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14/09/2020 Monteiro

Estudos de Sociologia, v. 2, n. 19 (2013)

Est. Soc. [online]. 2013, vol. 2, n. 19

VIOLÊNCIA E AJUSTAMENTO NA COLONIZAÇÃO DO


TRÓPICO: notas sobre as interpretações de Sérgio
Buarque de Holanda e Gilberto Freyre

VIOLENCE AND ADJUSTMENT IN THE TROPICS: NOTES


ON SÉRGIO BUARQUE E HOLANDA AND GILBERTO
FREYRE INTERPRETATIONS

Allan Monteiro1

______________________________________________________

Resumo
Este ensaio compara as interpretações formuladas por Gilberto
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda a respeito da colonização
portuguesa nas terras do Brasil, com destaque à relação entre
os homens e o meio tropical nessa fase de ocupação. Um
primeiro aspecto a ser destacado é a relativa correspondência
de foco e temática em torno de concepções gerais sobre o
processo de colonização, demarcando posições interpretativas
por vezes distintas, por vezes complementares a respeito da
natureza dos trópicos, das características do elemento
colonizador e de sua relação com os grupos indígenas
habitantes da terra e com os africanos trazidos como escravos.
Um segundo aspecto refere-se ao tratamento regionalizado
conferido por esses autores em trabalhos voltados a uma
compreensão mais detalhista e localizada desse processo,
resultando numa descrição comparativa entre manchas
socioculturais com valores e práticas distintas de interação com
o meio natural: de um lado o Nordeste da civilização da cana,
como apresentado por Freyre no livro "Nordeste"; de outro,
São Paulo dos bandeirantes, conforme descrito por Sérgio
Buarque de Holanda nos livros "Caminhos e fronteiras" e
"Monções".

Palavras-chave: Pensamento social, Brasil colônia, Gilberto


Freyre, Sérgio Buarque de Holanda
______________________________________________________

Abstract
The essay compares the interpretations made by Gilberto
Freyre and Sérgio Buarque de Holanda about Portuguese
colonization of Brazil, with special attention to the relation
between men and tropical nature. A first aspect to be
highlighted is the thematic correspondence around general
conceptions concerning the Portuguese colonization, marking
interpretive positions about the nature of the tropics, the
characteristics of the colonizer element and its relationship with
indigenous groups inhabitants of the land and with africans
brought as slaves. A second aspect refers to the local treatment
given by these authors in studies related to a more detailed
understanding about the colonization adjustment to the tropics,
resulting in a comparative description of socio-cultural spots
with different values and practices of interaction with the
environment: on one side, the sugar cane civilization of
Northeast Brazil, as shown by Freyre in the book " Nordeste";
on the other side, São Paulo of the pioneers, as described by
Sérgio Buarque de Holanda in the books "Caminhos e
Fronteiras” and " Monções".

Keywords: Social thought; Colonial Brazil; Gilberto Freyre;


Sérgio Buarque de Holanda

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Este ensaio trata, em perspectiva comparativa, as


interpretações formuladas por Sérgio Buarque de Holanda e
Gilberto Freyre a respeito da colonização portuguesa nas terras
do Brasil, com especial destaque à relação entre os homens e a
natureza nessa fase de ocupação. Suas principais obras –
Raízes do Brasil e Casa Grande & Senzala, respectivamente –
impuseram na década de 1930 uma reformulação na maneira
de se pensar a sociedade brasileira, ao estabelecerem o olhar
para o passado como passo importante na compreensão do
presente e, eventualmente, do seu futuro. Ambos vasculharam
nosso período colonial em busca dos elementos formadores de
nossa sociedade, nossas instituições e que, em forma de
resquícios ou permanências, explicariam suas feições
contemporâneas. Há nesses trabalhos uma relativa
correspondência de foco e temática em torno de concepções
gerais sobre o processo de colonização, demarcando posições
interpretativas por vezes distintas por vezes complementares a
respeito da natureza dos trópicos, das características do
elemento colonizador e de sua relação com os grupos indígenas
habitantes da terra e com os africanos trazidos como escravos.
Raízes do Brasil e Casa Grande & Senzala são as principais
referências para essa comparação de ordem mais geral,
apresentada na primeira parte do texto.

A segunda parte do ensaio estende essa comparação para o


tratamento regionalizado presente em trabalhos voltados a
uma compreensão mais detalhada e localizada desse processo
de ajustamento, apresentadas por esses autores como
manchas socioculturais com valores e práticas distintas de
interação com o meio natural: de um lado o Nordeste da
civilização da cana, apresentado por Freyre no livro Nordeste,
de 1937; de outro, São Paulo dos bandeirantes, conforme
descrito por Buarque de Holanda nos livros Caminhos e
fronteiras (1957) e Monções (1945). Nas obras aqui tratadas,
essa relação histórica entre sociedade e o meio aparece sob a
linguagem do ajustamento, da adaptação (ambos referindo-se
ao binômio colonizador-trópico)2, da exploração (própria ao
sistema colonial), da miscigenação, do trópico, do nomadismo e
estabilidade de modos de vida e sociabilidades, compondo um
estilo de pensamento próprio de uma época. Cada qual a seu
modo, esses autores iluminam, por meio de um panorama
histórico, algumas das nossas raízes mais profundas. Inclusive
as que se referem às questões ambientais, um tema de nosso
tempo.3

A primeira edição de Casa Grande & Senzala foi publicada em


dezembro de 1933, recebendo prontos elogios e tornando-se
obra de referência para interpretação da sociedade brasileira.
Atualmente, o livro encontra-se em sua 51ª edição nacional,
tendo sido publicado em mais de dez países. Nesse denso
ensaio, Gilberto Freyre se valeu do arsenal metodológico da
antropologia, da sociologia e da história para apontar as bases
de nossa estrutura social a partir do modelo da família
patriarcal, escravocrata e latifundiária do então Norte do país.
Apesar da merecida fama de clássico, inúmeras críticas foram
feitas a Gilberto e sua principal obra, com destaque para “suas
contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra
sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo o que,
contrariando seus argumentos, era simplesmente esquecido”
(CARDOSO, 2006, p. 19).

Em relação a Raízes do Brasil, sua primeira edição foi lançada


em 1936, inaugurando a coleção Documentos Brasileiros, então
coordenada por Gilberto Freyre para a editora José Olympio. O
livro ganharia texto definitivo a partir da quinta edição, de
1967, tendo sofrido modificações substanciais ao longo das
primeiras versões.

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Tanto em Raízes do Brasil quanto em Casa Grande e Senzala, o


tema da relação entre homem e ambiente nas origens da
sociedade brasileira está presente, em boa medida sob o
enfoque da adaptação do elemento colonizador à paisagem dos
trópicos e das implicações dessa adaptação no modo de vida,
nos costumes e na sociabilidade dos antigos povoadores, ou
seja, nas decorrências dessa adaptação à formação dessa
sociedade. É com ele, por exemplo, que Sérgio Buarque de
Holanda inicia as primeiras palavras de Raízes do Brasil:

A tentativa de implantação da cultura


europeia em extenso território, dotado
de condições naturais, se não
adversas, largamente estranhas à sua
tradição milenar, é, nas origens da
sociedade brasileira, o fato dominante
e mais rico em consequências.
Trazendo de países distantes nossas
formas de convívio, nossas
instituições, nossas ideias, e
timbrando em manter tudo isso em
ambiente muitas vezes desfavorável e
hostil, somos ainda hoje uns
desterrados em nossa terra
(HOLANDA, 1998, p. 31).

É também o tema com o qual Gilberto Freyre abre Casa Grande


e Senzala:

Quando, em 1532 se organizou


economicamente e civilmente a
sociedade brasileira, já foi depois de
um século inteiro de contato dos
portugueses com os trópicos; de
demonstrada na Índia e na África sua
aptidão para a vida tropical. Mudado
em São Vicente e em Pernambuco o
rumo da colonização portuguesa do
fácil, mercantil, para o agrícola;
organizada a sociedade colonial sobre
base mais sólida e em condições mais
estáveis que na Índia ou nas feitorias
africanas, no Brasil é que se realizaria
a prova definitiva daquela aptidão
(FREYRE, 1938, p. 1).

Os sentidos que revestem as duas passagens são distintos e


demarcam as divergências na forma como seus autores
interpretaram o contato inicial entre colonizador e o ambiente
do trópico. Enquanto para Sérgio a vida portuguesa em um
ambiente desfavorável e hostil era largamente estranha à sua
tradição milenar, para Gilberto a aptidão portuguesa para a
vida tropical estava fundamentada em uma experiência
histórica secular. Enquanto um enxergou o conflito entre uma
forma de vida milenar e um ambiente hostil, o outro apontou o
caráter de prova definitiva da pré-adaptação ensaiada em
colônias anteriores.

Essa diferença obedece às intenções e propósitos específicos da


argumentação que abre cada uma dessas obras: no primeiro
caso, para apontar a necessidade de compreensão das “formas
de convívio, instituições e ideias de que somos herdeiros”
(HOLANDA, 1998, p. 31) como passo fundamental ao
entendimento da sociedade brasileira; no segundo, para
enfatizar a positividade plástica do elemento colonizador como
fator de sucesso adaptativo ao meio e, consequentemente, de
sucesso da empresa colonizadora como um todo. A partir daí,
tanto Sérgio Buarque de Holanda quanto Gilberto Freyre,

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centram o foco na sociedade portuguesa ao período das


grandes navegações, buscando aspectos distintivos e peculiares
desse elemento colonizador, estrangeiro, invasor.

Para Sérgio Buarque de Holanda, o fato da península Ibérica se


apresentar como “zona de transição, com a qual a Europa se
comunica com os outros mundos”, associado a seu “ingresso
tardio no coro europeu”, é o que justifica grande parte das
características peculiares de Portugal e Espanha, nações que
teriam se desenvolvido à margem das demais europeias. A
exaltação extrema da personalidade, a obediência cega, a
repulsa a toda moral fundada no culto ao trabalho e a
indisposição a iniciativas associativas são os pilares da
mentalidade e do espírito que marcou a conquista dos trópicos,
missão histórica da qual os portugueses foram “não somente os
portadores efetivos como os portadores naturais” (HOLANDA,
1998, p. 43). A ética da aventura, contraposta à ética do
trabalho, explicaria boa parte do sucesso da empresa
colonizadora ibérica no seu estágio de adaptação. “Num
conjunto de fatores tão diversos, como as raças que aqui se
chocaram, os costumes e padrões de existência que nos
trouxeram, as condições mesológicas e climatéricas que
exigiam longo processo de adaptação”, o gosto da aventura diz
Buarque de Holanda,

foi o elemento orquestrador por


excelência. Favorecendo a mobilidade
social, estimulou os homens (...) a
enfrentar com denodo as asperezas ou
resistências da natureza e criou-lhes
as condições adequadas a tal
empresa. (...) Onde lhes faltasse pão,
aprendiam a comer o da terra. (...) A
exploração dos trópicos não se
processou, em verdade, por um
empreendimento metódico e racional,
não emanou de uma vontade
construtora e enérgica: fez-se antes
com desleixo e certo abandono. Dir-
se-ia mesmo que se fez apesar de
seus autores (HOLANDA, 1998, p. 43-
47).

A ética da aventura tornou a experiência de adaptação ao


trópico em algo no mínimo suportável e, no máximo, bem-
sucedida, embora não pareça ter resolvido o conflito por
completo: somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.
Não foi, portanto, a ética do trabalho (segundo o autor, de
papel quase insignificante nesse processo) o fator decisivo no
sucesso dessa obra de colonização, mas esse gosto e
predisposição para a aventura, para a prosperidade sem custo,
para as riquezas fáceis – “riqueza que custa ousadia, não
riqueza que custa trabalho” (HOLANDA, 1998, p. 49). Caio
Prado Júnior (1961, p. 114) expressou visão semelhante ao
explicar que nosso colono europeu não “é o trabalhador, o
simples povoador; mas o explorador, o empresário de um
grande negócio”. Nas bases da sociedade agrária que aqui se
estabeleceu, as características da grande lavoura colonial – de
natureza perdulária, movida pelo trabalho escravo, nutrida pela
fartura de terra disponível a ser explorada, e carente de
progressos técnicos que elevassem o nível de produção ou
apenas evitassem o desperdício – descredenciam, na visão de
Buarque de Holanda, o resultado do esforço colonial como
formador de uma “civilização tipicamente agrícola”, embora
fosse certamente uma “civilização de raízes rurais” (HOLANDA,
1998, p. 49 e 73).

Não o foi [uma civilização tipicamente


agrícola], em primeiro lugar, porque a

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tanto não conduzia o gênio


aventureiro que os trouxe à América;
em seguida, por causa da escassez da
população do reino, que permitisse
emigração em larga escala de
trabalhadores rurais, e finalmente pela
circunstância de a atividade agrícola
não ocupar então, em Portugal,
posição de primeira grandeza
(HOLANDA, 1998, p. 49).

Enquanto sistema produtivo, a grande lavoura não avançou


muito além das técnicas aprendidas com os naturais da terra,
ditadas pelo mínimo esforço e cristalizadas pela rotina avessa a
inovações e incrementos. Em relação a esse assunto, Gilberto
Freyre notaria que “do indígena quase que só aproveitou à
colonização agrária no Brasil o processo da coivara, que
infelizmente viria empolgar por completo a agricultura colonial”
(FREYRE, 1938, p. 62). Esse rudimento técnico seria
testemunho da passividade do colonizador em relação aos
obstáculos impostos pelo ambiente, “cedendo às sugestões da
terra e dos seus primeiros habitantes, sem cuidar de impor-lhes
normas fixas e indeléveis” (HOLANDA, 1998, p. 52).

A esse espírito de aventura que animava o colonizador


português, Sérgio acrescentou outro, responsável pela sua
grande plasticidade social: o fato do português já ser, ao tempo
dos descobrimentos, um povo mestiço, isento de sentimentos
de orgulho de raça. Decorre daí, que “o Brasil não foi teatro de
nenhuma grande novidade. A mistura com gente de cor tinha
começado amplamente na própria metrópole” (HOLANDA,
1998, p. 53). Contudo, essa predisposição à mistura não teria
sido suficiente para diminuir certo pessimismo com que
Holanda descreve a tentativa de implantação de um modelo de
vida europeu nos trópicos:

Nem o contato e a mistura com raças


indígenas ou adventícias fizeram-nos
tão diferentes dos nossos avós de
além-mar como às vezes gostaríamos
de sê-lo. No caso brasileiro, a verdade,
por menos sedutora que possa parecer
a alguns dos nossos compatriotas, é
que ainda nos associa à península
Ibérica, a Portugal especialmente, uma
tradição longa e viva, bastante viva
para nutrir, até hoje, uma alma
comum, a despeito de tudo que nos
separa. Podemos dizer que de lá nos
veio a forma atual de nossa cultura; o
resto foi matéria que se sujeitou mal
ou bem a essa forma (HOLANDA,
1998, p. 40).

A crítica é direcionada a Gilberto Freyre, que identificou na


miscigenação a mola propulsora da identidade nacional. Em
Casa Grande & Senzala, a predisposição do português à
mistura tem papel fundamental para explicar sua habilidade
adaptativa aos trópicos, não para tentar resolver um conflito de
ajustamento, tal como a perspectiva de Raízes do Brasil, mas
para conferir uma naturalidade positiva e otimista a esse
processo de adaptação. Tal como Sérgio, Freyre também
encarou Portugal como uma região fronteiriça – no caso, entre
Europa e África – entretanto, para pensar o português não
como povo marginal, mas como povo indefinido; de uma
indecisão étnica e cultural que se concretizou na imprecisão de
um tipo determinado do que seria o português. O longo
histórico de relação com outros povos vizinhos ou invasores da
península Ibérica teriam lhe conferido essa plasticidade social e

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física que lhe garantiria uma predisposição quase hereditária à


vida tropical. Como salienta o autor, é da mobilidade, da
vocação quase natural para a mistura, da aclimatabilidade e da
experiência anterior em colônias estabelecidas em outros
territórios que decorre o sucesso do empreendimento
colonizador português. Sem a primeira,
não se explicaria ter um Portugal
quase sem gente, um pessoalzinho
ralo, insignificante em número –
sobejo de quanta epidemia, fome,
sobretudo guerra afligiu a península na
idade média – conseguido salpicar
virilmente do seu resto de sangue e de
cultura populações tão diversas e a tão
grandes distâncias umas das outras
(FREYRE, 1938, p. 6).

Em relação à miscibilidade, os portugueses não encontraram


em nenhum outro povo colonizador moderno quem os igualasse
na facilidade de intercurso sexual e na produção de
mestiçagem. Também nesse aspecto o longo contato com
outros povos teria contribuído para sua constituição híbrida,
“processo pelo qual os portugueses compensaram-se da
deficiência em massa ou volume humano para a colonização
em larga escala e sobre áreas extensíssimas” (FREYRE, 1938,
p. 7).

Já no que diz respeito à aclimatabilidade, o argumento de


Freyre dá mais atenção à proximidade de Portugal com a África
– em termos de condições físicas de solo, de clima e
temperatura – do que propriamente da Europa, inferindo como
consequência que as próprias características da terra natal já
teriam preparado o português para se aventurar nos trópicos,
estabelecendo uma vantagem em relação aos demais povos
colonizadores oriundos de países de clima frio.

Assim, enquanto Sérgio Buarque de Holanda enxerga no


personalismo e no caráter aventureiro do colonizador português
a originalidade própria da península Ibérica, Gilberto Freyre
recorre ao contato com outros povos (africanos, sarracenos e
semitas), mas igualmente ao contato com outros territórios e
outros climas, para explicar uma aptidão praticamente biológica
do português ao ambiente tropical. A mistura desse português
já híbrido com o elemento nativo e com o negro importado para
escravo contribuiria ainda mais para o sucesso colonizador,
produzindo uma geração de mestiços insuperável em termos de
adequação à vida tropical. Essa diferença de perspectiva é
sintomática da maneira como ambos olharam para o processo
de formação da sociedade brasileira, mas também das
consequências teóricas desses distintos pontos de partida.
Menos preocupado com a forma, Sérgio Buarque de Holanda
procurou dissecar as raízes do Brasil em sua essência, menos
palpável, portanto, que a imagem da casa-grande e da senzala
que dão corpo ao sistema patriarcal, latifundiário e
escravocrata apresentado como modelo explicativo por Freyre.4
Apesar dessas divergências de enfoque, um ponto comum a
essas duas interpretações é o modo como os elementos que
contribuíram para essa adaptação são igualmente importantes
no entendimento da formação da sociedade brasileira como um
todo. Não são recursos explicativos apenas dessa fase de
ajustamento, descartáveis após a acomodação do português
em solo novo, mas elementos que explicam e acompanham o
que se seguiu a partir de então.

Estabilidade e nomadismo

Em relação ao que Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil


fornecem de discussão abrangente sobre a formação da
sociedade brasileira, Caminhos e Fronteiras e Nordeste

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representam uma investigação mais minuciosa sobre o


processo histórico dessa adaptação a dois contextos distintos e
específicos: São Paulo dos bandeirantes e Pernambuco da cana-
de-açúcar, segundo Freyre (1938, p. 10), “os dois grandes
focos de energia criadora nos primeiros séculos da colonização”.
Analisados comparativamente, os argumentos expostos nesses
dois livros sugerem que nesse quadro comum de ajustamentos
emergiram experiências distintas, com suas colorações locais.

No prefácio à primeira edição de Nordeste, Freyre já alertava


para o caráter ensaístico de sua obra, dedicada a um “estudo
ecológico” do Nordeste, tendo como foco o homem colonizador
e suas relações com a terra, o nativo, as águas, as plantas e os
animais da região ou importados de outras partes do mundo.
Por “homem colonizador” ele considera não apenas o europeu,
mas também o africano. Seu estudo ecológico busca traçar um
panorama dos processos de adaptação e domínio desse
“homem colonizador” sobre o meio regional, ora fundamentado
em ajustamentos, ora em violências. A peculiaridade desse
Nordeste retratado por Freyre reside na exclusividade da cana-
de-açúcar, o que exclui, portanto, o Nordeste das secas, do
sertão. É o Nordeste da monocultura latifundiária, escravocrata
e monosexual, que encontrou no senhor de engenho sua
metáfora de referência, e na cana de açúcar seu motivo
exclusivo. Ao recontar a experiência colonizadora na Zona da
Mata nordestina a partir do enfoque ecológico, balizando sua
narrativa a partir da monocultura canavieira, Freyre antecipou
em algumas décadas a pauta programática da História
Ambiental (DRUMMOND, 1991; DUARTE, 2005). Dessa forma, o
ensaio se divide em seis capítulos, quatro deles associando a
cana a elementos do meio natural (a terra, a água, a mata e os
animais), e os dois últimos tomando por referência a relação
entre a cana e o homem.

A primeira característica distintiva do Nordeste da Zona da


Mata é qualidade da terra. Ao contrário da terra dura e da areia
seca que vigoram no Nordeste sertanejo, este, da cana, se
distingue pelo solo de massapê, argiloso, rico de um húmus
gorduroso.

Há quatro séculos que o massapê do


Nordeste puxa para dentro de si as
pontas da cana, os pés dos homens,
as patas dos bois, as rodas vagarosas
dos carros, as raízes das mangueiras e
das jaqueiras, os alicerces das casas e
das igrejas, deixando-se penetrar
como nenhuma outra terra dos
trópicos pela civilização agrária dos
portugueses. (...) O massapê é
acomodatício (FREYRE, 1951, p. 37).

Esse solo de riqueza profunda teria propiciado uma civilização


marcada pela estabilidade da cultura da cana, das habitações
sólidas de pedra e cal em que gerações de senhores se
sucediam sem a necessidade do nomadismo agrário induzido
por terrenos menos férteis, que se esgotam rapidamente em
decorrência de cultivos sucessivos. Há outros fatores que
explicam o triunfo do açúcar na região, dentre os quais a
menor distância em relação à Europa e centros africanos
fornecedores de escravos, bem como a qualidade dos
elementos colonizadores, tanto o africano quanto o europeu,
este último, “gente boa e sã, habituada à vida rural e ao
trabalho agrícola, gente talvez geneticamente superior aos
simples artesãos”. Entretanto, esses fatores acessórios não
chegam a deslocar o peso talvez excessivo depositado pelo
autor nessa terra gordurosa, fonte dos sucessos dessa
civilização agrária que primeiro se formou na colonização –
“civilização moderna mais cheia de qualidades, de

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permanência, e ao mesmo tempo de plasticidade que já se viu


nos trópicos” (FREYRE, 1951, p. 38). Terra que se tornou a

base física não simplesmente de uma


economia ou de uma civilização
regional, mas de uma nacionalidade
inteira (...) [onde] primeiro se fixaram
e tomaram fisionomia brasileira, os
traços, os valores, as tradições
portuguesas que junto com as
africanas e as indígenas constituiriam
aquele Brasil profundo, que hoje se
sente ser o mais brasileiro (FREYRE,
1951, p. 43).

A apologia nostálgica que faz desse Nordeste canavieiro dos


primórdios da colonização ganah ainda maior destaque quenda
ao Nordeste de engenho é contraposto o seu substituto
histórico, o Nordeste das usinas, contemporâneo ao momento
em que o livro foi escrito. É já no segundo capítulo – A cana e a
água – que esse contraste entre dois Nordestes históricos se
estabelece. Usada para irrigação ou como força motriz da
moagem da cana, a água tinha também uma valor simbólico e
estético fundamental à paisagem dos engenhos, com as
margens dos rios e ribeirões acomodando a civilização
patriarcal e aristocrática minuciosamente descrita em Casa
Grande & Senzala. A decadência dessa civilização, associada à
substituição do dono de engenho pelo usineiro, refletiu-se
também na decadência e degeneração dos rios, como se nota
em diversas passagens:

A água foi elemento nobre na velha


paisagem de engenho do Nordeste,
onde a usina degradaria
principalmente os rios. O engenho
honrou a água; não se limitou a
servir-se dela (FREYRE, 1951, p. 68-
69).
O monocultor rico do Nordeste fez da
água dos rios um mictório. Um
mictório das caldas fedorentas de suas
usinas. (…) Quase não há um rio do
Nordeste do canavial que alguma
usina de ricaço não tenha degradado
em mictório. As casas já não dão a
frente para a água dos rios: dão-lhe as
costas com nojo. Dão-lhe o traseiro
com desdém. (...) A água nobre hoje é
a do mar. (FREYRE, 1951, p. 82-84).

Mas é o terceiro capítulo, intitulado A cana e a mata, que traz


algumas das proposições mais interessantes do livro, ao
enfocar os desequilíbrios impostos pelo exclusivismo da cana de
açúcar na paisagem ecológica e social “dessa sub-região do
Nordeste que um tanto ironicamente se chama Zona da Mata”
(FREYRE, 1951, p. 95). Para Gilberto, o caso da cana não se
assemelha ao de outras espécies exóticas indesejadas e
invasoras, causadoras de desequilíbrios ecológicos em outras
regiões do mundo. Ao contrário,

A cana é um dos casos de


transplantação mais felizes. Encontrou
terra ótima. O drama que se passou e
se passa no nordeste não veio do fato
da introdução da cana, mas do seu
exclusivismo brutal em que, por
ganância de lucro, resvalou o colono
português, estimulado pela Coroa na

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sua fase já parasitária (FREYRE, 1951,


p. 97).

O exclusivismo com que a cana de açúcar dominou a paisagem


ecológica e social dessa região se refletiu no desprezo pela
mata nativa. Nesse processo em que a variedade e diversidade
da natureza foram substituídas pela monotonia da planta única,
as relações “líricas” de reciprocidade entre homem e natureza –
segundo Freyre, comumente associadas às sociedades
camponesas – não puderam ali se desenvolver. Em seu lugar, o
que se estabeleceu foi uma distância profunda que também se
manifesta, como supôs o autor, no desconhecimento que essa
civilização das terras de açúcar nutriu em relação à vegetação
nativa. “A cana separou-o [o brasileiro do nordeste canavieiro]
da mata até esse extremo de ignorância vergonhosa. Na mata
ele vê vagamente o pé de árvore e às vezes, quase
desdenhosamente, o pé de pau” (FREYRE, 1951, p. 99). Essa
assimetria seria o produto de um sistema que se refletia
também numa profunda distância social. “Com a destruição das
matas para a cana dominar sozinha sobre o preto, o roxo ou o
vermelho dessa terra crua”, diz ele,

a natureza do Nordeste – a vida toda


– deixou de ser um todo harmonioso
na sua interdependência para se
desenvolverem relações de extrema
ou exagerada subordinação: de umas
pessoas a outras, de umas plantas a
outras, de uns animais a outros; da
massa inteira da vegetação à cana
imperial e todo-poderosa; de toda a
variedade de vida humana e animal ao
pequeno grupo de homens brancos –
ou oficialmente brancos – donos dos
canaviais, das terras gordas, das
mulheres bonitas, dos cavalos de raça.
Cavalos de raça tantas vezes tratados
melhor que os trabalhadores da
bagaceira (FREYRE, 1951, p. 99-100).

Nesse cenário, a relação com o meio natural reproduzia e ao


mesmo tempo refletia as relações sociais fundamentadas em
extremada hierarquia. Ambas caminhavam em paralelo. Por
meio dos antagonismos que tanto caracterizam o conjunto de
sua obra, a cultura da cana no Nordeste

aristocratizou o branco em senhor e


degradou o índio e principalmente o
negro, primeiro em escravo, e depois
em pária. Aristocratizou a casa de
pedra-e-cal em casa-grande e
degradou a choça de palha em
mucambo. Valorizou o canavial e
tornou desprezível a mata. Nesse
sistema de relações que dividiu os
homens e as suas habitações e a
própria paisagem em metades tão
diferentes e até antagônicas, pode-se
dizer, para efeito de generalização,
que o cavalo ficou no primeiro e o boi
no segundo grupo (FREYRE, 1951, p.
123).

Na lógica da exploração monocultora – lógica espacial,


preocupada com extensões territoriais virgens a se conquistar
(tal qual a lógica militar); lógica que elege a mata como inimiga
a ser vencida a fogo e machado; lógica do tempo imediato,
tempo do lucro rápido; lógica, enfim, despreocupada com a
parte propriamente agrícola dessa exploração –

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não era preciso que se desenvolvesse


aqui a figura do lavrador: bastava a do
senhor de engenho gritando para o
negro do alto da casa grande ou de
cima de seu cavalo; bastava a do
escravo cumprindo as ordens do
senhor ou do feitor; bastavam as
mãos e os pés do negro; bastava seu
o sexo capaz de larga procriação.
(FREYRE, 1951, p. 106).

Essa distância social só não foi maior por conta do intercurso


sexual entre brancos, indígenas e africanos, conforme já havia
sido alertado pelo autor no prefácio à primeira edição de Casa-
Grande & Senzala:

A miscigenação que largamente se


praticou aqui corrigiu a distância social
que doutro modo se teria conservado
enorme entre a casa-grande e a mata
tropical; entre a casa-grande e a
senzala. O que a monocultura
latifundiária e escravocrata realizou no
sentido de aristocratização,
extremando a sociedade brasileira em
senhores e escravos, (…) foi em
grande parte contrariado pelos efeitos
sociais da miscigenação (FREYRE,
1938, p. XIII).

Essa passagem contem uma pista interessante para situar a


importância de Nordeste no conjunto de sua obra ao longo da
década de 1930. Enquanto a tese principal de Casa-grande &
Senzala exalta a miscigenação como elemento redentor,
revalorizando positivamente os efeitos do intercurso racial “no
sentido da democratização social do Brasil” (FREYRE, 1938, p.
XIII), Nordeste é um ensaio essencialmente pessimista e
melancólico dos efeitos negativos da violenta experiência
colonizadora resultante desse modelo de sociedade patriarcal,
escravocrata e latifundiária, sem, contudo, deixar de relativizar
a experiência dos engenhos em comparação ao sistema das
usinas, duramente criticado por Freyre.

Nessa comparação entre dois sistemas de produção e


organização social, o dos engenhos e o das usinas, Freyre inclui
o papel do negro, não o escravo, mas o negro “elemento
colonizador”, representado quase que exclusivamente pelos
habitantes de quilombos. A eles, Gilberto Freyre atribuiu uma
notável capacidade de ajustamento ao meio tropical, “em
parte, adaptando-se à floresta, em parte, adaptando a floresta
às suas necessidades de evadido da monocultura escravocrata
e latifundiária” (FREYRE, 1951, p. 110). Tomando o exemplo de
Palmares como “curiosa organização socialista baseada sobre a
policultura” (FREYRE, 1951, p. 228), o autor atacava a
concepção que via o africano estabelecido em terras brasileiras
como um “mau agricultor”:

uma coisa é o homem dentro do seu


próprio sistema de cultura e outra
coisa é ele desenraizado desse sistema
e sujeito pela conquista militar ou pelo
regime de trabalho escravo a um
gênero de vida artificial, estranho aos
seus desejos, aspirações e interesses
mais íntimos (FREYRE, 1951, p. 227).

A figura do colonizador africano tem o papel de fornecer um


contraponto à figura do senhor de engenho e seu sucessor

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histórico, o usineiro: de um lado o elemento africano, de fácil


adaptação, adepto de uma acomodação mais suave, ou incapaz
de uma ambientação baseada em grandes violências; no outro
extremo o dono da usina, capitalista, sem relação com a terra e
com seus trabalhadores que não fosse a exclusivamente
produtiva, dono de uma usina possuída à distância, onde os
“cabras” trabalham sem saber direito para quem, substituindo
assim a sociabilidade própria da antiga vida do engenho pela
artificialidade da exploração industrial e comercial do açúcar –
“açúcar dono dos homens e não a serviço da gente da região”
(FREYRE, 1951, p. 107):

Já não se trata de uma civilização


como foi a patriarcal, nesse mesmo
Nordeste da cana, com seus sinais de
+ e de –, embora o de –
preponderando. O açúcar de usina
parece que deixou de entrar com
qualquer contingente na valorização
da vida e da cultura do Nordeste, para
ser apenas o sinal de – em tudo: a
diminuição da saúde do homem; a
diminuição das fontes naturais da vida
regional; a diminuição da dignidade, e
da beleza da paisagem; a diminuição
da inteligência, da sensibilidade, ou da
emoção da gente do Nordeste (...) A
usina não teve força para acrescentar
nada de positivo a essa civilização: só
tem feito diminuí-la (FREYRE, 1951, p.
258-259).

É da oposição entre esses dois modelos de sociabilidade e


interação com o meio – o do “colonizador africano” e o do
usineiro – que brotam as considerações melancólicas e afetivas
com que o autor lamenta o fim daquele Nordeste senhorial de
outrora, dos engenhos, das casas-grandes, das senzalas, da
sociedade patriarcal e escravocrata que, apesar de toda
destruição, exclusão e desigualdade que promoveu,
comportava nobreza, esplendor e criatividade:

Por baixo dessa civilização


aristocrática e voluptuosa (...) deixou-
se secar tanta fonte de vida que era
natural que a exploração da cana de
açúcar fosse o que foi nesse trecho do
Brasil: uma fase, em certo sentido,
criadora e sob vários aspectos
brilhantíssima; mas tão separada de
certos elementos da natureza regional
e tão artificial em algumas de suas
condições de vida, que apodreceu
ainda verde: sem amadurecer direito
(FREYRE, 1951, p. 113).

Diferentemente da experiência nordestina da grande lavoura


colonial e canavieira, marcada pela estabilidade da família
patriarcal em relação à terra e pela rígida hierarquia social, a
realidade colonial paulista – representada pelo espírito
bandeirante e brilhantemente descrita por Buarque de Holanda
em Caminhos e Fronteiras, publicado originalmente em 1957 –
pautou-se no nomadismo intenso, temperado pelo improviso,
instabilidade, aventura e, muito mais do que o que ocorreria no
Nordeste da cana, pelo contato intenso e orgânico do
colonizador com a gente da terra (HOLANDA, 1994). Uma
rápida comparação entre os sumários dos dois livros basta para
pontuar alguns elementos de distinção entre essas realidades
regionais. Veredas de pé posto e Samaritanas do sertão, os
dois capítulos com que Sérgio Buarque inicia Caminhos e

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Fronteiras, por exemplo, guardam uma correspondência de


tema, enfoque e sequência com os dois primeiros capítulos com
que Freyre inicia seu Nordeste: A cana e a terra e A cana e a
água. Ao contrário de A cana e a terra, que associa o massapê
à estabilidade da lavoura colonial e canavieira no Nordeste,
Veredas de pé posto evoca os caminhos, trilhas e atalhos,
explorando os complexos sistemas de orientação espacial, de
interpretação dos rastros deixados por bichos ou outros
homens, além das estratégias usadas para dissimular os rastros
próprios. Técnicas que no contexto paulista e bandeirante
foram imprescindíveis, sendo uma marca simbólica distintiva da
mobilidade e nomadismo dessa sociedade surgida nas terras
paulistas dos primórdios da colonização, cuja “vocação estaria
no caminho, que convida ao movimento; não na grande
propriedade rural que forma indivíduos sedentários”
(HOLANDA, 1994, p. 9). Sob outra perspectiva, Freyre já havia
estabelecido a mesma comparação:

Em contraste com o nomadismo


aventureiro dos bandeirantes – em sua
maioria mestiços de brancos com
índios – os senhores das casas-
grandes representaram na formação
brasileira, a tendência mais
caracteristicamente portuguesa, isto é,
pé-de-boi, no sentido da estabilidade
patriarcal. Estabilidade apoiada no
açúcar (engenho) e no negro (senzala)
(FREYRE, 1938, p. XX).

Esse contraste também se estende à ênfase dada à água.


Diferentemente de A água e a cana – no qual esta surge como
outro elemento fundamental da estabilidade do Nordeste
canavieiro, com os engenhos dispostos ao longo dos rios e
demais cursos d’água – em As samaritanas do sertão, Sérgio
esmiúça o complexo processo de localizar e obter água durante
as longas caminhadas pelo sertão, exigindo perícia dos
sertanistas em encontrar uma aguada, um olho d’água, de
saber onde cavar um poço, ou mesmo de reconhecer os
vegetais que fornecem quantidades de líquido suficientes para
aplacar a sede durante suas jornadas.

Em capítulos seguintes, Sérgio fornece outros exemplos que


confrontam a experiência paulista com a descrita por Freyre.
Enquanto o brasileiro da cana é pintado como um profundo
desconhecedor da natureza a sua volta, os hábitos e técnicas
do antigo paulista mobilizavam uma enorme variedade de
conhecimentos em relação à caça, à pesca, às plantas e ervas
usadas na cura de doenças e também às técnicas de criação
doméstica de abelhas silvestres. Em todos esses aspectos, a
herança do contato com o indígena se faz presente de maneira
decisiva, em contraponto à experiência dos engenhos, para
qual Freyre destaca a influência preponderante do contato com
o africano, principalmente as escravas. A mobilidade e o
improviso, frutos dessa herança, marcariam o início dessa
sociedade paulista e sertaneja. “Sabemos como era manifesta
nesses conquistadores [bandeirantes paulistas] a marca do
chamado selvagem, da raça conquistada. Em seu caso”,
continua o autor,

ela não representa uma herança


desprezível e que deva ser dissipada
ou oculta, não é um traço negativo e
que cumpre superar; constitui, ao
contrário, elemento fecundo e positivo,
capaz de estabelecer poderosos
vínculos entre o invasor e a nova
terra. O retrocesso a condições mais
primitivas, a cada novo contato com a

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selva e com o habitante da selva, é


uma etapa necessária nesse feliz
processo de aclimação (HOLANDA,
1994, p. 21).

O autor já havia formulado colocação semelhante em Monções,


livro publicado originalmente em 1945 e que serviu de matéria
para a elaboração de Caminhos e Fronteiras:

Desenvolvendo-se com mais liberdade


e abandono do que em outras
capitanias, a ação colonizadora
realiza-se aqui por um processo de
contínua adaptação a condições
específicas do ambiente americano.
Por isso mesmo, não se enrija logo em
formas inflexíveis. Retrocede, ao
contrário, a padrões rudes e
primitivos: espécie de tributo exigido
para um melhor conhecimento e para
a posse final a terra. Só muito aos
poucos, embora com extraordinária
consistência, consegue o europeu
implantar, num país estranho, algumas
formas de vida, que já lhe era
familiares no Velho Mundo. Com a
consistência do couro, não a do ferro
ou do bronze, dobrando-se, ajustando-
se, amoldando-se a todas as
asperezas do meio (HOLANDA, 1990,
p. 16).

Essa diferença entre os antigos paulistas e os homens do


engenho no Nordeste não deriva, contudo e na visão do autor,
dos portugueses que desembarcaram em São Vicente e os que
aportaram em Pernambuco. Para ele, o espírito de aventura e a
predisposição à mistura seriam comuns a ambos. Tampouco ela
se explica pelos nativos que primeiro habitavam esses
territórios e sobre o qual, a despeito das diferenças de etnia, o
europeu impôs absoluto domínio:

É verdade que essas diferenças têm


caráter relativo e que delas não é lícito
tirar nenhuma conclusão muito
peremptória. A mobilidade dos
paulistas está condicionada, em
grande parte, a certa insuficiência do
meio; insuficiência para nutrir os
mesmos ideais de vida estável, que
nas terras da marinha puderam
realizar-se quase ao primeiro contato
mais intimo entre o europeu e o novo
mundo. Distanciados dos centros de
consumo, impossibilitados, por isso,
de atrair em grande escala os negros
africanos, deverão eles contentar-se
com o braço indígena, com os
“negros” da terra; para obtê-los é que
são forçados a correr sertões inóspitos
e ignorados. Em toda parte é idêntico
o objetivo dos colonos portugueses.
Diverge unicamente, ditado pelas
circunstâncias locais, o compasso que,
num e noutro caso, regula a marcha
para esse objetivo (HOLANDA, 1990,
p. 16).

Para Sérgio, as circunstâncias locais e sua relação com o


cenário mercantilista teriam condicionado as feições com que

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tais experiências de colonização se materializaram. Nesse


conjunto de fatores, o meio tomou parte como regulador da
implantação, em solo estranho, de um modo de vida exótico.

Estabilidade e nomadismo são, portanto, as características que


emanam do diálogo entre essas obras. Se é certo que o meio
exerce algum peso na formação das sociedades originadas
nesses dois contextos de colonização, seja impondo restrições,
seja fornecendo estímulos, há que se notar também que essas
experiências e padrões de interação com o meio encontram-se
– na interpretação desses dois autores – associados à própria
constituição das sociedades que descrevem, como se a primeira
refletisse padrões próprios da segunda. A miscigenação entre
portugueses e indígenas no ciclo bandeirante tem papel
fundamental na vocação seminômade dos antigos paulistas e
sua familiaridade com o ambiente tropical. Ao mesmo tempo, a
rigidez hierárquica da sociedade de engenho é refletida na
forma violenta como a monocultura canavieira se impôs no
Nordeste mercantilista, expressando formas de dominação
sobre o meio natural que refletem padrões de dominação
social.

1Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp.


Pesquisador do Centro de Estudos da História
Brasileira (Cehibra) da Fundação Joaquim
Nabuco.
2Vale conferir a oportuna crítica de Alfredo
Bosi ao conteúdo ideológico dessa linguagem
do ajustamento e adaptação (BOSI, 2001, p.
28).
3O revisionismo feito pela História Ambiental
brasileira tem destacado a importância
precursora desses autores na constituição
desse campo de estudos. Ver, por exemplo,
DRUMMOND (1991), PÁDUA (2002) e
DUARTE (2005).
4Sobre forma e conteúdo no diálogo entre
obras de Sérgio Buarque de Holanda e
Gilberto Freyre, conferir artigo de Élide Rugai
Bastos (BASTOS, 2005).

Bibliografia

BASTOS, Élide Rugai. Raízes do Brasil - Sobrados e Mucambos:


um diálogo. Perspectivas. São Paulo, 28: 19-36, 2005.

BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. 4ª Edição. São


Paulo: Companhia das Letras. 2001.

CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene. In: FREYRE,


Gilberto. Casa-grande & Senzala: Formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª edição. São
Paulo: Global, 2006

DRUMMOND, José Augusto. A história ambiental: temas, fontes


e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
4, n. 8, [p. 177-197]. 1991.

DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte:


Autêntica. 2005.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da


família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. 3ª
Edição. Rio de Janeiro: Schmidt. 1938.

FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana


sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. 2ª Edição. Rio
de Janeiro/São Paulo: Livraria José Olympio Editora. 1951.

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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3ª


edição. São Paulo: Companhia das Letras. 1994.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3ª edição. São Paulo:


Brasiliense. 1999.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª edição.


São Paulo: Companhia das Letras. 1998.

PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento


político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888).
Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2002.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo:


colônia. 6ª Edição. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1961.

Artigo recebido em: 01/08/13


Aprovado em: 20/12/2013

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