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IHU

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Luta
antimanicomial.
Revista do Ins!tuto Humanitas Unisinos
Conquistas e
Nº 391 - Ano XII - 07/05/2012 - ISSN 1981-8769

desafios

Thomas Szasz: Sandra Fagundes: Massimo


A Psiquiatria não pode O estigma da loucura Canevacci:
ser reformada. Ela tem ainda não foi superado A luta antimanicomial
que ser abolida como uma luta cultural
E MAIS

Marcelo Fabri: Rubem Barboza Filho e Fernanda Azeredo de Moraes:


A alteridade radical Fernando Perlatto: Clube da Luta: um olhar de
de Levinas e a ética Uma sociologia indignada gênero
racionalista de Husserl
Luta antimanicomial.
Editorial

Conquistas e desafios
Em 18 de maio celebra-se o Dia conhecimento e a trajetória das pes- nar tudo num “manicômio”, é preciso
Nacional da Luta Antimanicomial. A soas para se construir um outro tipo repensar o poder do psiquiatra e da
data enseja uma série de reflexões so- de saúde mental. “O reconhecimento psiquiatria sobre a equipe e o cliente.
bre saúde mental, desinstititucionali- de que eles portam um saber, sim, Martinho Braga Batista e Silva,
zação e lutas em busca de uma socie- diferente do acadêmico, porém não da Universidade Estadual do Rio de
dade mais justa e democrática. A data menos valioso”, ou seja, trata-se do Janeiro – UERJ, retoma o Caso Damião
remete ao Encontro dos Trabalhadores empowerment. Ximenes e a condenação do Brasil por
da Saúde Mental, ocorrido em 1987, A diretora do Departamento de violação dos direitos humanos.
na cidade de Bauru-SP. Como processo Ações em Saúde – DAS da Secretaria Tempos e ritmos de ver: cegueira
decorrente desse movimento, ocorreu Estadual de Saúde do Rio Grande do e visibilidade no mundo contemporâ-
a reforma psiquiátrica, definida pela Sul, Sandra Fagundes, pondera que o neo é um artigo de Adriana Melo, da
lei n. 10216 de 2001, também conhe- estigma da loucura ainda não foi supe- Universidade Federal de Minas Gerais
cida como Lei Paulo Delgado. rado e comenta a experiência gaúcha – UFMG, e Maria Teresa F. Ribeiro da
Nesta edição profissionais que no contexto antimanicomial. Universidade Federal da Bahia – UFBA.
pesquisam e atuam na área da saúde O nascimento do capitalismo e Fernanda Azeredo de Moraes
mental participam de um debate que da internação dos excluídos é a temá- debate O clube da luta (David Fincher,
diz respeito ao conjunto da sociedade tica abordada pelo psicólogo Osvaldo 1999), e Marcelo Fabri, da Universi-
contemporânea. Gradella Júnior, da Universidade Es- dade Federal de Santa Maria – UFSM,
Thomas Szasz, professor eméri- tadual Paulista Júlio de Mesquita Filho descreve alguns aspectos da temáti-
to da Universidade Estadual de Nova – Unesp. Nossa sociedade é baseada ca que abordará no dia 10-05-2012,
Iorque em Siracusa, abre a discussão na exploração humana, e a violência falando sobre a alteridade radical
com uma conclusão: a psiquiatria não é intrínseca a esse modo de produção, de Levinas e a ética racionalista de
pode ser reformada. Ela tem que ser observa. Husserl.
abolida, assim como a escravidão. Fábio Alexandre Moraes, psicó- A obra Uma sociologia indigna-
Para o filósofo italiano Massimo logo e professor na Unisinos, compre- da. Diálogos com Luiz Werneck Vianna
Canevacci, ninguém é totalmente ende a luta antimanicomial como uma (Juiz de Fora, 2012) inspira a entre-
normal, e a questão da doença mental luta ético-política. Ele detecta o nexo vista com seus organizadores, Rubem
não pode ser compreendida somente entre o modelo capitalista de trabalho Barboza Filho, da Universidade Fede-
como um problema médico. É algo le- e o surgimento da doença mental. ral de Juiz de Fora – UFJF e Fernando
gitimado culturalmente, assegura. O psicólogo Bernardo Malamut Perlatto, do Centro de Estudos Direito
Osvaldo Saidon, psicanalista ar- adverte que “novos desviantes so- e Sociedade (Cedes/PUC-Rio).
gentino, retoma a tradição libertária ciais” poderão ocupar o lugar discur- As quatro décadas de vivências
da luta antimanicomial e questiona se sivo antes reservado aos loucos. É o na Unisinos são rememoradas por José
entramos em uma era pós-manicomial. caso dos usuários de crack, pontua. Alcides Renner, professor do curso de
A médica Rosana Onocko Cam- O psiquiatra José Jackson Sam- Direito da Universidade.
pos, da Universidade Estadual de paio Coelho, da Universidade Estadu- A todas e a todos uma boa leitura
Campinas – Unicamp, destaca a im- al do Ceará – UECE, menciona que, em e uma ótima semana!
portância de se valorizar a fala, o condições históricas que podem tor-
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Schneider (jacintos@unisinos.br).

2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Thomas Szasz: A psiquiatria não pode ser reformada. Ela tem que ser abolida, assim
como a escravidão
8 Osvaldo Saidon: Uma era pós-manicomial?
12 Massimo Canevacci: A luta antimanicomial como uma luta cultural
16 Osvaldo Gradella Júnior: O nascimento do capitalismo e da internação dos excluídos
21 Fábio Alexandre Moraes: Luta antimanicomial, uma luta ético-política
24 Rosana Onocko Campos: O empoderamento dos usuários de saúde mental
28 Sandra Fagundes: O estigma da loucura ainda não foi superado
30 Martinho Braga Batista e Silva: O caso Damião Ximenes e a condenação do Brasil por
violação dos direitos humanos
33 José Jackson Sampaio Coelho: A psiquiatria e o exercício da humildade
37 Bernardo Salles Malamut: Uma psiquiatria a serviço do Estado contra os “indivíduos
desviantes”

Destaques da semana
41 Artigo da semana: Adriana Melo e Maria Teresa F. Ribeiro: Tempos e ritmos de ver:
cegueira e visibilidade no mundo contemporâneo
44 Fernanda Azeredo de Moraes: Clube da luta: um olhar de gênero
00 Livro da semana: Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto: Uma sociologia
indignada: horizonte e inspiração para pensar o Brasil
48 Coluna CEPOS
57 Destaques On-Line

IHU em Revista
58 Agenda
59 Marcelo Fabri: A alteridade radical de Levinas e a ética racionalista de Husserl
62 Lucas Henrique da Luz: Inside Job – Trabalho Interno e a visão plural do
capitalismo mundial
64 IHU Repórter: José Alcides Renner www.ihu.unisinos.br

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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Tema de Capa
A psiquiatria não pode ser
reformada. Ela tem que
ser abolida, assim como a
escravidão
Psiquiatria e Estado precisam ser separados. Além disso, o sujeito deve decidir, ou
não, se deve tomar medicamentos psiquiátricos, afirma Thomas Szasz
Por Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

A
“loucura” não é silenciada pela “ra- forçado-involuntário de pessoas identificadas
zão”, rebate Thomas Szasz. “Ela é si- como escravas”. Ele tece duras críticas à luta
lenciada por pessoas chamadas de antimanicomial: “Em vez de enfocar a aboli-
‘psiquiatras’”. Para o professor emérito da ção da ‘escravidão psiquiátrica’, os indivíduos
Universidade do Estado de Nova Iorque em identificados com a ‘luta antimanicomial’ en-
Siracusa, “a psiquiatria, intrinsecamente li- focaram – equivocadamente, penso eu – a na-
gada à lei e à execução da lei, não pode ser tureza da doença justificando ostensivamente
reformada. Como a escravidão, ela precisa o uso de força psiquiátrica”.
ser abolida”. As declarações foram dadas por Defensor da separação entre psiquiatria e
Szasz à IHU On-Line na entrevista que conce- Estado, Szasz é conhecido mundialmente por
deu por e-mail. Crítico ferrenho da psiquiatria ser adversário da psiquiatria coercitiva. Es-
desde os anos 1950, ele discorda perempto- creveu livros como O mito da doença mental
riamente da legitimidade intelectual-médica (Rio De Janeiro: Zahar, 1979), originalmente
dessa área da medicina, assim como da As- publicado em 1960, e A fabricação da loucu-
sociação Psiquiátrica Americana e do Manu- ra: um estudo comparativo da Inquisição e do
al Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Movimento de Saúde Mental (Rio de Janei-
Mentais (DSM, na sigla em inglês). “Qual é ro: Zahar, 1976), cuja primeira edição veio a
a validade do DSM? É zero, digo eu”. Em seu público em 1970. Nasceu em Budapeste em
ponto de vista, a psiquiatria cumpre a função 1920 e continua em franca atividade intelec-
excludente antes ocupada pela religião, e o tual. Para conhecer seus textos e ideias, aces-
“controle-confinamento forçado-involuntário se www.szasz.com.
de pessoas identificadas como mentalmente Confira a entrevista.
doentes é análogo ao controle-confinamento www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – Desde que es- les e que esses desequilíbrios fictícios Anteriormente, as religiões cumpriam
creveu O mito da doença mental, são tratados com medicamentos. essa função social. Hoje em dia, a me-
há 51 anos, houve alguma mudança dicina-psiquiatria a cumpre.
na forma como a psiquiatria trata o IHU On-Line – Em que medida
“doente mental”? O que permanece o estigma da doença mental con- IHU On-Line – Quais são os prin-
o mesmo? tinua sendo um rótulo importante cipais avanços que percebe a partir
Thomas Szasz – Houve muitas para compreendermos a sociedade da luta antimanicomial pelo mundo?
mudanças. A principal mudança é que segregatória e excludente em que Thomas Szasz – Em minha opi-
agora os psiquiatras sustentam, e a vivemos? nião, a questão principal – ou talvez
maioria das pessoas acredita, que as Thomas Szasz – Todas as socie- até a única – referente à luta anti-
chamadas doenças mentais são cau- dades (grupos) são, por definição, manicomial é o poder de exercer
sadas por “desequilíbrios químicos” “excludentes” pelo fato de incluírem coerção, isto é, a legitimação do uso
no cérebro, ou são manifestações de- algumas pessoas e excluírem outras. de força contra pessoas chamadas

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 5


“Todas as
Tema de Capa “loucas”, isto é, “diagnosticadas” Thomas Szasz – A confusão dos
como “mentalmente doentes”. Con- sentidos literal e metafórico das pala-
sidero o controle-confinamento for-
çado-involuntário de pessoas identi-
sociedades vras – especialmente de termos como
“doença”, “tratamento”, “cura”, etc. (e
ficadas como mentalmente doentes
análogo ao controle-confinamento
(grupos) são, deus, diabo, inferno...) – é essencial-
mente a mesma que havia nas déca-
forçado-involuntário de pessoas
identificadas como escravas. Em vez
por definição, das de 1950 e 1960.

de enfocar a abolição da “escravidão


psiquiátrica”, os indivíduos identifi-
‘excludentes’ IHU On-Line – Em que sentido a
doença mental continua sendo uma
cados com a “luta antimanicomial”
enfocaram – equivocadamente, pelo fato de metáfora?
Thomas Szasz – Oficialmente
penso eu – a natureza da doença
justificando ostensivamente o uso incluírem – do ponto de vista jurídico, médico
– ela é literal. Eu sustento que é me-
de força psiquiátrica. Creio que o tafórica. Os chamados antipsiquiatras
controle psiquiátrico à força de in- algumas pessoas – Laing2, Foucault3, Basaglia – a tratam
divíduos inocentes é sempre moral-
mente errado. e excluírem 2 Ronald David Laing (1927-1989):

IHU On-Line – No Brasil, há uma outras. psiquiatra britânico. Destacou-se por sua
abordagem inovadora da doença mental
e, particularmente, da experiência
grande influência de Franco Basaglia
na reforma psiquiátrica. Hoje, a de- Anteriormente, da psicose. Promoveu uma revolução
de conceitos na sua área, ao buscar
sinstitucionalização da loucura tem compreender a lógica por trás dos sintomas
no agente comunitário e nos Centros as religiões ditos irracionais. As ideias de Lang sobre
as causas e o tratamento da disfunção
de Atenção Psicossocial – CAPs ele- mental grave, fortemente influenciadas
mentos importantes de uma nova
prática da saúde mental. Qual é a si-
cumpriam essa pelo existencialismo, foram de encontro
à psiquiatria ortodoxa. Para ele, os
tuação nos EUA no que diz respeito à
luta antimanicomial?
função social. sentimentos expressos pelo paciente
eram descrições válidas da experiência
vivida, mais do que simples sintomas
Thomas Szasz – A situação é se-
melhante. Basaglia1 adorava a associa-
Hoje em dia, de um distúrbio. Laing foi associado ao
movimento da antipsiquiatria, embora ele
próprio rejeitasse o rótulo. (Nota da IHU
ção entre a política (o Estado) e a psi-
quiatria (coerção médica). Ele queria
a medicina- On-Line)
3 Michel Foucault (1926-1984): filósofo
francês. Suas obras, desde a História da
ser – e a certa altura foi – uma espécie
de comissário psiquiátrico – do tipo
psiquiatria a Loucura até a História da sexualidade
(a qual não pôde completar devido a sua

cumpre”
benevolente, bondoso, é claro. Dis- morte) situam-se dentro de uma filosofia
do conhecimento. Suas teorias sobre o
cordo radicalmente das concepções e saber, o poder e o sujeito romperam com
políticas dele. Creio que a psiquiatria, as concepções modernas destes termos,
intrinsecamente ligada à lei e à execu- motivo pelo qual é considerado por
certos autores, contrariando a sua própria
ção da lei, não pode ser reformada. Como a escravidão, ela precisa ser opinião de si mesmo, um pós-moderno.
abolida, e não reformada. Seus primeiros trabalhos (História da
Loucura, O Nascimento da Clínica, As
Palavras e as Coisas, A Arqueologia do
1 Franco Basaglia (1924-1980): psi-quiatra IHU On-Line – Os doentes men- Saber) seguem uma linha estruturalista,
italiano. Promoveu uma importante tais continuam sendo os grandes bo- o que não impede que seja considerado
reforma no sistema de saúde mental de geralmente como um pós-estruturalista
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des expiatórios da sociedade? Que


seu país. Nos anos 1960 dirigiu o hospital devido a obras posteriores como Vigiar e
psiquiátrico de Gorizia, onde juntamente outros párias estão ao seu lado em Punir e A História da Sexualidade. Foucault
com outros psiquiatras começou a nossos dias? trata principalmente do tema do poder,
promover uma série de mudanças práticas Thomas Szasz – Sim e não. Eles rompendo com as concepções clássicas
e conceituais, expostas no livro “A deste termo. Para ele, o poder não pode
instituição negada” (1968). Entre os co- geralmente são vistos como “doentes” ser localizado em uma instituição ou no
autores deste livro organizado por Basaglia e necessitados de “cuidados médicos”, Estado, o que tornaria impossível a “tomada
está Giovanni Jervis, que posteriormente quer gostem, quer não. de poder” proposta pelos marxistas. O
aprofundará estes conceitos teóricos de poder não é considerado como algo que o
modo acessível aos leigos no “Manual indivíduo cede a um soberano (concepção
Crítico de Psiquiatria” (1975), descrevendo IHU On-Line – “Se você fala com contratual jurídico-política), mas sim como
ali também a história do movimento, Deus, você está rezando. Se Deus fa- uma relação de forças. Ao ser relação, o
reunido em torno da Associação Psiquiatria poder está em todas as partes, uma pessoa
Democrática italiana. Em 1979, Basaglia lar com você, você é esquizofrênico”. está atravessada por relações de poder,
visitou o Hospital Colônia na cidade de Em que medida essa ideia continua não pode ser considerada independente
Barbacena, em Minas Gerais, tendo-o atual num mundo que insiste em delas. Para Foucault, o poder não somente
comparado aos campos de concentração reprime, mas também produz efeitos de
nazistas de Adolf Hitler. (Nota da IHU diagnosticar e medicalizar o sujeito verdade e saber, constituindo verdades,
On-Line) em suas mínimas “dissidências”? práticas e subjetividades. Em três edições

6 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
como literal e “tratavam” o “paciente” tamentos médicos dessa especialida- experiência originária, silenciada pela
com drogas, por exemplo, com LSD4. de são, em última instância, controle razão e seu “monólogo”. Qual é o seu
Isso é ilustrado pelo apoio que deram político?” Eles não o são sempre. Mi- ponto de vista?
à hospitalização involuntária em ins- lhões de pessoas acreditam que têm Thomas Szasz – Eu rejeito esse
tituições de saúde mental bem como doenças mentais e ingerem medica- tipo de retórica. A “loucura” não
pela defesa do réu mediante alegação mentos psiquiátricos voluntariamen- é silenciada pela “razão”. Ela é si-
de insanidade, práticas às quais me te. Elas são, e deveriam ser, livres para lenciada por pessoas chamadas de
oponho. fazer isso. Vejo esse fenômeno como “psiquiatras”.
semelhante à crença de milhões de
IHU On-Line – O Manual Diag- pessoas de que houve um judeu que IHU On-Line – Gostaria de acres-
nóstico e Estatístico de Transtornos viveu na Palestina da época bíblica e centar algum outro aspecto não
Mentais aumenta com frequência a que foi crucificado e se tornou deus. questionado?
catalogação de doenças apontadas As pessoas são, e deveriam ser, livres Thomas Szasz – Sinto-me conten-
como mentais. Qual é a sua validade? para “ingerir” os sacramentos. Cha- te e satisfeito por ter tido a oportuni-
Thomas Szasz – Qual é a valida- mamos isso de “liberdade religiosa”. dade de expressar profissional e poli-
de do DSM? É zero, digo eu. Qual é Eu defendo a “liberdade psiquiátrica”. ticamente opiniões não convencionais
a legitimidade intelectual-médica da Só me oponho à tirania psiquiátrica, e ter atraído certo grau de interesse e
psiquiatria – da Associação Psiquiátri- assim como só me oponho à tirania concordância com elas. Atribuo isso
ca Americana e de outras? É zero, digo religiosa. É por isso que tenho defen- em grande parte à relativa abertura
eu. dido a separação entre a psiquiatria e e tolerância da sociedade america-
o Estado. na apoiada por uma tradição jurídica
IHU On-Line -“Em que sentido a anglo-americana que valoriza a liber-
psiquiatria é um braço coercitivo do IHU On-Line – Nietzsche5 e Fou- dade pessoal e a responsabilidade
aparato de Estado?” cault compreendiam a loucura como individual.
Thomas Szasz – Num sentido li-
teral, obviamente. Milhões de pessoas 5 Friedrich Nietzsche (1844-1900):

Leias as
são, e foram, presas em prédios dos filósofo alemão, conhecido por seus
conceitos além-do-homem, transvaloração
quais não podem sair. “Por que os tra- dos valores, niilismo, vontade de poder
e eterno retorno. Entre suas obras
figuram como as mais importantes Assim
a IHU On-Line dedicou matéria de capa
a Foucault: edição 119, de 18-10-2004,
disponível para download em http://
falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998), O anticristo
(Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia
entrevistas
migre.me/vMiS, edição 203, de 06-11-2006, da moral (5. ed. São Paulo: Centauro,

do dia no
disponível em http://migre.me/vMj7, e 2004). Escreveu até 1888, quando foi
edição 364, de 06-06-2011, disponível em acometido por um colapso nervoso que
http://bit.ly/k3Fcp3. Além disso, o IHU nunca o abandonou, até o dia de sua morte.
organizou, durante o ano de 2004, o evento A Nietzsche foi dedicado o tema de capa
Ciclo de Estudos sobre Michel Foucault, da edição número 127 da IHU On-Line, de
que também foi tema da edição número
13 dos Cadernos IHU em Formação,
disponível para download em http://migre.
13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo
do martelo e do crepúsculo, disponível
para download em http://migre.me/s7BB.
sítio do IHU:
me/vMjd sob o título Michel Foucault. Sua Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a
contribuição para a educação, a política entrevista exclusiva realizada pela IHU
e a ética. Confira, também, a entrevista On-Line edição 175, de 10-04-2006, com
com o filósofo José Ternes, concedida à o jesuíta cubano Emilio Brito, docente
IHU On-Line 325, sob o título Foucault, a na Universidade de Louvain-La-Neuve,
sociedade panóptica e o sujeito histórico,
www.ihu.
intitulada “Nietzsche e Paulo”, disponível
disponível em http://migre.me/zASO. De para download em http://migre.me/s7BH.
A edição 15 dos Cadernos IHU em formação
www.ihu.unisinos.br
13 a 16 de setembro de 2010 aconteceu
o XI Simpósio Internacional IHU: O (des) é intitulada O pensamento de Friedrich
governo biopolítico da vida humana. Para Nietzsche, e pode ser acessada em http://
maiores informações, acesse http://migre.
me/JyaH. Confira a edição 343 da IHU On-
Line, intitulada O (des)governo biopolítico
migre.me/s7BU. Confira, também, a
entrevista concedida por Ernildo Stein à
edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-
unisinos.br
da vida humana, publicada em 13-09- 05-2010, disponível em http://migre.me/
2010, disponível em http://bit.ly/bi5U9l, FC8R, intitulada O biologismo radical de
e a edição 344, intitulada Biopolitica, Nietzsche não pode ser minimizado, na qual
estado de excecao e vida nua. Um debate, discute ideias de sua conferência A crítica
disponível em http://bit.ly/9SQCgl. A de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e
edição 364, de 06-06-2011 é intitulada a questão da biopolítica, parte integrante
‘’História da loucura’’ e o discurso racional do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença
em debate, inspirada na obra História da - Pré-evento do XI Simpósio Internacional
loucura, e está disponível em http://bit. IHU: O (des)governo biopolítico da vida
ly/lXBq1m. (Nota da IHU On-Line) humana. Na edição 330 da revista IHU me/Jzvg. Na edição 388, de 09-04-2012,
4 LSD: acrônimo de Lysergsäurediethylamid, On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista leia a entrevista O amor fati como resposta
palavra alemã para a dietilamida do ácido Nietzsche, o pensamento trágico e a à tirania do sentido, com Danilo Bilate,
lisérgico, que é uma das mais potentes afirmação da totalidade da existência, disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota
substâncias alucinógenas conhecidas. (Nota concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e da IHU On-Line)
da IHU On-Line) disponível para download em http://migre.

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 7


Tema de Capa
Uma era pós-manicomial?
Luta antimanicomial tem tradição libertária, observa Osvaldo Saidon. Opor razão e
loucura é uma falsa injunção, pois ninguém é racional ou louco 24 horas por dia
Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

“P
arece importante renovar o debate A exclusão, a reclusão, ou o crime que a luta
teórico em relação aos conceitos antimanicomial denuncia estão hoje, mais do
que suscitam uma proposta anti- que em loucura, no gatilho fácil, na brutalidade
manicomial para não deixá-la limitada à ques- e na marginalidade que condena milhares de
tão de fechamento, ou não, de manicômios e jovens, os crackeiros, os sem-trabalho, os mi-
para que enfrente os desafios de uma época lhões de desocupados jovens que em países
que já poderíamos chamar de pós-manico- colonizados e colonizadores já parecem conde-
mial”. A afirmação é do psicanalista argentino nados a não terem nenhum futuro”.
Osvaldo Saidon, em entrevista concedida por Osvaldo Saidon é médico, psicanalista e
e-mail à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, professor universitário, natural da Argentina.
a “luta antimanicomial se inscreve numa tra- Tem desenvolvido trabalhos de análise institu-
dição de luta libertária que aporta aos direitos cional no Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e
humanos a potencialidade para poderem su- Nicarágua. Viveu no Brasil entre 1976 e 1988.
perar uma prática que, às vezes, só tende a re- De sua produção bibliográfica, destacamos
petir o politicamente correto, como sustentam Practicas grupais: La escena institucional e cli-
muitas das chamadas ONGs dos direitos huma- nica y sociedad. Esquizoanalisis.
nos”. E provoca: “A questão é detectar em cada Confira a entrevista.
época e em cada lugar onde está o manicômio.

IHU On-Line - Lutar por uma so- Na Argentina o trabalho das mães canalítica na desinstitucionalização
ciedade sem manicômios é lutar pe- e dos filhos da Praça de Maio1 tem da loucura?
los direitos humanos? Por quê? sempre alentado a luta antimanico- Osvaldo Saidon - A prática psico-
Osvaldo Saidon - Gostaria de in- mial e isso tem sido parte, muitas ve- terapêutica tem mudado sua implica-
verter a pergunta, pois isso me per- zes, de sua incorreção política em rela- ção nos processos de desinstituciona-
mitiria responder melhor o que penso ção às instituições. Essa incorreção é a lização segundo as épocas e os lugares
dessa relação. A pergunta seria então: que lhes tem dado o nome de “loucas onde se tem desenvolvido. Tem ha-
lutar pelos direitos humanos é lutar da Praça de Maio” e, com isso, a po- vido uma diferença de tempo e lugar
por uma sociedade sem manicômios? tência que continuam desdobrando. entre o sucedido no Brasil, na França
Melhor seria, então, dizer que a luta e na Argentina, considerando-se os
antimanicomial permite à defesa dos IHU On-Line - Qual é a importân- três países onde a prática psicanalíti-
direitos humanos ter questões concre- cia da prática psicoterapêutica e psi- ca tem tomado um desdobramento
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tas de luta e evitar cair numa defesa importante na saúde pública. Desde
às vezes demasiado generalista, ou o final dos anos 1960, a psicanálise,
1 Mães da Praça de Maio: mulheres
abstrata, dos direitos humanos, que que se reúnem na Praça de Maio, na Argentina, participava ativamente
pode deixar inadvertidas as injustiças Buenos Aires, para exigirem notícias em projetos de reforma psiquiátrica
de classe – as questões coloniais e a de seus filhos desaparecidos durante e de humanização da prática hospita-
a ditadura militar na Argentina (1976-
denúncia dos crimes que o império 1983). Alguns pais, considerados lar. Os grupos operativos, a experiên-
perpetra, com sua política não somen- subversivos, tiveram seus filhos cia de serviços de saúde mental em
te belicosa, senão cultural e econômi- retirados de sua guarda e colocados hospitais públicos, a politização de
para a adoção durante os cinco
ca. A luta antimanicomial se inscreve anos de ditadura. Quando acabou a amplos setores de profissionais e a
numa tradição de luta libertária que ditadura, muitos filhos estavam sob ruptura por razões ideológico-políticas
aporta aos direitos humanos a poten- guarda de famílias de militares. Ainda da Associação Psicanalítica foram di-
hoje, todas as quintas-feiras, as mães
cialidade para poderem superar uma realizam manifestações na Praça fusores de uma prática que, de fato,
prática que, às vezes, só tende a repe- de Maio, em frente à Casa Rosada, questionou os institutos e instituídos
tir o politicamente correto, como sus- buscando manter o desaparecimento desse momento. Muitos do que tive-
de seus filhos vivo na memória de
tentam muitas das chamadas ONGs todos os Lisboa : Assirio & Alvim, 1966 ram de se exilar nos anos 1970 leva-
dos direitos humanos. argentinos. (Nota da IHU On-Line) ram essas propostas a vários lugares,

8 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


“Desde o final

Tema de Capa
onde encontraram maior ou menor balho e na defesa do hospital público
repercussão. frente às corporações da saúde.
No Brasil o processo de maior
compromisso social e de crítica ins-
dos anos 1960 Na atualidade, as relações entre
saúde mental e direitos humanos se-
titucional dos psicanalistas somente
começou com a volta dos exilados bra-
a psicanálise, guem tendo que encarregar-se dessa
contradição. Constatamos ainda o
sileiros que realizaram sua formação
na França e com a associação que nós,
na Argentina, avanço e a contrarreforma que hoje
voltam a impulsionar os setores biolo-
psicanalistas de esquerda chegados da
Argentina junto de colegas mais politi-
participava gistas da psiquiatria, em muitos casos
com alianças com institutos psicanalí-
zados do Rio, de São Paulo e Belo Hori-
zonte, conseguimos desenvolver. ativamente ticos de diverso signo. Nesse sentido,
me parece importante renovar o de-
Na Europa, por outro lado, a luta
antimanicomial ou anti-institucional, em projetos bate teórico em relação aos conceitos
que suscitam uma proposta antima-
ligada de certo modo aos movimentos nicomial, para não deixá-la limitada à
de anticultura emergentes do maio de reforma questão de fechamento, ou não, de
francês, se desenvolveu através de manicômios, e para que enfrente os
uma discussão sobre a prática e a teo- psiquiátrica e desafios de uma época que já podería-
ria psicanalítica. Citemos os trabalhos mos chamar de pós-manicomial.
de Basaglia, a rede de antipsiquiatria, de humanização
a crítica institucional de Lourau e La- IHU On-Line - Quais são os hori-
passade, as contribuições definitivas da prática zontes que se abrem, a partir do tra-
que traz a História da loucura, de balho na clínica, no diálogo entre a
Foucault, e o Anti-Édipo2 de Deleuze3 hospitalar” razão e a loucura?
e Guattari4, ou os trabalhos de Castel Osvaldo Saidon - Esta pergunta
sobre o psicanalismo. dá pé para ampliar um pouco as refe-
rências que fazíamos à retomada psi-
Era pós-manicomial lado, a antipsiquiatria de Basaglia ou canalítica que se deu a partir dos anos
as experiências de Cooper5. Por outro 1980 no campo da saúde mental e a
Esses estudos nos surpreende- lado, a contundência e o fio teórico qual se tenta legitimar por um para-
ram “com a mão na massa”. Estavam que trazia o Anti-Édipo de Deleuze e digma que se qualifica a si mesmo de
se desenvolvendo uma infinidade de Guattari dividia águas e era impossível científico. Este fundamenta o seu acio-
experiências, tratamentos e projetos evitar o enfrentamento com um laca- namento, tanto em matemas ou tem-
que questionavam as instituições, mas nismo que vinha com seus foros reno- pos lógicos como nas investigações
que tinham uma forte marca psicanalí- vados salvar a institucionalização da neurocientíficas que os laboratórios
tica. Poucos se atreveram a assumir os psicanálise, o que terminava por pro- avalizam através de medicamentos
desafios que nos propunham, por um duzir uma exclusão de toda proposta psicotrópicos de última geração.
social ou política no campo da prática Se a isso se referem quando fa-
psicoterapêutica. lam da razão frente à desrazão, a uma
2 O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia Franco Basaglia costumava di- produção de verdade que se considera
(Lisboa: Assirio & Alvim, 1966). (Nota da
IHU On-Line) zer que alguns psicanalistas argenti- asséptica, neutra e definitiva, então a
3 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo nos são uma raridade, já que foram loucura, ao opor-se, é somente de-
francês. Assim como Foucault, foi um os que mais se identificaram com as sordem e caos. Se por loucura, como
dos estudiosos de Kant, mas tem em
Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas propostas antipsiquiátricas nos anos por razão, entendemos produções www.ihu.unisinos.br
interseções. Professor da Universidade de 1970. Ou seja, mais do que ver quais subjetivas datadas, mutantes e mar-
Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou as correntes da psicanálise que mais cadas por processos opostos, porém
ideias como as de devir, acontecimentos,
singularidades, conceitos que nos impelem contribuíram aos processos de de- complementares, participando de
a transformar a nós mesmos, incitando- sinstitucionalização na saúde mental, algo comum - o da instituição que os
nos a produzir espaços de criação e de podemos afirmar que o papel dos alberga -, abrimos outras possibilida-
produção de acontecimentos-outros. (Nota
da IHU On-Line) “psi” dependeu – e creio que assim des de pensar... Em definitivo, razão e
4 Pierre-Félix Guattari (1930-1992): continua – do compromisso social que loucura são uma mescla produtora de
filósofo e militante revolucionário francês. assumiram ou assumam em seu tra- obras as mais diversas e com poten-
Colaborou durante muitos anos com Gilles
Deleuze, escrevendo com este, entre cialidades criacionistas sempre vigen-
outros, os livros Anti-Édipo. Capitalismo e tes. Ninguém é louco 24 horas por dia,
Esquizofrenia e O que é Filosofia? Dotado nem racional ou razoável o dia inteiro.
de um estilo literário incomparável, é, 5 David Cooper (1931-1986): médico
de longe, um dos maiores inventores e psiquiatra sul-africano. Atuou na Por isso não vejo por que opor razão
conceituais do final do século XX. Inglaterra. Representante da corrente e loucura. Basta ver o esforço vão que
Esquizoanálise, transversalidade, ecosofia, antipsiquiátrica, denunciou a psiquiatria os grandes obsessivos fazem em dis-
caosmose, entre outros, são alguns dos oficial, que considerava submetida às
conceitos criados e desenvolvidos pelo necessidades da sociedade. (Nota da IHU criminar razão e caos, o que termina
autor. (Nota da IHU On-Line) On-Line) por aumentar suas dúvidas ao infinito.

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 9


“Ninguém é
Tema de Capa IHU On-Line - A “escuta de si” Viemos recuperando na clínica
seria uma forma adequada de com- a ideia de parrésia10, a qual dá conta
preendermos o campo de trabalho da
psicoterapia e da psicanálise?
louco 24 horas das relações entre verdade e coragem,
necessárias para fazer frente à retóri-
Osvaldo Saidon - Prefiro falar
de sucesso, de evento, de aconteci-
por dia, nem ca complacente que propiciam certas
ideologias no campo “psi”. As análises
mento, mais do que de escuta de si. É
melhor convocar um “para fora”, mais
racional ou brandas que ultimamente parecem
dar-se bem com a neuropsiquiatria
do que um a “si mesmo” que pode ser
enganoso e reiterar-nos nesse narci-
razoável o dia dominante são um exemplo de como
a adulação e a sedução vêm substi-
sismo tão bem-vindo nestes modelos
individualistas e neoliberais, como se inteiro. Por isso tuindo a clássica atitude média anti-
pática e distante do psicanalista. Fala-
diz hoje...
Jung6, citado por Thomas Mann7, não vejo por mos de um tipo estranho de amizade,
onde dizer o que se pensa apesar dos
diz, referindo-se a Freud8 num prólogo interesses e das conveniências seja
que escreveu Ulloa9 - já veem quantos que opor razão e não apenas um valor, mas também
encontros, quantos entres: “Resulta uma estratégia para contraefetuar a
muito mais direto e evidente, em ver- loucura” ação mediocrizante da comunicação
dade mais impressionante por sua car- que propicia a mídia. Entendemos as-
ga emotiva, observar o que me suce- sim uma clínica alegre frente ao que
de, do que observar o que faço”. Essa às vezes chamamos uma clínica do
ênfase no que sucede agrada-me lê-lo como um sublinhado do sucesso do ressentimento.
acontecimento, não só no sentido de
6 Carl Gustav Jung (1875-1961): psiquiatra uma autoanálise, a qual seguramen- IHU On-Line - Em que medida a
suíço. Colega de Freud, estudou medicina te se refere em Freud, mas também luta antimanicomial dá voz ao discur-
e elaborou estudos no campo da psicologia,
discutindo os conceitos de introversão e como um elogio do acontecer, do de- so do diferente, do desviante, daque-
extroversão. (Nota da IHU On-Line) sejo que transporta. Marca-se, assim, le que não está inscrito na norma?
7 Thomas Mann (1875 - 1955): romancista uma preponderância do acontecimen- Osvaldo Saidon - Os resultados
alemão, considerado como um dos maiores
do século XX. Recebeu o prêmio Nobel to sobre a representação. nos mostram momentos melhores e
da Literatura em 1929. Foi o irmão mais piores, êxitos e fracassos nesse sen-
novo do romancista Heinrich. Ganhou IHU On-Line - Abandonar o “mo- tido. A questão é detectar em cada
repercussão internacional, aos 26 anos,
com sua primeira obra, Os Buddenbrooks nólogo” da razão sobre a loucura e época e em cada lugar onde está o
(Buddenbrooks), romance que conta a oportunizar que o sujeito se interro- manicômio. A exclusão, a reclusão,
história de uma família protestante de gue e fale sobre suas vivências é uma ou o crime que a luta antimanicomial
comerciantes de cereais de Lübeck ao longo
de três gerações. (Nota da IHU On-Line) forma de “insubmissão” desse sujei- denuncia estão hoje, mais do que em
8 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista to? Por outro lado, como se apresen- loucura, no gatilho fácil, na brutalida-
e fundador da Psicanálise. Interessou-se, tam as relações de poder intrínsecas de e na marginalidade que condena
inicialmente, pela histeria e, tendo como
método a hipnose, estudava pessoas que a esse processo de saber e de poder milhares de jovens, os crackeiros, os
apresentavam esse quadro. Mais tarde, na clínica? sem-trabalho, os milhões de desocu-
interessado pelo inconsciente e pelas Osvaldo Saidon - Essa é a ques- pados jovens que em países coloniza-
pulsões, foi influenciado por Charcot e
Leibniz, abandonando a hipnose em favor da tão mais complicada sobre a qual dos e colonizadores já parecem con-
associação livre. Estes elementos tornaram- deveríamos interrogar-nos todos os denados a não terem nenhum futuro.
se bases da Psicanálise. Freud, além de dias e em cada sessão, com cada pa- Sempre foi uma questão central saber
ter sido um grande cientista e escritor,
realizou, assim como Darwin e Copérnico, ciente na coordenação dos grupos como dar voz ao diferente. É por isso
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uma revolução no âmbito humano: a ideia no momento de uma demanda insti- que vale a pena insistir na criação e
de que somos movidos pelo inconsciente. tucional. Todavia, é uma questão que invenção dos dispositivos que permi-
Freud, suas teorias e o tratamento com
seus pacientes foram controversos na Viena está talhada e esculpida impregnando tam a expressão do desviante. Creio
do século XIX, e continuam muito debatidos nossas relações institucionais, as rela- que entre outras coisas a isso se re-
hoje. A edição 179 da IHU On-Line, de 08- ções com nossos colegas, os atraves- feria Guattari na última época, quan-
05-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o
título Sigmund Freud. Mestre da suspeita, samentos na conjugalidade na família, do insistia no paradigma estético. No
disponível para consulta no link http:// na relação com os filhos, no modo de entanto, a questão das redes sociais
migre.me/s8jc. A edição 207, de 04-12- fazer política, na relação que estabe- e da internet em geral é um desafio
2006, tem como tema de capa Freud e a
religião, disponível para download em lecemos com as normas, ou em como à criação de novas formas de expres-
http://migre.me/s8jF. A edição 16 dos gastamos o nosso dinheiro. Por que são, ao mesmo tempo em que gerou
Cadernos IHU em formação tem como então agarrá-la somente com o diá-
título Quer entender a modernidade?
Freud explica, disponível para download logo psicanalítico, como se, ao não ��Parrésia: na retórica, parrésia é descrita
em http://migre.me/s8jU. (Nota da IHU fazer psicanálise, estivéssemos então como franqueza, confiança ou ousadia
On-Line) a salvo ou prevenidos contra todas as para falar em público. A palavra grega
9 José Manuel de los Reyes Gonzáles é frequentemente usada para descrever
de Prada y Ulloa (1844-1918): escritor e misérias que as jogadas do poder nos certos diálogos atribuídos a Jesus Cristo no
filósofo peruano. (Nota da IHU On-Line) impõem em todos esses espaços? Novo Testamento. (Nota da IHU On-Line)

10 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
enorme atraso na implicação social de não posso mais do que recordar que vai muito além das questões relacio-
grandes grupos. É por isso que a luta o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari nadas à prática antimanicomial. Esta
antimanicomial oferece hoje grandes anunciava sua proposta no subtítulo questão me trouxe à memória uma
subsídios teóricos e práticos para re- “Capitalismo e esquizofrenia”. linda recordação. Cláudio me presen-
pensar a questão da marginalidade, teou uma edição da editora Fondo de
da transgressão e da subversão social. IHU On-Line - O que é, hoje, do- Cultura Econômica, em espanhol, de A
Da mesma forma, o debate sobre a ença mental e normalidade? história da loucura, de Foucault. Creio
democracia direta, os modos autoges- Osvaldo Saidon - Com certo es- que se referiu, naquele dia, à ideia
tionais de organização, a autodeter- forço, poderia dizer o que é enfermida- foucaultiana de a loucura como falta
minação, em definitivo, tem muito a de mental. Porém, sobre normalidade de ação – depois disso nunca escutei
obter dos estudos que suscitou a luta não tenho quase nenhuma ideia. En- nada de Cláudio em relação à ativida-
antimanicomial. fermidade mental hoje é, em primei- de antimanicomial. Suas aulas eram
ro lugar, algo que já se nos apresenta uma “contraefetivação” a qualquer
IHU On-Line - Empreender uma mesclado, barroso. Não existe uma en- tipo de estigmatização, de diagnóstico
reforma psiquiátrica é empreender, fermidade pura, um diagnóstico único. preconcebido; eram sempre um modo
sempre e novamente, um trabalho Os pacientes se nos apresentam com de aventurar-se no pensamento, e se-
crítico cujo horizonte é a liberdade? suas características mescladas com os ria muito lindo que este espírito pu-
Por quê? processos de tratamento que um ou desse estar sempre presente na luta
Osvaldo Saidon - O esforço de outro modelo impõe aos sujeitos. Não antimanicomial. Na realidade, quando
empreender novamente é um resul- se observa uma aura, uma origem da chegavam amigos de fora ao Rio de
tado da incrível resistência que volta enfermidade. Seu desenrolar já vem Janeiro, levava-os a visitar o Corcova-
a ter a reforma psiquiátrica, inclusive gerida por tratamentos medicamento- do ou aos shows de chorinho. Nós os
quando parecia mais consolidada. Isso sos e/ou pela assistência em escolas, levávamos às aulas de Cláudio e sem-
se deve - além dos interesses econô- hospitais, gabinetes psicoterapêuti- pre era um episódio emocionante. Já
micos que afeta - não tanto a que o cos, grupos de autoajuda. É por isso veem: ali loucura e razão não se opu-
avanço da ciência, entre aspas, este- que, hoje, não concebemos uma clí- nham, elas se potenciavam.
ja mais atraído por sua submissão ao nica senão a partir de ser tomada em Cecília Coimbra permitiu-nos
Estado e ao poder dominante, mas conta a dimensão institucional. habitar um postulado de coerência.
sim ao empenho de impulsionar for- Soube pôr em todo momento, com
ças inovadoras e revolucionárias. A IHU On-Line - De que modo a sua crítica e sua militância, um freio
ciência se comporta de modo muito vivência brasileira e o contato com às concessões que nós profissionais
parecido às religiões monoteístas e Cláudio Ulpiano e Cecília Coimbra estamos sempre dispostos a outorgar.
cada vez é mais chamativo ver como o marcam sua trajetória e concepções Nesse sentido, pensando na pergunta
ateísmo, que parecia ser uma bandei- acerca da luta antimanicomial? feita, seu modo de pensar e de ope-
ra dos cientistas positivistas do século Osvaldo Saidon - O contato com rar influenciou enormemente na per-
passado, já é esquecido e é frequen- Cláudio Ulpiano11 e Cecília Coimbra12 sistência da crítica à prática e às teo-
te ver os homens de ciência com uma rias “psi” e à violência que se realiza
Bíblia, um crucifixo ou uma versão do �� Claudio Ulpiano (1932-1999): filósofo através delas. Se alguém consolidou a
Corão entre suas mãos. e professor brasileiro, nascido em Macaé, relação entre seres humanos e saúde
cidade do norte fluminense, e criado no mental de um modo singular, é Cecília
Rio de Janeiro, então Distrito Federal.
IHU On-Line - Sob quais aspec- Claudio foi especialista no pensamento dos – e é ela que nos permite falar de uma
tos o adoecimento mental do sujeito estóicos, de Espinoza, Bergson e Deleuze, escola brasileira nesse campo. Que
também reflete o tipo de socieda- que ensinava em aulas magistrais na lindo terminar esta entrevista junto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
de, capitalista e excludente, na qual e na Universidade Federal Fluminense. de Claudio e Cecília. Penso que muitos www.ihu.unisinos.br
vive e o modelo de saúde/doença A partir de 1980 e até falecer, organizou “entre” ainda estão aguardando entre
imposto? diversos grupos de estudo independentes do nós.
ambiente acadêmico, muito frequentados
Osvaldo Saidon - Essa afirmação por estudantes de filosofia, cientistas,
é forte e não deve fazer cair numa res- músicos, artistas plásticos, atores e todo
posta sociológica para uma questão tipo de público. (Nota da IHU On-Line) Nacional de Direitos Humanos do Conselho
�� Cecília Coimbra: presidente do Grupo Federal de Psicologia. À frente do Tortura
como a do sofrimento que funda suas Tortura Nunca Mais (www.torturanuncamais- Nunca Mais, trava batalha incessante em
raízes na própria existência, com toda rj.org.br), do Rio de Janeiro. Aproximou-se nome da verdade e da memória de um
a complexidade à qual nos convoca. do Movimento Revolucionário 8 de Outubro período sombrio de nossa história. Confira a
– MR8 e iniciou a graduação em Psicologia. entrevista As marcas indeléveis da tortura,
Nunca fomos muito afetados por uma É professora aposentada, porém mantendo que concedeu à edição 358 da revista
ideologia do sucesso e da felicidade, vínculo com o Programa de Pós-Graduação IHU On-Line, de 18-04-2011, disponível
tão difundida pelo marketing televi- em Psicologia da Universidade Federal em http://bit.ly/hi1G6B. (Nota da IHU
Fluminense - UFF. Interessada no nexo que On-Line)
sivo e que inunda a comunicação so- une a psicologia à ditadura, afirma que
cial. Os trabalhos sobre produção de não se trata de acaso o fato desta ciência
subjetividade e os desenvolvimentos e da psicanálise terem se desenvolvido
tanto em nosso país no período autoritário.
da análise institucional têm se en- Ex-integrante do Conselho Regional de
carregado dessa problemática. Agora Psicologia, foi presidente da Comissão

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 11


Tema de Capa
A luta antimanicomial como
uma luta cultural
Para Massimo Canevacci, ninguém é totalmente normal, e a questão da doença
mental não pode ser compreendida como somente um problema médico. É algo
legitimado culturalmente, assegura. E é preciso examinar a questão através de
“indisciplinas”, e não mais por uma disciplina isolada

Por Márcia Junges

“O que se entende por ‘loucura’ não se psiquiátricos transcende as fronteiras da ins-


pode definir objetivamente. Quem é normal? tituição, abarcando estruturas políticas, eco-
E quem é anormal?”, questiona o filósofo e nômicas e religiosas, “muito frequentemente
antropólogo italiano Massimo Canevacci. E incorporado como valor na visão de muitas
completa: “É impossível dizer que uma pes- pessoas ‘normais’”. Em última instância, a luta
soa é sempre totalmente normal. A expansão antimanicomial precisa ser compreendida
da comunicação digital é um exemplo. A iden- num contexto expandido da criação de “uma
tidade nunca mais é unitária, compacta, sem- visão da democracia progressiva”. As declara-
pre idêntica a si mesma”. Sobre a questão da ções fazem parte da entrevista concedida por
medicalização da doença mental e de técnicas e-mail à IHU On-Line.
violentas como o eletrochoque, constata: “o Massimo Canevacci é doutor em Letras
problema não é, e nunca foi, só médico. Sem- e Filosofia pela Universidade Degli Studi di
pre foi também legitimado por uma cultura Roma La Sapienza – URS, na Itália, de onde é
popular que aceitava este tipo de tecnolo- natural. Leciona antropologia cultural, arte e
gia como a única apta para resolver proble- culturas digitais nessa mesma instituição e é
mas intrafamiliares que causavam vergonha, professor visitante na Universidade Federal
medo etc. E a luta antimanicomial sempre foi de Santa Catarina – UFSC. Publicou vários tra-
e sempre será também uma luta cultural”. Se- balhos sobre a realidade brasileira. É autor de
gundo Canevacci, “uma disciplina isolada não livros como Antropologia da comunicação vi-
pode mais penetrar e resolver esta tensão sual (Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001), Fe-
entre loucura e sanidade. Precisamos de ‘in- tichismos visuais (São Paulo: Atelier Editorial,
disciplinas’. Uma ‘indisciplina’ focalizada so- 2008) e Antropologia do cinema (São Paulo:
bre esta questão da ‘normalidade anormal’ é Editora Brasiliense. 1990), Fake in China (Ma-
fundamental”. Em seu ponto de vista, o poder ceió: Edufal, 2011).
simbólico e coercitivo exercido nos hospitais Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – Como percebe o mo tempo, esta corrente exercita seu do da etnografia, que sempre menos
exercício do poder psiquiátrico em paradigma tradicionalmente recluso pertence só à antropologia cultural e
nossa sociedade? no próprio lugar mais ou menos fecha- se difunde e aplica criativamente na
Massimo Canevacci – A psiquia- do, separado do contexto mais amplo pesquisa empírica. A minha sugestão
tria parece-me sempre mais dividida e, por isso, isola a doença e cura este é que, depois da inicial experimenta-
em diferentes e, às vezes, contrastan- específico problema. O caso é que mu- ção entre etnografia e psiquiatria, a
tes correntes. A tradicional psiquiatria dou profundamente a etiologia destes etnopsiquiatria, baseada muito nas
“medicalizada”, isto é, que usa como tipos de doenças. Mudou a família, o questões “étnicas”, agora precisa se
principal instrumento de cura o pro- gênero, o trabalho, o território e, ain- esforçar para ser aplicada no contex-
duto farmacológico, em parte mudou. da mais, a comunicação e o consumo. to atual que, como acenado, é sempre
As novas gerações de fármacos não Por isso as relações entre psiquiatria mais determinado pela comunicação e
são mais como aqueles de 20 ou 30 e outras ciências humanas são funda- pelo consumo. E por uma tendência a
anos atrás. E isso é um bem. Ao mes- mentais, especificamente com o méto- pluralizar a clássica “identidade”.

12 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
sempre menos “objetiva” e sempre
IHU On-Line – Por que ainda “Não se pode mais orientada pelo sujeito. Ao mes-
existem hospitais psiquiátricos? O mo tempo quero sublinhar que o uso
que justifica sua existência? isolar a luta daquela tecnologia era legitimado por
Massimo Canevacci – Depois da um “senso comum”, isto é, da uma
reforma, baseada principalmente no antimanicomial penetração hegemônica na cultura da
pensamento pragmático de Basaglia, maioria das pessoas, que esta ciência
na Itália a lei n. 180 é ainda parcial- do contexto médica era a única legítima para “edu-
mente aplicada, dependendo da re- car” ou “melhorar” este tipo de doen-
gião e, às vezes, de cidade. Penso que a
existência deste tipo de hospitais ten-
geral e da ça. Aqui penetramos num lado obscu-
ro que pertence à visão bem profunda
de a desaparecer. É questão de tempo
e de ter uma sensibilidade específica
criação de nas culturas populares, no sentido
mais amplo, sobre o significado sim-
contextual: às vezes algumas pessoas
depois de viverem 30 ou 40 anos re-
uma visão da bólico da doença mental. Por isso que-
ro sublinhar de novo com força que o
clusas não conseguem viver fora. Por
isso a lei precisa de um período aplica-
democracia problema não é, e nunca foi, só médi-
co. Sempre foi também legitimado por
do, empiricamente e localmente foca-
lizado. A lei n. 180 não pode ser “a” lei
progressiva” uma cultura popular que aceitava este
tipo de tecnologia como a única apta
geral de aplicar em qualquer lugar na para resolver problemas intrafami-
hora. Mas o processo é iniciado e pre- liares que causavam vergonha, medo
cisa ser finalizado fechando o quanto IHU On-Line – Até a reforma de etc. E a luta antimanicomial sempre foi
antes possível o último hospital psiqui- Tuke1 e Pinel2, os hospitais psiquiátri- e sempre será também uma luta cul-
átrico para mudá-lo – como o Monte cos exerciam seu poder sobre o corpo tural. Uma luta progressiva contra os
Mario, em Roma, um centro cultural dos pacientes através da violência. preconceitos difundidos popularmen-
e também um “museu” da história da Com o fim da internação clássica e o te e que constituem a legitimação de
psiquiatria. surgimento da camisa de força quími- um poder médico separado.
ca, a violência vem através do silen-
IHU On-Line – Como a luta anti- ciamento, da apatia. Como percebe a IHU On-Line – Qual é a frontei-
manicomial se coloca na construção medicalização da doença mental? ra que separa a loucura da sanidade
de uma sociedade mais inclusiva e Massimo Canevacci – Em parte numa sociedade como esta em que
democrática? já respondi a esta pergunta. Penso, vivemos: globalizada, segregatória e
Massimo Canevacci – Pergun- e aqui quero escutar pessoas mais excludente?
ta fundamental. O assunto básico é competentes do que eu, que estamos Massimo Canevacci – Esta é uma
o seguinte: não se pode isolar a luta assistindo a uma nova geração de fár- pergunta da um milhão de dólares,
antimanicomial do contexto geral e da macos que são pesquisados somente euros e reais. O que se entende por
criação de uma visão da democracia porque uma luta contra a tecnologia “loucura” não se pode definir objeti-
progressiva. A progressividade da de- de “violência legitimada e cientifici- vamente. Quem é normal? E quem é
mocracia significa que este conceito zada” (eltetrochoque, etc.) ganhou anormal? É uma pergunta básica que
não é histórico, mas baseado sobre a força. Por isso a reforma Tuke e Pinel não pode ser resolvida por uma dis-
mudança. Por isso, talvez prefiro utili- mudou e continua mudando a pesqui- ciplina só, autônoma em si mesma,
zar a palavra “pública”: a “coisa” (res) sa farmacológica no sentido progressi- separada das outras. Uma minianor-
é pública e isso significa desenvolver o vo. Isso significa que as novas medici- malidade, por dizer assim, é difundi-
conceito de “publicidade” numa dire- nas, se funcionam, funcionam porque da em qualquer pessoa. É impossível www.ihu.unisinos.br
ção não coletiva, mas baseada sobre uma parte avançada entre psiquiatras, dizer que uma pessoa é sempre total-
os direitos individuais de uma mino- psicanalistas, psicólogo/as e pesquisa- mente normal. A expansão da comu-
ria irredutíveis à maioria da popula- dores de outras disciplinas puxou na nicação digital é um exemplo que citei
ção. O problema da saúde mental ou direção da pesquisa, de uma pesquisa no início. A identidade nunca mais é
corpo-mental (gosto de usar a expre- unitária, compacta, sempre idêntica a
çao mindful body, no sentido de um 1 Samuel Tuke (1784-1857): psiquiatra si mesma. As identidades entre cada
corpo cheio de mentes) é problema inglês. (Nota da IHU On-Line) subjeito são sempre mais flutuantes,
2 Philippe Pinel (1745-1826): médico
da expansão do público como direito francês, considerado por muitos o pai pluralizadas, fragmentadas e coabi-
irrevogável de cada pessoa. Lutar por da psiquiatria. Notabilizou-se por ter tastes no próprio eu. Ou melhor, nos
esta expansão pública, da coisa pú- considerado que os seres humanos que próprios eus. Eu quero sublinhar o
sofriam de perturbações mentais eram
blica, significa criar uma constituição doentes e que, ao contrário do que lado progressivo destas identidades
progressiva que nunca pode acabar, acontecia na época, deviam ser tratados flutuantes no corpo mental de cada
porque sempre precisa enfrentar o como doentes, e não de forma violenta. individuo. Um ser a quem prefiro cha-
Foi o primeiro médico a tentar descrever
mal estar de cada cidadão. e classificar algumas perturbações mentais. mar mais de chamar “multivíduo”,
(Nota da IHU On-Line) uma multidão de eus entre o mesmo

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 13


“A reforma Tuke
Tema de Capa sujeito. Nesse sentido, a globalização regras, modelos de comportamentos
é sempre também uma localização: ou standard, etc.) outro. Assim, parado-
são culturas glocais. O glocal significa
um cruzamento constante dos dois
e Pinel mudou xalmente, a autonomia de cada pes-
soa penetra e “deseja” a heteronímia,
processos que cada pessoa, cultura ou
fragmento pode elaborar criativamen-
e continua no sentido de lei/regra/modelo, ou
seja, outros em relação àquele cultu-
te. Eu gosto de sublinhar a potenciali-
dade libertadora do processo glocal. E,
mudando ralmente aceitado. Ser heterônomo,
assim, não significa ser dependente
ao mesmo tempo, quero afirmar que
uma disciplina isolada não pode mais
a pesquisa pelo juízo externo. Pelo contrário,
afirmar a própria alteridade (hetero)
penetrar e resolver esta tensão entre
loucura e sanidade. Precisamos de “in- farmacológica como legítima e como legitimação de
um processo mais amplo onde o que
disciplinas”. Uma “indisciplina” focali-
zada sobre a questão da “normalidade no sentido é diferente – o Outro – enquanto dife-
rente exprime um direito pluralizado,
anormal” é fundamental. não conforme ou geral. Só o direito da
progressivo” diferença pode legitimar uma consti-
IHU On-Line – Quem é “louco” e tuição progressiva. Isso significa não
quem é “são” em nossa sociedade? só aceitar, mas desejar quem é dife-
Qual é o limite existencial e clínico rente, e por isso é idêntico.
que separa essas duas categorias? te, que olham múltiplos aspectos das
Massimo Canevacci – O limite é diversidades, diversidades em relação IHU On-Line – Nietzsche e Fou-
de cada pessoa. E a sensibilidade do a alguns parâmetros que são sempre cault compreendiam a loucura como
clínico está no reconhecer o descen- históricos, como medo, horror, inquie- experiência originária, silenciada pela
tramento da sanidade, a zona limítro- tude, ânsia, perplexidade. Às vezes, razão e seu “monólogo”. A loucura
fe opaca, que é difícil de determinar são projeções de uma angústia pesso- guarda, em si, uma verdade que a ra-
e quase impossível de classificar. Por al escondida e que se apavora na ma- zão, através do saber médico, trata de
isso o médico precisa constantemente nifestação pública. Quero dizer que a encobrir?
se “indisciplinar” cruzando e favore- “loucura” ou “desviança” penetra na Massimo Canevacci – Essa per-
cendo veredas entre o que está mu- interioridade de uma pessoa “normal” gunta é dificílima. Nietzsche experi-
dando nas culturas pluralizadas e frag- e coloca em crise a sua própria estabi- mentou uma “loucura” não originária,
mentadas contemporâneas. Aprender lidade, o controle difícil sobre a mono- mas que cresceu e penetrou no corpo
a escutar contos individuais que às tonia da quotidianidade, uma possível da sua filosofia talvez para ter olhado
vezes antecipam comportamentos falência da própria existência, proble- além demais. O além do homem (o
culturais ainda percebidos como “mi- mas familiares não resolvidos. Então, Übermensch) é um “divíduo”, sem o
noritários” ou “desviantes”, ou talvez são inúmeros os estigmas experimen- “in” inicial que apresenta a indivisibi-
“insanos”, mas que apresentam o mal tados na própria vida pessoal, que são lidade do sujeito como fundação do
estar de viver no sentido de uma cria- mais ou menos controlados e que po- indivíduo. Dividuo, dividir e esquizo
tividade perturbativa. dem explodir na frente de uma pessoa são próximos. Ele aceitou percorrer
irregular do ponto de vista do “regu- este itinerário a arriscar a viver os ins-
IHU On-Line – Se, por um lado, o lar”. A assim dita “realidade” é sempre tintos na sua própria “sanidade”. Em
hospital psiquiátrico é o emblema de parcialmente determinante, seja pelo parte, a força de seu pensamento era,
um poder simbólico e coercitivo, além mal-estar introjetado, seja pela sensa- e ainda é, conectada a um explorar
de violento, a vida fora dele também ção horrível de que essa mesma “rea- o além. O arriscar o além. Talvez eu
tem suas pressões pelo enquadra- lidade” apresenta uma doença agrega- esteja tentando apresentar o concei-
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mento do sujeito em determinada da, por dizer assim, que se torna mais to de multivíduo como uma tentativa
norma – uma realidade inescapável. poderosa e incontrolável produzindo de manifestar a multiplicidade do di-
A partir disso, qual é o espaço para as uma heteronímia subjetiva. víduo, isto é, dos eus como plural de
pessoas exercerem sua autonomia? Nesse sentido, o conceito de au- eu (que não seria nós). Praticar as di-
Massimo Canevacci – Esta é a tonomia, isto é, que cada pessoa cria ferenças da minha identidade que não
pergunta das perguntas. O poder sim- e transforma o seu próprio destino, é quer ser sempre idêntica a si mesma,
bólico e coercitivo não acaba no limite o desafio no qual um contexto mais viver identidades pluralizadas na pró-
daquilo que era o hospital psiquiátri- amplo se inclui entre a fantasmagoria pria multividualidade, onde os eus
co. A violência de um poder historica- corpo-mental de cada pessoa. Uma transbordam sem (espero!) causar a
mente determinado é difundida não novela, uma música, um filme, um regressão à esquizofrenia. Eu acho
somente nas estruturas políticas, eco- telejornal, aquela pessoa que mora que Basaglia interpretou e praticou
nômicas ou religiosas. Muito frequen- na frente ou encontra casualmente Nietzsche. A razão (como Adorno3 e
temente é incorporado como valor na rua pode provocar pânico incon-
na visão de muitas pessoas, pessoas trolável. Ser autônomo significa, para 3 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-
“normais” justa e problematicamen- mim, favorecer um nómos (como lei, 1969): sociólogo, filósofo, musicólogo e
compositor, definiu o perfil do pensamento

14 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


“Em muitas

Tema de Capa
Horkheimer4 refletiram na Dialética do também o desafio desejante atual que
iluminismo) não se pode contrapor ao nunca se resolve. A beleza é o além do
mito, instinto, desejo etc. Aqui se abre
um discurso mais complexo.
culturas, o estupor.

IHU On-Line – Com os leprosá-


sujeito que IHU On-Line – Gostaria de
acrescentar algum aspecto não
rios esvaziados, ao fim da Inquisição,
seus novos habitantes passaram a
será definido questionado?
Massimo Canevacci – Às vezes,
ser os loucos, os “leprosos morais”.
Como compreender a aura quase mís-
como ‘louco’ as artes olhadas, praticadas, incorpo-
radas podem ser um ótimo remédio.
tica que gravita em torno da loucura?
Massimo Canevacci – Em muitas apresenta As artes causam doenças na medida
em quem são além da doença...
culturas, o sujeito que será definido
como “louco” apresenta algumas ca- algumas
racterísticas além da normalidade e,
por isso, penetra no sagrado. E o sa- características
grado não deveria ser confundido com
a religião. Pelo contrário: a experiên- além da
normalidade e, Leia mais...
cia mística é parte de visões pratica-
das em muitas culturas, por exemplo,
o transe. Para enfrentar o invisível (a
morte, a doença, a natureza), o sujei- por isso, penetra Confira outras entrevistas
to que pratica a viagem mística não
pode ser percebido como “normal”. O no sagrado. E concedidas por Massimo Cane-
vacci à IHU On-Line:
sagrado está nele. E o sagrado é mui-
to perigoso. Aqui se abre o discurso
sobre a crise do Pajé nas aldeias e, ao
o sagrado não • Comunicação horizontal e
cidadania transitiva: a cons-
mesmo tempo, a proliferação de pseu-
domagos nas cidades, sanguessugas
deveria ser trução de um novo modelo
das almas, que instrumentalizam o
descontrole da morte ou do amor.
confundido com democrático. Notícias do Dia
30-08-2011, disponível em

IHU On-Line – Qual é o papel que


a religião” http://migre.me/63PMA
• A cidadania transitiva no con-
a “ditadura da beleza”, o imperativo
do consumo e da obrigatoriedade em texto da comunicação digital.
ser alguém bem sucedido exercem Notícias do Dia 21-07-2011,
sobre a saúde mental dos sujeitos? disponível em http://migre.
A pós-modernidade inventou formas me/63PPd
de enlouquecimento?
Massimo Canevacci – Acredito • A filosofia atrás de uma mura-
alemão das últimas décadas. Adorno ficou
conhecido no mundo intelectual, em todos que o conceito de pós-modernidade lha? Revista IHU On-Line 379,
os países, em especial pelo seu clássico virou sempre mais ambíguo e prefiro
Dialética do Iluminismo, escrito junto de 07-11-2011, disponível em
abandoná-lo. Claro que a comunica-
com Max Horkheimer, primeiro diretor
do Instituto de Pesquisa Social, que deu ção, sobretudo aquela digital, favore- http://bit.ly/ITlcNo. www.ihu.unisinos.br
origem ao movimento de idéias em filosofia ce um modelo de beleza distante da
e sociologia que conhecemos hoje como enorme maioria das pessoas e pode
Escola de Frankfurt. Sobre Adorno, confira
a entrevista concedida pelo filósofo Bruno criar ou aumentar o mal-estar. Não
Pucci à edição 386 da Revista IHU On-Line, gosto também da expressão “ditadu-
intitulada “Ser autônomo não é apenas saber ra da beleza”. O consumo para muitas
dominar bem as tecnologias”, disponível
para download em http://bit.ly/GCSKj1. pessoas é uma experiência recente.
A conversda foi motivada pelo palestra Para outras, pode ser um vício. Para
Theodor Adorno e a frieza burguesa em outras pessoas ainda pode ser um ho-
tempos de tecnologias digitais, proferida
por Pucci dentro da programação do Ciclo bby da quotidianidade. Mas, cuidado:
Filosofias da Intersubjetividade. (Nota da a beleza exprime uma tendência a pe-
IHU On-Line) netrar no além do “normal”. A beleza
4 Max Horkheimer (1895-1973):
filósofo e sociólogo alemão, conhecido modifica a identidade de uma pessoa.
especialmente como fundador e principal Sempre. Ninguém pode ficar o mesmo
pensador da Escola de Frankfurt e da teoria à frente da beleza. Isso é o drama, mas
crítica. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 15


Tema de Capa
O nascimento do capitalismo e
da internação dos excluídos
Nossa sociedade é baseada na exploração humana, e a violência é intrínseca a
esse modo de produção, observa Osvaldo Gradella Júnior, e instituições como
as psiquiátricas refletem tal característica. Classificação de normal ou anormal é
“imposição ideológica do modelo de racionalidade burguesa”

Por Márcia Junges

“N
as sociedades pré-capitalistas, ap- esse modo de produção”. De acordo com Gra-
tidão ou inaptidão para o trabalho della, sob a égide do capitalismo não há outra
não era um critério importante na forma de lidar com os excluídos que ele mesmo
determinação do normal e anormal. Serão as se encarrega de produzir, a não ser internando-
transformações iniciadas com o advento do -os e isolando-os. Outra temática da entrevista
modo de produção capitalista” que irão defi- é o Movimento Nacional de Luta Antimanico-
nir os critérios daqueles que deveriam ser in- mial, que se constrói a partir de meados dos
ternados, explica o psicólogo Osvaldo Gradella anos 1970.
Júnior, na entrevista que concedeu por e-mail à Osvaldo Gradella Júnior é graduado em Psi-
IHU On-Line. “Nesse momento, saúde-doença cologia pela Universidade Federal Fluminense
passa a ser identificada como ordem-desor- – UFF, mestre em Psicologia pela Fundação
dem, e a loucura começa a ser vista como um Getúlio Vargas e doutor em Educação pela Uni-
problema social, resolvido pela Justiça”, com- versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
plementa. Segundo ele, “as instituições, em Filho – Unesp com a tese Sofrimento psíquico
geral, reproduzem as formas de relações so- e trabalho intelectual do docente universitário.
ciais predominantes na sociedade e, em uma Professor na Unesp, tem uma vasta experiên-
sociedade que tem como base a exploração do cia e trabalhos na temática de saúde mental.
homem pelo homem, a violência é inerente a Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido a po; foi explicada em alguns momentos o início da divisão social do trabalho e
doença mental é uma produção social pela religião e, em outros, pela magia; do trabalho assalariado; a intensa re-
e histórica? Seria a doença mental um considerada em alguns momentos pressão à mendicância, à vagabunda-
mito, como afirmou Thomas Szasz1? como possessão e, em outros, como gem, à ociosidade (voluntária ou não),
Osvaldo Gradella Júnior – Bem, benção. Até aquele momento, não à perturbação da paz, consideradas
dizer que a doença mental é um pro- havia grande mobilidade na organi- obstáculos para o crescimento econô-
duto social e histórico implica compre- zação social, bem como era pouco mico; a criação de instituições como
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ender o momento de seu surgimento, discriminativa para com as diferenças casas de correção e de trabalho, hos-
ou seja, quando a loucura é apropriada individuais. Os loucos se misturavam pitais gerais (sem função curativa); de
como objeto de estudo pela medicina. com os pobres, mendigos, doentes ve- leis e normas que buscavam limpar as
Vamos lá: a loucura é objeto de preo- néreos, vagabundos e criminosos que cidades de mendigos e antissociais em
cupação dos estudiosos há muito tem- perambulavam pelos campos e locais geral, prover trabalho para os desocu-
onde se realizavam as pequenas tro- pados, punir a ociosidade e reeducar
1 Thomas Stephen Szasz (1920): psiquiatra cas e, dessa maneira, iam sobreviven- para a moralidade. Nesse momento,
e acadêmico húngaro, residente nos do pela generosidade alheia. Nas so- saúde-doença passa a ser identificada
Estados Unidos. Desde 1990, é Professor
Emérito de psiquiatria do Health Science ciedades pré-capitalistas, aptidão ou como ordem-desordem, e a loucura
Center (“Centro de Ciência da Saúde”) inaptidão para o trabalho não era um começa a ser vista como um problema
da Universidade do Estado de Nova Iorque critério importante na determinação social resolvido pela Justiça.
(SUNY), em Syracuse. Confira, nesta edição,
a entrevista especial concedida por Szasz do normal e anormal. Serão as trans- Até o século XVIII ela era objeto
à IHU On-Line: A psiquiatria não pode ser formações iniciadas com o advento do de estudo da Filosofia, portanto rela-
reformada. Ela tem que ser abolida, assim como modo de produção capitalista, ou seja, cionada às questões da existência, às
a escravidão. O material pode ser conferido,
também, no site do IHU em http://bit.ly/ as mudanças do sistema de produção paixões e às emoções. Será o médico
JWv6P5. (Nota da IHU On-Line) servil para um sistema de manufatura, francês Pinel que trará para si a tutela

16 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
dos “sem razão” e afirmará o direito não são reais, produto de uma relação
de serem tratados e curados através “No capitalismo fragmentada. Assim, criam-se tam-
dos novos conhecimentos científicos. bém as condições para as explicações
Apontou a necessidade de um lugar não se concebe ideológicas da realidade. Se o modo
apropriado para o seu tratamento, ti- de produção da vida material condi-
rando-os das prisões, hospitais gerais outra forma ciona o desenvolvimento da vida so-
e santas casas de misericórdia, para cial, política e intelectual, também vai
encerrá-los nos manicômios. Ela ad- de lidar com determinar o processo saúde/doença
quire, assim, o status de doença men- compreendido como uma unidade his-
tal, apropriada pela medicina e tor-
nando-se objeto de estudo científico.
os excluídos toricamente determinada.

Quanto a Thomas Szasz, essa


afirmação contundente foi significa-
que ele próprio IHU On-Line – Há uma relação
específica entre a cronicidade dos
tiva para o questionamento dos diag-
nósticos meramente descritivos que
produz a não ser doentes mentais e a sua instituciona-
lização? A partir disso, qual é a impor-
servem somente para rotular e es-
tigmatizar, pois não contribuem para
a internação, o tância da luta antimanicomial? Por
que considera o hospital psiquiátrico
compreender o fenômeno e nem para
definir uma ação que garanta reso-
isolamento” como uma instituição da violência?
Osvaldo Gradella Júnior – Quan-
lutividade para aqueles que sofrem. to a essas questões, foi Erving Goff-
Não penso que possa ser considerada gânico, tornando-se doença mental, man4 quem apresentou essa temática
mito, pois a existência objetiva produz ou seja, deslocando o objeto da filo- quando faz a análise das instituições e
sofrimento em todos nós e necessita sofia para a medicina, sem superar a caracteriza algumas delas como insti-
de acolhimento. Esse sofrimento é discussão posta anteriormente sobre tuições totais, tal como o hospital psi-
concreto e, ao desqualificar esse so- as paixões e emoções. Essa mudança quiátrico. O hospital psiquiátrico vai
frimento, eu desumanizo o sujeito que implicou que o objeto de estudo da favorecer o processo de cronificação
sofre. psiquiatria remete-se aos problemas (= embotamento afetivo, isolacionis-
causados aos indivíduos por essa nova mo, hábitos grotescos, dificuldade
IHU On-Line – Partindo do cará- forma de organização em que a apti- de realizar ações práticas, etc.), que
ter social e histórico atribuído à do- dão para o trabalho é o que define o serve para justificar a tutela, anular a
ença mental, é correto tomá-la como normal do anormal. Porém, no capita- validade do discurso e do sofrimento
sinônimo de loucura? Por quê? lismo só se apresenta o trabalho alie- do sujeito e permitir a submissão do
Osvaldo Gradella Júnior – Eu nado que, para Marx3, só se efetivava portador de transtornos mentais a
penso que não. Pinel afirmava que a a partir do momento em que se ope- mecanismos de violência institucio-
loucura não era orgânica, e que tam- ra uma divisão entre o trabalho ma- nal. As longas internações e a falta de
bém não podia ser enquadrada no terial e o trabalho intelectual. Dessa resolutividade das ações terapêuticas
modelo da ciência natural, hegemô- forma, realiza-se uma cisão também devem-se tanto ao fato da sua concep-
nica naquele momento histórico. Esse na consciência, cujo determinante é ção científica estar baseada na crença
era o teor que dificultava a inserção o trabalho, permitindo, então, que a da irreversibilidade do mal como à
da loucura na medicina. O tratamento consciência possa imaginar coisas que prática médica estritamente classifica-
moral utilizado por Pinel se baseava na tória e descritiva, sem a compreensão
ideia da alienação mental como uma necessária do fenômeno, determinan-
contradição da razão e, portanto, pos- 3 Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, do que a única solução possível seja a
cientista social, economista, historiador e
sível de ser tratada, tanto que as alie- revolucionário alemão, um dos pensadores internação e a medicação ad infinitum. www.ihu.unisinos.br
nações regrediam com esse tipo de que exerceram maior influência sobre o Em relação às instituições, as que
tratamento. A alienação, no sentido pensamento social e sobre os destinos surgiram com o capitalismo foram con-
da humanidade no século XX. Marx foi
de estar fora de si mesmo, impedia o estudado no Ciclo de Estudos Repensando cretizadas como necessidade somente
sujeito de poder exercer sua liberdade os Clássicos da Economia. A edição número
em uma sociedade que se organizava 41 dos Cadernos IHU Ideias, de autoria
de Leda Maria Paulani tem como título A 4 Erving Goffman (1922-1982): sociólogo
sob a égide da razão. Na tentativa de (anti)filosofia de Karl Marx, disponível americano da chamada Escola de
criar modelos explicativos para ser em http://migre.me/s7lq. Também sobre Chicago, cujas teorias se inspiravam
aceita como ciência, será a partir da o autor, confira a edição número 278 da no interacionismo simbólico, autor de
IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada Manicômios, prisões e conventos (5ª ed. São
construção das unidades nosológicas A financeirização do mundo e sua crise. Paulo: Perspectiva, 1996). O antropólogo
de Kraepelin2 que definitivamente Uma leitura a partir de Marx, disponível Édison Luis Gastaldo apresentou o livro
a loucura sai do terreno do não or- para download em http://migre.me/s7lF. Erving Goffman: Desbravador do Cotidiano
Leia, igualmente, a entrevista Marx: os (Porto Alegre: Tomo Editorial, 2004), por
homens não são o que pensam e desejam, ele organizado, no evento Sala de Leitura,
2 Emil Kraepelin (1856-1926): psiquiatra mas o que fazem, concedida por Pedro de promovido pelo IHU, em 17-08-2004. Sobre
alemão a quem frequentemente se credita Alcântara Figueira à edição 327 da revista o evento, publicamos um artigo de Gastaldo
a fundação da moderna ciência psiquiátria, IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível na 111ª edição da IHU On-Line, de 16-08-
a psicofarmacologia e a genética para download em http://migre.me/Dt7Q. 2004, disponível em http://bit.ly/hfM5sT.
psiquiátrica. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 17


“A alienação,
Tema de Capa após o conhecimento do fenômeno Brasil? Em que aspectos houve avan-
estudado, ou seja, como consequên- ços e retrocessos?
cia para o enfrentamento e desdobra-
mento daquele fenômeno, agora es-
no sentido de Osvaldo Gradella Júnior – Bom.
Para esta resposta, penso que é neces-
clarecido. Em relação à loucura, será
o desconhecimento do fenômeno que
estar fora de si sário retomar historicamente o que se
denominou movimento nacional da
criará uma instituição para buscar,
com o sujeito devidamente aprisio-
mesmo, impedia luta antimanicomial. A constituição
dos movimentos sociais não possibili-
nado e encarcerado, as causas que
o tornaram diferente dos outros ho-
ao sujeito tam estabelecer uma data, um único
acontecimento ou fato histórico, nem
mens. Ao pressupor mobilidade social
e liberdade individual, torna-se neces-
poder exercer esse ou aquele sujeito responsável por
tal acontecimento. São produtos de
sária uma forma de controle e separa-
ção entre os sujeitos na determinação
sua liberdade uma série de eventos que se acumu-
lam e imbricam dialeticamente em de-
do seu lugar social, pois o capitalismo
rompe com as formas comunitárias de
em uma terminados momentos históricos, com
diversos atores sociais, possibilitando
convivência nas quais o lugar social
do sujeito se definia ao nascer (laços
sociedade que se um salto qualitativo e sintetizando um
projeto de transformação, ainda que
sanguíneos) e sem possibilidades de
alteração no decorrer de sua vida. As
organizava sob a em um segmento específico.
O recorte histórico que fazemos é
instituições, em geral, reproduzem as
formas de relações sociais predomi-
égide da razão” a partir dos anos 1970, por seu imen-
so teor contestatório e uma conjunção
nantes na sociedade e, em uma socie- de forças no sentido de combater um
dade que tem como base a exploração único inimigo – a ditadura militar im-
do homem pelo homem, a violência dade com o objetivo de prevenção e posta pelo golpe de 1964. Constitui-se
é inerente a esse modo de produção. contribui para medicalizar e psicologi- num momento impar da história das
Umas das características das institui- zar problemas que eram considerados lutas populares no país e de processos
ções é a nítida divisão entre os que como de ordem política e social, tais mais democráticos.
têm poder e os que não têm poder, como: marginalidade, delinquência e O Movimento Nacional da Luta
possibilitando uma relação de opres- absenteísmo no trabalho. A psiquiatria Antimanicomial não é diferente e se
são e violência entre quem detém o preventiva de Caplan retoma essa tra- constrói a partir de meados dos anos
poder sobre aqueles que não o têm. dição nos anos 1960, e essa situação 1970, em uma conjuntura política,
Mais do que somente uma relação de se mantém até hoje, pois a questão social e econômica de contestação
opressão e violência, a intervenção da autorização judicial para internação em escala mundial, diversificado nos
sobre a vida do sujeito, classificando-o em hospital psiquiátrico e a internação temas e na sua amplitude. No Brasil,
de normal ou anormal, constitui-se na compulsória de usuários de droga não o período se caracteriza por grandes
afirmação de um poder médico que, só reforçam essa cultura como também mobilizações contra a ditadura instau-
travestido de científico, nada mais criam obstáculos aos avanços da luta rada: a vitória do MDB nas eleições de
é do que a imposição ideológica do antimanicomial. O processo de institu- 1974, partido que congregava toda a
modelo de racionalidade burguesa. O cionalização de todos aqueles que não oposição à ditadura, os protestos con-
louco, por não produzir, perdeu neces- produzem e que estão excluídos defini- tra o assassinato do jornalista Vladimir
sariamente o seu lugar social, fazendo tivamente dessa possibilidade se repe- Herzog5 e do operário Manoel Fiel Fi-
parte da imensa maioria de excluídos tem ad nauseum: os eventos na cidade
gerados pelo capitalismo. de São Paulo (crackolândia) e no Rio de
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Janeiro (internação compulsória) expli- 5 Vlado Herzog (1937-1975) jornalista,


IHU On-Line – Quais são os prin- citam essa política. No capitalismo não professor e dramaturgo nascido na Croácia,
mas naturalizado brasileiro. Passou a
cipais desafios em se superar a “cul- se concebe outra forma de lidar com os assinar “Vladimir” por considerar seu
tura manicomial”? excluídos que ele próprio produz a não nome muito exótico nos trópicos. Tornou-
Osvaldo Gradella Júnior – Eu ser a internação, o isolamento. Uma se famoso pelas consequências que teve
de assumir devido suas conexões com a
penso que o principal desafio está na das possibilidades para essa supera- luta comunista contra a ditadura militar,
superação desse modo de produção, ção construída pelo movimento da luta autodenominada movimento de resistência
pois essa cultura manicomial está jus- antimanicomial é a participação ativa contra o regime do Brasil, e também
pela sua ligação com o Partido Comunista
tamente articulada com o seu advento dos usuários e familiares nos serviços Brasileiro. Sua morte causou impacto na
e com seu desenvolvimento. A medi- de saúde mental, principalmente nos ditadura militar brasileira e na sociedade
cina e o direito se digladiam pelo con- Centros de Convivência, instrumen- da época, marcando o início de um
processo pela democratização do país. A
trole das instituições e da sociedade to determinante para a reabilitação foto que mostra Herzog enforcado dentro
desde Pinel, quando o poder médico psicossocial. de uma cela no DOI-Codi, em São Paulo, em
amplia a sua competência para cuidar 25-10-1975, foi manipulada pela ditadura,
tratando-se de uma farsa para encobrir o
da loucura a fim de cuidar também dos IHU On-Line – Como analisa as seu assassinato pelo regime.(Nota da IHU
ditos normais, passa a agir na comuni- conquistas da luta antimanicomial no On-Line)

18 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
lho6 nas dependências dos órgãos de Hospital Colônia de Barbacena, Minas
repressão política (DOI-CODI), as gre- “A loucura Gerais, comparado a um verdadeiro
ves de trabalhadores principalmente
no chamado ABC Paulista, a luta pela concebida como “campo de concentração”, possibili-
tou, dado a repercussão, um programa
Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, a re-
construção da União Nacional dos Es- desrazão, como de televisão chamado Globo Repórter
em um dos maiores canais brasileiros,
tudantes, a legalização dos partidos
políticos clandestinos e outras lutas erro, como que expôs e também denunciou a de-
nominada “indústria da loucura”.
contra o regime militar.
periculosidade 18 de maio
Indústria da loucura (Iluminismo) No decorrer dos anos 1980, vá-
Na saúde, o movimento da Re-
forma Sanitária, o Movimento de Re-
transforma-se rias experiências com modelos subs-
titutivos ao hospital psiquiátrico são
novação Médica – Reme, a criação do
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
para a noção realizadas em São Paulo, Minas Gerais,
Rio Grande do Sul, Ceará. Foi realiza-
– Cebes, as discussões do encontro da
Organização Mundial de Saúde realiza-
de diferença, da a I Conferência Nacional de Saúde
Mental (1987) como desdobramento
do em Alma-Ata sobre a complexidade de produção da 8ª Conferência Nacional de Saúde,
do fenômeno saúde/doença e sua mul- e suas deliberações apontam para a
tideterminação que passam a integrar de vida, de mudança radical do modelo psiquiátri-
a nova concepção de saúde, as discus- co vigente e o término da construção
sões sobre as equipes multidisciplina- subjetividade” de hospitais psiquiátricos. Os termos
res nos serviços de saúde, os Conselhos são praticamente os mesmos que
Populares de Saúde que reivindicam a constam da lei elaborada pelo deputa-
presença e o cumprimento da função do Paulo Delgado em 1989 e aprovado
do Estado contribuem para amplificar de Mental”, em que se deflagrou uma com restrições em 2001.
essas mobilizações que culminam com greve e foram demitidos estagiários Essa radicalidade é um dos ele-
a realização da VII Conferência Nacional e profissionais. Denunciavam-se tam- mentos principais para a produção das
de Saúde em 1986, em que se aprova a bém os maus tratos na Colônia Julia- condições para a realização do II En-
proposta do Sistema Único de Saúde a no Moreira, no Hospital Pinel e Pedro contro Nacional dos Trabalhadores em
ser encaminhada a Assembleia Nacio- II, a privatização acelerada dos leitos Saúde Mental, na cidade de Bauru-SP,
nal Constituinte e integrará a Constitui- configurando-se em uma verdadeira em 1987, bem como da aproximação
ção Federal em 1988. “indústria da loucura”. dos usuários e familiares com essa luta
Nessa conjuntura, surge o Mo- Vários eventos, congressos, e certo distanciamento do Estado. As
vimento de Reforma Psiquiátrica e simpósios na área de saúde mental principais deliberações foram: a ado-
o Movimento dos Trabalhadores em também debatiam e denunciavam os ção da bandeira de luta “Por uma so-
Saúde Mental – MTSM, organizados a hospitais psiquiátricos enquanto úni- ciedade sem manicômios”, a definição
partir do que se denominou de “Crise ca forma de atenção ao portador de do dia 18 de maio como Dia Nacional
da Dinsam – Divisão Nacional de Saú- transtornos mentais. O Congresso de da Luta Antimanicomial, a fundação
Camboriú (1979) produziu um mani- do Movimento Nacional da Luta Anti-
festo em que denunciava as questões manicomial formado por familiares e
6 Manuel Fiel Filho (1927-1976): operário de saúde mental. O III Congresso Mi- usuários dos serviços de saúde men-
metalúrgico brasileiro morto por tortura
durante a ditadura militar. Foi preso em neiro de Psiquiatria em Belo Horizon- tal, trabalhadores, entidades forma- www.ihu.unisinos.br
16 de janeiro de 1976 ao meio-dia fábrica te, Minas Gerais (1979), contou com a doras, sindicatos, associações de mo-
onde trabalhava, a Metal Arte, por dois participação de Robert Castel, Michel radores, conselhos profissionais da
agentes do DOI-CODI/SP, que se diziam
funcionários da Prefeitura, sob a acusação Foucault e do psiquiatra Franco Basa- área de saúde, parlamentares, artistas
de pertencer ao Partido Comunista glia, representante do Movimento de e todos aqueles que encampassem a
Brasileiro. No dia seguinte os órgãos de Psiquiatria Democrática e autor da lei luta. Buscava o fim dos hospitais psi-
segurança emitiram nota oficial afirmando
que Manuel havia se enforcado em sua cela n. 180 (Itália), que extinguia o hospital quiátricos pelo gasto inútil de verbas
com as próprias meias, naquele mesmo psiquiátrico e propunha formas subs- públicas e forma de atenção ultrapas-
dia 17, por volta das 13 horas. O corpo titutivas de atenção aos portadores de sada, sem resolutividade, excludente
apresentava sinais evidentes de torturas,
em especial hematomas generalizados, transtornos mentais. A divulgação do e violenta. Sua proposta era a criação
principalmente na região da testa, pulsos filme do cineasta brasileiro Helvécio de serviços substitutivos em saúde
e pescoço. As circunstâncias da sua morte Ratton7 Em nome da razão, sobre o mental, tais como: Centro de Apoio
são idênticas as de Alexandre Vannucchi
Leme e Vladimir Herzog. As evidentes Psicossocial – CAPS, Núcleo de Apoio
torturas feitas a ele dentro do II Exército 7 Helvécio Ratton (1949): cineasta Psicossocial – NAPS, hospital-dia, am-
de São Paulo provocaram o afastamento do brasileiro. De sua filmografia, destacamos
general Ednardo d’Ávila Melo, ocorrido três Batismo de Sangue (2006) e Em nome da
dias após a divulgação da sua morte. (Nota razão (1976), seu último filme inspirado ditadura militar nos anos 60. (Nota da IHU
da IHU On-Line) no livro homônimo de Frei Beto, sobre a On-Line)

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 19


Tema de Capa bulatórios, Unidades Básicas de Saúde melhor remédio” onde apresenta to- e o corpo acorrentado naquilo que se
com equipes mínimas (um psiquiatra, das as leis e os documentos publica- convencionou chamar de “internação
um psicólogo, um assistente social), dos até aquela data, que supre ade- clássica”. Com o advento da reforma,
emergência psiquiátrica, leitos psiqui- quadamente essa questão. deu-se algo diverso, encarcerando a
átricos em hospital geral, enfermaria Atualmente, apesar de termos “alma” do sujeito, sua consciência.
psiquiatra em hospital geral, centro de diminuído para menos que 40 mil lei- Até que ponto isso ocorreu em fun-
convivência e outras formas de aten- tos psiquiátricos no Brasil, ainda mais ção da medicalização da loucura e da
ção com conteúdo não manicomial. de 70% são privados. Em São Paulo ascensão da indústria farmacêutica?
A loucura concebida como desra- concentram-se 30,21% desse total. Os Osvaldo Gradella Júnior – Se en-
zão, como erro, como periculosidade acontecimentos ocorridos em Soroca- tendi a sua questão, penso que são
(Iluminismo) transforma-se na noção ba-SP e denunciados por várias enti- duas coisas diferentes historicamente.
de diferença, de produção de vida, de dades exemplificam esse retrocesso, A medicalização da loucura se insere
subjetividade. As discussões desenvol- bem como as conhecidas discussões em um contexto de transformação
vidas nos encontros do movimento da e ataques da Associação Brasileira social que modificaria radicalmente
luta antimanicomial, congressos cien- de Psiquiatria. Porém, os Centros de a sociedade. Como mencionado aci-
tíficos e específicos de saúde mental Atenção Psicossocial – CAPS já são ma, a intervenção da medicina não se
construíram essa noção, procurando mais de 1.500 e existem em torno de restringe aos loucos, mas estende seu
romper com cultura manicomial que 600 residências terapêuticas no Brasil. poder a todas as esferas da sociedade.
perpassa pelos profissionais da área O programa governamental De Volta Substitui a ordem jurídica pela ordem
que, mesmo trabalhando com os mo- Para Casa, do Ministério da Saúde, é da norma produzindo características
delos substitutivos, acabavam por re- um programa de reintegração social corporais, sentimentais e sociais res-
produzir essa concepção. Ou seja, não de egressos de longas internações, paldadas pelo conhecimento cientí-
se apropriam da discussão que questio- segundo critérios definidos na lei n. fico. Isso só se realiza em função da
nou não só o modelo asilar, mas tam- 10.708, de 31 de julho de 2003, com alienação, pois, se consideramos que
bém as concepções cientificistas sobre pagamento do auxílio-reabilitação psi- a consciência é um produto histórico-
o fenômeno e também a sua origem cossocial, mas que, até dezembro de -social e criada pelo trabalho, a con-
histórica de exclusão e normatização. 2005, só contemplou cerca de 3.500 dição para o surgimento do processo
A partir daí foram quatro encon- pessoas de uma proposição de 15 mil de alienação será a divisão social do
tros nacionais da luta antimanicomial: beneficiados. trabalho.
em 1993, 1995, 1997 e em 2000, res- Dizer dos avanços e retrocessos Em relação à produção de neuro-
pectivamente em Salvador-BA, Belo em um movimento é justamente di- pléticos, a ascensão da indústria far-
Horizonte-MG, Porto Alegre-RS e zer de suas contradições e, ao mesmo macêutica ocorre em um momento de
Paripueira-AL. Esse último teve a par- tempo, de diferenças e divergências reestruturação da ordem econômica
ticipação de mais de 6.000 pessoas. nessa análise, pois ele não se de- mundial pós-segunda guerra que, ape-
Foi considerado o segundo maior mo- senvolve de maneira linear e igual sar das expectativas de desenvolvi-
vimento social do país, depois do Mo- em todo o país. Por um lado, esse mento econômico e social, trouxe con-
vimento dos Trabalhadores Sem Terra processo relatado anteriormente de- sigo o aumento de pessoas adoecidas
– MST. Vários encontros estaduais, re- monstra o avanço do movimento, as por condições de trabalho precárias,
gionais, locais, de usuários e familiares transformações na rede de serviços, desumanas e pelo trabalho alienado.
foram sendo realizados esses anos por as conquistas legais. Porém, a institu- As sucessivas crises do capitalismo
todo o país, alicerçando e fortalecen- cionalização da reforma psiquiátrica ampliam o contingente de excluídos e
do o movimento. trouxe perdas no sentido de refrear a precarização das condições de vida,
o movimento de usuários e familia- de saúde, de educação, bem como o
Concepção positivista res na participação efetiva nos servi- estreitamento dos espaços do que é
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ços substitutivos. Pode não ser uma considerado normalidade. Essas con-
Do ponto de vista legal, foi apre- expressão adequada, mas os servi- dições, que são de ordem econômica
sentado em 1989 o Projeto de Lei n. ços retomam uma prática tecnicista e social, são consideradas como pro-
3657–B de autoria do deputado Paulo e perderam o que era fundamental blemas do individuo e medicalizadas,
Delgado, que seria aprovado em 2001 para sua existência: os usuários e surgindo uma gama enorme de novos
com alterações substantivas – a manu- familiares enquanto sujeitos do seu distúrbios com os seus respectivos
tenção dos hospitais psiquiátricos. Em próprio processo de atenção. As ins- medicamentos, inclusive para sermos
1992, a Portaria 224 do Ministério da tituições formadoras pouco ou nada felizes. Em um levantamento recente
Saúde normatiza os CAPS e NAPS, as mudaram de sua concepção positivis- em um bairro sem unidade de saúde,
emergências psiquiátricas e a hospi- ta, e ao profissional falta a história e verificamos o uso cotidiano de medi-
talização bem como padrões mínimos uma nova possibilidade prática. Por- camentos variados e psiquiátricos sem
para atendimento em hospitais psiqui- tanto, reproduzem o modelo da ciên- nenhum acompanhamento médico.
átricos. O Conselho Regional de Psico- cia natural e do organicismo. Ou seja, a solução medicamentosa
logia – 6ª Região publicou, em 1997, IHU On-Line – Antes da reforma para amenizar os conflitos próprios da
uma edição de sua revista intitulada psiquiátrica empreendida por Pinel e existência humana.
“Trancar não é tratar – Liberdade: o Tuke, os loucos tinham a mente livre

20 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
Luta antimanicomial, uma luta
ético-política
Para quem milita na luta antimanicomial, o pensamento e a ação no mundo são
inseparáveis, pondera Fábio Alexandre Moraes. É preciso perceber a conexão que
existe entre o modelo de trabalho capitalista e o surgimento da doença mental

Por Márcia Junges

“A
sociedade capitalista e seu mode- na que a saúde mental é um exemplo de trans-
lo de trabalho criam as condições disciplinaridade, emergindo como um novo
para a doença mental”. A análise é campo “capaz de lidar com a fragmentação e
do psicólogo Fábio Alexandre Moraes, na en- o reducionismo psiquiátrico”. A seu ver, militar
trevista que concedeu por e-mail à IHU On- na luta antimanicomial é tornar inseparáveis o
-Line. Segundo ele, há vários nexos que unem pensamento da ação do mundo, algo que re-
doença mental e trabalho, sobretudo “se con- flete uma dimensão política. “Afinal, como nos
siderarmos como a loucura foi se constituindo ensina Peter Pal Pelbart, os manicômios, agora,
como doença mental após a Idade Média e os são mentais, e são esses os muros mais difíceis
primeiros movimentos do capitalismo moder- de serem transpostos para se criar outros terri-
no. O trabalho, da maneira como foi concebi- tórios, capazes de abrigar as diferenças. Assim,
do por essa configuração econômica, política, a luta antimanicomial é ético-política”.
mas também cultural e subjetiva, foi um divi- Fábio Alexandre Moraes é psicólogo gra-
sor de águas”, explica. E complementa: “É na duado pela Universidade do Rio dos Sinos –
separação de quem trabalha e não trabalha Unisinos e especialista em Saúde Mental pela
que vamos encontrar as primeiras institui- Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul e
ções de sequestro da vida: para os órfãos, os em Psicologia Clínica. Cursou mestrado em Psi-
velhos, os ociosos de todos os matizes e para cologia Social e Institucional na Universidade
os loucos que perambulavam pelo mundo pré- Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS com a
-capitalista”. Fábio conclui que a “sociedade dissertação Abrindo a porta da casa dos loucos
capitalista desenvolveu ‘seu modelo de traba- (ou: para ativar a potência dos fluxos). Foi co-
lho’ tanto quanto desenvolveu as formas de ordenador do curso de Psicologia da Unisinos
adoecimento e as possibilidades de reconhe- (2001-2009), e atualmente leciona na Unisinos
cimento através da psicopatologia”. Assim, as e atua na área de saúde mental na Prefeitura
formas de adoecimento “nasceram junto com Municipal de Novo Hamburgo.
as formas de trabalho capitalista”. Ele mencio- Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Quais são os nexos vamos encontrar as primeiras institui- dessa função que visaria à reabilitação
que unem doença mental e trabalho? ções de sequestro da vida: para os ór- para vida social. Quem trabalha é por
Fábio Alexandre Moraes – São fãos, os velhos, os ociosos de todos os si só bom e, agora, saudável.
muitos os nexos, se considerarmos matizes e para os loucos que peram- Mesmo hoje conservamos a ideia
como a loucura foi se constituindo bulavam pelo mundo pré-capitalista. de que o sujeito “melhorou” quando
como doença mental após a Idade Além disso, não podemos deixar ele consegue, depois de ser diagnos-
Média e os primeiros movimentos de considerar que o trabalho foi uti- ticado como “portador de uma do-
do capitalismo moderno. O trabalho, lizado, ao longo da história das insti- ença mental”, se inserir ou retornar
da maneira como foi concebido por tuições manicomiais, como dispositivo ao mundo do trabalho. O que pode
essa configuração econômica, política, terapêutico (laborterapia). Se antes nos indicar essa genealogia da do-
mas também cultural e subjetiva, foi tínhamos a purificação e o restabele- ença mental, produto dos valores da
um divisor de águas. É na separação cimento da saúde pela religiosidade, modernidade, tanto quanto mostra
de quem trabalha e não trabalha que agora o trabalho passa a ter um pouco o lugar que o trabalho ocupa na vida

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 21


Tema de Capa das pessoas. Na experiência cotidiana, der seus correspondentes discursos (e te, apontei acima. Logo, e retomando
por exemplo, não poder trabalhar, por temporalidades). a resposta anterior, a “psicopatologia”
qualquer motivo, já se torna motivo 2) Claro que não pretendo fazer tanto é a ferramenta científica pela
de sofrimento frente às exigências da isso aqui, até porque é perceptível qual olhamos o fenômeno como ofere-
vida contemporânea. que, contemporaneamente, nos ocu- ce as condições pelas quais as nossas
Por outro lado, e talvez fosse a pamos da doença mental, expurgando relações se produzem. Podemos dizer
expectativa contida na pergunta, pen- de forma preconceituosa a expressão que essas “patologias” contemporâ-
sar o nexo apenas pela questão do “loucura”. Ninguém admite se pensar neas respondem a isso. Assim como
sofrimento advindo do trabalho, da nesta condição. Isso é insulto! Sou doi- vamos encontrar a histeria emergindo
psicopatologia, como faz Christophe do? Pergunta Guimarães Rosa. Não. do mundo moralista do final do sécu-
Dejours1, parece-me uma discussão Ninguém é doido. Ou, então, todos. lo XIX, e ela somente aparece porque
restrita ao campo da psicologia do tra- E agora falamos muito em “transtor- a psicanálise freudiana a produziu,
balho. Prefiro pensar que o trabalho no” e “sofrimento”. Dessas categorias dando-lhe visibilidade, nome e voz
e a doença mental, como categorias é difícil alguém escapar, afinal, elas (discurso), hoje temos identificadas
analíticas, nascem do mesmo proces- são turbinadas pela biopolítica, onde outras formas de sofrimento, também
so, da mesma configuração social. Não o controle e seus efeitos não se dão articuladas ao contexto sociocultu-
há precedência temporal de um sobre mais sobre o indivíduo, mas sobre a ral e pelas formas atuais de vê-las e
o outro. população inteira. produzi-las. São as depressões, as de-
3) Assim, se isso que chamamos pendências de toda ordem, os distúr-
IHU On-Line – A sociedade capi- de doença mental foi demarcado pela bios alimentares, as ansiedades. Todas
talista e seu modelo de trabalho po- ciência moderna, através da discrimi- muito íntimas da exigência de desem-
dem ser caracterizados, entre outras nação de sinais retirados de compor- penho, da competitividade, do consu-
coisas, como uma sociedade criadora tamentos que poderiam ter outros mo desenfreado, de sermos bons em
de transtorno mental e sofrimento sentidos, em outros momentos da his- tudo e sermos sempre felizes.
psíquico? Por quê? tória (dos sujeitos e da cultura), então
Fábio Alexandre Moraes – De podemos afirmar que essa maneira de IHU On-Line – Em que medida
certa forma já encaminhei a resposta compreender a “doença mental” não a diferença e a singularidade do su-
na pergunta anterior, mas vou trazer somente criou as denominações psi- jeito ficam em um segundo plano
mais alguns argumentos. Poderíamos copatológicas, mas também os indi- quando recebe um diagnóstico que o
responder a essa questão dizendo que víduos que cabem dentro delas. Fê-lo estigmatiza?
sim: a sociedade capitalista e seu mo- pelo olhar médico, mas principalmen- Fábio Alexandre Moraes – O es-
delo de trabalho criam as condições te pelas relações sociais (que são de tigma é uma forma de suprimir a di-
para a doença mental. Entretanto, a poder), e que, obviamente, incluiu o ferença, impedir que os processos de
resposta colocada dessa maneira sim- trabalho e sua organização no mundo singularização se produzam. Quando
plifica questões teoricamente comple- econômico (sociedade capitalista). Es- alguém recebe um diagnóstico, entra-
xas. Por isso atrevo-me a fazer algu- sas questões são inseparáveis. -se no mundo das generalidades cien-
mas considerações: 4) Concluindo, a sociedade capi- tíficas. Deixa de ser o “João da pada-
1) Não há referência à loucura talista desenvolveu “seu modelo de ria”, a “Ivone, esposa do Pedro e que
na pergunta, mas não posso deixar trabalho” tanto quanto desenvolveu frequenta o culto evangélico”, para
de trazê-la. Penso que teríamos que as formas de adoecimento e as possi- serem depressivos. O diagnóstico psi-
fazer a distinção entre loucura, doen- bilidades de reconhecimento através quiátrico acaba por exercer uma força
ça mental, transtorno mental e o que da psicopatologia. Estou tentando di- na direção de suprimir as singularida-
mais recentemente se tem chamado zer, mais uma vez, que as formas de des e se cristalizar num único sentido:
de sofrimento psíquico. Pergunto! Es- adoecimento nasceram junto com as ser doente. O que acaba por oferecer
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tamos falando da mesma coisa? Acho formas de trabalho capitalista. Não é ao sujeito, agora “a-sujeitado”, uma
que não, e a leitura genealógica de uma condição natural prévia que sim- boa justificativa para não se colocar
Foucault certamente poderia nos aju- plesmente emergiu ou que é determi- como vencedor, competitivo ou, pelo
dar a fazer as distinções e compreen- nada pelo modelo de trabalho. menos, se deixando ficar à margem
do jogo. Não pode ser autor e não se
IHU On-Line – Quais são as prin- sente em condições sê-lo. Muitos vão
cipais patologias que surgem a partir se apegar a essa “forma de existência”,
1 Christophe Dejours: psicanalista e da relação dos trabalhadores com o considerando que há menos possibili-
psiquiatra, professor de psicologia no
Conservatoire national des arts et métiers. mundo do trabalho? dades para a proliferação de singulari-
Ele é autor de diversos livros, dos quais Fábio Alexandre Moraes – A mi- dades. Mesmo que haja um discurso
destacamos Souffrance en France: la nha perspectiva de análise é ampla, em contrário (na mídia, principalmen-
banalisation de l’injustice sociale (Paris:
Seuil, 1998); Travail, usure mental. Essay não é a da “psicologia do trabalho”. te), o mundo tem se tornado cada vez
de psycopathologie du travail (Paris: Defendo a ideia de que a “doença mais homogêneo, menos diverso.
Bayard, 2000). De Christophe Dejours mental” foi criada pela ciência que se
publicamos uma entrevista sobre esse
livro, na 15ª edição, de 29 de abril de 2002. objetivou como tal na configuração ca- IHU On-Line – Qual é a importân-
(Nota da IHU On-Line) pitalista, como, muito resumidamen- cia da transdisciplinaridade para uma

22 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
melhor compreensão e acompanha- e os direitos das pessoas portadoras manicomial e a atual política de saúde
mento dos usuários de saúde mental? de transtornos mentais e redireciona mental.
Fábio Alexandre Moraes – Penso o modelo assistencial em saúde men- 1) A luta antimanicomial é defesa
que é redundante falar em transdis- tal”. Aliás, neste momento é premente da vida e das suas múltiplas emergên-
ciplinaridade e saúde mental. Saúde colocar em pauta a reforma psiquiátri- cias, criando condições de cuidar das
mental é um exemplo de transdisci- ca, considerando que há forças con- pessoas que padecem de sofrimen-
plinaridade. Ela emerge justamente servadoras que estão tentando sola- to mental em espaços de liberdade
como um novo campo capaz de lidar par esta importante conquista social. e autonomia. Aliando-se às forças da
com a fragmentação e o reducionismo cidade, famílias, redes de amigos, ou
psiquiátrico. Saúde mental é um pen- IHU On-Line – Sob quais aspec- simplesmente aproveitando as opor-
sar-fazer de todas as áreas de conhe- tos a luta antimanicomial inaugura tunidades que a vida em comunidade
cimento, é um pensar-fazer num cam- um outro pensar e um outro fazer na pode oferecer.
po complexo. As práticas em saúde saúde mental? 2) Assim, um dos resultados des-
mental, por exemplo, jamais poderão Fábio Alexandre Moraes – A luta sa luta foi a aprovação, em 2001, da
ser circunscritas por um “ato médico”. antimanicomial deve ser compreen- lei que reorienta a nova política de
Como nos ensina Lancetti: “é uma ta- dida como um campo de forças (e as saúde mental do Brasil. Essa lei visa
refa que compete a todos os profissio- forças estão sempre em luta), mas há garantir os direitos de cidadania dos
nais de saúde: médicos, enfermeiros, convergência num aspecto fundamen- doentes metais e reorienta a política
auxiliares de enfermagem, dentistas, tal para quem se coloca neste campo: de assistência, que tem busca reduzir
agentes comunitários de saúde, assis- a compreensão de “sujeito” e de seus progressivamente os leitos psiquiátri-
tentes sociais, terapeutas ocupacio- processos de singularização. Logo, as cos, qualificar, expandir e fortalecer a
nais, fonoaudiólogos, psicopedagogos, diferentes correntes se aproximam rede extra-hospitalar. O que inclui os
psicólogos, etc.” (Lancetti; Amarante, pela dimensão ética, onde traduzimos Centros de Atenção Psicossocial, Ser-
2007, p. 615). Logo, nos permite pen- o pensamento e a ação em “formas de viços Residenciais Terapêuticos e as
sar a integralidade em saúde, em que cuidado”. Unidades Psiquiátricas em hospitais
o sujeito é tomado em todos os seus Outro aspecto importante: quem gerais. Além disso, as ações de saúde
aspectos. Transdisciplinaridade é uma se coloca como militante na luta anti- mental devem estar incluídas na aten-
forma de pensar a desinstitucionaliza- manicomial não separa o pensamento ção básica. Também define diretrizes
ção no campo do conhecimento. da ação no mundo. Logo, estamos fa- para uma política de atenção integral
lando da dimensão política. É a ação a usuários de álcool e outras drogas.
IHU On-Line – Quais são os mo- do pensamento e da liberdade. Afinal, 3) É na política de atenção aos
tivos de se celebrar e refletir o 18 de como nos ensina Peter Pal Pelbart2, usuários de drogas que a reforma
Maio? os manicômios, agora, são mentais, psiquiátrica vem sofrendo as maiores
Fábio Alexandre Moraes – Para e são esses os muros mais difíceis de críticas, ironicamente na questão em
os que estão distantes desse debate, serem transpostos para se criar ou- que fica mais evidente a relação entre
podemos dizer que o “18 de Maio” tros territórios, capazes de abrigar as sociedade e produção de doença. Fica
marca o dia nacional da “luta antima- diferenças. Assim, a luta antimanico- a pergunta: vamos olhar apenas pela
nicomial”. Trata-se do movimento dos mial é ético-política. Não sei se é um perspectiva médica ou ampliar a dis-
trabalhadores em saúde mental que “outro pensar e fazer”, mas é o mais cussão, como o Movimento dos Traba-
visa à transformação do modelo as- importante. lhadores em Saúde Mental fez em tor-
sistencial para os doentes mentais. A no dos efeitos da institucionalização?
substituição das internações em hos- IHU On-Line – Gostaria de Parece-me que temos que retomar o
pitais psiquiátricos por serviços comu- acrescentar algum aspecto não debate.
nitários, integrados à rede de saúde questionado?
Leia mais...
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geral. A data é celebrada desde a dé- Fábio Alexandre Moraes – Faço
cada de 1970. três considerações sobre a luta anti-
O “18 de Maio” é um analisador,
no sentido institucionalista. Dia de ce-
lebração e de reflexão sobre algo que Fábio Alexandre Moraes já con-
2 Peter Pal Pelbart: graduado em Ciências
ainda não tratamos adequadamente Sociais pela Universidade de São Paulo cedeu outra entrevista à IHU
na sociedade brasileira: os sujeitos to- – USP, e em Filosofia pela Sorbonne, em
Paris, é mestre em Filosofia pela Pontifícia On-Line. Confira:
mados pela condição de doentes men-
tais não gozam plenamente de seus
Universidade Católica de São Paulo – PUCSP • Ciclo de Filmes e Debates –
com a dissertação Da clausura do fora ao
direitos. fora da clausura: loucura e desrazão (2ª Trabalho no cinema. Edição
Aproveitamos este dia para dis- ed. São Paulo: Iluminuras, 2009). Cursou 214 da Revista IHU On-Line,
doutorado na USP e é livre docente pela
cutir sobre o processo de implantação PUCSP. Entre outras obras, é autor de de 02-04-2007, disponível
da reforma psiquiátrica e seus impas- Vida capital. Ensaios de biopolítica (São em http://bit.ly/IU5PEh
ses, lembrando que desde 2001 vigo- Paulo: Iluminuras, 2003) e O tempo não
reconciliado (São Paulo: Perspectiva,
ra no país uma nova legislação (lei n. 1998). Leciona na PUCSP. (Nota da IHU
10.216), que “dispõe sobre a proteção On-Line)

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 23


Tema de Capa
O empoderamento dos usuários
de saúde mental
Valorizar a fala, o conhecimento e a trajetória das pessoas é imprescindível para
um outro tipo de saúde mental, frisa Rosana Onocko Campos. Pressão da indústria
farmacêutica e demanda de felicidade e sucesso ajuda a compreender a “receitação”
de psicofármacos, pontua

Por Márcia Junges

N
ão se trata de mera utopia. Ela pode pelos usuários. Junto de outras variáveis, essa
“ser alcançada quando nas cidades se seria uma forma importante de empowerment,
investe em saúde”. A ponderação é empoderamento, em português claro. “Tenho
da médica Rosana Onocko Campos na entre- gostado muito dessa forma de pesquisa que
vista que concedeu, via e-mail, à IHU On-Line, nos permite dar voz aos usuários, trazer à tona
tecendo considerações sobre a reforma psi- como eles enxergam os serviços e as relações
quiátrica no Brasil. De acordo com a pesqui- que ali conseguem cultivar”, menciona.
sadora, essa reforma “é de um grande valor Rosana Onocko Campos é graduada em
técnico-político, sobretudo em épocas em que Ciências Médicas pela Universidade Nacional
a psiquiatria clássica, entregue a interesses co- de Rosário, na Argentina. É mestre e doutora
merciais, pretende apresentar-nos (a todos os em saúde coletiva pela Universidade Estadual
reformistas) como burros, mal informados ou, de Campinas – Unicamp com a tese O planeja-
na melhor das hipóteses, como ingênuos ig- mento no labirinto (São Paulo: Hucitec, 2003).
norantes bem-intencionados”. Rosana explica, É uma das organizadoras da obra Desafios da
também, o projeto Saúde mental e cidadania, avaliação de programas e serviços em saúde
financiado pelo International Development Re- (Campinas: Editora da Unicamp, 2011). Lecio-
search Center – IDRC, do Canadá, e do qual ela na no Departamento de Medicina Preventiva e
é coordenadora. Suas estratégicas e temáticas Social da Unicamp.
de investigações buscam revelar um conheci- Confira a entrevista.
mento diferente do acadêmico, reapropriado

IHU On-Line – Em que consiste UFF, UFRGS, UFRJ, UECe) e do Canadá tífico entre pesquisadores e usuários,
o projeto Saúde Mental e Cidadania (Universidade de Montreal) com mo- experiência bastante inédita no Brasil
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(Santé Mentale Citoyennété)? Como vimentos de usuários de serviços des- e que está nos dando um trabalho ra-
essa iniciativa pode “empoderar” os sa área, pessoas que tiveram ao lon- zoável. É difícil conciliar a linguagem
usuários da saúde mental? go de sua vida diagnóstico de alguma científica com a linguagem da vida
Rosana Onocko Campos – Trata- doença mental e que se organizaram cotidiana, mas estamos intentando
-se um projeto de pesquisa e ação para fazer valer seus direitos e com- aproximá-las.
que é atualmente financiado pelo bater o estigma sempre associado às Essas estratégias  e a temática
International Development Research doenças mentais. Eles têm participa- das investigações (avaliação de ser-
Center – IDRC, do Canadá, e que bus- do tanto da definição de temáticas viços, uso de medicação, experiência
ca aproximar a comunidade da aca- de investigação (focando, então, no do adoecimento, etc.) buscam dese-
demia. Recebemos 1 milhão de dóla- que seriam para eles as prioridades quilibrar um pouco o polo do poder,
res canadenses em cinco anos e isso de pesquisa) como também de inves- desta vez visando que ele seja reapro-
está nos permitindo financiar uma tigações de caráter participativo que priado pelos usuários. O reconheci-
rede de pesquisa em saúde mental, desenvolvemos, inclusive da fase de mento de que eles portam um saber,
que junta várias universidades pú- análise e divulgação. Estamos traba- sim, diferente do acadêmico, porém
blicas brasileiras (Unicamp, Unifesp, lhando na escrita de um artigo cien- não menos valioso; a conscientização

24 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
sobre seus direitos cidadãos e como cluindo sua capacidade de regulação ticas que não somente medicamen-
fazê-los valer, etc. são, a meu ver, for- de internações e vagas) e da escassa tosas. A formação dos residentes de
mas concretas do que na língua ingle- capacitação e supervisão continuada psiquiatria continua a se dar isolada
sa chamamos de empowerment. dos profissionais que ali trabalham. na maioria dos casos, e não no con-
Isso é sério, pois os CAPS III são os texto de equipes multiprofissionais.
IHU On-Line – Como analisa as serviços comunitários que contam O mesmo ocorre com quase todos
políticas públicas para a saúde men- com leitos para acolhimento em 24 os outros profissionais. Criamos um
tal em nosso país? O que vem dando horas, o que lhes permite dar con- CAPS e queremos que “magicamen-
certo em termos de uma nova con- sistência ao modelo de substituição te” eles trabalhem juntos, sem super-
cepção nessa área? do hospital psiquiátrico. Fragilizá-los visão nem apoio de nenhum tipo. Pu-
Rosana Onocko Campos – A equivale a fragilizar a reforma, algo blicamos efeitos de uma experiência
aposta brasileira em uma reforma que talvez interesse a atual gestão de de trabalho compartilhado na Revista
psiquiátrica é, sem dúvida, uma das saúde mental do estado, com quem Brasileira de Educação Médica (35
apostas ético-políticas mais valoro- nos resultou impossível conseguir [4], 460-467, 2011).
sas deixadas pelos anos 1980. Nesse interlocução. Isso é curioso, em se
campo, juntamente com a expansão tratando de uma pesquisa financiada IHU On-Line – Em que sentido a
do Sistema Único de Saúde – SUS com recursos públicos para estudar saúde mental é, acima de tudo, uma
houve a expansão da rede de serviços recursos públicos estratégicos. Tenta- questão de saúde coletiva?
comunitários (os Centros de Atenção mos dar retorno a eles, pois achamos Rosana Onocko Campos – A saú-
Psicossocial – CAPS, notadamente) que é nossa responsabilidade como de coletiva é um campo de produção
e a diminuição do número de leitos pesquisadores de uma universidade de conhecimento e de práticas que
em hospitais psiquiátricos com in- pública. Pensamos que lhes resultaria contribui para o estudo do proces-
versão do padrão de financiamento interessante, mas não conseguimos so de saúde-doença-atenção como
nos últimos anos. Isso significou um sensibilizá-los. processo social em diversos grupos e
aumento crescente desses serviços, populações, atentado para sua distri-
melhor cobertura e acolhimento para IHU On-Line – Quais são os prin- buição geográfica, histórica e social,
essas pessoas em sofrimento psíqui- cipais desafios na formação de recur- e também para as maneiras em que
co. Uma pesquisa nossa publicada na sos humanos para a área de saúde cada sociedade define suas deman-
revista Saúde Pública (2009, 43, supl. mental? das em saúde e se organiza para sa-
1, 16-22) mostrou que em algumas Rosana Onocko Campos – A for- tisfazer suas necessidades nesse cam-
cidades as redes assim constituídas mação de pessoas (não gosto muito po. É um campo interdisciplinar por
são continentes para pacientes e usu- da expressão recursos humanos, pois excelência.
ários confirmando a conquista de um os torna objetos) para a área de saú- Numerosos estudos apontam
desejo muito almejado: o de tratar de de mental neste contexto de reforma que os transtornos mentais são cada
forma humanizada, na comunidade, e requer mudanças nas formas de ensi- dia mais prevalentes, e isso só tende
sem produzir isolamento social nem nar e aprender. Em muitas faculdades a crescer com as condições de vida
exclusão. Para nós, isso prova que a de psicologia, de terapia ocupacional, contemporânea. Muitos dos siste-
proposta da reforma não é mera uto- etc. ensina-se muito pouco sobre a mas de saúde de cobertura universal
pia, e que é sim possível de ser alcan- reforma, seus princípios éticos e po- do planeta têm se preocupado com
çada quando nas cidades se investe líticos, sua história, seus problemas esse tema e tentam se reorganizar
em saúde. É de um grande valor téc- e desafios atuais. Quando se ensina, para enfrentar essa questão, como o
nico-político, sobretudo em épocas faz-se com certo tom ufanista, épico. sistema inglês, por exemplo. No Bra-
em que a psiquiatria clássica, entre- Fica retórico e serve para estimular sil, alguns estudos de uns anos atrás
gue a interesses comerciais, pretende a militância, mas não dá aos alunos realizados pelo Ministério da Saúde www.ihu.unisinos.br
apresentar-nos (a todos os reformis- ferramentas de trabalho potentes. mostraram que 55% das equipes de
tas) como burros, mal informados ou, Ensina-se muito pouco a se trabalhar saúde da família, ou seja, no atendi-
na melhor das hipóteses, como ingê- fora do setting clássico do consultório mento de primeira linha, na porta de
nuos ignorantes bem-intencionados. particular, como se os recém-forma- entrada do sistema, recebiam impor-
Contudo, lamentavelmente, dos fossem todos trabalhar no anti- tantes demandas de saúde mental.
também acompanhando os rumos go modelo liberal. Como se trata na Encontramos resultados semelhan-
do SUS, uma pesquisa avaliativa de comunidade, na rua, na escola? Pou- tes – do ponto de vista qualitativo em
todos os CAPS III do estado de São quíssimas exceções conseguem ensi- nossa pesquisa – estudando Unida-
Paulo, que estamos finalizando com nar isso aos seus alunos. Os modelos des Básicas de Saúde – UBS da cidade
financiamento da Fapesp, mostra que clínicos e de gestão são muito pouco de Campinas, publicados na revista
a grande maioria dos CAPS III deste debatidos. O diálogo com a psiquia- Saúde Pública (2012, 46 [1], 43-50).
estado encontram-se bastante fragili- tria foi abandonado como projeto, e
zados do ponto de vista dos recursos não deveria ser. Em outros países do IHU On-Line – Na área de utili-
com que contam, das modalidades mundo os psiquiatras continuam a se zação de psicofármacos especifica-
organizativas que dali derivam (in- interessar pelas estratégias terapêu-

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 25


Tema de Capa mente, quais são os maiores desa- do sobre as UBS de Campinas mostrou plo, possuo formas de controlar se a
fios para profissionais e usuários? essa falta de informação de parte dos dose é apropriada: verifico a glicemia
Rosana Onocko Campos – Como pacientes, assim como que os profis- do paciente e saberei se falta, sobra
com todos os medicamentos, exis- sionais de saúde sentindo-se impo- ou se está correta a dose administra-
te uma pressão da indústria para a tentes frente às condições difíceis de da. Mas se eu estou administrando
“receitação” de psicofármacos. Mas vida da população (regiões marcadas um regulador do humor? Como fazer
ela é alimentada ainda pela pressão pela pobreza extrema e pela violên- uso de uma dose correta sem confiar
imensa que a sociedade contemporâ- cia, por exemplo). Esses profissionais na palavra do usuário, sem dar o de-
nea faz pela conquista da felicidade medicam as pessoas considerando vido valor a seu depoimento? E isso
e do sucesso. Há uma ideia de que que é a única coisa que podem fa- não se consegue sem a criação de
seria possível viver sem sofrer, que zer por elas. A medicalização da vida um setting um pouco mais horizonta-
transforma qualquer tristeza em de- como gesto humanitário! (Mas de- lizado, no qual as pessoas sejam en-
pressão e, portanto, busca-se a me- vemos destacar também como ges- corajadas a falar com seus médicos.
dicação. Mas há, também, o estilo de to solitário desses profissionais que Além de serem ocultados os efeitos
vida das grandes cidades, que tem não contam com quem debater es- colaterais, muitas vezes se oculta dos
desvitalizado as redes sociais locais. ses temas que lhes provocam, é cla- pacientes que a maioria das prescri-
Os vínculos de vizinhança são cada ro, angústia.) Nos anos 1970 fazia-se ções psiquiátricas nada curam, so-
dia mais raros, as famílias são cada política junto à população buscando mente controlam sintomas. Por isso
vez menores, idosos e jovens ficam mudar essas condições; no século XXI é relevante definir, de maneira con-
cada vez mais sozinhos no tempo fazemos receitas! Publicamos alguns gestiva – como é temos chamado –,
que dispõem. Muito da angústia que desses achados em Ciência & Saúde junto deles eles quais são os sintomas
essa solidão provoca, das tensões do Coletiva, (16 [12], 4643-4652, 2011). que devem ser eliminados e quais po-
trabalho, das ameaças (reais ou ima- deriam, por exemplo, ser tolerados
ginárias) de nossas cidades cada vez Controle dos sintomas ou minimizados com outras tera-
mais inseguras se transformam em pêuticas. Estamos trabalhando nisso
demandas por medicação. Nosso trabalho com a Gestão a partir de um guia canadense que
Saliento ainda que não são apre- Autônoma da Medicação – GAM pre- traduzimos e adaptamos ao Brasil, e
sentados às pessoas os efeitos cola- tende criar uma estratégia para pro- estamos realizando sua validação e
terais desses medicamentos. Muitas piciar o diálogo entre profissionais e teste em Fortaleza-CE, no Rio de Ja-
vezes nem seus médicos lhes ofere- usuários sobre essas questões, enfa- neiro-RJ, em Campinas-SP, em Porto
cem corretamente essa informação, e tizando a necessidade de dar valor à Alegre-RS e em Novo Hamburgo-RS.
os pacientes afirmam buscar sozinhos palavra do usuário. Se eu receito um
em bulas ou na internet. Nosso estu- remédio para a diabetes, por exem-

Ciclo de Filmes e Debates - A crise do capitalismo no cinema


Exibição prévia em horário alternativo do filme InsideJob –
Trabalho Interno.
www.ihu.unisinos.br

Data: 08-05-12, das 12h às 14h


Exibição seguida de debate no dia 09-05, das 19h30min às 22h
Reprise em horário alternativo: 21-05-12, das 12h às 14h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Saiba mais em http://bit.ly/HOXwyP

26 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
IHU On-Line – Recuperando fatores. É uma linha de trabalho que Tenho gostado muito dessa for-
uma de suas pesquisas feitas entre estamos continuando e que merece ma de pesquisa que nos permite dar
2008 e 2010, como o conhecimento mais tempo de análise. voz aos usuários, trazer à tona como
vivido da esquizofrenia pode infor- eles enxergam os serviços e as rela-
mar e modificar o conhecimento téc- IHU On-Line – A partir das con- ções que ali conseguem cultivar. Em
nico do psiquiatra? E de que forma quistas da luta antimanicomial, estudos comparados que estamos
o conhecimento do psiquiatra pode como avalia a relação entre os pro- iniciando com os colegas canadenses,
modificar a dimensão da experiência fissionais da saúde mental e os aparece isso como uma diferença im-
vivida da esquizofrenia? usuários? portante em relação à reforma brasi-
Rosana Onocko Campos – Nessa Rosana Onocko Campos – Digo leira e ao processo no Canadá. Aqui
pesquisa coordenada pela UFRJ pro- sempre aos meus alunos de aprimo- a reforma foi iniciada pelo esforço
curamos configurar grupos de usuá- ramento (estágio de pós-graduação conjunto de trabalhadores, familia-
rios para falarem de sua experiência supervisionado) que ninguém está res e usuários. Lá há como que uma
de adoecimento. Também solicita- trabalhando na saúde mental por ca- desconfiança maior entre usuários e
mos a psiquiatras da rede pública que sualidade. Há, na maioria de nós, al- profissionais. Estamos nos interes-
explicassem como faziam o diagnósti- guma coisa nas nossas vidas, no nos- sando em descobrir por que razão
co, qual o prognóstico, etc. Utilizamos so passado, que cria um motivo de isso acontece.
o diagnóstico de esquizofrenia bus- sensibilização para esse tipo de sofri-
cando um diálogo com a psiquiatria, mento. Até as pessoas que dizem não IHU On-Line – O que é sanidade
e visando colaborar com o debate ter “escolhido” a saúde mental (o que mental e o que é considerado pato-
do novo manual de doenças psiqui- se dá, muitas vezes, entre o pessoal logia atualmente?
átricas, pois no mundo todo como da enfermagem, por exemplo), se Rosana Onocko Campos – Freud
muitos psiquiatras têm se organizado ficam nela certo tempo é porque se definia a cura que a psicanálise bus-
para influenciar as novas “doenças” encontram a gosto nessa clínica difícil ca como “recuperar a capacidade de
que serão apontadas, muitos grupos e sofrida. Sentem-se úteis. Acreditam amar e de trabalhar”. À falta de uma
de usuários têm se organizado bus- que o que fazem serve para algo, e definição de saúde mental melhor,
cando interferir, apontando o valor isso não é pouco no contemporâneo! tenho ficado com essa. Acredito que
da experiência pessoal para além dos Em minha experiência de supervisão é um bom começo e tem a vantagem
diagnósticos. clínico-institucional de serviços sem- de se tornar um ponto de partida
Enfim, foi uma pesquisa de in- pre tenho me encontrado com pesso- para o nosso trabalho. No ambiente
tensidade muito grande, e no mo- as muito envolvidas e que possuem da saúde mental, muitas vezes utiliza-
mento das trocas (trocamos as falas essa sensibilidade trabalhada, como -se o álibi de que as coisas são difíceis
de um grupo com o outro, conforme a nomeia J. Oury1. de definir para fugir das definições.
tínhamos combinado com eles no iní- Os usuários dizem confiar nos Mas essas são necessárias para algu-
cio da investigação) houve uma rea- profissionais, sobretudo encontra- mas operacionalizações...
ção dos usuários ao perceberem que mos isso em trabalhos nos quais in- Tristeza não é patologia, mo-
os psiquiatras tinham dúvidas e – às terrogamos a função do que chama- leque arretado não é doença. Claro
vezes – até preconceito. Ainda esta- mos de técnicos de referência, que que existem os deprimidos e os hi-
mos trabalhando nesse material para são os profissionais mais próximos perativos. Quando um traço de per-
fazer comunicações mais específicas, de cada usuário, responsáveis pela sonalidade se torna doença? Por que
mas é sempre interessante o efei- montagem conjunta com eles e suas interessa à indústria farmacêutica
to que relatos de vida trazem – eles famílias, de um projeto terapêutico chamar de doença um conjunto de
parecem agenciar uma súbita empa- individual. Eles afirmam que confiam sintomas? Quantas mães solteiras
tia que nem sempre combina com as nos técnicos de referência, pois os não foram internadas em hospícios www.ihu.unisinos.br
prescrições. Não conseguimos achar profissionais dão valor à sua palavra, no século retrasado? Enfim, a defini-
relatos de recovery, como apontado ou conhecem sua história, ou deram ção de saúde e doença será sempre
na literatura internacional, sobretu- provas de suportar estar juntos em uma definição situada social e histo-
do em contexto anglo-saxão, no qual momentos difíceis como as crises... ricamente. No mundo de hoje, creio
as pessoas mostram formas de reto- Publicamos algumas dessas avalia- que temos o dever de problematizar
mada em suas vidas após a doença ções na revista Saúde Pública (2008, a hipermedicalização da vida. Refletir
à vezes em condições melhores às 42, [5], 907-13) e na revista Latinoam. sobre a importância de suportar um
iniciais... Mas precisamos ainda tra- Psicopat. Fund. (São Paulo, v. 14, n. 1, salutar mal-estar. Isso é a base da ci-
balhar mais sobre esse material para p. 122-133, março 2011). vilização, como nos ensinou Freud.
saber se isso poderia ser atribuído,
por exemplo, às condições sociais dos
usuários brasileiros, as noções de ci- 1Jean Oury (1924): psiquiatra e psicanalista
dadania e reivindicação de cada uma francês, membro da Escola Freudiana de
dessas sociedades ou a alguns outros Paris, fundada por Jacques Lacan. (Nota da
IHU On-Line)

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 27


Tema de Capa
O estigma da loucura ainda não
foi superado
Práticas manicomiais excludentes também ocorrem fora dos hospícios, pondera
Sandra Fagundes. A loucura é humana e não deve ser “depositada” em instituições,
mas contar com a “terapia” da liberdade

Por Márcia Junges

P
essoas como sujeitos de direitos e de- E complementa dizendo que a liberdade tem
sejos, que necessitam de autonomia e caráter terapêutico, enquanto a loucura é algo
autoria. Assim são os usuários de saúde próprio do humano e não pode ser “deposita-
mental, define a diretora do Departamento de da” em alguns seres, isolados em instituições.
Ações em Saúde – DAS da Secretaria Estadual “Os serviços devem se adaptar às necessidades
de Saúde do Rio Grande do Sul, Sandra Fagun- dos usuários, e não o contrário. O cuidado é
des, na entrevista que concedeu por e-mail à produzido no encontro, na implicação, na afec-
IHU On-Line. Contudo, seus direitos são, mui- ção entre pessoas”.
tas vezes, desrespeitados, e outros ainda nem Sandra Fagundes é graduada em Psicologia
foram conquistados. O estigma da loucura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
por exemplo, ainda não foi completamente Grande do Sul – PUCRS e mestre em educa-
superado, aponta. A psicanalista afirma que a ção pela Universidade Federal do Rio Grande
prática da psiquiatria sem o lugar e o estigma do Sul – UFRGS com a dissertação Águas da
do hospício se dá nos territórios: “ruas, casas, pedagogia da implicação: intercessões da edu-
instituições de saúde, de educação, de cultura. cação para políticas públicas de saúde. Dirige
Há continuamente produção de práticas mani- o Departamento de Ações em Saúde – DAS e
comiais – excludentes – na sociedade, nos di- tem uma longa história de militância na luta
versos territórios, fora dos hospícios, que pre- antimanicomial e reforma psiquiátrica no Rio
cisam ser reconhecidas, analisadas, superadas Grande do Sul. É uma das organizadoras da
e substituídas. Este é um exercício cotidiano”. obra Acolhimento em Porto Alegre: um SUS de
Ela ressalta a importância da aprovação da lei todos para todos (Porto Alegre: Prefeitura de
da reforma psiquiátrica, que mudou o estatuto Porto Alegre, 2004).
do “louco” para cidadão de direitos e desejos. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais você consi- psiquiátricos possíveis de ofertar por de Saúde Mental e entidades e gesto-
www.ihu.unisinos.br

dera as principais conquistas oriun- hospital geral. A lei é o eixo do arca- res aliados da reforma psiquiátrica.
das da lei da reforma psiquiátrica em bouço jurídico-político da política de
nosso país? atenção integral à saúde mental no es- IHU On-Line – O que a política
Sandra Fagundes – A lei em si e tado. Integra praticamente todos pla- pública da reforma psiquiátrica pre-
sua aprovação já foram conquistas e nos, justificativas de portarias e reso- vê para as pessoas que necessitam
evidenciaram que a sociedade gaúcha luções do âmbito da saúde mental no de cuidado em função de sua saúde
estava disposta a mudar o estatuto Rio Grande do Sul. A lei é viva, produz mental?
do “louco”: de excluído a cidadão de mobilização: na última década houve Sandra Fagundes – Prevê uma
direitos e desejos. A lei teve uma fun- tentativas de revogar ou modificar a rede de ações e serviços diversifica-
ção de “dique”: sua vigência impediu lei reintroduzindo o hospital psiquiá- dos nos territórios e cidades onde as
que novos hospitais psiquiátricos fos- trico entre os serviços de saúde men- pessoas vivem, incluindo: Unidades
sem abertos e que os antigos fossem tal. Todas as tentativas fracassaram Básicas de Saúde – UBS, equipes de
ampliados. Ou seja, estancou de fato pela mobilização da sociedade, em saúde da família, Centros de Atenção
o crescimento de leitos em hospitais especial usuários, trabalhadores e fa- Psicossocial – CAPS (criança, adoles-
psiquiátricos. A lei tem uma função miliares integrantes do movimento da cente, adultos e dependentes de uso
reguladora: regrou o limite de leitos luta antimanicomial – Fórum Gaúcho de drogas), serviços residenciais tera-

28 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
pêuticos, consultórios na rua, casas 1. Centralidade na formação e nos territórios: ruas, casas, institui-
de acolhimento transitório, centros educação permanente: a rede se cons- ções de saúde, de educação, de cul-
de convivência, oficinas terapêuticas tituiu a partir da formação de traba- tura. Há continuamente produção de
e de geração de renda, hospitalida- lhadores de saúde mental nos municí- práticas manicomiais – excludentes –
de noturna, como leitos em hospital pios, que criaram serviços apropriados na sociedade, nos diversos territórios,
geral, unidades de desintoxicação e à história e cultura local-regional. For- fora dos hospícios, que precisam ser
tratamento em hospitais gerais, pron- mação em serviço: pessoas que já tra- reconhecidas, analisadas, superadas e
to atendimento e SAMU. O essencial balhavam no serviço público. substituídas. Este é um exercício coti-
é a produção de Projetos Terapêuti- 2. Formação e práticas interdisci- diano. O estigma da loucura, da doen-
cos Singulares – PTS, de acordo com plinares: especilizações e residências ça mental ainda é vigente e precisa ser
a necessidade de cada usuário e seu multiprofissionais. superado.
contexto. 3. Projetos e ações intersetoriais:
trabalhos com a cultura e educação, IHU On-Line – Acredita que a so-
IHU On-Line – O que ainda preci- por exemplo, com destaque para o tra- ciedade compreende melhor, hoje, a
sa mudar no cenário da saúde mental balho de acompanhamento terapêuti- questão da saúde mental? Até que
gaúcha e brasileira? co e redução de danos. ponto persiste o estigma do louco
Sandra Fagundes – É preciso 4. Estreita articulação com o SUS: como sujeito incapaz e sinônimo de
maior destinação de recursos financei- conselhos de saúde, conferências, ges- sua doença, apenas?
ros para saúde mental. Alguns países tão de sistemas e serviços de saúde. Sandra Fagundes – A sociedade
destinam 10% do orçamento da saúde 5. Militância sociopolítica: tanto compreende melhor. Este ano a lei da
para essa área. O Brasil destina 2,7% em movimentos sociais feministas, reforma aqui no estado faz 20 anos,
(2010). Por um lado, é necessário am- ecológicos, direitos humanos, como e são milhares de histórias de vida
pliar a rede de serviços nas cidades de na vida partidária com cargos eletivos que se modificaram neste período na
grande porte, onde a fragmentação no Legislativo e Executivo. direção da garantia de direitos e da
social é maior e as redes socioafetivas expressão de subjetividades. Assim
são mais frágeis. Por outro, também é IHU On-Line – Quais são os maio- como se multiplicaram as tecnologias
necessário esse incremento nos mu- res desafios vivenciados pelos profis- de cuidado disponíveis, embora o es-
nicípios pequenos, com menos de 20 sionais da área de saúde mental? tigma persista.
mil moradores, nos quais os recursos Sandra Fagundes – A própria
financeiros e tecnológicos para o cui- formação acadêmica, que não prepa- IHU On-Line – Se, por um lado,
dado são mais escassos. Outro impe- ra para o trabalho nos territórios em há o declínio do hospital psiquiátri-
rativo é formar mais profissionais a políticas públicas, particularmente co como lugar de confinamento, por
partir dos princípios ético-políticos com pessoas em sofrimento psíquico. outro se critica a medicalização do
da reforma psiquiátrica e possibilitar A pressão corporativa, em particular sujeito para aplacar tanto seus males
maior autonomia e visibilidade dos dos médicos, que precisa ser rompida físicos como psíquicos. Qual é o limi-
usuários na cena pública. e superada para efetiva prática inter- te que separa a coerção do verdadei-
disciplinar. A precarização do trabalho. ro tratamento humanitário em saúde
IHU On-Line – O que é saúde mental?
mental coletiva? Quais são as pecu- IHU On-Line – Quais são as gran- Sandra Fagundes – A medica-
liaridades dessa rede de atendimento des ideias norteadoras por trás da mentalização é um dos maiores e mais
público no RS e como ela funciona? luta antimanicomial? graves problemas dos humanos no
Sandra Fagundes – Saúde Men- Sandra Fagundes – Todas as pes- planeta nesse início de milênio. Essa
tal Coletiva é uma expressão surgida soas são sujeitos de direitos e de dese- pergunta precisa ser feita cotidiana e
da intercessão entre saúde, educação jos. A liberdade é terapêutica. A loucu- singularmente, pois não há resposta www.ihu.unisinos.br
e movimento social, por um cuida- ra é própria do humano e a sociedade universal e definitiva para ela. A res-
do com a vida. Conceituamos como precisa acolhê-la em seu tecido, não posta precisa ser dada a pelo menos
“um processo construtor de sujeitos depositá-la em alguns seres e isolá-los duas pessoas, em que uma delas é o
sociais, desencadeador de transfor- em instituições. Os serviços devem se usuário.
mações nos modos de pensar, sentir adaptar às necessidades dos usuários,
e fazer política, ciência e gestão no e não o contrário. O cuidado é produ- IHU On-Line – Gostaria de
cotidiano das estruturas de mediação zido no encontro, na implicação, na acrescentar algum aspecto não
da sociedade, extinguindo as segrega- afecção entre pessoas. questionado?
ções e substituindo certas práticas por Sandra Fagundes – Precisamos
outras capazes de contribuir para a IHU On-Line – A partir da ex- de dispositivos propiciadores de au-
criação de projetos de vida” (FAGUN- periência advinda da luta antimani- tonomia e de autoria dos usuários e
DES, S. 1992). A rede de atendimento comial, como se dá a prática da psi- familiares nos serviços, nas demais
é semelhante à construída no país. As quiatria sem o lugar e o estigma do instituições e sociedade. Os direitos
peculiaridades do Rio Grande do Sul hospício? dos usuários ainda são desrespeitados
que identifico são: Sandra Fagundes – Da psiquiatria e outros sequer foram conquistados.
e outras disciplinas a prática ocorre

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 29


Tema de Capa
O caso Damião Ximenes e
a condenação do Brasil por
violação dos direitos humanos
Carta-denúncia escrita pela irmã do paciente gerou a condenação emblemática na
área de saúde mental
Por Márcia Junges

A
pós ter sido internado numa noite de Corte Interamericana de Direitos Humanos e
sexta-feira, no ano de 1999, na Casa de este mesmo tribunal internacional condenou
Repouso Guararapes, hoje desativada, o Brasil por violação de direitos humanos em
o brasileiro de nome Damião Ximenes faleceu 2006”.
na segunda-feira subsequente. O laudo médico As afirmações podem ser conferidas na en-
apontava como causa mortis uma parada car- trevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
diorrespiratória, mas os hematomas e sangue Martinho Braga Batista e Silva é graduado
espalhados pelo corpo desmentiam o que a em Psicologia pela Universidade de Brasília
oficialidade afirmava. A irmã de Damião não se – UnB e especialista em Saúde Mental pela
conformou e redigiu uma “carta-denúncia para Fundação Oswaldo Cruz. É mestre em Saúde
a Comissão Interamericana de Direitos Huma- Coletiva pela Universidade Estadual do Rio
nos – entre muitos outros órgãos, nacionais de Janeiro – UERJ e doutor em Antropologia
e internacionais, de saúde, justiça e direitos Social pela Universidade Federal do Rio de Ja-
humanos, dos poderes Executivo, Legislativo neiro – UFRJ com a tese Entre o “desmame” e
e Judiciário – ainda em 1999, denúncia esta os “galinha d’água”: a vida fora dos hospícios
que foi acolhida por este órgão do Sistema In- no contexto da primeira condenação do Brasil
teramericano de Direitos Humanos”, comenta por violação de direitos humanos. Docente na
o psicólogo Martinho Braga Batista e Silva. “A UERJ, organizou a obra Legislação em saúde no
ausência de resposta alimentou a suspeita de sistema penitenciário (Brasília: Ministério da
que o país tinha responsabilidade por violação Saúde, 2010).
de direitos humanos na morte de Damião Xi- Confira a entrevista.
menes. Em 2005, aconteceu o julgamento na

IHU On-Line – Poderia recuperar uma sexta-feira e a manhã de uma respiratória. Outro laudo médico, re-
www.ihu.unisinos.br

o contexto da primeira condenação segunda-feira, momento no qual veio alizado em outra cidade e por outros
do Brasil por violação de direitos hu- a falecer. Neste fim de semana não se médicos, apontou morte por causa
manos em relação à internação psi- sabe ao certo o que aconteceu, mas indeterminada.
quiátrica? Qual é a situação atual? O quando sua mãe o visitou na segunda- Então a internação psiquiátrica
que aconteceu no bojo dessa conde- -feira viu Damião ensanguentado e na Casa foi o ponto de partida do Caso,
nação ao nosso país? com hematomas no corpo, ouvindo de a relação de conflito entre a equipe
Martinho Braga Batista e Sil- uma funcionária do setor de limpeza de um estabelecimento médico e um
va – A primeira condenação do Brasil do então hospital psiquiátrico privado paciente desencadeando outras re-
por violação de direitos humanos, co- conveniado ao Sistema Único de Saú- lações de conflito, entre família e Es-
nhecida como Caso Damião Ximenes, de – SUS que ele tinha sido espancado tado, entre tribunais internacionais e
aconteceu justamente por conta de por outros funcionários, conhecidos estados nacionais, bem como entre
uma internação psiquiátrica. Damião como “monitores de pátio”, de modo sanitaristas e juristas. Isso é um dos
Ximenes Lopes ficou internado na que, quando recebeu a notícia de conteúdos da tese de doutorado por
extinta Casa de Repouso Guararapes, sua morte pouco depois desta visita, mim defendida em fevereiro de 2011
do município de Sobral, no Ceará, em estranhou em muito o laudo médico no Programa de Pós-Graduação em
outubro de 1999, entre a noite de apontando morte por parada cardior- Antropologia Social do Museu Nacio-

30 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
nal, na Universidade Federal do Rio sos também foi apresentada e discuti-
de Janeiro – UFF, cujo título é Entre “A primeira da na tese de doutorado mencionada.
o ‘desmame’ e os ‘galinha d´água’: a
vida fora dos hospícios no contexto da condenação Gestão da loucura
primeira condenação do Brasil por vio-
lação de direitos humanos. do Brasil Existem muitas outras versões
sobre essa condenação. Estou apre-
Violação de direitos humanos por violação sentando apenas uma delas, que su-
blinha também a denúncia e a indeni-
A irmã deste falecido paciente
psiquiátrico enviou uma carta-denún-
de direitos zação. Há versões, por exemplo, que
acentuam mais ainda a participação
cia para a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos – entre muitos
humanos, dos órgãos de proteção aos direitos
humanos neste processo de âmbito
outros órgãos, nacionais e interna-
cionais, de saúde, justiça e direitos
conhecida como internacional, outras dos órgãos de
saúde e particularmente de saúde
humanos, dos poderes Executivo, Le-
gislativo e Judiciário – ainda em 1999,
Caso Damião mental, outras ainda de certos atores
institucionais. A minha versão leva
denúncia esta que foi acolhida por
este órgão do Sistema Interamericano
Ximenes, em conta relações de conflito – como
mencionado acima – e formas de ges-
de Direitos Humanos. O trâmite des-
ta denúncia envolveu um documento aconteceu tão da loucura no espaço urbano e do-
méstico, ou seja, a passagem entre o
enviado pela Comissão ao Brasil ainda
em 1999, respondido pelos órgãos do justamente confinamento asilar, a convivência nos
CAPS e o cárcere privado.
poder Executivo nacional (entre eles
a Secretaria Especial de Direitos Hu- por conta de Desde a defesa da tese de dou-
torado em 2011 tenho acompanhado
manos da Presidência da República e razoavelmente os efeitos da condena-
o Ministério da Saúde) aproximada- uma internação ção. O Brasil continua sendo condena-
mente três anos depois, de modo que do por violação de direitos humanos.
a ausência de resposta alimentou a psiquiátrica” Houve outras três condenações além
suspeita de que o país tinha respon- do Caso Damião Ximenes. Continuam
sabilidade por violação de direitos hu- chegando denúncias ao Sistema Inte-
manos na morte de Damião Ximenes. ramericano de Direitos Humanos, mas
Em 2005 aconteceu o julgamento na Ximenes, outra homenagem póstuma. a grande maioria deles não chega a vi-
Corte Interamericana de Direitos Hu- Atualmente, não existe mais a Casa de rar um caso, quanto mais resultar em
manos e este mesmo tribunal interna- Repouso Guararapes, mas uma Rede condenação.
cional condenou o Brasil por violação de Atenção Integral em Saúde Mental
de direitos humanos em 2006. Duran- – RAISM, cujos estabelecimentos aco- IHU On-Line – Em que medida
te este período de aproximadamente lhem egressos de internação psiquiá- o trabalho da desinstitucionalização
seis anos, a denunciante conquistou trica e aqueles que viraram notícia nos é uma prática da liberdade? Em últi-
recebeu a colaboração de movimen- jornais locais, atendendo pessoas que ma instância, podemos compreender
tos sociais – como o então Movimento já eram objeto de escárnio, fofoca, que a psiquiatria tradicional é uma
Nacional da Luta Antimanicomial na boatos e maus-tratos pela população das formas de se executar a governa-
época – e de organizações não gover- local na época em que a Casa existia, mentalidade da população, ou uma
namentais – como a Justiça Global – e atendimento este pautado pela pers- gestão das populações? www.ihu.unisinos.br
o também o apoio de seus parentes, pectiva da inclusão, e não da exclusão Martinho Braga Batista e Silva
sendo que foi decidido pelo tribunal social. – Pesquiso o trabalho de desinstitu-
interamericano e cumprido pelo go- Dessa maneira, além da inter- cionalização menos da perspectiva
verno brasileiro que ela, a mãe, o pai nação na Casa ter sido o ponto de que o aponta como uma terapêutica,
e um dos irmãos de Damião deveriam partida, o Caso foi cercado de causas e mais daquela que o considera parte
ser indenizados, a totalidade do valor – como a causa antimanicomial, nacio- da administração pública nacional, em
monetário correspondendo a mais de nal – e também de causos – como os muito inspirado nos estudos de Robert
100 mil dólares em 2007. comentários sobre esses egressos de Castel e também do professor Dr. An-
Hoje a denunciante dirige o Ins- internação psiquiátrica locais. Diferen- tonio Carlos Souza Lima e da professo-
tituto Damião Ximenes, homenagem te de Damião, que se tornou um Caso, ra Dra. Adriana Vianna. Não considero
ao irmão. O município no qual aconte- estes causos em circulação no cotidia- possível, desta maneira, compreender
ceu a morte tem uma rede de atenção no da cidade vieram a ser tornar, com essa prática de liberdade desvincu-
em saúde mental premiada nacional a criação da Rede, casos clínicos em lada do fato de que ela acontece em
e internacionalmente, na qual um discussão nas equipes de saúde men- estabelecimentos públicos e por par-
dos Centros de Atenção Psicossocial tal e de atenção básica. Essa interação te de funcionários públicos, agentes
– CAPS chama-se justamente Damião entre a Casa, o Caso, a causa e os cau- e serviços pautados por um mandato

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 31


“Essa forma
Tema de Capa social, qual seja: de tutela, de prote- cussão, H. Becker. Trata-se de alguém
ção, de construção de uma autorida- que realizou estudos de sociologia do
de para cuidar e controlar o outro, do
que o professor Antonio Lima chama
de gestão da desvio. Em sua obra há uma guinada
importante a ser destacada. Ele pri-
de formas de gestão da alteridade e
a professora Adriana Vianna designa
loucura tem meiro questiona o fato dos cientistas
sociais de sua época, década de 1960
captura de relações domésticas. As-
sim, as formas de gestão da loucura no
continuidades e nos EUA, partirem de uma classifica-
ção dada por médicos e juristas para
espaço urbano e doméstico, como há
pouco disse, giram em torno do con-
descontinuidades realizarem suas pesquisas, ou seja,
partirem da categorização de uma
finamento asilar, da convivência nos
CAPS e do cárcere privado, sendo que com outras pessoa como “doente mental” ou de
um grupo como de “criminosos” para,
surgem novas formas de gestão além
da já condenada internação prolonga- também já daí, eleger qual seria seu objeto de
pesquisa. Seu questionamento se di-
da descrita por Foucault e, mesmo, do rige ao fato de que aqueles que pro-
temido controle a céu aberto descrito descritas por duzem o rótulo de doente mental ou
por Deleuze. Por exemplo, quando o criminoso nunca são o objeto da pes-
parente do usuário de uma rede de mim em outro quisa, muito menos o processo pelo
atenção em saúde mental é convida- qual esse rótulo é gerado, e menos
do a permanecer com ele durante o momento, como ainda a situação social na qual rotu-
período de internação, na função de ladores e rotulados são constituídos
acompanhante. a mediação como tal.
Nem totalmente isolado no es- Embora muito se tenha pesqui-
paço asilar, nem totalmente mantido de conflitos e sado sobre os ditos “empreende-
em casa, esse convite aponta para dores morais”/rotuladores depois
outra forma de gestão que convoca
os que estão em volta do usuário para
a referência desta chamada de H. Becker – basta
ver os estudos sobre especialidades
permanecer com ele em hospitais,
muitas vezes encurtando o período
do usuário, da médicas no campo das ciências so-
ciais –, nem sempre tem se dedicado
de internação e facilitando o manejo
adequado de situações de crise e tam-
família e da a mesma atenção para a relação en-
tre rotuladores e rotulados e, menos
bém a ministração de medicamentos
segundo os profissionais e gestores da
vizinhança ao ainda, às próprias situações sociais
nas quais as categorias de desvio são
RAISM. Essa forma de gestão da lou-
cura tem continuidades e descontinui-
serviço” geradas. Um estudo desse tipo seria
muito relevante no caso do crack, por
dades com outras também já descritas exemplo. Eu procurei fazer isso no
por mim em outro momento, como a Caso Damião Ximenes, tratando-se
mediação de conflitos e a referência como uma situação social tal como
do usuário, da família e da vizinhança de na qual vive, capitalista e exclu- H. Becker compreende o conceito,
ao serviço. dente, e o modelo de saúde/doença uma situação social e um drama social
imposto?  imerso em acusações de desvio social
IHU On-Line – Sob quais aspec- Martinho Braga Batista e Silva – – categorizando países como violado-
tos o adoecimento mental do sujeito Gostaria de acentuar a contribuição res de direitos humanos, por exemplo.
reflete, também, o tipo de socieda- de um autor fundamental nessa dis-
www.ihu.unisinos.br

Ciclo de Estudos em EAD:


Sociedade Sustentável Edição 2012
Início do novo módulo em 07-05-2012
Tema: Por um novo paradigma civilizacional
Saiba mais em http://bit.ly/x15DXC

32 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


A psiquiatria e o exercício da

Tema de Capa
humildade
Em condições históricas que podem tornar tudo um “manicômio”, é preciso repensar
o poder do psiquiatra e da psiquiatria sobre a equipe e o cliente, pondera José
Jackson Sampaio Coelho. Atualmente saúde e doença são constitutivos de um
processo histórico-social, observa

Por Márcia Junges

“A
psiquiatria é uma especialidade mé- psiquiátrica, ponderando que ela é uma “di-
dica (clínica e epidemiologia), uma mensão do movimento antimanicomial, ope-
consultoria para as demais especia- rativo de uma linha de intervenção”. E resgata
lidades médicas (interconsulta) e uma medici- as origens da psiquiatria: “o psiquiatra nasce
na especial (psiquiatria social, na fronteira do como alienista, depois do grande asilamento
direito e da religião), dada a transcendência de da loucura, realizada por meio das grandes
seu objeto (a mente, diferente do cérebro, ob- instituições de segregação. A imprecisão con-
jeto do neurologista; do psiquismo, objeto do ceitual de loucura, hoje categoria do senso
psicólogo; e do inconsciente, objeto do psica- comum, foi entendida como obstáculo à codi-
nalista). Qual, portanto, a contribuição positi- ficação científica da disciplina, daí a criação do
va da psiquiatria à dimensão saúde mental do neologismo alienista/alienismo”.
campo da saúde coletiva? Essa é a grande per- José Jackson Coelho Sampaio é médico psi-
gunta que nos desafia à humildade”. A reflexão quiatra graduado pela ABP/AMB, mestre em
é do médico psiquiatra José Jackson Coelho Medicina Social pela Universidade Estadual do
Sampaio, em entrevista concedida por e-mail Rio de Janeiro – UERJ e doutor em Medicina
à IHU On-Line. E adverte: “O poder individual Preventiva pela Universidade de São Paulo –
do psiquiatra e da psiquiatria, sobre a equipe USP. É professor titular em Saúde Pública, líder
e o cliente, pode tornar-se poder da equipe do Grupo de Pesquisa Vida e Trabalho, docen-
e do campo da saúde mental sobre o cliente. te efetivo do Programa de Pós-Graduação em
Como já dissemos (...), nas nossas condições Saúde Coletiva da Universidade Estadual do
históricas, tudo pode tornar-se manicômio”. O Ceará – UECE.
médico aborda também a questão da reforma Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma foi natureza asilar, e não na natureza dos ciamento já inverteu o perfil e a so-
implementada no Brasil e quais são atores, passível de confusão com ação ciedade brasileira incorporou o novo
as maiores conquistas da reforma trabalhista ou corporativa. paradigma, embora não de modo ex- www.ihu.unisinos.br
psiquiátrica? O resultado da luta do MBRP, na tenso e homogêneo, mas conquistou
José Jackson Coelho Sampaio – década de 1990, foi a aprovação da parcela significativa da mídia. Além
O Movimento Brasileiro de Reforma lei federal e de várias leis estaduais, disso, a reforma psiquiátrica pública
Psiquiátrica – MBRP, constituído na como a do Ceará, por exemplo, que associou-se à reforma sanitária, inte-
década de 1990 e em torno da luta precede a federal em nove anos. O re- grando o campo da saúde mental na
pela aprovação do Projeto de Lei Paulo sultado da aplicação da lei, na primei- atenção primária, por meio dos Núcle-
Delgado, envolve quase o mesmo con- ra década do século XXI, é de eviden- os de Apoio à Saúde da Família – NASF
junto de atores de processo anterior, te e substantiva mudança no marco e do matriciamento a partir dos Cen-
surgido a partir da visita de Franco Ba- normativo e nas ações de atenção ao tros de Atenção Psicossocial – CAPS.
saglia ao Brasil, em 1979, e que era de- portador de transtorno mental no Bra-
nominado de Movimento dos Traba- sil. Os leitos psiquiátricos em hospitais Superação de paradigma
lhadores de Saúde Mental. Penso que especializados perderam 2/3 de seu
a mudança de denominação deveu-se número. A rede de Centros de Atenção Correspondendo aos conceitos
à convicção de que deveríamos focar Psicossocial rapidamente ultrapassou de loucura e de alienação, aquilo que,
no objetivo político do fim do mode- o número de mil unidades (no Ceará já groso modo, podemos chamar de as-
lo assistencial hospitalocêntrico, de ultrapassou as cem unidades), o finan- sistência psiquiátrica, estabelece uma

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 33


Tema de Capa organização à qual denominamos Como se vê, faço distinção entre IHU On-Line – Sob quais aspec-
de asilar, caracterizada por exclusão, MBRP e MLAM, pelos atores, pelos tos a saúde mental é um tema que se
isolamento em instituição fechada, objetivos e pelos dispositivos práticos, insere na medicina social?
mortificação do eu e mistura entre a pois, se o primeiro foca a transforma- José Jackson Coelho Sampaio –
embrionária ordem médica da enfer- ção da política de cuidados ao porta- A política de atenção ao portador de
midade com a ordem moral do desre- dor de transtorno mental, dentro do transtorno mental, no Brasil de hoje,
gramento, a ordem jurídica do crime, aparelho do estado, o segundo foca compreende saúde e doença como
a ordem social da miséria e a ordem uma transformação de paradigma um processo histórico-social e consti-
política da subversão. do comportamento social, buscando tui saúde mental como campo de prá-
Correspondendo aos conceitos afetar os determinantes da produção ticas profissionais criticamente incluí-
de psicopatia e de enfermidade men- de subjetividades autoritárias, exclu- das e integradas no campo da saúde
tal, a assistência psiquiátrica estabele- dentes, preconceituosas, estigmati- coletiva. Então, incorpora o paradigma
ce uma organização à qual denomina- zadoras das diferenças que escapem da atenção psicossocial territorial a
mos de psiquiatria clássica, enfocando ao “ideal de ego” hegemônico na so- ser praticada de modo multiprofis-
a ordem médica da enfermidade e ciedade. Além do mais, pressupondo sional, interdisciplinar, intersetorial e
dispondo de hospital psiquiátrico es- uma heterogeneidade profundamen- integrado. A prática dessa política des-
pecializado e de um arsenal terapêu- te contraditória da sociedade brasilei- dobra um novo processo de trabalho
tico biofarmacológico, revolucionários ra, não há como identificar uma “so- e um novo conjunto de tensões entre
em relação ao paradigma anterior, ciedade como um todo” para avaliar terapeutas e clientela, entre equipe de
mas com radical dificuldade de lidar impactos. Esse “todo” seria uma abs- terapeutas e equipe de gestão, e dos
com a interface jurídica do crime, as tração ideológica, ou uma abstração terapeutas entre si mesmos, por conta
possibilidades de cura e a manuten- normativa, baseada no conceito moral das diferenças individuais, corporati-
ção dos vínculos familiares, laborais ou estatístico de média. vo-profissionais e ideológico-teóricas.
e comunitários em simultaneidade A medicina social é a contribui-
com o desenvolvimento dos projetos IHU On-Line – Quais são os nexos ção que a profissão médica aporta ao
terapêuticos. entre a luta manicomial, a autonomia campo da saúde coletiva, que se agre-
O paradigma da atenção psicos- do sujeito e a democracia em nosso ga, se modifica e modifica as demais
social e territorial busca superar os país? contribuições, como as dos enfermei-
limites da psiquiatria clássica e instau- José Jackson Coelho Sampaio ros, dos psicólogos, dos terapeutas
ra novos dispositivos de cuidado, in- – O MLAM realiza a crítica ideológica ocupacionais, dos assistentes sociais,
cluindo a promoção da saúde mental, do estado burocrático-autoritário e da dos arte-terapeutas, etc.
novas relações entre profissões (multi- sociedade excludente-estigmatizadora Portanto, saúde mental, como
profissionalidade), conhecimentos (in- pela afirmação de que, em certas con- saúde do idoso e saúde e trabalho, por
terdisciplinariedade), dimensões das dições sociais, econômicas e políticas, exemplo, é um tema transversal do
políticas públicas (intersetorialidade) e em certo momento histórico, todos os campo da saúde coletiva. A medicina
dimensões do sujeito (integralidade). dispositivos organizacionais de uma social é a contribuição disciplinar da
sociedade (escola, igreja, empresa, profissão médica ao tema e ao campo.
IHU On-Line – Qual é a impor- sindicato, família, partido político, clu- Mas há um problema com a expres-
tância da luta antimanicomial para a be recreativo, etc.) podem tornar-se são “saúde mental”: ela designa, em
sociedade como um todo? “manicomiais”. A reforma psiquiátrica seu uso quotidiano, técnico ou teóri-
José Jackson Coelho Sampaio é uma dimensão do movimento anti- co, simultaneamente um conjunto de
– Simultaneamente à evolução do manicomial, operativo de uma linha profissões (“fulano é trabalhador da
MBRP, uma parte de seus atores, com de intervenção. saúde mental”), um conjunto de insti-
variados outros novos, instituiu o Evidencia-se que a humanização tuições e práticas (“política e planeja-
www.ihu.unisinos.br

Movimento da Luta Antimanicomial do cuidado, a acessibilidade de todos mento em saúde mental”, “sistema de
– MLAM, voltado para uma crítica da ao jogo dialético dos direitos e de- saúde mental”), um conjunto de disci-
própria organização histórica brasilei- veres, a produção de subjetividades plinas e teorias (“a psicologia integra
ra, encontrando no estado burocráti- criativas e autônomas e o desenvol- os conhecimentos da saúde mental”)
co-autoritário e na herança colonial- vimento do protagonismo dos indiví- e um estado do ser compreendido
-escravista respaldo para uma miríade duos fundamentam a sociedade de- por certa qualidade comportamental
de expressões manicomiais (escola, mocrática, sem confundir democracia (“isto faz bem à saúde mental”).
família, empresa, etc.) da nossa vida com uma natureza possível (“liberal
societária. O MLAM tem apresentado burguesa”), uma forma possível (“de- IHU On-Line – Qual é a atuali-
objetivos amplos e resultados práticos mocracia representativa”), uma tática dade e a pertinência da concepção
muito pequenos, refugiando-se, gros- possível de gestão pública (“escolha do poder psiquiátrico, formulada por
so modo, entre psicólogos e assisten- dos governantes”), ou com a sim- Foucault para compreendermos e
tes sociais, e criticando os limites e a ples expansão da oferta de emprego/ repensarmos a psiquiatria e a saúde
identificação do MBRP com as políti- renda/trabalho. mental em nosso tempo?
cas de Estado. José Jackson Coelho Sampaio – A
equipe multiprofissional, interdiscipli-

34 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Tema de Capa
nar, realizando projetos em rede, sob Enfatiza-se que possessão pante-
supervisão clínico-institucional, visa “Como se vê, ísta, possessão pelo demônio, loucura,
relativizar o poder de um especialista. alienação, psicopatia e doença mental
Mas, numa sociedade individualista, faço distinção não são palavras sinônimas, que re-
competitiva, profundamente dividida presentam o mesmo fenômeno, pois
em classes, admitindo a reprodução entre MBRP e referem fenômenos diferentes. Lem-
das relações de opressão/exploração, bremo-nos do magnífico ensaio de
qualquer relação que implique em MLAM, pelos Foucault sobre o caso Michel Rivière: a
empírica ou suposta desigualdade, in- disputa entre a Igreja Católica (“é des-
terpretada como superioridade x infe-
rioridade, sejam homem x mulher, pai
atores, pelos graça, derivada do pecado dos pais,
onde há ausência de pecado original,
x filho, professor x aluno, terapeuta x
cliente, por exemplo, será vivida como
objetivos e pelos no indivíduo vítima, que deve ser pro-
tegido”), sistema jurídico napoleônico
relação de poder. Assim, portanto, será
vivida como relação de dominação.
dispositivos (“é defeito que impede os direitos da
cidadania e deve ser tutelado”) e a
O poder individual do psiquia-
tra e da psiquiatria sobre a equipe e o
práticos” medicina psiquiátrica (“é patologia a
ser tratada, se possível controlada ou
cliente pode tornar-se poder da equipe curada”), pela tutela dos portadores
e do campo da saúde mental sobre o de deficiência/retardo mental.
cliente. Como já dissemos, nas nossas categoria medieval da possessão pelo
condições históricas, tudo pode tornar- demônio. IHU On-Line – O que é a epide-
-se manicômio. A categoria “poder” Na transição do século XVIII para miologia da imprecisão? Em que me-
não pode ser esquecida em nenhuma o XIX, a psiquiatria se constitui em dida a saúde/doença mental são ob-
análise que se pretenda crítica: o enfer- especialidade médica (inicialmente jeto da epidemiologia?
meiro e a dnfermagem como donos do como alienismo) e compartilha o pro- José Jackson Coelho Sampaio –
quotidiano, o psicólogo e a psicologia cesso de constituição do poder médi- Em minha tese de doutorado (USP/
como donos da interpretação, etc. co, em base científica positivista, na FMRP, 1992), que resultou em livro
A psiquiatria é uma especialidade dimensão mais sensível e ideológica (Fiocruz, 1998), defendo que o mundo
médica (clínica e epidemiologia), uma daquilo que, hoje, chamamos de sub- de doenças infectocontagiosas, resul-
consultoria para as demais especiali- jetividade. Assim, é a ciência e a medi- tando em amplo número de mortes
dades médicas (interconsulta) e uma cina que disputarão poder explicativo e vidas humanas curtas, só poderia
medicina especial (psiquiatria social, e de controle sobre as normalidades, constituir uma epidemiologia da con-
na fronteira do direito e da religião), as alterações admissíveis e as altera- tagem de óbitos (índices e coeficien-
dada a transcendência de seu objeto ções patológicas (desvios, doenças), tes de mortalidade) e na fotografia de
(a mente, diferente do cérebro, objeto do corpo e dos comportamentos, com aparências de evento agudo, único na
do neurologista; do psiquismo, objeto a religião e com o sistema jurídico. singularidade do indivíduo, porém de
do psicólogo; e do inconsciente, obje- A psiquiatrização dos compor- massa.
to do psicanalista). Qual, portanto, a tamentos se dá como alienação, em A crescente amplitude da espe-
contribuição positiva da psiquiatria à seguida como psicopatia e como do- rança de vida, derivada das tecnologias
dimensão saúde mental do campo da ença mental, nunca como loucura, em médicas de diagnóstico, de prevenção
saúde coletiva? Essa é a grande per- nome da ciência e da medicina, cons- e de tratamento, resulta, por sua vez,
gunta que nos desafia à humildade. trutores da racionalidade moderna, em advento do crônico-degenerativo,
substitutos da metafísica religiosa e das comorbidades e dos processos
IHU On-Line – Em O poder psi- competidores do formalismo retórico alérgicos, imunológicos, psicossomá- www.ihu.unisinos.br
quiátrico, Foucault fala, entre outras do direito. Atualmente uma filosofia e ticos e somatopsíquicos. Este novo
coisas, da psiquiatrização da criança uma ciência das religiões, bem como perfil exige uma nova epidemiologia,
e do criminoso. Como podemos com- uma filosofia e uma ciência do direito, que não confunda aparência (sinais,
preender essa transposição da psi- submetem religião e direito às racio- sintomas e síndromes) com essência
quiatria para outros sujeitos que não nalidades positivista e neopositivista, (natureza de cada fenômeno): uma
o louco “classicamente” definido? tanto quanto, mais atrás, submeteram epidemiologia do sarampo e da tuber-
José Jackson Coelho Sampaio – A a díade psiquiatria/medicina. O funda- culose não pode dar conta da psicose
loucura não constitui categoria clássica mento dessas racionalidades pode ser psicogênica e do transtorno neurótico,
no sentido em que remonte ao mundo encontrado na lógica de desenvolvi- por exemplo.
antigo, greco-romano, uma vez que lá mento do capitalismo, carente de uma A epidemiologia dos processos
havia era a possessão panteísta. Pelo objetividade que instituísse a univer- mentais (personalidade, sofrimento,
contrário, constitui-se como categoria salização do mercado e da mercadoria. doença mental) indica a necessidade
clássica no sentido de ser paradigmá- Universalização somente possível com de um novo paradigma epidemiológi-
tica de uma época, Renascimento-Ilu- a transformação de todas as experiên- co, que pode ser paradigmático para
minismo, revolucionária em relação à cias e produtos humanos em valor de toda a nova natureza crônica, cumula-
troca, isto é: “coisas com preço”. tiva, radicalmente imprecisa na fonte

EDIÇÃO 391 | SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 35


Tema de Capa (não defeito da técnica diagnóstica, personalidade ser decodificada em Mania (ainda mantemos o nome, em
por exemplo), de transtornos mesmo condição saudável (personalidade pd), começo de desuso para transtorno
que de base objetivamente orgânica. condição de sofrimento (alteração do- bipolar), Lissa (o nome desapareceu,
O processo saúde/doença. lorosa, explicável segundo lógica de mas indicava a melancolia árabe e,
Essa epidemiologia exige profun- causas e determinações) ou condição talvez, a depressão antes de este con-
da revisão epistemológica, metodo- de doença (alteração estranhável, mu- ceito tomar a amplitude genérica que
lógica e instrumental, incorporando tiladora das experiências vitais). adquiriu na contemporaneidade), Pan
a crítica da relação entre história da Vejamos agora a questão dos (o nome tornou-se extenso, para qua-
base geral (há uma especificidade da usos da palavra “depressão”, por lificar síndrome: do pânico). A Idade
doença) e dinâmica da expressão (há exemplo: designa um conjunto de si- Média e o Renascimento realizaram a
uma singularidade da doença nesta nais, aparências observáveis, e de sin- transição do paradigma da possessão
pessoa); entre aparência (formas con- tomas, aparências declaradas, como (“as alterações de comportamento
tingentes, descritíveis e mensuráveis) padrão de comportamento, não crí- eram regidas pelo demônio”) para a
e essência (natureza lógica de gêne- sico e funcional aos projetos de vida loucura (distinguida conceitual e prati-
se e curso); e entre procedimentos e (personalidade); os mesmos sinais e camente da possessão e do mau olha-
instrumentos de investigação, de in- sintomas, como comportamento con- do, porém entregue aos padres cató-
terpretação e de exposição de resul- juntural, agudo porém não necessaria- licos para o diagnóstico diferencial e
tados e conclusões. Ora, isso vai exigir mente grave, crísico e explicável como para as prescrições corretivas, o fogo
a triangulação metodológica (quan- reativo a certos eventos de frustração para a possessão, o exorcismo para o
tiqualitativa) e a construção de terri- ou perda, com olhar retrospectivo, os- mau olhado, a “nau dos insensatos”
tórios de pesquisa (territórios vivos, cilantemente fixado no passado e nos para a loucura).
ecológico-sociais, superando as sim- movimentos dos sentimentos (sofri- O psiquiatra nasce como alienis-
ples medidas genéricas de tendência). mento); ou os mesmos sinais e sinto- ta, depois do grande asilamento da
mas, perturbadores dos significados loucura, realizada por meio das gran-
IHU On-Line – Em que diferem atribuídos ou apenas associáveis de des instituições de segregação. A im-
as três epidemiologias do domínio modo remoto, agudo ou crônico, po- precisão conceitual de loucura, hoje
psiquiátrico: a da personalidade, a rém crísico, reativo a certos eventos categoria do senso comum, foi en-
do sofrimento psíquico e a da doença profundos, provavelmente remotos, tendida como obstáculo à codificação
mental? de frustração ou perda, com olhar re- científica da disciplina, daí a criação
José Jackson Coelho Sampaio – trospectivo, oscilantemente fixado no do neologismo alienista/alienismo.
O debate epistêmico sobre a relação passado e nos movimentos dos senti- Porém, no correr do século XIX, com
essência/aparência é instaurada pelo mentos (doença). No caso da doença, a medicina firmando-se científica e
debate científico de construção de ainda teríamos que compreender se tecnologicamente, fundamentada no
objetos. Cada disciplina científica, em causas e determinantes são predomi- paradigma do organicismo positivista,
sua constituição, refina seu próprio nantemente psíquicos ou orgânicos. refina-se o conceito de alienação para
objeto e sua metodologia específica, O fato é que, se a epidemiologia o de psicopatia (hoje, a palavra desig-
derivada dos princípios e diretrizes constitui radicalmente uma experi- na um grupo de transtornos marcado
próprios da ciência. Se o objeto da psi- ência de fotografar a ocorrência de pelo prejuízo moral profundo e pelo
quiatria é a mente, unidade relacional fenômenos numa população, ela, no curso linear não crísico). Neste mo-
cérebro (dimensão física, infraestru- processo de compreender, precisará mento, baseando-se na Lei de Brous-
tura biológica)/consciência (dimensão seguir o fluxo dialético do pensamen- sais, afirmam-se dois modelos sobre a
psicológica, supraestrutura do psiquis- to: descrever, analisar, sintetizar, con- gênese da psicopatia: o sifilítico (“toda
mo propriamente humano), então é textualizar historicamente e criticar psicopatia seria modo de expres-
preciso distinguir três dimensões ex- teoricamente. são cerebral da sífilis”) e o epiléptico
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pressivas (objetos) do processo feno- (“toda psicopatia seria modo de ex-


mênico mental. IHU On-Line – A psiquiatria com- pressão da epilepsia”). A rapidez das
Vejamos a dinâmica da consciên- preende o louco e o doente mental conquistas diagnósticas e terapêuticas
cia, se tomada nas dimensões “con- como sinônimos? Por quê? e a expansão da capacidade discrimi-
servadora/adaptadora” x “inovadora/ José Jackson Coelho Sampaio – nativa do olhar médico rapidamente
superadora”, teremos a identidade e A psiquiatria nasce, na transição do introduziram o conceito mais genérico
a criatividade, respectivamente; mas século XVIII para o XIX, exatamente de doença mental, multiforme, a ser
se tomada nas dimensões “percepção superando o conceito de louco, insti- distinguida do padrão ouro da saúde
para si mesmo” x “percepção para os tuindo o de alienado, sucessivamen- mental.
outros”, teremos a subjetividade e a te seguido do de psicopata e do de Hoje, entendemos saúde e do-
personalidade, respectivamente. A doente mental. Vejamos melhor este ença, incluindo saúde mental e do-
personalidade é o modo como a cons- percurso: ença mental, como constitutivos de
ciência de cada um é decodificada A Antiguidade constituiu o para- um processo histórico-social, por sua
e organizada pelos outros, segundo digma da possessão panteísta quando vez expressão de outro processo, qual
padrões, molduras sociais de (re) co- se entendia que cada comportamen- seja, o processo vital.
nhecimento. Daí, a possibilidade da to alterado seria regido por um deus:

36 SÃO LEOPOLDO, 7 DE MAIO DE 2012 | EDIÇÃO 391


Uma psiquiatria a serviço do

Tema de Capa
Estado contra os “indivíduos
desviantes”
Os “novos desviantes sociais” poderão ocupar o lugar discursivo antes reservado
aos loucos, adverte Bernardo Salles Malamut. “Limpezas urbanas” como aquelas
promovidas no Rio de Janeiro e São Paulo, contra os usuários de crack, são exemplo
dessa lógica manicomial

Por Márcia Junges

O
hospital psiquiátrico voltou a ser o “o MUT, Bernardo Salles; MODENA, Celina Maria;
destino de todas as mazelas sociais PASSOS, Izabel C. Friche. A rede de atenção à
que ‘não poderiam’ frequentar a rua e saúde mental na visão de médicos psiquiatras:
a vida na cidade. Todos aqueles indivíduos que A Stultifera Navis contemporânea. In: Cader-
não se encontram incluídos no sistema de pro- nos Brasileiros de Saúde Mental: Cinquenta
dução do capital parecem destinados a serem anos de História da Loucura. v. 3, n. 6, 2011).
internados. O movimento que vemos no Rio Segundo esses profissionais, o hospital psiqui-
de Janeiro e em São Paulo a respeito da inter- átrico fica no lugar de “sustentação do discurso
nação compulsória dos usuários de crack é um da reforma”, porém ainda é imprescindível. “O
exemplo importante dessa lógica manicomial. hospital psiquiátrico ainda é complementar à
Uma verdadeira ‘limpeza urbana’ tem sido fei- rede dos serviços substitutivos, segundo os en-
ta, não mais ‘em nome da razão’, mas agora trevistados”, acentua Bernardo.
‘em nome da saúde’. Os entrevistados já em Bernardo Salles Malamut é graduado em
2010 mostravam isso: a psiquiatria a serviço do Psicologia pela Pontifícia Universidade Ca-
Estado e de sua intolerância com os indivíduos tólica de Minas Gerais – PUC Minas, e espe-
desviantes”. A afirmação é do psicólogo Ber- cialista em Psicanálise: teoria e prática pela
nardo Salles Malamut, em entrevista concedi- Universidade Fumec. É mestre em Ciências
da com exclusividade por e-mail à IHU On-Line. da Saúde pela Fiocruz com a dissertação O
Essas conclusões foram obtidas através da pes- poder e o dispositivo: hospital psiquiátrico na
quisa acadêmica realizada por Malamut em contemporaneidade.
2010 com nove médicos psiquiatras (cf. MALA- Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Qual é a visão dos nais. A pesquisa (MALAMUT, Modena modelo anterior, que tinha no discur-
médicos psiquiatras sobre a rede de & Passos, 2011a; MALAMUT, Modena so médico-psiquiátrico sua única bali-
atenção à saúde mental? & Passos, 2011b) visava compreender za. Porém, é a partir de 2004 – com a
Bernardo Malamut – Sobre a a articulação entre um determinado aprovação do Programa Anual de Re-
visão dos médicos psiquiatras como contexto sócio-histórico e sua impli- estruturação da Assistência Hospitalar
uma classe de indivíduos, eu não te- cação em uma produção discursiva, e no SUS – que a legislação institui me-
ria condições de responder, já que por isso a opção pela pesquisa qualita- canismos claros para a progressiva ex-
minha pesquisa a respeito do tema tiva. Então posso esclarecer somente tinção dos manicômios, não havendo
foi restrita a nove médicos psiquiatras os resultados dessa pesquisa específi- entretanto na lei da reforma nenhuma
que trabalhavam em um hospital psi- ca. Importante lembrar que a reforma garantia da construção de uma rede
quiátrico público. Não se tratava de psiquiátrica visa uma assistência na assistencial, já que a rede é maior que
uma pesquisa que buscava obter uma rede, envolvendo os diversos apara- o conjunto dos serviços que a consti-
generalização através de uma amos- tos disponíveis, e em rede, abarcando tui. Assim, a rede que se constitui na
tra numérica, mas sim que buscava os vários atores que compõem a vida visão dos entrevistados está muito
obter um aprofundamento analítico do usuário na cidade, rompendo com aquém do necessário, e não consegui-
a partir do discurso desses profissio- a lógica segregadora e exclusivista do ria substituir o hospital psiquiátrico.

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Tema de Capa O sistema funcionaria em uma frequentar a rua e a vida na cidade. trevistados relataram como a noção de
lógica bastante perversa que dissimu- Todos aqueles indivíduos que não se “risco” (velha conhecida a todos que
laria o uso que os profissionais ainda encontram incluídos no sistema de trabalham ou já trabalharam na assis-
fazem do hospital. O hospital psiqui- produção do capital parecem destina- tência à saúde mental) ainda é a maior
átrico ainda é complementar à rede dos a serem internados. O movimen- justificativa para a internação psiquiá-
dos serviços substitutivos, segundo os to que vemos no Rio de Janeiro e em trica. E, ao mencionar isso, lembro-me
entrevistados. Digo que essa lógica é São Paulo a respeito da internação mais uma vez de Foucault dizendo que
perversa no sentido de que as interna- compulsória dos usuários de crack é “ser perigoso não é um delito. Ser pe-
ções que ainda existem seriam ‘dissi- um exemplo importante dessa lógica rigoso não é uma doença, não é um
muladas’, segundo os entrevistados. manicomial. Uma verdadeira “limpe- sintoma... o perigo não é uma noção
O paciente faria pernoite no hospital za urbana” tem sido feita, não mais psiquiátrica”. Porém a psiquiatria ain-
psiquiátrico e permanência dia nos “em nome da razão”, mas agora “em da encontra problemas na justificação
Centros de Atenção Psicosocial - CAPS nome da saúde”. Os entrevistados já do seu saber via “verdade”, já que as
– ficando sob custódia do Estado o em 2010 mostravam isto: a psiquiatria evidências neurobiológicas da doença
tempo todo. Porém, sem estar sob a serviço do Estado e de sua intole- mental ainda são escassas e controver-
responsabilidade de nenhum dos ser- rância com os indivíduos desviantes. sas, e com isso a psiquiatria acaba se
viços – ou seja, o paciente margearia Nesse sentido, a teoria foucaultiana fundando em algo como uma “defesa
os serviços de saúde da cidade (posto tem se mostrado de crucial importân- social”. E isso aparece claramente nas
de saúde, CAPS, hospital psiquiátrico, cia não só para compreender o hospi- entrevistas da pesquisa; os “critérios
ambulâncias da Samu...) numa versão tal psiquiátrico, mas também a lógica médicos” acabam cedendo aos “crité-
contemporânea da Stultifera navis, fi- manicomial como um todo. Foucault é rios sociais”, num claro jogo de poder
gura da Nau dos Loucos recortada por cada dia mais atual! entre familiares, Estado e psiquiatria.
Foucault em sua tese de doutorado. Talvez nosso foco não seja mais Como um entrevistado esclareceu: a
O paciente ainda não é de responsa- a figura social do “louco”, mas a figu- psiquiatria acaba funcionando como
bilidade de ninguém, de nenhum dos ra do “desviante”. Talvez estejamos um “amortecedor social”.
serviços. Os casos psiquiátricos graves vivendo aquilo que a História da lou-
ficam rodando, numa lógica de porta cura mostrou – que o louco veio a Poder legítimo?
giratória. Sugiro a leitura cuidadosa ocupar esse lugar do desviante social
dos artigos publicados a partir da pes- e, na medida em que a reforma psi- A violência de uma internação
quisa para exemplos e uma melhor quiátrica tem sido eficaz em retirar o compulsória se justificaria pela violên-
compreensão dessa lógica que aqui louco desse lugar, novas personagens cia do paciente. Porém, como Hanna
nomeio de “perversa”. estejam surgindo para representar o Arendt dizia, a violência pode ser justi-
“anormal”. ficável, mas nunca será legítima. E as-
IHU On-Line – Como descreve o sim, os atos de internar, medicar e dar
hospital psiquiátrico na contempo- IHU On-Line – Como se imbri- alta (que foram os focos da pesquisa)
raneidade? Nesse sentido, qual é a cam violência e poder no discurso
importância do legado foucaultiano psiquiátrico?
Jaspers. Em consequência das perseguições
para podermos compreender essa Bernardo Malamut – Queria pri- nazistas, em 1941, partiu para os EUA,
instituição? meiro repetir o que já disse antes em onde escreveu grande parte das suas obras.
Bernardo Malamut – O hospital outros lugares, que a violência não Lecionou nas principais universidades deste
país. Sua filosofia assenta numa crítica
psiquiátrico fica no lugar de “susten- era de modo algum tema da pesquisa. à sociedade de massas e à sua tendência
tação do discurso da reforma”, porém Porém, conforme a análise das entre- para atomizar os indivíduos. Preconiza
ainda é imprescindível na visão dos vistas transcorria, essa categoria foi um regresso a uma concepção política
separada da esfera econômica, tendo
psiquiatras entrevistados, e isso preci- tornando-se essencial. A violência era como modelo de inspiração a antiga cidade
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sa vir a público. Uma enorme mudan- o tempo todo tema dos entrevistados. grega. Entre suas obras, citamos: Eichmann
ça, entretanto, é sentida por todos os Sabemos que os usuários do sistema em Jerusalém - Uma reportagem sobre
a banalidade do mal (Lisboa: Tenacitas.
entrevistados – o hospital tornou-se de atenção à saúde mental sempre ti- 2004) e O Sistema Totalitário (Lisboa:
visível e com isso muito mais vigiado. veram uma “relação” próxima com o Publicações Dom Quixote.1978). Sobre
Isso é de enorme importância para a tema: ou acusados de promotores de Arendt, confira as edições 168 da IHU On-
Line, de 12-12- 2005, sob o título Hannah
reforma psiquiátrica, porque aponta atos violentos ou então sendo alvo de Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três
que o controle social é uma ferramen- terapêuticas bárbaras; e é importante mulheres que marcaram o século XX,
ta e instrumento de lutas políticas im- dizer como o combate à violência é disponível para download em http://bit.
ly/qMjoc9 e a edição 206, de 27-11-2006,
portantes. Os atos terríveis, que antes uma das principais bandeiras da refor- intitulada O mundo moderno é o mundo
eram cometidos “em nome da razão”, ma psiquiátrica. Em minha pesquisa sem política. Hannah Arendt 1906-1975,
hoje são moderados pelo olhar social. utilizei dos conceitos de violência em disponível para download em http://bit.
ly/rt6KMg. Nas Notícias Diárias de 01-
Porém, é importante lembrar que Arendt1 e poder em Foucault. Os en- 12-2006 você confere a entrevista Um
os entrevistados enfatizam um novo pensamento e uma presença provocativos,
‘perigo’: o hospital psiquiátrico tem concedida com exclusividade por Michelle-
1 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e Irène Brudny em 01-12-2006, disponível
voltado a ser o destino de todas as socióloga alemã, de origem judaica. Foi para download em http://bit.ly/o0pntA.
mazelas sociais que “não poderiam” influenciada por Husserl, Heidegger e Karl (Nota da IHU On-Line)

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“É preciso

Tema de Capa
não poderiam ser atos exclusivamen- constituiu um marco na reforma psi-
te violentos, pois, se assim fossem, quiátrica. Em Belo Horizonte – local
eles em nada se distinguiriam de um
sequestro ou da prisão do corpo do
que sigamos em que moro – isso é claro na história
da reforma psiquiátrica. A psicanálise
outro. Desse modo, o jogo de poder
entra em cena. O poder não precisa
reinventando dá novamente voz ao louco, fazendo
da psicose um paradigma da liberda-
ser justificável, porque é próprio da
existência de comunidades; o que o
espaços coletivos de. Todavia, penso que é preciso valer-