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94 Marcelo Harger

BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo:


Max Limonad, 2003. 4
BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
I

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CLEVE, Clemerson Merlin. A.fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito
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da dinâmica entre autonomia e centralização
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Acesso em: 24.05.2013. SuMÁRIO: 1. Introdução- 2. Traços essenciais do federalismo-3. O debate
GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. federativo na formação do Estado brasileiro- 4. Dinãmica do federalis-
mo brasileiro desde o "primeiro pacto federativo"- 5. Federalismo e
Hl ~ GORDILLO, Agustín. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Gre-
repartição de competências na Constituição de 1988- 6. A interpretação
j., co, rev. Reilda Meira. São Paulo: Ed. RT, 1977.
estadualista- 7. Uma leitura divergente: a concentração da autoridade
n
l
GRAU, Eros. A ordem econõmica na Constituição de 1988. 10. ed. rev. e atual. São
1J:J regulatória na Constituição de 1988- 8. Considerações finais- 9. Refe-
~ Paulo: Malheiros, 2005.
rências bibliográficas.
!ri HARGER, Marcelo. Consórcios públicos na Lei 11.107/2005. Belo Horizonte: Fó-
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Horizonte: Fórum, 2010.
fl MEDAUAR; OLIVEIRA. Consórcios públicos: comentários à Lei 11.10712005. São Tema sempre presente na agenda política pátria{o ·---·-u-m~
~ \
Paulo: Ed. RT, 2006. tuição de 1988 como um princípio estruturante da ordem jurídico-institucional do
,.;,I'; Estado brasileiro (preâmbulo e art. 1. 0 da CF/1988) e também como cláusula pétrea
MEIRELLES, Hely. Direito municipal brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
J (art. 60, § 4. 0 , I, da CF/1988).
' '·)
l"<:· MOREIRA, Igor. O espaço geográfico. 45. ed. São Paulo: Ática, 1999.
t:ll
Desse modo, a República brasileira se organiza na forma de uma Federação, 1 cujos
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal: co-
;·j entes (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) formam, ho sistema
mentada e legislação constitucional. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013.
constitucional vigente, uma união indissolúvel, isto é, sem direito de secessão (art.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 1. 0 da CF/1988).
2010.
l
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração públi- I
-t
Contudo, para além de sua enunciação, a força normativa desse princípio depende
de uma série de fatores, que vão desde a forma política do Estado e seu papel, passando
ca. Belo Horizonte: Del Rey; 1994. ·à
_ _ _ . República e federação no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
* Agradecimento especial ao acadêmico Marcelo Barroca- monitor da disciplina Direito e Pensamento
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 3. ed. São Paulo: Ma-
Político I- pelo auxílio prestado na pesquisa bibliográfica e revisão dos textos.
;.j lheiros, 2006. I. Em linhas gerais, pode-se compreender a Federação como uma forma de Estado, modelo de organização
·I
SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil: o estrutural em que há a reunião de diversos Estados-membros em torno de uma Constituição Federal,
I
1
constitucionalismo sob diversos prismas. 11. ed. Rio de janeiro: Forense, 2002. com garantia de certa autonomia e preservação das identidades próprias de cada ente subnacional. Esse
Estado opera no direito público internacional como Estado simples, já que os Estados-membros mantêm
L certa autonomia administrativa e legislativa, mas não possuem independência, sendo vedado o direito de
secessão. A federação está relacionada mais fortemente à estrutura institucional e em seu coração (núcleo)
encontra-se o federalismo, baseado na ideia de "unidade na diversidade" ( Cf. BERNARDES, Wilba Lúcia
Maia. Federação efederalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 32. Vide também p.ll9-l20). Porsuavez,
o federalismo pode ser inicialmente compreendido como princípio básico da federação, "um processo de
governo que congrega um conjunto de ideias e valores que permitem a convivência de vários modelos de
vida e/ou identidades culturais e sociais em um mesmo projeto ou pacto, conjugados a uma distribuição
espacial de poder" (idem, p. 119.)
98 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização
99
ante o poder central; e (ii) a integração, promotora de inclusão vertical, envolvendo Grande Depressão, especialmente com o advento da Lei de Recuperação Industrial, que
questões de índole econômica, política e militar, que podem indicar processos de maior regulou diversos setores da economia, controlando, ~n.s;l_t:~sive, a jornada de trabalho,
centralização (força centrípeta) ou atomização (tendências centrífugas). 7 o comércio e a produção lqç<!is.:f~
A presença de forças contrárias revela que não é possível conceber o princípio Na leitura de Schwartz, essa guinada revelou o declínio do federalismo dual, que
federativo apenas a partir de uma estrutura estática- mera forma do Estado-, e sim progressivamente cedeu lugar à centralização e ao aumento da autoridade do governo
como um processo dinâmico em que movimentos pendulares rearranjam seu modo federal, especialmente em matérias relacionadas à regulamentação do comércio, ao
de organização ao longo dos processos históricos. 8 poder de tributação e às políticas de concessão de subvenções. 12
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Mesmo no modelo americano- origem do federalismo moderno- verifica-se que a 'í
De acordo com o autor, essas mudanças teriam promovido um novo arranjo, do
evolução jurisprudencial fomentou mudanças no sentido normativo da Constituição tipo cooperativo, no federalismo americano. Essa transformação é emblemática no
de 1787, o que causou importantes reflexos nas relações entre os entes federativos, caso da concessão de subvenções federais aos Estados por parte do Governo Federal,
mostrando que as vicissitudes históricas e as necessidades sociais desempenham uma vez que a cada concessão, seguia-se a exigência de cumprimento de diversas
importante papel prático no equilíbrio nacional. condições, com cada vez maior regulação central. 13
Assim, se o modelo federalista pensado por Madison,]ay e Hamilton se mostrava Já no julgamento do caso Liga Nacional da Cidade versus Usery, em 1976, houve
adequado ao momento marcadamente liberal do constitucionalismo americano, nova oscilação do pêndulo federativo, desta vez retornando à perspectiva estadualis-
com o New Deal e as reinterpretações levadas a cabo pela Suprema Corte, os vetores ta.14 Todavia,
federativos passaram a indicar o caminho da centralização. 9 15 essa oscilação não chegou a reviver o federalismo duplo em sua forma
tradicional, ainda que, como cediço, os Estados Unidos mantenham considerável
Com efeito, ainda que inicialmente o entendimento dominante fosse que a Cons- parcela de soberania nas mãos dos Estados. 16
tituição americana teria adotado o pacto federativo do tipo dual, no qual os Estados- Esses movimentos- em grande parte impulsionados por mudanças de interpreta-
-membros apenas abriram mão de uma parte de sua soberania a favor da União, pre- ção da Constituição pela Suprema Corte americana 17 - deixam claro que, em sentido
servando seu domínio soberano sobre as competências não atribuídas constitucional- material, o federalismo possui um caráter mutante e histórico, independentemente
mente ao Governo Central (paradigma dualista de cossoberania, baseado no princípio das estruturas formais linguisticamente formatadas no texto constitucional.
da subsidiariedade), 10 Schwartz demonstra que esse quadro mudou drasticamente
A partir do exemplo retratado nessa curta descrição da evolução federativa ameri-
com a necessidade de intervenção estatal positiva no período de recuperação após a
cana, tem-se que uma análise crítica do federalismo brasileiro demanda o reconheci-
mento das estruturas dogmáticas e constitucionais do princípio federativo insculpido
7. SCHULTZE, Rainer-Olaf. Federalismo. O federalismo na Alemanha, p. 17-18. Na concepção do autor, os na Constituição, bem como da dimensão política de um modelo de Estado de Bem-
dois aspectos funcionais devem ser considerados a partir das dimensões jurídico-institucional e sociológica:
evitando, assim, uma análise reducionista do fenômeno federativo (idem, p. 17). Por isso, segundo ele, uma
11. Idem, p. 32.
análise comparativa de sistemas constitucionais federativos deve questionar: "(1) os pressupostos sociais
do federalismo, bem corno a estrutura institucional e os modelos de ação das elites políticas; (2) a dupla 12. Idem, p. 45.
função do federalismo e a relação de tensão dai resultante entre unidade e diversidade, entre integração e l3.
Nas palavras de Schwartz: "Um extenso sistema de subvenções federais destinado a permitir que os estados
autonomia e (3) a relação entre integração política e o caráter de processo do federalismo, porém sem vincu- reabilitassem suas economias e a conceder ajuda aos indivíduos sem condições de cuidar deles próprios
lá-lo unilateralmente a hipóteses de unitarização. As condições sociais básicas, a cultura política e a estrutura constituiu urna parte importante das medidas do New Deal. Mas a dádiva do Governo Federal não era mais
institucional podem até mesmo conduzir a política, no federalismo, na direção oposta efortalecer ou contrapor-se concedida sem qualificações. Condições substanciais foram impostas por Washington aos estados que
à orientação básica centripeta ou centnfuga originalmente colocada (idem, p. 18, destaques nossos). aceitavam suas subvenções, as quais, na verdade, correspondiarn a rigorosa supervisão federal dos planos
8. Nessa perspectiva, Baracho destaca que a tese do federalizing process de Carl Friedrich contribui para a de renascimento econômico empreendido pelos estados. Um exemplo como nenhum outro de uma lei
ampliação do campo de estudo da matéria, proporcionando novos meios de interpretação do federalismo, do New Dea! que fez amplo uso do dispositivo da subvenção foi a Lei da Previdência Social de 1935. Sob
à medida que substitui a ideia de Estado soberano pela de comunidade e concebe o federalismo como um ela, o Governo Federal fez concessões aos estados para assistência aos idosos, a administração das leis
mecanismo organizativo em constante evolução "que serve para ordenar as relações entre comunidades de remuneração dos desempregados, a ajuda às crianças dependentes, o bem-estar maternal e infantil,
existentes, com o objetivo de transformar em realidade institucional as comunidades centrais e periféricas a saúde pública e a assistência aos cegos. No entanto, em troca, foi imposto o controle federal sobre as
que existem em estado latente" (Cf. BARACHO,José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Belo atividades estaduais, pois a legislação, o mecanismo e os métodos de administração estaduais tinham de
Horizonte: Furnarc!UCMG, 1982. p. 8-9). conformar-se com os padrões prescritos pela Lei federal e pela junta da Previdência Social, o órgão criado
9. SCHWARTZ, Bernard. Ofederalismo norte-americano atual: uma visão contemporilnea. Trad. Elcio Cerqueira. para administrá-la" (idem, p. 41-42).
Rio de janeiro: Forense Universitária, 1984. 14. Idem, p. 48 e ss.
10. Acerca do paradigma dualista, Schwartz explica que ele se baseava na completa separação entre as compe- 15. Idem, p. 62.
tências, com áreas exclusivas de autoridade. Nesse caso, os cidadãos estariam sujeitos a urna dupla ordem 16. Sobre o terna, conferir: MATHIOT, André. E! federalismo en Estados Unidos. In: BERGER, Gaston;
de comando estatal, "dois campos de poder rnutualmente exclusivos, reciprocamente limitadores, cujos CHEVALLIER,Jeanjacques et ai. Elfederalismo. Trad. Raul Morodo. Madrid: Editorial Tecnos, 1965.
ocupantes governamentais se defrontavam corno iguais absolutos" (SCHWARTZ. Op. cit., p. 26). Nesse 17. É possível afirmar, acompanhando a proposta de Schwartz, que estando acima dos Estados e do Governo
período, o caso do Trabalho Infantil (Harnmer versus Dagenhart) revelou o entendimento dominante da
Federal a Suprema Corte desempenhou papel de verdadeiro "árbitro do sistema federal na América"
Suprema Corte (idem, p. 28). (SCHWARTZ. Op. cit., p. 46).
100 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 101

-Estar intervencionista e promotor de políticas públicas (dimensão positiva), o que Por sua vez, os centralizadores defendiam que o interesse geral deveria estar acima
demanda conhecimento não apenas dos traços básicos e essenciais do federalismo, das demandas e rivalidades provinciais 21 e acusavam as propostas federalistas de re-
como também das particularidades históricas do caso brasileiro. presentarem uma ameaça à unidade, levando à fragmentação que ocorreu na América
hispânica. 22
3. Ü DEBATE FEDERATIVO NA FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO Com a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823 23 e a outorga da Constitui-
A forma federativa de Estado foi oficialmente instaurada no Brasil por meio do ção de 1824, consagra-se o unitarismo na organização do Estado brasileiro. As vinte
Dec. 1/1889, que proclamou a República e transformou as províncias em Estados, províncias criadas ficam subordinadas ao Poder Central, ao passo que as funções
atribuindo-lhes uma parte de "legítima soberania" .18 Contudo, é preciso lembrar que estatais eram divididas em quatro: Executivo, Legislativo, 24 judiciário e Moderador
os debates acerca da possibilidade de adoção de uma espécie de "monarquia federativa" (art. 10 da CI/1824).
têm lugar já nas discussões políticas travadas imediatamente após a independência e Os presidentes das Províncias eram escolhidos pelo Imperador (art. 165 da CI/1824)
permearam todo o período do Brasil Império. e, em vez de um Poder Legislativo estadual com competências autônomas, a Consti-

'~~;,_. Era preciso organizar uma nova Nação e, nesse contexto, a tensão entre unidade
e autonomia se mostrava evidente nos primeiros debates entre os conservadores-
tuição de 1824 estabeleceu os Conselhos Gerais das Províncias, cujo principal obje-
tivo era propor, discutir e deliberar sobre negócios importantes para suas províncias
If·' liderados por José Bonifácio e adeptos da centralização- e os liberais- representados
por Gonçalves Ledo, defensores de maior atribuição de competências e poder às
(art. 81 da CI/1824). Esses Conselhos não podiam deliberar sobre interesses gerais
da Nação, sobre a Relação entre as Províncias, nem sobre a execução de leis nacionais
~~
'tt (art. 83 da CI/1824.) No âmbito municipal, a Constituição de 1824 previu também as
províncias. 19
Câmaras- governo econômico e municipal das cidades e vilas (art. 167 da CI/1824),
A coroação, em 1. de dezembro de 1822, de Dom Pedro como Imperador repre-
0

sem, todavia, nenhuma autonomia federativa.


I
sentou a primeira vitória do projeto centralizador, em um ambiente político em que
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era necessário dar uma resposta às tendências que poderiam levar à fragmentação do No entanto, esse sistema não teve grande duração, pois com a abdicação de Dom
país com a prevalência dos interesses das elites coloniais. De outro lado, era evidente a Pedro I em 1831 e a instauração da Regência, promoveu-se um avanço do projeto libe-
dificuldade de se manter uma forte centralização sem que o Governo Imperial tivesse ral de Nação, com relevante guinada em prol da descentralização, o que se confirmou
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I', pela edição do Ato Adicional de 1834. 25
condições de levar suas políticas ao interior do país, extenso e culturalmente diverso.
Essas questões formaram o pano de fundo em que se desenvolveram as discussões Entre outras medidas, esse Ato mudou o nome dos Conselhos para Assembleias
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1,.5 constituintes de 1823, marcadas pela forte oposição entre os federalistas e centrali- Legislativas Provinciais, que passaram a deter competência legislativa própria e maior
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I·': zadores. autonomia (por exemplo arrecadação de impostos, obras públicas, eleição do vice-
!',: Os federalistas postulavam que a independência havia proporcionado a liberdade
:·~j para que as Províncias se auto-organizassem, baseando-se na tese de que o interesse as províncias deveriam ser consideradas partes soberanas- Estados e (iv) a Assembleia Província!, por
conhecer a realidade local e suas demandas, deveria agir soberanamente na adaptação das leis nacionais,
geral seria alcançado através da preservação/atendimento de interesses provinciais
devendo eleger o seu funcionário público (idem, p. 38-52).
au torreferidos. 20 21. Idem, p. 54 e ss.
22. Tomando por base os acontecimentos na América hispânica, os centralizadores entendiam que o "Estado-
18. Vide arts. l a 3 do Dec. l/1889: "Art. 1.° Fica proclamada provisoriamente e decretada como a fórma Nação não emerge da soma aleatória dos interesses provinciais" (idem, p. 58).
de governo da nação brazileira - a República Federativa. Art. 2. 0 As Províncias do Braz i!, reunidas pelo 23. A vítória dos centralizadores na Assembleia Constituinte de 1823 não impediu sua dissolução, uma vez
laço da federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brazil. Art. 3.° Cada um desses Estados, no que a Carta constitucional em elaboração ainda estava distante dos anseios do Imperador, especialmente
exercício de sua legitima soberania, decretará opportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os porque o texto estava direcionado a favor de uma monarquia constitucional, em que os poderes do mo-
seus corpos deliberantes e os seus governos locaes". narca seriam limitados (ZIMMERMANN. Op. cit., p. 292). Entretanto, certamente, esse não foi o único
19. É o que ensina Zimmermann: "A contrário de Bonifácio, que pregava um governo forte e mantenedor da fator, pois havia uma situação de intensa luta política, conforme é retratado no episódio conhecido como
centralização administrativa, Gonçalves Ledo defendia a monarquia constitucional representativa. Neste "noite da agonia".
tipo de Império, Parlamento então seria o poder mais importante e se afirmaria a liberdade de expressão 24. O Poder Legislativo era "delegado à Assembléa Geral, com a Sancção do Imperador" (art. 13.) e dividido
e de iniciativa, a descentralização administrativa e a ampla autonomia das províncias" (ZIMMERMANN, em duas Câmaras: Câmara dos Deputados e Senado (art. 14). Possuía competência para interpretar leis e
Augusto. Teoria geral do federalismo democrático. Rio de janeiro: Lumenjuris, 1999. p. 291). sua constitucionalidade (art. 13, VIII e IX).
20. Nesse sentido, Coser pontua que esse era um aspecto central da ideia de federalismo na Constituinte de 25. Segundo assinala Dolhnikoff, os liberais no Império não formavam um grupo coeso, não detinham um
1823, uma vez que "para os federalistas, introduzir valores referentes para além da província significa programa único e, nem mesmo, estavam preocupados com maior participação política da população.
a porta de entrada do absolutismo e do arbítrio" (COSER, Ivo. Visconde do Uruguai- centralização e Convergiam, contudo, na busca de reformas que organizassem o aparato institucional, mostrando que "o
federalismo no Brasil-1823-1866. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de janeiro: IUPERJ, 2008. p. 48). Os que os atraía no modelo norte-americano era o federalismo e não a república ou a democracia. Federalismo
principais argumentos federalistas na Constituinte de 1823, segundo Coser, eram: (i) o pacto constitu- entendido como conjugação entre autonomia provincial e participação das elites provinciais no governo
cional deveria ser aceito, todavia deve ser considerado que a forma monárquica de governo é compatível central, a fim de ampliar o papel político das elites tanto nas suas províncias como na Corte" (DOLHNIKOFF,
coma organização federativa; (ii) a distribuição dos poderes públicos não afetaria a unidade nacional; (iii) Miriam. O pacto imperial. Origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2007. p. 27).

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102 Marco Aurélio Marrafon :) Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 103

-presidente da Província), além do controle sobre os Municípios e sobre os cargos do I


i 4. DINÂMICA DO FEDERALISMO BRASILEIRO DESDE O "PRIMEIRO PACTO FEDERATIVO"
Judiciário. 26 .·1

E justamente este último ponto se tornou o principal motivo para justificar as Nesse sentido, mostra-se pertinente a interpretação de Dolhnikoff, dando conta
propostas de revisão do Ato Adicional que acabaram acontecendo com a Lei da In- de que com o Ato Adicional, celebrou-se um verdadeiro "pacto federativo" no Brasil,
terpretação de 1840. com preservação da autonomia dos governos presenciais que nem mesmo a Lei da
Com efeito, o Visconde do Uruguai, certamente o mais importante defensor da Interpretação do Ato Adicional e a lei de 1841 que estabeleceu o Conselho do Estado
revisão, postulava que não seria admissível que as competências nacionais fossem -órgão consultivo nomeado pelo imperador- conseguiram dissolver. 30
invadidas pelas provinciais, pois neste caso a unidade nacional, garantida pela cen- Além do mais, segundo a historiadora, a revisão centralizadora promoveu um
tralização política, estaria em perigoY E isso estava acontecendo com a vigência do novo tipo de regionalismo que, limitado, passou a depender das novas regras de
Ato Adicional, que permitia o surgimento de conflitos entre o Poder Central e os conduta política controladas pelo Governo Central. 31 Como resultado, operou-se "o
Poderes Provinciais. Isso porque à Assembleia Geral cabia a elaboração dos Códigos, fortalecimento dos grupos provinciais no interior do próprio aparato estatal, com o
que deveriam ser aplicados de maneira uniforme em todo o país, mas as Assembleias consequente estabelecimento das poderosas oligarquias que, ao final do século XIX,
Provinciais poderiam alterar as funções dos cargos neles previstas, o que causaria reivindicaram ainda mais autonomia". 32
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til'I contradições e disputas entre os entes. 28 Nessa leitura, rompe-se com a tradicional concepção de que a Reforma de 1840
Para sanar essa contradição, a Lei da Interpretação de 1840 promoveu uma parcial teria estabelecido uma estrutura centralizada, de modo que o Estado unitário tivesse
(re)centralização, especialmente voltada à organização do Judiciário, para fins de vencido a federação na época do Brasil Império. 33
garantir ao governo central exclusividade nas decisões sobre empregos gerais e para Em consequência, conclui-se, com Dolhnikoff, que a adoção oficial da forma fe-
legislar sobre a polícia judiciária. 29 derativa de Estado com a Proclamação da República se revelou muito mais como um
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rearranjo do próprio sistema federativo- fruto das tensões entre o governo central e
os governos regionais/ 4 do que uma ruptura forte com uma ordem centralista e uni-
I~r, 26. Com o Ato Adicional, esse sistema de controle acabava ficando nas mãos das elites provinciais, esva-
ziando o poder municipal. Sobre o funcionamento e a importância dessas mudanças, Coser explica que: tarista anterior, tese inovadora que contraria interpretações clássicas sobre o tema. 35
1-f;'fl; "AAssembleia Provincial poderia legislar sobre a divisão civil e judiciária da província. Como diversos
cargos na magistratura (juiz de paz,juiz de direito e juiz municipal) eram nomeados para um distrito,
a atribuição mencionada anteriormente permitia que a Assembleia os controlasse; poderia fundir dois
distritos, disponibilizando os funcionários excedentes.( ... ) O controle daAssembleia Provincial sobre buições quando forem estabelecidos por leis gerais a objetos sobre os quais não podem legislaras referidas
os cargos da magistratura se manifestava, principalmente, no§ 7. 0 • De acordo com este, são empregos Assembleias. Art. 3. o O§ ll do mesmo art. lO somente compreende aqueles empregados provinciais, cujas
provinciais todos aqueles que existirem nas províncias, exceto os que dizem respeito à arrecadação, funções são relativas a objetos sobre os quais podem legislar as Assembleias Legislativas da Província, e
igreja, guerra e tribunais superiores. Ainda segundo esse parágrafo, a Assembleia Provincial poderia por maneira nenhuma aqueles que são criados por leis gerais relativas a objetos da competência do Poder
criar, suprimir e estabelecer os ordenados dos empregos provinciais. É importante que chamemos a Legislativo Geral".
atenção do leitor para a consequéncia deste§ 7. 0 . Segundo o Código de Processo, os cargos de juiz de 30. DOLHNIKOFF. Op. cit., p. 145-153.
paz,júri popular, juiz municipal e promotor eram selecionados no município. Os eleitores e a câmara 31. Idem, p. 154.
dos vereadores escolhiam seus membros. Com o Ato Adicional, esses cargos passaram a ser contro- 32. Idem, ibidem.
lados pela Assembleia Provincial, que poderia fundir, alterar ou suprimir suas atribuições. E, com o
33. Idem, p. 12-13. De acordo com a tese da autora: o projeto federalista, tal qual foi concebido por parte da
Ato Adicional, as Assembleias Provinciais esvaziaram as atribuições desses cargos eletivos em favor
iji principalmente do juiz de direito, agora sob seu controle" (COSER. Op. cit., p. 103-104). elite brasileira na primeira metade do século XIX, não morreu em 1824, tampouco em 1840. O projeto
federalista saiu vencedor, embora tenha que ter feito, no bojo da negociação política, algumas concessões.
',.f
l :h 27. O Visconde do Uruguai defendia que se deveria diferenciar a descentralização administrativa da des-
centralização política, sendo esta inadmissível nos Estados Modernos dotados de soberania. Por isso, J Se a opção pela monarquia tornava o Brasil uma exceção no continente, a escolha de um modelo tipo
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sua crítica ao Ato Adicional estava facada no entendimento de que ele teria promovido descentralização i federativo denunciava sua inapelável vocação americana" (idem, p. 14).
34. Idem, p. 298-299.
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política, daí a necessidade de revisão. Em suas palavras "A descentralização administrativa que trouxe o
Ato Adicional era,( ... ), até certo ponto justificável. Descentralizando porém as atribuições que passou 35. ABRUCIO, Fernando Luiz. Os barões da federação. Os governadores e a redemocratização brasileira. São
para as Assembleias Provinciais, era indispensável fazê-lo de modo que cada um dos poderes geral e Paulo: Hucitec- Departamento de Ciência Política da USP, 1998; ZIMMERMANN. Op. cit.; COSER. Op.
provincial se pudesse mover em sua órbita, sem encontrar no mesmo terreno e pôr-se em conflito com o cit.; CARVALHO ,José Murilo de. Federalismo e centralização no Império brasileiro. In: CARVALHO,
outro. Era indispensável que essa descentralização fosse meramente administrativa, e não embaraçasse a JOSÉ Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 155-
direção política dos poderes gerais, que não pode deixar de ser única; nem é possível que hajam [sic] tantas -188. ParaAbrucio, o federalismo nasce do descontentamento ante o centralismo imperial. "A luta pela
políticas quantas Assembleias Provinciais. Seria uma completa anarquia" (SOUSA, Paulino José Soares autonomia provincial em termos financeiros mobilizava de forma diferenciada as várias províncias, pois
de. Ensaio sobre o direito administrativo. In: CARVALHO,josé Mutilo de (org.). Visconde do Uruguai. São elas tinham interesses e situações econômicas bem diversas" (op. cit., p. 32). Interessante observar que
Paulo: Ed. 34. p. 457- Cal. Formadores do Brasil). "o problema das desigualdades econômicas regionais, já no nascedouro da República, impossibilitou
28. COSER. Op. cit., p. 100. a união de todas as províncias em torno de um projeto comum de reforma tributária" (idem, p.33).
29. Vejam-se osarts 2. 0 e3. 0 da Lei da Interpretação do Ato Adicional: "Art. 2. 0 A faculdade de criar e suprimir Dessa forma, torna-se vitorioso o projeto de discriminação das rendas que beneficiava os estados ex-
empregos municipais e provinciais concedida às Assembleias de Província pelo§ 7. 0 do art. lO do Ato portadores (SP, MG, R], BA, PA e AM) e o conceito de autonomia financeira servirá basicamente para
Adicional, somente diz respeito ao número dos mesmos empregos, sem alteração da sua natureza e atri- os estados mais ricos, em especial São Paulo, deixando "claro o caráter originalmente hierárquico da
Federação brasileira" (idem).
. • ,._?
104 Marco Aurélio Marrafon ~. -. · . ·; Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 105

Assim, com o desgaste do governo imperial, a questão da escravidão e a força


das elites locais/ 6 houve uma progressiva convergência para o federalismo como a
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Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, as teses que propunham o desen-
volvimento pelo alto, com um Estado forte e centralizador, ganharam força, 39 o que
forma mais eficiente de Estado tanto do lado de partidos liberais como dos partidos significou o predomínio de políticas de desenvolvimento econômico e industrial do
republicanos. país e de outorga de direitos sociais a partir do Governo Central. 40
Desde então o federalismo brasileiro, não saindo da regra, tem se mostrado um Assim, ainda que alguns defendam a presença de estruturas federativas cooperativas
processo dinâmico, marcado por movimentos pendulares em que há momentos de na Carta de 1934,41 sua curta vigência não permitiu que elas fossem operacionais. Já a
maior autonomia dos Estados e outros de grande centralização administrativa e, Carta de 193 7, outorgada e autoritária, instaurou um federalismo meramente nominal
especialmente, fiscal. (art. 3. 0 ), com amplo domínio político e institucional do Poder Executivo da União.
A proclamação da República e a promulgação da Carta de 1891levaram à insti- A possibilidade de edição de Decretos-lei enquanto o Parlamento Nacional estivesse
tuição de um sistema presidencialista de governo, parlamento bicameral, repartição fechado (art. 13 da CF/193 7), versando sobre todas as matérias da ampla competência
horizontal em três poderes-Judiciário, Executivo e Legislativos independentes com
o fim do Poder Moderador- e forte descentralização e autonomia dos Estados, agora
fiadores da autonomia dos Municípios.
Todavia, se nos traços estruturais era similar à Constituição dos EUA, é preciso
notar que, diferentemente do processo americano, em que houve a união dos Estados-
-membros num movimento~~ no Brasil houve o processo inverso, com a União
I da União (art. 16 da CF/1937), e o poder de "sustar" o controle de constitucionalida-
de pelo Parlamento (art. 96, parágrafo único, da CF/1937), que estando fechado por
grande parte daquele período se transformava em prerrogativa do Chefe do Executivo
da União, 42 deixam inequívoco que a Constituição de 1937 promoveu a concentração
de poderes nas mãos do Presidente. 43
Esse rearranjo representou uma verdadeira deturpação do Estado Federal,já que,
Federal cedendo autonomia nos campos legislativo, administrativo e orçamentário, devido ao centralismo autoritário, o Estado passou a atuar como se fosse um Estado
em uma direção centrífuga. Unitário. Um Estado Unitário descentralizado, como defende Horta. 44
Assim, se o arranjo federalista vitorioso em 1891 tinha nítida feição liberal, com O pêndulo volta a oscilar no sentido da descentralização com a redemocratização
forte inspiração no paradigma dualista!estadualista americano, suas consequências trazida pela Constituição de 1946. No período entre 1946 e 1964, as ideias liberal-
nada satisfatórias em face das condições histórias e sociológicas do país à época 37 e as -federalistas são resgatadas: (i) a Constituição de 1946 confirma o princípio federativo;
sucessivas crises que se seguiram38 levaram o pêndulo para o paradigma centralista- (ii) estabelece as competências da União (ainda amplas), mas recupera a competência
-hierarquizador após a Revolução de 1930 e as Cartas constitucionais que marcaram residual ou remanescente dos Estados-membros, reforçando suas autonomias; (iii)
a primeira Era Vargas. mantém também um sistema de competências concorrentes; e (iv) promove relevante
Ora, o país ainda predominantemente agrário- marcado pelo patrimonialismo e transferência de receitas da União para os Estados, vinculando-as.
clientelismo -levou ao governo de índole coronelista baseado na expansão do poder No entanto, na comparação entre os textos constitucionais de 1937 e de 1946,
das elites locais. Em tal contexto, as possibilidades de avanço democrático foram pode-se afirmar que esse resgate se dava muito mais em uma perspectiva material do
sufocadas, abrindo-se as portas para o autoritarismo.
39. Para aprofundamento, conferir: VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Fede-
ral, 1999 (Co L Biblioteca Básica Brasileira); e CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu
36. A vitória federalista na Proclamação da República é acima de tudo uma vitória das elites locais- especial-
mente de Estados poderosos como SP e MG, já que, com a possibilidade de eleição dos Governadores, conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, 2001.
elas ganharam mais autonomia na política nacional e, no plano interno, mantiveram e aumentaram suas 40. WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1989.
posições de governo. 41. BERNARDES. Op. cit., p. 229.
37. Depois de destacar que os Governadores se tornaram, então, os principais atores políticos, Abrucio 42. Para aprofundamento dessa questão, conferir: MENDES, Gilmar. Controle de constitucionalidade. In:
assinala três consequências relevantes do modelo federalista de 1891: (i) o poder do governador surge MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 8. ed. São
de forma oligárquica e acima dos partidos, a partir de sua influência sobre a circunscrição eleitoral; (ii) Paulo: Saraiva, 2013. p. 1040-1042
forte desequilíbrio federativo contrapunha dois estados fortes contra uma união frágil e uma dezena de 43. Ademais, conforme explica Silva: "A Carta de 1937 não teve, porém, aplicação regular. Muitos dos seus
unidades que dependiam do auxílio do Tesouro Federal, o que resultava na filiação automática ao bloco dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e
do "café com leite", sem uma real autonomia dos estados da Federação; e (iii) Disto resulta que o "federa- Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-lei que
lismo nasceu dissociado da República", sendo o reino das oligarquias, do patrimonialismo e da ausência ele próprio aplicava, como órgão do Executivo" (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional
de participação popular (ABRUCIO. Op. cit., p. 40). positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 83).
38. A crise da primeira República veio da crítica ao modelo oligárquico e da nacionalização do discurso político 44. Segundo Horta: "O Decreto-leifederal n. 1.202, de 8 de abril de 1939, que dispunha sobre a administração
a partir dos movimentos organizados pelas classes médias urbanas, em especial, o tenentismo. Há, ainda, dos Estados e dos Municípios, lançou os fundamentos normativos da conversão dos Estados-membros
desde a Primeira Guerra o fortalecimento do exército e uma maior centralização política que redundou em coletividades territoriais descentralizadas, submetidas a permanente revisão, controle e fiscalização
na Reforma Constitucional de 1926, aumentando o poder de intervenção da União. Por fim, a dissensão do Presidente da República. Institui-se completo regime de tutela administrativa, política efinanceira, que
no café com leite, quando São Paulo insistiu na candidatura própria e gerou uma rearticulação regional condicionava a vigência dos atos da administração estadual à aprovação hierárquica do Chefe de Estado"
que culminou na Revolução de 1930. (HORTA. Op. cit., p. 29; itálicos do texto original).
106 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em tomo da dinâmica entre autonomia e centralização 107

que nominal, já que muitos desses dispositivos, mesmo que letras mortas, estavam aos Estados- que passaram a contar com a titularidade de seu principal tributo,
presentes na Carta de 1937. o ICMS, e elevou-se o Município a ente federativo, dotado de auto-organização,
Ademais, conforme bem pontua Horta, não se chegou a evitar a hipertrofia do autõãdillinistração e autonomia legislativa no âmbito de sua competência (arts. 29
Governo Federal, pois se manteve o agigantamento da administração central, "con- a31 da CF/1988). 49
tribuindo para manter vivo o contraste entre as dimensões da primeira e a modesta Daí a implantação do federalismo em três níveis: União, Estados-membros (e
inferioridade das administrações estaduais" .45 Distrito Federal) e Municípios, 50 indicativo de maior descentralização administrativa
Todavia, com o Golpe Militar de 1964, tanto os ideais federalistas quanto os demo- e legislativa, sem que se abrisse mão do foco no planejamento de políticas públicas
cráticos se perdem. Nesse período, uma nova centralização é efetivada, inicialmente pelo Governo Central.
por meio dos Atos Institucionais, em especial o Al2, de 27.10.1965, que expande o Nesse passo, visando tornar possível o atendimento a tais demandas, a Constituição
intervencionismo federal. de 1988 adotou um sistema complexo de repartição de competências que, conforme
..,:;-""' A tese predominante era de que o federalismo deveria ser instrumento para desen- resume Silva:
volver economicamente o país e garantir a segurança nacional a partir da vontade do "( ... )se fundamenta na técnica de enumeração dos poderes da União (arts. 2l e
poder central. 46 Sob a égide da Constituição de 1967 e a posterior Emenda 1/1969, o 22), com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, § 1. 0 ) e poderes definidos indi-
Brasil se torna uma pseudofederação, tamanha a força da União e as características cativamente para os Municípios (art. 30), mas combina, com essa reserva de campos
centralistas próprias de Estado unitário. específicos (nem sempre exclusivos, mas apenas privativos) possibilidades de dele-
gação (art. 22, parágrafo único), áreas comuns em que se preveem atuações paralelas
5. FEDERALISMO E REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23) e setores concorrentes entre
Com os ares da redemocratização, o constituinte de 198711988 buscou conciliar União e Estados em que a competência para estabelecer políticas gerais, diretrizes gerais
dois temas significativos do Estado de Direito: a preservação da dimensão liberal-formal ou normas gerais cabe à União, enquanto se defere aos Estados e até aos Municípios
de limitação do poder estatal e direitos fundamentais individuais com a agenda social a competência suplementar" 51 (itálicos no original).
de maior igualdade material e efetivação de direitos sociais, de índole prestacional,
pautas típicas do chamado Estado Social e Democrático de Direito. 47 a defesa nacional, as forças armadas, o comércio interestadual, a moeda, o crédito. Mas desde há muito
tempo que nossas sucessivas Constituições, incluindo-se a atual de 1988, ampliaram flagrantemente as
Essa agenda teve importantes reflexos na renovação das estruturas federativas do competências federais, competindo à União, dentre outras coisas, a elaboração da legislação civil, comercial,
Estado brasileiro, já que as exigências de bem-estar social aliadas à necessidade de penal, processual, eleitoral, agrária, marítima, aeronáutica, espacial e do trabalho" (ZIMMERMANN. Op.
fomento da democracia em diferentes âmbitos de competência levaram a um arranjo cit., p. 332).
bastante próprio. 49. Contudo, é preciso registrar que a questão da autonomia municipal apresenta um paradoxo, pois como
bem destacam Tomio, Camargo e Ortolan "a Constituição de 1988 inovou ao elevar o Município de
Assim, se de um lado manteve-se (e mesmo incrementou-se) a significativa organização política autônoma para ente federativo, conformação inexistente nas demais federações
abrangência das competências da União, 48 de outro atribuiu-se maior autonomia comparadas. Contudo, simultaneamente à universalização da autonomia municipal, a organização das
instituições locais é pormenorizada no texto constitucional, independentemente de extensão geográfica,
densidade populacional etc. A capacidade de organização e ação nas dimensões política, administrativa e
45. Idem.
'j financeira é exercida conforme o modelo único definido constitucionalmente" (TOMIO, Fabricio Ricardo
46. Assinala Zimmermann que: "Trata-se, no caso, da implantação de um suposto 'federalismo de cooperação', 'cf de Limas; CAMARGO, Fernando Santos; ORTOLAN, Marcelo Augusto Biehl. Autonomia dos governos
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que promoveria o desenvolvimento econômico com o máximo de segurança coletiva. Eis a intrigante fórmula locais em federações: uma análise comparativa. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais- RBEC, ano
apresentada, mas que em outras palavras representava um mero simulacro de sistema federativo; totalmente 1, n. 1,jan.-mar 2007. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 78).
fictício conquanto camuflagem de uma organização estatal visivelmente autoritária" (ZIMMERMANN.
Op. cit., p. 326.). G· Em posição contrária, defendendo a leitura de que os Municípios são desdobramentos dos Estados e não
entes federativos, Silva argumenta que: "Não é porque uma entidade territorial tenha autonomia político-
4 7. Nesse sentido, Ferrazjr. anota que: "o que se propôs na constituinte foi um processo de transformação do constitucional que necessariamente integre o conceito de entidade federativa. Nem o Município é essencial
Estado. E, com essa noção não se exprime apenas a sujeição do Estado a processos jurídicos e a realização ao conceito de federação brasileira. Não existe federação de Municípios. Existe federação de Estados. Estes
não importa de que ideia de direito, mas a subordinação a critérios materiais que transcendem, princi- é que são essenciais ao conceito de qualquer federação" (SILVA. Op. cit., p. 475). Para o autor, o fato de
palmente, a interação de dois princípios substantivos. O princípio da soberania do povo e dos direitos não ser possível a intervenção federal nos Municípios e sim intervenção estadual, bem como a necessidade
fundamentais, que está no art. 1.0 , parágrafo único, I, 11, III, da CF/1988, é conjugado com o da realização de lei estadual para sua criação, incorporação, fusão e desmembramento são provas de que os Municípios
da democracia econômica, social e cultural como objetivo da democracia política que está também no art. são desmembramentos dos Estados (idem, ibidem). No entanto, apesar da consistente argumentação e,
1 1. 0 , IV e V, e art. 3. 0 , I, 11, III e V, da CF/1988" (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Constituição brasileira mesmo considerando que não há Poder Judiciário dos Municípios, segue-se a corrente majoritária, já

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1 e modelo de Estado. Hibridismo ideológico e condicionantes históricas. In: CLÉVE, Clemerson Merlin; que, além do status constitucional a eles conferidos no art. 1. 0 da CF, os Municípios possuem autonomia,
BARROSO, Luís Roberto (org.). Direito constitucional: teoria geral do Estado. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. auto-organização, competências legislativas específicas (âmbito local) e titularidade de receitas próprias,
706- Co!. Doutrinas Essenciais; vol. 2).
.. 48. Com razão, Zimmmermann anota que: "Conforme a praxe dos Estados federais, a nossa União federal
o que demonstra que eles são entes federativos, desde que considerada a peculiaridade do Estado Federal
brasileiro .
tem o poder exclusivo de legislar e resolver problemas fundamentais, tais como as relações exteriores, 51. SILVA. Op. cit., p. 479.
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108 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 109

A União foi contemplada com amplos poderes administrativos e legislativos, ma- efetivação desses direitos eminentemente sociais. Nesses termos, o art. 23 deixa ex-
terializados nos diferentes modos de exercício de sua competência: competência geral plícita a exigência de cooperação no federalismo brasileiro. Em seu parágrafo único,
exclusiva (art. 21), competência legislativa privativa (art. 22), competências comuns ele determina que a cooperação deve visar o "equilíbrio do desenvolvimento e do
(art. 23) e competência concorrente (art. 24). bem-estar no âmbito nacional", cabendo à União editar as leis complementares que
A competência geral prevista no art. 21, de índole material e exclusiva (considerada podem ensejar essa cooperação.
indelegável), abrange "temas que envolvem o exercício de poderes de soberano, ou A União detém, ainda, a competência legislativa de editar normas gerais nas matérias
que, por motivo de segurança ou de eficiência, devem ser objeto de atenção do governo enumeradas no art. 24 da CifEm tais temas, ela concorre com os Estados-membros e o
central". 52 Contudo, como lembra Branco, seu rol não é exaustivo, haja vista a previsão Distrito Federal, a quem cabe elaborar as normas específicas, em caráter suplementar
do art. 177 da Constituição Federal, que trata do monopólio da União em matérias e de acordo com seus interesses e _demandas.regionail Essa competência legislativa
relativas à pesquisa, lavra e exploração de petróleo, seus derivados, gás e minérios. 53 concorrente atribui proeminência ao interesse nacional, de modo que, havendo leis
Em relação à competência legislativa privativa, prevista no art. 22 da CF/1988, cabe gerais, não pode a legislação estadual suplementar contrariá-las. Por outro lado, em
destacar que ela envolve especialmente a elaboração de leis nacionais (por exemplo, caso de inexistência da legislação nacional, as leis estaduais podem tratar de matéria
inc. XXVII, art. 22), com força normativa irradiante para todos os entes federados de modo abrangente, regulando-a em sua totalidade até que seja editada a norma
em temas centrais e concernentes a toda a Nação. Essa competência, contudo, não é geral, ocasião em que cada norma prevalecerá no âmbito de sua competência (art.
exclusiva e comporta delegação, uma vez que, nos termos do parágrafo único do art. 24, §§ 3. 0 e 4. 0 ).
22, por meio de lei complementar a União poderá autorizar que os Estados legislem A par dessa competência suplementar nas matérias concorrentes, os Estados são
sobre questões específicas enumeradas no citado artigo. dotados de poder de au to-organização 57 e a eles foram reservadas as competências resi-
Também em relação ao art. 22 da CF/1988 não há que se falar em enumeração duais administrativas e legislativas, o que significa dizer que a eles resta a competência
exaustiva,já que há competências previstas em outros dispositivos, por exemplo art. que não esteja no âmbito da União, nem dos Municípios, e, no caso da administrativa,
48. 54 Além disso, lembra Branco que existem disposições constitucionais que precisam também da competência comum. 58
de leis integradoras de eficácia que são de competência da União. 55 Conforme o autor,
esse é o caso, por exemplo, de leis para quebra de sigilo das comunicações telefônicas 57. Sérgio Ferrari, entretanto, observa que o poder de auto-organização dos Estados encontra-se esvaziado,
(art. 5. o, XII) ou que organizam a seguridade social (art. 194, parágrafo único). 56 especialmente em razão do princípio da_simetria, uma vez que "da Constituição Federal já se extrai um
modelo de Estado-membro totalmente constituído e quase integralmente organizado" (FERRAR!, Sérgio.
Ademais, nos termos do art. 153, I a VII, a União possui competência legislativa nos Constituição estadual e federação. Rio de janeiro: Lumenjuris, 2003. p. 264; itálicos no original). Nesse
impostos de sua titularidade, quais sejam: importação, exportação, renda e proventos sentido, Souza Neto e Sarmento acusam a insustentabilidade da jurisprudência do STF em impor aos
de qualquer natureza, produ tos industrializados (IPI), operações de crédito, câmbio e Estados-membros a observância do Princípio da Simetria como decorrência do Princípio da Separação
dos Poderes, o que teria diminuído a significação da auto-organização dos Estados-membros, como pode
seguro, ou relativas a títulos e valores imobiliários, propriedade territorial rural (ITR)
atestar o seguinte fragmento: "O poder constituinte decorrente se justifica pela necessidade de que os
e impostos sobre grandes fortunas. entes federativos possam se estruturar de acordo com as suas peculiaridades e a vontade de seu povo,
Ainda, em sentido inverso à lógica de repartição geral das competências, no que se desde que respeitados os limites impostos pela Constituição. Portanto, o seu reconhecimento incorpora a
valorização do pluralismo, ao permitir que as unidades federais diferentes se organizem de forma distinta.
refere à tributação a União detém a competência residual, podendo, mediante lei com-
' Sem embargo, a Constituição de 1988 consagra inúmeras restrições inequívocas à auto-organização dos
plementar, instituir impostos não previstos no art. 153, conforme dispõe o art. 154, I. '~
Estados (. .. ) Contudo, para além destes limites, a jurisprudência vem construindo outros, ao nosso ver
No que se refere às competências comuns dispostas no art. 23 da Constituição insustentáveis, ao impor a observância pelos Estados do modelo federal em praticamente tudo, o que tem
esvaziado a ,auto-organização desses entes federais, ao ponto de praticamente aniquilá-la" (SOUZA NETO,
Federal, são elas essencialmente administrativas, envolvem temas que vão desde a
Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo
saúde, meio ambiente, moradia, fomento de produção alimentar e agropecuária, até Horizonte: Fórum, 2012. p. 327; itálicos no original). Daí os autores defenderem que "a exigência geral de
a educação, e pressupõem uma situação de colaboração entre os entes federativos. simetria não se compatibiliza com o federalismo, que é um sistema que visa a promover o pluralismo nas
formas de organização política" (idem, p. 334). Em sentido contrário, Branco entende que"(. .. ) o padrão
Desse modo, União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios possuem o
de tripartição de poderes tomou-se matriz das mais invocadas em ação direta de inconstitucionalidade,
poder-dever de zelar por temas de intere~se comum ali expressos, bem como devem para a invalidação de normas constitucionais e infraconstitucionais dos Estados-membros" (BRANCO.
atuar conjuntamente, de modo concertado, na realização de políticas públicas e Op. cit., p. 795) e, citando passagem da ADI-MC 1905, rei. Min. Sepúlveda Pertence, destaca que "os me-
canismos de controle recíproco entre os Poderes, os freios e contrapesos,(. .. ) só se legitimam na medida
em que guardem estreita similaridade com os previstos na Constituição da República" (idem, ibidem).
52. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Organização do Estado. In: MENDES; BRANCO. Op. cit., p. 801. Daí decorrendo, portanto, a exigibilidade d~~c__íEÍQ da·_sj!!.J.~tr!~.
53. Idem, ibidem.
58. Branco recorda quenaADin 485, rei. Min. Eros Grau, o STF reforçou que "as competências legislativas dos
54. Idem. Estados-membros se definem por exclusão do que houver sido definido pelo constituinte como integrante
55. Idem. do domínio da competência da União e dos Municípios. A competência dos Estados-membros é residual,
56. Idem. nesse sentido" (BRANCO. Op. cit., p. 797).
110 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 111

Não obstante, a Constituição atribuiu aos Estados a competência administrativa Corroborando esse entendimento, a Carta de 1988 trouxe também inegáveis avan-
para explorar os serviços de gás canalizado (art. 25, § 2. 0 ) e a competência legislativa ços na repartição de ~_c:_~ij_a_Hrihutárias da União ~gtr~os Estados e os Municípios (art.
exclusiva de instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões !59 da CF/1988), fortalecendo ainda mais a autonomia desses entes. 61
(art. 25, § 3. 0 ). Da mesma forma, como recorda Branco, "é explícita a competência dos Nessa perspectiva, seguindo a leitura proposta por Afonso Mendes- sem olvidar
f,,
,.I'• Estados-membros para, por meio de lei estadual, respeitado o período a ser fixado em da centralização legislativa e administrativa por parte da União-, ao tratar da matéria
lei complementar federal, criar, fundir e desmembrar Municípios" .59 tributária, informa que a descentralização foi o resultado de um processo que se iniciou
Em matéria tributária, os Estados e o Distrito Federal possuem competência para antes mesmo da Assembleia Constituinte, tendo, em realidade, sido aprofundado,
instituir os impostos previstos no art. 155 da Constituição Federal, quais sejam: regularizado e regulamentado pela Constituição 1988@
transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens e direitos (inc. I), operações Já para Abrucio, o fortalecimento do poder dos governadores após as eleições de
relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte 198263 (q~m sistema político frágil, detinham legitimidade do voto popular
interestadual e intermunicipal e de comunicação- ICMS (inc. li) e propriedade de em detrimento de um Poder Central autoritário e desacreditado) fez com que os mo-
veículos automotores (inc. III). vimentos descentralizadores na década de 1980 se tornassem mais robustos. Como
No que importa aos Municípios, ao também conceder-lhes poder de auto- consequência, a Constituinte teria sido marcada pelo domínio dos interesses regionais
-organização, o constituinte o limitou às diretrizes traçadas na Constituição da Repú- -o discurso da descentralização era dominante, a classe política não estava unida em
blica e a do respectivo Estado-membro (art. 29). Ademais, enumerou sua competência
em diversos dispositivos, configurando as chamadas "hipóteses expressas", tais como 61. De acordo com Ferrari: "( ... )o problema da repartição das competências e receita tributárias é o ponto de
as previstas no art. 30, III a IX (por exemplo: promover adequado ordenamento ter- maior importância na análise do federalismo brasileiro. Após um período de eclipse quase total da autono-
mia federativa durante o regime militar inaugurado em 1964, a Constituição de 1988 pretendeu conferir
ritorial- inc. VIII) e art. 144, § 8. que trata da guarda municipal.
0
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a Estados-membros e Municípios suficiente autonomia financeira, seja através da criação de tributos
Completando o sistema de competências constitucionalmente delimitado, foram próprios, seja através da participação de ambos em tributos da União, e dos Municípios nos tributos dos
Estados-membros. Cabe destacar que esta participação independe da vontade política do ente que reparte
conferidas aos Municípios competência legislativa implícita e privativa para tratar de
suas receitas, sendo discriminada na própria Constituição. Apesar deste esforço do constituinte, o desajuste
interesse local (art. 30, 1) 60 e também a competência para "suplementar a legislação fiscal dos Estados e Municípios manteve-se desde a promulgação da nova Carta" (FERRAR!. Op. cit., p. 51).
f~eral e a estadual,no que couber" (art. 30, II). 62. MENDES, Gilmar Ferreira. Tributação e finanças públicas na Constituição Federal de 1988. In: MEN-
DES; BRANCO. Op. cit., p. 1345. Nessa linha, e considerando os limites deste estudo, cabe destacar a
\ Ainda, por força do disposto no art. 30_2-II, aos Municípios compete instituir e ar-
esclarecedora síntese de Mendes: "A década de 1980 é marcada pelo avanço do poder dos governadores,
rt;_cadar os tributos de sua competência, conforme art. 145, I a Ill, da CF/1988. Nestes alterando-se o quadro político que se mantinha desde 1964, período no qual houve forte concentração
termos, os-"ímp.ostos predüil é terfitorial urbano (IPTU), de transmissão inter vivos de de poder político e económico nas mãos da União. O processo de redemocratização do país e descentra-
bens imóveis (ITBI) e sobre serviços de qualquer natureza (ISS) são titularizados pelos lização fiscal, que já vinha em curso anos antes, resultou, anos mais tarde, no movimento pelas eleições
presidenciais diretas e na formação da Assembleia Nacional Constituinte que deu origem à Constituição
Municípios, nos termos da expressa previsão do art. 156 da CF/1988. vigente" (idem, ibidem). Assim, "cuidou-se, então, de ampliar as competências estaduais e municipais
de maneira a estender a lista de serviços sujeitos ao ISS, tributo de competência municipal, e a incluir,
6. A INTERPRETAÇÃO ESTADUALISTA no âmbito da competência tributária estadual para cobrança de ICMS, fatos econõmicos antes sujeitos
exclusivamente à competência tributária federal: combustíveis, energia elétrica e telecomunicações"
Como visto, a Constituição de 1988 implantou um sistema federativo com uma (idem, p. 1346). Mantendo a linha de descentralização de recursos, a partilha "foi novamente ampliada
complexa divisão de competências, englobando não apenas as atribuições isoladas de com a Constituição de 1988, inclusive como forma de promover a autonomia financeira dos entes menos
Í' cada ente, mas também as competências comuns e concorrentes. Um primeiro olhar favorecidos economicamente" (idem, ibidem). Disso resultou que "aos Estados-membros, por meio do
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FPE, coube 21,5% do IR e do IPI arrecadado pela União. Aos Municípios, por meio do FPM, coube 22,5%
indica que esse sistema promoveu a institucionalização de maior descentralização do IR e do IPI arrecadados pela União" (idem, ibidem).
administrativa, com autonomia tributária aos entes subnacionais, que passaram a ter 63. ABRUCIO. Op. cit., p. 93-106. Em sua tese, Abrucio argumenta que: Além das ações institucionais, o
receitas próprias e tributos de sua titularidade, ganho inegável de autonomia. governo militar ampliou a relação clientelista com os municípios e, apesar de tudo isto, nas eleições de
I 982 os partidos de oposição elegeram 10 dos 22 governadores, obtendo os três mais importantes estados
da Federação. Três quartos do PIB e quase 75% do ICM recolhido por todos os estados passaram às mãos
59. Idem, p. 802-803 . da oposição. A partir de agora, "o modelo unionista-autoritário perdia seu principal pilar: o controle da
.I 60. Muitos autores atestam a dificuldade de delimitação conceitual da competência municipal para legislar autonomia política estadual" (idem, p. 93-94 ). A fonte da soberania do governador passa a ser o povo e,
f portanto, os governadores tornaram-se muito mais independentes do Poder Central. "Estabeleceu-se,
sobre o interesse local. Daí o entendimento de que essa competência deve ser "predominantemente
municipal", com pouca ou nenhuma repercussão em relação aos demais entes federados (nesse sentido, portanto, aquilo quejuan Linz chamou de diarquia (Linz, 1983). Ou seja, o sistema político se caracte-
BRANCO. Op. cit., p. 805). De qualquer modo, não sendo possível uma precisa conceituação abstrata e rizava pela coexistência de duas fontes distintas de poder, como também de duas estruturas de poder"
11
f1 a priori, dessa definição, é no caso concreto que haverá de se medir o grau de observância desse âmbito (idem, ibidem). De um lado, o governo federal como fonte autoritária do poder, sustentada nas forças
li local, tendo em vista a extensão da regulamentação prevista na legislação municipal. Por certo, deverão armadas e na estrutura burocrática federal, comandando o maior partido na Câmara e no Senado e, de
ll ser considerados constitucionais apenas os dispositivos da lei municipal que não extrapolem a esfera de outro, os governadores legitimados pelo voto direto, detendo as máquinas públicas estaduais que influíam
8t1
sua competência e não repercutam em âmbito regional e nacional. decisivamente na estratégia eleitoral da classe política brasileira (idem, p. 94-95).
112 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 113

torno de um pacto nacional- fazendo com que a Constituição adotasse os contornos Assim, na proposta de Abrucio, a fragilidade dos partidos políticos e o controle da
do federalismo estadualista, 64 no qual os Governadores, com recursos financeiros e atuação dos deputados federais proporcionaram aos governadores grande poder de
sem muita fiscalização, passaram a governar em um regime ultrapresidencialista es- veto na política nacional. 77 Para ele, surpreende que "esse poder dos governadores e
tadual,65 marcado pela submissão e controle dos parlamentares federais- na maioria a configuração estadualista, centrífuga e predatória assumida pela Federação brasi-
das vezes em bases fisiológicas e clientelistas- em torno dos interesses locais, o que leira na redemocratização, não encontram paralelo nas experiências federativas mais
solapava as possibilidades de um verdadeiro pacto federativo de índole cooperativa e consolidadas do Mundo, como os EUA e a Alemanha". 78
impedia avanços republicanos.06 Essa tese expressa entendimento bastante difundido nos anos seguintes à pro-
Nesse contexto de predomínio dos interesses estaduais do tipo "não cooperativo", mulgação da Constituição de que a descentralização adotada pelo Estado brasileiro
Abrucio defende que: teria aumentado significativamente o poder de veto das autoridades locais, fazendo
(i) a não cooperação impossibilitava não apenas "a hegemonia de um grupo de com que, em vez da concretização do ideal democrático em diferentes níveis que
estados no plano político, mas a instalação de mecanismos de compensação financeira pudesse saldar as dívidas sociais do passado, o governo tenha ficado ineficiente e
regional" ,67 num país com enormes desequilíbrios entre os estados, tornando o nosso engessado, incapaz de lidar com as diferentes demandas que o desafiavam (controle
federalismo antifederativo; 68 da inflação, dívidas interna e externa, combate à pobreza, diminuição das desi-
gualdades regionais, concretização de direitos por meio da realização de políticas
ii) não havia um accountability governamental, restando um comportamento de-
públicas, entre outros).
fensivo e, por vezes, predatório; 69
O período de 1991 a 1994 parecia confirmar esse diagnóstico. Abrucio chega
(iii) "o federalismo estadualista foi um obstáculo para a formação de um pacto
mesmo a defender que até 1994 o reforço do poder dos governadores com os recur-
político hegemônico que construísse um novo tipo de Estado". 70
sos dos bancos estaduais e a titularidade do ICMS os teria levado a atuar de maneira
Segundo ele, essas consequências resultaram da atuação dos Governadores que, irresponsável com as contas públicas, ocasionando elevado endividamento sem que
inserindo-se no contexto do federalismo estadualista, assumiu, em linhas gerais, três houvesse a contrapartida em políticas públicas efetivas. 79
características:
Esse pano de fundo justificaria, então, as reformas centralizadoras operadas pela
(i) "os governadores eram fortes no cenário nacional graças à influência exercida União nesse período- afinal, o término da inflação não permitia grande margem de
sobre os parlamentares federais" ,71 contrapondo-se a qualquer iniciativa do Executivo maquiagem orçamentária e o sucesso do Plano Real dependeria do equilíbrio das
Federal que visasse alterar a ordem federativa vigente; 72 contas públicas em todos os âmbitos federativos, já que o governo precisava retomar
(ii) "os governadores não atuavam de forma coordenada e cooperativa" ,73 pre- sua capacidade de investimento.
valecendo uma conduta individualista e não cooperativa. Alianças formadas eram A fim de alcançar esses objetivos, foram tomadas diversas medidas que concentra-
pontuais e de caráter defensivo; 74 ram competências e receitas na União e promoveram o retorno do pêndulo ao Governo
(iii) "os governadores não estabeleciam relações cooperativas com o Governo Central. Entre elas, pode-se citar:
Federal, de modo a instituir um accountability intergovernamental". 75 Aumentaram (i) a promulgação da EC 3/1993 que, ao incluir o§ 4. no art. 167 da CF, permitiu
0

seu poder, mas não suas responsabilidades. 76 a retenção de créditos oriundos do ICMS pela União; 80
(ii) a criação do Plano de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual em relação
64. Idem, p. 103.
à Atividade Bancária (Proes);
65. Idem, p. 106.
66. Idem, p. 168. (iii) a implantação do Fundo de Estabilização Fiscal- que vinculou 20% das receitas
67. Idem, p. 200. federais, reduzindo o repasse aos Estados e Municípios;
68. Idem, ibidem. (iv) a renegociação das dívidas dos Estados operada pela Lei 9.496/1997, que fez
69. Idem, ibidem.
com que os governos locais perdessem parte significativa de sua autonomia ao acei-
70. Idem, p. 200-201.
tarem severas restrições administrativas e orçamentárias oriundas da União;
71. Idem, p. 217.
72. Abrucio ressalta que "no fundo, a origem do poder dos governadores encontra-se na configuração do
sistema político na esfera estadual. No caso brasileiro, o governador controla as bases políticas estaduais, 77. Idem, p. 218.
substrato eleitoral tanto de deputados federais como de deputados estaduais" (idem, p. 219). 78. Idem, ibidem.
73. Idem, p. 217. 79. ABRUCIO, Fernando Luiz; SANO, Hironobu. A experiência de cooperação interestadual no Brasil: formas
74. Idem, ibidem. de atuação e seus desafios. Cadernos Adenauer XII, n. 4. Municípios e Estados: experiências com arranjos
75. Idem. cooperativos, abr. 2012. p. 98.
76. Idem. 80. Cf. REGIS, André. O novo federalismo brasileiro. Trad. Heldio Villar. Rio de janeiro: Forense. p. 82.
114 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 115

v) a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), que veio posteriormente, na (iii) a limitação do governo central também pode advir de uma organização consti-
tentativa de consolidar a estabilização financeira nos entes federativos. tucional em que as minorias regionais tivessem diversas oportunidades e possibilidade
Nesse período, diversas outras medidas corroboraram tais objetivos estratégicos de vetar políticas públicas do governo federal; 89
da União. Conforme aponta Regis, a aprovação da EC 3/1993 fez parte de um amplo (iv) a força do governo central depende também da sua capacidade institucional
pacto criado para fins de aumentar a capacidade do governo central de controlar a de obter a adesão das demais unidades federativas às suas políticas; 90
economia nacional, o que incluiu: o Fundo Social de Emergência (FSE), o Imposto (v) as coalizões aumentam as bases de apoio dos presidentes, mas são insuficientes
Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), Ação Declaratória de Constitu- para garantir a capacidade de coordenação central na formulação, no planejamento e
cionalidade (ADC), além da determinação de limites específicos para emissão dos na execução de políticas públicas. 91
títulos dos bancos estaduais. 81
Consideradas essas diretrizes, a autora apresenta estudos analíticos dos fatores
Além disso, a privatização dos bancos estaduais82 e o lançamento do Programa de institucionais que permitiram à União aprovar propostas legislativas que teriam o
Apoio à Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados83 reforçaram a superconcentração condão de afetar os interesses dos demais entes subnacionais no período de 1989 a
de poderes regulatórios no governo central. 2006, 92 o que a conduz às seguintes conclusões:
7. UMA LEITURA DIVERGENTE: A CONCENTRAÇÃO DA AUTORIDADE REGULATÓRIA NA (i) a força regulatória da União na Constituição de 1988 encontra guarida no
CoNSTITUIÇÃO DE 1988 amplo rol de competências previstas nos arts. 21, 22 e 24, o que gerou significativa
dominância do governo central; 93
Em que pese a constatação do quadro fático anteriormente delineado, Arretche
propõe uma interpretação diversa e, de certo modo, inovadora das raízes que levaram a (ii) a par das tendências tributárias dispersivas, a Constituição de 1988 preservou
esses acontecimentos: a Constituição de I 988 manteve a tradição enraizada no Estado a capacidade da União federal de coordenar políticas públicas; 94
brasileiro de supremacia da União, 84 de maneira que 1988 teria preparado o terreno iii) "não há evidências robustas que governadores tenham maior poder de comando
para as reformas dos anos 1990. 85 de que os líderes partidários"; 95
Em leitura tributária da tradição que confere grande centralidade do poder central (iv) não houve alterações significativas no comportamento das bancadas es-
no desenvolvimento nacional, 86 Arretche defende uma análise assentada nas seguintes taduais no período pós-1988, o que demonstra não ter havido grande influência
premissas: da figura do presidente. Assim, a taxa de sucesso superior a 60% obtida pelo
(i) existem múltiplas formas de organização federativa, de modo que não há uma presente Fernando Henrique Cardoso se deveu à fidelidade parlamentar a seus
relação necessária entre federalismo e diminuição de gastos sociais e dificuldade de líderes partidários, apesar da agenda fo cada na concentração de poder regula tório
implantação de políticas públicas;87 central e de imposição de perdas aos Estados em diversos casos (por exemplo,
(ii) União não se confunde com Executivo. Um Executivo federal com recursos e Lei Kandir); 96
poder de agenda continuaria a ter limitada autoridade jurisdicional caso a União não (v) ao atribuir a mesma exigência para mudanças constitucionais federativas e
detenha competência legislativa significativa para a promoção de políticas públicas. não federativas, a própria Constituição de 1988 diminuiu o poder de veto dos atores
Desse modo, "as relações entre Executivo-Legislativo não esgotam os fatores institu-
cionais que precisam ser considerados no exame do impacto do federalismo sobre a 89. Idem.
formulação e implementação de políticas públicas"; 88 90. Idem.
91. ARRETCHE, Marta. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia.
In: SARAVIA, Enrique; FERRAREZI, Elisabete (org.). Po!iticas públicas. Brasília: Enap, 2006. p. 96.
81. Idem, p. 82-83. 92. Para maior aprofundamento dos procedimentos de análise e dados coletados, conferir: ARRETCHE,
82. Idem, p. 83. Democracia, p. 40 e ss.
83. Idem, p. 85. 93. Segundo Arretche, "os formuladores da Constituição não parecem ter pretendido limitar as inicia-
84. ARRETCHE, Marta. Democracia,federalismo e centralização no Brasil. Rio de janeiro: FGV; Fiocruz, 2012. tivas legislativas da União. No mesmo ato com que aprovaram um modelo de Estado federativo que
p.l6. transferia competências sobre a execução de políticas para os governos subnacionais, aprovaram
85. Idem, p. 49 e ss. dispositivos constitucionais que davam ampla autoridade à União para legislar sobre essas mesmas
86. Idem, p. 15. políticas. Nem parecem ter pretendido construir um Estado federativo em que os governos subnacio-
87. ExplicaArretche que "Estados federativos não produzem necessariamente dispersão da autoridade política. nais tivessem autoridade exclusiva para legislar e executar suas próprias políticas. Longe de criarem
Há 'variedades de federalismo' para empregar a expressão de Herbert Obinger, Stephan Leibfried e Francis uma federação com um centro limitado, conferiram amplos poderes jurisdicionais à União" (idem,
Castles (2005) em Federalism and the We!fare State. Essa variação depende, de um lado, da distribuição de p. 62).
competências ou autoridade jurisdicional de políticas públicas e, de outro, do modo como as instituições 94. Idem, p. 96.
federativas interagem com as demais instituições do sistema político" (idem, p. 14). 95. Idem, p. 61.
88. Idem, ibidem. 96. Idem, ibidem.
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,.tjj 116 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em tomo da dinâmica entre autonomia e centralização 117
I
políticos estaduais e municipais, 97 o que facilitou o trabalho da União e de modo que entre entes federativos. Possivelmente como efeito dos resquícios dos paradigmas
não necessariamente apenas políticas com mínimo denominador comum ganhassem dualista e, no seu oposto, o paradigma centralizador, constata-se que a cooperação
aprovação; 98 não se firmou como modelo operativo de políticas públicas no Brasil. 106
(vi) as mudanças no status federativo em 1995 se deveram à conjugação de uma No entanto, Arretche não apresenta respostas justamente para as questões que se-
ampla agenda de reformas centralizadoras com uma ampla coalizão majoritária no riam oriundas dos traços descentraliza dores da Constituição de 1988, especialmente
centro; 99 no que importa ao chamado federalismo fiscal.
(vii) não houve uma ruptura de um governo descentralizado para um centro forte, A autonomia dos Estados e Municípios, com tributos de titularidade própria, ge-
e sim a passagem de um centro forte que se fortaleceu ainda mais, o que indica que rou relações federativas não saudáveis, marcadas por intensa guerra fiscal horizontal
há mais continuidades entre as reformas dos anos 1990 com o pacto constituinte de e vertical e também por estratégias predatórias de busca por investimentos privados
1988 do que transformações estruturais. 100 por Estados e Municípios, com evidente prejuízo para o desenvolvimento conjunto
Assim, apesar de reconhecer a existência de autonomia política e fiscal dos governos e integrado da Nação.
estaduais e municipais, 101 Arretche chega ao seguinte argumento central: "os formula- Do mesmo modo, o desenvolvimento econômico do país encontra obstáculos
dores da Constituição de 1988 criaram um modelo de Estado federativo que combina na complexidade do sistema de repartição das receitas tributárias/ 07 que hoje se
rm ampla autoridade jurisdicional à União com limitadas oportunidades institucionais mostra um verdadeiro pandemônio, com custos suportados pelos entes públicos
I· de veto aos governos subnacionais" .102 e privados.
Nessa perspectiva, o Brasil teria seguido as tendências federativas contempo- Por fim, não é possível ignorar que, apesar do centralismo coordenador da União
râneas em direção à centralização, 103 de modo que a União concentrou o plane- e da asfixia financeira sofrida por Estados eM unicípios a partir das reformas dos anos
~: jamento das políticas públicas, restando aos entes subnacionais sua execução. 104 1990 (Renegociação de dívidas com altos juros e limitação da capacidade de investi-
!·~'
'•I Para a autora, há evidências de que esse modelo de organização federativa tem mentos, exigência de responsabilidade fiscal etc.), sobraram espaços de criatividade
mais capacidade de criar instituições com capacidade de operar na redução das e fomento de políticas públicas de índole eminentemente regional/local, o que indica
desigualdades regionais. 105 que as entidades subnacionais ainda possuem instrumentos para planejar e executar
Uma reflexão crítica das interpretações de Abrucio e de Arretche demonstra que, projetos políticos e sociais, sem depender diretamente da União. 108
apesar das evidentes contrariedades em relação ao projeto inicial da Constituinte
(centralizador ou descentralizador), à influência dos governadores e à questão da 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
ocorrência ou não de ruptura entre 1988 e 1995, verifica-se que ambos abordam as
questões de ângulos distintos que, conjugados, ajudam a compreender melhor os A manutenção da unidade estatal com maior possibilidade de ação democrática
problemas de (des)equilíbrio federativo nos dias de hoje. e preservação das particularidades regionais e locais é o grande ganho do modelo
federativo de Estado.
Com efeito, a análise de Arretche parece mais adequada para entender a tipologia
do federalismo brasileiro- que se mostra muito mais como um federalismo de coor- Contudo, como demonstrado, para além do aspecto estrutural de distribuição
denação com traços de cooperação, em que a União planeja e os entes subnacionais de competências e delimitação das esferas próprias de atuação do entes federados, o
executam as políticas públicas, com maior força das ações coordenadas/integradas federalismo se realiza como um processo dinâmico em que ocorrem novos rearran-

~~
desde um planejamento central do que propriamente de solidariedade/cooperação '·i jos na organização estatal em virtude das condições históricas, culturais, políticas e
econômicas de cada país em determinados períodos.
?
97. Em suas palavras, no Brasil "não é necessária a aprovação nas casas legislativas estaduais, como nos
Estados Unidos, por exemplo, mesmo que a matéria afete os interesses dos governos subnacionais. Nos 106. Conforme apontam Abruccio e Sano, "descentralizar significou repassar funções e lutar por recursos,
casos acima mencionados, a obtenção do apoio do presidente para a iniciativa legislativa, que permitiu criando espaço para formas de gaming, como o ]ogo do empurra' (passar para outro a responsabilidade, o
mobilizar favoravelmente a coalizão de sustentação do governo no Congresso, foi o fator central para o 'efeito carona' (aproveitar dos serviços custeados por outro) e o aumento dos custos de barganha referente
sucesso do Executivo na arena parlamentar" (ARRETCHE, Federalismo, p. 106). à cooperação federativa" (ABRUCIO; SANO, A experiência, p. 98).
98. ARRETCHE, Democracia, p. 77 e ss. 107. BERNARDES. Op. cit., p. 249.
99. Idem, p. 71. 108. Abruccio e Sano, ainda que defensores da tese descentralizadora, lembram de maneira pertinente que:
100. Idem, p. 71-72. "programas como o Programa Saúde da Família (PSF) e o Bolsa Família, considerados muito bem-suce-
101. ARRETCHE, Federalismo, p. 96. didos, tiveram suas origens em administrações municipais, assim como as primeiras experiências mais
orgânicas de governo eletrônico e de centros de atendimento integrado aos cidadãos aconteceram em
102. ARRETCHE, Democracia, p. 36.
governos estaduais. Também vale citar o caso do Governo Montoro, em São Paulo, que conseguiu construir
103. Idem, p. 17. uma nova relação entre o Executivo estaduais e as prefeituras durante o seu mandato, numa agenda que
104. Idem, p. 72. envolvia a montagem de consórcios e políticas mais regionalizadas" (C f. ABRUCIO; SANO,A expeliência,
105. Idem, p. 30. p. 97).
!'1 118 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 119

r:
Assim, por vezes a tensão federativa direcionao pêndulo rumo à centralização da Daí por que, segundo essa perspectiva, as reformas dos anos 1990 foram decorrên-
autoridade política e administrativa, para, em outros momentos, oscilar a favor da cias do plano originalmente atribuído, não representando propriamente uma ruptura
descentralização. paradigmática. A União forte teria adquirido mais força e centralidade no planejamento
A análise do caso brasileiro demonstra que essas oscilações podem ocorrer, inclu- político-estratégico da Nação.
sive, dentro de uma mesma estrutura constitucional. Já na época do Brasil Império, Nesse contexto, não se olvida que tal centralização é mais adequada à tipologia
sob regência da Carta de 1824, verificou-se que o Ato Adicional de 1834 promoveu do Estado de Bem-Estar Social adotada na constituinte, até porque a realização de
significativas transformações no pacto político então vigente. Instaurou-se uma espécie direitos sociais e a diminuição das desigualdades regionais são tarefas impostas ao
não oficial de "monarquia federativa", o que demonstra que a forma estatal do Império Estado brasileiro que não se compatibilizam com o federalismo estadualista inerente
não era tão centralizada como poderia se esperar de um Estado Unitário. aos modelos liberais.
De outro lado, as reformas operadas com a Lei de Interpretação do Ato Adicional Contudo, a submissão econômica e financeira dos entes subnacionais em relação
e a Lei de 1841 (que estabeleceu o Conselho do Estado), ao promoverem mudanças à União não condiz com os mais elementares traços do pensamento federalista. Por
no sentido da centralização, resgataram importantes competências nacionais e atri- esse motivo, apenas há de se falar em novo pacto federativo se considerada a dimen-
buíram à União maior força na determinação das regras de conduta. Todavia, ainda são não realizada do federalismo cooperativo também previsto na Constituição de
mantiveram parte considerável da autonomia dos governos locais. 1988. A superconcentração de poderes nas mãos do governo central não é novidade
na história brasileira.
Na leitura apresentada, o resultado foi a instalação dessas elites regionais no próprio
governo central, de modo que a Proclamação da República seria um dos resultados Por conseguinte, no processo dinâmico do federalismo brasileiro, o novo pacto
do rearranjo federativo que se fazia necessário. federativo deve ser baseado no resgate de maior autonomia dos Estados-membros, do
Proclamada a República Federativa em 1889, verificou-se que a análise histórica Distrito Federal e dos Municípios, aliado a estratégias de solidariedade e integração
das diferentes constituições revela que, com exceção da Carta de 1891, as demais entre os entes, formando o pacto cooperativo, não apenas em sentido formal, mas
também material.
possuíam traços marcantemente centralizadores, o que se constata no amplo rol de
competências privativas da União em, praticamente, todas elas. De resto, confirmando No entanto, movimentos recentes demonstram que os resquícios de ambos os lados
I
.I~ o caráter dinâmico do federalismo, o exemplo da Carta outorgada de 193 7 mostra um (estadualistas por parte dos Governadores e centralistas do lado da União) não têm
retorno pendular ao que foi chamado de "Estado Unitário descentralizado". permitido o avanço federativo necessário.
Também a Constituição de 1988 não escapou dessa regra, permitindo interpretações As dificuldades de análise e aprovação das propostas da Comissão de Especialista
diversas sobre importantes aspectos do federalismo brasileiro atual. Isso porque ela do Senado Federal instaurada em 2012 para tratar do tema, a deturpação dos projetos
promoveu um sistema complexo de atribuição de competências aos entes federativos, da União para acabar com a guerra fiscal, os obstáculos para concretizar uma nova
caracterizado por um aparente paradoxo: centralismo nas competências legislativas rodada de renegociação das dívidas dos Estados e alguns Municípios e o impasse na
e administrativas da União -que ensejou um aspecto de coordenação nacional das distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE) são provas
políticas públicas-aliado à autonomia tributária dos entes subnacionais, que passaram da preponderância de interesses econômicos imediatos de parte de todos os atores
a contar com tributos de titularidade própria. envolvidos. Tal situação expõe a lógica predatória e não cooperativa na relação dos
entes federativos.
Com maior foco neste último aspecto, a interpretação do federalismo brasileiro
pós-1988 apresentada por Abrucio ajuda a explicar as crises financeiras e a dificul- Enfim, com maior inclusão econômica e social, maior amadurecimento político e
dade de implementação de políticas públicas no período de 1989 a 1994, tornando fortalecimento democrático- e as manifestações de 2013 podem trazer significativas
necessárias as reformas que foram promovidas a partir desse período. Neste aspec- transformações na democracia brasileira-, é possível considerar que, talvez pela pri-
to, ressalta-se que tais mudanças focaram de maneira mais específica as questões meira vez, abre-se uma janela de oportunidade em que a descentralização não signifique
econômicas e financeiras, que levaram ao domínio da União não apenas no campo predomínio de formas neocoronelistas das elites locais e regionais, permitindo que se
político/administrativo, mas também financeiro/econômico. Ou seja, no seio da instaurem as condições necessárias para a cooperação federativa.
Carta federativa de 1988, implantou-se uma centralização assemelhada à de um
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
j, Estado Unitário.

r~
De outro lado, a leitura de Arretche mostra que os anseios por maior democracia ABRUCIO, Fernando Luiz. Os barões da federação. Os governadores e a redemocra-
após o período ditatorial- que poderiam levar a uma organização estadualista mais tização brasileira. São Paulo: Hucitec - Departamento de Ciência Política da
f evidente- não chegaram a afetar o núcleo central da autoridade regulatória nas mãos USP, 1998.
!
do governo central, que manteve um amplo rol de competências legislativas e admi- ABRUCIO, Fernando Luiz; SANO, Hironobu. A experiência de cooperação
nistrativas, atuando como coordenador nacional das políticas públicas. interestadual no Brasil: formas de atuação e seus desafios. Cadernos
120 Marco Aurélio Marrafon Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e centralização 1

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Diretora Responsável
Marisa Harms

Diretora de Operações de Conteúdo


Juliana Mayumi Ono

Editores: Cristiane Gonzalez Basile de Faria, Danielle Oliveira, lviê A. M. Loureiro Gomes e Lucia na Felix
2
Assistente Editorial: Karla Capelas

Produção Editorial
Coordenação
Juliana De Cicco Bianco

Analistas Editoriais: Amanda Queiroz de Oliveira, Andréia Regina Schneider Nunes, Danielle Rondon Castro de
Morais, Flávia Campos Marcelino Martines, George Silva Melo, Luara Coentro dos Santos e Rodrigo Domiciano
DIREITO
de Oliveira

Técnica de Processos Editoriais: Maria Angélica Leite


Assistentes Documentais:Roberta Alves Soares Malagodi e Samanta Fernandes Silva
CONSTITUCIONAL
Administrativo e Produção Gráfica
Coordenação
Caio Henrique Andrade
BRASILEIRO
Assistentes Administrativos: Antonia Pereira e Francisca Lucélia Carvalho de Sena ,..,

Auxiliar de Produção Gráfica: Rafael da Costa Brito


ORGANIZAÇAO DO ESTADO
Capa: Chrisley Figueiredo E DOS PODERES

CLEMERSON MERLIN CLEVE


coordenação

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil)
Direito constitucional brasileiro: volume 11: organização do Estado
Luís RoBERTO BARRoso
e ·dos poderes I Clemerson Merlin Cleve, coordenador; coordenadora
assistente Ana Lucia Pretto Pereira. -São Paulo : Editora Revista dos prefácio
Tribunais, 2014.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-203-5244-1
THOMSON REUTERS

1. Brasil- Direito constitucional 2. O Estado 3. Poder constituinte-


Brasil I. Cleve, Clemerson Merlin. 11. Pereira, Ana Lucia Pretto.
REVISTADOS
14-03398 CDU-343(81) TRIBUNAIS~
fndice para catálogo sistemático: 1. Brasil: Direito constitucional342(81)

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