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l0 TEMPO E NARRATIVA

cário: por um iado, com efeito, as maneiras temporais de habi- 1. AS N4ETAMORFOSES DA INTRIGA
tar o mundo permanecem imaginárias, na medida em que exis-
tem somente no e pelo texto; por outro, constituem uma espé-
cie de transcendência na imanência, que permite precisamente a
confrontação com o mundo do leitor6.

A primazia da compreensão narratia, na ordem


epistemo_
lógca, como será defendida no próximo
capítulo ante as am_
bições racionalistas da narratolo gu,
ropode ser atestada e man_
tida se, em primeiro lugaa for_llie atriüuíàa
uma amfiit"aüf
(lue ela mereÇa ser considerada
o original que , ;il;l;gm
tcnr a ambição de simular.Ora,essa
tíefa não é fácil: a teoria
irristotélica da intriga foi concebida
numa época or" urr"_
na.s a tragédia, a comédia e a
epopeia eram .àa".ror,; "_ ;;;í;
t'irkrs, dignos de suscitar a reflÉxãt
do filósofá Norros
rtirrl surgiram no próprjo interior dos õ;;,;;
gêneros trág1co,cômico
,,rr ril.rico, fazendo duüdar
que uma teo"ria da i"ffiil;p;;;;:
,l,r i prática poética dos antigos
convenÀa aincla a obras tão
rr()virs corlo Dom
euixotc ou Hamlct Além disso, apare.;.;;
rrr,rVos gfpgaos, prjncipalmente
o romance, que transformaram
t, l\'lrrrlr.rrrrllrl,rll,rr.rorlr,1,,r1,r.l,l,rI,,ilrrr,rlr,rt.rPtri['nt'iirIiteráriaésc- ,r lrlr,r'rrlura num imenso canteiro
de experimentação, d;
ttttllt,rttlr',rrlr'\4,rrir,\'.rl,l,r,r'rrr',lttttltt,t': titllt,t,t,,,./\ltlrtut,tlt'rtdoticolAlt\tfonclt lrrrl.1,' ,,r convenções admitidas
foram àdo o, tarde banidas.
;;;i
lol,ilttrtrl (rílitt:.tnllt r'rl t'ttllt.1,'1111, /i'i/., li,rorrlp,tlrriyt'rsi[r,6]'hr16r.rtoPress, Iir1r,p111.y1.; (-ntão nos perguntaÍ
se a intriga nào se tornou uma
l9li2:"lrrllti.,lltL'ttttt,:.ltutliltt t: tttiltltltlt'ltt.trl'L,trlilttrlnllttlilil.lioilotrd(...)tltt,dis- ,,rl.li,riir tlc âmbito tãolimitado e de
cttssiott Ltl ltntrlittt:,lntll l,tt,l tt l',r,1 ttllttttrrltltl tttlrt lltr'tr'ittlr,ot'oliott o.[cxltrtssitttt re"putação tão ultrapas_
,.r,l,r ,;rr,rrlo o romance.de
LtttLl ttln'rittttr itt lltt ilrlL't:,trl,lr'L1t,t 1t11111,rltrlrrttt rrl /i'lr/r'l.s /7r'/1)ss tintc tnd spoct" intriga. tr.lais dã que isso, a evolução
(p. 15) lNesstr lt'rtti,t, ,r r':,lltrlttt,r r" l,r r orrrPlcl,rrrrcrtlt' srtborrlittada ii furrçào e ,l,r lrt,,r,rtrrrir não se lirnita aÍazór
aparec;; novos tipos nos an_
(...) a rliscussao solrrt',r ltrr,,,ro l,,,,lr.r,r ,r,.rlr,rr rro: rr.r'onrlLlzirtr]o à rcinterprre.ta- It1,il,. 1,r,|(,ti)S (, IIOVOS
çtitl rla exprcssào c tl,t t'r|t t icrt( i,r ,r l ',r l i( tl,,r.,,to irtlt'rsttlrjt'tivir tlos lc.itores n<r
tcnlpo e no cspaçol. Alrrorirrro rrrc ir,,rr.rlrrrr'rrlc tl,r Pr1rp1151;1 ccntlal tla obrir dc
v(,,
r, l,)"'il,,til,,
,I ;, 1,,
r u ra.
.,', 1,,, (, (.()nh'sta_r
r,%T'iJy:i;","::",1ff::,ll:ffiTIT;
J;rcques Clarelli, l.r' /{t't'r'/ tl lrr I )i:;ln t::ir'tt. I .ttti .;ttr lt' cltrrtttlt Llr ltclurt' poílique,Pa-
,l o próprio princípio da-orrtemque é a
r, r, l,r r, lr,r, r r lr, irrl rigir.
ris, (lallirnartl, I c)78. O que qr"rtão hoje é u p,rOp.iã
"rta "*
l2 TEMPO ENARRATMA
A CONFIGURAÇÃO DO TEMPO
NA NARRAT]UA DE TICÇÃO
B
relação entre essa ou aquela obra singular e todo paradigma ram uma síntese
preestabelecidol. A intriga não estaria desaparecendo do hori- 1r^I"*.?qêneo
vos, meios, interacões,
entre cjrcunstáncias, obíeti_
zonte literário, ao mesmo tempo que se apagam os próprios con- resuliados a"r"iãao, offi;. d;,#j;
tornos da distinção mais fundamental entre todos os modos de
historiador.oro errLffiffi;ffii;ra
ga consideravelmente ampliada uma noção da inrri_
composição, a da composição mimética? nentes a, mraunça social
, fu;;; cornpo-
E pois urgente pôr à prova a capacidade de metamorfose tão abstratos"^.1:-11,"grrr
da intriga, para além de sua esfera primeira de aplicação na Poé-
assi n a I ados pelã Àis
tória râ
rial. A literatura deve poder
;, ;;;i
; i,":ffi
"upr"ràr,,* i,Hi?I: j:.:I
tica de Aristóteles, e identificar o limite para além do qual o plitude. O espaço d" .*pr.,rO",
de igual am_
conceito perde todo valor discriminante. drgmas acima evocados:"tipos,
irg, J;;;;"'i"rr.n,"rrrquia
d-os para_
Essa investigação da circunscrição na qual o conceito de in- gerãrá, armas. podemos
for_
triga permanece válido encontra um guia na análise que foi pro-
posta de mímesis II ao longo da primeira parte desta obra2. Essa
#|XixHL5::,0; o"" as merámorfo,"," d? ilt.s; ;;;;ffi
análise contém regÍas de generalização do conceito de intriga
suraelo,,*r,,iiíá,,Íffii,;:ffi Í::;}.,Til#*g*ií:,m
no domínio dõ roman.;;;à"*;que
E
que cabe agora explicitar3. conceito de cornposição a perrinência do
da intrigà á;;;; que
contestado. o romance parece, ser mais
moderni anuncia_se
de o nascimento como o des_
L. Para além do mythos trágrco gênero"i"-,úÃ"nr",
prà,"'ifo.rn" por excelência.
a responcter , ,í.,, d"ri;;à;';.ciar
llalaao
mente mutávela, foi l,ogo-subt nova e rapida_
Em primeiro lugar, a composição da intriga foi definida, no riao uo .ã.""i. pr.rii#5H;
críticos e censores. o.í rri
plano mais formal, como um dinamismo integrador que tira ãià
nos três sécutos, um prodigior, â;;
;;""il,u, duranre ao me_
uma história una e completa de uma diversidade de inciden- do mr nio d a. corn posiça
â;;rJi.;;i no
tes, ou seja, transforma essa diversidade em uma história una o, u .rpi";;"" ;; "*p"ri*"ntação
rempo5.
O obsráculo maior do""aquat
e completa. Essa definição formal abre o campo para transfor- se esquivar
J,;;;;.;""eria inicialmenre
e que, depois, áeveria frailàir,"rl," contornar,
mações regradas que merecem ser chamadas intrigas enquan- era
Lrma concepção da intriga
to puderem ser discernidas totalidades temporais que ope- duplamentã árãrr"u. primeiro, por_
que era simplesmente transpoôta
,t cpopeia e o drama;..segundo,
d";;;;;;"ros já constiruídos,
prrqr;"r;rte clássica, princi_
1. O terrno paradigma é aqui um conceito que remete à inteligência nar-
rativa de um leitor competente. É qrase um sinônimo de regra de composição. l]:|5,1:
v('rsao 1.1
mutilada
F,'rnçi,unfu ir["!.;;r;", dois gêneros uma
Escolhi-o como teÍmo geral para abarcar os três níveis: o dos princípios mais e dogmárica àu,
Iclcs. Basta evoca[. por
,"à;;;i poarirode
Aristó_
formais de composição, o dos princípios genéricos (o gênero trágico, o gênero um lado, a interpretação limitativa
cômico etc.) e, finalmente, o dos tipos mais específicos (a hagédia grega/ a epo- e
peia céltica etc.). Seu contrário é a obra singr:.Jar, considerada na sua capacidade
4. O caso do romance
de inovação e de desvio. Tomado nesse sentido, o termo paradigma não deve inglês é particularmente
ti,,'rtÍ ttr notávei. Cf.
ser conÍundido com o par paradigmático e sintagmático que remete à raciona-
Nouet. strdies
in R,;h;;;;;";;,;.;,ioiaitiing, .;.ra,"s,Jan Watt, Th.e
Deio.e.
chato
lidade semiótica simulando a inteligência narrativa. ,11 i,',::l ll'J;,'.1","r:rqr
of carifornia ;;;;;,"i;r;,"itís- o u,to," d",c,eu",and
2. Tempo e narratizsa, vol. 7, pp. 112-22. u q:
,"-
novo público
3. Devemos ser gratos a Robert Scholes e Robert Kellogg, iaThe Nature of '
,,rr() o surigimento de
,r-r":1,1"" '- "T de expressào a" r"rt";àr, ^*ã
;,,r,rrr,r. siã p-ur"ràJ.;:i:::^1":*tidade p"* ,
Narratiae (Oxford University Press,1966), por terem precedido seu estudo das ,,,,,,,,,,, 1wí a7"irii,',ii^'J"-l::"t"'*remos "-;;;;;;
na quarta par"te, quanio
avalia-

,t,a jiff :Íiiyxi#*t:ffJ.",:i3:,1:J:ir"Trxrl;.;;;;


categorias narrativas, entre as quais a intriga (plot), de um panorama das hadi-
ções narrativas arcaicas, antigas, medievais etc., até os tempos modernos.
t4 TEMPO E NARRATMA
A CoNFIcURAÇÃo DoTEMP)
NANARRATIVA DE FICÇÃ} 15
impositiva da regra de unidade de tempo, como acreditavam Neaeu de Rameau
lê-la no capítuloVII da Poética, e, por outro, a obrigação estrita IO nbrinho de Rameau]
" !rrrr Ina phcinomenologre
Gcistes [Fenomenologia do d,es
de começar in media res, como Homero na Odisseia, e depois re- espírito]j).
cuat paÍa explicar a situação presente, e isso a fim de disínguir do caráte1, aparentemente
'-^.1sleunq "ry31rr,
mento da intríga, é. ilustrada p"lo ,oko'nc,
em derri-
claramente a narrativa literária da narrativa histórica, suposta- dc formação", que
atinge seu ponto culminante
mente obrigada a seguir o curso do tempo, conduzir seus perso- á,-s.íiiíá, êJ"iná à;,pl;:
nagens sem intermpção do nascimento até a morte e preencher os primeiros trinra anos
3:t_,em torno do :lÍ do ,à.r,o" XX. Tudo
glrar parece
com a narração todos os intervalos da duração. conhecimento de si do
Inicialmente, é a Àqrista
Sob a ügilância dessas regras, fixadas em meticulosa di-
trama da narrativa; depois,
de,rr ;;;,1;::Tf:?trlJ:rl
dática a intriga só podia ser concebida como uma forma facil- ,ao .ráà suas dúüdas, sua
confusão, sua dificuldid" j" "àr""-,rr,
mente legível, fechada em si mesma, simetricamente disposta ," ,;,"*;;;;" integrar que resem
os caminhos do tipo. I{a"s,
de ambos os lados de um ponto culminante, repousando em ao lo"go;; t;do esse desenvõlü_
uma ligação causal fácil de identificar: entre o nó e o desfecho, mento, o que é essencialme.,r"
pãaiàà à fristória narrativa
entrelaçar complexidade é
enfim, conlo uma forma em que os episódios respeitariam cla- social .à_p[l;ade psicológica.
trova arnpJificação provém " Essa
ramenlc a configuração. diretamente J, fr"."a"nte. Na jdade
Unr corolário irnportante dessa concepção estreita da in- de ouro do romance do século
)flX, ;; áZtirra Tolsroi, a
triga contribuiu para o desconhecimento do princípio formal ca romanesca antecioara_4 récni_
tirando todos os recursos de
da composição da intriga: enquanto Aristóteles subordinava os Íórmula narrativa bastante uma
antiga, qr" .onrirte em aprofun_
caracteres à intriga considerada o conceito abrangente com re- dar um carárer conrando
mais soü.e á;;;; hirar da riqueza de
lação aos incidentes, aos caracteres e aos pensamentos, vemos/ turn caráter a exigênciade
,rn, .r.-.lompf"*iauae episódica.
com o romance moderno, a noção de caráter libertar-se da no- Ncsse sentido, cãráter c intriga
condiciona,m_se mutuamenteT.
ção de intriga e, depois, fazer-lhe concorrência e mesmo eclip-
sá-la totalmente.
Essa revolução encontra importantes razóes na história do
ír. llolrinsor.r
,,,,,r r, .r,,,Crusoé .il::,;:l[:]:]lTlll;j:1,il::;Íj,J13:
r,: r;"'il:,i
gênero. De fato, é na rubrica do caráter que podemos colocar três ,lr.rrIr' , potlt,ser consicleraclo
a n,".ri p.""a,r-rà,..f,r'r,
expansões notáveis do gênero romanesco. r,,,, j r r. r ( r )r (l i Çã o cJ c- sor d ã
o ..,r, 1-- rn.ú.r-*
i
;;;il
j;l,.l
::irf
Em primeiro lugaç explorando a trilha do romance picares- 1,, 1., l,,.r.rrp.«rii. c.rn o t.,.,o.. j"t.,.i;;;;;,,;r.cle,
r rr r r, (luit I scu isolanrcnhr
r l,r r,,,., r r)ir tor,a_se. herói cle "H;:Xl;
co, o romance estende consideravelmente a esfera social na qual ,1, rr,.rrl. trirrríir
p.apa,r,) .r**a" a,_,r.) n ,ur,rrao
secreta de selt
sobre as a.il,er"i.1a.Jrl". f:i*rl.i
a ação romanesca se desenrola. Não são mais os altos feitos ou ,,1r,1.r,, , (,nsi(l(,t.,ld,t ao,_ri,,..] de ptrracligma,
"lri_,ilrn,
o est,ttJtr.urrivt,r_, .,,,l f-t,r"l.r". a
malfeitos de personagens lendários ou célebres, mas as aven- lrl,,,r r.rr,l.r irrlr.i11,r, tnrlg" ck o caráicr st,
Plrjpplos cJizr.r q"", cl()-romallce,o.lu(,
turas de homens ou mulheres comuns que se deve retraçar. ''l'rrrr,,.,t,,,t,,,,,,,,..l,.,tt,r"anrJohe.ríri,,oi,.,,1r.,.1,,,Lll
""*.1;;l;,.
O romance inglês do século XVIII mostra essa invasão da r r l r(,, rs i. riras c.r
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óJlL il,f;,H:; il:::


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.to porroa,r.
r,,. ,lr rrr,.rrr,,r.lrr.,r ^,cnci.nais
t,rirn,r.cjr,1y.1.r_;#.;;;ill"rraiivndcviagenrccit,
literatura pelas pessoas do povo. Ao mesmo tempo, a história , ,,,ri,, ,,.,,,,1,,,,rn(,(\pi)Çonou,,".l,,r.n.rn.";;;r.,.atribuíclor)eme.rgôn_
contada parece pender para o lado do episódico, pelas intera-
ções que ocorrem num tecido social singularmente mais dife- ,, l, ;il,l.,:,,,1;,,,;ll:;,llr.qtrt,a,,fiíbura,,otu.ià,,.,,t"."gi.,rnp,,.,",,,i"i.,n;,
it).
d1r 711f1lip.e aristotélico pctr "fnbta orrd lhcrrtc,,
renciado, pelas incontáveis imbricações do tema dominante, o ,ir,,,,1,r rir ) em
amor, com o dinheiro, a reputação, os códigos sociais e morais, i ,l,,rrr,lil1l11.1111lsilrrttlt,itrrrrcJ.rstltt,t>(,sl)ifdi\tJo.-,tr,11,,;,..1,,,,a,.,,,
1 ," ., 1,,.r1.,rr, urr
cnfim, por uma práxis inhnitamente ágl (cf . Hegel sobre Le r, t ttt
l,rrrirlilrrclrlo,r.,r,-, irr,,i O_rnrrldc, (,m Tlt,,C,,ttt
tltt lutt,tlttt,lttli!tD ol.NrtrmlittL,
((_arrLr.i.fg.,, Mass.,
Harvarci Urri_
16 TEMPO ENARRATLYA A CONFIGURAÇAO DO TEMPO NA
NARRATIVA DE FiCÇÃO 1,7

lJma nova fonte de compieidade apareceu, principalmen- O conceito de-imitaÇão de ação pode
portanto ser amplia_
te no século )C(, com o romance do fluxo de consciênciat mara- do para além do ,,romance de aião,,',no
sentido estrito da pa_
ülhosamente ilustrado por Virginia Woolf. Estudaremos mais lawa, e incluir o ,,romance de caráter,, ,,rotnance
eo dc np.""-
adiante uma obra capital do ponto de üsta da percepção do mento", em nome do poder abrangente
tempos: o que agora interessa é o inacabamento da personali- às categorias. rigorosamente
d^i;-;,ü;;";rã;;,
definiãas de incidente, de persol
dade, a diversidade dos níveis de consciência, de subconsciên- nagem (ou de caráter).e de pensamenio.
pelo conceito de mímesis práxeos,"
A
cia e de inconsciência, o fervilhar dos desejos não formulados, àr,""a" até "rf.rr'a"fiÃituJu
o caráter incoativo e evanescente das formações afetivas. A no- de a capacidade da narrativa de "apresentar,, onde se esten_
seu objeto por
ção de intriga parece estar aqui definitivamente abalada. Pode- estratégias narrativas que engendrám
totalidaà;; ;irüjr#;
-se ainda falar de intriga, quando a exploração dos abismos da
::l:,r^:r {1 nroaulil u^ ,,pr,oró, próprio,,por um jogo de infe_
consciência parece revelar a impotência da própria linguagem rencras/ de expectaiivas e de ,"rportu,
emociona,is,"pelo lado
em se reunir e tomar forma? do leitor. Nesse sentidg o,o^u.[ã
*àd""rr-,o nos ensina a ex_
Nada, contudo, llessas expansões sucessivas do caráter em pandir a noção de ação imitada
1o, i"pr"r.ntada) até o Donto
detrimento da intriga cscapa ao princípio formal de configura- em que podemos dizer que um princrpi,
ção e, assim, ao conceito da composição da intriga. Eu até ousa- ção presidc a rcunião d.as'mudançr,
fi*)t'a"'.#ü;:
de afetar seres
ria dizer que nada nos faz sair da definição aristotélica de nrythos semelhantes a nós, indiüduais "u!.àa,r"is
o" .oi.tirror, seÍes dotados de
como "imitação de uma ação". Com o campo da intriga, é tam- urn nome próprio, como no romance
*oa"irro jà,a."ü"xi)
or,r simpiesmente designados
bém o campo da ação que se expande. Por ação, devemos po- por r*, ir-ri.irt (K...), como em
der entender mais que a conduta dos protagonistas produzindo KaFka, até seres no limlte ino;ináv;i;;.à_o
Beckett.
mudanças üsíveis da situação, reüravoltas de fortuna,,o que Portanto, a história do gênero.o*Ã" "_
não nos impõe, de
r»odo algum, renunciar uo tãr-o
poderíamos chamar de o destino externo das pessoas. E tam-
IirIo da ir-rteligência narrativa.
i"G;p;* designar o core_
bém ação, num sentido mais amplo, a transformação moral de Contudo,?àã devemos limitar_nos
um personagem, seu crescimento e sua educação, sua iniciação ;r ('ssas considerações-históricas
sobre a extensão ao gOr,"io.o_
à complexidade da üda moral e afetiva. Derivam finalmente da n)incsco para entendeÍ o que pôde
passar por uma derrocada
ação, num sentido mais sutil ainda, mudanças puramente in- ,l,r íntriga. Há uma razão maisdissimulada
,,rrt't'ito de intriga a simples fio para aredução do
teriores que afetam o próprio curso temporal das sensações, das
rr,l ()rl il resumo dos incidentes. Se
condutoiàr,n"rã.*,,tffiI
emoções, eventualmente no plano menos premeditado, me- a intriga, reduzida, êrra
,",, lrrt.lt'to,
nos consciente, que a introspecção pode atingir. yôde parecer ulrra injunção exterio4, artificial rnes_
rr, 1,;1f 1i arbitrária, foi-pqrque, desdà o,_rur.i*"r-,to
,, r, ,111i , finr de sua idãde de ouro, do roman_
no ,j.rf. XtXuÀ;;;bl;
versity Press, 1979), mostra-o em ação no enriquecimento, de um Evangelho a rrr,r rrr,ris rrrgcrrte qr"
outro, do caráter de ludas e, correlativamente, no enriquecimento dos detalhes
dos acontecimentos narrados. Antes dele, Auerbach já mostrara, em Mímesis, a
: da arte
l,l,rr rr,,t itt.t ()ssi In i Ihan,ça..A
de compoiocupou o primeiro
substituiçãá'J" r_ problema pclo
que ponto os personagens bíblicos, Abraão, o apóstolo Pedro, diferem dos per- ,rrlrrr loi l,rcililada peJo fato de
a conquista da vcrossimilhan_
sonageÍrs homéricos: enquanto os últimos são descritos num único piano e sem r.,r tr'r ,;rrhr li:ita sob a
bandeira da luta lo"iiu as,,convenções,,,
profundidade, os primeiros são plenos de segundos planos e, portanto, susce- ,t r iltilr,(,,,il r,orrtra.o que
se entendia por intrig4 COm
tíveis de desenvolvimentos narrativos.
r'l,r rlrr,r,r,,r lr;rgtirlia c referência à
8. À la recherche du temps perdu, obra à qual consagraremos também um à comédia a* rrm fármas antiga,
l,r'l,rl,r ,,u ( l,issi(',1 (no sentido francês elisa_
desenvolvimento, pode ser considerada ao mesmo tempo um romance de for- da palavra). Lutar con_
mação e urn romance do fluxo de consciência. Cf., mais adiante, pp.227-65. lr,r r,, r , rrr\,('n!'( )(,s c cnr prol
,
da
""rorri_ltf,ança constituía as-
1B '1'r.L,1 PO I NÁ/(RÁllvÁ A coNFTGURAÇÃo Do rEMpo NA NARRATTIA
or, rtcç,\o lg
sim uma única e mesma batalha. Foi essa preocupação de agir entregue unicamente aos recursos de
uma memória inverossí_
conforme a verdade, no sentido de ser fiel à realidade, de igua- mil. Finalmente, o procedimento permitia
que o leitor prrtilh;;_
lar a arte à vida, que mais contribuiu para ocultar os problemas se a situação psicológica pressupôsta
pelo próprio ."..i.ro j i-_
de composição narrativa. ca epistolal, a sabe4 a sutil mistura
de cont
E, contudo, esses problemas não tinham sido abolidos: só ocrpa a atma de quem decide confiar à p".#XÇ;y#'á"r:X:
tinham sido deslocados. Basta pensar na variedade dos proce- sentimentos íntimos _ que coÍresporà",
pelo làdo d; ú;;;
dimentos romanescos postos em ação na aurora do romance uma mistura não menos sutil entie a
inglês para satisfazer ao propósito de pintar a üda na sua ver-
indiscrição d"
através do buraco da fechadura e a impunidaáe
;;;lli",
"*, fãiir-
dade cotidiana. Assim, Defoe, em Robinson Crusoé, recorre à de
ra solitária.
pseudoautobiografia imitando inúmeros diários, memórias,
autobiografias autênticas redigidos na mesma época por ho- . 9 que provavelmente impediu esses romancistas de refle_
tir sobre o artifício Orr.:o.ry".,rões, que eÍa
o preço a pagar poÍ
mens educados na disciplina calünista do exame cotidiano da sua busca do verossímil, foi a cánvicção
que tinham em cornum
consciência. Depois dele, Richardson, em Psmela e em Cl.arissa, com os filósofos empiristas da linguagem,
de Locke u neià, ã
acredita poder descrever com mais fidelidade a experiência pri- conücção de que a linguagem poã" J",
purgada de todo ele_
vada - por exemplo, os conflitos en[re o amor romântico e a ins- mento figurativo, considerado puramente
deãorativo, ,"arrl
tituição do casamento - recorrendo a um procedimento artifi- da à sua vocação primeir4 que e, ,"grrlàã "
Locke, ,,transmitir o
cial como a troca epistolare, a despeito de suas eüdentes des- conhecimento das coisas,,
ito ,on íy the knowlei,dgi;i";i;;;;
vantagens: fraco poder seletivo, invasão da insignificância e da Essa confiança na função espontaneáÀente
referencial da lin_
verborragia, estagnação e repetição. N4as, aos olhos de um ro- Suagem, reduzida a seu uso literal, não é menos importante
mancista como Richardson, as vantagens eram indiscutivelmen- que a vontade de reduzir o pensamento
conceitual à sua su_
te maiores. Fazendo sua heroína escrever no ato, o romancista ,? do particular. Na verdade, essa
podia dar a impressão de uma proximidade extrema entre a -p.:::1f-.ig_"*
vontade nao poderia "]p"rlência
existir sem aquela confiança: afina], coÀo
escrita e o sentimento. Além disso, o recurso ao tempo presente apresentar pela linguagem ,
do particulaq, se a lin_
contribuía para transmitir essa impressão de imediatez, propi- guagem não pode ser reduzidá "*p".iê.,cia
à pura referencialidade ligada
ciando a transcrição quase simultânea dos sentimentos expe- à sua suposta literalidade?
rimentados e de suas circunstâncias. Simultaneamente, eram E fato.que, transposto para o domínio
. literário, esse retor_
eliminadas as dificuldades insolúveis da pseudoautobiografi4 tto a expenencra e à li"g13q".- simples
e direta levou à criação
de um gênero novolo, aefiiiAo p"to
propOrito de estabelecer a
9.De Pameln a Clarissa, vemos mesmo o procedimento epistolar se reÍinar:
em vez de uma correspondência simples, como no primeiro romance, entre a 10. Não por acaso o romance inglês
heroíra e seu p ar, Clarissa tece simu taneamente duas trocas de cartas, entre a he- foi chamado de nooel. Mendilow e
I
Watt citam declarações surpreendenteá d"
roína e sua confidente e entre o herói e seu confidente. O desenrolar paralelo D"fo", Richardson e Fielding que
atestâm sua convicção de inventar um
gênero literário inédito, no
de duas correspondências atenua as desvantagens do gênero pela multiplica-
""rl,ia8pr.J
ção dos pontos de vista. Pode-se perfeitamente chamar de intriga essa sutil com- l]Jil 3', l"JT,l;,?; m'X : :*' :'l o'i gi nat' ['e''a Idade Média áno-
: r:'-' d

binação epistolar que alterna a visão feminina e a visão masculina, a contenção p"ndenie,d"p.i-;i.,;;i^:l';iâil::tr'::;;,íi::rÍilii,iff
e a volubilidade, a lentidão dos desenvolvimentos e o ímpeto dos episódios ()u rccente em caráter ou estilo]
(Jan
J,íi,.r#i;
Watt).
violentos. O autor, tão consciente quanto senhor de sua arte, pôde se vanglo- A história contada deverá.scr nova e os personagens,
riar de não haver nenhuma digressão em sua obra que não procedesse do as- seres particulares
r'okrcados em circr:nstâncias parti,culares. Nao
e exagerado ligar a essa conÍiança
sunto e não contribuísse para ele, o que define/ormalmente a intriga. rr,r língua sirnples edireta a àscolha, evocada u.i_ã, po. p".sonagens
de baixa
20 TEMPO ENARRATNA a coNrrcunaçÃo Do TEM\O NA NAURATIVA Or, rtcçÀo 21

mais exata correspondência possível entre a obra literária e a declarado de ser verossímil fosse confundido
realidade que ela imita.Implícita a esse projeto, está a redução com o de ,,repre_
sentar" a realidade
da mímesis à imitação-cópia, em um sentido totalmente estra- t:gu, para que se apagasse uma concep_
ção estreita e artificial,da intrigá purà que, num segundo
nho à Poética de Aristóteles. Não é de espantar, então, que nem telnpo, os problemas de compósição " fossem trazidos
a pseudoautobiografia nem a fórmula epistolar tenham verda- primeiro plano por uma reflexáo ,ot." as condições iuru o
deiramente colocado um problema a seus usuários. A memó- formais de
uma representação verídica. Em outras palawás,
ria não é suspeita de falsificação, quer o herói conte depois do talvez fosse
necessário banir as convenções em nome
do ,à
acontecimento ou se expresse no ato. Até mesmo em Locke e "..orrÀiip*,
descobrir que o preço upuga, é um maior refinamento
Hume e1a é o suporte da causalidade e da identidade pessoal. r.,à .o__
posição e, portanto, a invenção de inh-igas
Assim, considera-se que apresentar a textura da vida cotidiana,
cadavezrrir.à*pi"_
xas e/ nesse sentido, sempre mais afastadas
na sua mais íntima proximidade, é uma tarefa acessível e, afinal,
do real e da üáa12.
Apesar dessa suposta astúcia d.a razão na história
não problemática. ao gê*.o
romanesco/ permanece o paradoxo de ter
sido o refina"mento
Não deixa de ser um grande paradoxo o fato de ter sido a da técnica naruativa, susciiado pela preocupação
reflexão sobre o caráter altamente conaencional do discurso ro- com a fideli_
dade à realidade cotidiana, queienhà chamado
manesco assim estabelecido que tenha levado, em seguida, à , ur"nçáo fár,
aquilo queAristóteles chamáv4 em sentido amplo,
reflexão sobre as condições formais da própria ilusão de proxi- imiirçaà á"
uma ação pelo ordenamento dos fatos rmá intriga. euan_
midade e, exatamente por isso, ao reconhecimento do estatu- tas convenções, quantos artifícios não"m são acaso necessários
to fundamentalmentefctício do próprio romance. No final das
seja' patadela compor' pela escrita' um
contas, a transcrição instantânea, espontânea e sem artifícios 5ilffiX'õã]J|,?#
da experiência, na literatura epistolal, não é menos convencional
que a compilação do passado por uma memória supostamen-
te infalível, como no romance pseudoautobiográfico. Com efei- 12. Na história do romance inglês,Tom
lones,de Fielding, ocupa um lugar
t'xcepcional. Se foi durante muito tempo
to, o gênero epistolar supõe ser possível transferir pela escrita, pre |erido por pnmelíou Ckrissa, deiil_
t'lrardson, foi por terem encontrado nesies
sem perda de potência persuasiva, a força de representação li- últimos um retrato mais elaborado
(l()s caracteres, em detrimento
da intriga no sentido restrito do termo. Acrítica
gada à palawa üva ou à ação cênica. A crença, exprimida por rnoclcrna restitui a Tom
lones uma certa preeminência, em razão do tratamento
Locke, no valor referencial direto da linguagem desproüda de rrrtrilo elaborado que dá à estrutura nar-rativa,
do ponto de vista do jogo entre
rr llr.r.rpo que se leva para narrar
ornamentos e figuras, soma-se a crença na autoridade da coi- e o tempo narrado. A ação central é reiativa-
nrr,rrl(' simples, mas subdivididu
sa impressa que, na ausência da voz üva, a substituiriall. Tâ1- ,-à série de unidades narrativas relati_
\,u)r('ntc ir-rdependentes e de tamanho "- diferente,
dedicadas a episódios r;r;_
vez fosse necessário, num primeiro tempo, que o propósito , h,:, pllf intervalos
mais ou menoslongos e que'envolvem, por
sua vez, lapsos
,lr, lr,rnpo muito variáveis: no totaf t.á
gr,rpo, com seis subconjuntos consti_
lrrrrrrlo oito volumes e vinte capítulos.
Cúocavam_se consideráveis problemas
extração, dos quais Aristóteles dissera não serem nem melhores nem piores do rlr.r orrrplr5içfrs, exigindo urna grande
variedade de procedimentos, mudanças
que nós, mas semelhantes a nós. Deve-se também considerar um corolário da tr, r.,,:,,rtt(,s/ contrapontos surpreendentes.
Não por acaso Fielding foi *ris ,er.r-
vontade de fidelidade à experiência o abandono das intrigas tradicionais, ex- ',tr r,l ,r trrntilruidade entre o romance e as fo.más antigas
traídas do tesouro da mitologia, da história ou da literatura anterior, e a inven- da tradição narrativa
r p r. I )('1,(' (, Richardson,
que clesdenhavam a epopeia ãe origem hámérica,
ção de personagens sem passado lendário, de histórias sem tradição anterior. tenj
r l, r r r rrr,ir k'r,lclo
o romance uma ,,epopeia aO*i.r'À .osa,,.
11. Sobre esse curto-circuito entre o íntimo e o impresso, e soble a incrí- r',,,,,r lrrrrrrrrlt), aproxima-a do f Jan Watt, que cita
comentário de Hegef ,.rà Ertéti*,r"grrláo'o
vel ilusão de identificação entre o herói e o leitor que daí resulta, cf. Jan Watt, , r,rr,rr(r,st'ria uma manifestação qrrl
dã epopeia inflrenãiadaporLm
The Rise of tlte Noael, op. cit., pp. 796-7 . ,,r,,,rt, rrrrrtlt,rno e prosaico da realidadà{o_ey,írito
ehc nisi of the Noztcl, op. rit.,p.Zií1.'
ACoNFtGUnaçÃo DorEMpo NANÁRRÁTMÁ DE FICÇÁ) 23
7' t': l'/1 PO E NÁ IIR^T/ Y^
22
dade à realidade e a consciência cada vez mais aguda do arti-
De fato, é um grande paradoxo - que só será plenamente fício de uma composição bem-sucedida.
exposto na nossa meditaçào sobre o únculo
entre configura- Esse equilíbrio üria um dia a ser rompido. Se, efetivamen-
império das convenções tenha tido de
fàà rufigrtação - que o
do
te, o verossímil é apenas a simulação do verdadeiro, o que se-
"
aumentar na mesma propoiçao da ambição repre-sentativa ria a ficção, sob o regime dessa simulação, se não a habilidade
período' o reaiismo roma-
romance, durante seü rnais longo de um fazer-acreditar, graças ao qual o artifício é considerado
;;;.;. úrr" sentido, as três etãpaà grosseiramente definidas um testemunho autêntico da realidade e da vida? A arte da fic-
à.i*u - ro*ance de ação, romance de caráter' romance de pen- ção se desvela então como arte da ilusão. A partir desse mo-
de no-
samento - balizam uma dupla história: a da conquista rnento, a consciência do artifício minará por dentro a motiva-
mas tam-
vas regiões pelo princípio formal de configuração' ção realista, até se voltar contra ela e destruí-la.
da
bém a"da deàcobeita do caráter cadavezmais convencional Atualmente, ouümos dizer que apenas um romance sem
aventura. Essa segunda história, essa história em
contraponto' ir-rtriga, seln personagem e sem organização temporal discer-
do romance como arte da ficção'
é a da tomada dJconsciência nível é mais autenticamente fiel a uma experiência em si mes-
título de Henry ]ames'
- Nr*uo famoso
segundo
primeira Íase, avigilância formal permanece subor-
rra fragmentada e inconsistente do que o romance tradicional
do século XiX. N4as, então, a defesa de uma ficção fragmentada
mesmo
dinada à màtivação realista qu" u et"tg"'-tdrou; fica até c inconsistente não se justifica mais do que, em outros tempos,
dissimulada sob a intenção ràpresentativa' A verossimilhança ir defesa da literatura naturalista. O argumento de verossimi-
;*d;ã;*, proúncia dó verdádeiro, sua imagem e semelhan- llrança foi símplesmente deslocado: antes, era a complexidade
;;.'É;ri;;elossímil o que considera mais acuradamente o fa- social que exigia o abandono do paradigrna clássico; hoje, é a
da
miliaç o comum, o cotiàiano, por oposição ao maraülhoso srrprosta incoerência da realidade que requer o abandono de todo
intri-
tradiçâo épica e ao sublime do-drama clássico' A sorte
da t' qr"ralquer paradigma. Assim, a literatura, somando ao caos da
gu nesse esforço quase desesperado de apro-
," a..ia" então rt'irlidade o caos da ficção, reduz a mímesis à sua mais débi1
de
ximar assintoticamente o artifício da composição romanesca lrrnção, a de repiicar ao real copiando-o. Por sorte, o paradoxo
um real que se esquiva à proporção que se multiplicam
suas
l)('r nranece o mesmo: é multiplicando os artifícios que a ficção
se passa como se aPe-
exigênciaã formais de composição'Tudo ',,'lrr sua capitulação.
íuí.o"r."ções cada vez mais'complexas p.'d9?t1* igualar.o Ibdemos então nos perguntar se o paradoxo inicial não se
natural e o verdadeiro; e como se a completdade crescente rrrvcrlclr: no início, era a intenção representativa que motivava
à;;;;; convenções fizesse recuar para um horizonte inacessí- , r ,'orrvi:nção. No final do percurso, é a consciência da ilusão que

o prOptio real que a arte ambiciona igualar e


"representar'' ',rrl,r,t'r'tc a convenção e motiva o esforço para se libertar de todo
""i
Por isso, t apelo aà verossímil não podia ocultar
durante mui-
l',rr,r(lignra. A questão dos limites e, talvez, a do esgotamento
do
i;i";p; o fato de a verossimilhança não ser aPenas símilesutil que
,1,r,, rrrt'lirntorfoses da intriga surgem dessa inversão.
verdadeiro, mas simulação do verdadeiro' Diferença
que o ro-
se transformaria em abismo' A medida, efetivamente'
so-
mance se conhece melhor como arte da ficção' a reflexão ).. lT,rcnidar)e: umo ordem dos parndigrnas?
da produção dessa ficção entra em
bre as condições formais
áberta com a múivação realista por trás da qual \ ,lr';t rrssão precedentc vcrsou sobrc a capacidade de ex-
competição
iniciàhónte se dissimulara' A idade de ouro do romance no | , ,,' ,l, r |1i1içipio fon-nal de Íiguração por intriga, para alór-n
,e.rto XIX pode ser caracterizada por um equilíbrio pre.cário i, r r, .,,rrr1rlil'icaçãoprimeira na PoétícadcAristóteles.Adc-
;;it; , intenção cad,avez mais fortãmente afirmada de fideli-
24 TEMPO E NÁRRÁTIYÁ ÁcoNHGuRáe{oDorEMpoNÁNÁRRÁTIyÁ or.rtcçÀo 25

monstração exigru um certo recurso à história literária especifi- tradição e de seu estilo cumulativol3. Se o fenômeno
de tradi_
camente à do romance. Isso significa que a história literária po- ção não comportasse essa potência de ordem, trropor.o ,à.iu
deria substituir a crítica? Na minha opinião, a crítica não pode possível apreciar os fenômenos de distanciamento
que iremos
identificar-se com e1a nem ignorá-la. Não pode eliminá-l4 por- c,onsiderar na próxima seção, nem colocar a questãó
da morte
que é a familiaridade com as obras, tal como surgiram na su- da arte narrativa pelo esgotamento de seu dinamismo
cessão das culturas de que somos os herdeiros, que instrui a forma_
dor. Esses dois fenômenos, o distanciamento e
a morte, são so_
inteligência narrativa, antes que a narratologia construa o si- mente o- avesso do problema que colocamos agora:
mulacro intemporal delas. Nesse sentido, a inteligência naffa- o de uma
ordem dos paradigmas, no nível do esquematismo
tiva retém, integra e recapitula sua própria história. A crítica, da inteli_
gência narrativa e não da racionalidade semiótica.
contudo, não pode se limitar a registrar, na sua pura contin- Foi essa consideração que me ligou àAnatomia
gênci4 o nascimento das obras singulares. Sua função especí- da citica de
Northrop Fry"rn.A teoria dos modoí que lemos no seu
fica é discernir um estilo de desenvolümento, uma ordem em primei_
ro Ensaio e mais ainda a dos arquétipos que lemos
moümento, que transforma essa sequência de acontecimentos no ierceiro
Ensaio são incontestavelmente áistemátiãas. IVÍas
numa herança significativa. O empreendimento merece ao me- a sistemati_
cidade operante nesse caso não é do mesmo grau
nos ser tentado, se é verdade que a função narrativa já tem que a racio_
nalidade característica da semiótica narrativa. pertence
uma inteligibilidade própria, antes que a racionalidade semió- ao es_
quematismo da inteligência narrativa na sua tradicionalidade.
tica se ponha a rescrever-lhe as regras. No capítulo programá- Visa somente extrair uma tipologia dessa esquematização
tico da primeira parte, propus comparar essa inteligibilidade sem_
l)re em úa de formação. por isso, não pode se apoiai em sua
pré-racional com a do esquematismo, do quai procedem, se- coerência ou em suas virtudes dedutivai, mas somente
gundo Kant, as regras do entendimento categorial. Mas esse em sua
t'apacidade de considerar, por um processo indutivo
esquematismo não é intemporai. E1e próprio procede da sedi- aberto, o
rnaior número possível de obras incluídas em nossa
mentação de uma prática que tem uma história específica. É essa herança
,'ullural. Játentei, em outro escritols, uma reconstru
sedimentação que dá ao esquematismo o estilo histórico úni- ção daAna_
Irttllit 6o crítica, que ilustra a tese segundo a qual o sistema
co que chamei de tradicionalidade. das
r'orrfigurações narrativas proposto por Nortirrop
Frye ,rUrr_
A tradicionalidade é o fenômeno, irredutível a qualquer nr(' sc ao esquematismo trans_histórico da inteligência
narua_
outro, que permite que a crítica se mantenha a meio caminho
entre a contingência de uma simples história dos "gêneros",
I i
Nt'sse sentido, nem a ltoç;ir.r de nrudanqa cle p;rracligrna
dos "tipos" ou das " obras" singulares que fazem parte da fun- ,,
segunclo Krrhr,)
,,, ,rl('.(1)rtecpistenroltigicosegunrlo FoucaultcontracJizen_rclefirrma
ção narrativa e uma eventual lógica dos possíveis narrativos
raciical
,,,,, .,rr,rlist,da h..rdiç;io segunrlo Gadarner.
Os cortes epistentoltigictis srt t()r,
que escaparia a toda história. A ordem que pode surgir dessa ,,,,,,',, rrr,,isnificantc-s_r.roscr.rticloprripri6tlotcrnro_se
nilocartrctcrizi.rsscrrr
autoestruturação da tradição não é nem histórica nem a-his- |, .l r'slilo r1.t tracliciolralidarlc, tr mitrrt,ira rinica conro
'r r( '
cla sc aukrcstrutu_
, I rr,, rrrotlo rlo cctrte tluc ainda estamos submctirlos à eficiícia
tórica, mas trans-histórica, no sentido de atravessar a história ,r 1,, ,1 111ç1,, cxprc,ssão lNirktntgsgt,scltic/rfu,cle. ClacJantcr, da histitria,
de um modo mais cumulativo que simplesmente aditivo. \,4es- quc será tliscutirla
r, I rrrr, rrlI nir tlrrtrrta partc.
mo que a ordem comporte rupturas, mudanças repentinas de I i\,)rth.op Fryc,'fht Attntottnl of Criticistn, Fotrr Essarls, princcton
I
Uni_
paradigrnas, esses próprios cortes não são simplesmente es- ' I 1 ,, .. l,)17.
| \r,rl()r1r\, oiCriticism or theOrtlerof lrartrciigms,,, itl CcnlL,:.
quecidos; tampouco fazem esquecer o que os precede e aqui- 1 t/ ut llrtnrt111. 6.J l,trr,,.Shto1t Frryc,.lirronto, lJrrffiilo, Lorrtlrcs, ntt(l Lnl\/_
1o de que nos separam: também Íazem parte do fenômeno de , r , .,,t,, t,rr....,, l()a3, pp.1_t3. Univcrsity
TEMPO ENARRATIVA A coNFtGURAÇÃo Do rEtlrpo NANÁRRÁTrrÁ ot rtcçÃo 27
26

narrativa' mártir etc. - a isso corresponde, do lado do auditot, uma quali-


tiva, e não à racionalidade a-histórica da semiótica
óito aqui os fragmentos que convêm à.minha demonstração' dade especial de temor e de piedade apropriada ao maraülho-
CónsidereÃos inicialmente a teoria dos modos'
que cor- so; no plano cômico, temos a narrativa maraülhosa de tom
responde mais exatamente ao que chamo aqui de
esquematis- idílico: a pastoral, o western. Na terceira coluna, a do mirnético
mo narrativo: entre ,,'odos/ vamos nos deter naqueles elevado (high mimetic), o herói é superior apenas aos outros
"rr", ccionais, para distingui-los dos homens, não ao meio ambiente deles, como vemos na epopeia
ã"" " â","t chama de modosf que eles ió concernem às rela- e na tragédia; no plano trâgSco, o poema celebra a queda do
modos temáticos,no sentid"o dá
internas à fábula, excluindo seu conteúdo16' herói: a catarse que lhe corresponde recebe da harmatía trágS-
ções estruturais
À di.,ribrição dos modos ficcionais é feita em função de um ca sua nota específica de piedade e de temor; no plano cômico,
ser' temos a comédia antiga de Aristófanes: respondemos ao ridí-
..iiOii" d" bus", a saber, o poder de ação do herói' que pode
Aristóteles, maior que o nosso/ me- culo com uma mescla de simpatia e de riso punitivo. Na quarta
como lemos naPoética de
coluna, a do mimético baixo, o herói não é mais superior nem
nor que o nosso ou comparável ao nosso'
Êrye aplica esse critério em dois planos paralelos
préüos' ao seu meio nem aos outros homens: é igual a eles; no plano
modos propria- h"ágico, encontramos o herói patético, isolado exterior e inte-
o plar"tá do trágico e o do cômico, que não são
o he- riormente, desde o impostor (alazón) até o "filósofo" obcecado
r*"t" ditos, nias classes de modoi' Nos modos trágicos' por si mesmo, ao modo de Fausto ou Hamlet; no plano cômi-
rói é isolado da sociedade (a isso corresponde uma distância
vemos nas t'ri, temos a comédia nova de l\4enandro, a intriga erótica, ba-
estética comparável do lado do espectador' como
st'ada em encontros fortuitos e reconhecimentos, a comédia
ãÀofo"t "deptxadas" de temor " pi"d'd";; nos modos cômi-
nos dois. pla- rlorróstica, o romance picaresco que conta a ascensão social do
cos, à herói é reincorporado à sociedade' É pois
;;;; piuno ao trágicã e o do cômico, que Frye aplica o critério l,ilantra; é aqui que devemos colocar a ficção realista descrita
assim em cada um de- rro Plriglsf6 precedente. Na quinta coluna, a da ironia, o he-
ãát gtà"t de podei d'a açáo'Distingue
colunas' Na primeira co- rr ii ri inferior a nós em poder e em inteligência: nós o olhamos
i", Jir-t.o -odor, diüdidos em cinco
(inkind): ,lc t'irna; pertence ao mesmo modo o herói que finge parecer
ir.rr, , do mito, o herói é superior a nós por nalueza rrrlr'r'ior ao que é na verdade, que se esforça em dizer menos
no plano do trá-
os mitos são em geral as hisiórias dos deuses;
gi.à, t.*o, o, *ítot dionisíacos, que celebram os deuses mo- l',rr,r significar rnais; no plano trágSco, temos toda uma coleção
em , l,' n rotlclos que respondem de maneira variada às ücissitudes
Tibrr,dos; no plano do cômico, temos os mitos apolíneos' ,l,r i,it lir com urn humor desproüdo de paixão e que se prestam
dos deuses' Na se-
í"" á n"ioi ai.rino é recebido na sociedade
(romance)' a superioridade do ,r,rr':;lrrrlo clo isolamento trágico como tal: o leque é amplo,
}r"J".of""a, a do maraülhoso mas de grau com relação aos ou-
,1,,',, l,' rr ltlrarutakós ou vítima expiatória, passando pelo herói
fierói não é mais de naturez4 r I,r r rrnr lt'rração ir-rcütável (Adão, na narrativa do Gênese, o se-
tros homens e ao meio ambiente deles: a essa categoria perten-
temos a narrativa rrlr,,1 11 ., rro 1)rocrsso de KaÍka), até avítima inocente (o Cristo
."* o, contos e as lendas; no plano trágSco'
morte do santo ,1,,', l'11',q111,1'lhos c-, próximo a ele, entre a ironia do ineütável e
maraülhosa de tom elegíaco: morte do herói'
,r n,rnr,t rLr intprcrtir-rcnte, Prometeu); no plano da comédia, te-
trrrt', rt 111111'11rrrÂrís cxpulso (Shylock,Tartufo), o cômico punitivo,
temáticos é garantido ,lilr' ,,il rr,r,r tlt'st.ntboca no linchamento pela barreira do jogo,
16. O paralelismo entre modos ficcionais e modos
completada pelo
peU l[açal errfie m§thos e ditínoia na Poética
"Fable
de
and
Aristóteles'
theme" considerados iuntos
r lrr, l,r',,r; P;tt"ritliac da ironia trágtrca, cujos recursos diversos
Lutuaí aL Longino Áobre o Sublime' ,,t, r,.l'lrrr,rrlo:; Pt'lo rofftance policial ou pelo romance de fic-
a história contada (story), enqtanto a diánoia
designa "the point of
constituem
r.,|il r lr,tlllll(,t.
the story".
TEMPO E NARRATIVA A CONFTGURAÇAO DO TEMPO NA NARRATTVA DE rrcÇAO 29
28

ra pareceriam inteiramente arbitrárias se a teoria dos modos não


Duas teses anexas corrigem a aparente rí$dez taxionômi-
no encontrasse sua chave hermenêutica na teoria dos símbolos, que
ca de tal classificação. De aõordo com a primeira, a ficção'
ocupa os três outros grandes Ensaios da Anatomia da crítica.
ócidente, não paia de deslocar seu centro de gravidade de
Um símbolo literário é, essencialmente, uma "estrutura
cima para baixo, ou seja, do herói diüno P.rya o herói da tragé-
verbal hipotética", em outras palawas, uma suposição e não uma
dia e àa comédia irôníca incluindo a paródia da ironia trágSca'
asserção, na qual a orientação "para dentro" supera a orienta-
Essa lei de descida não é forçosamente uma lei de decadência'
se considerarmos sua contrapartida' inicialmente, à medida
que çáo "para fora", qlte é a dos signos de vocação extrovertida e
coluna e o maraülhoso da segun- realistalT.
diminui o sagrado da primeira
do mi- O símbolo assim compreendido fornece uma chave herme-
da, vemos aúmentar a tendência mimética, sob a forma
mimético baixo, e ampliarem te-^qt nêutica para a interpretação da cadeia ao mesmo tempo des-
*áti.o elevado, depois do cendente e circular dos modos ficcionais. Recolocados nos con-
,áto."tde plausibilidade, depois de verossimilhança (pp'.69-70)'
an- textos literários apropriados, os símbolos passam efetivamente
Destacamós aqui um aspeclo importante de nossa análise
.o.,r.t ção e verossimilhança' Além por uma série de "fases", comparáveis aos quatro sentidos da
terior sobre a rôlação
"r-ttr" ironia cxegese bíblica medieval, como o padre Lubac reconstruiu mag-
disso, com a dimiÁuição do poder do herói, os valores da
ironia está nificamente para nós18.
,. tiU.rr- e ganhamiiwe .ú.to. Em certo sentido, a A primeira fase, chamada de literal, corresponde ao primei-
potencialmeíte presente desde que haja um mythos 9m 9eltf -
ro sentido da hermenêutica bíblica. Ela se define muito exata-
ào r-plo, efetivàmente, todo mythos implica "um retiro irôni-
nrc.nte por levar a sério o caráter hipotético da estrutura poéti-
.o pu.à fora do real".Isso explica a aparente ambiguidade do t'ir. Entender um poema literalmente é entender o todo que ele
terino mito: no sentido de miio sagrado, o termo designa a le-
gião de heróis superiores a nós em todos os aspectos; t'9 tT-
t'onstitui tal como se apresenta; é, apesar do paradoxo aparente,
It'r'o poema como poema. Dessa perspectiva, o romance realista
íido aristotélico áe mfithos, abrange todo o império da ficção' tirr c'1Lrc melhor sattsfaz a esse critério da fase literal do símbolo.
Os dois sentidos estãó interligados pela ironia' A ironia ineren-
fic- Com a segunda fase, chamadadeformal, que lembra o sen-
te ao mlthos aparece então ligada áo conjunto dos modos
mas só lirlo alcgórico da hermenêutica bíblica, o poema recebe uma
cionais."Está iÀphcitamente fresente em todo mfithos'
do mito sa- r,r;l r trtura de sua imitação da nafureza, sem nada perder de sua
se torna um "màdo distinto" emtazáo do declínio
constitui um "modo final" ' rlrr,rlitlacle hipotética; da naturez4 o símbolo tira uma imagktica
grudo. É a esse preço que a ironia
acima' Essa primeira tese ane- rlrrr'('oloca toda literatura numa relação oblíqua, indiret4 com
íegundo a lei de descida evocada
uma orientação na taxionomia' ,r nirlrrrcza, graças à qual ela pode não apenas agradar, mas
xa"introduz, como vemos,
In,,lr rrirl".
De acordo com a segunda tese, a ironia report4 de uma
maneira ou outra, ao mitõ @p.59-60; pp' 66-7) ' Northrop Frye
anseia surpreender, no último grau da escala da comédia irô- I I I \",\,r lrcrspt'ctiva, o ronr(urcc realista pocit'scr
arcusaclo dc confuntlir
nica, atravôs da ironia do pharmakós, do ineütável ou do imper- ,, ,r ., ,,, À ilusào ron'ranesca, prcll) mcnos ell.l serrs prirlírrdios, n;rscc 11;r
.rr,,rro.

tinente, um sinal de retorno ao mito, sob a forma do que ele


1, , iu,r,, l('ntittivas lreterogôrrcas cm princíPio: cot.ltLroÍ ulna cstrlltLlr.t
I I rrt,r r()nl,t ('r'cpl'eis€tntar a Vicl:r t'cal.
chama de "mito irônico". I I l, rrr rlt' l,trbac, Erí'gist'tttrlditli,ttlc. Lcs qttrtrc sttts dt l'Ltriltrti', ['aris,
Essa orientação da taxionomia, de acordo com a primeira ,,,,1, l()59,1962.
tese, assim como sua circularidade, de acordo com a segun- |' lrrrlr.r Icnlrtiva cle st,fi;rr;tr s()ntrrttc por abstrttçiio a colrfiilrrriçr7o tlr.r
da, definem o estilo da tradicionalidade europeia e ocidental' , |,,'r r.., r ('r)t tr nt.r corrcePçiio prcixirnir i) clt' NortltRrpr Frve sobrc as lir-
,,,1,, \rr'ligrrr,rt-iio,tleiakr,('sobt.truitosiirtgtrlosur-naretorrirrll,rro
segundo Northrop Frye. Na verdade, essas duas regÍas de leitu- '
30 TEMPO ENARRATIVA Á coNflGuRÁÇÁo Do TEMqO NA NARRATTVA DE F\CÇAO 31

A terceira fase é a do símbolo como arquéflpo. Não deve- imaginária de se totalizar aparlir de um centro. Não há dúvida
mos nos precipitar e denunciar, com o dedo em riste, o "jun- de que todo o trabalho de Northrop Frye pressupõe a tese de
guismo" aparente da crítica arquetípica própria a esse estágio. que toda ordem arquetípica remete a um "centro da ordem das
O que esse termo ressalta, em primeiro lugat, é a recorrência palawas" " centre of the order of words" (p. 118). Toda nossa ex-
das mesmas formas verbais, nascidas do caráter eminentemen- periência literária aponta para ele. Con[udo, nós nos equivo-
te comunicável da arte poética, que outros designaram com o caríamos inteiramente sobre o alcance da crítica arquetípica, e
termo intertextualidade; é essa recorrência que contribui para mais ainda sobre o da crítica anagógSca, se nela discerníssemos
a unificação e a integração de nossa experiência literária20. Nes- uma vontade de controle, ao modo das reconstruções raciona-
se sentido, reconheço no conceito de arquétipo um equivalente lizantes. Bem ao contrário, os esquemas provenientes dessas
do que chamo aqui de esquematismo oriundo da sedimenta- cluas últimas fases indicam uma ordem não controlável até na
sua composição cíclica. Com efeito, a imagística, cuja ordem se-
ção ãa tradição. Além disso, o arquétipo integra a uma
ordem
convencional estável a imitação da natureza que caracteriza a creta procuramos discernir - por exemplo, a ordem das quatro
t'stações -, é dominada do alto pela imagística apocalíptica que,
segunda fase; esta comporta suas próprias recorrências: o dia
sob formas difíceis de enumerar, gira em torno da reconcilia-
e inoite, as quatro estações, a üda e a morte etc.Ver a ordem da
r'ão na unidade: unidade do Deus uno e trino, unidade da hu-
naturezacomo imitada por uma ordem correspondente de pa-
rrrrnidade, unidade do mundo animal no símbolo do Cordeiro,
lawas é um empreendimento perfeitamente legítimo, se sou-
,lo rltundo vegetal no da Áwore daVida, do mundo mineral no
bermos que essa ordem é construída com base na concepção
,lir ('iclade Celeste. Além disso, esse simbolisrno tem seu avesso
mimética da imagem, que se edifica com base na concepção hi-
, ['rrroníaco na figura de Satã, do tirano, do monstro, da figuei-
potética do símbo1o21.
r,r lstóril, do "mar primitivo", símbolo do "caos". Finalmente,
A última fase do símbolo é a do símbolo como mônada- r',;:;ir t'sLrutura polar é, por sua vez, unificada pela potência do
Essa fase corresponde ao sentido anagógico da antiga exegese
/)í";r'lí) que configura simultaneamente o infinitamente desejá-
bíblica. Por mônada, Frye entende a capacidade da experiência r ,'l t, :it,Lr contrário, o infinitamente detestável. Numa perspec-
lrr',r rrrtllrctípica e anagógica, toda imagística literária está ao
nível de mímesis III, dos aspectos do mundo da ação pré-compreendidos no ní- rr,"inro tr.r-r-rpo aquém dessa imagrstica apocalíptica de conclu-
vel de mímesis I, através de sua configuração narrativa (míruesis II), em outras ,,,rr, (' ('nr busca dela22. O símholo do Apocalipse pode polarizar
palavras, através dos modos "ficcionais" e "temáticos" de Northrop Frye' ,r', rrrrilirq'õcs literárias do ciclo das estações, porque, nesta fase,
20. "Os poemas são feitos a partir de outros poemas/ os romances a par- r,r1111ri111r o laço com a ordem natural, esta só pode, então, ser
tir de outros romances. A literatura configura a si mesma" (Poetry can only be
Ir r rrl, rr l, r, t It' r.nodo a se tornar uma imensa reserva de imagens.
made out of other poems, nooels out of othcr noztels. Literature shapes itself"') (p' 97)'
21. A crítica arquetípica, nesse sentido, não difere fundamentalmente da
,\ lrllr,rlurir inteira pode assim ser globalmente caracterizada
praticada por Bachelard na sua teoria da imaginação "material", regida pelos , rn r, r l,rrr;r'ir, Ii.rr-rto nos modos do maravilhoso, do mimético ele-
"elementos" da natureza - água, ar, terra, fogo -, cuja metamorfose Frye per- \ ,r, 1,, r, ,lo rnirtrótico baixo, quanto no modo irônico represen-
segue no meio da linguagem; aparenta-se igualmente à maneira como Mircea
Eliade ordena as hierofanias segundo as dimensões cósmicas do céu, da água,
da vida etc., que não deixam de ser acompanhadas por rituais falados ou es- t, ,,1,,,,rrl,rsol,osírrbokrntaiorrloApocalipse,arníticadasqLrertrots-
critos. Também para Northrop Frye, o poema, na sua fase arquetípica, imita a ,,,1,,r1,.,(..,rrl)()lonattrrallncntesciirscre,pcrclcdcfir.ritivamentctlrral-
natureza como Processo cíclico expresso nos ritos (p. 178)' Mas é a civilização ., ,t, r rr rtrrr,rlr,,t,r. N,r fasc artluctípica tlo sírnbolo, a natLlrezit ainrlit rí
que é então pensada nessa tentativa de extrair da natureza uma "forma huma- tLrL ,, rl, rr () l11)nl('nt. Ntr strn f;rsc anagítgica, o honrem ó a.llrt-'lc quc
na total". , , ,, ,r,,,. .r .,,,1,o tigno rlo infinitamente f)csejár,cl.
32 TEMPO ENARRATIVA A COMIGURAÇÃO DO TEMPO NA NARRATMA DE FICÇAO 33

tado pela sátira23. E é a título de busca que toda nossa experiên- bito da composição da intriga, que uma busca de ord.em é pos-
cia literária reporta-se a essa "ordem de conjunto do verbo2a" . sível. Em seguida, essa ordem pode ser atribuída à imaginàção
Para Northrop Frye, a progressão da ordem hipotética para produtiv4 cujo esquematismo ela constitui. Finalmente, enquan-
a anagógica é uma aproximação jamais acabada da literatura to-ordem do imaginário, ela comporta uma dimensão tempo-
como sistema. E esse télos que, retroativamente, torna plausí- ra1 inedutível, a da tradicionalidade.
vel uma ordem arquetípica, que configura por s;rta-vez o imagi- Cada um desses três pontos nos mostr4 na composição da
nário, e finalmente organiza a ordem hipotética em sistema. intriga, o correlato de uma autêntica inteligência narrativa que
Foi esse, em certo sentido, o sonho de Blake e mais ainda o de precede, de fato e de direito, toda reconstrução do narrar em úm
Mallarmé, que declara: "Tudo no mundo existe para desembo- Brau segundo de racionalidade.
car num 1lÍo."2s
Ao final desse exame de um dos mais ügorosos trabalhos
de recapitulação da tradição literária do Ocidente, a tarefa do fi- 3. Declínio: fim da arte de narrar?
lósofo não consiste em discutir sua execução, mas, consideran-
do-a plausível, em refletir sobre as condições de possibilidade Investigamos exaustivamente a ideia de que o esquema-
de uma tal passagem da história literária à crítica e à anatomia da
tismo que rege a inteligência narrativa se desdobra numa his-
tória que conserva um estilo idêntico. Agora é preciso explorar
crítica.
a ideia oposta: esse esquematismo permite desvios que, àtual-
Tiês pontos relativos à nossa pesquisa sobre a composição
rrrcnte, fazem com que esse estilo difira de si mesmo a tal ponto
da intriga e sobre o tempo merecem ser sublinhados.
(lue sua identidade se torna irreconhecível. Seria então preci-
Em primeiro lugar, é porque as culturas produziram obras
so incluiç no estilo de tradicionalidade da narrativa, a possibi-
que podem ser aparentadas entre si segundo semelhanças de
lidade de sua morte?
família operando, no caso dos modos narrativos, no próprio âm-
Pertence à própria ideia de tradicionalidade - ou seja, à
rrroclalidade epistemológicado "fazer tradição" o fato de iden-
-
23. Discuto no ensaio já citado a tentativa de Northrop Frye de Íazer cor- litlade e diferença nela estarem inextricavelmente misturadas.
responder os modos narrativos aos mitos da Primavera, do Verão, do Outono A itlcr-rtidade de estilo não é a identidade de uma estrutura ló-
e do Inverno.
24. "Quando a arte de Dante, ou de Shakespeare, atinge o apogeu, como liir'ir acrônica; ela caracteriza o esquematismo da inteligência
em A tempestade, temos a impressão de estarmos prestes a perceber o tema e a rr,rrrativa, tal como ele se constitui numa história cumulativa e
razáo de toda nossa experiência, de penetrarmos até o centro profundamente ',t'rlinrc.ntada. Por isso, essa identidade é trans-histórica e não
calmo da ordem verbal (into the still center of the order of words, p. 717)." rr rlr,ntporal. Torna-se então pensável que os paradigmas produ-
25. Quando Northrop Frye escreve: "The conception of a total Word is the
1-rs1 essa autoconfiguração da tradição tenham engendra-
.'rr lr r5
postulate that there is such a thing as an order ofwords..." (p.126) [A concepção da
,l, r, 1' ç1;pfinuem a engendraq, variações que ameaçam a iden-
Palavra total é o postulado de que existe algo como uma ordem de palavras],
seria um Brave erro veÍ um eco teológico nessa fórmula. Para Northrop Frye, Ir,l,rtk' cle estilo ao ponto de anunciar-lhe a mortc.
a religião dedica-se demasiado ao que é e a literatura ao que pode set para qúe t )s problemas postos pela arte de terminar a obra narrativa
literatura e religião se confundam. A cultura e a literatura que a exprime en- , rr,;lilucltl com relação a isso uma excelente pedra de toque.
'
contram sua autonomia precisamente no modo imaginário. Essa tensão entre I , rn ro, na tradição ocidental, os paradigmas de composição são
o possível e o efetivo impede que Northrop Frye dê ao conceito de ficção a am-
plifude e o poder abrangente que lhe confere Frank Kermode na obra que dis-
,r, rr(,rir)lo tempo paradigmas de fecho, pode-se esperar que o
cutiremos em breve, em que o Apocalipse ocupa um lugar comparável ao que lr r,11111.11 csgotamento dos paradigmas torne-se legível na difi-
Northrop Frye the outorga na sua crítica arquetípica (Terceiro Ensaio). , rrl, l, r, lr, tlt' concluir a obra. O que torna ainda mais legítirno li-
34 TEMPO E NARRATIVA A CONflGURÁÇÁ O DO TEt\nPO NA NÁR.RÁTII/Á DE FICÇÃO 35

gar os dois problemas é que o único aspecto formal a ser preser- são talvez os que melhor acumulam os dois efeitos. Não é um
vado da noção aristotélica de mythos é, para além de seus des- paradoxo dizer que uma ficção bem fechada abre um abismo em
dobramentos sucessivos em "gêneros" (tragédia, romance etc.) nosso mundo, ou seja, na nossa apreensão simbólica do mundo.
e em "tipos" (tragédia elizabetana, romance do sécu1o )OX etc.), Antes de nos voltarmos para a obÍa magistral de Frank Ker-
o critério de unidade e de completude. O mfithos, como sabe- mode, The Sense of an Ending [O sentido de um fim], não será
mos, é a imitação de uma ação una e completa. Ora, uma ação inútil dizer algumas palawas sobre as dificuldades, taivez insu-
é una e completa se tiver um começo, um meio e um fim, ou seja, peráveis, com as quais defronta toda busca de um critério de fe-
se o começo introduzir o meio, se o meio - peripécia e reconhe- chamento em poética.
cimento * conduzir ao fim e se o fim concluir o meio. Então, a Alguns, como J. Hillis lt{illeç consideram o problema inso-
configuração se sobrepõe ao episódio, a concordância à discor- l(svel27. Outros, como Barbara Herrstein Smith, procuraram apoio
dância. É pois legítimo considerar sintoma do fim da tradição da r-ras soluções propostas para o problema do fechamento no do-
composição da intriga o abandono do critério de completude mínio, conexo, da poesia 1írica28. As regras de fechamento são
e, assim, o propósito deliberado de não terminar a obra. cfetivamente mais fáceis de identificar e descrever nesse domí-
Importa, em primeiro lugaç deixar clara a natureza do pro- nio; é o caso dos fechos de caráter gnômico, sentencioso ou epi-
blema e não confundir duas questões, a primeira relativa amí- liramático; além disso, a evolução do poema lírico, do soneto do
mesis ll (configuração) e a segunda, a mímesis I11 (refiguração). llcnascimento até o verso liwe e o poema visual de hoje, pas-
Dessa perspectiva, uma obra pode ser fechada quanto à confi-
guração e abefta quanto ao impacto que pode exercer no mundo 27. l. Ilillis Miller, "Tl're l)trblerlatic of lintling in N,rrrllivr"', in Nrrr.lrli
do leitor. A leitura, como diremos na quarta parte, é precisamen- '' I ntlin.\s, clcclirra: "No tttrrrltit,t'ctttt sltozp t'illtL'r ils bL',gittrrirry trrtt ils ttrrlitt,\"
L rrI r il.. p. 4) [Nenhuma narr.rtiva podc nrostrat'Ir('nr scLr cr)nr('q() n('n) s('u
te o ato que efetua a transição entre o efeito de fechamento con-
forme a primeira perspectiva e o efeito de abertura conforme a
i
' I I .rinclir: "1-lrc lTtorin of Ltrdirt,,q tríst's.frotrt llrr .littl llurl il is ittrltossiltlr tL,trt tLt
rr

li rlt,lltL'rrr,,|ittr'ttttorrntitr:iscottrltlt'tt"' (p 5)lnir;roriatlofinrlverrtlol'atorlc
segunda. Na medida em que age, toda obra acrescenta ao mun- , r rrl)ossi\'(\l ;rtti nicslr'ro tlizer st, trlna dacla nitrrtttirrl esti crrrtl.lt't.rl. [i vtr-
do algo que não estava ali antes; mas o puro excesso que pode- I ,, l, ,1rrr'(),rUt()r tnnra conro reltorôncia a rc.laçiio cntre rrri (rTcsis) t, cl0sit'clro (/ii-
mos atribuir à obra enquanto ato, seu poder de interromper a re- t tt.t I',t lirrt de Aristótclcs e nrr.rltiplica "com brio" as a;rorias do r.tti. C)ra, c'r
petição, como diz Roland Barthes nalntroduction àl'analyse struc- ' r rr rlr':sr. lt'rto n:r Poitiar é rnrrito discutido, na rncdida err clllc a operação
l, , r.r () rro t'o clcsfcch() cscap.r iro critério do cot.tteço e do fir.n cl.rratlclnte
turale du récit llntrodução à análise estrutural da narrativa], não
|', ,rr,,,.rIitLtlocanônicocot.tsagra..loporAristtitelesàintriga.()silrcidcntc-'s
contradiz a necessidade de fechamento. Os fechos " cr17ciais"26 , t ,1,, ;,,rtlt.rr scr intt'rrniniír,t,is corno sào, tle fakr, tra vida; a narratit,ir cot.ttcr
. r' , tr'rrin.ivcl. O tlut:;rcontt.ct'clcpois do finr rrão é pertirlerlt(' pnra n colr-
,1,, Exatarrentc por isso existt'o prolrlenra do bom fr'ch;rtle't.t-
111r1'1.11;1.
26. ]ohn Kucich, 'Action in the Dickens Ending: Bleak Holrce and Great Ex- , I i rt r ros mais irtl a n tc, rlo antifech;r r.ncrr to.
r i

pectations", Narrntizte Endings, número especial de XlXth Century Fiction, Univer- 'r; IrrrtlosinúrnerosnróritosdaobradcBartraraHcrrsteitrSrlith,/)or'Íic
sity of California Press, 1978, p. BB. O autor chama de "cruciais" os fechos nos , \ ';lttltt lrl f/oa, /)or'tus l;rrrl (The University oi Chicago I'ross, l9(rl3), é
quais a ruptura exercida suscita a espécie de atividade que Georges Bataille ca- ' l Lt ()ri,r tl,r narrativir rrão trpcnas url r.totiivcl nrodelo dc anaílise, nras
racteriza como "dispêrrdio". O autor exprime, além disso, sua dívida com relação , ;,r, , i,,,rr p.rrr cste nclcr i) "pLtttic closttrc" cnr ge raI suas obscrvlçire.s limi-
à obra de Kenneth Burke, principalmente Á Grumrnar of Motiztes (Nova York, Bra- t , ,rr t' ' ltt:'lt.t"'. r\ tlansposição é facilntcr.rtc justiÍicár,el: trittit-sc, t.tos tlois
ziller, 7955; Berkeley, University of California Press, 1969) e Language as Symbolic l. ,,1 ,r,r', (lu(' st' (lestircanl cl() pal.'ro dc funclo rlas transaçires rla lingua-
Action. Essays on Life, Literature and Method (Berkeley, University of Califomia ,,,,,,, l,,u,r inlt,rrorlpi-lits;trat.r-se,al(rnrtlisso,nosdoiscirsos,clcobras
Press, 1966). Destacaremos a ú1tima observação de Kucich: "ln all crucinl endings, r,' r'rrlitlo 1l.rrticrrlal rlc irnit:rrenr trnrit "enulrciação" coticliana: ar-
the means of causing that gap to nppear is the end" [Em todos os fechos cruciais, os , I rr,rr,ro, l.rnrcnttl (,tc.i ()ra, a narratit,;t liter.iria imit.r n.ir,,rpr'rt.r-.t
meios que causam esse abismo são o próprio fechol (artigo citado, p. 109). , L r rrr,rlir,r conrrrnt tornrtda n.rs trarnstrções cla vicla trrticliltra.
36 TEMPO ENARRATIVA A CONFIGURÁÇÁO DOTEMPO NA NÁRÀÁTIYÁ DE FICÇAO 37

sando pelo poema romântico, permite acompanhar com preci- tema de interações que forma a trama da história contada. Esse
são o destino dessas regas; finalmente, as soluções técnicas tipo de fecho foi buscado pela maioria dos romancistas do sé-
que a poesia lírica oferece para o problema do fechamento re- culo XX. Assim, é relativamente fácil, comparando-se o pro-
portam-se às etpectatiuas do leitor criadas pelo poema, expec- blema da composição e sua solução, dizer se o fim é acertado
tativas às quais o fechamentotraz"um sentimento de acabamen- ou não. Não é mais o caso quando o artifício literário, em ür-
to, de estabilidade, de integação" (0p.cit., p.I/III). O fecho só tude da reflexibiiidade de que falamos mais acima, incide em
terá esse efeito se a experiência de configuração for não apenas seu caráter fictício; o fecho da obra é então o da própria ope-
dinâmica e contínua, mas suscetível de rearranjos retrospecti- ração fictícia. Essa inversão de perspectiva caracteríza a litera-
vos, que fazem a própria resolução aparecer como a aprovação tura contemporânea. O critério do fechamento certo é, nesse
final que sela uma boa forma. caso, bem mais dificil de administrar, particularmente quando
I\4as, por mais esclarecedor que seja o paralelismo entre fe- deve concordar com o tom de irresolução da obra inteira. Final-
chamento poético e lei de boa forma, ele encontra seu limite nrente, a satisfação das expectativas toma, também aqui, for-
no fato de, no primeiro caso, a configuração ser uma obra de mas variadas, se não opostas. Uma conclusão inesperada pode
linguagern e o sentimento de acabamento poder ser obtido por í'rustrar nossas expectativas moldadas por convenÇões antigas,
outros meios; assim, o próprio acabamento admite muitas va- nras revelar um princípio de ordem mais profundo. Embora todo
riantes, entre as quais é preciso integrar a surpresa: ora, é bem l'cchamento responda a expectativas, não as satisfaz necessa-
difícil dizer quando um término inesperado se justifica. Urn fim riarnente. Pode deixar expectativas residuais. Um fecho não cot-t-
decepcionante pode conür perfeitamente à estrutura da obra, clusivo convém a uma obra que levanta propositadatnente um
se ela pretender deixar o leitor com expectativas residuais. É igual- ;rrrrblema que o autor considera insolúvel; não deixa contudo
mente difícil dizer em que caso a decepção é mais exigida pela rlt' scr um fecho deliberado e pensado, que realça de maneira
própria estrutura da obra que um hm "fÍaco" de fechamento. r r'Í'lcxiva o caráter interminável da temática da obra inteira. A in-

Tiansposto paÍa o plano narrativo, o modelo lírico sugere um ,'onclusão declara de certo modo a irresolução do problema co-
estudo cuidadoso da relação entre a maneira de terminar uma l,rt'irclo2e. N4as concordo com Barbara Herrstein Smith quando
narrativa e seu grau de integração, que depende do aspecto mais ,rlir rrra que o antifechamento3t) depara com um limite para além
ou menos episódico da ação, da unidade dos caracteres, da es-
trutura argumentativa e daquilo que mais tarde chamaremos "r li,rrbar;r Hcrrstcirr Snrith í.,1n;r essc rcspc-ito de ".'r'lÊclosilrol rcfi'rotcc"
de estratégia de persuasão, que constitui a retórica da ficção. ' I r lrt:1ft, 1r1t. cit., p. 172), ir obra st, re'ft rindo a si nresnrtt L\rqlrant() ()[]ri)

A evolução do fechamento lírico tem também seu paralelo no I rr,r rrr,rnt'ilir c]e concltrir otr não cortcltrir.
ir ) li.r'lr.rlr Hc.rrsteirr Snrith clistingue erltre o "turti closurt" lantifecha-
fechamento narrativo: da narrativa de aventura ao romance bem
., ' r,,l ,1rrr',rirrc1a conser\,â unra ligirçã«l conr a ncccssiclade'rle concluir ptlr
construído e, depois, ao romance sistematicamente fragmen-
I ,r rr ur'5()s rcflexivos da lingtt;rgcnr ao intrc:rbamento tcr.tr.itico da obr:t c
tado, o princípio estrutural opera um ciclo completo que, de ,, , ' r( r' ,r lornras cada vcz t.nais stttis c1c fecho e t't "ltttlotrd c/tt.stirr"' lpitrir
certo modo, volta, de rnaneira muito sutil, ao episódico. As re- r , lr,, lr,rrrrt.nto]. Conr o "allll-r'lrtst/fa" t'sttits tccnictrs de "sitbtltagctl" da
soluções requeridas por essas mudanças estruturais são, con- 1, , rr
l)()(l(!-s(i dizcr: "Se o traiclor - a linguagenr r-rão podc scr cxilado,
sequentemente, muito difíceis de identificar e classificar. Uma 1 r,,r,,,I(r,,unri-loetorná-loprisiorrt'iro"(p.25a).Como"bcryottdclostrrt/',ó
das dificuldades provém da confusão sempre possível entre o ir ,,r "o trlitlor a lingrragem - foi irqui dominaclo: ttào apetras tlcsar-
l , , , ,1,',,rl,ilar1o" (p. 266). () qtrc inr;rede o autor dc transP()r cssc linriar
fim da ação irnitada e o fim da ficção enquanto tal. Na tradição , ,.,,,,1r'(lu(',c()n.roinrit;rçriorle "lltL'rnttaL"' [cljscursol,aliltgttitgcttrpoc-
do romance realist4 o fim da obra tende a se confundir com o fim ..t,',1, ( (.tlr,tri'ttettsirttcrrtrtlitrgttitgclttliteráriarcnãoliter;iria.(]tr.lrr
da ação representada; tende, então, a simular o repouso do sis- ' , rrrl'1,,.,r \urples.r clelibcrarla í'substittrída peloalcatírrio,(luilrtrj(), r'lr
3B TEMPO E NARRATIUA A CONFIGURAÇÃO DO TEMPO NA NÁRNÁTIYÁ DE FICÇÃO .l( )

do qual nos defrontamos com a alternativa de excluir a obra do Império Romano-Germânico, epistemológica através da teoria
domínio da arte ou de renunciar à mais fundamental pressu- doô modelos, literária através da teoria dà intriga. À primeira
posição da poesia, a sabeç que ela é uma imitação dos usos üsta, essa sequência de abordagens parece incongruente: o
não literários da linguagem, entre os quais o uso comum da nar- Apocalipse não é em primeiro iugar um modelo de mundo, en-
rativa como arranjo sistemático dos incidentes da üda. A meu quanto aPoética de Aristóteles só propõe o modelo de uma obra
veç é preciso ousar escolher a primeira opção: para além de toda verbal? A passagem de um plano a outro e, em particular, de
suspeita, é preciso confiar na formidável instituição da lingua- uma tese cósmica a uma tese poética, encontra contudo uma
gem.,E uma aposta que se justifica por si mesma. justificativa parcial no fato de a ideia de fim do mundo ser-nos
E essa alternativa - e, no sentido próprio do termo, essa transmitida por meio do escrito que, no cânone bíblico aceito
questão de confiança - que Frank Kermode toma a peito na sua no Ocidente cristão, conclui a Bíblia. O Apocalipse pôde signi-
obra justamente famosa, The Sense of an Ending31. Sem querer, ficar assim ao mesmo tempo o fim do mundo e o fim do Liwo.
ele retoma o problema do ponto em que Northrop Frye o dei- A congruência entre mundo e liwo vai ainda mais longe: o co-
xara quando reportava o Desejo de completude do universo do rneço do liwo é a respeito do Começo e o fim do livro, a respeito
discurso ao .tema altocalíptico, considerado no plano da crítica clo Fim; nesse sentido, a Bíblia é a grandiosa intriga da histó-
anagógica. E também a partir das metamorfoses do tema apo- ria do mundo e cada intriga literária é uma espécie de minia-
calíptico que Kermode tenta retomal, num plano mais elevado, tura da grande intriga que une o Apocalipse ao Gênese. Assim,
a discussão sobre a arte de concluir, sobre a qual a pura crítica o rnito escatológico e o mythos aristotélico se unem na maneira
literária tem bastante dificuldade de concluir. Mag agora, o qua- rlc ligar um começo a um fim e de propor à imaginação o triun-
dro é o de uma teoria da ficção bastante diferente da teoria do lir cla concordância sobre a discordância. Não é, com efeito, im-
símbolo e do arquétipo de Northrop Frye. 1rt'rtinente aproximar daperipéteia aristotélica os tormentos dos
Adrnitindo que são expectativas específicas do leitor que re- [ ]lLirnos Têmpos da perspectiva do Apocalipse.
gem nossa necessidade de dar um fim sensato à obra poética, li precisamente no ponto de junção entre discordância e
Kermode se volta para o mito do Apocalipse que, nas tradições ,'orrcordância que as transformações do mito escatológico po-
do Ocidente, foi o que mais contribuiu para estruturar essas ex- ,lt'nr csclarecer nosso problema do fechamento poético. Ob-
pectativas, dispondo-se a dar ao termo ficção uma arnplitude ,,('r'v('nros em primeiro lugar o notável podef, atestado durantc
que ultrapassa em todos os aspectos o domínio da ficção iite- rrrrril«r tempo pelo apocalíptico, de sobreviver a todos os des-
rária: teológica através da escatologia judaico cristã, histórico- rrrcnliclos do acontecimcnto: a essc rcspcito, oApocalipse ofc-
-política através da ideologia imperial üva até a queda do Santo r,'r't' o urodelo de uma predição incessantemente infirmada c
r ,1111;1111 jarnais descreditada e, assim, de um fim que é, por sua

poesia concreta, não há mais nada para ler, mas apenas para olhar, o crítico se
lr,z, irrccssantemente adiado. Além disso, e por implicação, a
vê então confrontado com uma mensagem de intimidação que Ihe diz: "Deixa rrrlir rrrirç,ão da predição relativa ao fim do mundo suscitou unta
aqui toda bagagem linguística" (p.267). Mas a arte não pode romper com afor- I r, r rli rr-nração propriamente qualitativa do modelo apocalípti
r r :

midáoel instituição da linguagern. É pot isso que suas últimas palavras anunciam r r ,lr' ir.r.rinente, o fim tornou-se imanente. Consequentenrcr'l
'
o "yet,.. howeaer" [e, contudo...) que leremos em Frank Kermode relativamente lr,. . Apocalipse rearranja os recursos de sua imagística sobrt'
à resistência dos paradigmas à erosão: "Poetry ends in many ways, but poetry, I
think, has not yet ended" (p. 271) [Poesias acabam de vários modos, mas a poesia,
r r,, I lll irnoq Têmpos
- tempos de Têrror, de Decadência e dc l(t'
penso eu, ainda não acabou]. tr,\',r(\',r( ) para se tornar um mito da Crise.
31. Frank Kermode, The Sense of an Ending, Studies in the Theory of Fiction, l'r;r;;r tlansformação radical do paradigma apocalíptico t'n
Londres, Oxford, Nova York, OxÍord University Press, 1966. rrrq1f 1,1 :it,rr cquivalente na crise que aÍeta a composiçã<l litt't'ti
TF,I\,TPO ENARRATTVA A CONFIGURAÇÃO DO TEMPO NA NÁR-RÁT/Y,4 DE FICÇAO 4t
40

ria. E essa crise se dá tanto no plano do fechamento da obra engendra um tempo da Crise que mais uma vez traz as mar-
cas do sempiterno, mesmo que essa eternidade - "between tha
quanto no do desgaste do paradigma da concordância'
Frank Kermoáe vê o signo precursor dessa substituição do acting of a dreadful thing/ And the first motion"* - seja somente
fim iminente pela Crise, que passa a ser uma periyséteia indefi- o simulacro e a usurpação do Eterno Presente. Nem é neces-
sário lembrar a que ponto Hamlet pode ser considerado " ano'
nidamente diÀtendida, na tragédia elizabetana' Esta the pare-
ther play ofprotracted crisis"**.
ce ter raízes mais profundas no apocalíptico cristão do que na
Essa transição do Apocalipse para a tragédia elizabetana3a
Poéticade Aristóteles. Embora Shakespeare ainda possa ser con-
abre caminho para expormos uma parte da cultura e da litera-
siderado "the greatest creator of confidence"* (p.B2), seu trágico
tura contemporânea em que a Crise substituiu o Fim, em que
é um testemrr-tho do illomento em que o Apocalipse passa da
a Crise se tornou transição sem fim. A impossibilidade de con-
iminência para a imanência: " A ttagédia apropria-se d-as figu-
cluir torna-se assim o sintoma da infirmação do próprio para-
ras do Apoialipse, da morte e do julgamento, do céu e do infer-
digma. É no romance contemporâneo que percebemos melhor
no, mas o mundo passa para as mãos de sobreüventes esgo-
a junção dos dois temas: declínio dos paradigmas e, portanto,
tados" (p 82).A restauração final da ordem paÍele débil diante
fim da ficção - e a impossibilidade de concluir o poema e, por-
dosTerrôres que a precedem. E mais o tempo da Crise que se re-
tanto, ruína da ficção do fim35.
veste dos traçôs dequase eternidade32 - que, no Apocalipse, per-
Essa descrição da situação contemporânea, de resto bem
tenciam exclusivamente ao Fim -, para se tornar o verdadeiro
conhecida, importa menos que o juízo que o crítico pode Íazer
tempo dramático. Por exemplo, Kng Lear'. seu suplício tende
sobre ela à luz do destino do Apocalipse. A ficção do Fim, como
purá ,- fim incessantemente adiado; para além do pior, há
dissemos, nunca deixou de ser infirmada e, contudo, nunca foi
pior ainda; e o próprio fim é apenas uma imagem do horror
desacreditada. Seria também esse o destino dos paradigmas li-
àa Crise; KingLàar ã assim alragédia do sempiterno na ordem
terários? A Crise, também aqui, significaria ainda para nós Ca-
da desgraça .Óomlt'Lacbeth, apetípécia torna-se uma paródia da
amUigúaáde profétic4 " a play of prophecy" .Também aqui o equí-
voco devasta o tempo; todos conhecem o famoso verso, em do Cristo no fardim das Oliveiras, à espera de seu kairós - " a significant season"
que o herói percebe as decisões a serem tomadas " all meeting (p. a6) [Um momento significativo]. Essa oposição entre khrónos - tempo retilí-
**33
.É que " the play of Crisis" neo - e kairós * tempo sempiterno - remete ao tema de nossa quarta parte.
àgether in thà same juncture of time" + Entre a realização de uma coisa pavorosa
/ E o primeiro movimento
para isso. (N. da T.)
** Outra peça de uma crise prolongada. (N. da T.)
* O maior criador de confiança. (N' da T') 34. A insistência do autor sobre esse ponto é significativa (pp. 25, 27, 28,
32. Remeto às observações esclarecedoras de Frank Kermode sobre o Áe- 30, 38, 42, 49, 55, 61. e principalmente 82,89).
aum, o perpéttto, o sempiterno. O autor discerne no temPo trágico a "terceira 35. Ler o quarto estudo de Kermode, The Modern Apocalypse. Nele são
ordem àe àuração" (The Sense of an Ending, op. cit', pp' 70 ss'), entre o temPo e descritas e discutidas a pretensão de nossa época de se acreditar especial, sua
a eternidade, que a teoria medieval atribuía aos anjos' Quanto a mim, ligarei'
na convicção de ter entrado numa crise perpétua. NeIe é discutido o paradoxo
quarta parte, eisas qualidades temPorais a outros asPectos do tempo narrativo que constitui a pretensa "tradição do Novo" (Harold Rosenberg). No que con-
qr" -ut.u* a liberáção deste último com relação à simples sucessão linear' cerne mais particularmente ao romance contemporâneo, assinalo que o proble-
** Todas juntas, ao mesmo tempo. (N. da T') ma do fim dos paradigmas se põe em termos inversos aos dos primórdios do
33. Frank Kermode aproxima muito justamente esse horrível dilacera- romance. No início, a segurança da representação realista mascarava a insegu-
rança da composição romanesca. Na outra extremidade do percurso, a inseguran-
mento do tempo em Macbeth d-a distentio agostiniana, como o próprio autor das
Confissões a viveu na prova da conversão sempre diferida:
"Quando? Quando? çtr posta a nu pela convicção de que o real é informe se volta contra a própria
"cras cras",YIil,12,28)'Mas, irleia de composição ordenada. A escrita se torna seu próprio problema c suo
Arnanhã, ,"rrpr" u-ánhá" (Quamdiu, Quamdiu, et
prírpria impossibilidade.
em Macbeth, á qrut" eternidade da decisão diferida é o inverso da paciência
42 TF,A,IPO F- NARRATIV'A a coNrrctnaçÂo DorEt\,tpo NANáRRATIuÁ oe rtcçÃo 43

tástrofe e Renovação? Essa é a conücção profunda de Kermo- ções mais complexas, mais sutis, mais dissimuladas, mais ardi-
de, que eu compartilho inteiramente. losas que as do romance tradicional, em suma, convenções que
A Crise não marca a ausência de todo fim36, mas a conver- ainda derivam destas últimas por intermédio da ironia, da pa-
são do fim iminente em fim imanente. Não podemos, segundo ródia, do sarcasmo. Desse modo, os golpes mais audaciosos as-
o auto(, distender a estratégia da infirmação e da peripéteia ao sestados nas expectativas paradigmáticas não saem do jogo de
ponto de a questão do fechamento perder todo o sentido. Mas, "deformação regrada" , graças ao qual a inovação nunca deixou
pode-se perguntar, o que é um fim imanente quando o fim não de replicar à sedimentação. Um salto absoluto fora de toda ex-
é mais um fecho? pectativa paradigmática é impossível.
A questão conduz toda a análise a um ponto de perplexi- Essa impossibilidade é particularmente notável no trata-
dade. Esse ponto seria intransponível se considerássemos so- mento do tempo.Rejeitar a cronologia é uma coisa; recusar todo
mente a forma da obra e negligenciássemos as expectatir:as do princípio substitutivo de configuração é outra. É impensável
leitor. Pois é exatamente aí que o paradigma de consonância se que a narrativa possa dispensar toda e qualquer configuração.
refugSa, pois é aí que se origina. O que parece intransponível é, O tempo do romance pode romper com o tempo real: essa é a
em última instância, a expectativa do leitor de que alguma con- própria lei da entrada na ficção. Não pode deixar de configu-
sonância finalmente prevaleça. Essa expectativa implica que rá-Jo segundo novas normas de organização temporal que ain-
nem tudo seja peripéteia, sob pena de a própria peripéteia se rla sejam percebidas pelo leitor como temporais, graças às no-
tornar insignificante, já que nossa expectativa de ordem seria vas expectativas com relação ao tempo da ficção que explora-
frustrada em todos os sentidos. Para que a obra ainda capte o rcrrros na quarta parte. Acreditar que acabamos com o tempo
interesse do leitor, é preciso que a dissolução da intriga seja en- tla ficção porque sacudimos, desarticulamos, invertemos, atro-
tendida como um sinal dirigido ao leitor para cooperar com a l)clamos, reduplicamos as modalidades temporais às quais os
obra,para ele mesmo fazer a intriga. E preciso esperar alguma paradigmas do romance "convencional" nos habituaram é acre-
ordem para se decepcionar por não encontrá-la; e essa decep- ,litar que o úrrico tempo concebível seja precisamente o tem-
ção só gera satisfação se o leitoç tomando o lugar do attor, faz |rr cronolóBico. E duvidar dos recursos que a ficção tem para
a obra que o autor empenhou-se em desfazer. A frustração não irrvcntar suas próprias medidas temporais, é duüdar que esses
pode ser a última palawa. Para isso, é preciso que o trabalho de r('('Lrrsos possam encontrar no leitor expectativas, relativas ao
cornposição pelo leitor não se tenha tornado impossível. Pois l('r)rpo, infinitamente mais sutis que as relacionadas com a su-
o jogo da expectativa, da decepção e do trabalho de recompo- t'r'ssão retilínea37.
sição da ordem só permanece praticável se as condições para É preciso, então, adotar a conclusão que Frank Kermode tira
que isso aconteça são incorporadas ao contrato tácito ou ex- rlr r l.irn de seu primeiro estudo e que seu quinto estudo confir-
presso que o autor estabelece com o leitor: eu desfaço a obra e rrr,r, a sabe1, que expectativas de alcance comparável às engen-
vocês a refazem - o melhor possível. \rLas, para que o próprio ,lr,rrlas pelo Apocalipse têm o poder de persistir e, contudo,
contrato r-rão seja um engodo, é preciso que o autor, longe de rrrrrrlaln e, mudando, encontram uma nova pertinência.
abolir toda convenção de composição, inlrodur,a novas conven-
i,' lirço;rc1ui alusiio às páginas rlLre llrank Kerrnorie cons.lgrit a lirlrlrt'
36. " Crisis, howeztcr facile tlte conception, is inescapably a cen.tral element in our ' , rl , t r' ,r r.scritir labirírrtica (pp. 19-2a). I.-rirnk Kerntode clcstaca, c()nr r.lzr(), ()
endeaaours towards making sens of our zoorld" (p.9$ [A crise, apesar de fácil con- , , rrlllnreeliiírio rt'prtsentirclo pclas técr.ricas nitrrativls rlc Sitrtrc c (',rnrrrs,
cepção, é inevitavelmente um elemento central de nosso esforço para tornar
. iL ttl (.no [sÍ,",1r'(,i,1r, solrrc o camürho cia riissiclência reivintlic.rtlo 1,r,r
nosso mundo compreensível].
r ,, r,rillt't.
44 TEMPO E Ná-R-RÁTIYÁ A coNFtGURAÇÃo Do rEMpo NÁ NARRÁTI/Á DE FtcÇÀo 45

Essa conclusão esclarece singularmente o que já afirmei de üsta do leitor. A passagem do fim iminente ao fim imanente
sobre o estilo de tradicionalidade dos paradigmas. Oferece, é, com efeito, segundo ele, obra do "ceticismo dos intelec-
além disso, um critério para a "discriminação dos modernismos" tt)ais" , que se opõe à crença ingênua na realidade do Firn es-
(p.1,1,D. Para o modernismo mais antigo, o de Pound,Yeats, W. perado. O estatuto de fim imanente é, então, o de um mito
Lewis, Eliot e mesmo de joyce (cf. as páginas esclarecedoras desmitologizado, no sentido de R. Bultrnann, ou, na minha
sobre ]oyce, pp.1L3-4), o passado permanece uma fonte de or- opinião, o de um mito partido, segundo Paul Tillich. Se repor-
dem, mesmo quando é ironizado e denegrido. Para o moder- tarmos à literatura o destino do mito escatológico, toda ficção,
nismo mais novo, que o autor chama de cismático, a ordem é inclusive a ficção literária, assumirá também a função do mito
o que deve ser denegado. A esse respeito, Beckett marca a ü- partido. O mito tornado literário conserva, é verdade, a pers-
rada em direção ao cisma, "the shift tozoards schism" (p. 115).
pectiva cósmica, como ümos em Northrop Frye; mas a crença
EIe é " o teólogo perverso de um mundo que sofreu uma que-
que o sustenta é corroída pelo "ceticismo dos intelectuais". A
da e que, experimentando uma encarnação que muda todas as
diferença é aqui total entre Northrop Frye e Frank Kermode.
relações entre passado, presente e futuro, não quer ser, contu-
Precisamente onde o primeiro discernia a orientação de todo
do, redimido" (p. 115). Nesse sentido, conserva um únculo
o universo do discurso para o "centro profundamente calmo
irônico e paródico com os paradigmas cristãos e é essa ordem,
c'la ordem yeÍbal", Kermode pressente, ao modo nietzschiano,
invertida pela ironia, que preserva a inteligibilidade. "Ora, tudo
o que preserva a inteligibiiidade coíbe o cisma" (p. 116). "O cis- luma necessidade de consolo diante da morte, que transforma,
ma é desproüdo de sentido fora de toda referência a algum es- tlc certo modo, a ficção num engodo38. lJm tema insistente,
tado anterior; o absolutamente Novo é simplesmente ininteli- tpre atravessa todo o liwo, é que as ficções do fim, sob suas di-
gível, mesmo a títu1o de noüdade" (íbid.). "... a noúdade por si vcrsas formas - teológicas, políticas e literárias -, têm a ver com
mesma implica a existência daquilo que não é novo - um passa- ir lnorte ao modo de consolo. Daí a tonalidade ambígua e des-
6ç" (p.117). Nesse sentido, "a noüdade é um fenômeno que t oncertante - aUnheimlichkeit", diria eu - que faz o fascínio de
afeta a totalidade do passado; nada por si só pode ser novo" 'l'ltt Scnse of an Ending3e.
(p.120). E H. Gombrich disse melhor que ninguém: "The inno- lnstaura-se assim um divórcio entre veracidade e consolo.
cent eye sees nothin{'" (op. cit., p.102). ('onsc-quentemente, o liwo não cessa de oscilar entre a inven-

Essas máximas ügorosas nos levam ao limiar do que cha-


lli cxprcssã() "tlrc cousoliu,t 1tlo/" (p.31) [a irrtriga que. consola] torna-st,
,,\
mei de questão de confiança (veremos mais adiante que fomos
",,, Llr,r',('lrlcon.rsr.tro. Nào rtrenos inrportalrte gtrc a influência cle Nietzschc ó
muito felizes na escolha): por que não podemos - por que não .1, , r ,lo
|octa W.rllace Stevct.ts, em p:rrticular na últirrra seção cle suas Ntrlcs
devernos - escapar a algum paradigma de ordem, por mais re- t,,l ',ttltrettta [:icliott.
't
finado, sinuoso e labiríntico que seja? \ r.slr.rthcz;r. (N. cla T.)
l'I | ),ri.r rluplrr cleterrninatção do p«iprio terrtro É-rlr7irg, ft'cho, fim. C) firn
Frank Kermode não facilitou a resposta para si mesmo, na . , n)() tentp() o fim do rnunclo: o Apocalipse; o íim do l-ivro: o livro do
medida em que sua própria concepção da relação entre a fic- '
I , , r1,,,'; o l'ir.rt scm fim cla Crise; o rnito r1o fim clr. sécr,rlo; o fin'r da tradi-
ção literária e o mito religioso no apocalipse corre o risco de 1,, l'.rr.rriigr.r.tits: o cisrna; a impossibilitlade dc clar um firtr ao p()eÍril: .r
solapar os fundamentos de sua confiança na sobreüvência dos | , , r, r,,rl,.rti.r; fintrlmente, it tn()rte: o fim clo descjo. Essa cltrpla deterntirra-
paradigmas que regem a expectativa de fechamento do ponto , l,.r.r irorrirrrloartígoirrrlefinidoenrT/re Scrrr-cof nttEttLlittg.Contt'r[im,
, , rl,rr)()s a0 [im: "T/rr, itntçi.noliott, diz o pocta Wallact'Stevens, i.s a/.
:i ' , tt,l rtl r/// ('rr7" (citird(), p. 31) [A ir.nirginarçãO cstá senrpre no final t]t.
* O olhar inocente nada vê. (N. da T.) ,]
46 TEMPO ENARRATLYA A CONFrcUr.aÇÃO DO TEMPO NA NÁRl?ÁTryÁ DE FrcÇaO 47

cíve1 suspeita de que as ficções mentem e trapaceiam, na me- it has not yet been finally and totally struck.The suroiaal of the pa-
dida em que consolam4o, e a conücção, igualmente invencível, radigns is as much our business as their erosion"42 @.ail.
de que as ficções não são arbitrárias, na medida em que respon- Se Frank Kermode lneteu-se em tal beco sem saída, não
dem a uma necessidade que não controlamos, a necessidade de foi por ter imprudentemente posto, e prematuramente resolüdo,
imprimir o selo da ordem ao caos, do sentido ao não sentido, o problema das relações entre "ficção e realidade" (um estudo
da concordância à discordânciaa1. inteiro lhe é consagrado), em vez de mantê-lo num certo sus-
Essa osciiação expiica que Frank Kermode responda à hi- pense, como tentamosÍazer aqui, isolando os problemas de con,
pótese do cisma, que não passa, no final das contas, da conse- figuração, sob o signo de mímesis II, dos problemas de refigu-
quência mais extrema do "ceticismo dos intelectuais" com rela- ração, sob o signo de mímesis III? Northrop Frye me parece, no
gerai, ter sido mais prudente na colocação do problema, atri-
ção a toda ficção de concordância com um simples: "e contLLdo..." .
Assim, após ter evocado, com Oscar\Atlde, "the decay of lying!'",
buindo ao mito do Apocalipse somente um estatuto literário,
sem se pronunciar sobre o significado religioso que pode as-
ele exclama: "And yet, it is clear, this is an exaggerated statement
sumir na perspectiva escatológica de uma história da salvação.
of the case.The paradigms do suruioe, somehow.If there was a time
Northrop Frye parece, à primeira vista, mais dogmático que
zohen in Steaen's words, 'the scene u)as set', it must be allowed that
Frank Kermode em sua definição do mito escatológico como
"centro tranquilo...". I\4ostra-se, finalmente, mais reservado
40. Uma outra exploração possível da relação entre ficção e mito partido (lue ele, não permitindo que literatura e religião se mistureln:
estaria ligada à função de substituição exercida pela ficção literária com rela- ó com base na ordem hipotética dos símbolos, cot-no disscmos,
ção às Narrativas que ditavam as regras no passado de nossa cultura. Uma (lue se cdifica sua reunião anagógica. Em Frank Kerrnodc, a
suspeita de outra ordem poderia então surgir: a suspeita de que a ficção tenha
usurpado a autoridade das Narrativas fundadoras e que esse desvio de poder contaminação constante da ficção literária pelo n-rito partido
tenha provocado, segundo a expressão de Edward W. Said, um efeito de mo- t'rrnstitui simultaneamente a força e a Íraqueza do liwo: sua for-
lestaçã0, se entendermos por isso a ferida que o escritor inflige a si próprio ('.r, pela amplitude dada ao reino da ficção, sua fraqueza, em
quando toma consciência do caráter ilusório e usurpado cla autoridade que r.azão do conflito entre a confianÇa nos paradigmas e o "ceti-
exerce como autor (auctor), capaz não apenas de influenciar mas de submeter a
r'ismo dos intelectuais" ensejado pela aproximação entre a fic-
seu poder o leiÍor (Beginnings: lnten.tion and Method, Baltimore e Londres, The
Johns Hopkins University Press,1975, pp. 83-4 ss.); para uma análise detalha-
cilo c o mito partido. Quanto à solução, digo que é prematura
da do par autoridade-molestação, cf. "Molestation and Authority in Narrative rro scntido de que ele não deixou outra perspectiva ao desígnio
Fiction", ín Aspects of Narratiae,l. Hillis Miller, org. Nova York, Columbia Uni- rlt' clar sentido à vida a não ser a defendida por Nietzsche em
versity Press, 1977, pp.47-68. ,\ origem da tragédia, a saber, a necessidade de lançar um véu
41. Seria preciso destacar o fracasso, a esse respeito, de uma justificativa
,rPolíneo sobre a fascinação dionisíaca do caos, se não quiser-
simplesmente biológica ou psicológica do desejo de concordância, mesmo que
se constate qlrc este último encontra um apoio no gestaltismo perceptivo, como
ilt()s morrer por ter ousado contemplar o nada. Parece-me le-
vimos em Barbara l-lerlsteir-r Srnith, e comô âcontece a Frank Kermode sugerir lirl inro, no atual estágio de nossa meditação, deixar de reserva
partindo da sirnples pancada do relógio: "Perguntamos o que ele diz, e convi- rrrrlras relações possíveis entre a ficção e a realidade do agir e
mos que diz Íic-Íac. Atravós dessa ficção nós o humanizamos, fazemos com que
fale nossa lingr-rageln... Íic é um humilde gênese, tnc m Írágil apocalipse; e, de
,12. "E, contudo, isso é claro, a proposição é exagerada. De fato, os para-
qtralquer modo, mal se pode dizer que tic-tac seja uma intriga." Os ritmos bio-
lógicos e perceptivos nos remetem irrevogavelmente à linguagerr: um suple- ,lrllrr,rs sobrevivem, de um modo ou de outro. Se houve um tempo em que/ na
mt nto de in triga e de ficção se insinua assim que fazemos o relógio falnr e, com , . I 'r |r.s,io de Stevens, 'o cenário estava montado', é preciso dizer que o derra-
esse suplemento, vem "o tempo do romancista" (p.aO. ,l'rro 1',olpc, o golpe fatal, ainda não foi assestado. A sobrevivência dos para-
* A decadência da mentira. (N. da T.) ,ltt,,rrr,l, nos interessa tanto quanto seu desaparecimento."
48 TEALPO ENARRATLYA A CONFIGURAÇÀO DO TEMPO NA N,4RRATffÁ DE TICÇAO 49

do padecer humanos além do consolo reduzido à mentira vj- Éric Weil na Lógica da filosofia.a prug#ati.a universal do dis-
ta1.Tânto a transfiguração como a desfiguração, tanto a trans- curso não diz,outra coisa: a inteligibilidade não deixa de pre-
formação como a revelação, têm também seus direitos que de- ceder a si mesma e de justificar a si mesma.
vem seÍ preservados. Dito isso, é semprepossíve1 recusar o discurso coerente.
Se, assirn, nos restringimos a só falar do mito apocalíptico Também isso lemos em Eric Weil. Aplicada à esfera da narrati-
em termos de ficção literária, devemos encontrar na necessi- va, essa recusa significa a morte de todo paradigma narrativo,
dade de configurar a narrativa raízes que não sejam o horror a morte da narrativa.
ao infoÍme. Considero, por meu lado, que a busca de concor- É essa possibilidade que Walter Benjamin evocava com
dância Íaz parte das pressuposições incontestáveis do discurso pavor em seu famoso ensaio, Der Erztihleraa lO narrador).Ta1-
e da comunicação43. Ou discurso coerente ou üolência, dizia vez estejamos no final de uma era em que naríar não tem mais
lugar porque, dizia e1e, os homens não têm mais experiênci.a para
partilhar. E via no reino da informação publicitária o sinal des-
43. luri
L,otrran, Slntkturrt khudoàastzten.ogo teksta, Moscou, 1970 (tr:ad. ír. se retirar-se sem volta da narrativa.
du ttxtt: orlistit1uc, pr:erfácio de Henri Mescl-ronnic, Paris, Gallimard,
Lo strucl:urc
7973). O autor dá urra solução propriamente estrutural ao problema da pere-
Takez, efetivamente, sejamos as testemunhas - e os arte-
nidade das formas de concordância. Desenhcmris, com e1e, a série dos círculos sãos * de uma certa morte, a morte da arte de contar, de onde
concôntricos que se estreitam progressivamente ao redor do último, o do "as- procede a arte de narrar em todas as suas formas. Tâ1vez o ro-
sunto", no sentido de intriga, cujo centro pàssa a ser, por sua vez, a noção de nrance também esteja morrendo como narração. Nada, efeti-
acontecimento. Partirnt>s da definição mais geral de linguogent, concebida corno vamente, permite excluir que a experiência cumulativa que, pelo
"sistema de comur-ricação que utiliza signos ordenados de modo particular" (p. 35);
nrenos no campo cultural do Ocidente, ofereceu urr estilo his-
obtemos assim a noção de tefio, concebido como sequência de signos transfor-
mados em um único signo por meio de regras especiais; passalrros ern seguida lririco identificáve7, esteja hoje ferida de morte. Os paradigmas
à noção de ai'Íc, enquanto "sistema modelizante secundário", e de arte verbal r It' que se falou anteriormente também não passam de depósitos

ou literatura, enquanto um desses sistemas secundários edificado sobre o das :;t'tlimentados da tradição. Nada exclui, pois, que a metamor-
línguas naturais. Ao longo dessa c;rdeia de definições, r,emos especificar-se losr' da intriga encontre em algum lugar um limite para além do
gradativamente um princípio de deLitnitaçã0, portanto de inclusões e não ir-rclu-
sões, ilerente à noção de texto. Marcado por uma fronteira, um texto é trans-
formado em Llma r-rnidade integral e1e sjnais. A noção de;t'acham.ento não está ,rnl,lt's inventiirio (prçrr e.xerlplo, rle lugares, L-onr() Lrm nrapa geogrtifico):
longe: é introduzida pela de qundro, contum à pintura, ao teatro (a ribalta, a l, I n)()s dc culttrra, st'ria rrr.n sister a fixo tle cantpos scnrânticrrs (orrlenaclos
cortina), à arquitctula e à escultula. Em certo ser-rtido, o começo c o fim da in- , ,rrrt'ntc dc nrotlo binirio: rico i,s pobre, nobre i,.s viJ etc.). (]uartdo hii, r.n-
triga lirnitarn-se a cspecificar a noção cle quadro en.r função da noção de texto: ,,rtt,r irlento? "() acontecinrcnt() n() tcxt() ó o dr.sloc;rntenlo cio persona
r-rãcr existe intrigir ser-n rlttrrtlro,isto cí, sclr.r uma "fronteira sepalando o texto ar- .riLis r'lir flontcira clo carlpo semântico" (p.326). Uma inragt'm fixa clo
tístico do não torto" (p. 29cl). C}r-rsiclclado de ur.n ponto de r.ista mais espacial ,, ,' lrois ncccssririit llilra qu€' alguém possJ tr.,lnsgreclir suas barrciras tr
clrrr: tcmportrl, o tlrrtrclro faz t]a obra i,rrtística "um espaço de uma certa forma r rL('r(lit()s irrtcrrros: o acor.rlccimelto é essa lttvessi;r, cssa transgrcssào.
clclirritaclo, ro prorlrrzintlo na srrer fit-ritrrde um objeto infinito - um mundo ex- , rrilLlo,"otoxtocolt)i-lssLlntoóconstruíclclcornbasel.totextosotrilssun-
tcrirrr corrr le laçiro t\ obrl" (p. 309). (Não esqueceremos essa noção de modelo fi- ,, r, rl,rr'io rlcssc" (p. 332). Nao é ur.r.r conrent;ír'io .rrlnrilár,cl t1a pcripilcitr
rrilo tlt trrtt trttipr'rso llfirrllo tltrando ;rbordarmos a noção de mutrdo do texto em ,,i,'lt,s o cla discoriâttciLt clt Kernrotle? E podemos acaso colrccbcr umir
nosso cir;rítrrlo IV.) A rrot-ao t1c nconÍecisnento figura então o centro desse jogo de , r i n.l() ti!cssc ncrn canrpo semârrtico cletcrntilratlo nem traYcssia clc
arróis (pp. 324 ss.). A cle tcrminação decisiva que faz do acontecimento L1m con-
ceito prcciso c, consc.quorternerrte, cspecifica o "assunto" (a intriga) ent.re to- \\ ilcl lionjrmit't, Dt,r Erziihlt'r, Bt,tnrtlttt.ltgctt ztnrr lNtrk Ni/roíri /,cs.s
tlos os tlr.rrtlros tt'mpoliris possíveis é bastante inesperada e mesmo sem para- '' t. t t llltrntittntioiir'ir,Fr.rnkl'urt-;rnr-N4ain, Srrlrrkantpf, l96L), pp..10!)-36;
lelo na tcoriir litcriíria. l,otr-)lan irTTagir.ra, em primeiro lugar, o que scria um text() l, Nl.rrrlicc tlt,(l;rnclillac-, "Lc narratcrrr", in /1rr;si,ci ll/rtr/rillon, l'aris,
senr inLrig:r c scm acontccimcnto; seria um sistema pr:ramente classificatório, i,, t.l,P. l3(.)_61).
50 TEMPO ENARRATIVA

qual não se poderá mais reconhecer o princípio formal de con- 2. AS INJUNÇÕES SE\4IOTICAS
figuração temporal que faz da história narrada uma história DA NARRATIV'IDADE
una e completa. E contudo... E contudo.Tâlvez seja necessário,
apesar de tudo, confiar na demanda de concordância que estru-
tura ainda hoje a expectativa dos leitores e acreditar que novas
formas narrativas, que ainda não sabemos nomea(, e que já es-
tão nascendo, irão atestar que a função narrativa pode se me-
tamorfoseat mas não morreras. Pois não temos a menor ideia
do que seria uma cultura em que não se soubesse mais o que
significa narrar.

O confroniã entre a inteligência narrativa, nascida de uma


familiaridade ininterrupta ao longo da história com as moda-
lidades de composição da intriga e a racionalidade reívtndicada
pela semiótica narrativa foi colocado na introdução deste volu-
nre sob a sigla do aprofundamento. Por aprofundamento desigr-ra-
nros a busca das estruturas profundas, que se manifestariam na
superfície da narrativa pelas configurações narrativas concretas.
E fácil perceber o porquê dessa empreitada. Nossas análi-
r;cs precedentes nos colocaram diante dos paradoxos do estilo
t lc tradicionalidade da função narrativa. Embora possamos rei-

vindicar uma certa perenidade para esses paradigmas, ela está


l, rngc de igr-ralar a intemporalidade atribuída às essências: per-
nriincce, ao contrário, embrenhada na história das formas, dos
1ii'ncros e dos tipos. A evocação final de urna eventual morte
,l,r irr-te de narrar desvelou, até, a precariedade que acompanha
r ( )nr slra sombra essa perenidade da função narrativa, contudo

I'r('ri('nte nas centenas de culturas étnicas identificadas pela


,rrr opologia cultural.
Ir
( ) clue motiva a pesquisa semiótica, ante essa instabilidade
45. Barbara I-Ierrstein Smith e Frank Kermode concordam a esse respei-
to: " Poetry ends in many ways, but poetry, I thínk, has not yet ended" (op. cit., p.277)
,1,,,lrrriivel, é essencialmente a ambição de fundar a pereni-
[Poesias acabam de vários modos, mas a poesia, penso eu, ainda não acabou], ,l,r,lt' tla função narrativa em regÍas de jogo subtraídas à histó-
escreve Herrstein; "TIrc paradigms suraiae, somehow... The suroiztal of paradigms is l,r A ri('Lrs olhos, a pesquisa precedente deve parecer maculada
as much our business as their erosion" (op. cit., p.43) [Os paradigmas sobrevivem
de algum modo... A sobrevivência dos paradigmas nos interessa tanto quanto
r l'
r n r historicismo impenitente. Se, por seu estilo de tradicio-
rr,rlr,l,rrlc, a função narrativa pode reiündicar a perenidade, ó
seu desaparecimento], escreve Kermode.

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