam, mas não me
temem, porque sabem que eu não tenho mãe.
_Eu também senti a sua falta; quantas noites eu sonhei com você sugando o meu leite;
quantas vezes eu embalei o meu colo vazio; quantas lágrimas eu derramei, arrependida de uma
atitude tresloucada. Sei que não mereço o seu perdão, mas eu preciso pedi-lo para mim e para a sua
avó. Ela sofre de Alzheimer e apenas se lembra, a todo instante, que amaldiçoou o neto, e precisa
lhe pedir perdão.
_Eu as perdôo. As suas mentes devem estar cheias de monstros que não as temem e nem as
respeitam. Mas não sou eu quem irá julgá-las. Quem o fará é impiedoso com aqueles que
desobedecem aos Seus desígnios.

Mauricio comprou uma ilha, a mais parecida com a ilha encantada de Rodolfo Valentino e
Madalena. Construiu um abrigo para crianças abandonadas e lá vive com seus irmãozinhos na sorte.
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O BICHO PAPÃO

Walmir soube através de noticiários da televisão da tragédia que envolveu a família da sua
irmã em São Paulo. Ela e o marido foram mortos de maneira terrível; felizmente Huguinho, quatro
anos, filho único do casal, sobreviveu: sofreu apenas algumas escoriações e hematomas.

Walmir mora em Palmas, estado de Tocantins. Está casado com Solange e têm dois filhos:
Alice, nove anos, e João, sete. Já morou em São Paulo onde nasceu e justamente por causa da
violência mudou-se com esposa e filhos para bem longe dos grandes centros. Agora volta a sua
cidade natal para cuidar dos sepultamentos da irmã e marido. Apresentou-se à delegacia para
identificar-se e colaborar no que fosse possível com as investigações. Os corpos ainda não estavam
liberados pelo IML. A polícia aguardava os resultados das autópsias com ansiedade, pois não
tinham nenhuma pista que a ajudasse a descobrir o autor ou autores da chacina.

O delegado num preâmbulo falou da vida que o casal levava antes de ser morto; fato que
não era do conhecimento de Walmir. Ambos eram viciados em drogas e brigavam muito. O pai
nessas ocasiões batia também no filho e a mãe nada fazia para defendê-lo: declarações dos vizinhos
que faz parte do processo. Na noite da chacina, chamados pelos vizinhos, os policiais entraram na
casa e encontraram o menino na sala assistindo televisão, estava bastante machucado, mas não
chorava. Quando entraram no quarto, a cena que viram chocou-os; há tanto tempo na policia nunca
presenciaram nada semelhante. Os corpos estavam destroçados, como que tivessem sido
atropelados por um trem; havia cortes profundos na pele, os mesmos se um urso enorme os tivesse
feito; ou uma fera assim de garras afiadas, capaz de desferir golpes tão profundos, que chegou a
mutilar várias partes.

_E o Hugo, o que falou a respeito? - perguntou Walmir preocupado.

_Nós o interrogamos na presença da assistente social do juizado de menores. Quando lhe


perguntamos se ele viu quem machucou seus pais, disse apenas:

_O bicho-papão.
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_E perguntamos se o bicho-papão também lhe havia machucado. Negou e afirmou que foi o
seu próprio pai. A assistente social não permitiu que fizéssemos outras perguntas ao menino para
não deprimi-lo, mais do que já estava. Ao caso demos o nome de “Bicho Papão” e encontra-se em
processo de arquivo junto com outros insolúveis. E é só o que sabemos.

Walmir ficou na cidade por mais uns vinte dias; tempo que levou para a liberação dos
corpos; o sepultamento destes e os desembaraços para a tutoria do sobrinho: sendo o parente mais
próximo, ficou com a guarda legal dele. A autopsia nada revelou. Quando voltou a Palmas levando
Huguinho, sua esposa e filhos os aguardavam ansiosos felizes com a decisão. O menino foi
recebido com muito carinho e alegria. Em poucos meses parecia que ele sempre esteve ali. Alice e
João não eram apenas primos, eram mais que irmãos. Walmir e Solange tratavam os três como
filhos, igualmente, com muito amor.

Porém, naquela casa sempre alegre e tranqüila, coisas estranhas começaram a acontecer.
Alice, João e Hugo dormiam no mesmo quarto, mas somente Alice e João acordavam com
arranhões pelo corpo. As crianças não haviam brigado, não sentiram e nem viram nada. Os
incidentes continuavam a acontecer, sempre envolvendo apenas Alice e João; com Hugo não
acontecia nada. Walmir e Solange desconfiados separaram Alice e João de Hugo. Hugo passou a
dormir no quarto deles, onde poderiam vigiá-lo durante a noite. O menino dormia a noite inteira
sem ao menos se volver na cama. Mas no outro quarto Alice e João continuavam acordando com
várias escoriações, como se tivessem sido arranhados por gato. Walmir tomou uma medida drástica:
enviou Alice e João, para passar uma temporada na casa da irmã de Solange, que mora distante dez
quilômetros dali. Os incidentes pararam de acontecer com Alice e João daquele dia em diante.
Durante alguns dias tudo voltou ao que era antes, não fosse o fato de Alice e João estar vivendo em
outra casa. Hugo sentindo falta dos primos se aproximou ainda mais dos tios, buscando consolo.

De repente, os incidentes voltaram a acontecer, mas desta vez as vitimas eram Walmir e
Solange. Como os filhos, acordavam com varias escoriações, porem muito mais profundas:
semelhantes àquelas que os pais de Hugo sofreram. Walmir desesperado sem saber o que fazer
ligou para o delegado de São Paulo e relatou o que estava acontecendo. A policia de São Paulo
enviou investigadores para Palmas averiguar a semelhança e descobrir alguma coisa que ajudasse a
desvendar o caso “Bicho Papão” envolto ainda em completo mistério.
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Walmir e Solange por instinto e inconscientemente evitavam Hugo, tratavam-no com


desconfiança: então, os incidentes pararam de acontecer. Os investigadores nada encontrando de
relevância, voltaram para São Paulo, dando o caso “Bicho Papão” como insolúvel.

Walmir e Solange, saudosos, resolveram trazer os filhos de volta, achando que nada voltaria
a acontecer. A rotina naquela casa voltou ao normal. As crianças devido à separação se uniram
ainda mais.

E, então, voltou a acontecer. Alice e João acordavam feridos, com mais gravidade que antes;
sangravam bastante, tendo que serem medicados no hospital da cidade. A polícia local suspeitando
do casal começou a investigá-lo.

Walmir e Solange perceberam depois de algum tempo, que, se Alice e João tratassem Hugo
com frieza, à distância, os incidentes paravam. Mas Hugo, sem entender o que acontecia, sofria
muito. Chorava o tempo todo procurando afeto, mas era repelido. Dormia agora no quarto sozinho.
O clima na casa, mesmo assim, era horrível.

Os incidentes que acreditavam terem eliminado com aqueles procedimentos, retornaram


com muito mais rigor atingindo a todos, com exceção de Hugo como sempre. Walmir, Solange,
Alice e João acordavam durante a noite sendo jogados contra as paredes, tendo as carnes
dilaceradas por unhas afiadas. Imediatamente Alice e João voltaram para a casa da tia, antes que
sofressem males irremediáveis.

Walmir e Solange permaneceram, não podiam abandonar Hugo, apesar de acharem ser a
única solução. Mas não podiam também continuar protegendo o sobrinho em detrimento dos
próprios filhos. A polícia local os inquiria a todo instante, cada vez mais certa que os autores dos
ferimentos das crianças, fossem os próprios pais.

Sebastião, marido da irmã de Solange, meio ressabiado, contou para Walmir, católico
fervoroso, que na cidade de Goiânia mora um homem paranormal que seria o único que poderia
resolver o caso. Walmir, a esta altura, aceitava qualquer encomenda. Pegou o endereço do
paranormal, tomou o primeiro ônibus para Goiânia e foi parar na porta do indicado.

Godofredo, o paranormal, pediu a Walmir que lhe contasse o caso nos mínimos detalhes.
Walmir levou aproximadamente 1 hora para contar a historia, sem que fosse interrompido pelo
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menos uma vez pelo paciente homem. Quando Walmir pontuou o final, ele, então, tomou a palavra
e desvendou o misterioso caso.

_Toda criança tem um anjo da guarda que a protege de males que possam lhe prejudicar.
Hugo foi uma criança que sofreu muito, corria perigo o tempo todo, exigindo do seu anjo da guarda
uma atenção constante, e sua intervenção sempre que necessário para salvá-lo. Por causa disso se
tornou possessivo, exageradamente protetor. A ponto de se materializar e atacar quem agredisse o
menino.

_O senhor quer dizer que quem matou os pais de Hugo foi o seu anjo da guarda?

_Sim! O bicho-papão que ele mencionou quando foi interrogado pela policia. E também foi
o bicho-papão que feriu você e sua família.

_Mas no inicio tratávamos o Hugo com muito amor, porque então fomos agredidos?

_Por ciúmes. O anjo da guarda exacerbou-se. Tornou-se mãe descabida de qualquer ação
racional: uma fera cuidando de sua cria.

_E o que devemos fazer para reverter a situação?

_Vocês devem se amar muito, sem preferências, igualitariamente. Mostrar que são felizes.
Não devem se separar nunca. Dormir todos no mesmo quarto, na mesma cama. Nos momentos
extremos se abracem, demonstrem que se querem. Você e sua esposa devem mostrar que as
crianças estão protegidas dos males menores e que ele será bem-vindo quando o perigo for maior
que a capacidade humana. Mas, cuidado! Repito: tratem as crianças igualitariamente; não dêem
preferência ao Hugo, pois os anjos da guarda de Alice e João podem também se revoltar e acontecer
uma batalha entre os três anjos. Esta batalha não seria travada entre eles, mas cada um deles contra
as outras crianças e adultos. O resultado final será a destruição de todos os humanos, e não haverá
nada que se faça para impedir.

Walmir retornou para casa e informou Solange tudo o que o paranormal lhes recomendara.
Teriam que ter muita convicção e começar imediatamente. Abraçaram-se, encorajando-se
mutuamente: seria uma tarefa árdua e sacrificante; não podiam admitir outra coisa senão a vitória.
Solange livrou-se do abraço, apanhou um envelope e lhe entregou. Ele leu e olhou-a pesaroso:
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estavam intimados a comparecer na delegacia de Palmas e prestar esclarecimentos sobre os


incidentes ocorridos com os filhos. Se fossem condenados, e o seriam, pois não tinham como
defender-se, a situação das crianças estaria agravada. Provavelmente elas seriam entregues a uma
instituição, enquanto julgavam o processo. Só que os juízes não sabiam do grande perigo que todos
na instituição correriam com a presença das crianças, especificamente da de Hugo. E não adiantaria
contar-lhes toda a verdade: não acreditariam no insólito caso. Inclusive, a tragédia ocorrida em São
Paulo com a sua irmã lhe compromete como reincidência na família. Só havia uma coisa a fazer em
beneficio de todos; o custo seria pequeno em comparação com a magnitude que a possível tragédia
poderia alcançar. Walmir ligou para Godofredo, o paranormal de Goiânia, e lhe pôs a par da
situação; explicou o que planejara e se podia contar com ele. Com o comprometimento de
Godofredo, o plano seria possível de realizar. Arrumaram as malas e na calada da noite fugiram
com as crianças para a cidade de Anápolis; não confidenciaram para ninguém: sem cúmplices, sem
possíveis delatores.

Em Anápolis, se encontraram com Godofredo e foram para um sitio afastado do centro da


cidade de propriedade dele. Lá estariam livres da intromissão de estranhos e mais unidos e
concentrados para a espinhenta missão. Godofredo teria que se manter a distancia; não podendo
intervir diretamente com a possibilidade de distender o tempo a um período insustentável: era
também um estranho ao grupo e por mais que gostasse de cada um, não teria amor suficiente para
compor a aliança familiar.

Godofredo ficou na casa principal e a família se alojou num galpão utilizado para a guarda
de coisas diversas. Retiraram todos os objetos de dentro e revestiram as paredes e o chão, com
colchões, cobertores, tecidos, espumas: enfim tudo o que pudesse protegê-los de eventuais
incidentes.

Naquela mesma noite, Godofredo de sentinela ouvia o clamor das crianças; o baque surdo
nas paredes; sons guturais; ruídos sobrenaturais. O galpão balançava ameaçando desmoronar como
um castelo de areia; a luz interna tremulava fantasmagórica; isto se repetiu por incontáveis noites. A
resistência de todos diminuía a cada dia e o final daquele suplicio parecia ainda estar muito longe;
não sentiam nenhum relaxamento no procedimento daquela figura fantástica. Durante o dia
tentavam se recuperar das agruras da noite, mas o cansaço se acumulava já próximo do colapso.

Chegando a noite, Godofredo se postava cada vez mais próximo do galpão, inapto para agir,
mas relutante por fazer. Estava já colado à parede, ouvindo tudo com nitidez; sons diversos; vozes,
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que não entendia o que falavam, pois eram ditas por todos ao mesmo tempo; por um instante, os
demais se calaram e ele pôde ouvir a voz zangada de Hugo.

_ Para!... Para! Eu não gosto mais de você. Você é mau. Matou meus pais e agora quer matar
os meus tios e os meus primos. Vá embora. Estou de mal com você! Vá embora!... Vá embora!

Após o desabafo de Hugo, fez-se um silencio angustiante. Apenas o choro abafado de uma
criança amedrontada ouvia-se na noite sem lua extremamente quente e seca: os olhos, o nariz e a
garganta ardiam por falta de umidade. O choro cessou, agora o silencio era absoluto. Godofredo
engoliu em seco, ardendo-lhe a garganta ressecada; fazia horas que estava ali grudado na parede.
Nada mais se ouviu desde que Hugo se rebelara.

O sol despontou no horizonte e inundou de luz o galpão envolto em sepulcral silêncio.


Godofredo desgrudou-se da parede; seu rosto mantinha as marcas das saliências do reboco.
Aproximou-se da porta, hesitante: o quê encontraria lá dentro? Lembrou-se da cena que Walmir
pintou da tragédia de São Paulo; benzeu-se, inconscientemente. Segurou a maçaneta e girou-a
lentamente; a fechadura abriu-se com um estalo; empurrou a porta vagarosamente entre a esperança
e o medo; lá dentro estava muito escuro, somente a luminosidade da porta entreaberta permitia a
visão, mesmo assim reduzida pela contração da pupila pelo efeito do sol. Assim que as pupilas
foram se ambientando, ele pôde vislumbrar corpos imóveis pelo chão: três corpos de crianças, dois
de adultos, estariam vivos? Abaixou-se sobre um deles; uma criança, não sabia qual; aproximou o
ouvido do pequeno tórax para lhe consultar o coração, mas o seu próprio batia tanto que lhe foi
impossível ouvir as batidas do outro. Então, resolveu consultar o pulso; soergueu o tronco e pegou
no braço da criança; neste momento a luz do cômodo acendeu, assustando Godofredo que soltou um
grito lancinante. O grito foi conveniente, pois despertou a todos: após a rebeldia de Hugo, os
ocupantes do galpão ficaram na expectativa de novos ataques e não acontecendo, acabaram
adormecendo, aliviados e por puro cansaço.

“Bicho papão sai de cima do telhado, deixa o Hugo dormir sossegado”.

O bicho papão saiu de cima do telhado, mas será que ele volta? Será que o anjo da guarda
abandonou Hugo para sempre?

Godofredo explicou para Walmir que seria o mesmo que alguém perder o poder imunológico:
pegaria qualquer doença; é o que acontece com quem tem AIDS. No caso de Hugo, sem a proteção
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do seu anjo da guarda, estaria sujeito a sofrer qualquer acidente, e os fatais não seriam amenizados.
Só com o tempo saberiam da resposta.

Arrumaram as coisas e se preparavam para voltar para Palmas. Godofredo se comprometeu


a acompanhá-los e juntos convencerem as autoridades da verdade. Entraram no carro e alegremente
iniciaram a viagem de volta. Na estrada de Palmas passaram pela placa que dizia “Bem vindos à
cidade de Palmas”, estavam quase chegando. Rodaram mais alguns quilômetros, quando numa
curva perigosa um caminhão desgovernado colidiu de frente com o carro deles, arrastando-o por
dezenas de metros; sons de ferro retorcidos; latas rasgando como se fosse papel; uma nuvem de
poeira e fumaça encobriu os veículos engalfinhados; uma mão de fogo surgiu da fumaça,
carbonizando os veículos sinistrados com suas garras maçaricos.

No dia seguinte a manchete do jornal de Palmas anunciava:


“Tragédia na estrada de Palmas envolvendo um caminhão e um carro de passeio. Os dois
veículos colidiram de frente e após a colisão incendiaram. No caminhão havia dois ocupantes, o
motorista e o ajudante: ambos faleceram no local. No carro havia seis ocupantes, sendo três crianças
e três adultos. Infelizmente só houve um sobrevivente: o menino de nome Hugo, que apesar das
queimaduras de segundo grau; de ter quebrado duas pernas, um braço e sete vértebras: não corre
risco de morte. Hugo foi salvo por um milagre: sorte dele que o seu anjo da guarda estava de
plantão”.
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O MANDA-CHUVA

Sem Esperança é o nome de uma cidade do sertão nordestino. Um aglomerado de casas e


pessoas e uma igreja, que aparece repentinamente depois da curva da estrada e, assim também,
some do olhar de quem passa com um pouquinho de pressa, montado no seu jeguinho trotador. Se
alguém falar que a cidade de Sem Esperança é pequena, está errado. Se alguém falar que a cidade é
pequeninha, também está errado. Se alguém falar que a cidade é pequeníssima, não está totalmente
errado, mas também não está certo. Ela é... Quantas casas têm uma cidade pequeníssima? Umas
mil? Pois ela tem menos dez vezes. Mas, gente, ela tem dez vezes mais. Nunca vi. Eta gente
procriadora.

Foi fundada por Francisco Belizário da Rocha e Silva, logo depois que foi proclamado
coronel pelo então Manda-Chuva da região, coronel Olegário de Sá Alcântara Machado. Antes
disso, o coronel Francisco era apenas Chico, Chiquinho, Chicão, e só tinha onde cair morto por que
o sertão, desprezado pelos coronéis, abandonado ao sol, aos mandacarus e aos carcarás, era o seu
mundo e ali vivia juntamente com seus pais e irmãos, a Deus dará.

Chico é cabra-macho, não enjeita nenhuma empreitada, desde que seja honesta; não quer nada
que não seja conseguido com o suor do seu rosto e a força dos seus braços. Tem duas paixões na
vida: a lida livre de vaqueiro conduzindo a boiada à procura de pastos verdes, acampando à noite à
beira de uma fogueira, contar, ouvir causos e adormecer, apreciando o céu estrelado e sonhar com a
sua outra paixão, Isabel, a filha do coronel Olegário. Quem leva esta vida não vê a morte chegar, e
quando ela chega, vem sem atropelo, sem sofrimento; vem como a noite depois de um dia cheio e o
faz adormecer com a certeza de um novo dia, uma nova vida.

Chico ama Isabel desde menino e se apaixonou por ela quando fazia pequenos serviços na
fazenda do seu pai. Era repreendido a todo instante pelo capataz, por ficar admirando a menina
Isabel e se descuidar dos seus afazeres. A menina não lhe dava a mínima atenção e zangava-se,
quando o surpreendia olhando-a; impunha-lhe castigos e a ameaça de proibir-lhe a entrada na
fazenda se tal repetisse. Cresceu assim, olhando-a de canto e amando-a nos sonhos. Isabel para os
familiares virou Belinha, para os outros Da. Belinha, mas para ele será sempre Isabel.
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Ouviu, certa vez, o padre Ramon se referir sobre uma tal de princesa Isabel que libertou os
escravos. Na ocasião, dizia a Belinha, que o coronel, seu pai, lhe deu o mesmo nome, e ele a batizou
assim em homenagem à benemérita princesa; e que ele, o padre, esperava que ela, não embora na
mesma medida, seguisse o bom exemplo. Grande engano do padre, pois ela, muito pelo contrário,
andava a fazer escravos, e ele, pobre Chico, era um deles, escravo do coração, e assim queria
eternamente ser.

Mas, nossa historia começa mesmo quando Chico, para surpresa geral, se casa com Da.
Belinha. No dia seguinte ao casamento foi o da fundação da cidade. Um pouco antes, o coronel
Belizário proclamou Chico como coronel Francisco e se declarou aposentado, passando o bastão
para o genro e nunca mais foi visto em publico.

Chico, depois que virou coronel Francisco, mandava matar quem quer que fosse que lhe
chamasse de Chico. Alegavam porque Chico não é nome de homem: é sangue de mulher que desce
todo mês na mudança de lua. Quando lhe chamavam de Chico, piscava um olho, parecendo não dar
a maior importância; aliviando temporariamente o abusado; porém, em seguida vinha a sentença
definitiva: matem o abestado. Há sobreviventes porque Chico, Chiquinho, Chicão, morreu:
reencarnou no coro do coronel Francisco, Manda-Chuva de Sem Esperança.

Tem um detalhe curioso que depois se tornou marca do coronel Francisco. No dia da
fundação deu à cidade o nome de Boa Esperança, e no dia seguinte alterou em definitivo para Sem
Esperança: um nome otimista e em seguida, em definitivo, um nome pessimista. E passou a ser
assim para tudo. Se um cabra qualquer lhe descumprisse ordens; desacatasse-lhe; desaforasse-lhe;
enfim, lhe fizesse um tostão de desagrado: estava jurado. Primeiro, ele dava uma sentença amena
que era pro cabra relaxar, achando que o coronel era mole. Depois vinha a dura, a definitiva, que
fazia o cabra se cagar na calça. E era enterrado assim, cagado, que ninguém ia se dar ao trabalho de
limpar cabra morto.

Chico... Epa! Não me denunciem, pois me matam e não termino a historia. Coronel
Francisco é homem forte; de barriga apropriada; tez queimada pela vida antiga de vaqueiro; não é
rude nas ações, mas extremamente cruel nas reações. Em contraste, Da. Belinha é franzina, miúda,
não pesa mais que quarenta quilograma. Apesar de minúscula é vigorosa, tem uma saúde de ferro:
deu ao coronel, no prazo exato de nove meses, de parto normal, um saco roxo pesando quatro
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quilograma, dez por cento do peso da mãe. Amamentou o glutão por dois anos, sem que fosse
necessário qualquer complemento, apenas água... e guloseimas que o pai as dava sem o
conhecimento da mãe. Da. Belinha educa o filho com austeridade e exige que o tratem por coronel
Rodrigo, traçando o destino do garoto no berço.

Da. Belinha não se mostra feliz; está sempre recolhida, cuidando da administração da casa;
pouco sai e quando o faz, é acompanhada por uma velha escrava e seguranças fortemente armados.
Ninguém a olha nos olhos, nem lhe dirige a palavra, obedecem às ordens de cabeças baixas,
respondendo apenas: “Sim senhora. Não senhora”. Eram leis do coronel Francisco, julgavam todos,
e quem as descumprem são castigados com rigor.

Desde que Sem Esperança era um pequeno povoado, nunca teve um Manda-Chuva tão
opressor como o coronel Francisco. Mesmo o coronel Olegário, pai de Da. Belinha, que depois de
velho virou carrasco, não foi tão sanguinário quanto o coronel Francisco.

Os moradores mais velhos dizem que foi o poder que transfigurou o coronel Francisco, pois
quando ele era o... melhor dizendo... quando ele não era ainda coronel, todos gostavam dele e o
respeitavam como bom amigo que era. Tratava crianças, adultos e idosos respectivamente com
educação e respeito; solidário, sempre estava presente quando a necessidade exigia: pau pra toda
obra. “Quem te viu, quem te vê, quem não a conhece não pode mais ver pra crer; quem jamais
esquece não pode reconhecer”, os versos de Chico Buarque são bem apropriados. (este pode chamar
de Chico).

Rodrigo aos dois anos de idade ainda não foi batizado. O padre Ramon, único que pode
repreender o coronel, prometia lhe excomungar se Rodrigo não fosse batizado antes da próxima
páscoa. Não aceitava esse sacrilégio da parte do coronel. Este alegava que era por falta de
padrinhos, não conhecia ninguém em Sem Esperança com méritos para tal privilegio. Mas, em ida à
capital conhecera políticos importantes que prometeram uma visita a Sem Esperança, assim que as
incumbências do cargo lhes permitissem. Inclusive, excelentíssimo deputado Dr. Freitas se
comprometeu e a esposa, dar a ele e a Da. Belinha as honras de compadre e comadre.

_Então que se faça urgente esta visita, pois a urgência divina já caducou, resmungou o
padre Ramon.
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Com efeito, uma carta vinda da capital chegou anunciando a visita dos excelentíssimos
deputados e comitiva, com a confirmação da promessa feita pelo Dr. Freitas de batizar Rodrigo. Os
deputados também viriam para promover a primeira eleição para os cargos de prefeito e vereadores,
pois desde que Sem Esperança fora elevada à condição de cidade, as sedes da prefeitura e da câmara
municipal não tinham ocupantes, monopólio do coronel Francisco: o que os parlamentares
consideravam inadmissível.

O coronel Francisco deu ordens para se ocuparem apenas dos preparativos da cidade, pois a
importância dos visitantes era muita maior que a rotina de cada um. O padre Ramon recomendou a
limpeza total da igreja, observou que ela foi feita pela ultima vez no casamento do coronel
Francisco; exigiu o envernizamento dos velhos bancos esbranquiçados, o polimento de peças e
imagens em ouro ou prata, o engomado das batinas e tecidos usados na missa; ensaiou os cânticos,
hinos e leituras da bíblia que compõem a pauta do grandioso dia.

Finalmente chegou o esperado dia. A comitiva política entrou na cidade ao som do hino
nacional, muito bem ensaiado, tocado pela banda da cidade. A cidade se viu transformada em um
enorme estacionamento, dado o grande numero de ônibus e carros que formavam a comitiva.

Poucos sabiam, mas em meio à comitiva, também vieram pistoleiros com a missão de
assassinar o deputado Dr. Freitas, a mando de outro deputado adversário, presente na ocasião, quiçá
para garantir a execução do serviço, que tinha jurado fazê-lo por calunias de plenário. O momento
do crime seria na pia batismal, quando a atenção de todos estaria voltada para o ato.

O batismo estava marcado para o mesmo dia à tarde, pois a cidade não tinha estrutura para
hospedar tanta gente, que voltariam para a capital logo após a missa de batismo. Só ficaria na
cidade o juiz eleitoral para organizar as eleições. O coronel Francisco estava imbuído da missão de
convencer o Dr. Freitas e Da. Aurora, esposa do jurado deputado, de se hospedarem em sua casa
pelo tempo que lhe conviessem.

Tudo pronto, todos circundaram a pia batismal para o importante evento. À frente o padre
Ramon, tendo a sua esquerda, coronel Francisco e Da. Belinha; e a direita Dr. Freitas e Da. Aurora
com Rodrigo nos braços na posição de batismo. Quando o padre Ramon ia ungir a testa da criança,
ouviu-se um estampido e uma gota de sangue cobriu o lugar que seria do óleo. Da. Belinha
inclinou-se para frente, derrubou a pia batismal e foi ao chão, gravemente ferida na cabeça.
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Os seguranças do Dr. Freitas imediatamente o derrubaram no chão e com os próprios corpos


protegeram o corpo do chefe contra outros prováveis tiros. Da. Aurora deitou-se no chão se
protegendo e ao pequeno Rodrigo. Chico permanecia em pé, sem se preocupar com a morte, olhava
paralisado para o corpo de Isabel que jazia no chão: um fio de sangue lhe escorria da cabeça.

O padre Ramon também permaneceu em pé, olhando desolado para o estado que ficara o
interior da igreja, parecia que um estouro de boiada passara por ali, o que não estava longe da
verdade. Recobrou-se da pasmaceira e ajoelhou-se para assistir à Da. Belinha, que ainda vivia,
felizmente, mas necessitava de intervenção medica urgente. Sacudiu o coronel Francisco em transe,
e ordenou-lhe que levasse Dona Belinha rapidamente para o consultório do Doutor Januario, primo
do coronel Olegário. Chico pegou o corpo miúdo, minúsculo, leviano de Isabel, alçou-o nos braços
e correu para a clínica, que era bem próximo da igreja, como tudo na pequena cidade.

O atendimento como não podia deixar de ser pela importância da vitima, foi rápido e
eficiente. Dona Belinha ainda corria risco de morte, dependia agora da vontade de Deus e da sua
própria: a medicina fizera a sua parte.

Excelentíssimo deputado Dr. Freitas ciente que era o verdadeiro alvo daquele projétil alojado
na cabeça da quase comadre, debandou para a capital juntamente com a toda a comitiva.

A cidade nunca mais seria a mesma. Mas, excetuando os comentários e o trabalho de


reconstrução do interior da igreja, não se percebia no semblante das pessoas a tragédia que acabara
de acontecer. Seria pela aversão que tinham da família do coronel Francisco?

Da. Belinha continuava entre a vida e a morte. O coronel Francisco não arredava o pé da
clinica. O padre Ramon atarefado na igreja foi chamado com urgência pelo coronel Francisco para
dar a extrema unção para Da. Belinha, que segundo o doutor Januario não passaria daquela noite.

A cidade respeitosamente silenciou em homenagem a figura tão ilustre; o comercio baixou


as portas e o povo se dividiu entre a igreja e a frente da clinica em vigília pela alma da pobre mãe
que não viu consumado o batizado do filho querido. Mas Da. Belinha resistiu àquela noite e a
muitas outras. Ao descrédito do doutor Januario, seu primo de segundo grau, respondia com uma
sobrevida: se o gato tem sete vidas, Da. Belinha valia por sete gatos.
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Na mil e uma das noites em vigília a Da. Belinha, o coronel Francisco e o padre Ramon
conversavam na sala de espera da clinica. O coronel, depois de um longo silencio, falou ao padre
que lhe precisava fazer uma confissão, que há muito desejava, mas por covardia ia adiando. O peso
da confissão era demasiado para uma só pessoa; precisava dividir a penosa carga com alguém para
não sucumbir pelo caminho e morrer com o segredo. O padre Ramon levantou-se para irem até o
confessionário da igreja, lugar apropriado para tais revelações. O coronel Francisco dispensou o
local, poderia ser ali mesmo, pois era mais um desabafo a um amigo, que uma confissão a um
servidor de Deus: Ele já sabia de tudo e com certeza não o perdoava; queria mais a cumplicidade do
amigo que a discrição do padre.
_Então que me fale o amigo, já que a ovelha se eximiu.
Coronel Francisco limpou a garganta e começou o relato da terrível e inacreditável historia.
_Da. Belinha não é que todos pensam: frágil, passiva, insignificante; impressão causada pela
sua estrutura anatômica e pelas poucas palavras que fala em publico. Não, é uma mulher
maquiavélica, dominadora, carismática, poderosa; que mesmo assim ou por ser assim, a amo tanto.
A sua ânsia de poder, e instinto de dominação e vingança, se manifestou muito cedo. O coronel
Olegário, seu pai, foi sua primeira vitima. Homem pacato viu-se na velhice por influencia da filha
transfigurado em opressor e desumano. Por não atender as expectativas de Da. Belinha foi deposto e
exilado num quarto escuro e úmido, onde se encontra até agora.

_Eu, continuou o coronel, por esses tempos, já demonstrava o grande amor que lhe devoto,
apesar do seu desprezo. Então, considerando-me a única alternativa para realizar os seus objetivos,
em meio a uma sociedade machista, decidiu casar-se comigo. Não sabia ainda dos seus verdadeiros
interesses, e fiquei felicíssimo com aquela mudança repentina, que ela, habilmente, fez com que
parecesse um pedido meu, e o aceitou com certas condições.

_Primeira: nada de Chico, Chiquinho, Chicão, dali pra frente coronel Francisco, e ao infeliz
que se atrevesse a tal intimidade, punição severa. Aceitei, achando que punição severa seria uma
bronca ou um favor que não seria prestado, nunca a morte sumaria.

_Segunda: elevar o povoado à condição de cidade, utilizando a influencia que o coronel


Olegário tinha na capital. A esta aceitei também, achando-a pertinente e uma boa esperança para a
evolução do povoado. Imaginei que haveria eleições democráticas para prefeito e vereadores, como
é de praxe. Só depois fui entender que a verdadeira razão era de se aproveitar dos privilégios que o
povoado adquiria na condição de cidade, sem repassar para o município.
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_A terceira e última condição é a mais bárbara. Tinha que lhe dar um, e apenas um, filho
varão; se fosse fêmea iria do útero para a fossa negra, sem comiseração; se fossem gêmeos, ao mais
fraco o mesmo destino da irmã enxerida. Incrédulo, aceitei a mais esta, achando que era força de
expressão: o coração de mãe negaria tal blasfêmia. Porém, o parto próximo, rezei fervorosamente
para que fosse varão e apenas um; conhecendo a profeta, cria na execução da profecia, e não seria
eu o verdugo infanticida a cumpri-la, mas não sei se lhe poderia impedir que a outro incumbisse.
Felizmente, não lhe permitiu Deus, conspurcar-nos com mais este execrável pecado.
O coronel Francisco, não suportando a emoção, pôs-se a chorar. O padre Ramon confortou-o,
o que lhe fez recobrar as forças para continuar a dolorosa confissão.

_As condições aceitas sob jura, o casamento foi realizado e o meu calvário começou. Ela
nunca me beijou e só fizemos sexo até a fecundação, somente nos seus dias férteis. Os meus
seguranças eram seus jagunços, e lhe relatavam tudo o que eu falava e fazia. Às minhas ordens e
corretivos ela dava contraordens e punições drásticas, e em meu nome: as minhas amenas e justas
num dia; as delas, absurdas e cruéis no dia seguinte. Boa Esperança virou Sem Esperança; o apelido
Chico ficou denominado como pena de morte; castigos leves se transformavam em torturantes
sacrifícios.

Fez uma breve pausa para tomar fôlego, e continuou.

_Por amor e fraqueza fui omisso, mas o preço que pago é o mau que espio; deprimido,
arquejado, não tenho forças para reparar o mal que foi feito. Nunca lhe desejei a morte, mas esta
bala perdida, muito mais que a mim, veio libertar todos dos seus arbítrios. Não importa o que
acontecer, já decidi, vou voltar a ser aquele Chico que todos gostavam naturalmente; às favas o
coronel Francisco.

O padre Ramon ouviu tudo horrorizado, estupefato; na sua longa vida de sacerdócio nunca
testemunhara nada tão insólito; julgava conhecer o ser humano, mas depois deste relato convenceu-
se que era impossível ao semelhante tal proeza: somente ao Criador.

Nesta noite depois da confissão do coronel Francisco, Da. Belinha desistiu de viver. Não sei
se o fez sem alternativa, ou estava impedida de fazê-lo, obrigada a espiar a culpa até o julgamento
final pendente da confissão. Foi enterrada no cemitério da cidade com as honras de figura ilustre. O
coronel Olegário – o genro o livrara do castigo filial - estava de corpo presente: a alma estava
distante no passado, quando Isabel era apenas uma inofensiva criança tratada por Belinha.
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O coronel Francisco ao relatar o caso fora do confessionário não impôs ao padre Ramon a
força da ética nem o segredo de confissão. Aquela historia absurda era, como o foi para o
protagonista, uma carga muito pesada para o velho padre, e livre do confessionário contou a uma
beata para aliviar a carga e continuar a vida. Da beata, a historia atravessou a cidade como um
rastilho de pólvora. O coronel Olegário inquirido confirmou a versão.

A cidade estava em polvorosa em plena campanha política para as eleições municipais.


Chico (agora pode) era candidato a prefeito e garantia que, eleito, o seu primeiro ato seria alterar
novamente o nome da cidade para Boa Esperança.

Rodrigo finalmente seria batizado. Os padrinhos, gente humilde da cidade, eram antigos
amigos do pai.

Quando o padre Ramon ungiu a testa do Rodrigo, Chico arrepiou-se, viu nos olhos do filho a
alma de Isabel.
51

APARÊNCIAS

1º capítulo: O BÊBADO

Ele estava bêbado fisicamente, mas mentalmente sóbrio. Havia proposto um acordo com a
garrafa de bebida de trocar os conteúdos: o liquido volátil - promessa de alivio - por suas
lembranças sólidas, pungentes. Ele cumpriu a sua parte, mas a garrafa, assim que vazia, eximiu-se,
traidora. Enraivecido, atirou-a contra a parede, despedaçando-a. Ah, se assim pudesse fazer com as
pessoas que também o traíram.

Suas pernas trôpegas tropeçavam em nada; suas mãos se apoiavam no que via, mas não
existia; seu corpo tolo esborrachava-se no chão; o rosto esfacelava-se no atrito com o chão duro e
áspero; o sangue, exalando álcool, escorria, embaçando-lhe a visão e tingindo a calçada de
vermelho. Quem o via assim, o imaginava um bêbado inveterado; porem, nunca bebeu, era a
primeira vez. Bebeu, por que sempre ouviu dizer que a embriaguez entorpece os sentidos e nos faz
esquecer tudo. Mentirosos, fingidos; enganam-se a si próprios para se desculparem aos outros.

A sua mente lúcida repassava a todo instante a cena que destruiu sua vida e que queria
esquecer. Esquecer não, que era pouco; desejava não ter visto, mas isso também não adiantava; não
deixava de ser aquilo que não via; mais dias, menos dias aconteceria, era só uma questão de tempo.
Poderia ser um pesadelo, um sonho ruim, do qual acordaria como o fim de uma embriaguez; ficaria
apenas a ressaca ou a indisposição de uma noite mal dormida; nada que um banho gelado e um café
reconfortante não eliminassem.

O seu rosto ferido sangrava. As dores eram reais: a dor física causada pelos tombos e a dor
moral de ter visto o que não queria ver, ou melhor, que não deveria ser. Arrastou-se até o muro de
uma casa e soergueu-se apoiando as mãos nas grades do portão. O seu peso abriu o portão que
estava só encostado; sem apoio, caiu para dentro do quintal da casa causando um grande alvoroço.
Os cachorros da redondeza latiram em uníssono. As luzes da casa acenderam-se e uma mulher em
trajes de dormir apareceu para averiguar o que estava acontecendo. Vendo aquele homem caído e
sangrando abundantemente no rosto, apiedou-se dele e, ingenuamente, carregou-o para dentro de
casa, acomodando-o, por não haver outro lugar, em sua própria cama para cuidar-lhe os ferimentos.

Enquanto assistia ao bêbado, sentada na beirada da cama, debruçada sobre ele, limpando-lhe o
rosto com água oxigenada, seu marido chegou. Vendo o que imaginou ser uma cena de traição,
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armado de um revolver, atirou na pobre mulher que caiu morta ao lado da cama. O bêbado
arregalou os olhos e antes de morrer, vitima da mesma arma, reconheceu naquele homem o mesmo
que tinha visto na cama com a sua mulher, razão dos seus tormentos e da sua bebedeira.

O sangue encharcado de álcool escorria do seu corpo, tornando-o sóbrio. As lembranças


esvaiam-se de sua mente, deixando-a vazia. Não sentia mais dores: física e moral. Uma luz
branquíssima e suave iluminou aquele pequeno quarto; levantou-se e saiu para a rua, suas pernas já
não mais tropeçavam em si mesmas e o levava acompanhando a luz; sua mente, livre dos
pensamentos ruins, exalava tranqüilidade, uma musica suave lhe transmitia paz e felicidade.

As vidas daqueles que lhe fizeram sofrer estavam despedaçadas: espiariam a culpa da morte
de quem traíram, achando terrivelmente que por eles foram traídos.
53

2º capítulo: O AMANTE

Feliciano e Lucinda enfim casaram-se. Foram muitos anos de namoro e brigas em que ela
relutava entre casar e terminar tudo devido ao ciúme doentio que ele sentia por ela. O quadro
agravava-se por ele ser valentão e violento, principalmente quando achava que estava sendo traído.
Todos o temiam e ele gabava-se disso, dizendo que em mulher dele ninguém tasca.

Lua de mel, ambos em férias, foram para um hotel a beira mar. Pretendiam permanecer 15 dos
dias de férias, mas voltaram em três dias, por causa dos ciúmes dele. Ela não podia ficar de biquíni
na praia, pois ele suspeitava de todos os homens ao redor dela e arrumava uma briga após outra. No
hotel era a mesma coisa, implicava com todos os outros hospedes, jovens ou velhos. Passaram o
resto dos vinte dias de férias em casa, dentro de casa, longe dos olhares masculinos.

Terminado os vinte dias de férias, Lucinda voltou a trabalhar. Feliciano ainda teria mais dez
dias, pois tirara férias completas. Ambos trabalhavam no período noturno, mas em empresas
diferentes. Ele a levou ao trabalho no primeiro dia, mas negou que a buscaria na saída, alegando que
iria até a sua empresa e não sabia que horas voltaria. Mas, na hora da saída, lá estava ele, de longe,
vigiando a esposa. Viu quando ela deixou a empresa e a passos largos se dirigiu para o ponto do
ônibus que ficava a cinco quadras dali. Um homem alcançou-a e a acompanhou conversando
animadamente com ela até o ponto do ônibus. Continuaram conversando até que o ônibus da sua
esposa chegou, despediram-se cordialmente e assim que o ônibus partiu, ele afastou-se rapidamente,
retornando pelo mesmo caminho que os levou até ali. Isto se repetiu durante três dias. Feliciano a
espreita, continuava vigiando-a, louco para dar o flagrante. No quarto dia, o sujeito que
acompanhava sua esposa, alçou o braço esquerdo sobre o seu ombro, enquanto ela o abraçava pela
cintura, desviaram do caminho rotineiro e se afastaram para um canto escuro de uma rua deserta.
Feliciano acompanhou-os sorrateiramente. Poderia dar o flagrante agora se o quisesse, porém, parou
a uma distancia segura e ficou observando-os abismado. Os dois protegidos pelas sombras da noite
praticavam cenas explicitas de sexo. Feliciano, favorecido por um facho de luz, assistia a tudo,
estarrecido, ela fazia coisas que sempre negou a ele, mesmo depois de casados. Levantou-se para
flagrá-los, mas a vontade de continuar assistindo foi maior. A performance da sua esposa lhe
excitava e ele ficou ali, se masturbando, tomando o lugar, em pensamento, daquele sujeito que
sexualmente subjugava sua esposa como sempre quisera fazer.
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Terminado o ato, viu sua esposa - despojada com estupidez pelo amante viril, como ele,
regozijou-se, também o faria - se dirigir para o ponto do ônibus, cabeça baixa, encolhida, como se
estivesse envergonhada, fugindo dos olhares indiscretos. “Safada, deveria se envergonhar antes de
cometer o adultério”. Viu também o Amante se afastar e seguiu-o com o intuito de matá-lo, não por
ultraje, mas por inveja. Armado de uma faca, o mataria assim que tivesse uma oportunidade.
Depois, voltaria para casa e exigiria da esposa o mesmo desempenho que ela proporcionou ao
amante, senão a mataria também.

O Amante caminhava a passos monótonos. Olhava insistentemente para os lados, para as


pessoas que passavam solitárias, como se estivesse procurando por alguém. Entrou num beco
escuro e escondeu-se na sombra de uma parede.

_Será que o tinha visto? , suspeitou Feliciano. Não, não poderia, pois em nenhum momento
olhou para trás, concluiu.

Não entendeu o motivo de o Amante se esconder, mas viu ali a grande oportunidade de
realizar o seu objetivo. Aproximou-se do beco, como se estivesse passando ao acaso e assim que
chegou bem próximo, empunhou a faca e pulou para cima dele. O Amante, lépido como um gato,
pulou de lado livrando-se da lamina e ao mesmo tempo sacou o seu revolver. Feliciano ao ver o
brilho da arma apavorou-se e correu para os fundos do beco, trombando com sacos de lixo,
esparramando-se na sarjeta infecta de esgoto. Sua faca escapou-lhe da mão e perdeu-se entre os
sacos de lixo. Acuado no canto sem saída, ficou a mercê do Amante armado de um revolver
apontado para sua cabeça. Tremendo de medo, suando frio, todo molhado de esgoto e urina, que
acabara de fazer, implorava, covardemente, por sua vida. Prometia ao Amante que faria o que ele
quisesse se o deixasse vivo.

_Qualquer coisa? , insinuou maliciosamente o Amante. E vai fazer, mesmo que não queira,
afirmou. Abriu a braguilha, tirou o conteúdo para fora e ordenou: “Chupa”.

Feliciano, temeroso, submeteu-se, como fez sua esposa, aos desejos do viril amante. Este,
assim que se satisfez, meteu o pé no peito de Feliciano, ainda ajoelhado a seus pés, arremessando-o
no meio dos sacos de lixo, fechou a braguilha e afastou-se lentamente para fora do beco.
Feliciano ao cair entre os sacos de lixo viu um objeto brilhante entre eles, esticou o braço e
apanhou o que seria sua faca. Cuspiu com repugnância e ódio o que havia em sua boca, limpou-a na
barra da camisa; observou que o homem se afastava lentamente sem se preocupar com ele;
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levantou-se empunhando a faca, aproximou-se sorrateiramente do descuidado tarado e com destreza


cravou-a nas costas do abusado, transpassando-lhe o coração.

O amante de sua esposa, e agora de certa forma seu também, caiu morto instantaneamente.
Um som abafado de um corpo caindo e logo em seguida um som muito leve de um pequeno objeto
que escorregou pelo chão: era o revolver que submeteu Feliciano a mais terrível humilhação.
Feliciano desesperado apanhou-o e saiu correndo daquele maldito beco. Correu até que as forças lhe
faltaram. Extenuado, sentou-se na sarjeta e vomitou assombrado e enojado, por tudo que lhe
acontecera. Agora, mais do que nunca teria que matar a vagabunda da sua esposa e usaria o próprio
revolver do seu amante, mas antes a submeteria às mesmas humilhações em que ele foi submetido.
Ergueu a mão que segurava o revolver e observou-o mais apuradamente. Deu um grito de raiva,
ergueu-se rapidamente proferindo palavrões, chutou o saco de lixo na calçada, esparramando o seu
conteúdo por todos os lados, ao perceber que o revolver era de brinquedo. “Desgraçado, miserável,
aquele maldito me enganou”. Sujeitou-se aquele filho da mãe por nada. “Ah, mas a Lucinda pagará
por mais isso”.

Quando chegou a sua casa já passava das seis horas da manhã, o dia estava raiando e oferecia-
se maravilhoso. Parentes o esperavam, preocupados com a falta de noticias. Cismado com a
presença deles e não vendo sua esposa perguntou por ela e a razão de estarem ali. Confusos, os
parentes lhe informaram que Lucinda estava internada vitima de estupro. Desconfiados, lhe
perguntaram de onde vinha assim tão sujo, cheirando a esgoto, e como ainda não sabia da esposa.
Achavam que ele a acompanhara ao hospital, se, não, onde estivera a noite inteira?

Feliciano não pode explicar e também estava confuso com a historia de estupro. Mentiu
apressadamente que tinha sido assaltado, e com a desculpa da necessidade de um banho para assistir
à esposa, fugiu do interrogatório. Precisava urgentemente falar com a Lucinda e esclarecer tudo
antes de se comprometer com declarações precipitadas.

Lucinda, no hospital, estava desconsolada. Vendo o marido, abraçou-o esperando conforto na


dor. Chorava copiosamente e lhe pediu desculpas pelo acontecido, a ingênua. Feliciano manteve-se
calado, enquanto ela contava com detalhes como ocorreu.

_Depois que voltei a trabalhar após a nossa lua de mel, encontrei pela primeira vez um sujeito
na saída do trabalho. Puxou conversa educadamente e me fez companhia até o ponto do ônibus, que
também era o seu destino. Alegando que o seu ônibus costumava demorar, ficamos conversando até
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que o meu ônibus chegou. Isto se repetiu no segundo e terceiro dia. Sempre discreto e cavalheiro,
nada me fazia desconfiar dele. Porem, no quarto dia, coincidindo de ficarmos sozinhos no caminho,
ele me abraçou repentinamente com o braço esquerdo e com a mão direita afundou um revolver na
minha barriga. Ordenou que o abraçasse também e ameaçou-me de morte se não fizesse o que ele
queria. Arrastou-me para um canto escuro e subjugou-me ao seu bel prazer.

Feliciano, estupefato, ouviu tudo incrédulo. “Não pode ser, ela deve estar mentindo, deduziu.
Inventou esta historia, pois percebeu que eu a vigiava”.

Neste momento entrou um policial no quarto e desculpando-se pelo momento inoportuno, mas
obrigado pela urgência do caso, mostrou a Lucinda a fotografia de um suspeito para que ela o
reconhecesse como o mesmo que a estuprou. Quando olhou para a foto seu semblante demonstrou
terror, abaixou a cabeça e se pôs a chorar. Feliciano tomou a foto da mão do policial e constatou
apalermado que era o sujeito que ele matara como suposto amante da sua esposa, e que agora ele o
descobria como estuprador dela e de si também.

O policial retomando a foto anunciou que o estuprador havia sido reconhecido por outras
vitimas também, mas que felizmente ele fora encontrado, morto. Fora esfaqueado durante a
madrugada, mas até agora não tinham pistas de que quem o havia matado e nem por quê.

Feliciano agora reconheceu que a esposa era inocente e tinha sido vitima como ele o foi
também de um tarado demente. Resolveu contar a sua parte da verdade para ela e revelar que sem
saber a havia vingado, matando o desgraçado que tanto mal lhe causara. Omitiu por vergonha que
ele também, por temer a morte subjugou-se aos desejos do tarado. Mas contou com detalhes que a
vigiava desde o primeiro dia do seu encontro com aquele que achava ser o seu amante, presenciou
toda a cena de estupro, indignado por ela fazer com o amante o que sempre negou a ele. Seguiu-o
até o beco e mentiu, dizendo que o matou com todas as honras de um marido traído.

Lucinda quase teve uma síncope quando ele terminou o relato.

_Seu desgraçado, você matou o sujeito errado, esbravejou.

_Não Lucinda, eu matei o cara que te estuprou, apesar de não saber no momento. Eu o segui
desde que a abandonou, não o perdi de vista um instante sequer.
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_Seu idiota, você matou o meu amante. O estuprador continua vivo na minha cabeça, me
ofendendo, me humilhando, a noite inteira em meus pesadelos, em todo momento, basta eu estar a
sós. Se você confiasse em mim, se não fosse tão abjeto, teria intervindo assim que ele me abordou,
evitaria o estupro, ele seria preso e não molestaria mais ninguém. Suma da minha frente. Não quero
vê-lo nunca mais. Aliás, não quero saber de homem nenhum na minha vida, nunca mais.

Feliciano afastou-se amargurado, sabia que jamais seria perdoado, conhecia-a muito bem, e
também sabia que não era merecedor. Viveria o resto dos seus dias atormentado pelas lembranças
daquela noite maldita. Matou o amante da sua ex-esposa e teria que conviver com o fantasma que
estuprou ambos no mesmo dia: este não poderia matar, jamais.
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3º capítulo: A RÉ

Guilherme e Suzetty, um casal de namorados como tantos que há por ai. Namoram há pouco
mais de um ano. Amigos e familiares garantem que neste tempo não tiveram nenhuma briga ou
rusga sequer e preveem que o namoro percorre caminhos que certamente os levarão ao altar.
Guilherme é um rapaz muito bonito e querido por todos. Seus pais, Yolanda – advogada - e
Gaspar – empresário do setor imobiliário - o adoram, mas respeitam sua privacidade, aceitando suas
escolhas sem deixar de orientá-lo em suas decisões.
Suzetty, meiga e adorável, é o tipo de mulher que todo homem deseja para esposa e mãe de
seus filhos. Sempre simpática e atenciosa, trata todos com educação e respeito. Ama Guilherme
muito mais que ele a ela, mas não demonstra ciúmes, mesmo quando a situação excede os limites da
tolerância.
Leonardo é o melhor amigo de Guilherme e companhia inseparável do casal. Não namora há
muito tempo, cogitando suspeitas de ter um amor secreto não correspondido. Filho único, de Helena
e Vitor - falecido há mais de dez anos - não tem motivo para se queixar da vida, porém está sempre
triste e taciturno. Calado, só responde monossilabicamente quando interpelado. Somente em
companhia de Guilherme ele se solta um pouco mais, deixando transparecer um belo sorriso e um
brilho singular nos olhos.
Helena é uma supermãe. Antes mesmo de o marido morrer, ela trata o filho com muito mimo
e afeição, dedica-se completamente a realizar seus desejos e necessidades, mesmo os quase
impossíveis. Preocupa-se atualmente com a mudança de comportamento do filho, acreditando que a
razão é de ele estar apaixonado pela Suzetty, namorada do seu melhor amigo. Ela sabe que
Leonardo é fiel ao seu amigo de infância e jamais faria algo para lhe magoar, principalmente
tomando-lhe a namorada. Helena tem os mesmos sentimentos em relação a Leonardo e sempre que
pode articula situações afastando Guilherme temporariamente da companhia de Suzetty, deixando-a
a disposição do filho querido; dissimuladamente faz observações maliciosas criando
constrangimento entre Guilherme e Suzetty. Leonardo percebe a intenção da mãe e assim que
possível lhe chama a atenção, reprovando-a e alertando-a de estar equivocada e exigindo que ela
não proceda mais assim. Em vão. Helena com certeza daria a vida pela felicidade do filho.
Guilherme, Suzetty e Leonardo são íntimos das famílias dos três; possuem até uma copia da
chave da porta de entrada do apartamento de cada um; entram e saem a qualquer momento sem se
anunciarem e são recebidos como um ente da família. Diante deste quadro social, ninguém
imaginaria a possibilidade de uma tragédia envolvendo famílias tão harmoniosas.
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A notícia atingiu a todos como um tsunami: Helena havia sido presa em flagrante pelo
assassinato de Guilherme. Ela própria telefonou para a policia se auto denunciando, como constava
nos autos. A polícia chegou a seu apartamento e encontrou-a sentada no sofá com as mãos e roupas
sujas de sangue, segurando um revolver, cabeça baixa e olhar vazio, distante. Não pronunciou
nenhuma palavra; não respondeu a nenhuma pergunta como é seu direito; não ofereceu nenhuma
resistência; deixou-se ser algemada e levada para a delegacia. Foi presa em flagrante e condenada
por crime doloso, mas teve a pena reduzida por ser primária.

Leonardo quando soube, teve uma síncope e ficou internado durante três dias. Ao sair,
hospedou-se em um hotel, renegando voltar ao apartamento de sua mãe e jurou que nunca mais o
faria. Também não foi visitá-la na cadeia, nem queria saber de noticias suas.
Suzetty refugiou-se em sua casa, não recebia ninguém e não atendia ao telefone. Isolou-se
completamente, não queria tocar no assunto.
Iolanda, mãe de Guilherme, tanto fez e por ser advogada conseguiu visitar Helena, a assassina
confessa do seu filho. Para assimilar o golpe e voltar a dormir, para perdoar Helena pelo seu gesto
tresloucado, para, enfim, voltar a viver, precisava saber a verdadeira razão de ela ter feito o que fez.
Não aceitava que o motivo foi apenas tirar o Guilherme do caminho de Leonardo para que ele
conquistasse Suzetty. Ela achava inconcebível que uma mãe tirasse a vida do filho de outra mãe,
ambas muito amigas, para que o próprio filho obtivesse vantagens na conquista de sua namorada.
Não, o motivo era outro, ela bem o sabia e Helena haveria de lhe revelar a verdade.
As duas mães, participantes da mesma tragédia, uma ativa e a outra passivamente,
encontraram-se face a face. Iolanda com o olhar inquisidor e Helena cabisbaixa, hermética, fugia do
olhar daquela mãe que desejava o que somente ela sabia: a verdade. Iolanda com os olhos
marejados de lágrimas levantou o rosto de Helena e olhando no fundo dos seus olhos perguntou:
“Por quê?” Helena manteve-se calada como sempre, mas retribui o olhar. Uma seqüência de
lágrimas deslizou por um rosto envelhecido e sofrido, formando uma pequena poça na palma da
mão de Iolanda, que solidária com a sua dor, amparava-lhe o queixo delicadamente.
Iolanda retirou-se sem nenhuma resposta verbal, mas agora ela estava convicta da inocência
de Helena: em seus olhos não havia culpa, apenas pesar. Ela estava protegendo alguém. Assumia a
culpa de outro por amor. Somente uma mãe é capaz de semelhante coisa, como não pensou nisso
antes.
Chegando ao hotel onde Leonardo se hospedava, este se recusou a recebê-la, alegando que a
ferida ainda não cicatrizara e a sua presença só faria sangrar ainda mais. Iolanda teimosamente
insistiu, afirmando que só sairia dali após falar com ele. Leonardo então, não viu outra maneira
senão atendê-la.
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Sentaram-se em um sofá contíguo e Iolanda foi direta e taxativa:


_Por que você o matou?
_Eu o quê? , gaguejou Leonardo.
_ Eu estive com sua mãe e vi em seus olhos que ela está assumindo o seu erro. Quem conhece
Helena sabe que ela faria qualquer coisa por você.
_Sim, até matar. E foi o que fez, matou o meu melhor amigo, gritou exasperado.
_Não seja hipócrita. Como você é capaz de deixar a sua mãe sofrendo em uma cela, pagando
por um crime que não cometeu e nem ao menos vai visitá-la. Eu sei que você matou Guilherme para
ficar com Suzetty, pois a ama.
_Não, eu não amo a Suzetty.
_Você sempre foi apaixonado por ela e não admitia que ela fosse feliz com Guilherme, por
isso o matou.
_Não, eu não o matei. Eu o amava.
_Como se atreve a dizer que amava alguém que você matou de uma forma tão sórdida,
traiçoeira.
_Iolanda, eu amava o seu filho como uma mulher ama um homem, e ele também me amava.
Suzetty nos flagrou na cama de Guilherme, em sua casa. Ela ficou desesperada e começou a bater
na cara de Guilherme. Eu tomei suas dores e travamos uma violenta luta, os três. Finalmente
Guilherme conseguiu apaziguar-nos e pediu para eu me retirar, que ele precisava conversar com ela
a sós. Retirei-me contrariado e foi a ultima vez que vi Guilherme vivo. Fui para a Lan House do
Gustavo e fiquei jogando games a tarde inteira. Só sai de lá, transtornado, quando fui informado da
terrível tragédia envolvendo minha mãe e Guilherme. Corri até lá e a policia confirmou o que eu
teimava em não acreditar. Impedido de lhe ver fui levado para o apartamento vizinho onde me
deram um sedativo e dormi a noite inteira.
_Mas, então, como foi que Guilherme apareceu morto no apartamento de sua mãe?
_Não sei em detalhes, mas presumo que após Guilherme conversar com Suzetty, se dirigiu a
minha casa para falar comigo, encontrou apenas minha mãe e confessou a ela toda a verdade.
Imagino o choque que minha mãe tomou, ao saber que era Guilherme que eu amava, e não a
Suzetty, por quem tanto se empenhou para que eu conquistasse. Transtornada, pegou o revolver na
gaveta do armário e matou o homem que eu amava. Maldita seja por não aceitar a minha
preferência sexual e acabar com a minha felicidade. Justamente agora que Suzetty sabia de tudo e
finalmente eu e Guilherme assumiríamos o nosso amor.
Iolanda estava pasma. Afundou-se no sofá sem forças até para respirar. É inacreditável o que
acabou de saber. Queria a verdade, mas nunca imaginou que ela fosse tão incrível. A raiva, o ódio
que sentia por Leonardo, por acreditar que fosse ele o assassino, transformou-se em pena ao vê-lo
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nu em seus sentimentos mais íntimos. Pensou em consolá-lo, mas estava exaurida. As revelações
eram muito pesadas para sustentá-las no ombro.
Não sabe quanto tempo ficou ali, impossibilitada de se mover, como se estivesse sob a ação
de uma força gravitacional que lhe aumentasse o seu peso em dez vezes. A sua mente também ficou
travada, a única coisa em que consegui pensar eram nas revelações de Leonardo. Levantou-se
lentamente, passou por Leonardo que estava com a cabeça afundada entre os joelhos, se dirigiu a
cozinha, apanhou a garrafa de água na geladeira, bebeu um gole longo e despejou o resto da garrafa
sobre sua cabeça. A água gelada esfriou os neurônios em fusão e permitiu que ela processasse todas
as terríveis informações recebidas na ultima hora.
“Helena é inocente, assumiu a culpa para proteger Leonardo. Leonardo também é inocente e
odeia sua mãe por achar que ela matou Guilherme. Ambos são inocentes, e o demonstraram
emocionalmente, claramente. Então, quem matou Guilherme? O assassino, ou melhor, a assassina
só pode ser Suzetty. Inconformada com a perda de Guilherme da forma como o perdeu, foi atrás
dele no apartamento de Helena, esperando encontrá-lo em companhia de Leonardo, premeditando
matá-los. Felizmente para Leonardo somente Guilherme se encontrava no apartamento a sua espera,
sem saber onde ele se achava. Suzetty matou-o e fugiu do local. Helena chegou logo após,
encontrou Guilherme morto e deduziu que fora Leonardo. Apagou os vestígios que pensou fossem
do seu filho, ligou a policia e assumiu a culpa.”.
_Bingo!
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Grande cidade: quimeras

A ordem de despejo chegou. O que será agora de José Pedro e Mariana? Ele, desempregado
há vários meses, faz bicos – quando aparece – mas o que ganha mal dá para a alimentação deles e
do pequeno Ângelo de dois anos. Enquanto esteve empregado, a vida ia bem. Realizaram planos:
alguns móveis novos bem simples; um televisor de 14 polegadas; um fogãozinho de duas bocas;
tudo comprado à prestação.
Os dois, com lágrimas nos olhos, arrumam o pouco que vão levar: apenas roupas de uso
pessoal, poucas peças, tudo que têm. Os móveis e eletro domésticos, comprados com tanto esforço,
ficarão como pagamento pelo aluguel atrasado. Os sonhos... O que farão com eles? Levá-los? Mas
para onde? Deixá-los ali para sempre? Abraçam-se, encorajando um ao outro. Não, os sonhos
ficarão guardados dentro dos seus corações. Os objetos ficam, mas as lembranças vão com eles,
guardadas ao lado dos sonhos.
Antes de saírem, agradecem a casa pelos momentos que passaram ali: alguns bons, outros
ruins, mas todos muito importantes em suas vidas. Ângelo, o primeiro filho deles, nasceu ali, e o
próximo – Mariana está grávida de sete meses – contavam também com isso; porém o destino
traçou outros planos para eles. Fecham a porta e deixam a chave na fechadura, como recomendado
pelo locador. Caminham até o portão e dão a última olhada para a casa. No alto da porta de entrada,
uma placa preconiza: “Deus abençoe este lar.” Quanto tempo se passará, até que tenham outra casa?
Casaram-se no nordeste e vieram para São Paulo ganhar a vida. Lá, o máximo que teriam é o
que os pais têm: nada. Vieram com emprego arrumado; um primo o arrumou. Mas a crise
financeira, cruel como a seca do sertão, chegou e flagelou-os, transformando-os em caminhantes
das veredas de São Paulo.
Vários dias se passam e eles continuam andando pelas ruas a procura de um lugar para ficar.
Procuram o primo, mas este, também desempregado, vendeu o que tinha e voltou para a terra natal.
José Pedro, Mariana e o pequeno Ângelo comem o que lhes dão e dormem ao relento embaixo
de qualquer cobertura, a melhor que se oferecer. Mariana já não pode andar muito, então eles ficam
a maior parte do tempo parados a espera do momento tão desejado e ao mesmo tempo tão temido.
José Pedro já tentou interná-la várias vezes num hospital público, pois lá ela teria um leito para
dormir e refeições regulares. Mas mandaram-na voltar para casa: a hora não havia chegado ainda.
Mal sabiam os médicos que lá seria a casa que ela não tinha. Mas a esperança de tê-la novamente
ainda não morreu.
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Mais uma noite se aproxima e com ela uma tempestade que se anuncia terrível. Relâmpagos
cortam o céu, seguidos de trovões estrondosos. Mariana, segurando a barriga, estremece a cada um
que estoura; o filho, dentro do ventre, pula ao estremecimento da mãe, sentindo o mesmo medo.
José Pedro preocupado com a segurança da mulher e do pequeno Ângelo, procura um lugar para
ficar, que os protejam da sinistra tormenta.
A chuva impiedosa não espera e desaba sobre eles, misturada a granizos do tamanho de um
caroço de feijão, não muito grandes, mas bastante ofensivos. Em pouco tempo eles ficam
encharcados. Ângelo, agarrado ao pescoço do pai, treme que nem vara verde, choramingando
baixinho.
Com muita sorte, eles encontram a carcaça de uma velha Kombi abandonada no meio fio. As
portas laterais foram arrancadas, permitindo-lhes entrarem livremente. Lá dentro está seco,
oferecendo-lhes abrigo e um lugar quente para ficarem. Apenas uns respingos vindos de um vidro
quebrado umedecem uma parte próxima do banco do motorista. A sujeira é geral; fezes antigas
amontoam-se no canto onde caem os respingos; um cheiro forte de urina impregna o local.
Embora o interior da velha Kombi esteja seco, causando-lhes certo prazer, eles estão
molhados da cabeça aos pés, o que é comprometedor, podendo adoecê-los. Mariana e Ângelo
tremem descontroladamente. Ângelo, de tanto bater o queixo, começa a chorar compulsivamente,
de dor e frio. José Pedro tira a camisa, torce-a fortemente, faz o mesmo com as roupas do filho e
cobre-o, abraçando-o junto ao seu corpo. O calor do seu corpo o aquece, fazendo-o dormir em meio
aos soluços.

José Pedro aconselha Mariana a torcer suas roupas também, pois de outra forma elas
demorariam muito para secar. Mariana desnuda-se expondo a enorme barriga; a criança dentro do
ventre está quieta agora, talvez dormindo como seu irmãozinho.
A chuva continua a cair torrencialmente. Porém lá dentro eles estão protegidos da chuva e do
frio. O filho, no colo, está aquecido, dormindo profundamente. Na verdade ele está quente demais.
José Pedro desconfia. Aproxima os lábios de sua testa e confirma: está ardendo em febre,
provavelmente próxima dos 39 graus.
Resolve levá-lo ao hospital. Com febre provavelmente será internado, e por uns dias terá uma
cama para dormir, refeições nutritivas e atendimento médico. Mariana quer ir, mas está indisposta e
o nenê começara a se mexer ininterruptamente. José Pedro aconselha-a a ficar, agora que está seca e
acomodada. Em breve ele retornaria, deixando o filho protegido no hospital.
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Embrulha o filho em um cobertor que ele havia torcido e que estava ainda úmido, e sai
debaixo da chuva. Chega ao hospital novamente encharcado, ele e o filho. No balcão de
atendimento alerta que o filho arde em febre. A atendente, então, ordena-lhe que aguarde no banco
ao lado da enfermaria para medir a temperatura. E lá fica ele, com o filho nos braços, enrolado no
cobertor úmido, por mais de uma hora. Perde a paciência, entra na enfermaria e cobra um
antitérmico para o filho.
_ Pai, tenha paciência. Volte para o banco e aguarde a chamada. Nós estamos cheios de
serviço aqui dentro e não temos tempo para perder com pais malcriados. E se a criança está febril,
deixe-a descoberta para não aumentar a temperatura.
José Pedro deu entrada no pronto socorro do hospital às 20h13min, anotado na ficha, e foi
atendido na enfermaria às 04h00min do dia seguinte, depois de muito reclamar, sendo sempre
rechaçado com estupidez.
_Ângelo da Silva!
José Pedro entra no ambulatório e senta-se no lugar indicado pela enfermeira com o filho no
colo embrulhado no cobertor. A enfermeira coloca o termômetro na axila da criança e observa:
_Essa criança não está com febre.
_Mas estava quando aqui cheguei, ontem – replica José Pedro.
A enfermeira esperou alguns instantes e confere a temperatura.
_Não falei! Ela está levemente febril, não é necessário nem tomar um antitérmico. Viu como
valeu a pena esperar tanto tempo. Aguarde naquele outro banco que o médico já irá atendê-lo.
E lá se vai José Pedro com o filho no colo para outro banco, aguardar outra chamada. Ele está
muito preocupado com a esposa sozinha na carcaça da velha Kombi. “Como será que está ela?
Quem sabe adormeceu e melhorou sua indisposição. Tomara que o médico me atenda logo e me
libere, já que o Ângelo não tem mais febre”.
Na noite anterior, assim que José Pedro saiu para levar o filho para o hospital, Mariana
começou a sentir dores intermitentes que prenunciavam a hora do parto. Desesperada, sem saber a
quem recorrer, e não podendo se ausentar dali, temendo que o marido retornando não a encontrasse,
ficou no interior da Kombi, suportando as dores, segurando o parto, retardando o mais que podia
para dar tempo ao marido chegar.
Não suportando mais, saiu para a calçada debaixo da chuva, rezando para que alguém,
passando por ali, vendo-a, ajudasse-a. Muita gente passou por lá, viam-na, mas ninguém se
prontificou em ajudá-la. Quem sabe, pensavam que se tratava de uma alcoólatra, ou uma
dependente química, ou até um golpe para assalto: cidade grande é assim.
65

Mariana, deitada na calçada, sentia a chuva fria repicar em seu corpo, esfriando-o pouco a
pouco. De repente, por entre suas cochas, um líquido quente começou a escorrer, aquecendo suas
pernas. Por um breve momento sentiu-se reconfortada, mas rapidamente entendeu que a bolsa
d’água havia estourado. Entrou em pânico, faltava pouco para o seu filho nascer. Tentou levantar-
se, mas não conseguiu, faltavam-lhe forças. Abandonou o pesado corpo na calçada e desfaleceu.
José Pedro sentou-se no banco a espera de atendimento médico exatamente às 04h20min e foi
atendido às 06h30min.
_Ângelo da Silva!
José Pedro entra no consultório com o filho nos braços e o coloca, desembrulhando-o do
cobertor, na maca a pedido do médico para melhor examiná-lo.
_O que sente seu filho, pai?
_Ontem, quando aqui cheguei, ele estava com muita febre.
_Ontem?
_Sim. Mas agora, já não está mais. Até está dormindo muito bem. Quem sabe foi apenas uma
friagem por causa da chuva que tomou. O senhor podia me liberar logo, porque a minha mulher está
sozinha (...) em casa. Ela está grávida, sabe, e estava um pouco indisposta quando saí.
O médico examina a criança, olha gravemente para o pai, pega a ficha de atendimento, pede
para ele aguardar ali e sai da sala.
O médico vai direto para a sala da administração, entra nervoso, gritando.
_Quem foi que fez esta cagada? Esta criança deu entrada no PS às 20h13min de ontem
ardendo em febre, conforme seu pai alegou, e só foi atendida por mim às 06h30min de hoje: morta!
Sua temperatura foi medida às 04h da madrugada; portanto, quase oito horas depois que havia
chegado. A enfermeira relatou que, neste momento, a criança já não apresentava um quadro febril,
estando sua temperatura levemente acima do normal. Só que ela não percebeu que a temperatura
baixou porque a criança havia morrido.
Joga a ficha da criança sobre a mesa do administrador e recomenda:
_Tratem de convencer o pai a não prestar queixa, e dêem a ele todo apoio financeiro e
psicológico. Rezem para que a imprensa não fique sabendo. Vou preparar o atestado de óbito: o
menino morreu de pneumonia aguda.
A assistente social recebe José Pedro e lhe comunica a morte do filho. Culpa-lhe por demorar
muito para trazer o filho ao hospital. Mas, se compromete a arcar com todos os ônus e
procedimentos burocráticos para que seu filho seja enterrado dignamente.
66

José Pedro sai de lá amargurado com o peso da culpa curvando a sua corcunda. O quê ele ia
dizer a Mariana? Como dizer a ela que o seu Angelinho, o seu hominho, o seu anjinho, o orgulho da
mamãe, morreu? E ele não foi capaz de socorrê-lo: dormiu enquanto o filho morria em seus braços.
Sentia-se um desgraçado, um inútil, incapaz de arrumar um emprego e garantir a segurança de sua
família. Ele é quem devia morrer que não serve para nada.
Decide arrumar dinheiro. “Como?”. O roubaria, pensou, o suficiente para levar Mariana de
volta para seus pais. Depois, com a desculpa de voltar sozinho para São Paulo os deixaria na casa
do sogro, invadiria as terras do prefeito da cidade, amarraria uma pedra no corpo e se afogaria na
cacimba da propriedade. Quando descobrissem seu corpo putrefato, este já teria contaminado a água
que o desgraçado sempre negou para o povo sedento. Punir-se-ia e se vingaria do maldito coronel,
político corrupto, que abocanhou toda a riqueza da região, obrigando os jovens, que sonham com
uma vida melhor, migrarem para as grandes cidades, ou então, se submeterem ao seu desmando,
como fez os seus pais.
A sua frente um carro importado estaciona no meio fio. Um senhor distinto desce, aciona a
trava elétrica do carro e se afasta lentamente de costas para ele. José Pedro apanha um pedaço de
cano de água abandonado na calçada e segue-o sorrateiramente. O dia está nublado, cinzento. A rua
estreita, bastante arborizada, escura, está deserta, propícia para atos obscuros. José Pedro, em transe,
acerta a cabeça do pobre homem violentamente. O velho senhor cai desfalecido, sangrando
abundantemente do corte que o golpe causou. José Pedro apodera-se de sua carteira e sai em
desabalada carreira, alucinado, deixando a arma do crime no local. Só pára perto da velha Kombi;
retira todo o dinheiro da carteira e joga-a no jardim de uma casa.
_Dá e sobra para levar Mariana para a casa de seus pais, calcula. O que restar, o que não é
pouco, ela usaria para sustentar-se e ao seu filho, que logo nasceria. Em breve encontraria outro
homem - bonita que é - capaz de sustentá-la e ao seu filho. Então ela seria feliz, o que ele não foi
homem bastante para fazer. Enfia o maço de notas no bolso e se afasta desconfiado, olhando para os
lados. Aquele maço de notas em seu bolso do lado direito da calça parece pesar uma tonelada,
fazendo-o arcar-se para este lado. O volume enorme o denuncia. Coloca a mão na frente, mas este
gesto o torna suspeito. Empurra o fundo do bolso para trás, mas este, promulgador, retorna para
frente cada vez maior, acusando-o.
Teve vontade de se livrar daquele dinheiro impuro. Mas isso não o livraria do crime que
cometeu. Melhor aproveitar as vantagens daquele ato tresloucado, porque as desvantagens viriam
em futuro próximo, com certeza. Mas, então, ele já não estaria aqui para apenar. Pagaria em outro
mundo, e lá a pena será bem pior que a julgada pelos homens, ele bem sabe.
67

Quando José Pedro chega à carcaça da Kombi, Mariana não está lá. Procura-a ao redor com
os olhos e não a vê. Não consegue imaginar onde ela pode estar. Sua cabeça está fervilhando, está
confuso, zonzo, com ânsia de vômito. Há mais de vinte horas que não come nem bebe nada, apenas
as gotas de chuva. Mas não está com fome. Sente asco de si mesmo, da vida, de tudo.
De repente, ouve alguém chamar-lhe pelo nome.
_Senhor José Pedro?
_Minha mulher? Você sabe onde ela está?
_Não se preocupe, ela está bem. Nós a recolhemos ontem á noite. Dr. Theo, ginecologista,
meu patrão, se apiedou dela e pediu-me que a levasse para sua casa. Eu sou seu motorista particular
há mais de 20 anos. Ele é um santo homem.
_Ontem á noite, passando por esta rua, nós avistamos sua mulher deitada na calçada debaixo
da chuva torrencial que caía na cidade. Dr. Theo ordenou- me que parasse, e, examinando-a ali
mesmo na calçada, descobriu que ela estava entrando em trabalho de parto. Imediatamente a
recolhemos para dentro da velha Kombi e o parto foi feito ali mesmo, contando com os poucos
acessórios que o Dr. Theo leva consigo. O parto foi trabalhoso, pois não era apenas uma criança,
eram duas: um menino e uma menina. Felizmente tudo correu bem.
_Meus parabéns! Seus gêmeos são lindos e perfeitos, e gozam de boa saúde.
_Ah, e tem mais. A casa do Dr. Theo é enorme, uma mansão, e está sem caseiro. O antigo,
que prestava serviços gerais, além de jardinagem, morreu, e sua esposa resolveu voltar para a terra
natal. Então, o Dr. Theo ofereceu ao senhor e a sua mulher a vaga; caso vocês aceitem. Mas é claro
que vocês vão aceitar, não é? Ninguém recusa uma oferta dessas. Uma casa no fundo da
propriedade com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, um emprego e um bom salário: a gente só
encontra uma vez na vida e outra na morte.
_Meu amigo, você é um sujeito de sorte.
_E o seu filho? Como está? A sua mulher nos disse que ele estava doentinho.
_Morreu...
_Oh! O senhor me desculpe, eu não sabia. Meus pêsames.
_Ah, senhor José Pedro, é assim mesmo. A Vida não é justa, e a Morte é cega. Mas, aos
mansos, quando Deus fecha uma porta, abre uma janela.
68

ARMAGEDDON

Deus, quando criou o ser humano, o fez hermafrodita, que geraria outros semelhantes para
povoar o mundo que acabara de criar, o verdadeiro paraíso. Mas Deus arrependeu-se desta forma de
multiplicação dos seres humanos achou-a lenta na evolução e geraria descendentes de baixa
qualidade. Teve, então, a formidável ideia do casal, macho e fêmea. Ao se cruzarem, gerariam um
terceiro indivíduo, macho ou fêmea, que herdaria a metade das características de cada um,
garantindo assim uma rápida evolução e da mais alta qualidade. E assim se fez...
Deus então criou a mulher, para completar o casal. Não a fez do pó porque este não tem
amálgama para esculpir-lhe o ventre; amalgamou-a do ouro, da prata e do diamante. Mas a criatura
hermafrodita não a quis. Não queria uma companheira que se intrometesse em sua vida e lhe
gerasse descendentes com quem teria que dividir as dádivas do paraíso e a atenção divina.
Egocêntrico, reivindicava o paraíso todo para si.
Então, do útero da mulher, Deus fez o homem; e logo eles se aceitaram.
E a grande maioria dos seres vivos criados para coabitar o mundo, seguiu o mesmo modelo:
macho e fêmea.
Porém, a criatura hermafrodita não foi exterminada. Deixou-a Deus, propositalmente, para
conviver com o homem e a mulher por tempo infinito e concedeu a todos o livre arbítrio.
A criatura hermafrodita recebeu o nome de Satã, e o homem e a mulher, Adão e Eva
respectivamente.
Enquanto Satã vivia solitário, Adão e Eva caminhavam sempre juntos, abraçados, trocando
carícias e esbanjando felicidade.
Satã, com inveja, mostrou-se rancoroso e maléfico. Aproximou-se do casal demonstrando
superioridade e ofereceu-lhes, sem que lhe pedissem, conselhos que lhe abririam os olhos contra
Deus.
_Deus quando me criou, relatou Satã, o fez a sua imagem, cem por cento, tão perfeito quanto
Ele. Só então, percebeu a Sua falha: criara alguém para competir com Si próprio. Porém não podia
voltar atrás: criou, então, vocês, homem e mulher, para ficar entre mim e Ele. Criou-os seres
incompletos, que somente juntos se completam e, assim, prontos para a procriação. Mas as suas
crias serão metade de cada um de vós, portanto continuarão sendo metade, e passarão a vida inteira
procurando a sua outra metade. Deus os ludibriou, dividiu-os ao meio para controlá-los para
sempre. Dando força ao homem, e, à mulher, frágil, a responsabilidade de gerar o filho em seu
ventre, determinou assim que ele seria o dominador. Você, mulher, será sempre submissa ao
69

homem; fará tudo o que ele mandar e será usada até que não mais a queira e a abandone, trocando-a
por outra. Você, homem, não confiará na mulher, pois se sentindo preterida, ela o trairá.
Satã instilou seu veneno no coração de cada um. O homem e a mulher viam-se agora com
outros olhos. Adão olhava Eva com jactância. Eva, que sempre apreciou os músculos de Adão como
símbolo de beleza, os olhava agora com receio, temia que ele, consciente da sua força, se impusesse
contra ela, submetendo-a.
Satã fez a jogada final, o xeque-mate. Dividindo-os no amor, os faria cúmplices na traição a
Deus. Incutiu-lhes que provando do sangue de um animal, teriam os mesmos poderes que ele e
Deus.
Adão e Eva, longe de Deus, mataram uma ovelha e fartaram-se de sua carne sangrenta,
achando-a saborosa e substante.
Deus, onisciente e onipresente, chamou Adão e Eva a sua presença.
_Homem e mulher, quê fizestes, que se apresentam a Mim de cabeças baixas? Por que
escondem os sexos? De que sentem vergonha? Ouvistes a voz de Satã, se fazendo ignorantes aos
verbos divinos; por isso, perderão o privilégio de falar a Mim diretamente; comunicar-nos-emos,
daqui para sempre, através de sinais. Sobreviverão através do trabalho; sentirão fome, frio e sede;
serão acometidos de doenças que os farão sofrer de dor e medo. Vós, mulher, gerará seu filho
através da dor. Viverão até a velhice, cientes da morte, mistério permanente, só revelado após a vida
terrena.
Satã afastou-os de Deus como pretendia; agora teria que separá-los um do outro para que não
gerem descendentes. E então, velhos, morreriam e deixariam o paraíso... E, assim, seria só ele e
Deus.
Mas, a atração sexual entre o macho e a fêmea, Deus a fez muito forte, e Adão e Eva geraram
muitos descendentes.
Satã, vendo-se agora frente a uma multidão de seres humanos que cresce desordenadamente,
utiliza-se de todos seus recursos para dizimá-los: ódio, ira, desconfiança, inveja, gula, cobiça,
egoísmo, avareza. Os humanos, possuídos por estes sentimentos negativos, travam guerras ente si
para disputas de coisas materiais; homem e mulher traem-se, atraídos pelo próximo; a mulher
prostitui-se, percebendo o valor da atração sexual que exerce sobre o homem; as guerras, as drogas
e a libertinagem provocam pestes e doenças; o homem e a mulher são induzidos ao
homossexualismo, e os religiosos à castidade: tudo isso com o intuito de exterminar a raça humana
e reinar absoluto no paraíso.
Mas, apesar da intervenção satânica, a espécie humana cresce em uma progressão geométrica.
Então, Satã percebe que a proliferação dos seres humanos, que tentou impedir desde o início
dos tempos, será justamente a razão do seu extermínio. A produção de alimentos e a quantidade de
70

água potável são limitadas no paraíso; os humanos crescendo desta forma insólita e predatória, em
breve ocuparão todos os recantos do paraíso, e faltará alimento, água e espaço para todos:
matemática de Malthus. Os seres humanos morrerão de inanição e vitimas de combates pela disputa
das condições vitais de sobrevivência, de moléstias, epidemias e pestes; guerras apocalípticas
extinguirão nações; bombas nucleares desertificarão a terra e poluirão o ar; os humanos restantes se
canibalizarão, até que o último caia por terra e seja comido, naturalmente, pelos vermes: o inferno
de Dante.
Mesmo assim, Satã continua a instilar sentimentos negativos na humanidade para que ela
permaneça se digladiando e não perceba o fim próximo: o Armageddon.

Passaram-se mil anos.

Satã, sem os humanos, morreu de ócio e tédio.

O paraíso, sem os humanos, restaurou-se; as matas exuberantes vicejam por toda terra; as
águas são novamente puras e cristalinas; o ar suave e leve envolve todos os espaços; de cada
espécie há pelo menos um casal.
Só não há a espécie humana, nem resquício de que havia existido; suas obras se
desintegraram: do pó vieram e para o pó voltaram; ímpios não houve que merecessem a vida eterna.
Estava Deus em dúvida se a recriava. Quando a criou, em pouco tempo se multiplicou de uma
forma astronômica; adulterou as condições climáticas; manipulou as propriedades físico-químicas e
biológicas ao seu bel prazer; extinguiu as demais espécies e por fim se autodestruiu, vítima do
próprio cataclismo que causou.

Mais mil anos se passam e está Deus ainda em dúvida se recria a espécie humana ou não.

O paraíso se mantém harmônico e formoso; porém, na visão de Deus falta uma coisa para que
ele seja perfeito: a espécie humana. Ele simpatiza com a raça humana: é a mais elaborada das suas
criaturas, a mais cognitiva, mas também a única rebelde.

Vê como uma das alternativas para recriá-la - sem causar os problemas que a dizimou - não
lhe permitir o livre arbítrio. Mas o ser humano sem o livre arbítrio é o mesmo que as ondas
luminosas sem luz; que o fanatismo religioso; seria nivelá-los aos seres irracionais; condicioná-los;
e isso, Deus não quer.
71

Mil vezes mil anos se passam e Deus permanece em dúvida. O paraíso continuava fantástico,
harmônico, quase perfeito...

Se você, leitor, fosse Deus, como recriaria a espécie humana?


72

Carlos Alberto Affonso – 06/09/1948


Nascido na cidade de São Paulo, bairro de Campos Elíseos.
e-mail: carlinhosaffonso@hotmail.com
Formado em Ciências Físicas e Biológicas.
Contista por afinidade; tendo contos, crônicas, poesias, artigos e letras de música, publicados
no site “Recanto das Letras”.
Contos publicados em livros:
_ “O bêbado” e “Armagedon” coletânea de contos “Ponte dos sonhos 1”
_ “Vinhoto” e “Brumas” coletânea de autores selecionados “Brasil: mais que um país, uma
inspiração”.
E-book PUBLIQUESE:
O cãozinho guloso
O menino e a abelha
Este livro foi distribuído cortesia de:

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