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MUNDO E DESENVOLVIMENTO

Revista do Instituto de Estudos Economicos e Internacionais

Populista “pero no mucho”: o populismo e Donald


Trump
Populist "pero no mucho": populism and Donald Trump

Populista "pero no mucho": el populismo y Donald Trump

Roberto Moll Neto


Professor de História da América da Resumo: Populista. Este é o adjetivo
Universidade Federal Fluminense que jornalistas e analistas políticos
(UFF). de todo mundo, principalmente da
E-mail: roberto.moll@gmail.com América Latina e dos Estados Unidos,
escolheram para caracterizar Donald
Trump, desde que lançou a pré
candidatura a presidência dos
Estados Unidos, em 2015. Este artigo
busca responder a seguinte pergunta:
Donald Trump é mesmo um político
populista? Para isso, inicialmente,
procura compreender o debate acerca
do conceito do populismo na América
Latina e nos Estados Unidos, sem
pretender encerrar, mapear ou
esgotar todo arcabouço
epistemológico, mas apenas ressaltar
linhas gerais importantes a fim de
evidenciar as diferenças em relação a
utilização do termo nesses lugares.
Em seguida, apresenta o debate
sobre o populismo de Donald Trump,
recorrendo a análise crítica de artigos
jornalísticos e acadêmicos. Por fim, e
mais importante, faz um estudo
analítico sobre as propostas e os
discursos de Donald Trump, com o
objetivo de avaliar elementos
populistas e não populistas. Como
resultado, compreende que Donald
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Trump não está inserido na tradição todo mundo, principalmente da


populista latino americana e tão
América Latina e dos Estados Unidos,
pouco pode ser colocado na tradição
populista estadunidense, muito escolheram para caracterizar Donald
embora articule elementos
Trump, desde que lançou a pré -
característicos do populismo em suas
propostas e seus discursos. candidatura a presidência dos
Estados Unidos, em 2015. Mas,
Palavras-Chave: Populismo. Donald
Trump. América Latina. Trump é mesmo um populista como
Getúlio Vargas, Juan Domingos
Abstract: Populist. This is how
journalists and political analysts from Perón ou Lázaro Cárdenas? Ou é um
around the world, especially from
populista com características típicas
Latin America and the United States,
portraits Donald Trump since he dos Estados Unidos? Aliás, Trump é
announced his campaign for
mesmo um populista? A fim de
presidency in 2015. This paper seeks
to answer the following question: Is responder essas perguntas, nas
Donald Trump really a populist? To
próximas páginas, este artigo
answer this question, this paper will
explore the concept of populism in investigará o retrato de Trump como
Latin America and the United States
populista. Antes de mais nada, este
to highlight differences and
similarities in these places. Then it artigo buscará compreender o debate
will investigate Donald Trump's
acerca do conceito do populismo na
populism, using a critical analysis of
journalistic and scholarly articles. América Latina e nos Estados Unidos,
Finally, and more importantly, this
sublinhando similitudes e diferenças.
paper will analyze the proposals and
speeches of Donald Trump to Todavia, vale ressalvar que não
evaluate populist and non-populist
pretende encerrar, mapear ou esgotar
elements. As a result, this paper
concludes that Donald Trump does todo arcabouço epistemológico acerca
not fits on the Latin American and
do debate sobre o populismo. Mas,
American populist traditions, even
though he articulates discursive apenas ressaltar linhas gerais
elements of populism in his proposals
importantes para evidenciar as
and speeches.
diferenças em relação a utilização do
Keywords: Populism. Donald Trump.
termo na América Latina e nos
Latin America.
Estados Unidos e, sobretudo, em
relação a Donald Trump. Em seguida,
1. Introdução
este artigo apresentará alguns
Populista é o adjetivo que
retratos do Trump populista, em
jornalistas e analistas políticos de
artigos de acadêmicos e politicólogos
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revelados na imprensa Estado com capacidade de planejar,


estadunidense. Por fim, analisará as organizar e dirigir o desenvolvimento
propostas e discursos de Trump, econômico e social e de intervir nos
confrontando com os principais conflitos sociais” (FERRERAS, 2011,
estudos sobre o populismo e com os p. 215).
retratos apresentados. As análises ortodoxas sobre o
populismo como um fenômeno
2. O populismo na América
específico da América Latina em seu
Latina e nos Estados Unidos:
interpretações clássicas período mais aparente seguem três
linhas interpretativas: A) um
Em perspectiva histórica sobre
momento de transição entre a
o populismo na América Latina,
sociedade tradicional e a sociedade
Maria Moira Mackinnon e Mario
moderna; B) um estágio de
Alberto Petrone (1999) afirmam o
desenvolvimento do capitalismo
termo é frequentemente utilizado
latino-americano no momento de
para caracterizar governos que
superação da economia agro-
estimulam o processo de
exportadora e do Estado oligárquico;
industrialização com fins políticos
C) um fenômeno específico da
através de políticas públicas e/ou
correlação de forças local, social,
assistencialistas e medidas de
econômica e política (MACKINNON;
intervenção na economia, como
PETRONE, 1999).
subsídios, protecionismo e
Na primeira linha, Gino
regulações. Como desdobramento, o
Germani sustenta que o populismo é
termo também aparece como negação
reflexo da coexistência entre
da democracia representativa, como
elementos que pertecem a sociedade
sinônimo de demagogia, relações
tradicional e a sociedade industrial. A
clientelistas e manipulação das
aceleração da industrialização e da
massas (MACKINNON; PETRONE,
urbanização na década de 1930 teria
1999). Como lembra Norberto
impulsionado uma abrupta
Ferreras, na América Latina, o
participação política das massas, que
populismo conceitua um fenômeno
excedeu os canais institucionais e os
que se tornou mais aparente na
limites da própria democracia. Essas
década de 1930, “quando surgiram
massas são, de acordo com a
teses favoráveis a construção de um
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interpretação de Germani, um estágio de desenvolvimento do


ineficientes politicamente, mas vistas capitalismo latino-americano no
como explosivas. Por outro lado, as momento de superação da economia
elites industriais e tradicionais agroexportadora e do Estado
também são incapazes de conduzir o oligárquico surge na década de 1960,
mundo político. Deste contexto, a partir da crescente influência da
emerge uma figura carismática, que teoria da dependência e do marxismo.
junto com as elites, consegue cooptar De caráter histórico estrutural, está
e manipular as massas populares análise retira a ênfase na relação
através de vínculos diretos, entre tradicional e moderno a fim de
reordenando o sistema na direção de priorizar as condições históricas que
um sistema capitalista controlado. possibilitaram a coalizão populista.
Assim, os movimentos nacionais- Miguel Murmis e Juan Carlos
populares, populistas, se apresentam Portantiero analisam o populismo
como uma forma de intervenção das como resultado do processo de
elites tradicionais e industriais em substituição de importações, que
um processo acelerado de fragmentou as classes dominantes e
mobilização popular. (MACKINON; intensificou as contradições entre os
PETRONE, 1998). Com enfoque projetos urbano industrial e rural
similar, Torquato Di Tella resume: o oligárquico. Desse modo, a burguesia
populismo é um movimento político urbano industrial precisou buscar
com forte apoio popular e suas fontes apoio e estabelecer alianças com os
de força são elites de níveis médios e trabalhadores. Para isso, atribuiu um
altos, que buscam defender seu caráter nacional e popular e elencou
status quo; uma massa mobilizada, um líder personalista ao projeto
que aspira melhorias no quadro de burguês desenvolvimentista,
transição da sociedade tradicional formando um bloco histórico para dar
para sociedade industrial; e uma o golpe final na hegemonia da velha
estratégia comunicativa que favorece oligarquia (MACKINON; PETRONE,
a comunicação entre líderes e 1998). Nesta perspectiva, Otávio
seguidores e anima o coletivo Ianni (1977) aponta que o populismo
(MACKINON; PETRONE, 1998). é fruto da conformação do mercado
A análise do populismo como de trabalho capitalista e,
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consequentemente, das relações de capitalismo liberal após a Primeira


produção de tipo capitalista Guerra Mundial animaram projetos
avançado, em que as massas de políticos anti-liberais na América
trabalhadores abandonam esquemas Latina, que defendiam um Estado
sócio-culturais gestados durante o fortemente e intervencionista com
período oligárquico e, vistas a promover a ordem capitalista
gradativamente, adotam valores e o progresso. Na América Latina, os
urbano-industriais. Desse modo, o projetos anti-liberais buscaram
populismo se configura em duas incluir as massas populares a fim de
vertentes: A) o populismo das elites evitar a revolução popular. Para isso,
burguesas, que adotam estratégias elencaram líderes carismáticos e
para dirimir o conflito social, populares e promoveram legislações a
cooptando os trabalhadores por meio fim de mediar os conflitos sociais
de subterfúgios objetivos e subjetivos (CAPELATO, 2001). Vale ressaltar
neste novo contexto urbano- que nessa perspectiva, o Estado
industrial; B) o populismo das populista não se apresenta como
massas, expresso nas demandas enganador ou manipulador, mas
populares dos próprios trabalhadores como instituição capaz de construir
neste período histórico. Essas duas apoio e legitimidade em um momento
vertentes se combinavam na relação de instabilidade política. E, ainda que
entre capital e trabalho permitindo o as massas participassem da política
populismo (IANNI, 1977, p. 88; nacional de forma subordinada,
MACKINON; PETRONE, 1998). tutelada e controlada, não significa
Por fim, na década de 1980, as que tenham sido manipuladas ou
análises revisionistas acerca do enganadas.
fenômeno populista colocaram xeque Para Ângela de Castro Gomes,
a passividade dos trabalhadores e o populismo se estabelece como um
buscaram explicar o fenômeno “pacto trabalhista”, em que os
populista levando em conta as direitos e benefícios materiais foram
nuances da correlação de forças recebidos e interpretados pela classe
local, social, econômica e política. trabalhadora, que os apreenderá e os
Para Maria Helena Capelato, a manejará de acordo com suas
Revolução Russa e a crise do próprias realidades objetivas e
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subjetivas. Neste sentido, o discurso estado do Kansas utilizaram o termo


e a ação do Estado e o discurso e a populismo pela primeira vez a fim de
ação dos trabalhadores estão adjetivar o movimento social que
integrados de forma instável e exigem surgiu no último terço do século XIX.
constantes reconstruções (GOMES, Este era um momento de rápido
2001, p. 48). Em grande medida, esse aumento da produtividade industrial
pacto entre Estado e massas e agrícola combinado com uma crise
populares foi sacramentado na econômica global e marcado pelo
constituição e na legislação crescimento da imigração e pela
trabalhista e esteve permeado pela ausência de políticas governamentais
repressão violenta sobre aqueles que pudessem mitigar os grandes
considerados elementos radicais. Mas débitos dos agricultores e as
mesmo que os projetos anti-liberais péssimas condições de vida e
tenham encontraram problemas e trabalho dos trabalhadores urbanos,
soluções semelhantes em diferentes que enfrentavam sérios cortes nos
países da região, as especificidades salários e oposição violenta aos
das relações entre as elites e as sindicatos. Neste quadro, pequenos
massas dificultam aproximações, que agricultores e trabalhadores urbanos
agrupam diferentes personagens e se aliaram, sobretudo no sul e no
movimentos em um mesmo conceito meio oeste, a fim de construir um
homogeneizador. Desse modo, movimento, agora chamado de
algumas análises, inclusive, optaram populista, a fim de exigir tratamento
por adjetivar ou substituir o termo equitativo no mercado de bens e
populismo por trabalhismo para trabalho, cada vez mais dominado
explicar os fenômenos populistas na por grandes industriais, grandes
América Latina. proprietários e bancos. Para isso,
Em certa medida, nos Estados propuseram a nacionalização das
Unidos, o populismo também está ferrovias, um sistema cooperativo de
associado a um momento específico produção, um sistema de taxação
do desenvolvimento econômico e progressivo e medidas legais para
industrial do país que marcou a garantir o poder dos grandes
transição do centro do capitalismo do sindicatos e mitigar a formação dos
campo para a cidade. Os jornais do trustes e os monopólios.
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Em 1930, Vernon Louis caráter aristocrático da constituição e


Parrington, na introdução do livro do governo dos Estados Unidos não
The Growth and Decadence of teriam aniquilado o espírito
Constitutional Government de James democrático. Ao contrário, as revoltas
Allen Smith, afirmou que a populares com vistas a devolver o
característica fundamental da governo ao povo seriam o motor da
tradição populista radical história estadunidense e estariam
estadunidense era a desconfiança particularmente visíveis no
sobre o governo e instituições jeffersonianismo, no jacksonianismo,
centralizadas. Banqueiros, no populismo, no progressivismo e
especuladores e grandes proprietários até mesmo no novo liberalismo da
só teriam ficado ricos porque década de 1930. Neste sentido, o
conseguiram a proteção e o suporte movimento populista no final do
dos governos através de subornos e século XIX, seria uma reedição do
contribuições para campanhas. De embate entre grandes proprietários e
acordo com o autor, as disputas em financistas aristocráticos e
torno da elaboração da constituição agricultores democratas. Os
dos Estados Unidos revelaram uma populistas teriam tentado recapturar
“amarga luta de classes” entre o sentido revolucionário da revolução
grandes proprietários e financistas estadunidense, enfatizando o papel
aristocráticos de um lado e do povo através das organizações
agricultores democratas de outro locais. Os governos centralizados
lado. No fim, segundo Parrington, deveriam ser substituídos pela
com a exclusão da Carta de Direitos, soberania popular, que garantiria
a “Bill of Rights”, que tinha um viés direitos individuais e universais
social e democrático, a constituição inalienáveis, sobretudo, o direito de
representou a vitória dos interesses rebelião do povo contra o próprio
aristocráticos contra a democracia. governo, seja ele qual for
Portanto, o governo sacramentado na (PARRINGTON, 1930).
constituição seria inexoravelmente Contemporâneo de Parrington,
aristocrático. (PARRINGTON, 1930). o historiador Charles Beard (1960)
No entanto, a morte da Carta questionou a relação entre a
de Direitos e a consolidação do constituição dos Estados Unidos, a
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falta de democracia e o populismo. embate idealista entre classes


Para Beard, o problema da falta de estáticas que defenderam a
democracia nos Estados Unidos não aristocracia e a democracia. Era
estava na constituição do país, mas resultado da luta de classes derivada
na distribuição de riquezas. Para o das relações de produção no
historiador, gerações e gerações de desenvolvimento do capitalismo
estadunidenses interpretaram e estadunidense. Como consequência,
modificaram a Constituição dos as propostas populistas não
Estados Unidos exercendo seus respondiam a questões idealistas,
poderes políticos, que eram resultado mas as próprias questões materiais.
da luta de classes. Neste sentido, o Em suma, Beard viu o populismo
movimento populista estava como a luta daqueles que produzem
preocupado com questões objetivas contra aqueles que se apropriam das
da luta de classes, sobretudo na riquezas produzidas e
relação entre a produção no campo e consequentemente do poder político
na cidade, e seus reflexos na no processo de industrialização dos
distribuição de poder. Segundo Estados Unidos. Assim, a análise de
Beard, os populistas compreendiam Beard guarda algumas semelhanças
que o fruto do trabalho de muitos com as análises do populismo na
estava sendo roubado para construir América Latina, que inserem o
a riqueza de poucos capitalista, que fenômeno no contexto de
consequentemente controlavam a desenvolvimento do capitalismo.
imprensa e, sobretudo, a Todavia, tal e qual Parrington e Smith
concentravam ainda mais terras, e diferente das análises da América
poder e capital. Diante disso, Beard Latina, Beard reforça o populismo
nota que a plataforma populista era como um movimento de oposição
radical, incluindo imposto de renda radical a aristocracia e, por
progressivos; estatização de bancos, conseguinte, ao governo e as
ferrovias e telégrafos; e eleição instituições centralizadas.
popular dos senadores (BEARD, Richard Hofstadter, no clássico
1960). The Age of Reform (1955), não nega a
Diferente de Parrington, para importância da economia na
Beard, o populismo não é fruto de um conformação do populismo
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estadunidense. Entretanto, para ao nativismo e ao anti-semitismo


Hofstadter, o populismo é uma (HOFSTADTER, 1955).
reação social e psicológica defensiva, Na década de 1970, surgiram
que emerge da percepção negativa novas interpretações sintéticas sobre
dos proprietários rurais acerca do o populismo estadunidense.
novo mundo comercial, industrial e Lawrence Goodwyn (1978) analisou o
multinacional nos Estados Unidos na populismo como um movimento
segunda metade do século XIX. democrático, voltado para promover
Portanto, em Hofstadter, o populismo alternativas locais para combater as
emerge desse embate entre a tendências centralistas do
percepção do declínio da importância capitalismo urbano industrial. Nesta
do mundo rural e a nova realidade perspectiva, o populismo não estava
urbano-industrial. Por um lado, se baseado no ressentimento e não era
configura como visão de mundo em expressão de uma percepção
que o povo busca assegurar apocalíptica da vida rural, mas um
protagonismo contra as novas elites esforço construtivo das pequenas
industriais e agro industriais comunidades rurais para estabelecer
superpoderosas, que, supostamente, instituições e valores alternativos a
abusam do capital financeiro para fim de garantir sua própria existência
subverter a democracia. E, por outro diante do capitalismo urbano
lado, como uma visão de mundo que industrial (GOODWYN, 1978).
busca garantir a conservação da Segundo Brinkley (1998) Goodwyn
posição social e cultural diante dos acreditava que o populismo teria sido
imigrantes que chegam, a última chance de construir uma
principalmente, do Leste e do Centro alternativa democrática ao moderno
da Europa para reforçar esse mundo capitalismo oligárquico
industrial como operários. Em outras estadunidense. De forma geral, essa
palavras, o povo ganha protagonismo interpretação do populismo
como grande salvador da democracia estadunidense reconheceu que o
das pequenas comunidades contra processo de modernização ampliou a
golpes e maquinações das elites exploração e os prejuízos de parcelas
industriais e das novas elites rurais, significativas da população,
muitas vezes apelando á xenofobia, sobretudo no campo. Para estes, o
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crescimento do mundo urbano características anti-revolucionárias,


industrial não foi apenas traumático embora transformadoras e, em
psicologicamente e não se tratou alguns aspectos, progressistas. Nos
apenas de defesa de uma posição Estados Unidos, o movimento
social diante de uma perspectiva populista surgiu como polo
pessimista. O que estava em disputa antagônico ao processo de
era a viabilidade social e econômica industrialização acelerada. O projeto
da vida como conheciam. Em outras populista clássico estadunidense
palavras, o populismo estadunidense girava em torno da garantia de
não era apenas expressão de direitos universais e individuais que,
preocupações psíquicas ou supostamente, estariam em risco com
simbólicas, mas também de o desenvolvimento centralizado e
interesses objetivos (BRINKLEY, acelerado do capitalismo e das
1998, p. 138-139). instituições. Disto decorre, que a
De modo geral, a diferença pedra fundamental do projeto
mais nítida entre o populismo populista clássico estadunidense
clássico na América Latina e nos seria a descentralização do poder e da
Estados Unidos está nas relações economia em favor das organizações
entre a sociedade civil e a sociedade locais e governos populares. Portanto,
política no processo de assume características radicais e,
industrialização. Na América Latina, inclusive, reivindica uma revolução
o ideário e as experiências do estadunidense inacabada, resgatando
populismo clássico impulsionaram um ideal popular da independência
projetos de desenvolvimento dos Estados Unidos. Em comum, as
industrial nacional, que, análises clássicas do populismo na
supostamente, mitigaria as América Latina e nos Estados Unidos
contradições inerentes àquela fase do inserem o fenômeno em um momento
capitalismo. Para isso, a de desenvolvimento de transição do
centralização do governo em uma capitalismo agrícola para o
figura popular seria um elemento capitalismo industrial e neste
fundamental. Neste sentido, o contexto se apresentam como
populismo na América Latina em seu antagônicos ao liberalismo
período clássico teria assumido econômico.
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Anna, que governou o México por


diversos períodos breves entre 1833 e
3. Retratos de um Donald Trump 1847. De acordo com Encarnacíon,
populista: as propostas
ambos governaram seus países com a
Em maio de 2016, o historiador força de sua personalidade. Segundo,
Omar Encarnación publicou, na o autor comparou Trump ao ditador
revista Foreign Affairs latino Rafael Trujillo, que governou a
americana, um artigo com o título República Dominicana entre 1930 e
“American Caudillo: Trump and the 1961. Para Encarnación, Trujillo
Latin-Americanization of U.S. governou a Republica Dominicana de
Politics”. Segundo Encarnación, a forma despótica e com um discurso
eleição de Donald Trump seria mais racista, narcisista e machista.
um indício de que política Terceiro, comparou Trump a Juan
estadunidense estaria em processo de Domingo Perón, que governou a
latino-americanização. Nas palavras Argentina por duas vezes entre 1946
de Encarnación: e 1955 e 1973 e 1974. Perón teria
governado a Argentina com um
Tem sido fascinante observar a
gradual e certa latino- pronunciado nacionalismo-populista,
americanização do político dos marcado pelo uso de “uma retórica
Estados Unidos. O sinal mais
recente e mais convincente é a que cria uma íntima conexão com a
ascensão do candidato republicano
classe operária enquanto tenta
Donald J. Trump, cujo
fanfarronismo, demagogia e desdém implantar um programa econômico
pelo domínio da lei o colocam
diretamente na tradição do para alcançar o potencial de grandeza
Caudilho, um esteio da política
da Argentina”, reprimindo a imprensa
latino americana (ENCARNACIÓN,
2016, sem paginação). e a oposição (ENCARNACIÓN, 2016).

Encarnación comparou Trump Por fim, Encarnación comparou

com políticos que governaram a Trump a, supostos caudilhos

América Latina em quatro momentos herdeiros da tradição populista,

distintos. Primeiro, comparou Trump Carlos Menem, Hugo Chavez, Nicolás

a Juan Manuel Rosas, que governou Maduro e Rafael Correa, que, como

a província de Buenos Aires por duas Perón, buscaram manter uma

vezes entre 1829-1832 e 1835 e fachada democrática enquanto

1852, e Antonio López de Santa subverteram direitos civis e


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liberdades políticas. Para autoritarismo, racismo, narcisismo e


Encarnación, de forma geral, Trump machismo não caracterizam o
e todos esses “caudilhos” populistas populismo e a política latino
souberam explorar a raiva diante do americana, ainda que sejam
empobrecimento e o papel de características de políticos como
forasteiro do mundo político capaz de Rosas e Trump.
substituir um sistema falido por uma Ademais, ao sustentar que há
nova realidade, que funcionaria bem uma latino-americanização da
para todos, especialmente para os política estadunidense, Encarnación
mais pobres. Na América Latina, atribuiu todas as características
segundo o autor, caudilhismo negativas da realidade política nos
populista teria deixado um legado de Estados Unidos, e especificamente de
violência, atraso econômico e Donald Trump, a uma tradição
autoritarismo. Os Estados Unidos de exterior. Em outras palavras, os
Trump estariam no mesmo caminho, Estados Unidos, naturalmente,
prestes a cruzar “a linha do que uma seriam o lócus de uma política
sociedade civilizada deve tolerar” positiva, o lugar do excepcional, sem
(ENCARNACIÓN, 2016). nenhuma dessas características
Dessa forma, Encarnación negativas em sua história política.
deduz, nas entrelinhas, que Donald Encarnación apaga boa parte da
Trump seria um caudilho populista, história política dos Estados Unidos,
como os líderes latino americanos, e que poderiam ganhar os mesmos
os Estados Unidos estariam adjetivos, apenas para lembrar
passando por um processo de latino- alguns casos mais notórios: o
americanização. Todavia, de certo, os genocídio indígena, a segregação
Estados Unidos de Donald Trump racial, a política dos chefes no
não passam por um momento de Tammany Hall e a presença marcante
transição do capitalismo agrário para de políticos como George Wallace. E,
o capitalismo industrial e guardam de alguma forma que não fica claro,
pouquíssima semelhança com a as características negativas da
América Latina no período do América Latina teriam contaminado
populismo clássico. E, mais os Estados Unidos.
importante: fanfarronice, demagogia, Outros autores retratam Trump
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no cenário do populismo nos Estados cidades, sobretudo no interior do


Unidos. Na revista National Review, país. Todavia, para Mead (2017), o
Jonah Goldberg afirmou que Trump reaparecimento do populismo de
parece os grandes populistas do Andrew Jackson também está
passado, prometendo restaurar a associado à cultura e ao sistema de
grandeza dos Estados Unidos no crenças e valores jacksonianos que
mundo e apelando ao nativismo sempre esteve presente no
contra mexicanos e muçulmanos patriotismo estadunidense e se vê
(GOLDBERG, 2015). Em outra revista ameaçado pelas elites que apregoam
popular, a Newsweek, Chris Lehmann o cosmopolitismo e políticas de
afirmou que Trump estaria a reviver a minorias. Diante das políticas de
velha causa populista do imigração de mexicanos e
nacionalismo econômico, alcançando muçulmanos, os populistas
uma fração conservadora da classe jacksonianos não se ressentem
trabalhadora, que pensa que o apenas da exclusão do mercado de
comércio livre e a globalização trabalho, mas também de uma
diminuem os postos de emprego e os suposta marginalização dentro do seu
salários (LEHMANN, 2015). próprio país. Eles não se opõe aos
De forma mais detalhada, tratados de comércio porque
Walter Russel Mead, sustenta que o entendem os pontos negativos e
populismo de Trump está inserido na positivos. Mas porque consideram
tradição populista jacksoniana, como que não atendem aos interesses dos
referência a Andrew Jackson, estadunidenses, exceto daqueles que
presidente dos Estados Unidos entre negociaram os acordos. Em suma, os
1829-1837. Na era Trump, esse populistas jacksonianos acreditam
populismo jacksoniano teria que as elites cosmopolitas estão
ressurgido como resposta a banindo os verdadeiros
estagnação dos salários, a escassez estadunidenses não apenas do
de bons empregos para trabalhadores mercado de trabalho, mas,
não especializados, ao esvaziamento sobretudo, dos ciclos de poder, dos
da vida cívica, ao crescente uso de meios culturais e até da demografia.
drogas e outros fatores associados ao Para Mead: “muitos eleitores de
declínio da qualidade de vida nas Trump estavam menos preocupados
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em apoiar um programa específico do importante para os eleitores


que parar aquilo que parecia ser um estadunidenses era a economia. E, o
movimento inexorável do país em tema era mais importante para os
direção a catástrofe” (MEAD, 2017, p. eleitores de Trump do que para os
6). eleitores de Clinton (PEW
Todos esses artigos associam RESEARCH, 2016).
Trump ao populismo clássico Possivelmente, o apelo as
estadunidense através do questões migratórias e as supostas
nacionalismo, nativismo, racismo, distorções no comércio internacional
machismo e xenofobia. Todavia, essas só ganharam importância porque
características não são suficientes foram associadas ao emprego e a
para definir o populismo clássico nos economia. Neste sentido, de fato, a
Estados Unidos. Tão pouco servem preocupação dos eleitores com o bem
para retratar completamente Trump. estar econômico poderia aproximar
E, consequentemente, não são Trump dos populistas clássicos
suficientes para caracterizar o estadunidenses. Alguns analistas
presidente estadunidense como um importantes buscaram explicar o
“populista do passado” ou “um populismo de Trump a partir da
populista clássico”. Vale lembrar, capacidade de articular demandas
relações internacionais, políticas materiais e subjetivas. Michael Lind,
migratórias e questões relativas a historiador e articulista de destaque
minorias, não eram os tópicos que nos Estados Unidos, escreveu no
mais interessavam ao público no politico.com que Donald Trump é o
processo eleitoral estadunidense em populista perfeito. De acordo com
2016. De acordo com pesquisa do Lind, Trump, na verdade, teria se
Pew Research, terrorismo era o esquivado de questões que provocam
segundo tema mais importante para a divisão partidária do eleitorado
os eleitores estadunidenses, política estadunidense, como questões
externa era o terceiro, imigração era o relativas a minorias. E, ainda que
sexto, questões relativas a raça e temas como a imigração e a política
minorias étnicas era o décimo e comercial tenham ganhado
política de comércio internacional era centralidade em alguns momentos da
o décimo primeiro. O tema mais corrida presidencial, o grande mérito
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de Trump teria sido combinar De fato, Trump propôs um


posições populistas que interessam a amplo programa de recuperação da
essas frações sociais, como defesa da infra estrutura estadunidense e de
seguridade social, acesso a um defesa do emprego. Todavia, essas
sistema de saúde universal e políticas propostas não visavam nacionalizar
econômicas com o nacionalismo. Lind setores importantes ou limitar o
(2016) lembra que, na corrida pré poder político e econômico do grande
eleitoral em 2000, Trump lançou uma capital. Ao contrário, buscavam
manifesto, The America We Deserve, recuperar alguns setores decadentes
propondo, entre outras coisas, que e tradicionais do capitalismo
gays pudessem se empregar nas estadunidense, como as grandes
forças armadas, um sistema de saúde corporações de comércio varejista e a
voltado para os trabalhadores e o indústria siderúrgica, dois dos
aumento da taxação para os mais setores que apoiaram a campanha
ricos (LIND, 2016). Para Fareed presidencial de Trump. Evidenciando
Zakaria, o populismo de Trump seria ainda mais a distância para o
uma fusão de anseios populares populismo clássico estadunidense, o
materialistas e pós-materlialistas. programa de Trump propôs uma
Zakaria lembra que a plataforma redução do papel do governo,
econômica de Trump compreende principalmente a partir de uma
gastos em infra-estrutura, novos política tributária regressiva e da
programas sociais e uma política eliminação de programas sociais e
comercial protecionista, embora agências reguladoras. Isso não
também contemple redução de significa descentralização política.
impostos e diminuição das regulações Tão pouco significa descentralização
estatais sobre a economia. E, por política em favor de organizações
outro lado, Trump teria percebido políticas locais. Ao contrário, significa
que uma fração importante dos redução do papel do governo em favor
estadunidenses reagiam do capital.
positivamente ás ideias que Sob o pretexto de gerar
reafirmam supostos valores culturais emprego, Trump propôs e colocou em
e morais estadunidenses (ZAKARIA, prática um plano que torna o sistema
2017). tributário estadunidense ainda mais
65
MUNDO E DESENVOLVIMENTO
Revista do Instituto de Estudos Economicos e Internacionais

regressivo. Essa ideia está calcada na muito diferente do populismo clássico


teoria conhecida como Supply Side estadunidense, as propostas de
Economics, que, resumidamente, Trump não buscaram promover a
prega que a redução de impostos, descentralização do poder e do capital
sobretudo, para as frações mais ricas em favor de organizações políticas
da sociedade, que, supostamente, locais.
investiriam os recursos excedentes no Acima de tudo, para um
setor produtivo, gerando crescimento populista clássico, Trump não teve
e emprego. Além disso, Trump não nenhum apoio de movimentos e ou
aplicou nenhum tipo de taxação de organizações populares organizadas
lucros advindos de aplicações no de massa. Ao contrário, dividiu o
mercado financeiro, ainda que em apoio significativo da elite econômica
alguns momentos tenha ensaiado estadunidense com Clinton, levando
essa proposta. Esta lógica se repete a melhor por pouco. Segundo as
no que se refere a substituição do pesquisas realizadas após a eleição, a
Affordable Care Act, mais conhecido maioria dos eleitores mais pobres
como Obamacare, pelo Health Care votaram em Clinton. Entre os
Act, o Trumpcare. O projeto de saúde eleitores que recebem menos de
de Donald Trump, sob a alegação de US$ 30000 anuais, 53% votaram em
que o governo deve ser menor e Clinton e 41% escolheram Trump. E
interferir menos nas escolhas entre os eleitores que recebem entre
individuais, desobriga a adesão dos US$ 30000 e US$ 49999, 52%
estadunidenses a um plano de saúde, votaram em Clinton e 42%
reduz significativamente os subsídios escolheram Trump. Entre os votantes
do governo para tal e retira que recebem US$ 200000 e
obrigações dos planos. É difícil US$ 249999 anuais, 4% do
associar essas concepções econômica eleitorado, 48% escolheram Clinton e
a qualquer perspectiva populista, 49% elegeram Trump. E entre os
ainda que a redução de impostos eleitores que recebe, entre
possa ser retratada como um prêmio US$ 250000 ou mais, que
para aqueles que produzem e incluir corresponde a 6% do eleitorado, 46%
marginalmente pequenos escolheram Clinton e 48%
empresários e autônomos. Em suma, escolheram Trump (CNN, 2016).
66
MUNDO E DESENVOLVIMENTO
Revista do Instituto de Estudos Economicos e Internacionais

popular carismático e o discurso


identitário, mormente nacionalista,
4. Repensar o populismo nos funcionam como elo de ligação e de
Estados Unidos: discursos e
pertencimento, atenuando as tensões
ideologias
internas e criando a identificação
Em um esforço para repensar o
com o projeto populista. Em outras
populismo, Ernesto Laclau (2005)
palavras, Laclau coloca o foco da
desvinculou o conceito de
análise sobre a mensagem, tomando
experiências específicas. Para isso,
como ponto nevrálgico o conjunto de
tentou elaborar uma teoria geral do
reivindicações anunciadas e sua
populismo colocando ideologia e o
capacidade de agregar diferentes
discurso como elementos definidores
grupos.
e, consequentemente, como objetos
Na perspectiva de Laclau,
centrais de análise do fenômeno.
existiriam dois tipos de populismo: o
Inspirado em Gramsci, Laclau afirma
populismo das classes dominantes e
que as ideologias, através dos
o populismo das classes dominadas.
discursos políticos das classes
O populismo das classes dominantes
sociais, tem como finalidade
seria expressão da classe ou fração
apresentar percepções de mundo e
de classe dissidente do bloco de
representar supostos interesses
poder que constrói um projeto
nacionais. Por isso, os discursos
político e um discurso ideológico
políticos ideológicos carregam
incluindo as necessidades e desejos
naturalmente elementos antagônicos.
das massas para desafiar seus
Uma classe ou fração de classe que
antigos aliados. O populismo das
consegue articular diferentes visões
classes dominadas seria expressão
de mundo em seu discurso político
legítima dos trabalhadores na luta de
neutralizando os antagonismos
classes a fim de derrubar a
estaria em posição de conquistar a
hegemonia do bloco dominante
hegemonia. Assim, uma classe ou
através da fusão entre ideologia
fração de classe constrói um discurso
popular-democrática e o socialismo.
político ideológico populista para
Em ambos os casos, o discurso
transformar ou antagonizar o bloco
populista reúne e articula um
de poder. Neste sentido, o líder
conjunto de idéias populares
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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antagônicas ao grupo dominante independentes do governo e das


(LACLAU, 2005; MACKINON; grandes corporações. Ainda de acordo
PETRONE, 1998). com Kazin, o populismo
Nos Estados Unidos, o estadunidense adota um
historiador Michael Kazin (1998), americanismo idealista e defensivo.
inspirado em Laclau, Kazin aponta Vêem os Estados Unidos como uma
que, como ideologia e discurso, o nação escolhida, onde podem ter uma
populismo estadunidense precede e vida idílica de oportunidades, mas,
ultrapassa o movimento popular do para isso, devem resistir ao domínio
final do século XIX. Coloca o de governos totalitários e elites
populismo nos Estados Unidos como aristocráticas, nacionais ou
ponto central a oposição entre estrangeiras, que ameaçam os ideais
produtores, aqueles que produzem estadunidenses (KAZIN, 1998).
riquezas e serviços, e parasitas, uma Kazin identificou e descreveu
pequena elite que enriquece as custas duas vertentes do populismo
dos primeiros. Desse modo, o estadunidense. De um lado, os
populismo como ideologia e discurso populistas de esquerda, que se
ataca a desigualdade, mas sem voltam contra as elites corporativas e
atacar problemas estruturais nas os governos, frequentemente vistos
relações de produção. Mais do que como parceiros, que traem os
isso, o discurso populista insiste que interesses dos trabalhadores. De
as elites parasitárias criam acordo com Kazin, os populistas de
hierarquias sociais artificiais para esquerda “adotam uma concepção de
dominar o povo. Consequentemente, povo baseado na classe e evitam se
o populismo insurge contra identificar como partidários ou
monopólios e grandes instituições opositores de qualquer grupo étnico
que, supostamente, ameaçam as ou religião particular” (KAZIN, 2015,
pequenas comunidades e os p. 17). Mais do que isso, adotam uma
pequenos produtores. Em versão do “nacionalismo cívico”,
contrapartida, os populistas guardam calcado na crença na igualdade
um ideal romântico pelo poder local, fundamental de todos os seres
agricultura familiar, igrejas do humanos, no direito à vida, à
interior, e associações locais liberdade e à busca da felicidade e
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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sonham estabelecer um governo entre o povo que trabalha e aqueles


democrático, que deriva sua que, sem nenhum esforço, arrancam
legitimidade do consentimento os benefícios dos primeiros. A partir
popular. De outro lado, os populistas do antielitismo, o populismo
de direita também culpam as elites e estadunidense reconhece que as
os governos. Mas definem o povo a elites controlam instituições
partir de uma percepção étnica autoritárias e centralizadoras,
exclusiva. Para esses, o verdadeiro sobretudo o governo federal e as
povo estadunidense são os cidadão grandes corporações. Desse modo, o
de origem europeia, que deve antielitismo se desdobra em um
defender os interesses e os valores da antiinstitucionalismo. Essa visão
nação frente a alianças entre as elites maniqueísta do mundo alimenta
e os “outros”, negros e imigrantes. teorias da conspiração, que ajudam a
Segundo Kazin, portanto, o definir o estilo de vida
populismo de direita está calcado no verdadeiramente estadunidense, que
“nacionalismo étnico”. Isto é, uma pertence ao povo. Bem como, ajuda a
concepção da nação em termos definir o inimigo comum, a própria
etnoraciais, como um povo unido por elite, que ameaça o estilo de vida
sangue e cor de pele europeias, que, estadunidense. Assim, a importância
exclusivamente, os capacitam para da teoria da conspiração repousa em
governar. Em resumo, para Kazin a definir o “eu”, naturalmente sábio, e o
persuasão populista parte de um “outro”, uma ameaça ao estilo de vida
discurso em que as pessoas comuns estadunidense. A fé na sapiência do
são uma assembléia nobre e povo e o anti-institucionalismo
apresenta seus opositores como uma conformam um anti-intelectualismo,
elite egoístas e antidemocrática a fim uma vez que encara os intelectuais,
de mobilizar os primeiros contra os entendidos como experts, como
últimos (KAZIN, 2016). apartados da realidade popular e
Assim como Kazin, Mark marionete das elites nas instituições,
Brewer (2016) aponta que a principalmente, com o objetivo de
característica mais básica e criar conspirações. Mais do que isso,
fundamental do populismo é a os populistas vêem os intelectuais
percepção de que existe um conflito como agentes da mudança do estilo
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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de vida verdadeiramente pode se expressar como nacionalismo


estadunidense (BREWER, 2016). cívico ou como nacionalismo étnico,
Diante deste debate, é possível que respectivamente definem o povo
fazer um sumário das características como um grupo que tem direitos e
fundamentais do populismo deveres comuns ou como aqueles que
estadunidense, seja de esquerda ou compartilham as mesmas
de direita, na perspectiva da ideologia característica etno-raciais. Quarto,
e do discurso. Primeiro e basilar, a mobiliza teorias da conspiração, que
ideia de que existe uma contradição sublinham a diferença entre o povo
entre o povo, que produz riqueza, e que produz e os “outros”, que, além
uma elite parasitaria, que está em de parasitas, conspiram contra a
instituições autoritárias e nação. Consequentemente, o
centralizadoras, no governo e nas populismo estadunidense apresenta
grandes corporações. Mais uma perspectiva anti-intelectual, na
recentemente, como apontam Kazin e medida em que vê os intelectuais
Brewer, o populismo estadunidense como agentes da elite. Quinto, o
tem encontrado essa elite parasitária populismo estadunidense, de
em algumas minorias, que recebem esquerda ou de direita, procura
benefícios governo. Na perspectiva apresentar alternativas ao
populista estadunidense, o governo, capitalismo, ainda que dentro das
as grandes corporações e as minorias estruturas do próprio sistema.
se reforçam mutuamente. As grandes
5. Retratos de um Trump
corporações e os governos
Populista: os discursos
controlariam o Estado e promoveriam
Chantal Mouffe, que
políticas para minorias a fim de
desenvolveu a análise do populismo
garantir sua posição como elite.
como ideologia e como discurso com
Segundo, o populismo estadunidense
Ernesto Laclau, considera Trump um
reclama a perda de um suposto
populista de direita. Segundo a
status do povo e da nação. Desse
análise de Mouffe, em entrevista para
modo, idealiza uma nação imaginada
revista The Nation, uma parte das
através de um passado dourado.
classes populares estadunidenses,
Terceiro, o populismo estadunidense
em especial a classe média branca, se
aciona um nacionalismo idílico, que
70
MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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sentiu abandonada pelas políticas nativismo dos americanos brancos de


neoliberais. Para Mouffe, o Partido classe média. Condena uma suposta
Democrata, representante tradicional elite globalista por promover uma
das classes médias e trabalhadores, política de fronteiras abertas, que
se tornou um partido de Wall Street, estimula a entrada de trabalhadores
desde Bill Clinton. Com isso, ainda imigrantes nos Estados Unidos.
de acordo com Mouffe, essa classe Consequentemente, esses imigrantes,
média branca perdeu expressão que aceitam receber pouco, estariam
política para suas demandas. Trump roubando empregos dos
teria conseguido conquistar o apoio trabalhadores estadunidenses e
dessa classe média prometendo impactando negativamente nos
recuperar direitos sociais e padrões de vida do país. Além disso,
econômicos através de um discurso esses imigrantes, principalmente
racista, que aponta minorias como mexicanos e muçulmanos, trariam
privilegiados. Portanto, reconstruindo drogas, crime e outros perigos que
uma nova política identitária para ameaçariam a vida nos Estados
além das disputas entre esquerda e Unidos. Em suma, para Kazin, o
direita (MOUFEE, apud, SHAHID, populismo de Trump é uma arte
2016). performática, que tem pouca
Kazin em importante artigo no semelhança com o populismo
The New York Times, afirmou que tradicional dos Estados Unidos, que
Trump, assim como Bernie Sanders e evoca planos para a reformar a
outros populistas do passado, política e economia do país (KAZIN,
escolheu culpar as elites pelo que 2016a).
aflige a nação. Trump teria adotado Para Brewer, a mensagem de
um discurso contra as desigualdades Trump sobre o impacto negativo do
e a corrupção em um momento em comércio internacional e da imigração
que os estadunidenses continuam sobre a economia e os empregos nos
insatisfeitos com as instituições que, Estados Unidos estaria claramente
supostamente traem as esperanças alinhada a tradição populista
de justiça e igualdade. De acordo com estadunidense. Os acordos de
Kazin, Trump, também como outros comércio internacional e a imigração
populistas do passado, apela ao de mexicanos para o mercado de
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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trabalho estadunidense aparecem Segundo Brewer, o próprio Trump


como resultado de acordos injustos, não se apresenta como um homem
costurados pela elite que lucra com comum, mas como o mais inteligente
especulação, mão de obra barata e e mais bem sucedido em qualquer
plantas fabris em outros países e, assunto. Segundo, Trump não
consequentemente, prejudicam os apresenta o juízo popular como
trabalhadores. A mensagem solução para nenhum problema. Para
antiimigrante de Trump, que associa isso sempre traz idéias e pessoas,
mexicanos ao crime e muçulmanos supostamente, excepcionais. Terceiro,
ao terrorismo, também repete o Trump não se opõe a centralização
nativismo e o racismo de certas das instituições. Tece críticas a
versões do populismo nos Estados centralização e a incompetência de
Unidos. Portanto, o discurso quem estava no governo. Mas não
populista de Trump combina as propõe a descentralização do poder
idéias de injustiça econômica, perda em favor das comunidades locais
de status e ameaça ao modo de vida (BREWER, 2016). Quarto, como
estadunidense. Tudo isso é reforçado amálgama dos elementos anteriores,
por teorias da conspiração. Em Trump se apresenta como o mais
resumo, o discurso populista de capaz de governar os Estados Unidos,
Trump estaria baseado na idéia de por conta própria, de forma
injustiça econômica, anti-imigração, centralizada.
perda de status e teorias da A análise dos discursos de
conspiração, que conformam inimigos Trump reforça os elementos que o
comuns, “o outro”, imigrantes, afastam do populismo clássico.
muçulmanos e a elite Diante dos eleitores, o presidente
conspiracionista (BREWER, 2016). estadunidense não se vê e não se
Todavia, Brewer aponta que apresenta como um homem comum,
alguns elementos distanciam Trump mas como um ser extraordinário e,
do populismo clássico estadunidense. francamente como membro de uma
Primeiro, a figura de Trump, elite capaz de salvar o país. No
empresário e elitista que passa longe discurso em que anunciou sua pré
de ser o homem comum, não se candidatura, em Nova Iorque, Trump
enquadra no modelo populista. aproveitou a instabilidade no Oriente
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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Médio para elencar sua própria mim. Eles são ótimos” (TRUMP,
excepcionalidade. Segundo Trump, os 2015).
terroristas islâmicos (sic) estavam Em outro momento, ao contar
ricos, mas ele estava competindo pra uma história a fim de legitimar
ver quem tinha mais dinheiro. propostas para romper tratados
Falando sobre os gastos do governo internacionais de comércio, Trump
Obama com websites para o frisou sua inserção na elite. Começou
Affordable Care Act, mais conhecido assim: “Um amigo meu, que é um
como Obamacare, Trump lembrou grande industrial...” (TRUMP, 2015).
aos ouvintes: “Eu tenho muitos Ao comentar sobre as estratégias da
websites, tenho eles em todos os China para inserção internacional,
lugares. Eu contrato pessoas que Trump emendou: “Eu gosto da China.
fazem websites” (TRUMP, 2015). Eu acabei de vender um apartamento
Ainda tecendo críticas sobre o por US$ 15 milhões para alguém da
governo Obama e o Obamacare, China. Eu deveria não gostar deles?
Trump afirmou: “Obama está indo Eu sou proprietário de uma grande
jogar golfe. Ele deve ir em um dos parcela do prédio do Bank of America
meus campos de golfe. Eu convidaria na Avenida das Américas 1290, que
ele, realmente vou convidar. Eu tenho eu consegui da China em uma
os melhores campos de golfe do guerra. Muito valioso” (TRUMP,
mundo” (TRUMP, 2015). Mesmo se 2015). Sobre o financiamento da
apresentando como um forasteiro no campanha presidencial, Trump
mundo da política em outros afirma: “Eu estou usando meu
momentos, Trump afirmou sua próprio dinheiro. Eu não estou
importância ao dizer que havia feito usando lobistas. Eu não estou
negócios com muitos políticos. E, que usando doadores. Eu não me
todos eles eram controlados por importo. Eu sou mesmo rico”
lobistas e interesses especiais. (TRUMP, 2015). Em passagem que
Portanto, por uma elite. Todavia, o apresenta suas credenciais para
próprio Trump reafirmou seu papel presidência, Trump reafirmou seu
nessa elite: “eu tenho lobistas. Tenho caráter extraordinário e sua inserção
que dizer a vocês. Tenho lobistas que na elite:
podem produzir qualquer coisa pra Eu sou uma empresa privada,

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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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então ninguém sabe o qual é meu também seria vítima de acordos


patrimônio. Mas quando você
concorre a presidência, você tem econômicos injustos. Segundo
que anunciar e certificar a todos os Trump, os empresários
tipos de autoridades
governamentais o seu patrimônio estadunidenses pagam os impostos
líquido. Então eu disse: “Tudo
bem”. Estou orgulhoso do meu mais caros entre as nações
patrimônio líquido. Eu fiz um industrializadas. E as regulações
trabalho incrível. (…) Comecei em
um pequeno escritório com meu pai estatais ferem de morte o
(...). Eu aprendi muito. Ele era um
desenvolvimento das empresas dos
excelente negociador. Eu aprendi
muito, apenas sentando em seus Estados Unidos. Nas palavras do
pés brincando e ouvindo ele
negociar com subcontratados. Mas republicano: “nós punimos empresas
eu aprendi muito. (…) Eu sou
por produzirem nos Estados Unidos”
realmente muito orgulhoso do meu
sucesso (TRUMP, 2015, sem (TRUMP, 2016a). Através desse
paginação).
subterfúgio discursivo, de forma
Trump inclusive revelou que bastante diferente do populismo
seu patrimônio extraordinário em clássico estadunidense, Trump coroa
torno de US$ 8,7 bilhões, mas a aliança entre elite e povo, já
afirmou que chegaria rapidamente presente na proposta inspirada na
aos US$ 10 bilhões e fez questão de teoria Supply Side Economics, na
listar alguns dos prédios que possui. medida em que a redução de
E, em nenhum momento se impostos da elite beneficiária o povo
mostrou contrário à elite econômica com geração de emprego.
estadunidense. Em Detroit, cidade Trump se apresentou como um
tradicionalmente operária e antigo forasteiro do mundo político e como a
centro da indústria automobilística voz do povo, mas nunca como alguém
no norte dos Estados Unidos, ao do povo. Em um dos discursos mais
falar sobre o programa de redução de excitantes da campanha presidencial,
impostos, Trump afirmou que “os na Carolina do Norte, Trump repetiu:
ricos vão pagar sua parcela justa, Como vocês sabem, eu não sou
um político. Eu tenho trabalhado
mas ninguém vai pagar um tanto que no mundo empresarial, criando
destrua empregos ou mine a empregos e reconstruindo bairros
por toda a minha vida. (…) Eu falo
capacidade competitiva dos Estados a verdade para vocês e por todos
que não tem voz nesse país. Eu
Unidos” (TRUMP, 2016a). Mais ainda, falo a verdade em nome dos
a elite econômica estadunidense trabalhadores de fábrica que

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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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perderam seus empregos. (…) da política, Trump se coloca ao lado


Esses são os homens e mulheres
esquecidos na nossa sociedade e do povo, não como parte dele. Isso
eles estão muito zangados em fica evidente na distinção entre “eu” e
muitos níveis. A pobreza, o
desemprego, as escolas falídas e “vocês”. Nas própria palavra de
os empregos indo para outros
países. Eu estou lutando por esses Trump: “não se trata de mim. Nunca
estadunidenses esquecidos se tratou de mim. Se trata do povo
(TRUMP, 2016b, sem paginação).
desse país que não tem voz. Eu estou
concorrendo para ser sua voz. (…) Os
Todavia, em discurso em
poderosos estão protegendo os
Pittsburgh, Trump afirmou,
poderosos. Os de dentro estão
contraditoriamente com a narrativa
lutando pelos de dentro. Eu estou
de forasteiro do mundo político: “eu vi
lutando por vocês” (TRUMP, 2016b).
o sistema de perto e pessoalmente
Sendo ele mesmo um homem
por muitos anos. Eu tenho sido parte
extraordinário e sem se opor à elite,
importante desse sistema. Eu sei
Trump não apresenta um discurso
como o jogo funciona em Washington
anti-intelectual, ainda que em vários
e em Wall Street e eu sei como eles
momentos questione a ciência e os
manipularam as regras do jogo
cientistas, especialmente, nas
contra os americanos todos os dias”
ocasiões que fala sobre o
(TRUMP, 2016c).
aquecimento global. Pelo contrário,
Na Carolina do Norte, Trump
Trump se apresenta como alguém
deixou ainda mais claro que, embora
capaz de mobilizar os melhores
seja a voz do povo, vive em um
experts para salvar os Estados
mundo diferente, quando explica aos
Unidos. No discurso de lançamento
ouvintes: “do mundo que eu venho,
da candidatura em Nova Iorque,
se algo está quebrado, você conserta.
Trump criticou os acordos de
Se algo não está funcionando, você
comércio internacional. Mas
substitui” (TRUMP, 2016b). Ao
ressalvou:
explicar como funciona o seu mundo,
Trump marca a distinção entre o Nós precisamos de pessoas – eu
lugar de onde ele vem e o lugar de apoio o livre comércio. Mas, o
problema é que para o livre
onde o povo, ouvinte, vem. Ao se comércio você precisa de pessoas
talentosas para negociar para você.
apresentar como forasteiro do mundo Se você não tem pessoas talentosas,
se você não tem grandes líderes, se
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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você não tem pessoas que foi - foi muito, muito especial”
entendem de negócios (…) livre
comércio é terrível. Livre comércio (TRUMP, 2016d).
pode ser maravilhoso se você tem Na narrativa de Trump, o
pessoas inteligentes, mas nós só
temos pessoas estúpidas (TRUMP, inimigo do povo não é a elite.
2015, sem paginação).
Diferente da ideologia e do
movimento populista, o problema não
Ele mesmo aparece como um
é que uma elite controle o governo
grande expert em negociações, mas
para realizar seus próprios ganhos.
traria outros ainda melhores. Nas
E, o problema também não é que o
palavras de Trump: “uma das
governo conforme uma elite que faz
primeiras coisas que eu faria,
arranjos econômicos em benefícios
provavelmente antes mesmo de
próprios. Para Trump, o grande
entrar – e eu nem preciso disso –
problema é o establishment que,
vocês sabem, tenho – conheço os
supostamente, controla um governo
negociadores mais inteligentes do
grande de forma ineficiente. Mas o
mundo. Conheço os bons” (TRUMP,
establishment não é a elite. Trump
2015). No discurso da vitória,
personifica o establishment com os
também em Nova Iorque, Trump
Clintons e o Partido Democrata.
marcou claramente a importância dos
Desse modo, Trump retira o foco dos
experts para iluminar o povo, se
problemas da elite e desloca para os
afastando claramente do ideal anti-
Clintons e para o Partido Democrata,
intelectual e do senso popular
o grupo político rival. Nesse sentido,
característico do populismo. Logo no
não agiu diferente de nenhum político
começo do discurso, Trump falou:
desafiante. Por diversas vezes, Trump
“nós chamaremos os melhores e mais
acusou Hillary Clinton de colocar
brilhantes para alavancar seu
seus interesses pessoais acima dos
tremendo talento em benefício de
Estados Unidos.
todos” (TRUMP, 2016d). Trump
No discurso na Carolina do
dedicou o discurso de vitória para
Norte, Trump confessou ao público
elogiar as “pessoas talentosas”, que
que não tolera injustiça, governos
tornaram a campanha especial: “nós
incompetentes e líderes que falham
temos - temos gente tremendamente
com seus cidadãos. Depois perguntou
talentosa aqui. E eu quero te dizer,
ao público: “Vocês não estão
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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cansados do sistema que fica rico as Hillary Clinton destruíram vidas


suas custas? Vocês não estão inocentes, sacrificaram a segurança
cansados da mesmas velhas mentiras nacional e traíram as famílias dos
e das mesmas velhas promessas trabalhadores” (TRUMP, 2016b).
quebradas? E Hillary Clinton tem Trump concluiu afirmando que: “eu
provado que é uma das grandes nunca vou colocar ganhos pessoais
mentirosas de todos os tempos” antes da segurança nacional”
(TRUMP, 2016b). Ao criticar o tratado (TRUMP, 2016b). No discurso em
de livre comércio dos países da Pittsburgh, Trump disse que Hillary
América do Norte (NAFTA - North Clinton não estava concorrendo com
Atlantic Free Trade Agreement), ele. Segundo Trump ela estava
Trump afirmou: “Bill Clinton assinou “concorrendo contra a mudança,
o acordo e Hillary Clinton apoia o concorrendo contra todo povo
acordo. A Carolina do Norte perdeu estadunidense e todos os eleitores
aproximadamente metade dos dos Estados Unidos” (TRUMP,
empregos fabris desde que o NAFTA 2016c). Em Detroit, Trump afirmou
entrou em vigor” (TRUMP, 2016b). Ao que todas as políticas que Hillary
denunciar a concorrência da China, Clinton apoiou destruíram a cidade.
Trump voltou a atacar os Clintons: E, que tudo que Hillary Clinton tinha
a oferecer era “mais do mesmo: mais
Bill Clinton também colocou a
China na Organização Mundial do impostos, mais burocratas, mais
Comércio [OMC] – outra vez, Hillary limites sobre energia estadunidense e
Clinton apoiou esse acordo. Sua
cidade de Charlotte perdeu um de sobre produtividade estadunidense”
cada quatro empregos em fábricas
(TRUMP, 2016a). Trump ainda disse
desde que a China entrou para
OMC, e muito desses foram ao público: “A única característica
perdidos quando Hillary Clinton era
Secretária de Estado – nossa comum em todas as idéias de Hillary
diplomata chefe com a China. Ela
Clinton é que punem você por
foi um desastre, totalmente
desqualificada para função” trabalhar e fazer negócios nos
(TRUMP, 2016b, sem paginação).
Estados Unidos” (TRUMP, 2016a).
Ainda falando sobre o tema, alguns
Ao falar da política de
minutos depois afirmou: “Hillary
imigração durante o governo Obama,
Clinton tem julgamento ruim”
Trump afirmou que “os erros de
(TRUMP, 2016a).
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MUNDO E DESENVOLVIMENTO
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Na lógica de Trump, Clinton e trilhões de dólares e riquezas em


Obama são responsáveis pelos postos nosso país – e em cidades como
de trabalho dos estadunidenses Detroit” (TRUMP, 2016a). Além dos
estarem indo para a China ou para o impostos, as regulações, também
México. É culpa da política que os associadas a política econômica de
democratas representam. Em Detroit, Clinton e Obama, impulsionariam a
Trump explicou o déficit nos postos fuga de postos de trabalho dos
de trabalho. De acordo com o Estados Unidos para outros países.
presidente: “Os Estados Unidos Usando a indústria automobilística
também têm a maior taxa de imposto como exemplo, Trump afirmou que as
comercial entre as principais nações empresas estadunidenses são
industrializadas do mundo(...). Em excessivamente reguladas. E
outras palavras, punimos as prometeu: “ao assumir o cargo,
empresas por fabricar produtos na emitirei uma moratória temporária
América - mas deixamos que eles sobre os novos regulamentos. (...)
entreguem produtos nos Estados Isso dará às nossas empresas
Unidos sem pagar impostos e se americanas a certeza de que
mudarem para o exterior” (TRUMP, precisam reinvestir em nossa
2016a). Em alguns momentos Trump comunidade (...) começar a contratar
prometeu penalizar empresas que novos empregos e expandir” (TRUMP,
levam postos de trabalho para outros 2016a).
países. Mas, a solução para manter Os esporádicos ataques de
os empregos passaria, acima de tudo, Trump as elites, mormente aos
pela redução dos impostos para as especuladores de Wall Street e a
empresas, apontando e atacando o imprensa, vieram sempre
principal culpado pela fuga dos acompanhados das críticas a Hillary
postos de trabalho: a política Clinton e, precisamente, porque
econômica de Clinton e Obama. De apoiaram a candidata democrata. No
acordo com Trump: “nosso [projeto] discurso na Carolina do Norte, Trump
de reduzir os impostos para empresas disse ao público: “tem uma razão
também irá acabar com as inversões para os gestores dos fundos de
corporativas que matam os postos de investimentos, lobistas do mercado
trabalho e vai causar a entrada de financeiro, investidores de Wall Street
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estarem injetando dinheiro na futuro governo. O povo não aparece


campanha de Hillary Clinton. Eles como voz ativa, mas como passivo,
sabem que ela fará o sistema que precisa de alguém ou de alguma
continuar aparelhado em favor deles” coisa. Poucas vezes o eu, Trump, está
(TRUMP, 2016b). Trump atacou a com o povo, mas pelo povo. Isso,
mídia pelos mesmo motivos. Mas não consequentemente, evidencia uma
atacou todas as mídias. Nos perspectiva centralizadora e
discursos, as críticas sempre autoritária, contrária ao populismo
estiveram adjetivados pelos termos clássico estadunidense. Nas palavras
“stablishment” e “mainstream”. de Trump: “Eu sou o candidato da
Portanto, não era um ataque a mudança, Hillary Clinton é o status
empresas ou aos grupos que quo falido” (TRUMP, 2016a). No
controlam as mídias de forma geral, discurso em que lançou sua
mas aqueles que apoiavam Clinton. candidatura, Trump disse aos
No discurso em Pittsburgh, Trump ouvintes: “nosso país precisa de um
disse: “A mídia mainstream grande líder e nós precisamos de um
desonesta (...) mente e fabrica grande líder agora. Nós precisamos
histórias para fazer um candidato de um líder que escreveu 'A arte da
que não é sua escolha preferida negociação'” (TRUMP, 2015). Ou seja,
parecer ruim e até mesmo perigoso” ele era o grande líder que o país
(TRUMP, 2016c). precisa. No mesmo discurso, Trump
Em contraposição, Trump se assegurou: “eu vou fazer ser o melhor
apresentou claramente como o presidente que Deus criou” (TRUMP,
candidato anti-status quo, 2015). Na Carolina do Norte, Trump
personificado por Hillary Clinton. prometeu aos leitores: “Eu vou ser o
Portanto, ele salvaria os Estados campeão do povo (…) Eu estou
Unidos e não o povo. Isso fica lutando por vocês” (TRUMP, 2016b).
evidente na utilização sistemática do Em suma, nos discursos de Trump,
pronome em primeira pessoa do exceto pelo mote “nós vamos fazer os
singular para realizar ações Estados Unidos grande novamente”,
energéticas e eventualmente da tem muito pouco “nós, o povo” para
primeira pessoa do plural, um populista. Tem muito mais o “eu”
principalmente, para se referir ao autoritário e bonapartista.
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indústria metalúrgica.
6. Conclusão
No que tange a economia e o
Este artigo tentou mostrar que discurso, Trump, diferente do que se
Trump não é se enquadra exatamente espera dos populistas, não se
na tradição populista da América apresenta como um homem
Latina ou dos Estados Unidos, muito ordinário, que confia no senso
embora articule alguns elementos do popular e desconfia das instituições
populismo em seu projeto político e tradicionais. Ao contrário, Trump faz
discurso. Na plataforma política de questão de se diferenciar do homem
Trump, o Estado não tem nenhum comum. E, suas críticas não se
protagonismo na organização das destinam as instituições tradicionais,
forças produtivas com vistas a mas, especificamente ao grupo
alcançar o desenvolvimento político rival, que teria sequestrado
econômico. Bem como, organizações as instituições. Na prática e no
dos trabalhadores não tem nenhum discurso, Trump não se apresenta
papel de destaque e, como o homem do povo contra a elite.
consequentemente, não apresenta Mas como o homem da elite
nenhuma proposta de tradicional contra uma elite
descentralização do poder econômico degenerada. Como aponta Corey
e do poder político. Apresenta Robin, Trump apresenta suas
propostas de redução do papel do credenciais políticas através de
Estado na economia e na política, virtudes heróicas no campo da
mas não em favor de novos setores economia. Ou seja, se apresenta
emergentes do capital estadunidense como um grande homem da
ou de comunidades e lideranças economia. Como aquele que sabe
locais. Por outro lado, o Estado administrar, negociar, fazer dinheiro
aparece como força decisiva em e escolher os melhores. Como
algumas áreas, sobretudo no que desdobramento, sabe que muitos
tange, a política protecionista de homens comuns querem ser
comércio internacional. Dessa forma, extraordinários, com as virtudes que
constrói um espaço favorável para ele tem (ROBIN, apud, DENVIR,
grandes e tradicionais áreas da 2017).
economia estadunidense, como a Trump joga com a fantasia em
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um momento de crise econômica e de no debate público” (CAPELATO,


embate entre as elites estadunidense. 2001, p. 141). Agora, o termo
E é apenas neste contexto que pode populismo fez o movimento contrário:
ser retratado como um populista. deslizou do terreno jogo político para
Portanto, é possível ver Trump como o campo da análise política. A linha
um populista, mas como dizem na tênue que separa o “Populismo” do
América Latina: “pero no mucho”. “populismo” sumiu. Então, por que
Mais do que isso, por um lado, a retratar Trump como um populista?
caracterização de Trump como
populista reforça a caracterização
Bibliografia:
temporal do populismo como
BEARD, Charles; BEARD, Mary R. The
conceito. Mas, por outro lado, coloca Beards’ New Basic History of the United
States. Nova Iorque: Doubleday, 1960.
luz sobre estratégias políticas que,
embora estejam distantes das BREWER, Mark. Populism in American
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experiências populistas, resgatam Research in Contemporary Politics. Berlin
– Boston , v. 14, n. 3, p. 249 – 264, 2016.
elementos discursivos e propositivos
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do populismo adaptando-os à uma discontents. Cambridge: Harvard University
Press, 1998.
nova realidade. Portanto, o caso
Trump, mostra ao mesmo tempo, os CAPELATO, Maria Helena Rolim. Populismo
latino-americano em discussão. In:
limites da caracterização atemporal FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história:
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lembra a historiadora Maria Helena Corey Robin. 18 nov. 2017. Disponível em:
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Capelato: “o termo populismo mp-corey-robin-reactionary-mind-interview>.
Acesso em: 6 mar. 2018.
deslizou do campo acadêmico para o
terreno político, apresentando, então ENCARNACIÓN, Omar. American Caudillo:
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