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RESENHAS 153

Os dez mandamentos da mais perigosos da cidade e sobre o qual circula-


vam várias idéias preconcebidas e estigmatizantes,
observação participante o bairro italiano é pouco a pouco “desbravado”
pelo aprendiz de pesquisador que apenas o conhe-
William Foote WHYTE. Sociedade de esquina: a cia por “ouvir dizer”. Ao mesmo tempo em que se
estrutura social de uma área urbana pobre e insere na localidade e vai redefinindo os objetivos
degradada. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. de sua pesquisa, dá tropeços no convívio com os
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. 390 páginas. moradores, aprendendo a pensar e a refletir sobre
a natureza de suas relações com os informantes.
Licia Valladares Aos poucos vai sendo aceito, muda-se inclusive
para Cornerville, mas se dá conta de que é funda-
Enfim o leitor brasileiro tem acesso a Street mental poder contar com um intermediário para
corner society de William Foote Whyte, um clássi- realizar sua observação. “Doc”, termo que define
co dos estudos urbanos, obrigatório em todo um informante-chave, simboliza esse mediador,
curso de métodos qualitativos e pesquisa social. que garante o bom acesso à localidade e/ou ao
Gilberto Velho, autor da apresentação e respon- grupo social em estudo. Desempenha também o
sável pela coleção “Antropologia Social” da Jorge papel de conselheiro e “protetor”, defendendo o
Zahar, tomou a iniciativa de fazer traduzir a edi- pesquisador contra as intempéries e os imponde-
ção de 1993, comemorativa dos cinqüenta anos ráveis próprios ao trabalho de campo. Após três
da primeira publicação do livro. A primorosa tra- anos de convívio e familiaridade com os diferen-
dução inclui anexos que o próprio autor foi acres- tes grupos informais e instituições que atuavam e
centando nas várias reedições do livro, referentes estruturavam a área (clubes sociais, centro comu-
à prática do trabalho de campo, ao depoimento nitário, organizações informais etc.), Foote Whyte
de um dos personagens e à sua lista de publica- deixou o bairro para dedicar-se à difícil tarefa de
ções. Além de um índice remissivo, peça rara redigir sua obra. Saída difícil e dolorosa para o
entre as publicações brasileiras, mas de uso fun- observador participante, mas facilitada pelo fato
damental quando se quer realizar uma leitura de o jovem pesquisador mudar-se para Chicago,
compreensiva de uma obra. onde se inscreve como aluno de doutorado na
Originalmente publicado em 1943, o texto é universidade onde Robert Park havia bem marca-
não apenas atual pela temática que aborda – a do sua passagem.
juventude, a organização social das gangs e dos
Para além do interesse temático, este livro
bairros pobres –, mas também um livro funda-
constitui um verdadeiro guia da observação parti-
mental para aqueles que fazem trabalho de campo
cipante em sociedades complexas. Minha opção
nas cidades, realizando o que os norte-americanos
será a de insistir na contribuição metodológica do
denominam anthropology at home. É também de
autor, tendo em vista a verdadeira “moda” no Brasil
grande importância para os sociólogos urbanos
de estudos de caso em “comunidades carentes” ou
que cada dia aderem mais aos métodos qualitati-
em territórios urbanos demarcados social e geo-
vos e aos estudos de caso e se interessam pelo
graficamente.
tema das redes sociais, da juventude, da política
Dez “mandamentos” podem ser depreendi-
local e da territorialização da pobreza. O subtítu-
dos da leitura do livro:
lo – A estrutura social de uma área urbana pobre
e degradada – chama a atenção para a importân- 1) A observação participante, implica, necessaria-
cia atribuída pelo autor aos temas da estrutura e mente, um processo longo. Muitas vezes o pes-
da mobilidade social, normalmente considerados quisador passa inúmeros meses para “negociar”
temáticas próprias da sociologia. sua entrada na área. Uma fase exploratória é,
William Foote Whyte, filho de classe média assim, essencial para o desenrolar ulterior da pes-
alta norte-americana, pesquisou nos anos de 1930 quisa. O tempo é também um pré-requisito para
uma área pobre e degradada da cidade de Boston, os estudos que envolvem o comportamento e a
onde morava. Conhecido como um dos slums ação de grupos: para se compreender a evolução
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do comportamento de pessoas e de grupos é 7) A observação participante implica saber ouvir,


necessário observá-los por um longo período e escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos. É pre-
não num único momento (p. 320). ciso aprender quando perguntar e quando não
2) O pesquisador não sabe de antemão onde está perguntar, assim como que perguntas fazer na
“aterrissando”, caindo geralmente de “pára-que- hora certa (p. 303). As entrevistas formais são
das” no território a ser pesquisado. Não é espera- muitas vezes desnecessárias (p. 304), devendo a
do pelo grupo, desconhecendo muitas vezes as coleta de informações não se restringir a isso.
teias de relações que marcam a hierarquia de Com o tempo os dados podem vir ao pesquisador
poder e a estrutura social local. Equivoca-se ao sem que ele faça qualquer esforço para obtê-los.
pressupor que dispõe do controle da situação. 8) Desenvolver uma rotina de trabalho é funda-
3) A observação participante supõe a interação mental. O pesquisador não deve recuar em face
pesquisador/pesquisado. As informações que de um cotidiano que muitas vezes se mostra repe-
obtém, as respostas que são dadas às suas inda- titivo e de dedicação intensa. Mediante notas e
gações, dependerão, ao final das contas, do seu manutenção do diário de campo (field notes), o
comportamento e das relações que desenvolve pesquisador se autodisciplina a observar e anotar
com o grupo estudado. Uma auto-análise faz-se, sistematicamente. Sua presença constante contri-
portanto, necessária e convém ser inserida na pró- bui, por sua vez, para gerar confiança na popula-
pria história da pesquisa. A presença do pesquisa- ção estudada.
dor tem que ser justificada (p. 301) e sua transfor- 9) O pesquisador aprende com os erros que
mação em “nativo” não se verificará, ou seja, por comete durante o trabalho de campo e deve tirar
mais que se pense inserido, sobre ele paira sem- proveito deles, na medida em que os passos em
pre a “curiosidade” quando não a desconfiança.
falso fazem parte do aprendizado da pesquisa.
4) Por isso mesmo o pesquisador deve mostrar-se Deve, assim, refletir sobre o porquê de uma recu-
diferente do grupo pesquisado. Seu papel de pes- sa, o porquê de um desacerto, o porquê de um
soa de fora terá que ser afirmado e reafirmado. silêncio.
Não deve enganar os outros, nem a si próprio.
10) O pesquisador é, em geral, “cobrado”, sendo
“Aprendi que as pessoas não esperavam que eu
esperada uma “devolução” dos resultados do seu
fosse igual a elas. Na realidade estavam interessa-
trabalho. “Para que serve esta pesquisa?” “Que
das em mim e satisfeitas comigo porque viam que
benefícios ela trará para o grupo ou para mim?”
eu era diferente. Abandonei, portanto, meus
Mas só uns poucos consultam e se servem do
esforços de imersão total” (p. 304).
resultado final da observação. O que fica são as
5) Uma observação participante não se faz sem relações de amizade pessoal desenvolvidas ao
um “Doc”, intermediário que “abre as portas” e longo do trabalho de campo.
dissipa as dúvidas junto às pessoas da localidade.
Com o tempo, de informante-chave, passa a cola- Outros “mandamentos metodológicos” pode-
borador da pesquisa: é com ele que o pesquisa- riam ser inferidos. Gostaria apenas de insistir sobre
dor esclarece algumas das incertezas que perma- dois pontos. Da leitura do livro, fica claro que a
necerão ao longo da investigação. Pode mesmo observação participante não é uma prática simples
chegar a influir nas interpretações do pesquisa- mas repleta de dilemas teóricos e práticos que cabe
dor, desempenhando, além de mediador, a fun- ao pesquisador gerenciar. A experiência descrita e
ção de “assistente informal”. analisada pelo autor, numa linguagem que dispensa
6) O pesquisador quase sempre desconhece sua o jargão especializado, mostra que a observação par-
própria imagem junto ao grupo pesquisado. Seus ticipante exige, sim, uma cultura metodológica e teó-
passos durante o trabalho de campo são conhecidos rica. Foote Whyte não vinha de uma formação em
e muitas vezes controlados por membros da popu- antropologia ou sociologia, mas havia estudado na
lação local. O pesquisador é um observador que tradicional e bem cotada Universidade de Harvard.
está sendo todo o tempo observado. Havia lido Malinowsky, Durkheim, Pareto, os Lynd
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(Middletown) e a literatura sobre communities. Teve Pistas da sociologia para


contacto com Elton Mayo, que o orientou no apren-
dizado das técnicas de entrevista, e com o antropó- um século atormentado
logo Conrad Arensberg, com quem discutiu métodos
de pesquisa de campo. Lloyd Warner, autor de Robert BRYM, John LIE, Cynthia Lins HAMLIN,
Yankee city, veio a ser seu orientador na Remo MUTZENBERG, Eliane Veras SOARES &
Universidade de Chicago. Para a revisão do manus- Heraldo SOUTO MAIOR. Sociologia: sua bússola
crito, contou com as sugestões de Everett Hugues. para um novo mundo. São Paulo, Thomson, 2006.
Como diz Gilberto Velho, na apresentação da edição 609 páginas.
brasileira, o livro “como produto final traz inevitavel-
mente as marcas de sua passagem e relações com Ricardo Antunes
alguns dos expoentes da Escola de Chicago dos anos
1940” (p. 12). Recentemente, o Conselho Nacional de
Outro aspecto importante diz respeito à Educação aprovou a volta do ensino de sociolo-
atualidade do livro e sua pertinência para enten- gia e filosofia para o ensino médio no Brasil. A
der áreas pobres e o mundo popular no Brasil de decisão, auspiciosa, poderá possibilitar, em breve
hoje. O diagnóstico oferecido pelo autor contra- tempo, um estudo mais humanista e crítico que,
põe-se à imagem produzida pelo senso comum, de certo modo, contrasta com a razão instrumen-
que considera as áreas pobres exclusivamente um tal que preside a sociabilidade contemporânea, na
problema: degradadas, homogêneas, desorganiza- qual as chamadas “regras do mercado” têm tido
das, caóticas e fora da lei, devendo necessaria- cada vez mais prevalência, inclusive no âmbito
mente ser “ajudadas” uma vez que “abandonadas educacional. Teremos, então, uma real retomada
à sua própria sorte” nunca se desenvolverão. dos estudos de sociologia e filosofia em nossas
Vistas de dentro, e a partir do olhar arguto do escolas. O que nos obriga, nas universidades, a
cientista social, tem-se outra visão: tais localidades formar melhores sociólogos e filósofos.
corresponderiam a áreas onde coexistem espaços Se já temos aqui publicado várias obras de
e grupos locais diferenciados porém estruturados muitos dos autores clássicos das ciências sociais,
a partir de redes de relações sociais. A desorgani- com boas edições e mesmo traduções, se já pode-
zação social não é, portanto, a tônica geral – o mos consultar o denso Dicionário do pensamento
que não significa negar a existência do conflito social do século XX (organizado por William
entre os grupos. Foote White não tem, dessa Outhwaite, Tom Bottomore et al., publicado pela
forma, nem uma visão “miserabilista” nem popu- Jorge Zahar Editor), agora, em boa hora, podemos
lista dos pobres. O autor insiste na importância da saudar este novo livro que acaba de ser publicado
sociabilidade que ocorre no espaço público do no Brasil. Sociologia: sua bússola para um novo
mundo popular, na “sociedade da esquina” para mundo é um empreendimento intelectual de fôle-
usar seu próprio linguajar. Pois é na esquina, no go: em suas mais de seiscentas páginas, oferece
espaço informal, que as decisões são tomadas, um panorama abrangente, complexo e heterogê-
que os grupos se estruturam e que as relações neo das incontáveis questões, desafios, dilemas e
sociais se constroem e se destroem. problemas nestes conturbados séculos, o XX que
Que este livro sirva de “aviso” e inspiração a já se foi e o XXI que acaba de principiar.
todos aqueles que queiram se lançar na aventura Desde logo seus autores mostram que o pro-
da observação participante. jeto do livro, entretanto, tem claro contraste com as
enciclopédias. Se estas ensinam o que pensar sobre
LICIA VALLADARES é professora de tantos temas, este novo livro pretende demonstrar
Sociologia da Universidade de Lille 1 e como os sociólogos formulam suas questões e inda-
membro do Laboratório Clerse/CNRS. No gações e, desse modo, possibilitar que as respostas
Brasil é pesquisadora associada do Iuperj. sejam encontradas pelos leitores/as.
Embora seu desenho apresente a formatação
de algum modo aparentada com as enciclopédias

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