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Os novos
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
arranjos
Nº 406 - Ano XII - 29/10/2012 - ISSN 1981-8769

familiares
brasileiros

Sócrates José Eustáquio Esther Hamburger:


Nolasco: Diniz Alves e As telenovelas acompanham
A individualização as mudanças da família
Suzana Cavenaghi:
da família brasileira
Família brasileira: plural,
complexa e diversa
E MAIS

Simon Blackburn: Walter Altmann: Anderson David Gomes


Não existe o “pós- Concílio Vaticano II e a dos Santos:
humano” busca pelo compromisso Debtocracy: a crise econômica
ecumênico grega em destaque
Os novos arranjos
Editorial

familiares brasileiros

N
ovos arranjos e moda- e que, portanto, é preciso “aprender Completam a edição as entre-
lidades familiares se a viver ou conviver com famílias di- vistas com o filósofo britânico Simon
configuram no Brasil na ferenciadas”. José Eustáquio Diniz Al- Blackburn, com o teólogo e modera-
contemporaneidade. Os ves e Suzana Cavenaghi, professores dor do Conselho Mundial das Igrejas,
traços característicos desses novos da Escola Nacional de Ciências Esta- Walter Altmann e com Anderson San-
arranjos podem ser descritos a partir tísticas do Instituto Brasileiro de Ge- tos, mestrando em Comunicação na
do Censo 2010. Demógrafos e outros ografia e Estatística – IBGE, definem a Unisinos.
especialistas analisam esta nova rea- família brasileira do século XXI como
lidade da família na edição da revista plural, complexa e diversa. José Luis Jacqueline Lima Dourado publi-
IHU On-Line desta semana. Petruccelli, pesquisador do IBGE, ca mais um artigo em memória de
constata a existência de uma hierar- Valério Cruz Brittos.
Para Ana Amélia Camarano, quia racial na sociedade, ao comen-
professora e economista do IPEA, a tar que 70% dos casamentos no país A todas e a todos uma ótima se-
responsabilidade financeira familiar acontecem entre pessoas da mesma mana e uma excelente leitura!
feminina veio para ficar no Brasil. cor ou raça.
Bárbara Cobo e Gilson Gonçalves de
Matos, pesquisadores do IBGE, anali-
sam as transformações na estrutura
das famílias brasileiras. Esther Ham-
burger, professora da USP, reflete
sobre a família brasileira das teleno-
velas. Sócrates Nolasco, psicólogo,
descreve a individualização da famí-
lia. Thierry Linard de Guertechin, de-
mógrafo, do Centro de Investigação
e Ação Social – CIAS/IBRADES (Insti-
tuto Brasileiro de Desenvolvimento),
avalia que “estamos vivendo cada vez
mais numa sociedade de indivíduos”
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Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos André Langer e Darli Sampaio,
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Schneider (jacintos@unisinos.br). (icorrea@unisinos.br). Wagner Altes e Mariana Staudt

2
Tema de Capa
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Sócrates Nolasco: A individualização da família
8 José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi: Família brasileira: plural, complexa e
diversa
12 Ana Amélia Camarano de Mello Moreira: Um novo papel social da mulher brasileira
14 Barbara Cobo e Gilson Gonçalves de Matos: Transformações na estrutura das famílias
brasileiras
17 Esther Hamburger: As telenovelas acompanham as mudanças da família brasileira
19 Thierry Linard de Guertechin: “Estamos vivendo cada vez mais numa sociedade de
indivíduos”
21 José Luis Petruccelli: “Há uma hierarquia racial na sociedade”

DESTAQUES DA SEMANA
24 ENTREVISTA DA SEMANA: Simon Blackburn: Não existe o “pós-humano”
29 TEOLOGIA PÚBLICA: Walter Altmann: Concílio Vaticano II e a busca pelo compromisso
ecumênico
32 ARTIGO DA SEMANA: Cesar Sanson: O “mensalão” e a esquerda. Uma leitura crítica a
partir da esquerda
34 COLUNA DO CEPOS: Jacqueline Lima Dourado: Valério Cruz Brittos
36 DESTAQUES ON-LINE

IHU EM REVISTA
39 Agenda da Semana
40 ENTREVISTAS DE EVENTOS: Anderson David Gomes dos Santos: Debtocracy: a crise
econômica grega em destaque
42 ENTREVISTAS DE EVENTOS: Marla Kuhn: Enfrentamento das desigualdades
socioambientais, a perspectiva da oficina de indicadores
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44 NOTA DE EVENTO: José Rogério Lopes: Novo mapa religioso brasileiro em discussão
46 IHU Repórter: Airton Adalmir Cima da Silveira

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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Tema de Capa
A individualização da família
O individualismo como crença perpassa cada vez mais o cotidiano das pessoas, que
usam suas teses para decidir o que fazer de suas vidas. Esta nova família que se
“descoletiviza” não assume todos os credos individualistas, principalmente aqueles
que se referem ao respeito às individualidades, assinala Sócrates Nolasco

Por Thamiris Magalhães e Graziela Wolfart

“O
imaginário que povoa os lares passaram a ter funções secundárias diante de
brasileiros é tradicional, estimu- uma ‘nova’ família, na qual os filhos são inde-
la o enriquecimento, o consumo pendentizados cada vez mais cedo, passando
e a fama, como parâmetros de sucesso, mais de modo precoce a ter a mesma estatura dos
do que educação, trabalho, compromisso seus pais”, frisa. E completa: “Antes de existir
e respeito com o público”, pontua Sócrates um pai ou uma mãe, deve haver dois sujeitos
Nolasco. Em entrevista concedida por e-mail com disponibilidade para cuidar de um outro.
à IHU On-Line, Nolasco afirma que no Brasil Sem isso não surgirá nem pai, nem mãe, mas
assistimos a formação de grupos familiares máquinas de reprodução in vitro, de fecundi-
distintos, “porém, isso não quer dizer que dade sem sexo, de cuidado sem vínculo, de
dentro de cada um deles valores tradicionais conforto sem afeto”.
não continuem imperando”. Estas novas fa- Sócrates Nolasco é graduado em Psicolo-
mílias, para ele, têm crescido em torno delas gia pela Pontifícia Universidade Católica do
mesmas e dialogam muito pouco com aque- Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre e doutor em
las que têm um formato diferente do seu. “As Psicologia pela Pontifícia Universidade Ca-
‘novas’ famílias estão cada vez menos prepa- tólica do Rio Grande do Sul – PUCRS e pela
radas para inventar formas de coletivização e PUC-Rio, respectivamente. Sua tese intitu-
vinculação com outras famílias, cujo modelo lou-se  De Tarzan a Homer Simpson: banali-
seja distinto do seu. As novas famílias brasi- zação e violência masculina em sociedades
leiras compraram o preceito individualista, contemporâneas ocidentais  (Rio de Janeiro:
mantendo o ranço de valores tradicionais no Rocco, 2001). Escreveu  A desconstrução do
que tange a falta de respeito ao outro, e uma masculino  (Rio de Janeiro: Rocco, 1995) e  O
pretensão de superioridade herdada das clas- mito da masculinidade (2ª. ed. Rio de Janeiro:
ses altas”. Rocco, 1993). Leciona na Universidade Fede-
Para o psicólogo, maternidade e pater- ral do Rio de Janeiro – UFRJ.
nidade se diluem diante das demandas de Confira a entrevista.
trabalho e produção de dinheiro. “Ambos
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IHU On-Line – Como conceitu- mento, tanto religioso como civil, se mos pensar a respeito destes dados?
ar família em nossos dias, principal- reduziu diante das uniões consensu- Há uma crescente individualização
mente depois dos dados apresenta- ais, que aumentaram consideravel- da família, agenciada pela busca de
dos no último censo? mente. Redução da taxa de natalida- prazer imediato e aquisição de bens.
Sócrates Nolasco – O perfil das de, mulheres tendo filhos mais tarde O individualismo como crença per-
famílias brasileiras mudou em rela- e aumento da estimativa de vida, são passa cada vez mais o cotidiano das
ção aos dados do último censo. A fatores que corroboraram para este pessoas, que usam suas teses para
chamada família tradicional, modelo cenário de mudança. O censo de 2010 decidir o que fazer de suas vidas. Esta
composto por pai, mãe e filhos, agora enumerou 19 laços de parentesco, nova família que se “descoletiviza”
convive com famílias cujo núcleo fa- para que fosse possível cobrir todas não assume todos os credos individu-
miliar é formado por crianças de uni- estas mudanças. Já o censo de 2000, alistas, principalmente aqueles que se
ões anteriores, de pessoas sozinhas, listou apenas onze. Os novos lares so- referem ao respeito às individualida-
casais sem filhos e uniões constituídas mam 28,647 milhões, 28.737 a mais des. O imaginário que povoa os lares
por pessoas do mesmo sexo. O casa- que a formação clássica. O que pode- brasileiros é tradicional, estimula o

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enriquecimento, o consumo e a fama, ao cuidado dos filhos recebeu outra mem no mundo. Uma criança precisa
Tema de Capa
como parâmetros de sucesso, mais do configuração por conta da mulher ter de um cuidador, seja ele pai ou mãe.
que educação, trabalho, compromisso ampliado suas demandas na vida. Pai
e respeito com o público. e mãe se encontram cada vez mais na Homens e a paternidade
cena pública, do trabalho, que na do- No Brasil, os homens não têm
IHU On-Line – Que valores so- méstica. Essas funções no Brasil estão demonstrado interesse por uma re-
ciais e culturais refletem a nova famí- cada vez mais terceirizadas. Babás, flexão mais séria e profunda no que
lia brasileira retratada nos dados do creches, transporte escolar, ou ainda tange a paternidade, bem como nas
último censo? filhos cada vez mais cedo sendo auto- maneiras que ela transforma a vida
Sócrates Nolasco – No Brasil, rizados a cuidarem de si mesmo, mos- de cada um deles. Os homens brasi-
se pensarmos que saímos de uma tram-nos o quanto que há uma dele- leiros têm uma resistência para sair
sociedade tradicional para uma que gação de tarefas por parte dos pais. desta área de conforto em que tra-
se consolida como individualista, de- Maternidade e paternidade se diluem dicionalmente se colocaram. Segun-
veríamos nos ater à ideia de acesso, diante das demandas de trabalho e do essa perspectiva, a mãe é aquela
ou seja, a democratização do consu- produção de dinheiro. Ambos passa- que sabe como cuidar, porque foi ela
mo e dos serviços que usufruem as ram a ter funções secundárias diante quem gerou o bebê. As sociedades
classes abastadas. Se olharmos sem de uma “nova” família, na qual os fi- tradicionais concedem à mulher o di-
pensar, poderíamos acreditar que lhos são independentizados cada vez reito de usar a intuição, aplicando-a
esta família múltipla e mais reduzida mais cedo, passando de modo preco- no cuidado dos filhos. No consultó-
é nova. Porém, nela encontramos va- ce a ter a mesma estatura dos seus rio, percebo que são muitas as razões
lores tradicionais que a vincula às for- pais. A gravidez na adolescência e os que levam uma mulher desejar a ter
mas de poder vigente – a hierarquia indicadores de mortes de homens jo- filho. Ser mãe nem sempre é o prin-
social pautada no enriquecimento, a vens por causas externas descrevem cipal motivo. No Brasil, os grupos de
valorização pela aquisição de bens. um cenário de solidão, no qual estes homens que têm procurado discutir
As iniciativas culturais, apesar de te- filhos ficam sem ter a quem recor- a paternidade têm usado o ponto de
rem aumentado, ainda são tímidas se rer, já que em suas casas o que se vista das mulheres sobre o assunto,
considerarmos o potencial de contri- manteve presente foram os eletro- mais do que os homens têm a dizer
buição que elas têm para promover domésticos. Antes de existir um pai a respeito. Segundo tais grupos, a di-
mudanças de mentalidade. No Brasil, ou uma mãe, deve haver dois sujei- visão das tarefas domésticas e a pre-
assistimos a formação de grupos fami- tos com disponibilidade para cuidar venção da violência contra a mulher
liares distintos. Porém, isso não quer de um outro. Sem isso não surgirá são temas recorrentes.
dizer que, dentro de cada um deles, nem pai nem mãe, mas máquinas de
valores tradicionais não continuem reprodução in vitro, de fecundidade IHU On-Line – Em que medida o
imperando. Essas novas famílias têm sem sexo, de cuidado sem vínculo, de seriado Os Simpsons reflete a reali-
crescido em torno delas mesmas, e conforto sem afeto. dade familiar brasileira atual?
dialogam muito pouco com aquelas Sócrates Nolasco – Nos dias de
que têm um formato diferente do IHU On-Line – O que os homens hoje, a mídia quando se refere à mu-
seu. As “novas” famílias estão cada têm feito diante das mudanças atuais lher, o faz através da palavra “pode-
vez menos preparadas para inventar da família para tentar encontrar mais rosa”. Nas últimas décadas do século
formas de coletivização e vinculação espaço no ambiente familiar? passado, a mulher vem investindo na
com outras famílias, cujo modelo Sócrates Nolasco – No Brasil, conquista de poder. No seriado Os
seja distinto do seu. As novas famí- apesar de a mulher ter saído do es- Simpsons encontramos histórias de
lias brasileiras compraram o preceito paço doméstico, tradicionalmente uma família na qual as mulheres são
individualista, mantendo o ranço de este tem sido considerado sua área as politicamente corretas, sendo que
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valores tradicionais no que tange a de competência e poder. Permanece pai e filho são pessoas equivocadas.
falta de respeito ao outro, e uma pre- o tradicional, lá onde deveria exis- O mesmo acontece com Os Silva, da
tensão de superioridade herdada das tir a premissa de que o individuo é o família dinossauro. Essa representa-
classes altas. valor, e, portanto, homem e mulher ção de família tem no imaginário dos
deveriam ter os mesmos direitos. Nas países da América do Norte e Europa
IHU On-Line – O que podemos varas de família, as mulheres continu- um impacto maior do que no Brasil.
entender por maternidade e paterni- am sendo favorecidas em relação aos Porém, a desvalorização dos homens
dade no século XXI? homens, caso se separem. Muitas fa- aqui passa por uma dúvida que gera
Sócrates Nolasco – Hoje, a pater- mílias acreditam que a mãe tem mais um estado de vigilância em torno da
nidade deixou de ser uma questão de importância que o pai, mesmo quan- masculinidade, como se a qualquer
fé, como se dizia nos anos 1970, pas- do a criança já tenha deixado o peito. momento um homem pudesse perder
sando a ser valorizada e estimulada. Para que um homem não se intimide a sua, quer seja de forma financeira,
Por sua vez, a maternidade que, an- com este panorama, ele deve ter cla- sexual ou por fraqueza física. Isso tem
teriormente, era um exercício que se reza de que a paternidade é uma am- levado muitos homens jovens a lan-
fazia dentro do doméstico e associado pliação de sua possibilidade de ser ho- çar mão da violência e do sexo como

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ferramentas que atestam masculini- vínculo, sem comprometer a sede de Experiências

Tema de Capa
dade. Para a mulher, o modelo que prazer imediato. Estava em São Francisco, para um
serviu para o empoderamento foi o curso. Conheço a cidade, e sei que ela
do homem, branco e heterossexual. IHU On-Line – O ditado “quando tem uma ambiência de diversidade,
Esse sujeito é considerado o grande o pai falta, o filho manca” se aplica à no mais extenso que esta palavra pos-
beneficiado na história do ocidente. família do século XXI? sa representar, e não apenas do pon-
Por essa razão, as mulheres passa- Sócrates Nolasco – Em uma épo- to vista sexual, como ficou associada
ram a reivindicar paridade de direito ca de reprodução assistida, liberdade no Brasil. Castro é o nome do bairro
com os homens, os gays com o hétero sexual e direito ao aborto, a paterni- onde a comunidade gay vive. O que
e as demais etnias com os brancos. dade tem deixado de ser algo de valor. me chamou atenção foi o fato de que,
Homer Simpson é branco, heterosse- Isso acontece menos pelo valor que na parte do bairro onde moram os
xual e homem. É desta representação ela tem para os filhos, e mais por con- homens, era raro encontrar uma mu-
que estamos falando. Muitos homens ta de uma compreensão limitada que lher. O mesmo acontecia com a parte
brasileiros podem estar identificados se tem dela, em tempos de consumo reservada às mulheres. Lá não se via
com Homer, mas dificilmente irão par- e entretenimento. Escrevi uma maté- homens. Bem, até aí, nada demais.
tilhar este sentimento uns com os ou- ria para um jornal do Rio de Janeiro Contudo, as imagens que a cultura
tros, por medo de serem vistos como sobre adoção realizada por casais do usa para representar masculinidade e
fracassados. No Brasil, Homer se tra- mesmo sexo. Fui aos Estados Unidos feminilidade estavam lá. As mulheres
veste de valentão, bombado, sedu- cobrir eventos que tratavam deste as- andavam e se vestiam, em sua grande
tor irresistível, esperto, malandro e sunto. Dentre as entrevistas que fiz, maioria, como homens, e os homens
todas as insígnias do estereótipo do uma delas me chamou atenção. Uma lançam mão do que havia ficado es-
homem tradicional. A derrota ronda mulher de 20 anos nasceu em uma fa- tabelecido como feminino. Quando
cada um destes tipos, fazendo-os se- mília formada por duas mulheres. De existia alguma alusão à masculinida-
rem quem são. uma delas foi retirado um óvulo que, de, esta se referia ao mundo tradicio-
depois de fecundado in vitro, foi inse- nal dos homens: cowboy, couro, mili-
IHU On-Line – Que impactos a minado na outra mulher, que gerou tares eram vistos nas ruas e vitrines.
nova configuração familiar terá sobre uma filha. O sêmen foi pego em um O que percorre o imaginário de uma
as novas gerações? bando de doadores. Estávamos no fi- cultura, atribuído a homem e mulher,
Sócrates Nolasco – As novas ge- nal dos anos 1990. Quando conversei continua existindo tanto em uniões do
rações crescerão convivendo como com essa mulher, ela me contou que mesmo sexo como de sexo diferente.
diferentes arranjos familiares, o que suas mães haviam se separado, e que Com todas as mudanças ocorridas na
favorecerá uma compreensão sobre o ela já não morava mais com nenhuma última década, não houve uma rein-
que seja multiplicidade e possibilida- delas, porque estava na universidade. venção do que signifique ser homem
de de se viver a vida. Todavia, isso só Eu perguntei o que estava escrito em e mulher. O que encontramos é uma
não basta, é importante que o modelo sua certidão de nascimento, e ela me autorização social para que cada qual
tradicional seja identificado e proble- disse que aparecia o nome das duas possa experimentar o que tradicional-
matizado, mesmo dentro dos novos mães. E no do pai? Ela me respondeu: mente estava atribuído ao outro sexo.
arranjos familiares. Nem tudo o que no lugar do nome do pai está escrito
é tradicional é ruim. Uma crítica deve D.I. (donor insemination). Creio que
ser feita, mesmo dentro das novas fa- isso revela uma parte do que vem
mílias, que, me parece, vem perden- acontecendo com a representação Leia mais...
do a capacidade de serem críticas em paterna nos dias de hoje.
relação a elas mesmas. Fazer parte de Sócrates Nolasco já concedeu outras
um novo formato de família não ates- IHU On-Line – Que análise pode entrevistas à IHU On-Line. Confira:
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tar que as representações tradicionais ser feita do fato de que a maioria dos
tenham sido problematizadas. É preci- casais gays é formada por mulheres? • A pedofilia e as sombras da lei. En-
so ter cuidado quando se fala do que Sócrates Nolasco – O imaginário trevista publicada na Revista IHU
seja o novo, quando as representa- atravessa todos que fazem parte de
ções sociais de homem e mulher, pai uma cultura. Não importa qual seja o On-Line, edição 326, de 26-04-
e mãe, não mudaram, mesmo que a tipo de classificação que ela atribua 2010, disponível em http://migre.
família em questão seja formada por aos indivíduos. No Brasil, maternida-
pessoas do mesmo sexo. A quantida- de e feminilidade estão associadas me/bi46W;
de de separações tem deixado uma ao sujeito empírico mulher. Creio que • A violência tem sexo. Entrevista pu-
impressão ruim a respeito das uniões. a ideia de ser mãe passe de algum
As relações duram cada vez menos. É modo pela mulher, de tal maneira que blicada na Revista IHU On-Line, edi-
um desafio ser jovem na cultura do a mulher acaba desejando ter filhos, ção 150, de 08-08-2005, disponível
divórcio, onde não se acredita que mais do que ocorre nas uniões forma-
seja possível formar e fazer durar um das por homens. em http://migre.me/bi5sp.

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Tema de Capa
Família brasileira: plural,
complexa e diversa
Sem dúvida, a sociedade brasileira mudou em termos demográficos e na
composição plural das relações familiares. Os diferenciais de gênero e de geração
são fundamentais para se compreender a complexidade e a diversidade das relações
familiares do Brasil contemporâneo, averiguam José Eustáquio Diniz Alves e
Suzana Cavenaghi
Por Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

I
ndagados a respeito das principais conclu- Para eles, o casamento é praticamente um
sões a que chegaram em relação à família evento universal no Brasil, mas somente se
brasileira no estudo recente que realiza- considerarmos todos os tipos de matrimônio.
ram com base no censo de 2010, José Eustá- “Em 1970, 65% dos casamentos aconteciam
quio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi, em en- no civil e no religioso, 14% somente no civil,
trevista concedida por e-mail à IHU On-Line, 14% só no religioso e 7% eram uniões consen-
dizem que a primeira grande mudança foi a suais. Em 2010, o casamento no civil e religio-
redução do arranjo majoritário formado por so caiu para 43%, só no civil aumentou para
casais (núcleo duplo) com filhos. “Em núme- 17%, só no religioso caiu para 3% e as uniões
ros aproximados, este tipo de família estava consensuais subiram para 37%”.
presente em cerca de dois terços (66%) dos José Eustáquio Diniz Alves é doutor em
domicílios, em 1980, mas caiu para algo pró- Demografia e professor da Escola Nacional de
ximo de 50% em 2010. Isso aconteceu por- Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de
que os pais, tendo menor número de filhos e Geografia e Estatística – IBGE.
maior esperança de vida, vivem mais tempo Suzana Cavenaghi é doutora em Demogra-
na fase do ‘ninho vazio’, pois os filhos tendem fia e professora da Escola Nacional de Ciên-
a sair da casa de seus progenitores para for- cias Estatísticas do IBGE. Os entrevistados
mar uma nova família, para morar sozinhos esclarecem que nesta entrevista apresentam
ou para formar arranjos domiciliares com pes- seus pontos de vista em caráter pessoal.
soas não parentes”, frisam. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais foram as de massa. As relações entre as classes de despatriarcalização da sociedade.
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principais mudanças ocorridas na mudaram e o Brasil se tornou uma de- Tais transformações tiveram um gran-
sociedade brasileira nas últimas mocracia política e cultural (mesmo de impacto sobre a forma de estrutu-
décadas? com as diversas limitações). A tran- ração das famílias e sobre a dinâmica
José Eustáquio Diniz Alves e Su- sição demográfica reduziu as taxas dos arranjos domiciliares.
zana Cavenaghi – O Brasil passou por de mortalidade infantil, aumentou a
grandes transformações econômicas esperança de vida e reduziu as taxas IHU On-Line – Como essas trans-
e sociais no século XX, deixando de de fecundidade. Isso provocou uma formações econômicas, sociais e de-
ser uma sociedade predominante- mudança da estrutura etária e o Bra- mográficas afetaram a organização
mente rural e agrária, para se tornar sil está deixando de ser um país com das famílias brasileiras?
uma sociedade urbana com predomi- alta predominância de jovens para se José Eustáquio Diniz Alves e
nância econômica da indústria e do tornar um país com elevada propor- Suzana Cavenaghi – O primeiro e
setor de serviços. Nas últimas déca- ção de idosos. Houve também uma maior impacto foi sobre o tamanho
das, houve mobilidade ocupacional, mudança das relações de gênero com dos arranjos familiares. A família nu-
espacial e social, assim como a cons- maior empoderamento das mulheres merosa, que era muito adaptada às
trução de uma sociedade de consumo e um lento, mas contínuo, processo condições da sociedade rural, quando

8 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


havia ampla disponibilidade de terras, maior esperança de vida, vivem mais morando sozinhas podem ser defini-

Tema de Capa
deixou de ser funcional na sociedade tempo na fase do “ninho vazio”, pois das como “arranjo unipessoal”, “do-
urbana, onde a inserção dos filhos na os filhos tendem a sair da casa de seus micílio unipessoal” ou simplesmente
produção econômica passa pela inter- progenitores para formar uma nova “pessoas morando sozinhas”.
mediação do mercado de trabalho e família, para morar sozinhos ou para
pelos filtros das exigências educacio- formar arranjos domiciliares com pes- Solidão
nais e dos padrões de produtividade soas não parentes. De fato, o número de pessoas
da economia urbano-industrial. A for- morando sozinhas tem crescido e
malização do emprego ocorreu junta- Casais sem filhos deve aumentar ainda mais com o pro-
mente com a ampliação da cobertura A segunda mudança – de manei- cesso de envelhecimento da popula-
da previdência social. Neste processo ra complementar à primeira – foi o ção. Houve também certa mudança
de mudança do modelo centrado na aumento do arranjo formado apenas de perfil. No passado, havia uma clara
família ao sistema de inserção produ- pelos casais sem filhos e sem outros diferenciação geracional e de gênero
tiva e proteção social público e institu- parentes, que passou de 12% em entre as pessoas morando sozinhas
cional, há uma tendência de aumento 1980 para 15% em 2010. no Brasil, pois entre os homens pre-
do custo dos filhos e de redução dos dominavam aqueles com idade en-
seus benefícios. Como teoriza o de-
Arranjo monoparental feminino
tre 30 e 59 anos, enquanto entre as
mógrafo australiano John Caldwell1, A terceira alteração foi o aumen- mulheres em domicílios unipessoais
estas transformações provocam uma to do arranjo monoparental feminino predominavam aquelas acima de 60
reversão do “fluxo intergeracional de (núcleo simples, formado por mães anos. Atualmente tem crescido o nú-
riqueza”. Os filhos deixam de ser “a com filhos), que passou de 11,5% em mero de mulheres entre 30 e 59 anos
galinha dos ovos de ouro” dos pais e 1980 para 15,3% em 2010. morando sozinhas. Geralmente são as
passam a acumular maiores custos Arranjo monoparental masculino que optam por uma carreira profissio-
econômicos e a reduzir os benefícios. nal e declinam ou retardam a “carrei-
A quarta modificação foi também
Isso modifica o regime de fecundida- ra” da maternidade.
o aumento – ainda que de uma base
de e a dinâmica entre as velhas e as
menor – do arranjo monoparental
jovens gerações. Também abre espa- IHU On-Line – Famílias e domicí-
masculino (núcleo simples, formado
ço para novas formas de organização lios são conceitos equivalentes?
por homens com filhos), que passou
dos arranjos domiciliares, ao mesmo José Eustáquio Diniz Alves e Su-
de 0,8% em 1980 para 2,2% em 2010.
tempo em que diminui o peso social zana Cavenaghi – Não. O Instituto Bra-
das famílias tradicionais. Mulheres morando sozinhas sileiro de Geografia e Estatística – IBGE
A quinta transformação foi o define o domicílio como o local estru-
IHU On-Line – Quais as principais crescimento do número de mulheres turalmente separado e independente
conclusões a que vocês chegaram em morando sozinhas, que passou de que serve de habitação a uma ou mais
relação à família brasileira no estudo 2,8% em 1980 para 6,2% em 2010. pessoas. Existem vários tipos de habi-
recente que realizaram com base no tação, como os domicílios particulares
censo de 2010? Homens morando sozinhos e coletivos, domicílios permanentes e
José Eustáquio Diniz Alves e Su- A sexta foi o crescimento do nú- improvisados, etc. A maior parte dos
zana Cavenaghi – A primeira grande mero de homens morando sozinhos, dados coletados do censo se refere aos
mudança foi a redução do arranjo que passou de 3% em 1980 para 6,5% domicílios particulares permanentes
majoritário formado por casais (nú- em 2010. E, finalmente, a sétima mu- ocupados. Nestes domicílios pode ha-
cleo duplo) com filhos. Em números dança aconteceu com a redução do ver famílias nucleares (com núcleo du-
aproximados, esse tipo de família es- percentual de famílias compostas e plo ou núcleo simples), famílias esten-
tava presente em cerca de dois ter- extensas (casais, filhos, parentes e didas (com um ou mais de um núcleo
ços (66%) dos domicílios, em 1980, agregados) que caiu de 4,8% para familiar e outros parentes) ou famílias
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mas caiu para algo próximo de 50% 2,2% no mesmo período. compostas (núcleo familiar com paren-
em 2010. Isso aconteceu porque os tes e outras pessoas não aparentadas).
pais, tendo menor número de filhos e IHU On-Line – As famílias uni- Pessoas sem laços de parentesco e sem
pessoais são as que mais crescem? relacionamento afetivo, mas morando
José Eustáquio Diniz Alves e juntas (tipo uma república de estudan-
1 John Caldwell Calhoun (1782-1850):
político e filósofo político da Carolina Suzana Cavenaghi – Sim. Mas não é tes), são classificadas como arranjo
do Sul, nos Estados Unidos, na primeira correto usar o termo “famílias uni- não familiar pela metodologia da ONU.
metade do século XIX. Além de ter sido pessoais”, pois, de acordo com a de- O número de arranjos não familiares é
Vice-presidente dos Estados Unidos sob
as presidências de John Quincy Adams finição das Organizações das Nações pequeno, mas cresceu na última déca-
(1825-1829) e de Andrew Jackson (1829- Unidas – ONU, uma família é forma- da no Brasil. Deve-se ressaltar que até
1832), é conhecido pela defesa da escra- da por pelo menos duas pessoas e o censo 2000 era possível identificar
vidão, causa que levou os Estados Unidos
à Guerra da Secessão uma década após seus membros devem estar relacio- diretamente as chamadas famílias con-
sua morte. Foi ainda Secretário de Estado nados por meio de relações de con- viventes, por meio das perguntas sobre
e também o primeiro dos apenas dois vi- sanguinidade (parentesco), adoção as relações de parentesco dos morado-
ce-presidentes do país a renunciar. (Nota
da IHU On-Line) ou casamento. Dessa forma, pessoas res com os responsáveis do domicílio e

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 9


da família. Mas, no censo 2010, a con-
“A sociedade Paradoxalmente, quando o trabalho
Tema de Capa
vivência só pode ser obtida de forma doméstico diminui a contribuição
indireta e aproximada.
brasileira mudou relativa do esposo aumenta, mas
quando os afazeres da reprodução
IHU On-Line – Qual é o tipo de
família que mais sofre com as situa- em termos aumentam muito o custo recai sobre
as esposas. Isso indica que o maior
ções de pobreza? número de filhos reforça a tradicio-
José Eustáquio Diniz Alves e Su- demográficos e nal divisão sexual do trabalho, com o
zana Cavenaghi – Sem dúvida são as homem se concentrando na luta pelo
famílias monoparentais femininas, na composição “ganha pão” e a mulher assumindo
especialmente aquelas com filhos pe- os encargos da casa, da cozinha e dos
quenos. Por exemplo, a maioria dos plural das relações cuidados dos filhos.
beneficiados do programa Bolsa Fa-
mília é constituída por este tipo de familiares” IHU On-Line – O casamento ain-
arranjo. Isso acontece porque é muito da pode ser considerado um anseio
difícil para uma mãe combinar, ao mes- universal e um evento para toda a
mo tempo, as funções de provedora e tanto, em 2011 os Dincs somavam 5 vida?
cuidadora. As mães com filhos me- milhões e 600 mil pessoas no Brasil. José Eustáquio Diniz Alves e Su-
nores de 15 anos e sem cônjuge não Eles possuem maior poder de consu- zana Cavenaghi – O casamento é prati-
conseguem ter uma inserção integral e mo e, proporcionalmente, optam por camente um evento universal no Brasil,
permanente no mercado de trabalho, morar em apartamentos nas grandes mas somente se considerarmos todos
pois precisam dedicar muito tempo metrópoles. Praticamente não exis- os tipos de matrimônio. Em 1970, 65%
às questões de alimentação, saúde, tem casais Dinc entre os beneficiários dos casamentos aconteciam no civil
educação e cuidados dos filhos e da do Bolsa Família, pois duas pessoas e no religioso, 14% somente no civil,
moradia. Como resultado, recebem com renda de um salário mínimo cada 14% só no religioso e 7% eram uniões
salários mais baixos e precisam dividir um, morando juntas, são classificadas consensuais. Em 2010, o casamento no
uma renda baixa com seus dependen- como membros da “nova classe mé- civil e religioso caiu para 43%, só no ci-
tes. Acabam caindo na “armadilha da dia”. Em geral, o casal Dinc apresenta vil aumentou para 17%, só no religioso
pobreza” e não conseguem romper alta mobilidade social, mas é um tipo caiu para 3% e as uniões consensuais
com o ciclo intergeracional da pobreza. de família não procriativa, que reforça subiram para 37%.
Nesses casos, além dos direitos básicos a tendência nacional para uma taxa de
de cidadania, o governo deveria pro- fecundidade média abaixo do nível de Casamentos inconstantes
mover políticas de conciliação entre reposição. Mas os casamentos ficaram mais
trabalho e família, intermediando con- instáveis. Nos últimos 40 anos cresceu
dições de emprego mais favoráveis e IHU On-Line – Como entender o número de separações e divórcios.
equipamentos públicos para o cuidado que quanto maior o número de fi- Consequentemente, cresceu o número
dos filhos, como creches, restaurantes lhos, menor o tempo que os maridos de recasamentos, especialmente para
e lavanderias coletivos, escola em tem- dedicam aos afazeres domésticos? o caso dos homens. Na pirâmide bra-
po integral, etc. José Eustáquio Diniz Alves e Su- sileira existe um superávit de mulheres
zana Cavenaghi – Os dados mostram acima dos 25 anos, pois há uma sobre-
IHU On-Line – Que tipo de reali- que existe um forte descompromisso mortalidade masculina por causas ex-
dade social se reflete diante do cres- dos homens com o trabalho domés- ternas entre os jovens (especialmente
cimento de casos em que os mem- tico. Isso vem desde a época em que homicídios e acidentes de trânsito).
bros do casal trabalham e decidem Paulo Prado definiu a família patriar- No total, há um excedente de mais de
não ter filhos? cal brasileira como “Pai soturno, mu- 5 milhões de mulheres na população
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José Eustáquio Diniz Alves e lher submissa, filhos aterrados”. Na brasileira e a proporção daquelas sem
Suzana Cavenaghi – De regra, são os divisão do uso do tempo entre os côn- um companheiro aumenta com a ida-
casais sem filhos que apresentam ren- juges, em geral os homens se dedicam de, pois, para agravar o desequilíbrio,
da média domiciliar per capita mais mais às atividades produtivas (e re- os homens se casam com mulheres
elevada. Um caso particular são os ca- muneradas) e as mulheres se dedicam mais jovens. Existe, portanto, um dife-
sais sem filhos com marido e esposa mais às atividades reprodutivas (e não rencial de gênero e de idade no chama-
participando do mercado de trabalho. remuneradas). Isso acontece mesmo do “mercado matrimonial” brasileiro e
Nos Estados Unidos, esses tipos de nas famílias em que as mulheres tra- um número muito grande de mulheres
casais são chamados de Dinc (sigla balham fora e são penalizadas com a não encontra companheiro de outro
para Double Income No Children); no dupla jornada. A alocação desigual do sexo para casamento.
Brasil esse acrônimo significa: Duplo tempo é mais acentuada nas famílias
Ingresso Nenhuma Criança. O núme- tradicionais onde existe uma rígida IHU On-Line – Em que medida
ro de famílias Dinc estava em torno divisão sexual do trabalho, onde os o aumento das separações e dos di-
de um milhão de casais em 2000 e homens fazem o papel de provedores vórcios interfere nas mudanças das
chegou a 2,8 milhões de casais. Por- e as mulheres o papel de cuidadoras. estruturas familiares?

10 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


José Eustáquio Diniz Alves e Famílias poliafetivas de métodos contraceptivos, a entrada

Tema de Capa
Suzana Cavenaghi – Interfere, por As famílias poliafetivas se refe- crescente da mulher no mercado de
exemplo, na formação das chamadas rem aos arranjos familiares cujo nú- trabalho, a reversão do hiato de gê-
famílias reconstituídas, que são cada cleo não é monogâmico. São os “ca- nero na educação e a aceitação mais
vez mais frequentes no cenário na- sais de 3” ou o “casal de n pessoas”. ampla de novos arranjos familiares.
cional. Crescem as famílias em que Pode ser um arranjo formado por Cresceu o número de domicílios co-
tanto o marido como a esposa trazem um homem e duas mulheres, uma mandados por mulheres. Em grande
para a nova união os filhos de casa- mulher e dois homens (Uma Dona parte, isso se deve ao processo de
mentos anteriores, vindo a se somar Flor de verdade) ou qualquer outro empoderamento feminino, mas, em
com novos filhos que surgem do novo tipo de arranjo envolvendo mais de outros casos, a chefia feminina é de-
enlace. De repente se juntam filhos, duas pessoas no núcleo familiar. Mas corrência da ausência do cônjuge e
enteados, irmãos, madrasta, padras- o censo não levantou múltiplos rela- da falta de responsabilização dos pais
to, ex-esposo, ex-esposa e diversos cionamentos. A história mostra que a (homens) com os filhos.
avós. Costuma-se dar o nome de “fa- poligamia e a poliandria sempre exis-
mília mosaico” ao arranjo familiar em Mudança da sociedade brasileira
tiram de forma mais ou menos velada.
que os filhos do casal compõem um A novidade agora é que estes tipos de As transformações socioeco-
quadro formado por irmãos, meio- arranjos estão sendo visibilizados e nômicas e as mudanças ideacionais
-irmãos e não irmãos, pois os filhos estão sendo objeto de busca de base ocorridas nos campos ético, religioso
de união (ou uniões) anteriores do legal para serem reconhecidos na le- e cultural levaram a uma maior auto-
marido e da esposa não são irmãos, gislação brasileira. Existem, inclusive, nomia individual e a uma mudança na
mas ambos são meio-irmãos dos no- as famílias poliafetivas cujos membros relação custo/benefício entre as gera-
vos filhos do casal. Dessa forma, nem possuem poliorientação sexual. ções. A idade média da primeira rela-
todos os membros da “família mosai- ção sexual diminuiu e moças e rapazes
co” são parentes entre si, mas todos IHU On-Line – Em que consis- passaram a ter relações sexuais com
têm um grau de parentesco com a te “a complexidade e a diversida- mais frequência antes do casamento.
prole resultante da união do casal de das relações familiares do Brasil Cresceu o número de filhos nascidos
reconstituído. A “família mosaico” é contemporâneo”? fora do casamento (inclusive na gra-
apenas mais um tipo de arranjo fami- José Eustáquio Diniz Alves e Su- videz na adolescência). Aumentaram
liar dentre o leque de arranjos pos- zana Cavenaghi – De modo geral, po- a guarda compartilhada e o número
síveis, em uma sociedade cada vez de-se afirmar que o modelo hegemô- de crianças que vivem em duas casas.
mais marcada pela pluralidade e por nico de família nuclear era formado Cresceram as famílias homoafetivas
dinâmicas inovadores, que vão além por um homem e uma mulher que se e tem entrado na discussão a forma-
do modelo padrão. uniam em um matrimônio por toda a lização dos arranjos poliafetivos. Sem
vida e praticavam sexo com finalidade dúvida, a sociedade brasileira mudou
IHU On-Line – E os novos arran- generativa. Esse modelo de família ti- em termos demográficos e na compo-
jos, tais como famílias homoafetivas nha como base o casal heterossexual, sição plural das relações familiares.
e famílias poliafetivas? ele mais alto e um pouco mais velho, Os diferenciais de gênero e de gera-
José Eustáquio Diniz Alves e Su- com maior escolaridade, já com um ção são fundamentais para se com-
zana Cavenaghi – O Brasil ainda não emprego ou independência financeira preender a complexidade e a diversi-
possui dados suficientes para traçar e ela mais baixa, mais jovem, com me- dade das relações familiares do Brasil
a evolução destes arranjos. O censo nor escolaridade e voltada para a vida contemporâneo.
demográfico de 2010, conduzido pelo privada de dona de casa ou com em-
IBGE, abriu, pela primeira vez, a pos- prego extradoméstico com flexibilida- Referências
sibilidade dos casais do mesmo sexo, de e tempo parcial. Esse modelo de ALVES, J. E. D., CAVENAGHI, Suzana. Ten-
que moram no mesmo domicilio, se- dências demográficas, dos domicílios e das
família trazia embutida uma forte de-
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rem considerados um núcleo familiar. famílias no Brasil, IE/UFRJ, Aparte, Rio de
sigualdade de gênero. A menor auto- Janeiro, 25/08/2012. Disponível em: http://
Os dados indicaram a presença de nomia das mulheres na família era ge- www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/tendencias_
cerca de 60 mil casais formados por ralmente reforçada pela desigualdade demograficas_e_de_familia_24ago12.pdf.
pessoas do mesmo sexo e um deles social, em especial pela baixa taxa de CAVENAGHI, Suzana, ALVES, J. E. D. Domi-
se declarou como chefe. Mas, se os atividade laboral e pela segregação no cilios y familias en la experiencia censal del
casais moram em casas diferentes mercado de trabalho. O menor poder, Brasil: cambios y propuesta para identifi-
ou nenhum deles se declarou como a autoridade e o prestígio feminino car arreglos familiares. Notas de Población
chefe, não foram identificados pelo decorriam da desigualdade de acesso (Impresa). V. 92, p. 15 – 45, 2011. Disponí-
censo. As mulheres são maioria nos vel em> http: www.eclac.cl/publicaciones/
e de controle sobre os diversos recur-
arranjos homoafetivos, inclusive na xml/0/44570/lcg2496-P_2.pdf.
sos econômicos, sociais e culturais.
homoparentalidade. Portanto, já exis- ALVES, J. E. D, CAVENAGHI, Suzana. Mensura-
Contudo, esta “família padrão” come-
tem crianças com dupla “maternida- ción del déficit y de la demanda habitacional
çou a ruir na mesma época do fim da a partir de los censos de Brasil. Notas de Po-
de” ou dupla “paternidade”. Também padronização fordista de produção, blación, v. 93, p. 25-50, 2011. Disponível em:
não foi levantada a informação sobre ou seja, com a revolução sexual dos http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/9/
orientação sexual. anos de 1960, com a disponibilidade 45549/lcg2509-P_7.pdf.

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 11


Tema de Capa
Um novo papel social da mulher
brasileira
Segundo a professora e economista do IPEA, Ana Amélia Camarano, a
responsabilidade financeira familiar feminina veio para ficar no Brasil.
“42% da renda de todas as famílias brasileiras vem das mulheres. Não se
pode abrir mão disso. Imagine a renda diminuir 42% se as mulheres voltarem
para casa? É um caminho sem volta”
Por Graziela Wolfart

U
ma das novidades trazidas pelos da- envelhecem, porque ficam viúvas. “Como os
dos do censo 2010 foi o aumento do homens morrem, em média, sete anos antes
número de mulheres como chefes de que as mulheres, elas ficam viúvas e se tor-
família no Brasil. A pesquisadora do IPEA, Ana nam chefes de família. Elas têm a renda da
Amélia Camarano, não sabe se isso é positivo pensão por morte e podem complementar
ou negativo. Para ela, trata-se de uma impor- com outras fontes de renda, formais ou infor-
tante mudança da sociedade. E o que configu- mais”, explica.
ra essa mudança seria a maior independência Ana Amélia Camarano de Mello Moreira
econômica da mulher, sua maior participação possui graduação em Economia e mestrado
no mercado de trabalho, maior renda e maior em Demografia pela Universidade Federal
escolaridade. “Por outro lado”, continua a de Minas Gerais, e doutorado em Population
professora, na entrevista que concedeu por Studies, pela London School of Economics.
telefone à IHU On-Line, “a independência É professora na Escola Nacional de Ciências
econômica leva a um maior número de mu- Estatísticas e técnica em pesquisa e planeja-
lheres que moram sozinhas, e por isso che- mento do Instituto de Pesquisa Econômica
fiam a família, e também a um maior índice Aplicada – IPEA. Tem experiência na área de
de separação, o que, consequentemente, as Demografia, com ênfase em envelhecimento
tornam chefes de família”. Segundo a análise populacional.
de Ana Amélia, é mais comum que as mulhe- Confira a entrevista.
res assumam esse papel na medida em que

IHU On-Line – Quais os pontos isso chefiam a família, e também a mulher. Essa mulher, que era tradi-
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positivos e negativos do crescimento um maior índice de separação, o que, cionalmente a cuidadora (enquanto
das mulheres como chefes de família, consequentemente, as tornam chefes que o homem era o provedor), hoje é
dado apontado pelo último censo? de família. uma provedora importante, mas con-
Ana Amélia Camarano – Na ver- tinua mantendo seu papel e função de
dade, não sei se isso é positivo ou ne- IHU On-Line – Qual a influência cuidadora.
gativo. Esse é um fato, uma mudança da melhora na participação das mu-
da sociedade. O que configura essa lheres no mercado de trabalho e nos IHU On-Line – E isso não aca-
mudança é a maior independência níveis de escolaridade e renda para ba sobrecarregando a mulher ainda
econômica da mulher, sua maior par- que elas crescessem como chefes de mais?
ticipação no mercado de trabalho, família? Que tipo de “mudança socio- Ana Amélia Camarano – Acre-
maior renda, maior escolaridade. lógica” esse dado indica? dito que sim, porque a mulher con-
Por outro lado, a independência eco- Ana Amélia Camarano – Ele in- tinua mais envolvida nas atividades
nômica leva a um maior número de dica uma maior participação da mu- domésticas, mesmo trabalhando fora.
mulheres que moram sozinhas, e por lher, indica um novo papel social da

12 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


Por isso se fala da dupla jornada de
“A fecundidade

Tema de Capa
trabalho.

IHU On-Line – Qual a relação está abaixo do


entre o envelhecimento e a coloca-
ção das mulheres como chefes de nível de reposição, Leia as
família? É mais comum que elas as-
sumam esse papel na medida em que aliás, bem abaixo”
envelhecem?
Ana Amélia Camarano – Sim,
porque elas ficam viúvas. Como os ho- mulher, mulheres e homens morando
mens morrem, em média, sete anos sozinhos, etc.
antes que as mulheres, elas ficam
viúvas e se tornam chefes de família. IHU On-Line – A partir da nova
Elas têm a renda da pensão por morte
e podem complementar com outras
configuração familiar que se instaura
segundo os dados do último censo,
entrevistas
fontes de renda, formais ou informais. quais os desafios para a previdência
no Brasil, tendo em vista a dinâmica
IHU On-Line – Em sua opinião, populacional?
a responsabilidade financeira fami- Ana Amélia Camarano – Primei-
liar feminina veio para ficar ou é algo ramente, temos a questão do envelhe-
transitório? cimento, ou seja, mais pessoas rece-

do dia no
Ana Amélia Camarano – Eu acho bendo benefício por um tempo maior.
que ela veio para ficar. 42% da renda Depois, temos a legislação previdenci-
de todas as famílias brasileiras vem das ária em relação à mulher, que ainda é
mulheres. Não se pode abrir mão disso. baseada nos contratos tradicionais de
Imagine a renda das famílias no país gênero, em que a mulher é a cuidado-
diminuir 42% se as mulheres voltarem ra e dependente. Por isso ela recebe
para casa? É um caminho sem volta. uma pensão de viuvez. Isso também
acontece com os homens, mas como é
IHU On-Line – O que isso repre- baixa a proporção de homens viúvos,
senta em relação às características da
mulher contemporânea?
elas recebem o valor integral, quando
viúva, do benefício do marido. Isso vai sítio do IHU:
Ana Amélia Camarano – Ela é ter que mudar, porque hoje a mulher
uma mulher mais independente, in- trabalha. Ela terá a sua aposentadoria.
clusive sexualmente. Essa é outra A legislação brasileira também permite
revolução que foi feita e impacta os que a mulher acumule os benefícios
arranjos familiares, que foram a sepa- previdenciários dela com a pensão por
ração da sexualidade da reprodução e morte do marido, porque isso é ainda
a separação da sexualidade do casa- fruto da visão de que a mulher era ape-
mento. Isso permite que as mulheres nas cuidadora.
tenham uma vida mais independente
que as do passado, tanto econômica
como sexual e socialmente.
IHU On-Line – O que a senho-
ra destaca em relação aos dados do
www.ihu. www.ihu.unisinos.br
censo 2010 sobre a taxa de fecun-
IHU On-Line – Como essa “nova didade da mulher brasileira e o que
mulher” repercute na configuração pode ser dito sobre as projeções po-
tradicional das famílias? pulacionais para os próximos anos?
Ana Amélia Camarano – Temos Ana Amélia Camarano – A fe-
a diminuição da família tradicional, cundidade está abaixo do nível de

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que é aquela formada por casal com reposição, aliás, bem abaixo. Isso vai
filhos. Em 1980, essa família era qua- acarretar que, em torno de 2030, a
se 70% do total de famílias brasileiras. população brasileira começará a di-
Hoje é menos de 50%. O que temos minuir e a força de trabalho começará
são novos arranjos: famílias chefiadas também a diminuir, o que causará um
por mulheres sem marido, famílias impacto importante caso não haja um
chefiadas por mulheres com marido, grande aumento de produtividade,
famílias chefiadas por homens sem até no crescimento do PIB.

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 13


Tema de Capa
Transformações na estrutura das
famílias brasileiras
É a partir do preenchimento do quadro de moradores do questionário, onde são
codificadas as relações de parentesco que existem em cada unidade doméstica, que
podemos construir os distintos tipos de família. Para o censo 2010, essa relação foi
bem mais extensa do que nos censos anteriores, destacam Barbara Cobo e Gilson
Gonçalves de Matos
Por Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

Q
uestionados a respeito de como defi- as famílias chamadas reconstituídas, onde o
nir o novo modelo de família que sur- cônjuge já viveu união anterior e pode ou não
ge no Brasil a partir dos dados do cen- trazer filhos para morar com o novo cônjuge”,
so 2010, Barbara Cobo e Gilson Gonçalves de explicam. Para eles, a inovação no censo 2010
Matos avaliam, em entrevista concedida por foi melhorar o instrumento de captação des-
e-mail à IHU On-Line, que o “modelo” não é sas mudanças, aprimorando o questionário e
exatamente novo, mas fruto de uma série de permitindo construir uma tipologia de família
mudanças na organização das famílias que mais diferenciada a partir das estatísticas co-
vem ocorrendo nos últimos anos em resposta letadas junto à população brasileira.
à queda da taxa de fecundidade, à maior es- Barbara Cobo é doutora em Economia
perança de vida, ao papel da mulher no mer- pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
cado de trabalho, ao avanço na escolaridade – UFRJ, e especialista em Análise de Políticas
das mulheres, à postergação da maternidade Públicas. Trabalha como técnica do Instituto
para idades mais velhas e ao aumento do nú- Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE na
mero de separações e divórcios. Gerência de Indicadores Sociais.
“Esse conjunto de fatores vem resultando Gilson Gonçalves de Matos é estatístico
numa maior diversificação de arranjos em di- formado pela Universidade de Brasília – UnB
reção às famílias de tamanho mais reduzido, e mestrando em engenharia elétrica pela
com avós convivendo com netos, a ausência PUC-Rio de Janeiro. Trabalha como técnico do
de cônjuge no domicílio e, mesmo no tipo ain- IBGE na Gerência de Indicadores Sociais.
da predominante ‘casal com filhos’, existem Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Como se define mais velhas e ao aumento do núme- danças, aprimorando o questionário e
o novo modelo de família que surge ro de separações e divórcios. Esse permitindo construir uma tipologia de
no Brasil a partir dos dados do censo conjunto de fatores vem resultando família mais diferenciada a partir das
2010? numa maior diversificação de arran- estatísticas coletadas junto à popula-
Barbara Cobo e Gilson Gonçal- jos em direção às famílias de tamanho ção brasileira.
ves de Matos – O “modelo” não é mais reduzido, com avós convivendo
exatamente novo, mas fruto de uma com netos, a ausência de cônjuge no IHU On-Line – Qual a impor-
série de mudanças na organização domicílio e, mesmo no tipo ainda pre- tância da dimensão estatística para
das famílias que vem ocorrendo nos dominante “casal com filhos”, existem o conhecimento das diferentes con-
últimos anos em resposta à queda as famílias chamadas reconstituídas, figurações familiares existentes na
da taxa de fecundidade, à maior es- onde o cônjuge já viveu união ante- sociedade brasileira? Nesse senti-
perança de vida, ao papel da mulher rior e pode ou não trazer filhos para do, qual a principal novidade que
no mercado de trabalho, ao avanço morar com o novo cônjuge. A ino- destacam a partir dos dados do úl-
na escolaridade das mulheres, à pos- vação no censo 2010 foi melhorar o timo censo em relação às famílias
tergação da maternidade para idades instrumento de captação dessas mu- brasileiras?

14 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


Barbara Cobo e Gilson Gonçal-
“A inovação de família, mas limitadas às especi-

Tema de Capa
ves de Matos – A investigação e quan- ficidades referentes à operação de
tificação dos arranjos familiares nos
permite traçar panoramas e entender no censo 2010 campo e coleta das informações. Mui-
tas vezes determinada informação é
as transformações na estrutura das
famílias brasileiras, sobretudo nas úl- foi melhorar o de difícil entendimento por parte da
população, de difícil aplicabilidade ou
timas décadas. Como novidades, po- subjetiva demais a ponto de não se-
demos destacar os conceitos de uni- instrumento de rem interpretadas por todos da mes-
dades domésticas e famílias adotados ma forma. Como as pesquisas domi-
neste censo bem como a identificação captação dessas ciliares do IBGE não têm por objetivo
das famílias conviventes, que não foi o estudo de famílias somente, mas
feita no campo, mas de forma deriva- mudanças, uma ampla gama de temas sociais,
da a partir de perguntas existentes no opta-se pela forma mais objetiva de
questionário do censo. É a partir do aprimorando captação da informação. O entrevis-
preenchimento do quadro de mora- tador primeiramente pergunta quem
dores do questionário, onde são codi-
ficadas as relações de parentesco que
o questionário seria a pessoa responsável pelo do-
micílio (assim indicada pelos demais
existem em cada unidade doméstica,
que podemos construir os distintos ti-
e permitindo membros) e a partir desta identifica-
ção começa a enumerar as relações
pos de família. Para o censo 2010 essa
relação foi bem mais extensa que nos
construir uma de parentesco dos demais moradores
em relação a esta pessoa. Com essa
censos anteriores.
tipologia de família identificação, a construção dos tipos é
realizada de forma a retratar as princi-
IHU On-Line – O que destacam
sobre os aspectos metodológicos
mais diferenciada pais formas de organização das famí-
lias brasileiras.
dos conceitos utilizados pelo censo
demográfico de 2010 referentes à a partir das IHU On-Line – Segundo o último
família?
Barbara Cobo e Gilson Gonçal- estatísticas censo, quais são os principais tipos
de núcleo familiar? Em que se dife-
ves de Matos – Primeiramente, a in- rem do censo 2000, por exemplo?
trodução dos conceitos de unidade coletadas junto Barbara Cobo e Gilson Gonçal-
doméstica e famílias. ves de Matos – A maior parte dos
à população núcleos é ainda composta por casais
Unidade doméstica com filhos, seguidos dos casais sem fi-
A unidade doméstica é a deno- brasileira” lhos e arranjos monoparentais, sobre-
minação que se dá ao conjunto de tudo os femininos. Merece destaque
pessoas que vive em um domicílio o crescimento da proporção de casais
particular, cuja constituição se baseia parentesco com o responsável, bem sem filhos entre 2000 e 2010, sendo
em arranjos feitos pela pessoa, indivi- como dos quesitos de maternidade causas possíveis para o fenômeno a
dualmente ou em grupos, para garan- e conjugalidade (existência de filhos maior participação da mulher no mer-
tir alimentação e outros bens essen- e cônjuges no domicílio e respectivas cado de trabalho, as baixas taxas de
ciais para sua existência. identificações). fecundidade e o envelhecimento da
população.
Famílias IHU On-Line – Como se dá o pro-
Quanto às famílias, foram con- IHU On-Line – A partir dos da-
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cesso de concepção de unidade fami-
sideradas como conjuntos formados liar desenvolvido pelo IBGE? Em que dos do último censo, como a questão
por duas ou mais pessoas ligadas por sentido ele se relaciona com o con- econômica se reflete na forma de as
laços de parentesco, consanguinidade ceito sociológico de família? famílias se estruturarem?
ou adoção. Logo, os arranjos forma- Barbara Cobo e Gilson Gonçal- Barbara Cobo e Gilson Gonçal-
dos pelo responsável e por não pa- ves de Matos – O Instituto Brasileiro ves de Matos – Ainda não realizamos
rentes (agregados, pensionistas, em- de Geografia e Estatística – IBGE se estudos aprofundados acerca desta
pregados domésticos, etc.) não foram baliza em recomendações interna- questão. Mas a distribuição dos tipos
considerados famílias, a exemplo dos cionais para coleta de informações, de família por classes de rendimento
censos anteriores. em especial a Comissão de Estatísti- familiar mostra que o tipo “casal com
cas da Organização das Nações Uni- filhos” é mais comum nas famílias com
Identificação de famílias das – ONU, seguindo-as sempre que maiores rendimentos (chega a 35%
conviventes possível, considerando as adequações dos arranjos em famílias com mais
Quanto à identificação das famí- e adaptações necessárias à realidade de cinco salários mínimos per capita.
lias conviventes, a derivação metodo- brasileira. E essas recomendações se Para as famílias com até ¼ de salário
lógica se deu a partir das relações de baseiam nos conceitos sociológicos mínimo per capita, esse percentual é

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 15


de 4,5%.). “Casal com filhos” é o tipo
“Merece destaque ra, mas que não aparece no questio-
Tema de Capa
mais comum em todas as classes de nário do IBGE? Como se caracterizam
renda, mas mais representativo nas
classes com menor rendimento, assim o crescimento as famílias “novíssimas”?
Barbara Cobo e Gilson Gonçal-
ves de Matos – Na verdade, entre os
como mulher sem cônjuge com filhos.
Observa-se também que dentre as da proporção de casais com filhos, foram identificados
famílias conviventes, a maioria é sem aqueles reconstituídos (com filhos
rendimento e formada por mulher casais sem filhos de uniões anteriores), os quais não
sem cônjuge com filho, o que sugere foram investigados nos censos passa-
que podem ser filhas que tiveram fi- entre 2000 e 2010, dos, pelas próprias categorias da va-
lho e continuaram a viver com os pais. riável de relação de parentesco com
sendo causas o responsável em tais pesquisas. Os
IHU On-Line – Que políticas pú- únicos arranjos familiares não iden-
blicas podem ser sugeridas a partir possíveis para tificados são os monoparentais mas-
dos resultados do censo 2010 sobre culinos, quando estes conviviam com
as famílias brasileiras?
Barbara Cobo e Gilson Gon-
o fenômeno a um núcleo principal. Porém, este
caso é pouco frequente no contexto
çalves de Matos – Diversas políticas
públicas têm sido formuladas tendo
maior participação brasileiro. Os demais tipos de famí-
lias foram identificados a partir do
a família como unidade beneficiária,
como o próprio Bolsa Família, por
da mulher no questionário.

exemplo. As informações devem ser


cruzadas com as de rendimento, sane-
mercado de IHU On-Line – O que o Brasil
pode aprender com os outros países
amento e trabalho para a formulação
de políticas públicas específicas para
trabalho, as sobre a forma de recensear sua po-
pulação, principalmente em relação
essas áreas.
baixas taxas de às novas modalidades familiares?
Barbara Cobo e Gilson Gonçal-
IHU On-Line – Quais os limites
que devemos levar em conta ao ana- fecundidade e o ves de Matos – O IBGE segue reco-
mendações internacionais de coleta
lisarmos os dados do censo em rela-
ção à família? Quer dizer, os dados envelhecimento de informações e busca apreender
exemplos internacionais de sucesso
são reportados de maneira sincera para sempre melhorar as suas for-
ao recenseador, quando o assunto é da população” mas de captação. No caso do tema
a homossexualidade, por exemplo? família, aumentamos o número de
Barbara Cobo e Gilson Gonçal- relações de parentesco possíveis a
ves de Matos – Isso não é possível IBGE, como a Pesquisa Nacional por fim de permitir a constituição de
afirmar. O recenseador preenche o Amostra de Domicílios – PNAD e a tipos mais diferenciados específi-
formulário com as respostas dadas Pesquisa de Orçamentos Familia- cos. Alguns ainda não são possíveis
pelos entrevistados, sem interferir res – POF, o que confere robustez e pelos dados, como os casais que
nas repostas (neutralidade). A per- consistência aos dados censitários. vivem em casas separadas. Mas a
gunta sobre a existência de “cônju- O IBGE não investigou homossexua- ideia é que, aos poucos, possamos
ge do mesmo sexo” é relativamen- lidade no censo. aprimorar nossos instrumentos de
te nova, mas as demais mostram coleta e acompanhar cada vez de
seguir as tendências observadas IHU On-Line – Que tipo de famí- mais perto às mudanças em curso
em outras pesquisas amostrais do lia já é comum na sociedade brasilei- na sociedade.
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16 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406
Tema de Capa
As telenovelas acompanham as
mudanças da família brasileira
Esther Hamburger defende que há uma diversidade de arranjos familiares nas novelas
que se relaciona com a diversidade de arranjos que existe na sociedade brasileira

Por Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

A
vida imita a arte ou a arte inspira a no. Ao trazer para o horário nobre, a novela
vida? Para a professora Esther Ham- legitima a existência do problema e o reco-
burger, tanto a novela tem inspiração nhece de uma forma que todo mundo assiste.
na realidade como ela é influenciadora da Então, todos compartilham aquelas histórias
vida social real. “Porque a novela faz parte e podem usá-las para discutir suas próprias
da realidade. Ela capta coisas, as transforma opiniões e seus próprios problemas”.
e depois expressa. Esse é o processo. Como é Esther Hamburger é professora da Univer-
feita ao mesmo tempo em que vai ao ar, ela sidade de São Paulo – USP, Ph.D em Antro-
se apoia muito nessa dinâmica de captar as pologia pela Universidade de Chicago, com
ansiedades que estão na sociedade e devol- pós-doutorado pela Universidade do Texas,
vê-las”, explica, em entrevista concedida por Austin. É crítica e ensaísta, autora do livro O
telefone para a IHU On-Line. Na visão da pes- Brasil antenado: a sociedade da novela (Rio
quisadora, “as novelas fazem sucesso quando de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005).
provocam temas polêmicos, quando trazem à Confira a entrevista.
tona temas que as pessoas lidam no cotidia-

IHU On-Line – Qual é o modelo os mais variados tipos de família. In- sinalizar sobre novas modalidades
de família que é vendido pelas tele- clusive a novela valorizou a família de família que surgem no Brasil?
novelas atuais? do Tufão, um dos personagens prin- Esther Hamburger – Não acho
Esther Hamburger – Não há cipais, que, no fim, tinha filhos que que as pessoas vão seguir esse mo-
um modelo de família. Há diversos. não eram seus filhos, mas a ideia delo. As pessoas não imitam o que a
Há uma diversidade de arranjos fa- de família permaneceu valorizada, novela mostra. A novela serve como
miliares que se relaciona com a di- mesmo que admitindo uma diversi- um repertório comum entre as pes- www.ihu.unisinos.br
versidade de arranjos que existe dade. Isso tem a ver com o sucesso soas mais diferentes, que serve para
na sociedade brasileira. Então, por da novela também. cada um colocar seu ponto de vista:
exemplo, em Avenida Brasil1, tinha discordar, concordar, expor outras
IHU On-Line – Guardadas as de- formas. Não penso que a novela vá
1 Avenida Brasil é uma telenovela vidas proporções entre ficção e vida estimular esse tipo de arranjo, mes-
brasileira produzida e exibida pela real, o que o casamento entre o per- mo porque sabemos que o proble-
Rede Globo de 26 de março de 2012
a 19 de outubro de 2012, sucedendo
sonagem Cadinho, da novela Aveni- ma existe. E a novela faz justamente
Fina Estampa e sendo sucedida por da Brasil, e suas três mulheres, pode uma valoração positiva das famílias.
Salve Jorge. Escrita por João Emanuel É importante ressaltar que as nove-
Carneiro com a colaboração de Antonio
Prata, Luciana Pessanha, Alessandro Adriana Esteves, Cauã Reymond, Murilo las fazem sucesso quando provocam
Marson, Márcia Prates e Thereza Falcão Benício, Eliane Giardini, Marcos Caruso, temas polêmicos, quando trazem à
com direção de Gustavo Fernandez, Vera Holtz, José de Abreu, Marcello
Thiago Teitelroit, Paulo Silvestrini, Novaes, Heloísa Perissé, Nathalia Dill, tona temas que as pessoas lidam no
André Camara e Joana Jabace com Alexandre Borges, Débora Bloch, Camila seu cotidiano. Ao trazer para o horá-
direção geral de José Luiz Villamarim e Morgado, Carolina Ferraz, Leticia Isnard rio nobre, a novela legitima a exis-
Amora Mautner e direção de núcleo de e Ísis Valverde interpretaram os papéis
Ricardo Waddington. Débora Falabella, principais. (Nota da IHU On-Line) tência do problema e o reconhece de

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 17


uma forma que todo mundo assiste.
“O país vem três famílias. A novela, ao longo dos
Tema de Capa
Então, todos compartilham aquelas anos, foi fortalecendo uma ideia de
histórias e podem usá-las para dis-
cutir suas próprias opiniões e seus
mudando muito mulher que dá conta de muitas coi-
sas: a mulher que trabalha, que tem
próprios problemas.
nos últimos desejo e direito ao prazer. A nove-
la legitimou a separação, inclusive
IHU On-Line – De forma geral,
como o povo brasileiro reagiu dian-
50 anos e são antes de o divórcio ser aprovado no
Brasil. Sem dúvida, ela acompanha
te de um marido com três esposas
(Cadinho) e uma mulher (Suélen)
mudanças muito esse processo de independência da
mulher, mas problematiza pouco as
com dois maridos? O que mais cho-
ca e o que mais provoca identifica-
radicais. Tão relações de gênero propriamente
ditas no que diz respeito à distri-
ção e simpatia?
Esther Hamburger – A solução
radicais que buição do trabalho doméstico, por
exemplo. Ela não necessariamente
do Cadinho, com três mulheres, e da
Suélen, com dois homens, na verda-
afetam a estrutura entra nessa discussão. Em geral, se
favorece o modelo de supermulher,
de, é um tratamento bem humorado
para tensões que as pessoas enfren-
familiar” que dá conta de tudo, de ser mãe,
mulher, esposa, profissional. Nesse
tam no dia a dia, pessoas dos mais sentido, embora as mulheres te-
variados tipos, das mais diferentes miliar. É uma combinação de fatores nham, ao longo dos anos, ganhado
idades e gêneros. A novela reconhe- que levam a isso. Não existe uma muito espaço, problematiza-se pou-
ce que o problema existe, mas o re- única causa. Uma coisa interessante co as consequências dessa multipli-
solve com bom humor. é que, segundo o último censo, au- cidade de tarefas das quais a mulher
mentou o número de pessoas que é cobrada.
IHU On-Line – Em sua opinião, vivem sozinhas. Isso, em novela, é
a novela tem inspiração na realida- muito raro aparecer. Então, podemos IHU On-Line – Como a fragmen-
de ou é influenciadora da vida social ver que a ligação não é imediata. Há tação da família e a liberalização das
real? muitas mediações acontecendo. De relações conjugais têm aparecido
Esther Hamburger – As duas forma geral, a novela capta as trans- nas novelas da Globo nos últimos
coisas. Porque a novela faz parte da formações que vêm ocorrendo na fa- anos?
realidade. Ela capta coisas, as trans- mília brasileira. Às vezes, ela devolve Esther Hamburger – As novelas
forma e depois expressa. Esse é o reforçando alguma tendência e às acompanham o processo de mudan-
processo. Como ela é feita ao mesmo vezes ela devolve com alguma solu- ça social. Às vezes elas estimulam e
tempo em que vai ao ar, ela se apoia ção inusitada e criativa, como foi o às vezes elas “seguram”. Não são um
muito nessa dinâmica de captar as caso desta última. espelho sem distorções. Por outro
ansiedades que estão na sociedade e lado, elas não estão fora da reali-
devolvê-las. IHU On-Line – Considerando dade, mas fazem parte dela. O que
que, segundo o último censo, tem vimos foi essa novela mais recente
IHU On-Line – Resgatando a aumentado o número de mulheres (Avenida Brasil) tomando iniciativas
trajetória histórica das telenovelas chefes de família, como aparece nas muito inesperadas e inovadoras, o
brasileiras, o que mais mudou em novelas a mudança do protagonis- que não quer dizer que as pessoas
relação ao modelo de família nos mo feminino na sociedade – dentro vão seguir o modelo que a novela
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últimos anos? e fora de casa? está oferecendo. Só quer dizer que


Esther Hamburger – É muito in- Esther Hamburger – No caso as pessoas, dentro dos próprios pro-
teressante pensar a novela em rela- das famílias chefiadas por mulheres, blemas, verão que esses problemas
ção aos modelos de família. Porque principalmente nessa última novela, não são especificamente seus, mas
há uma diversificação crescente na até que havia alguns casos. No caso são compartilhados e reconhecidos
sociedade brasileira, como os demó- da família do Tufão, ele era o che- por todos e podem pensar em solu-
grafos mostram, e as novelas acom- fe. Embora os filhos não sendo dele, ções criativas para eles. De qualquer
panham isso tudo, pois elas fazem ele continua se considerando o pai forma, a personagem da Suélen é
parte de um processo de mudança e é o chefe da família. Depois, tem muito interessante, talvez a mais
demográfica do Brasil. O país vem a família da Lucinda (no núcleo do inovadora dessa novela, pois ela
mudando muito nos últimos 50 anos lixão), chefiada por ela. O Cadinho tenta uma saída que envolve não
e são mudanças muito radicais. Tão se tornou o chefe de uma grande só dois homens como também uma
radicais que afetam a estrutura fa- família com três mulheres, ou de afirmação do homossexualismo.

18 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


Tema de Capa
“Estamos vivendo cada vez mais
numa sociedade de indivíduos”
Portanto, a sociedade tem que aprender a viver ou conviver com famílias diferenciadas
Por Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

E
m entrevista concedida por e-mail à IHU Thierry Linard de Guertechin  é jesuíta,
On-Line, Thierry Linard de Guertechin, nascido na Bélgica, residente permanente no
demógrafo, acredita que a família tradi- Brasil desde 1975. Sua formação básica é nas
cional estável e com filhos está perdendo sua áreas de Filosofia e Teologia, com mestrado
hegemonia. “Pode também haver reinvindi- em Demografia, pela Universidade Católica
cações de constituir outros tipos de famílias. de Lovaina e em Geografia na Universidade
Dois fatores exercem uma razão de causa a de Liège, Bélgica. Professor na PUC-Rio des-
efeito e reciprocamente: a nupcialidade e a de 1976 a 1996, no Departamento de Socio-
fecundidade. Segundo o censo demográfico logia e Ciências Políticas, foi diretor regional
de 2010, das 81 milhões de pessoas de mais da Fundação Fé e Alegria (1990-1997) e assis-
de 10 anos que viviam um tipo de união con- tente espiritual da Ação Social Padre Anchieta
jugal (metade da população de mais de 10 – ASPA, na favela da Rocinha. Exerce ativida-
anos de idade), registram-se 51 milhões de des de assessoria ao Setor Pastoral Social da
pessoas casadas legalmente e 30 milhões de CNBB. Pesquisador e professor no Centro de
pessoas vivendo em ‘uniões consensuais’”, Investigação e Ação Social e no Instituto Bra-
diz. E completa: “Há décadas que este efetivo sileiro de Desenvolvimento – CIAS/IBRADES
não para de aumentar e tornou-se matriz dos desde 1980. Atualmente é diretor do CIAS/
rearranjos familiares. Por outro lado, hoje, BRADES
para quatro casamentos celebrados, registra- Confira a entrevista.
-se um divórcio no ano corrente”.

IHU On-Line – No Brasil, a famí- IHU On-Line – O que representa Como os homens se posicionam neste
lia tradicional (pai, mãe e filhos) já para a família o fato de que as mulhe- cenário que não é tão novo? Observa-
não é mais maioria (49,9%). O que res já assumem a responsabilidade mos uma minoria de pais com filhos,
isso significa sobre as mudanças que por muito mais lares do que há dez da ordem de 2,3%. Por outro lado, os
a família vem sofrendo atualmente? anos? Como o homem se posiciona e homens têm mais propensão que as www.ihu.unisinos.br
Thierry Linard de Guertechin se sente nesse novo cenário? mulheres em realizar outra união de-
– Não diria que a família tradicional Thierry Linard de Guertechin – O pois da separação ou do abandono da
está sofrendo alguma coisa. Só que fato de famílias chefiadas por mulhe- mãe solteira.
ela vê sua hegemonia diminuir em res vivendo com filhos é, na verdade,
termos de maioria absoluta, perden- uma tendência que começou nas dé- IHU On-Line – Que tipo de socie-
do espaço na sociedade brasileira, cadas anteriores, eu diria nos anos dade pode estar se formando com fa-
pois assistimos a uma multiplicação e 1960, e que está continuando a cres- mílias onde muitos netos estão mo-
diversificação de outros arranjos fa- cer. Hoje (no censo de 2010), regis- rando com avós?
miliares. Se não me engano, do censo tram-se 8,5 milhões de famílias che- Thierry Linard de Guertechin –
demográfico de 2000 a 2010, no re- fiadas por mulheres, seja 15,1% do Ainda bem que têm os avós que aju-
gistro de tipos de famílias, passamos total das famílias. Elas eram da ordem dam as famílias monoparentais ou
de 11 a 19, sendo 18 que se distin- de 12% há dez anos. Segundo pesqui- não, no mesmo domicílio ou não. O
guem, no censo de 2010, da família sas, são famílias de baixa renda em fato de a família estar constituída de
tradicional nuclear composta de pai, sua maioria, o que foi comentado com três gerações é de suma importância
mãe e filho (s). a feminilização da pobreza no Brasil. para seu bem-estar ou até para sua

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 19


sobrevivência. Em não poucos casos IHU On-Line – Falou-se que a Thierry Linard de Guertechin –
Tema de Capa
os avós estão contribuindo de manei- família iria acabar, tal como se disse Se o último tipo de família se torna he-
ra significativa à renda familiar. Pode quando a mulher conquistou o direi- gemônico, a sociedade vai encontrar
ser um resquício da família composta to ao voto. Entretanto, a família se dificuldades para sobreviver e garantir
do passado. Nesse caso, não seria uma adapta, se renova. Qual a importân- a sobrevivência da sua própria popu-
novidade. Mas creio que a sua perma- cia dos laços afetivos nesse sentido? lação envelhecida. Nas evoluções da
nência ou continuidade é resposta a Thierry Linard de Guertechin – nupcialidade, da fecundidade e das
uma situação nova por meio de arran- Se a família tradicional não tem mais famílias, não é fácil determinar se é o
jo familiar antigo. a maioria absoluta, ela fica ainda bem ovo que vem da galinha ou se é a gali-
representativa sendo modelo domi- nha que vem do ovo. Um fato seguro
IHU On-Line – O que esperar nante de referência a partir do qual se é a queda da fecundidade da mulher
da família chamada “mosaico” (a do definem as novas formas de famílias. que, no Brasil, passou de mais de 6 a
meu, do seu e dos nossos filhos)? Os pesquisadores chamam a atenção menos de 2 nascidos vivos por mulher,
Thierry Linard de Guertechin – A sobre as novidades e adaptações em isso em 50 anos, quer dizer em duas
família chamada “mosaico” resulta de termos de arranjo familiar. De fato, gerações! Por outro lado, o Código Ci-
histórias de vida marcadas por uniões apesar dos pesares, a família está vil já, em parte, se adaptou às outras
instáveis, separações e novas uniões, formando um valor para as pessoas. formas de famílias que a tradicional.
juntando os filhos tanto de um par- Movimentos femininos de emancipa- Reconhecem os direitos dos cônju-
ceiro como do outro. Um ponto final ção têm seu papel na transformação ges. Mas sempre o direito vem depois
desse processo pode resultar em fa- atual; isso gera efeitos também sobre das mudanças de costumes. Por outro
mílias com padrastos e/ou madrastas as famílias tradicionais. Trata-se de re- lado, segmentos da sociedade não re-
tomando conta dos filhos dos antigos ver o papel da mulher em família na conhecem algumas formas de arranjos
parceiros. Trata-se de uma reorgani- sociedade. A família faz parte da so- familiares negando a esses o nome de
zação familiar que alguns qualificam ciedade, de uma sociedade que luta “casamento” e os direitos (e deveres?)
de desagregação, outros de rearran- ou deveria lutar mais pela igualdade consequentes.
jo familiar pelas condições da vida. É entre homens e mulheres. Interes-
uma solução pragmática que permite sante é a percepção, no imaginário Posição da Igreja
manter um lar para crianças fruto de popular, de muitas mulheres que não A Igreja manifesta reservas níti-
outras uniões, solução mais desejável querem o casamento nem no papel das diante dessa diversidade e multi-
do que o abandono dessas crianças a no religioso, pois, como dizem, “casar plicação de famílias de tipos diferentes
sua sorte. dá azar”. Nesse caso, o casamento é da família tradicional que conhecemos
visto como um vínculo que submete no passado como hegemônica. Mas
IHU On-Line – Podemos afirmar legalmente a mulher aos caprichos do não podemos, no concreto da vida,
que as novas famílias prenunciam um marido. Pelo contrato de matrimônio idealizar a família tradicional, pois, se-
século diferente? Como seria a so- se fixa uma situação desigual que per- gundo eminentes canonistas, o matri-
ciedade do futuro a partir das novas dura e perde a flexibilidade de união mônio católico sofre, em não poucos
constituições familiares? mais informal. Também é verdade que casos, de validade canônica. Abre-se
Thierry Linard de Guertechin – A muitos homens não estão dispostos a aqui um campo pastoral para uma
sociedade tem que aprender a viver assumir compromissos, o que é outra melhor compreensão da vida do casal
ou conviver com famílias diferencia- forma de desigualdade. Uma última e a celebração do sacramento do ma-
das. A família tradicional estável e com forma de adaptação que evidencia a trimônio. Para concluir, uma inquieta-
filhos está perdendo sua hegemonia. busca de laços afetivos, mas dentro ção: estamos vivendo cada vez mais
Pode também haver reinvindicações de uma sociedade em que o dinheiro numa sociedade de indivíduos.
de constituir outros tipos de famílias. e o indivíduo são sobrevalorizados, é
Dois fatores exercem uma razão de a família “DINC”1. Morando ou não
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causa a efeito e reciprocamente: a juntos, trata-se de uma união afetiva


nupcialidade e a fecundidade. Segun- de “duplo ingresso nenhuma criança”. Leia mais...
do o censo demográfico de 2010, das Duplo ingresso significa que cada um
81 milhões de pessoas de mais de 10 tem o seu rendimento e/ou trabalho
Thierry Linard de Guertechin já
anos que viviam um tipo de união con- com o projeto de não ter filhos.
jugal (metade da população de mais concedeu outra entrevista à IHU On-
de 10 anos de idade), registram-se 51 IHU On-Line – Quais as institui-
Line. Confira:
milhões de pessoas casadas legalmen- ções sociais que mais devem se rea-
te e 30 milhões de pessoas vivendo daptar às novas formas familiares do • Ibrades e a formação social e polí-
em “uniões consensuais”. Há décadas século XXI? Qual deve ser a postura tica. Entrevista concedida à Revista
que este efetivo não para de aumen- da Igreja nesse sentido?
tar e tornou-se matriz dos rearranjos IHU On-Line, edição 337, de 02-08-
familiares. Por outro lado, hoje, para 1 Casais de dupla renda e sem filhos é 2010, disponível em http://zip.net/
quatro casamentos celebrados, regis- o que constitui a chamada família DINC
(Duplo Ingresso, Nenhuma Criança). (Nota bkhP1z.
tra-se um divórcio no ano corrente. da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


Tema de Capa
“Há uma hierarquia racial na
sociedade”
José Luis Petruccelli destaca que o fator raça intervém fortemente na escolha da
pessoa para casar

Por Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

S
egundo o censo 2010, as mulheres lheres pretas do que as mulheres brancas”. E
pretas são as que menos se casam. Na continua: “se a maioria das pessoas de cor ou
opinião do pesquisador do IBGE, José raça branca se casa entre ela, fica sobrando
Luis Petruccelli, isso acontece porque “a so- pouco para as iniciativas de miscigenação por
ciedade tem preconceitos em termos de va- meio do casamento inter-racial. Por exemplo,
lores, de beleza, de prestígio, de padrões eu- por que as mulheres pretas se casam menos
ropeus, no sentido de que o branco e loiro é com homens brancos? Porque há um estigma
mais bonito do que outro tipo de aparência social”.
física. Esses valores predominantes fazem que José Luis Petruccelli é doutor em Ciên-
as pessoas aparentemente tenham um ‘capi- cias Sociais pela École des Hautes Études en
tal’ diferenciado na hora de serem escolhidas Sciences
como parceiros para formar casais”. Na entre- Sociales de Paris, França, e mestre em
vista que aceitou conceder por telefone para Demografia pela School of Hygiene and Tro-
a IHU On-Line, Petruccelli explica que “os da- pical Medicine, de Londres. Pesquisador do
dos mostram – e isso já vem de outras pesqui- Departamento de Indicadores Sociais da Di-
sas – que as mulheres brancas têm uma taxa retoria de Pesquisas do IBGE, suas áreas de
de nupcialidade mais elevada que as pardas e atuação recentes são: desigualdades raciais,
estas com uma taxa mais elevada que as pre- identificação étnico-racial, políticas públicas
tas. Há um número de mulheres que nunca de ação afirmativa, categorias de classificação
se casaram aos 50 anos de idade, que é de 10 étnico-racial.
pontos percentuais mais elevados para as mu- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como entender raça intervém fortemente na escolha do bastante elevado, porque o padrão
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que 70% dos casamentos no país ocor- da pessoa para casar. de comparação é feito com a pergun-
rem entre pessoas de mesma cor? IHU On-Line – Então a raça é ta de qual seria esse percentual caso
José Luis Petruccelli – Em primei- realmente um fator predominante na as escolhas não fossem determinadas
ro lugar, é importante destacar que escolha de parceiros conjugais? pela raça do parceiro. E aí chegamos
esse não é um fato novo, deste cen- José Luis Petruccelli – Nas déca- ao valor estimado de pouco mais de
so 2010. Isso vem sendo verificado já das de 1980 e 1990 o patamar dos ca- 40%. Entretanto, como o valor apon-
desde o censo de 1980 e com a Pes- samentos no país que ocorriam entre tado pelo censo é em torno de 70%,
quisa Nacional por Amostras de Do- pessoas de mesma cor era em torno isso indica que as escolhas não são
micílios – PNAD da década de 1990. de 80%. O censo de 2000 e o censo aleatórias, ou seja, a raça é um fator
O censo mais recente reforça essa de 2010 mostram uma tendência um determinante.
tendência de seletividade na hora da pouco decrescente, mas muito pouco
escolha do parceiro para formar o ca- ainda, chegando ao patamar de 70%, IHU On-Line – Isso tem a ver
sal, que já vem de longa data. O fator que ainda é um percentual considera- com a questão do racismo também?

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 21


José Luis Petruccelli – Sim. É o
“Os números prestígio, de padrões europeus, no
Tema de Capa
que chamamos de racismo estrutural. sentido de que o branco e loiro é
Não é que o comportamento das pes-
soas seja racista individualmente. É
e taxas brutas mais bonito do que outro tipo de
aparência física. Esses valores pre-
que toda a estrutura socioeconômica
leva a comportamentos que induzem
indicam que dominantes fazem que as pessoas
aparentemente tenham um “capi-
à reprodução das relações de domina-
ção pelos grupos que estão nos luga-
o branco tem tal” diferenciado na hora de serem
escolhidas como parceiros para for-
res dominantes da sociedade, lugares
de maior prestígio. A estratégia des-
maior taxa de mar casais. Os dados mostram – e
isso já vem de outras pesquisas –
ses grupos é de reprodução. endogamia, que é que as mulheres brancas têm uma
taxa de nupcialidade mais elevada
IHU On-Line – O casamento en- a tendência de se que as pardas e estas com uma taxa
tre pessoas de mesma cor ou raça mais elevada que as pretas. Há um
é maior/ mais comum entre quais casar dentro do número de mulheres que nunca se
raças? casaram aos 50 anos de idade, que é
José Luis Petruccelli – Há uma mesmo grupo” de 10 pontos percentuais mais ele-
questão metodológica envolvida vados para as mulheres pretas do
aqui. Os grupos não têm tamanhos que as mulheres brancas.
equivalentes, ou seja, pouco menos aos melhores postos de trabalho, às
da metade da população se declara melhores universidades, etc. E outros IHU On-Line – Gostaria de acres-
como que de cor branca. Em torno grupos são relativamente menos fa- centar mais algum comentário sobre
de 40% se declara de cor parda e em vorecidos e acabam preteridos nes- o tema?
torno de 7% se declara de cor preta. sas opções. Há uma hierarquia racial José Luis Petruccelli – Nós fa-
Então, esses grupos são de tamanhos na sociedade. lamos aqui sobre a endogamia e o
diferentes e esses tamanhos também IHU On-Line – Considerando es- casamento de pessoas entre a mes-
incidem no resultado da participação tes dados, o que esperar da miscige- ma raça com taxa elevada, mas gos-
no mercado matrimonial. Os números nação e da mobilidade social no Bra- taria de destacar que o grupo que se
e taxas brutas indicam que o branco sil para os próximos anos? identifica como de cor ou raça bran-
tem maior taxa de endogamia, que José Luis Petruccelli – Esses da- ca utiliza esse mecanismo como es-
é a tendência de se casar dentro do dos que foram divulgados agora são da tratégia de sobrevivência e reprodu-
mesmo grupo. Depois, seguida pelos amostra do censo 2010. Não é um es- ção, afinal é um grupo privilegiado
de raça/cor parda e em terceiro lugar tudo aprofundado sobre cada um dos dentro da sociedade. Por isso que
pela de cor ou raça preta. temas. Para responder a essa pergunta, a tendência é de haver mais casa-
vou usar outros estudos e outros levan- mentos dentro desse grupo racial.
IHU On-Line – Em que sentido tamentos. Por exemplo, com os levan- Os outros grupos não usam o mes-
esses dados desconstroem o mito da tamentos das PNADs, verificou-se que mo tipo de estratégia. Se a maioria
altíssima miscigenação da harmonia as gerações mais jovens têm uma ten- das pessoas de cor ou raça branca se
racial? dência menor à endogamia do que as casa entre ela, fica sobrando pouco
José Luis Petruccelli – No sen- gerações mais velhas. Talvez a tendên- para as iniciativas de miscigenação
tido de que os dados mostram que cia seja reduzir a endogamia, ou seja, por meio do casamento inter-racial.
ampliar as uniões inter-raciais. Mas é
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não há tal harmonia. Por exemplo, Por exemplo, por que as mulheres
nos Estados Unidos se fala em uma preciso verificar essa tendência para ver pretas se casam menos com homens
sociedade color blind, em que a raça se ela se confirma com o tempo. brancos? Porque há um estigma so-
não seria um fator que intervém nas cial, situações nas quais um casal
relações sociais. Isso mostra como as IHU On-Line – Segundo o cen- formado por um homem branco e
pessoas são classificadas e percebi- so 2010, as mulheres pretas (7% da uma mulher preta é visto com pre-
das de acordo com o grupo étnico- população) são as que menos se ca- conceito, e se depara com afirma-
-racial ao qual pertencem e, por isso, sam. Em sua opinião, por que isso ções do tipo “ah, ela deve ser pros-
sofrem comportamentos bem dife- acontece? tituta” ou “deve ser só um encontro
renciados. Ou seja, têm regiões em José Luis Petruccelli – Porque casual”.
que os brancos usufruem de vanta- a sociedade tem preconceitos em
gens notórias em relação ao acesso termos de valores, de beleza, de

22 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


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Entrevista da Semana
Destaques da Semana

Não existe o “pós-humano”


Autor do conceito de “quase realismo”, Simon Blackburn questiona o neo-humanismo
e observa que a filosofia analítica está mudando. Para ele, a filosofia da lógica e da
linguagem tornou-se dominante sobre e epistemologia, a filosofia da mente e a
psicologia

Por Márcia Junges e Graziela Wolfart | Tradução: Silvia Ferabolli

“O
s fatores não genéticos afetam Membro honorário da Academia America-
o gene. É importante conhecer na de Artes e Ciências, centro independente
o ambiente social e psicológico que conduz estudos interdisciplinares, Black-
dentro dos quais essas questões genéticas burn é também vice-presidente da Associação
importam. Parece que, se queremos seres Humanista Britânica. Ele atuou por décadas
humanos melhores, nos já sabemos como como professor da Universidade de Cambrid-
produzi-los: com melhor educação, mais cui- ge e produziu obras de repercussão tais como
dados maternos, mais recursos e mais opor- Dicionário Oxford de Filosofia (1994), Pense
tunidades. Então, não há ‘pós-humano’”. A – Uma Introdução à Filosofia (1999), Verdade
declaração é do filósofo britânico Simon Bla- – Um Guia para os Perplexos (2005) e A Repú-
ckburn, na entrevista que concedeu pessoal- blica de Platão (2006). Nesse último, dedicou-
mente à IHU On-Line por ocasião de sua vinda -se a uma leitura do pensador grego à luz da
a Porto Alegre, no evento Fronteiras do Pen- política neoconservadora dos EUA.
samento, em agosto. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é o neo- acredito que o progresso seja inevitá- Então temos a apoligenia e a explosão
-humanismo? Há aproximações pos- vel, pois podemos retroceder. combinatória. Em segundo lugar, exis-
síveis com o pós-humanismo? O pós-humanismo, para mim, te também o problema de que agora
Simon Blackburn – Não estou pode não significar nada, exceto uma sabemos que os genes se expressam
muito certo do que o pós-humanismo espécie de armadura usada em favor de maneiras diferentes em diferen-
significa, pois pode significar várias de seres que não são humanos e que tes ambientes, sejam eles ambientes
coisas. Acredito que o humanismo, em talvez tenham nos sucedido. Isso não dietéticos, químicos ou sociopolíticos.
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minha concepção, seja simplesmente é nada mais do que uma fantasia. Se Houve um experimento muito famo-
o entendimento de que a antropolo- o pós-humanismo tiver uma expres- so no Canadá, quando um cirurgião
gia estuda o que os seres humanos são prática mais concreta, como a fez experimentos com ratos e desco-
fazem ou o que eles podem ou devem manipulação genética, então eu o briu que se um rato é criado por uma
fazer. Tradicionalmente, o humanismo considero altamente questionável boa mãe (como aquelas que lambem
tem sido associado com o otimismo devido a dois fatores: em primeiro seus filhotes) o seu cérebro fica dife-
ou um iluminismo do otimismo sobre lugar, praticamente todos os traços rente – ele é formado de maneira di-
os avanços que podemos fazer em nós psicológicos interessantes nos seres ferente de um rato que é criado em
mesmos devido à educação, à ciência, humanos são apolygenic, ou seja, sa- um ambiente frio e sem cuidados. E
à tecnologia, a regimes políticos mais bemos que não existe um “gene” para o segundo tipo de rato fica estressa-
liberais. Eu compartilho desse otimis- a inteligência ou para “não” entender do muito facilmente, muito nervoso
mo. Acredito que o atual estado do algo corretamente. Existem muitas e sem confiança. A lambida materna
mundo é melhor do que há 200, 400 maneiras pelas quais as pessoas po- revelou-se determinante no desenvol-
anos, o que significa que, até certo dem aprender a entender algo corre- vimento psicológico do rato. Ora, nos
ponto, acredito no progresso. Não tamente. E isso não está nos genes. humanos nós já sabemos que esse é

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o caso: já sabemos que crianças que nhor formulou? O que podemos en- Spinoza5 e dos iluministas, especial-

Destaques da Semana
são bem criadas serão mais confian- tender por “quase realismo”? mente. Trata-se do princípio da razão
tes, mais alegres e mais calmas, mais Simon Blackburn – Primeira- suficiente. Existe sempre uma razão
relaxadas do que as crianças que não mente, devemos colocar Hume em suficiente para as coisas serem do jei-
tiveram a mesma sorte, isto é, do que seu lugar histórico. Acredito que ele to que são. Quando Newton6 surgiu,
crianças que não tiveram cuidados tenha sido o primeiro filósofo a en- ele não nos disse por que as coisas
maternos. Então, acredito que a ideia tender uma ideia muito diferente de “deveriam ser” como são; ele simples-
de pós-humano pertence a um tem- ciências naturais, do entendimento mente nos disse como elas eram. Ele
po, talvez 10 a 12 anos atrás, quando do humano – as melhores possibilida- nos disse que a lua, o sol, as estrelas e
as pessoas pensavam que os genes des para o entendimento do humano. a terra se atraem mutuamente a uma
eram tudo, que os genes eram nosso Ele foi o primeiro a articular uma visão certa força proporcional inversa ao
destino, que mudando um gene se completamente moderna disso. Pen- quadrado da distância entre elas. É as-
mudava tudo, que o genoma humano sadores anteriores podem ser locali- sim que as coisas são. Ninguém pode
seria tudo. Todavia, não se acredita zados no grupo de ideal racionalista, ver porque isso “tem de ser desse jei-
mais nisso, incluindo os cientistas. Os como Aristóteles3 nos Analíticos Pos- to”, porque esse é apenas um padrão
fatores não genéticos afetam o gene. teriores, que pensava que a ciência se de eventos – é assim que os corpos
É importante conhecer o ambiente tornaria uma questão de localização se comportam. Apresentar isso como
social e psicológico dentro dos quais de princípios a partir dos quais tudo um paradigma do entendimento hu-
essas questões genéticas importam. poderia ser deduzido e seus princí- mano – “isso é o melhor que pode-
Parece que, se queremos seres huma- pios primeiros, que seriam uma va- mos fazer” – foi uma grande mudança
nos melhores, nos já sabemos como riável para a luz natural da razão. A na visão de mundo. Isso acabou por
produzi-los: com melhor educação, ideia medieval de que a Igreja vivia levar a um certo declínio da ambição,
mais cuidados maternos, mais recur- de acordo com a razão natural levou, a um certo pessimismo.
sos e mais oportunidades. Então, não no século XVII, a um tipo de ambição
há “pós-humano”. matemática para a ciência, ou seja, Paixões e medo
se realmente entendêssemos a natu- O próprio Hume também disse
IHU On-Line – Há influências de reza nos veríamos não apenas como que “a mais perfeita filosofia do tipo
David Hume1 ou mesmo René Girard2 uma coisa que segue a outra, em natural apenas afasta um pouco mais
e sua teoria do desejo mimético na uma sequência de eventos, mas ve- a nossa ignorância”. No fim, isso sig-
teoria de “quase realismo” que o se- ríamos por que os eventos devem se nifica algo como: “é assim que fun-
suceder, por que eles devem formar ciona!”; “mas por que funciona desse
os padrões e estruturas, por que Deus jeito?”; “eu não sei...”. Acredito que
1 David Hume (1711-1776): filósofo e
pode ver isso e nossa razão nos per-
historiador escocês, que com Adam Smith mite uma pequena imitação da mente à escola que predominava nas ilhas bri-
e Thomas Reid, é uma das figuras mais de Deus se nós a usarmos de maneira tânicas, o empirismo), posição filosófica
importantes do chamado Iluminismo es- dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota
cocês. É visto, por vezes, como o terceiro
correta. Essa é a ideia de Descartes4, da IHU On-Line)
e o mais radical dos chamados empiristas 5 Baruch de Spinoza (1632 – 1677): filó-
britânicos. A filosofia de Hume é famosa sofo holandês. Sua filosofia é considerada
pelo seu profundo ceticismo. Entre suas 3 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 uma resposta ao dualismo da filosofia de
obras, merece destaque o Tratado da na- a. C.): filósofo nascido na Calcídica, Esta- Descartes. Foi considerado um dos gran-
tureza humana. Sobre ele, leia a IHU On- gira, um dos maiores pensadores de todos des racionalistas do século XVII dentro
-Line número 369, de 15-08-2011, intitu- os tempos. Suas reflexões filosóficas — por da Filosofia Moderna, e o fundador do
lada David Hume e os limites da razão, um lado originais e por outro reformula- criticismo bíblico moderno. Confira a
disponível para download em http://bit. doras da tradição grega — acabaram por edição 398 da revista IHU On-Line, de
ly/pFBA94 (Nota da IHU On-Line) configurar um modo de pensar que se es- 06-08-2012, intitulada Baruch Spinoza.
2 René Girard (1923): filosofo e antro- tenderia por séculos. Prestou inigualáveis Um convite à alegria do pensamento, dis-
pólogo francês. Partiu para os Estados contribuições para o pensamento huma- ponível em http://bit.ly/ITqFx. (Nota da www.ihu.unisinos.br
Unidos para dar aulas de francês. De suas no, destacando-se nos campos da ética, IHU On-Line)
obras, destacamos La Violence et le Sacré política, física, metafísica, lógica, psico- 6 Isaac Newton (1642-1727): físico, as-
(A violência e o sagrado), Des Choses Ca- logia, poesia, retórica, zoologia, biologia, trônomo e matemático inglês. Revelou
chées depuis la Fondation du Monde(Das história natural e outras áreas de conhe- como o universo se mantém unido através
coisas escondidas desde a fundação do cimento. É considerado, por muitos, o fi- da sua teoria da gravitação, descobriu os
mundo), Le Bouc Émissaire (O Bode ex- lósofo que mais influenciou o pensamento segredos da luz e das cores e criou um
piatório), 1982. Todos esses livros foram ocidental. (Nota da IHU On-Line) ramo da matemática, o cálculo infinitesi-
publicados pela Editora Bernard Grasset 4 René Descartes (1596-1650): filósofo, mal. Essas descobertas foram realizadas
de Paris. Ganhou o Grande Prêmio de Fi- físico e matemático francês. Notabilizou- por Newton em um intervalo de apenas
losofia da Academia Francesa, em 1996, -se sobretudo pelo seu trabalho revolu- 18 meses, entre os anos de 1665 e 1667.
e o Prêmio Médicis, em 1990. O seu livro cionário da Filosofia, tendo também sido É considerado um dos maiores nomes na
mais conhecido em português é A violên- famoso por ser o inventor do sistema de história do pensamento humano, por cau-
cia e o sagrado (São Paulo: Perspectiva, coordenadas cartesiano, que influenciou sa da sua grande contribuição à matemá-
1973). Sobre o tema desejo e violência, o desenvolvimento do cálculo moderno. tica, à física e à astronomia. O IHU pro-
confira a edição 298 da revista IHU On-Li- Descartes, por vezes chamado o fundador moveu de 3 de agosto a 16-11-2005 o Ci-
ne, de 22-06-2009, disponível em http:// da filosofia e matemática modernas, ins- clo de Estudos Desafios da Física para o
bit.ly/doOmak. Leia, também, a edição pirou os seus contemporâneos e gerações Século XXI: uma aventura de Copérnico
especial 393 da IHU On-Line, de 21-05- de filósofos. Na opinião de alguns comen- a Einstein. Sobre Newton, em específico,
2012, sobre o pensamento de Girard, in- tadores, ele iniciou a formação daquilo o Prof. Dr. Ney Lemke proferiu palestra
titulada O bode expiatório, o desejo e a a que hoje se chama de racionalismo em 21-09-2005, intitulada A cosmologia
vioLência (Nota da IHU On-Line) continental (supostamente em oposição de Newton. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 25


isso tenha levado Hume a uma des- tomam o lugar, por vezes, desse sen- ficção – sinto isso como uma obriga-
Destaques da Semana
confiança geral do poder da razão. timento de empatia. No trânsito, por ção real. Se alguém me disser: “isso é
Na esfera da ética isso significou que, exemplo, ninguém é altruísta, mas apenas um sentimento”, eu vou dizer
em vez da razão natural, da lei natural nós não gritamos um com o outro o “bem, pode ser apenas um sentimen-
estarem disponíveis para a razão na- tempo todo e não nos batemos uns to, mas é essencial para mim, é uma
tural isso sendo uma espécie de pro- contra os outros o tempo todo (em- parte da minha identidade”. Então,
va dos princípios primeiros, existiam bora às vezes isso aconteça) porque quero enfatizar a importância dos
apenas sentimentos e assim temos a existem regras de trânsito, fiscaliza- nossos sentimentos – que eles não
famosa frase: “a razão é e só pode ser ção pela polícia, há leis, regras, con- são “meros sentimentos”, mas essen-
a escrava das paixões, e nunca pode venções que permitem que o trânsito ciais para a nossa identidade e nosso
pretender qualquer outro cargo do flua. Acredito que Hume percebeu “ser” no mundo. Assim, o “quase re-
que para servir e obedecê-las”. As- que muitas sociedades se deram con- alismo” veio dentro do contexto des-
sim, “paixões”, ou seja, as motivações ta de que viver a cotoveladas é ruim e, te debate. Eu queria fazer justiça aos
humanas, afetos humanos, passam a por isso, inventaram estruturas para pensamentos que levam ao realismo
elevar-se acima da razão humana e se moderar o comportamento, para ge- e ao senso de existência de certo e
tornam a força motriz que nos faz fa- rar soluções cooperativas. Esse é um errado. O “quase realismo” é, assim,
zer o que fazemos. quadro otimista e que é o melhor que um salto entre esses dois extremos: o
Spinoza não está longe dessa podemos fazer quando a luz natural realismo e a teoria do erro. Foi uma
ideia também. Aplicada, a ética le- da razão e do conhecimento autoritá- tentativa de conciliar a abordagem
vanta também alguns medos, como rio desaparece. básica do pensamento de Hume com
o medo do subjetivismo e do relati- aqueles que tinham sido tão descon-
vismo. Suas paixões podem ser dife- IHU On-Line – Mas por que fiados em relação a ele (Hume).
rentes das minhas. Soa como se esti- “quase realismo”?
véssemos agindo, a partir daí, sem a Simon Blackburn – Isso não é IHU On-Line – Então você fez
autoridade do certo ou errado. A au- algo que eu necessariamente goste essa teoria?
toridade da objetividade, a autorida- ainda hoje, mas estou preso com esse Simon Blackburn – Sim, eu fiz, eu
de de nosso conhecimento parece ser termo agora. Então, deixe-me explicar. dei-lhe o seu nome. Mas as razões por
varrida por esta nova visão de mundo. Na década de 1970, quando comecei que eu não gosto desse termo têm
Hume não era pessimista; para ele, a falar sobre isso, houve uma grande basicamente a ver com a natureza es-
não precisávamos nos preocupar, pois reação contra o que agora é chamado corregadia do realismo: ninguém tem
“a natureza humana era boa o sufi- de “emotivismo” ou “expressivismo”. certeza do que o realismo significa.
ciente”. Não que existisse “simpatia” A história da filosofia não foi muito Eu poderia tê-lo chamado “funciona-
suficiente, mas inteligência suficiente bem pensada em Oxford ou Cambrid- lismo responsável não descritivo”, ou
na natureza humana para que encon- ge. Existia essa percepção de que na algo assim.
trássemos formas de cooperar. E, as- ética nós meramente expressávamos
sim, virtudes sociais tomariam o lugar nossas atitudes, nossas emoções. A IHU On-Line – Qual é o futuro da
da luz natural da razão e da autorida- ética era tida como mera subjetivi- filosofia analítica?
de do conhecimento. Hume também dade. Houve uma espécie de reação Simon Blackburn – Eu não acho
foi um grande otimista. A cooperação contra isso, mas não foi o suficiente. que o futuro da filosofia analítica se en-
pode tomar o lugar da guerra de to- Algumas pessoas disseram – e o mais contre na análise! Eu acho que ela – a fi-
dos contra todos, como a visão de Ho- famoso deles foi John Mackie – que losofia analítica – está mudando. O ide-
bbes7 sobre o mundo natural. todos os pensamentos, quer sobre a al analítico tornou-se proeminente com
Existe um sentimento de empa- subjetividade, quer sobre a possibi- Frege8, no final do século XIX, e Russell9
tia em relação às outras pessoas, mas lidade de discussão e sobre o uso da
há também a capacidade de construir razão em todos os contextos, eram
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regras, estruturas e instituições que uma espécie de fantasia, que os emo-


tivistas estavam realmente certos, e 8 Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848-
1925): matemático, lógico e filósofo
7 Thomas Hobbes (1588 – 1679): filósofo
que todo o resto foi “erro”. A teoria do alemão. Trabalhando na fronteira entre
inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã “erro” tornou-se bastante popular – a a filosofia e a matemática, Frege foi o
(1651), trata de teoria política. Neste ideia de ficção, uma ficção de direitos, principal criador da lógica matemática
livro, Hobbes nega que o homem seja moderna, sendo considerado, ao lado de
um ser naturalmente social. Afirma, ao
deveres e obrigações, a ideia de que Aristóteles, o maior lógico de todos os
contrário, que os homens são impulsio- vivíamos sob a sombra dessas ficções. tempos. (Nota da IHU On-Line)
nados apenas por considerações egoístas. Este é o ficcionalismo. Eu não gostei, 9 Bertrand Arthur William Russell (1872-
Também escreveu sobre física e psicolo- 1970): matemático, filósofo. Foi também
gia. Hobbes estudou na Universidade de
porque não gosto das implicações que um importante politico liberal, ativista e
Oxford e foi secretário de Sir Francis Ba- esses pensamentos sobre objetivida- popularizador da Filosofia, além de um
con. A respeito desse filósofo, confira a de, conhecimento e possibilidade de crítico das armas nucleares e da guer-
entrevista O conflito é o motor da vida ra estadunidense no Vietnã. Em 1950,
política, concedida pela Profa. Dra. Ma-
raciocínio engendram: de que tudo recebeu o Prêmio Nobel de Literatura,
ria Isabel Limongi à edição 276 da revista isso são meras ficções ou simples- em reconhecimento dos seus variados e
IHU On-Line, de 06-10-2008. O material mente erros. Não acho que minha significativos escritos, nos quais apresen-
está disponível em http://bit.ly/bDUpAj. tava ideais humanitários e liberdade de
(Nota da IHU On-Line)
obrigação e de meus filhos seja uma pensamento. (Nota da IHU On-Line)

26 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


e Moore10, que avancaram a lógica
“Eu sempre pensei legitimidade do povo. É claro que to-

Destaques da Semana
moderna – e, sem dúvida, a lógica dos os governos vão se preocupar com
moderna é uma ferramenta natural
poderosa na lógica aristotélica. A con- no meu trabalho “alguns” discursos. O teórico Stanley
Fish, nos Estados Unidos, um pós-mo-
fiança gerada pelos avanços na lógica
levou os filósofos a pensar que aten- em como trazer dernista, argumentou que não há tal
coisa como a liberdade de expressão, o
ção suficiente para a forma lógica das
sentenças/frases iria resolver todos os as pessoas para que significa que falar é agir, falar é um
tipo de ação e ninguém tem liberdade
problemas filosóficos. Assim, a filoso-
fia da lógica e da linguagem tornou- a filosofia, e não ilimitada para atuar, da mesma forma
que ninguém tem liberdade ilimitada
-se dominante sobre a epistemologia,
sobre a filosofia da mente, sobre a em como levar a de expressão porque isso não é, obvia-
mente, o caso: não estamos autoriza-
psicologia e assim por diante. Eu acho
que essa confiança se perdeu. Creio filosofia para as dos a mentir para fazer alguém com-
prar algo. Isso é crime. Você não está
que ela não está mais lá. Eu acho que
a única coisa boa que deixou é a aten- pessoas” autorizado a dizer coisas sobre mim
em público sem que eu tenha o direi-
ção para o significado – uma atenção to de réplica. Portanto, há limitações.
muito cuidadosa ao significado: o que Há uma famosa frase sobre isso na lei
significam as palavras? Voce tem cer- para resolver problemas, que a ques- americana: você não tem permissão
teza de que compreende as palavras tão está completa, eu creio que mor- para gritar “fogo” em um teatro lota-
que está usando? Essa é uma pergun- reu um pouco, que a psicologia tem do, causando pânico nas pessoas. Isso
ta sempre muito boa. É claro que é ganhado terreno à custa da semântica é uma coisa muito antissocial de fazer
uma questão que Platão11 e Sócrates12 ou da teoria lógica. e é ilegal. Você não tem permissão
levantaram: “você tem certeza do que para incitar o ódio racial em muitos pa-
você quer dizer com coragem? O que IHU On-Line – Por isso não íses, inclusive na Europa e nos Estados
você quer dizer com justiça?” Então, podemos mais confiar apenas na Unidos. Portanto, há limitações à liber-
essa atenção para o significado das filosofia... dade de expressão. Mas basicamente,
palavras sempre esteve presente na Simon Blackburn – Eu acho que sem a liberdade de ativismo político,
filosofia e isso é o que vai permanecer a filosofia tem um papel – eu espero associação política, trabalho político
com a filosofia analítica. Penso que que ela tenha um papel. Mas acho perseguido por meio pacífico, que são
isso é uma coisa boa. Mas a confian- que tem que juntar esforcos com as direitos democráticos, você não tem
ça de que de alguma forma a questão outras ciências humanas, incluindo a um governo legítimo. Portanto, se
“você tem certeza que entende o que psicologia. o governo chinês ou qualquer outro
quer dizer?” é a questão dominante achar necessário censurar a internet,
IHU On-Line – Com a populari- isso é algo muito ruim.
zação das redes sociais surgem novas
10 George Edward Moore (1873-1958):
filósofo britânico, juntamente com maneiras de manifestação e parti- IHU On-Line – O debate filosófi-
Bertranb Russell foi co-fundador do cipação política. Como essas redes co tem conseguido extrapolar a aca-
movimento analítico em filosofia. (Nota impactam a filosofia e o filosofar
da IHU On-Line)
demia e dialogar com a sociedade?
11 Platão (427-347 a. C.): filósofo ate- contemporâneos? Simon Blackburn – Sim e não.
niense. Criador de sistemas filosóficos Simon Blackburn – A Primavera Quero dizer, a filosofia não é fácil. Eu
influentes até hoje, como a Teoria das Árabe foi amplamente possível por
Idéias e a Dialética. Discípulo de Sócra-
sempre pensei no meu trabalho em
tes, Platão foi mestre de Aristóteles. En- causa da internet, e eu posso ver que como trazer as pessoas para a filosofia,
tre suas obras, destacam-se A República os regimes particularmente repressi- e não em como levar a filosofia para as
e o Fédon. Sobre Platão, confira e entre- vos temem a liberdade de expressão pessoas. Eu não gosto do termo “po-
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vista “As implicações éticas da cosmolo-
gia de Platão”, concedida pelo filósofo e a liberdade de pensamento. A Chi- pularizar”, eu não acho que eu faço
Prof. Dr. Marcelo Perine à edição 194 na é talvez o exemplo moderno mais “popularização” da filosofia. Tento ex-
da revista IHU On-Line, de 04-09-2006, óbvio. Eles temem o poder das pesso-
disponível em http://migre.me/uNq3.
plicar por que as perguntas são intrica-
Leia, também, a edição 294 da Revista as unidas que dizem que não gostam das e delicadas, porque provavelmente
IHU On-Line, de 25-05-2009, intitulada da dominação do Partido Comunista, precisam de uma compreensão histó-
Platão. A totalidade em movimento, dis- da dominação por parte do governo.
ponível em http://migre.me/uNqj. (Nota
rica e eu penso que o que as pessoas
da IHU On-Line) Tem-se a impressão de que o governo chamam de “filosofia” – quer dizer, um
12 Sócrates (470 a. C. – 399 a. C.): filóso- está em oposição ao seu próprio povo. grupo de pessoas que se reúnem na
fo ateniense e um dos mais importantes Você tem que lutar pela liberdade de
ícones da tradição filosófica ocidental.
internet para discutir a “consciência”
Sócrates não valorizava os prazeres dos expressão, de associação e comunica- ou algo realmente difícil filosoficamen-
sentidos, todavia escalava o belo entre ção. E se o governo achar necessário te como a natureza da matemática, a
as maiores virtudes, junto ao bom e ao matar aqueles, então acho que o go-
justo. Dedicava-se ao parto das ideias
natureza da lógica, a natureza do co-
(Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. O verno está em oposição ao seu próprio nhecimento – nao será, de fato, algo
julgamento e a execução de Sócrates são povo. Eu sou um democrata. Acho que realmente interessante caso esses ele-
eventos centrais da obra de Platão (Apo- os governos devem derivar/extrair sua
logia e Críton). (Nota da IHU On-Line)
mentos não estejam presentes.

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IHU On-Line – Então você acha disse que “a coruja de Minerva só le- tos sobre teoria política e econômica,
Destaques da Semana
que tem mais a ver com dar acesso vanta voo ao anoitecer”, e ele talvez o comunismo nunca teria existido
à educação filosófica do que simples- esteja certo em dizer que o filósofo como um “ismo” porque você precisa
mente “jogar” assuntos e ideias so- não pode fazer nada além de reagir dos pensadores para articular, para
bre as pessoas? aos movimentos do tempo. A matriz conduzir as ideias. Então eu acredito
Simon Blackburn – Exatamen- sociopolítico-econômica em que vive- que a filosofia tem esse tipo de papel.
te. É claro que temos de incentivar mos informa o que filósofo diz. Deve Você precisa ser sensível às necessi-
as pessoas a ter suas próprias ideias haver alguma verdade nisso. Por outro dades das junções históricas ou até
e expressá-las, discutindo-as, e pode lado, os movimentos de pensamento, mesmo para o que acontece, aquilo
ser que, em circunstâncias favoráveis,​​ da política e da sociedade precisam que outras pessoas (não filósofos) po-
um grupo pode ser capaz de se colo- de palavras – eles precisam de pesso- dem não ser capaz de perceber. Por
car num nível muito elevado de com- as para explicar o que eles são. Con- exemplo, eu comecei com Hume, que
preensão. Creio que existem alguns sidere os movimentos feministas dos percebeu o que Newton tinha feito:
casos em matemática em que os pro- últimos 50 anos nos Estados Unidos, um novo paradigma para as ciências
blemas matemáticos foram superados Europa e na América do Sul; provavel- naturais, diferente de Aristóteles, mas
– os melhores grandes problemas ma- mente em todo o mundo eles precisa- que precisava ser dito e explicado,
temáticos foram jogados no Google vam de textos. Pessoas como Naomi precisava de muita defesa, articulação
ou Wikipedia e pessoas contribuíram Wolf14, Elizabeth Freeman, as pessoas e escrita para que as pessoas pudes-
aqui e lá e, então, você tem milhões que escreveram sobre a opressão das sem perceber isso. Então penso que
de contribuições e a solução emerge. mulheres, sobre os direitos, a igual- há sempre um papel para o filósofo, o
Há exemplos de problemas matemá- dade, sobre as possibilidades que que não significa apenas alguém que
ticos que foram resolvidos por esse devem ser abertas para as mulheres. reflete, mas que reflete pesado e tem
meio. Mas eu acredito que essas con- Todas estavam fazendo uma espécie condições para refletir sob a luz da
tribuições só foram relevantes por- de filosofia social, em parte ética, em melhor literatura, modelos e entendi-
que, nesses casos, matemáticos foram parte política, que foi projetada para mentos disponíveis.
capazes de filtrar os contribuidores, mudar a mantalidade das pessoas e
separando aqueles que falavam coisas eu não acho que seria justo dizer que IHU On-Line – Cada filosofia é
relevantes daqueles que não estavam aqueles escritos levantaram voo so- filha de seu tempo. Em linhas gerais,
dizendo nada. Em outras palavras, se mente após o feminismo ter sido es- como pode ser caracterizada a filoso-
um dos meus colegas em Cambridge, tabelecido. Eles fizeram parte do pro- fia no século XXI?
um grande matemático, coloca um cesso de criação do feminismo como Simon Blackburn – A ideia hegelia-
problema sobre a Group Theory [te- um movimento. E eu acho que isso é na de uma filosofia que é filha de seu
oria de grupo], eu não vou contribuir muito comum. Pense no comunismo tempo não me parece verdade pelas
porque não sei nada sobre o assunto. e em Marx. O próprio Marx desmente razões que eu disse: o feminismo, mar-
Se alguém diz “o que é consciência” Hegel porque, se Marx e Engels não xismo, Hume, todos eles eram casos em
na internet eu acredito que um milhão tivessen escrito o Manifesto Comu- que os filósofos ajudaram a moldar os
de pessoas podem ter opiniões, mas nista15, se não houvesse esses escri- entendimentos da época e é isso que
elas não são susceptíveis de ser muito eu acho que nós temos que fazer. Como
informativas e interessantes, visto ser principais predecessores. Sua primeira
eu disse na conferência do Fronteiras do
esta uma pergunta muito difícil. Há obra, A fenomenologia do espírito, Pensamento, credio que os primeiros
uma tradição de pessoas que tentam tornou-se a favorita dos hegelianos da desafios do seculo XX são basicamen-
Europa continental no século XX. Sobre
dar respostas, que falham, há algumas Hegel, confira a edição nº 217 da IHU
te centrados em torno da cooperação
posições já bem estabelecidas. Você On-Line, de 30-04-2007, intitulada internacional, da possibilidade de coo-
realmente tem que aprender tudo so- Fenomenologia do espírito, de Georg peração internacional em coisas como
Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007),
bre isso antes que você esteja em posi- escassez de recursos, o aquecimento
www.ihu.unisinos.br

em comemoração aos 200 anos de


ção de contribuir com o debate. lançamento dessa obra. O material está global, sobre a superpopulação e que
disponível em http://migre.me/zAON. vai ser muito difícil de conseguir, porque
Sobre Hegel, leia, ainda, a edição 261
IHU On-Line – O que é ser filóso- da IHU On-Line, de 09-06-2008, Carlos
cada país tem uma “vantagem egoísta”
fo nos dias de hoje, numa época mar- Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo para desertar de soluções cooperativas.
cada pela secularização e pelo relati- modo de ler Hegel, disponível em http://
migre.me/zAOX. (Nota da IHU On-Line)
vismo, mas também por um retorno 14 Naomi Wolf (1962): escritora
paradoxal ao sagrado? feminista estadunidense. Seu livro O
Simon Blackburn – Bem, é possí- mito da beleza: como as imagens da
beleza são usadas contra as mulheres Comunista (em alemão: Manifest der
vel ter duas visões sobre isso. A visão (Rio de Janeiro: Rocco, 1992), publicado Kommunistischen Partei), publicado
mais pessimista é a de Hegel13, que em 1991, se tornou uma referência da pela primeira vez em 21 de fevereiro de
terceira onda do feminismo ao analisar 1848, é historicamente um dos tratados
como a exigência de as mulheres se políticos de maior influência mundial.
13 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo adequarem a um ideal de beleza feminina Comissionado pela Liga Comunista e
alemão idealista. Como Aristóteles e Santo dificulta sua ascensão ao poder político e escrito pelos teóricos fundadores do
Tomás de Aquino, tentou desenvolver um social. (Nota da IHU On-Line) socialismo científico Karl Marx e Friedrich
sistema filosófico no qual estivessem 15 Manifesto Comunista: originalmente Engels, expressa o programa e propósitos
integradas todas as contribuições de seus denominado Manifesto do Partido da Liga. (Nota da IHU On-Line)

28 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


Teologia Pública

Destaques da Semana
Concílio Vaticano II e a busca
pelo compromisso ecumênico
O Concílio afirmou a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae) e reexaminou a relação
da Igreja Católica com outras religiões (Nostra Aetate) e sua inserção no mundo
moderno (Gaudium et Spes), pontua Walter Altmann

Por Thamiris Magalhães e Luís Carlos Dalla Rosa

Q
uestionado a respeito do Concílio celebração da missa).” E completa: “Houve
como um evento ecumênico, o mode- uma significativa valorização da Bíblia e de
rador do Conselho Mundial de Igrejas sua leitura, algo tão caro para a tradição pro-
– CMI, Walter Altmann, explica que não o foi testante. O Concílio também convidou obser-
no sentido de um concílio universal de toda vadores de outras igrejas (da América Latina
a cristandade, “pois, como sabemos, esta se participou o teólogo metodista argentino José
encontra dividida em um grande número de Míguez Bonino) e revelou de um modo geral
vertentes confessionais. Nesse sentido, um uma aguda sensibilidade para as experiências
concílio ecumênico ainda é um anelo sem dú- e convicções dos não católicos, fossem de ou-
vida profundo do movimento ecumênico, cuja tras igrejas, outras crenças ou pessoas de boa
realização, porém, ainda não podemos des- vontade”.
cortinar”. Para Altmann, o Vaticano II foi um Walter Altmann é pastor da Igreja Evangéli-
evento ecumênico primeiramente no sentido ca de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, pro-
de reunir os bispos católicos de todo o mundo fessor de Teologia Sistemática na Faculdades
para deliberação acerca do caminhar da Igre- EST, de São Leopoldo-RS, ex-pastor presidente
ja Católica. “Mas ele foi ecumênico, sobretu- da IECLB, ex-presidente do Conselho Latino-
do, pelo espírito que o permeou. Os debates -Americano de Igrejas – CLAI e atual modera-
foram intensos, ocorreram revisões de posi- dor do Conselho Mundial de Igrejas – CMI. En-
cionamentos tradicionais da Igreja Católica, tre suas obras, destacamos Lutero e libertação:
muitas vezes no sentido que já era adotado Uma releitura de Lutero em perspectiva latino-
por outras igrejas desde sempre (por exem- -americana (Editora Sinodal, 1994).
plo, a passagem do latim para o vernáculo na Confira a entrevista. www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – Como o senhor teológica argentina, foi precisamente


acompanhou o Concílio Vaticano II? sobre a Constituição Dogmática so-
Walter Altmann – Coincidente- bre a Igreja (Lumen Gentium). Poste- teológica compõe-se de mais de 4 mil tí-
tulos. Suas obras principias são: Geist in
mente, iniciei meus estudos teoló- riormente, minha tese de doutorado, Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer
gicos em 1962, ano da abertura do defendida na Universidade de Ham- des Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941,
Concílio Vaticano II. Assim, com natu- burgo, Alemanha, foi sobre o conceito Schrifften zur Theologie (Escritos de Te-
ologia). Em 2004, celebramos seu cente-
ralidade, o acompanhamento de seus de tradição em Karl Rahner1 eminente nário de nascimento. A Unisinos dedicou
trabalhos esteve inserido em meus à sua memória o Simpósio Internacional
estudos, não por último pelo grande O Lugar da Teologia na Universidade
1 Karl Rahner (1904-2004): importante do século XXI, realizado de 24 a 27 de
impacto que a inesperada convoca- teólogo católico do século XX. Ingressou maio daquele ano. A IHU On-Line nº.
ção do Concílio pelo Papa João XXIII já na Companhia de Jesus em 1922. Dou- 90, de 1º-03-2004, publicou um artigo
causara. Um de meus trabalhos, ain- torou-se em Filosofia e em Teologia. Foi de Rosino Gibellini sobre Rahner, dispo-
perito do Concílio Vaticano II e professor nível em http://migre.me/11DTa, e a
da como aluno, publicado em revista na Universidade de Münster. A sua obra edição 94, de 02-03-2004, publicou uma

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 29


teólogo católico e perito teológico as- da missa). Houve uma significativa va- Walter Altmann – Como obser-
Destaques da Semana
sessor do Vaticano II. Ocupei-me, en- lorização da Bíblia e de sua leitura, algo vei, o Vaticano II teve como um todo
tão, mais profundamente com a Cons- tão caro para a tradição protestante. O um nítido espírito ecumênico. Mas
tituição Dogmática sobre a Revelação Concílio também convidou observado- é precisamente no decreto Unitatis
Divina (Dei Verbum). Mas o interesse res de outras igrejas (da América Latina Redintegratio que a Igreja Católica
também foi mais geral sobre o Vati- participou o teólogo metodista argen- define seu entendimento e seu com-
cano II, em particular como a Igreja tino José Míguez Bonino) e revelou de promisso ecumênicos. É um texto
Católica atualizava e renovava sua he- um modo geral uma aguda sensibilida- relativamente breve, mas com nítida
rança teológica, no espírito do aggior- de para as experiências e convicções inspiração bíblica, assenta definições
namento preconizado pelo pontífice. dos não católicos, fossem de outras básicas para o relacionamento da
igrejas, outras crenças ou pessoas de Igreja Católica com as demais igrejas e
IHU On-Line – Em que sentido o boa vontade. comunidades eclesiais. Taxativamente
Concílio foi um evento ecumênico? afirma que o Espírito Santo age tam-
Walter Altmann – Não o foi no IHU On-Line – Em sua avaliação, bém nelas produzindo a comunhão
sentido de um concílio universal de como o Concílio contribuiu para a ca- dos fiéis e a união íntima com Cristo,
toda a cristandade, pois, como sa- minhada ecumênica? princípio da unidade da Igreja. Essa
bemos, esta se encontra dividida em Walter Altmann – O movimento afirmação é de longo alcance, ainda
um grande número de vertentes con- ecumênico moderno, como esforço de que o documento também estabeleça
fessionais. Nesse sentido, um concílio superação da divisão da cristandade uma hierarquia nas relações e ape-
ecumênico ainda é um anelo sem dú- através do diálogo e da cooperação, nas às igrejas ortodoxas é conferido
vida profundo do movimento ecumê- surgiu na segunda metade do século o nome de “igreja”, denominando-
nico, cuja realização, porém, ainda não XIX, no âmbito das igrejas protestan- -se as demais de “comunidades ecle-
podemos descortinar. O Vaticano II foi tes e anglicana. A Conferência Inter- siais”. Ainda assim, na fé em Cristo
um evento ecumênico primeiramente nacional de Missão, em Edimburgo, e pelo dom do batismo, os fiéis das
no sentido de reunir os bispos católi- Escócia (1910), é um marco histórico outras igrejas são considerados como
cos de todo o mundo para deliberação na caminhada das igrejas, seguindo-se “irmãos” (ainda que “irmãos separa-
acerca do caminhar da Igreja Católica. a Conferência de Vida e Trabalho, em dos”), de forma alguma como “here-
Mas ele foi ecumênico, sobretudo, pelo Estocolmo, Suécia (1925), e a de Fé e ges”. O decreto ainda dá uma série
espírito que o permeou. Os debates fo- Ordem, em Lausanne, Suíça (1927), ini- de recomendações e estímulos para
ram intensos, ocorreram revisões de ciativas que levaram à criação do Con- o diálogo ecumênico, a oração con-
posicionamentos tradicionais da Igreja selho Mundial de Igrejas – CMI após junta, a leitura da Bíblia e a prática da
Católica, muitas vezes no sentido que a II Guerra Mundial, em Amsterdam, caridade. E, ao final, exorta a que não
já era adotado por outras igrejas desde Holanda (1948). Já na primeira metade se coloquem obstáculos à ação do Es-
sempre (por exemplo, a passagem do do século XX, o Patriarcado Ecumênico pírito Santo, precisamente nessas re-
latim para o vernáculo na celebração de Constantinopla manifestara o com- lações e na busca da unidade.
promisso ecumênico. Por largo tempo,
a Igreja Católica manteve uma postura IHU On-Line – Além de Unita-
entrevista de J. Moltmann, analisando o reticente, para não dizer de rejeição, tis Redintegratio, que outros docu-
pensamento de Rahner, disponível para
download em http://migre.me/11DTu.
em relação ao movimento ecumêni- mentos conciliares o senhor des-
No dia 28-04-2004, no evento Abrindo o co. Sua compreensão da unidade da taca como relevantes a partir da
Livro, Érico Hammes, teólogo e profes- cristandade se resumia ao anelo de perspectiva ecumênica? Que resulta-
sor da PUCRS, apresentou o livro Curso
Fundamental da Fé, uma das principais
“retorno” dos demais cristãos à Igreja dos alcançaram?
obras de Karl Rahner. A entrevista com o Católica, não à construção da unidade Walter Altmann – A Constitui-
prof. Érico Hammes pode ser conferida através do diálogo e do caminhar con- ção Dogmática acerca da Igreja (Lu-
na IHU On-Line n.º 98, de 26-04-2004,
junto. Contudo, na pesquisa teológi- men Gentium) descreve a Igreja como
www.ihu.unisinos.br

disponível para download em http://


migre.me/11DTM. Ainda sobre Rahner, ca e na experiência das comunidades mistério divino e realça a categoria
publicamos uma entrevista com H. Vor- locais, o ecumenismo foi claramente do povo de Deus, antes de abordar a
grimler no IHU On-Line n.º 97, de 19-04-
2004, sob o título Karl Rahner: teólogo
avançando. A partir do Vaticano II, a hierarquia, e a santidade desse povo,
do Concílio Vaticano nascido há 100 anos, Igreja Católica assumiu com clareza antes de abordar a vida religiosa. A
disponível em http://bit.ly/mlSwUc. A o compromisso ecumênico e, consi- doutrina acerca da Virgem Maria é
edição número 102, da IHU On-Line, de
24-05-2004, dedicou a matéria de capa
derando que a Igreja Católica é, de exposta nesse documento acerca da
à memória do centenário de nascimento largo, a maior família confessional da Igreja (ao final), e não em algum tra-
de Karl Rahner, disponível para downlo- cristandade, o movimento ecumênico tado acerca da salvação. A Constitui-
ad em http://migre.me/11DTW. Os Ca-
dernos Teologia Pública publicaram o
transformou-se num empreendimento ção Dogmática acerca da Revelação
artigo Conceito e Missão da Teologia em verdadeiramente universal. (Dei Verbum) afirma o Evangelho de
Karl Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico Jesus Cristo como a fonte única e ple-
João Hammes. Confira esse material em
http://migre.me/11DUa. A edição 297,
IHU On-Line – Como o senhor na do conhecimento da salvação, su-
de 15-06-2009, intitula-se Karl Rahner e analisa o documento conciliar sobre perando o esquema pós-tridentino de
a ruptura do Vaticano II, disponível para o ecumenismo, o decreto Unitatis “duas fontes da revelação”, a saber,
download em http://migre.me/11DUj.
(Nota da IHU On-Line)
Redintegratio? a Escritura e a Tradição. Em especial,

30 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


a valorização da Bíblia teve notável
“O Vaticano II mesmo à chamada “hospitalidade

Destaques da Semana
alcance ecumênico, contribuindo de- eucarística” em que os fiéis de dife-
cisivamente, não por último, para o
processo de (re)leitura da Bíblia nas foi um evento rentes igrejas possam ser acolhidos
na comunhão da Ceia em outra igre-
comunidades de base. A Constituição
Dogmática acerca da Sagrada Liturgia
ecumênico ja, por exemplo, em confirmações ou
casamentos ou ainda em encontros
(Sacrosanctum Concilium) encami-
nhou uma profunda reforma litúrgica
primeiramente ecumênicos. Parece haver uma re-
sistência em avançar-se, a dar novos
que incorporou elementos que são
importantes no culto protestante (o
no sentido de passos e uma tendência das igrejas a
recolherem-se em seus próprios mu-
uso do vernáculo, a importância da
pregação/homilia, a animação para o
reunir os bispos ros, para assim enfrentar o desafio da
diversidade religiosa. A meu ver, é de
canto etc.). O Concílio também afir-
mou a liberdade religiosa (Dignitatis
católicos de todo semente
lamentar esse fato, pois é precisa-
a diversidade religiosa que tor-
Humanae) e reexaminou a relação
da Igreja Católica com outras religi-
o mundo para na imperativo o empenho ecumênico.

ões (Nostra Aetate) e sua inserção no


mundo moderno (Gaudium et Spes).
deliberação acerca
IHU On-Line – Para o senhor,
do caminhar da Leia mais...
quais foram os limites ou lacunas do
Vaticano II?
Igreja Católica” Walter Altmann já concedeu outras
entrevistas à IHU On-Line. Confira:
Walter Altmann – Provinda de • Protestantismo: é tempo de refle-
alguém que não é católico, mas tem
tir. Entrevista especial com Cláudio
uma clara orientação ecumênica, toda observadores ecumênicos no Concílio
apreciação crítica deve ser formula- e perturba ainda hoje a não católicos Kupka, Martin Dreher e Walter Alt-
da como um compartilhar de reflexão o fato de que em vários documentos mann. Entrevista publicada no sítio
“intrafamiliar”, isto é, sobre a premissa elaborados pelos padres conciliares IHU, de 31-10-2011, disponível em
da comunhão de fé em Cristo. E não tenham sido introduzidas alterações http://migre.me/be5Ao;
invalida de forma alguma o extraor- “por autoridade superior”, no caso da
• 500 anos depois: Recordar a Re-
dinário legado ecumênico e espiritual Lumen Gentium até mesmo uma “nota
que o Vaticano II nos deixou. Dito isso, explicativa prévia” referente ao capítu- forma, olhando para os desafios
observo os pontos a seguir. Os textos lo acerca da hierarquia. Esse procedi- comuns da cristandade. Entrevista
conciliares foram produzidos, com o in- mento sinaliza uma compreensão ecle- concedida à IHU On-Line, edição
tento de produzir consenso, acolhendo siológica bastante estranha a outras
370, de 22-08-2011, disponível em
em certos momentos, paralelamente, igrejas.
posições que não eram propriamente http://migre.me/be5uw;
coincidentes. Isso deu e dá margem ao IHU On-Line – Cinquenta anos • Lutero hoje, 490 anos depois da Re-
que alguns têm chamado de “guerra após sua abertura, como o senhor forma. Entrevista com Walter Alt-
das interpretações”. Um dilema bem analisa a atualidade do Concílio? mann. Entrevista publicada no sítio
conhecido e de grande alcance nas re- Walter Altmann – O legado do
IHU, de 09-11-2007, disponível em
lações ecumênicas é como entender Vaticano II continua plenamente váli-
a afirmação constante na Lumen Gen- do. Esses cinquenta anos propiciaram http://migre.me/be5JN;
tium de que a Igreja de Cristo “subsiste inúmeros encontros e ações frater- • A eclesialidade das igrejas cristãs.
na” Igreja Católica. Seria uma identifi- nas, entendimentos teológicos signi- Teólogos debatem documento do
www.ihu.unisinos.br
cação pura e simples ou haveria mar- ficativos como a Declaração conjunta Vaticano. Entrevistas especiais com
gem para entender-se que em algum católico-luterana acerca da Doutrina
José Comblin, Walter Altmann e
sentido a Igreja de Cristo ultrapassa da Justificação, e muitas ações sociais
as fronteiras institucionais da Igreja conjuntas. Oração e estudo bíblico Faustino Teixeira. Entrevista publi-
Católica? O fato de que o texto origi- conjuntos se transformaram em prá- cada no sítio IHU, de 12-07-2007,
nal e que foi emendado pelo próprio tica comum de muitas comunidades. disponível em http://migre.me/
Concílio rezava que a Igreja de Cristo Ainda assim, à diferença do entusias- be5OV;
“é” a Igreja Católica parece sinalizar no mo com a causa ecumênica que se
• “Agora é que o diálogo vai se inten-
segundo sentido, mas a interpretação podia registrar nos anos 1960 e ime-
oficial católica vai ao primeiro sentido. diatamente após o Vaticano II, há hoje sificar. Se temos diferenças, vamos
Em alguns documentos, por exemplo, certa resignação e, mesmo, frustração encará-las”. Entrevista com Walter
na Lumen Gentium, há citações bíblicas com os limites do avanço ecumênico. Altmann. Entrevista reproduzida pe-
genéricas e descontextualizadas, ape- Por exemplo, não tem sido possível
lo sítio IHU, em 15-07-2007, dispo-
nas com o fim de comprovar a afirma- ainda chegar-se a um entendimento
ção teológica já efetuada. Perturbou os para a comunhão eucarística, nem nível em http://migre.me/be5Vm.

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 31


Artigo da Semana
Destaques da Semana

O “mensalão” e a esquerda.
Uma leitura crítica a partir da
esquerda

“É
inegável que a direita procura sar a essência do que significa ser esquerda”,
usar o ‘mensalão’ como um aríe- escreve Cesar Sanson, doutor em Sociologia
te para abalar a fortaleza em que pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e
se transformou o mito Lula, porém, cabe à docente na Universidade Federal do Rio Gran-
esquerda social abordar esse tema e criticá- de do Norte – UFRN, em artigo que sintetiza
-lo pela esquerda. Validar o discurso de que a Conjuntura da Semana publicada no sítio do
não se pode criticar os dirigentes do PT pelos IHU em 23-10-20121.
equívocos que cometeram porque isso signi- Eis o artigo.
fica jogar ‘água no moinho da direita’ é recu-

A repercussão daquele que é criticaram o julgamento como sendo [PT] passou a utilizar para chegar e
considerado o maior e mais extenso de “exceção” é simplista e grave por- se manter no poder – entendida a di-
julgamento da história do Supremo que corrobora o sentimento geral de reita aqui nos termos da política bra-
Tribunal Federal (STF), a Ação Penal que ética não combina com política sileira. Conchavos de bastidores com
470, popularmente conhecida como e, pior ainda, autoriza aquela velha partidos oportunistas e mesmo poli-
‘mensalão’, ganhou grande espaço história de que em função de obje- ticamente inimigos, manipulação de
na mídia, nas redes sociais e assu- tivos considerados maiores, os fins processos eleitorais através de acor-
miu no debate ares extremado de justificam os meios. dos que serão pagos posteriormente
ideologização. Embora a ação tenha Tampouco se pode aceitar a tese a qualquer custo, concepção do Esta-
julgado vários personagens da esfera do que aconteceu foi acidental, oca- do como uma fonte de financiamento
privada – banqueiros, empresários e sional. O que sucedeu com o ‘men- dos interesses particulares de grupos,
publicitários –, o foco maior ficou nos salão’ e suas derivações é regra cor- tudo isso à margem da lei”.
www.ihu.unisinos.br

personagens da esfera pública, par- rente na estruturação, financiamento O cientista político Fábio Wan-
ticularmente das lideranças de proa e mobilização pela disputa do poder. derley Reis3 considera que o ‘mensa-
do PT. A esquerda brasileira, majori- Tampouco vale a justificativa de que lão’ só foi possível em decorrência de
tariamente, tratou a ação como “jul- os outros sempre fizeram o mesmo uma espécie de desvio ideológico do
gamento político” – muitos como um e apenas agora, por ser o PT, é que o PT: “A arrogância produzida por certa
“julgamento de exceção”. 1 julgamento passou a ser rigoroso. Na autoimagem ideologicamente condi-
É inegável o uso político do realidade, faz tempo O PT vem mani- cionada, que levou à desqualificação
julgamento do mensalão – recurso festando sinais que se transformou dos outros participantes do jogo par-
constitutivo ao pesado jogo político. num partido tradicional no modo lamentar, considerados burgueses,
No seu conteúdo geral, entretanto, de fazer política. Segundo o filósofo e à ideia de que o melhor a se fazer
a posição de intelectuais, organiza- Thales Ab’Sáber2 o ‘mensalão’ “foi o era comprar sua lealdade. É um cinis-
ções sociais e ativistas políticos que cartão de visita e o atestado das prá- mo autorizado, um maquiavelismo de
ticas políticas de direita que o partido araque, em função de objetivos consi-
1 - A íntegra pode ser acessada no link:
http://bit.ly/TPvSBe 2 - Cf. http://bit.ly/PYIDqK 3 - Cf. http://bit.ly/RhiaGx

32 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


derados maiores, com a ideia de que de quem está no poder e, por outro, jogar “água no moinho da direita” é

Destaques da Semana
os fins justificam os meios”. quem está no poder precisa se aliar recusar a essência do que significa ser
A tese de “desvio ideológico” é aos que não estão para criar as con- esquerda.
contestada por aqueles que conside- dições de governar. Segundo o pro- Uma contribuição para pro-
ram o mensalão como uma contingên- fessor da Unicamp Roberto Romano5, blematizar o tema do ‘mensalão’ é
cia da indispensável necessidade de “é proibido no Brasil ser oposição”. olhá-lo a partir do método da com-
se construir uma maioria de sustenta- Diz ele: “Se discordar, não tem acesso plexidade sugerido por Edgar Morin6
ção ao governo – a tese da governabi- aos recursos. Sem recursos, não leva que propugna que nada está isolado,
lidade. Sobre isso comenta o sociólo- obras para a sua região. Sem obras, todas as ações reverberam e apre-
go Luiz Werneck Vianna4: “A matéria não é reeleito, fica fora do jogo. Esse sentam consequências. Ainda mais
bruta da Ação Penal 470, o mensalão, ‘é dando que se recebe’, essa ausência sofisticado, Morin fala no princípio
foi gestada no interior e a partir dessa de partidos reais, tem como origem do ‘caráter complexo da ética’ que
decisão política de perseguir objeti- essa estrutura do Estado brasileiro se manifesta naquilo que chama de
vos de mudança social desancorada que é supercentralizada”. ‘ecologia da ação’. Diz Morin: “Des-
de uma ativa esfera pública demo- A partir da interpretação da re- de o momento em que um indivíduo
crática, que importava a mobilização alpolitik – na política as coisas funcio- empreende uma ação, qualquer que
dos movimentos sociais, que logo, nam assim, parte da esquerda atribui seja ela, esta começa a escapar de
aliás, seriam postos sob a influência o destaque ao ‘mensalão’ a retomada suas intenções. Ela entra num univer-
de agências estatais, quando não es- de certa agenda udenista no país, ao so de interações e finalmente o meio
tatalizados tout court, convertendo- gosto da direita, que procura obses- ambiente apossa-se dela num sentido
-se a política num quase monopólio sivamente desmontar os avanços so- que pode se tornar contrário ao da in-
da chefia do Executivo”. Segundo ele, ciais obtidos na Era Lula. Nessa ótica, tenção inicial. Com frequência a ação
“aos partidos dessa bizarra coalizão o ‘mensalão’ é visto como algo menor retorna em bumerangue sobre nossa
presidencial, tangidos a ela com a ex- diante de tantas conquistas e avanços cabeça”, escreve ele no livro Introdu-
pectativa de extrair recursos públicos sociais e econômicos. Essa posição ção ao pensamento complexo (Porto
para sua reprodução eleitoral, caberia suscita uma questão: A instauração Alegre: Sulina, 2005, p. 80-1).
conceder apoio parlamentar às inicia- de políticas sociais, o bolsa-família, a Aqui entra o PT e a ação de mui-
tivas governamentais, enquanto ao política de cotas, a mobilidade social tos de seus dirigentes, que “aceita-
Executivo, pelas vias decisionistas do dos mais pobres para cima, fornecem vam” o jogo do ‘mensalão’ e suas di-
direito administrativo, caberia realizar um “salvo conduto” aos erros de seus ferentes modalidades – o mesmo vale
a agenda de mudanças avaliada como dirigentes? Tudo pode ser justificado para militantes de base – na convicção
compatível com as circunstâncias”. ou atenuado porque o PT, no governo, de que se tratava de um mal menor
O ‘mensalão’, portanto, passou passou a adotar políticas sociais antes ou mesmo necessário para o avanço
a ser aceito por muitos como um ex- inexistentes? das reformas no Brasil.
pediente que foi necessário para ga- É inegável que a direita procu- A contemporização com os des-
rantir governabilidade e realizar os ra se apropriar do discurso udenista vios do PT, ou a indulgência para com
avanços que o Brasil precisava. Nessa e usa o ‘mensalão’ como um aríe- parcela dos seus dirigentes despolitiza
concepção trata-se de um mal menor te para abalar a fortaleza em que se o debate e, ainda mais grave, assume
em função de um bem maior – a ideia transformou o mito Lula, porém, cabe caráter antirrepublicano.
de que os fins justificam os meios, à esquerda social abordar esse tema A polêmica do ‘mensalão’ suscita
como já destacado. e criticá-lo pela esquerda. Validar o e recoloca em pauta o debate do que
É recorrente no Brasil, a tese discurso de que não se pode criticar é ser esquerda hoje.
de que para sobreviver na política, os dirigentes do PT pelos equívocos www.ihu.unisinos.br
por um lado, é preciso estar ao lado que cometeram porque isso significa

6 -Cf. http://bit.ly/PC4ZVV
4 -Cf. http://bit.ly/Q0DLmd 5 - Cf. http://bit.ly/PYIKCF

LEIA OS CADERNOS TEOLOGIA PÚBLICA


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EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 33
Valério Cruz Brittos
O legado piauiense do orientador de tese, do mestre
incansável, do mentor ético e amigo inesquecível

Por Jacqueline Lima Dourado*

Foi em 26 de fevereiro de 2007 que pude vislumbrar um norte estando numa si-
nasci de novo. Fui reintegrada ao Progra- tuação novamente caótica com minha mãe
ma de Pós-Graduação da Unisinos. Como extremamente doente. Saí dali com um ro-
fui afastada é algo para mim tão traumático teiro de leituras, com missões, prazos e en-
que dispensarei ao leitor os detalhes deste caminhamentos. Valério não perdia tempo.
assunto. O fato é que uma das perguntas Tinha uma pressa imensa. Razão e coração
no final da reunião junto da coordenadora juntos o tempo todo.
do PPG à época, professora Christa Berger, O primeiro semestre foi muito ruim.
questionava se eu tinha em mente alguém Eu tateava com as novas leituras, tive ainda
para me orientar e eu com a voz trêmu- que cumprir mais créditos. Aquilo me can-
la disse: Valério Cruz Brittos. Falei o nome sava. Viajava a cada quinze dias Teresina/
de forma rápida, urgente e ensaiada. Não POA/Teresina. Achei que novamente não
conhecia o professor. Mas tinha passado a iria conseguir e minha mãe só piorava. En-
noite lendo Rede Globo – 40 anos de poder tre o primeiro e o segundo semestres Va-
e Hegemonia, de autoria dele e de Cesar lério chamou-me e traçamos uma meta de
Bolaño. Escutei de Christa: “O Valério é um leitura, produção e a inserção no grupo de
pesquisador muito sério, muito bacana e pesquisas e apresentação de trabalhos e en-
muito ocupado. Seria bom se tu convence- contros. Tudo foi se encaixando e comecei
res ele a te aceitar”. a produzir.
A palavra convencer martelou em mi- Neste ínterim, resolvi, junto de Va-
nha cabeça até nosso primeiro encontro. lério, trazê-lo ao Piauí para abertura do
E neste hiato temporal eu indagava como projeto Diálogos Necessários, junto à
vou convencer? O que vou dizer para este faculdade CEUT. Foi brilhante. Mais de
professor depois de tudo o que me aconte- trezentos estudantes, professores, jorna-
ceu? Resolvi falar às claras. Olho no olho. listas e publicitários reunidos em um gi-
Sinceridade dos dois lados. E foi assim e foi násio de esportes e Valério falou mais de
sempre assim. Em nossa primeira entrevista duas horas para uma plateia atenta. Era

___________________________
* Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e profes-
sora do curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí - PPGCOM/UFPI,
líder do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e Diversidade - COMUM/UFPI e membro do
Conselho Fiscal da ULEPICC – Capítulo Brasil. E-mail: jacdourado@uol.com.br.

34 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


Coordenação: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha
WWW.GRUPOCEPOS.NET

um mês de outubro de muito calor. em desenvolvimento no PPGCOM que nos dias 6 e 7 de junho. Encontrei meu
Na plateia, potenciais novos admi- agora é uma realidade. querido professor debilitado em um
radores da Economia Política da Co- No Intercom 2011 em Recife-PE clima extremamente frio de Buenos
municação. Valério ficou encantado discutimos e elaboramos o Seminário Aires. Ficamos preocupados e querí-
pelo Piauí. Nessa noite começamos Internacional de Economia Política amos preservá-lo de saídas e de ficar
a traçar o que seria no futuro um do Jornalismo para maio de 2012. Ao muito tempo no vento. Ele nos olhou
grupo de pesquisas que eu há muito longo do ano fomos trocando telefo- e disse: “eu quero viver, me deixa ir
imaginava: O Grupo de Pesquisas em nemas e e-mails sobre nomes, progra- para tudo, quero ir para todos os lu-
Comunicação Economia Política e mação, GTs etc. Sempre finalizava as gares, me deixa viver”. Assistiu a todas
Diversidade – COMUM. Queria fazê- novas conversas com a frase “tu sabes as apresentações. Ao final tivemos um
-lo na Universidade Federal do Piauí. que podes contar comigo, tu sabes dia de folga e percorremos a Florida, o
Queria reconstruir minha trajetória que pode contar com o Cepos, tu és Caminito, Puerto Madero e não podí-
na UFPI também. Valério se prontifi- parte dele. És do grupo”. amos deixar de ir até El Ateneo Grand
cou a me ajudar no que fosse preci- Estivemos juntos em março na Splendid e La Crujia. Saímos com volu-
so. Sugeriu leituras, adorou o nome banca de defesa de tese do cepeano mes de livros. Livros que estou lendo,
COMUM e deu conselhos de como Luciano Correia. Almoçamos e ratifica- mas a ele faltou tempo.
seguir, tratar, fazer projetos. mos tudo sobre o Seminário em Tere- Dia 27 de julho nosso amigo
Das 284 páginas da tese anterior sina e a proposta do livro pós-evento. se foi. Deixou como legado a minha
restou o pó. Comecei do zero. Fiz a Valério estava animadíssimo. orientação de tese, da Rafaela Bar-
tese em dezoito meses. Depois que Marcado para os dias 29 e 30 de bosa (mestrado), do Ricardo Vernieri
defendi, formatei o grupo COMUM e maio Valério faria a palestra magna (tese em andamento). Estavam aqui
realizei na UFPI o Cepos Debates como de abertura e fazia parte também do aguardando por ele os alunos de ini-
evento inaugural do Grupo COMUM. comitê científico. Em abril recebo, por ciação científica, mestrandos e mais
Aliada ao Cepos e seus projetos ele, a notícia de que não poderia vir, de 250 participantes do seminário que
de pesquisas, foi possível juntar os que estava doente e que enfrentaria não tiveram a chance de ouvi-lo. Dei-
primeiros alunos no coletivo de pes- um longo tratamento. Em choque in- xou vários amigos e admiradores entre
quisas e seguir com as orientações de ventei uma desculpa qualquer para professores que foram orientados por
TCC (graduação) e os PIBICs. Enquanto sua ausência por respeito e por Valé- ele, mestrandos que leem sua obra
isso era trabalhado o projeto de mes- rio ser sempre uma pessoa muito dis- por influência de suas palestras e alu-
trado para o curso de Comunicação. creta em sua vida pessoal. nos de iniciação científica que seguem
Novamente Valério se prontificou a Mesmo doente nos falávamos a os caminhos da Economia Política da
ajudar numa de suas vindas. Comigo cada dois ou três dias e marcamos que Comunicação.
pudemos formatar a ementa da disci- eu estaria presente no I Encontro de Adeus meu mestre, meu mentor
plina Economia Política do Jornalismo Equipos de Investigación Cepos/UNQ, e meu amigo.

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 35


Destaques On-Line
Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 23-10-2012 a 29-10-2012, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

RN. Projeto do perímetro irrigado da “Ele perseguia um ideal, e isso tem a ver com a
formação que tivemos em casa, de ter um olhar
chapada do Apodi. Um contrassenso humanitário, de se preocupar com o próximo”, dizem
Entrevista especial com Antonio Nilton Bezerra as irmãs do médico gaúcho, assassinado na Guerrilha
Júnior, sociólogo e membro da Comissão do Araguaia há 40 anos.
Pastoral da Terra – CPT de Mossoró-RN
Confira nas Notícias do Dia de 23-10-2012
Acesse no link http://bit.ly/TPx5Z6
Megaeventos e a governança
A subsistência de milhares de famílias que trabalham empreendedorista neoliberal
com a agricultura e pecuária está ameaçada pelo
projeto “Perímetro Irrigado de Apodi”, que prevê Entrevista especial com Orlando Alves dos
entregar as “terras da chapada do Apodi e a água Santos Junior, professor do Instituto de Pesquisa
da barragem de Santa Cruz, que tem capacidade de e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/
armazenar 600 milhões de metros cúbicos, a cinco UFRJ, e pesquisador da Rede Observatório das
grandes empresas da fruticultura irrigada”. Metrópoles
Confira nas Notícias do Dia de 26-10-2012
Acesse no link http://bit.ly/S0r6kC

3,4 milhões crianças trabalhando: “É Os atuais projetos de “reestruturação urbana” em


curso por causa da Copa do Mundo 2014, longe
inaceitável” de ser “um projeto de desenvolvimento urbano”,
Entrevista especial com Isa Maria de Oliveira, buscam “reafirmar antigas centralidades urbanas já
secretária do Fórum Nacional de Prevenção e presentes nas cidades-sede, fortalecer e revitalizar
Erradicação do Trabalho Infantil centralidades decadentes assim como criar novas
Confira nas Notícias do Dia de 24-10-2012 centralidades”, diz o sociólogo e especialista em
Acesse no link http://bit.ly/Ta0r3s planejamento urbano e regional.

“Se analisarmos que em uma década pouco mais de


meio milhão de crianças foram retiradas do trabalho
infantil, e que ainda há um universo de 3,4 milhões Teologia da Libertação: ‘’uma
crianças trabalhando, isso revela claramente que as experiência profunda de Jesus junto aos
políticas e os programas adotados e implementados pobres’’
www.ihu.unisinos.br

no Brasil não estão dando conta da gravidade do


problema”, disse a entrevistada. Entrevista especial com Victor Codina, teólogo
Confira nas Notícias do Dia de 27-10-2012
Acesse no link http://bit.ly/VuGBlz

Guerrilha do Araguaia “deixou marcas “Seguramente, se muitos dos que nos criticaram
profundas que não tem como apagar” tivessem vivido na América Latina, teriam entendido
melhor as coisas. Havia uma perspectiva muito
Entrevista especial com Sônia e Tânia Haas eurocêntrica, pensando que, se uma teologia não
Confira nas Notícias do Dia de 25-10-2012 nasce na Europa, ela é suspeitosa”, diz o teólogo
Acesse no link http://bit.ly/R0pTZm radicado na Bolívia.

36 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


Confira as publicações do

Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica

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Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
38 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
IHU em Revista
Agenda da Eventos do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Semana programados para a semana de 29-10-2012 a 05-11-2012

Evento: Ciclo de Filmes e Debates: Crise do capitalismo no Cinema


Filme: Debtocracy (Katerina Kitidi e Aris Hatzistefanou, Grécia, 2011, 74min)
Debatedores: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha – Unisinos e Anderson D. G. dos Santos – mestrando em Comunicação da
Unisinos
Data: 30-10-2012
Horário: das 19h30min às 22h15min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/SNCz6D

Evento: Oficina sobre a construção de indicadores de saúde e ambiente


Ministrante: Profa. MS Marla F. Kuhn - Unisinos
Data: 31-10-2012
Horário: das 14h às 17h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/PvWrjc

Evento: Ciclo de Estudos em EAD: Jesus e o Reino no Evangelho de Marcos


Etapa: Módulo VI: Sexta etapa - Jesus, o Messias crucificado e ressuscitado: compromisso para hoje (Mc 14,1-16,20)
Período: de 29 de outubro a 11 de novembro
Local: Plataforma Moodle Unisinos
Mais informações: http://bit.ly/MQBDzg

Evento: IHU ideias


Tema: Censo 2012 e religiões: reflexões a partir do novo mapa religioso brasileiro
Palestrante: Prof. Dr. José Rogério Lopes - Unisinos
Data: 01-11-2012
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

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EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 39
Entrevistas de Eventos
IHU em Revista

Debtocracy: a crise econômica


grega em destaque
O documentário retrata a construção da dívida da Grécia em 2010, resgatando um
histórico de como ela foi construída desde o início do século XIX, a partir do Reino Unido –
como se deu, inclusive, aqui no Brasil, aponta Anderson David Gomes dos Santos

Por Thamiris Magalhães

S
egundo Anderson David Gomes dos benefícios privados, hipótese retratada com os
Santos, em entrevista concedida por exemplos da Siemens e do Goldman Sachs – este
e-mail à IHU On-Line, o documentário De- presta consultoria ao governo grego para entrar
btocracy toma como base o conceito de “dívida na União Europeia, maquilando os números da dí-
odiosa”, muito utilizada nos Estados Unidos após vida, ao mesmo tempo em que ‘jogava’ contra ele
invasões militares (caso recente do Iraque) para na bolsa de valores”.
não pagar as dívidas feitas até então nos países Anderson D. G. dos Santos – Mestrando em
invadidos. “A dívida é ‘odiosa’ porque a popula- Comunicação da Unisinos e Prof. Dr. Bruno Lima
ção não foi consultada sobre sua aquisição, não Rocha – Unisinos estarão no IHU, no próximo dia
sabe se o dinheiro recebido foi gasto para o bem 30 de outubro, das 19h30min às 22h15min, con-
público, mas principalmente os credores sabiam duzindo o documentário Debtocracy (Katerina
das duas informações anteriores, o que indicaria Kitidi e Aris Hatzistefanou, Grécia, 2011, 74min.),
problemas se entendida determinada formação na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.
política a partir de uma ‘democracia’”, analisa. E Maiores informações: http://migre.me/bq6Pl.
continua: “Os exemplos demonstrados de Argen- Anderson David Gomes dos Santos é Jornalista
tina e Equador deixam clara a intenção do docu- formado pela Universidade Federal de Alagoas –
mentário de propor uma comissão de auditoria UFAL, mestrando em Ciências da Comunicação na
da dívida grega, algo defendido por especialistas Unisinos e coordenador-executivo do Núcleo de
ouvidos. Por mais que sejam realidades socioeco- Estudos Interdisciplinares da Globalização Trans-
nômicas diferentes, o intuito é saber o que real- nacional e da Cultura do Capitalismo (NIEG).
mente seria a dívida contraída e o que não deixa Confira a entrevista.
de ser apenas juros ou dívidas construídas para
www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – Quais são os pon- a dívida pública, que eles irão denomi- ela se assimila a outras palavras, como
tos principais que o filme Debtocracy nar ao longo do filme com a categoria democracia, aristocracia e teocracia?
traz em sua gênese? de “odiosa” pelos problemas que ela Anderson David Gomes dos San-
Anderson David Gomes dos San- causa à população, que não tem nada tos – O título é uma derivação destes
tos – O Debtocracy1 discute a situa- a ver com a sua criação e seu aumen- termos mais conhecidos, que repre-
ção atual da Grécia, com problemas to. Para contar isso, os autores expli- sentam diferentes formas de aplica-
econômicos difundidos diariamente cam a história política grega, que seria ção do poder “oficial”. Dividocracia re-
pelos meios de comunicação interna- comandada por dois partidos e três presentaria uma espécie de governo
cionais, explicando como se chegou famílias após o período de ditadura, determinado por uma dívida, já que
até este ponto a partir de uma contex- com benefícios a determinados gru- é para pagá-la, ou aos seus juros, que
tualização sobre como foi “adquirida” pos empresariais multinacionais em se cortam direitos sociais e reduzem o
dados momentos. papel do Estado na sociedade. O ber-
1 Direção: Katerina Kitidi e Aris Chatzis- ço do poder pelo povo, representado
tefanou, Ano 2011, Gênero Documental – IHU On-Line – Qual a origem da pelo conceito de “democracia”, passa
Economia, Duração 74 minutos. (Nota da
IHU On-Line)
palavra debtocracy e de que maneira longe de existir, algo comprovado com

40 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


a desistência de realizar um plebiscito de auditoria da dívida grega, algo de- forçou uma reconfiguração política no

IHU em Revista
sobre a moratória da dívida após pres- fendido por especialistas ouvidos. Por país e a mudança das relações com o
são da troika (Banco Central Europeu, mais que sejam realidades socioeco- FMI, que havia gerado até então uma
União Europeia e Fundo Monetário nômicas diferentes, o intuito é saber o dívida não só “impagável” como pre-
Internacional). que realmente seria a dívida contraída judicial aos direitos sociais. Este caso
e o que não deixa de ser apenas juros é utilizado como possibilidade de
IHU On-Line – De que maneira o ou dívidas construídas para benefícios ação na Grécia, que também conta
documentário retrata a dívida grega privados, hipótese retratada com os com protestos e manifestações já há
em 2010? exemplos da Siemens e do Goldman alguns anos, mas sem mudanças efe-
Anderson David Gomes dos San- Sachs – este presta consultoria ao tivas no topo do poder, responsável
tos – O documentário retrata a cons- governo grego para entrar na União pelas decisões socioeconômicas. A Ar-
trução desta dívida, resgatando um Europeia, maquilando os números da gentina é mostrada para se dizer que
histórico de como ela foi construída dívida, ao mesmo tempo em que “jo- “dívidas odiosas”, que só prejudicam a
desde o início do século XIX, a partir gava” contra ele na bolsa de valores. população dos países, devem ser sim
do Reino Unido – como se deu, inclu- Além de outros países europeus, ca- reanalisadas e/ou não pagas.
sive, aqui no Brasil. A partir daí, vê-se sos da França e da Alemanha, segui-
o crescimento desta dívida ao mesmo rem vendendo veículos bélicos para IHU On-Line – Gostaria de acres-
tempo em que se há privilégios para o país, ao custo de bilhões de euros, centar algum aspecto não questionado?
grandes empresas multinacionais, ao mesmo tempo em que cobram Anderson David Gomes dos San-
com grande prejuízo para o Estado, e uma austeridade fiscal por parte do tos – Lembrar que o documentário foi
toda a armação de números para a en- governo grego, com corte de recursos produzido com recursos de amigos
trada na União Europeia, após um pe- sociais. dos diretores e de voluntários, visan-
ríodo de entrada no capital financeiro do com isso não se atrelar a interes-
com ações estatais que acabaram por HU On-Line – De que maneira o ses de quaisquer grupos empresariais
demolir ainda mais a economia local a documentário retrata a posição do de comunicação – modelo seguido no
partir dos efeitos da “crise” econômi- governo grego diante desta situação? segundo documentário deles, o Ca-
ca dos Estados Unidos. Trata-se de um Anderson David Gomes dos tastroika, que trata das catástrofes so-
acúmulo de momentos anteriores que Santos – O documentário vê que os ciais no mundo por conta das respos-
beneficiaram basicamente entidades governantes foram responsáveis por tas e das consequências ao ciclo de
privadas – há o relato de que foi gasto isso, principalmente pela estrutura “crise”. Curiosamente, apesar de estar
o dobro com as Olimpíadas de Atenas montada, em que há pouco rodízio disponível na internet para ser visto
em relação às edições anteriores, por político e um aparente benefício ao e debatido, o documentário não che-
exemplo. Além disso, apresenta casos capital privado em detrimento dos gou de forma física ao Rio Grande do
em que as dívidas foram perdoadas interesses da população, que pratica- Sul, em parte devido a essa questão
ou foi decretada a moratória por con- mente não é consultada sobre as deci- da distribuição, mas também, quem
ta de pressão popular. sões a serem tomadas que influencia- sabe, por conta do tema abordado.
rão as camadas mais desfavorecidas.
IHU On-Line – Quais são as pos-
síveis soluções futuras que o docu-
mentário traz para solucionar o pro-
IHU On-Line – De que forma
Debtocracy traça paralelos entre Leia mais...
blema financeiro grego? a crise econômica argentina de 1999-
Anderson David Gomes dos Santos
Anderson David Gomes dos 2002 com a atual crise econômica
Santos – O documentário toma como na Grécia? já concedeu artigos à IHU On-Line.
base o conceito de “dívida odiosa”, Anderson David Gomes dos San- Confira:
muito utilizada nos Estados Unidos tos – Ele faz a comparação a partir
www.ihu.unisinos.br
• O saldo da transmissão olímpica é
após invasões militares (caso recente das situações-limite, em que a Argen-
do Iraque) para não pagar as dívidas tina recebeu forte pressão do Fundo de mais brigas para o futuro. Artigo
feitas até então nos países invadidos. Monetário Internacional, enquanto a publicado na Coluna do CEPOS da
A dívida é “odiosa” porque a popula- Grécia recebe forte pressão do Ban- Revista IHU On-Line, edição 401, de
ção não foi consultada sobre sua aqui- co Central Europeu – muito mais do
03-09-2012, disponível em http://
sição, não sabe se o dinheiro recebi- que do FMI. No caso argentino, que
do foi gasto para o bem público, mas deveria servir como modelo das prá- migre.me/bloFn;
principalmente os credores sabiam ticas neoliberais na América Latina • Por dispositivos legais sobre a trans-
das duas informações anteriores, o e das ações possibilitadas pelos em- missão de eventos esportivos. Arti-
que indicaria problemas se entendida préstimos desse banco, foram gera-
go publicado na Coluna do CEPOS
determinada formação política a par- dos vários problemas sociais, caso
tir de uma “democracia”. Os exemplos de nível elevado de desemprego, que da Revista IHU On-Line, edição 389,
demonstrados de Argentina e Equa- culminaram na ocupação das ruas da de 23-04-2012, disponível em ht-
dor deixam clara a intenção do do- cidade e com uma série de demissões
tp://migre.me/bloOi.
cumentário de propor uma comissão de presidentes da República, o que

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 41


IHU em Revista
Enfrentamento das
desigualdades socioambientais,
a perspectiva da oficina de
indicadores
Nossa oficina promove uma abordagem da questão dos determinantes
socioambientais e desigualdades em saúde, com o objetivo de identificar as
políticas públicas prioritárias de enfrentamento conjunto dessas desigualdades,
analisa Marla Kuhn

Por Thamiris Magalhães

“N
a oficina, pretendo chamar completa: “O efeito multiplicador é o objetivo
atenção para construção neces- dessa oficina!”
sária de indicadores represen- Marla Kuhn estará no IHU no dia 31-10-
tativos da situação que desejamos trabalhar, 2012, durante a Oficina sobre a construção
numa lógica de análise que leva em conta as de indicadores de saúde e ambiente, das 14h
diversas determinações socioambientais pre- às 17h, na Sala Ignácio Ellacuría e Companhei-
sentes nos processos e a multidimensionali- ros, no IHU. Mais informações em: http://mi-
dade dos fenômenos existentes, uma crítica gre.me/blIp0.
do modelo de desenvolvimento que busca Marla Kuhn é assistente social, especialista
sustentabilidade dos negócios muito mais do em saúde pública e mestre em geografia/análi-
que da vida saudável no planeta”, conta a pro- se ambiental pela Universidade Federal do Rio
fessora do curso de Serviço Social da Unisinos, Grande do Sul – UFRGS. Trabalha na Vigilância
Marla Kuhn, em entrevista concedida por e- em Saúde pela prefeitura municipal de Porto
-mail à IHU On-Line. Para ela, a viabilização de Alegre. É membro do grupo de trabalho Saúde
espaços de troca de experiências é um exer- Ambiente, da Associação Brasileira de Saúde
www.ihu.unisinos.br

cício necessário para ampliar análises locais Coletiva – Abrasco. É, ainda, professora do cur-
sobre os problemas socioambientais. “Exer- so de Serviço Social da Unisinos e pesquisadora
citar a construção de indicadores integrados em Saúde Ambiental e Serviço Social.
é operacionalizar a interdisciplinaridade”. E Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais serão os existência de populações expostas ou populações que impactam ou são im-
pontos principais a serem abordados potencialmente expostas ao ambien- pactadas por atividades que se insta-
na oficina sobre a construção de indi- te degradado ou poluído. Essa pers- lam nos diversos espaços sociais. Na
cadores de saúde e ambiente? pectiva, esse olhar para a realidade, oficina, pretendo chamar atenção
Marla Kuhn – Quando pensamos têm chances, em minha opinião, de para construção necessária de indi-
na relação saúde/ambiente, conside- realmente referir-se ao real se puder cadores representativos da situação
ro muito importante investigarmos a contar com a percepção das próprias que desejamos trabalhar, numa ló-

42 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


gica de análise que leva em conta as
“Acredito que é e/ou aperfeiçoamento de indicado-

IHU em Revista
diversas determinações socioambien- res de saúde e ambiente?
tais presentes nos processos e a mul-
tidimensionalidade dos fenômenos
sempre muito Marla Kuhn – Na oficina, vamos
trabalhar a Matriz De Corvalan uti-
existentes, uma crítica do modelo de
desenvolvimento que busca sustenta-
bom avaliar, com lizada pela Organização Mundial de
Saúde – OMS e amplamente divulga-
bilidade dos negócios muito mais do
que da vida saudável no planeta. Nes-
as pessoas que da como ferramenta metodológica
na construção de indicadores de saú-
se sentido, o conhecimento das con-
dições ambientais locais ou regionais
vivem nas cidades, de e ambiente. Trata-se de construir,
por meio da reflexão sobre questões
e das atividades socioeconômicas é as políticas socioambientais, locais relevantes,
de extrema relevância para o estabe- uma hierarquia de indicadores que
lecimento de medidas de prevenção públicas vigentes revelem dimensões determinantes
aos agravos e eliminação dos riscos gerais que chamamos de forças mo-
potenciais e existentes. no sentido de trizes, descritores de pressão, estado,
exposição, efeitos e respectivas ações
IHU On-Line – Em que sentido garantir sua para enfrentamento dessas questões.
a capacitação para a construção de No processo de reflexão, os presentes
indicadores da realidade das ações representatividade podem construir redes sociotécnicas
nos cenários sociais e, em especial, articulando forças e representações,
em relação à saúde, ambiente e aos e efetividade junto bem como alianças locais. A defini-
cenários de gestão em rede se faz ur-
gente na região do Vale dos Sinos? aos movimentos ção dos indicadores deve levar em
consideração o problema ou a ques-
Marla Kuhn – Acredito que é
sempre muito bom avaliar, com as sociais” tão a ser abordada, a partir do uso do
indicador e do interesse do usuário.
pessoas que vivem nas cidades, as Aspectos como o risco ambiental es-
políticas públicas vigentes no sentido pecífico, o local onde acorre a exposi-
de garantir sua representatividade IHU On-Line – Quais são os prin- ção humana (uma casa, uma fábrica,
e efetividade junto dos movimentos cipais desafios da construção de indi- uma cidade), o resultado específico
sociais. O reconhecimento da impor- cadores de saúde e ambiente? de saúde ou uma ação específica ou
tância das questões socioambientais Marla Kuhn – O maior desafio política setorial pública devem ser
como determinantes da saúde tem é realizar abordagens integradas. Os considerados.
sido demonstrado quando, por exem- indicadores a serem definidos devem
plo, examinamos doenças específicas, ser de uso comum e geral. O trabalho IHU On-Line – Quais as perspec-
como as diarreicas e de infecções das intersetorial e interinstitucional deve tivas e possibilidades que serão en-
vias respiratórias inferiores relaciona- ser empreendido baseado na integra- contradas após a oficina?
das ao meio ambiente, que são maio- ção do setor saúde com diversas insti- Marla Kuhn – A viabilização de
res nos países em desenvolvimento tuições. Os dados e informações pro- espaços de troca de experiências é
do que nos países desenvolvidos. duzidos pelas áreas do setor saúde, um exercício necessário para ampliar
Percebemos que no nível nacional – e os do meio ambiente, da agricultura, análises locais sobre os problemas so-
mesmo local – essas desigualdades se por exemplo, devem ser utilizados na cioambientais. Exercitar a construção www.ihu.unisinos.br
reproduzem apresentando diferenças obtenção geral do entendimento e na de indicadores integrados é operacio-
marcantes em seus territórios. Iden- compreensão das relações de saúde nalizar a interdisciplinaridade. Acredi-
tificar essas diferenças possibilita aos e do meio ambiente. A falta de dados to que irá nos oportunizar introduzir
gestores e população a construção em nível local, ou os dados disponí- novas formas de olhar para os pro-
de ações em rede de enfrentamento veis sobre condições do meio ambien- blemas urbanos, que têm se tornado
dos efeitos das diversas formas de po- te e saúde, podem estar disponíveis cada vez mais complexos e abrangen-
luição nas localidades. Nossa oficina em diferentes níveis de resolução, tes, nos levando assim a uma nova re-
promove uma abordagem da ques- tornando difícil a criação de vínculos flexão e necessidade de informações
tão dos determinantes socioambien- entre as condições ambientais e as melhoradas que deem suporte a uma
tais e desigualdades em saúde, com condições de saúde, ou ainda a identi- nova forma de pensar e abordar os
o objetivo de identificar as políticas ficação de grupos de risco. problemas. O efeito multiplicador é o
públicas prioritárias de enfrentamen- objetivo dessa oficina!
to conjunto dessas desigualdades IHU On-Line – De que maneira a
socioambientais. oficina poderá auxiliar a construção

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 43


IHU em Revista
Nota de Eventos
Novo mapa religioso brasileiro
em discussão
Por Thamiris Magalhães

R
efletir sobre a mudança do mapa reli- na mesma entrevista, que, segundo os dados
gioso brasileiro, a partir dos dados divul- do censo, trata-se de um perfil populariza-
gados no último Censo, é o objetivo do do, concentrado nos estratos de baixa renda
próximo IHU ideias, que será realizado no dia e escolaridade. “O crescente avanço dos ca-
1º de novembro, das 17h30min às 19h, na Sala rismáticos entre os católicos tem acentuado
Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. A um perfil espiritualista, mas conservador, com
programação será conduzida pelo Prof. Dr. José foco nas interações midiáticas e em grandes
Rogério Lopes que, naa edição 400 da revis- eventos”, diz. E acrescenta: “Por outro lado, é
ta IHU On-Line, abordou o tema. Na ocasião, importante considerar que o catolicismo tem
o docente afirmou que “as religiões no Brasil historicamente uma dinâmica plural de iden-
tendem a compor futuramente um campo tificações e filiações, característica dos con-
complexo e difuso de filiações e trânsitos dos sensos hegemônicos, que libera os católicos
fiéis entre elas, com tendências ao acirramen- de filiações rígidas e disciplinadoras. Assim,
to da concorrência religiosa”. Leia entrevista mesmo considerando as tendências conser-
completa aqui: http://migre.me/blpto. Para ler vadoras acima citadas, o perfil do católico ain-
a edição completa da revista IHU On-Line, edi- da se caracteriza por uma composição variada
ção 400, acesse: http://migre.me/blpFP. e multifacetada”.
Em relação ao perfil do católico que emer- O Prof. Dr. José Rogério Lopes já contribuiu
ge do censo 2010 e dos traços mais caracterís- com o IHU, ademais, com diversas entrevis-
ticos deste perfil, José Rogério Lopes afirma, tas. Confira.

• Clube da luta, uma crítica ao sistema capitalista. Edição 341 da revista IHU On-Line, de 30-08-2010, disponível em http://
migre.me/ap6nx;
• Perfil. Edição 201 da revista IHU On-Line, de 23-10-2006, disponível em http://migre.me/ap6rk;
• Imagética da devoção, uma geografia do sagrado. Edição 361 da revista IHU On-Line, de 16-05-2011, disponível em http://
migre.me/ap6vH;
www.ihu.unisinos.br

• Fórum Social Mundial. Limites e possibilidades. Entrevista publicada nas  Entrevistas do Dia, de 26-11-2009, disponível em
http://migre.me/ap6Ze;
• Psicologia e antropologia. Relações práticas. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, de 18-09-2006, disponível em http://
migre.me/ap74a;
• Uma reflexividade comunitária e laica. Edição 307 da revista IHU On-Line, de 08-09-2009, disponível em http://migre.me/ap6WI.

E mais...
José Rogério Lopes também já publicou no Cadernos IHU ideias. Confira:
• Imagética e formações religiosas contemporâneas: entre a performance e a ética. Cadernos IHU ideias, n. 150, 2011, disponí-
vel em http://migre.me/ap7iK.

44 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


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EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 45


IHU Repórter
IHU em Revista

Airton Adalmir Cima da Silveira


Por Thamiris Magalhães

“S
ou uma pessoa que, se tiver que “Mas, na Unisinos, formalmente já estou
falar o que achar de devo, digo, há 19”. Em entrevista concedida pessoal-
sempre na frente da pessoa. Não mente à IHU On-Line, Airton diz que não
sou de falar de ninguém pelas costas. Se eu é ambicioso e que seu maior sonho é ver
achar que estou com a razão, por mais que seus filhos todos bem, quando tiver mais
doa, falo. Esse é o meu perfil”, admite Air- velho. Conheça um pouco mais sua história
ton Adalmir Cima da Silveira, que trabalha de vida.
na maquetaria da Unisinos, há cinco anos.

Origem – Nasci em 04-08-1962. oportunidade de retomar os estu- então, de maneira geral, há 32 anos
Sou natural de Esteio. Minha mãe, dos aqui. Fiz o primeiro grau nesta nesta instituição.
meu pai e meus dois irmãos mais instituição, por dois anos e meio.
velhos são de Rio Pardo. Minhas ir- Trabalho – Antes, eu trabalhava Lazer – Gostava de jogar bola,
mãs também nasceram em Esteio. na manutenção da Unisinos. Na ma- mas hoje parei. Agora, tiro mais
No total, somos cinco irmãos: Car- quetaria estou há cinco anos. Mas, tempo para brincar com minha filha
los, Rejane, Clair, Marta e eu. Todos na Unisinos, formalmente já estou que tem 10 anos. Com meus outros
moramos em Sapucaia do Sul e so- há 19. Porém, comecei a trabalhar dois filhos não tive muito tempo
mos casados. Minha mãe, Eloni, e nesta instituição em 1980, com as para isso. Eles cresceram e eu se-
meu pai, Gerdau, moram em Sapu- empreiteiras, por quatro anos, até quer vi isso acontecer. Até porque,
caia e são separados. Sou casado há 1984. Depois, fiquei dois anos fora, como trabalho também de pedreiro,
www.ihu.unisinos.br

27 anos com a Marlei e temos três trabalhando em outras empresas. tive que construir a nossa casa. Toda
filhos, a Jaqueline, de 26 anos, que é Posteriormente, em 1986, retornei, a nossa residência foi construída por
casada; o Hamilton, de 25 anos, que trabalhando com as empreiteiras. mim. Trabalhava final de semana,
vai casar final deste ano e a Ketelen, Em 1993, tornei-me funcionário di- férias, feriado etc., e quase nunca
de 10 aninhos. reto da Unisinos. Trabalhei apenas tinha tempo para eles. Com essa mi-
oito meses em obra e depois fui nha filha menor, estou buscando ser
Formação – Estudei até a 8ª para a manutenção. Em 2007, vim diferente. Até porque agora nossa
série na Unisinos, quando tive a trabalhar na maquetaria. Trabalho,

46 SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 | EDIÇÃO 406


IHU em Revista
casa já está toda construída. Agora tenho mais tempo visitando. Tenho colegas na praia, que se aposentaram
para a Ketelen. aqui. Hoje estão lá, e às vezes nos reencontramos. Para
mim, representa a minha segunda casa.
Livro – Leio a Bíblia faz três anos e ainda não conse-
gui terminar. Já estou no livro do Apocalipse. Autodefinição – Sou uma pessoa que, se tiver que
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falar o que achar de devo, digo, sempre na frente da
Religião – Católico praticante. pessoa. Não sou de falar de ninguém pelas costas. Se
eu achar que estou com a razão, por mais que doa, falo.
Sonho – Não sou muito ambicioso. Sonho em ver Esse é o meu perfil.
meus filhos todos bem, quando eu tiver mais velho.
Música – Curto as canções do Roberto Carlos.
Unisinos – Representa muita coisa, porque trabalho
há muitos anos aqui. Tenho muitos amigos que fiz nesta
instituição. Outros que já saíram, e que continuamos nos

EDIÇÃO 406 | SÃO LEOPOLDO, 29 DE OUTUBRO DE 2012 47


Contracapa
IHU em Revista
Livro digital do XIII Simpósio
Internacional IHU
Os Anais do XIII Simpósio Internacional IHU O livro com os textos
Igreja, Cultura e Sociedade. A semântica do Mistério apresentados nas comuni-
da Igreja no contexto das novas gramáticas da civili- cações está disponível para
zação tecnocientífica, realizado de 2 a 5 de outubro download em http://migre.
deste ano, na Unisinos, foram publicados em forma- me/blsrS.
to de livro digital.

Organizado por Inácio Neutzling e Cleusa An-


dreatta, o livro pode ser “folheado” e reúne as comu-
nicações apresentadas no evento, estando divididas
em sete eixos temáticos.

Análise de conjuntura
O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias
– CEPAT, em parceria com o IHU, publica regular- do Dia.
mente análises de conjuntura que são disponibiliza-
das regularmente no sítio do IHU. A última análise, intitulada
“O ‘mensalão’ e a esquerda.
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re) Uma leitura crítica a partir da es-
leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente querda”, foi publicada no último
no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sinto- dia 23-10-2012.
nia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos
colegas do CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com Para conferir, leia aqui:
sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor http://migre.me/blttS.
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte -

Novo Mapa Religioso Brasileiro será debatido no IHU Ideias


“As reli- para a edição 400 da Revista IHU On-Line, de 27-08-
giões no Brasil 2012, que trata da grande transformação do campo
tendem a com- religioso brasileiro, embasa o que será tratado por ele
por futuramente no próximo IHU Ideias, que será realizado no dia 1º
um campo com- de novembro, das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio
plexo e difuso Ellacuría e Companheiros, no IHU.
de filiações e
trânsitos dos Na edição 400 da Revista IHU On-Line, o docen-
fiéis entre elas, te refletiu sobre o tema. Leia entrevista completa aqui:
com tendências http://migre.me/blpto. Para ler a edição completa da
ao acirramento da concorrência religiosa.” Esta frase Revista IHU On-Line, edição 400, acesse: http://mi-
do Prof. Dr. José Rogério Lopes, concedida ao IHU gre.me/blpFP.

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