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Luta
antimanicomial.
Revista do Ins!tuto Humanitas Unisinos
Conquistas e
Nº 391 - Ano XII - 07/05/2012 - ISSN 1981-8769
desafios
Conquistas e desafios
Em 18 de maio celebra-se o Dia conhecimento e a trajetória das pes- nar tudo num “manicômio”, é preciso
Nacional da Luta Antimanicomial. A soas para se construir um outro tipo repensar o poder do psiquiatra e da
data enseja uma série de reflexões so- de saúde mental. “O reconhecimento psiquiatria sobre a equipe e o cliente.
bre saúde mental, desinstititucionali- de que eles portam um saber, sim, Martinho Braga Batista e Silva,
zação e lutas em busca de uma socie- diferente do acadêmico, porém não da Universidade Estadual do Rio de
dade mais justa e democrática. A data menos valioso”, ou seja, trata-se do Janeiro – UERJ, retoma o Caso Damião
remete ao Encontro dos Trabalhadores empowerment. Ximenes e a condenação do Brasil por
da Saúde Mental, ocorrido em 1987, A diretora do Departamento de violação dos direitos humanos.
na cidade de Bauru-SP. Como processo Ações em Saúde – DAS da Secretaria Tempos e ritmos de ver: cegueira
decorrente desse movimento, ocorreu Estadual de Saúde do Rio Grande do e visibilidade no mundo contemporâ-
a reforma psiquiátrica, definida pela Sul, Sandra Fagundes, pondera que o neo é um artigo de Adriana Melo, da
lei n. 10216 de 2001, também conhe- estigma da loucura ainda não foi supe- Universidade Federal de Minas Gerais
cida como Lei Paulo Delgado. rado e comenta a experiência gaúcha – UFMG, e Maria Teresa F. Ribeiro da
Nesta edição profissionais que no contexto antimanicomial. Universidade Federal da Bahia – UFBA.
pesquisam e atuam na área da saúde O nascimento do capitalismo e Fernanda Azeredo de Moraes
mental participam de um debate que da internação dos excluídos é a temá- debate O clube da luta (David Fincher,
diz respeito ao conjunto da sociedade tica abordada pelo psicólogo Osvaldo 1999), e Marcelo Fabri, da Universi-
contemporânea. Gradella Júnior, da Universidade Es- dade Federal de Santa Maria – UFSM,
Thomas Szasz, professor eméri- tadual Paulista Júlio de Mesquita Filho descreve alguns aspectos da temáti-
to da Universidade Estadual de Nova – Unesp. Nossa sociedade é baseada ca que abordará no dia 10-05-2012,
Iorque em Siracusa, abre a discussão na exploração humana, e a violência falando sobre a alteridade radical
com uma conclusão: a psiquiatria não é intrínseca a esse modo de produção, de Levinas e a ética racionalista de
pode ser reformada. Ela tem que ser observa. Husserl.
abolida, assim como a escravidão. Fábio Alexandre Moraes, psicó- A obra Uma sociologia indigna-
Para o filósofo italiano Massimo logo e professor na Unisinos, compre- da. Diálogos com Luiz Werneck Vianna
Canevacci, ninguém é totalmente ende a luta antimanicomial como uma (Juiz de Fora, 2012) inspira a entre-
normal, e a questão da doença mental luta ético-política. Ele detecta o nexo vista com seus organizadores, Rubem
não pode ser compreendida somente entre o modelo capitalista de trabalho Barboza Filho, da Universidade Fede-
como um problema médico. É algo le- e o surgimento da doença mental. ral de Juiz de Fora – UFJF e Fernando
gitimado culturalmente, assegura. O psicólogo Bernardo Malamut Perlatto, do Centro de Estudos Direito
Osvaldo Saidon, psicanalista ar- adverte que “novos desviantes so- e Sociedade (Cedes/PUC-Rio).
gentino, retoma a tradição libertária ciais” poderão ocupar o lugar discur- As quatro décadas de vivências
da luta antimanicomial e questiona se sivo antes reservado aos loucos. É o na Unisinos são rememoradas por José
entramos em uma era pós-manicomial. caso dos usuários de crack, pontua. Alcides Renner, professor do curso de
A médica Rosana Onocko Cam- O psiquiatra José Jackson Sam- Direito da Universidade.
pos, da Universidade Estadual de paio Coelho, da Universidade Estadu- A todas e a todos uma boa leitura
Campinas – Unicamp, destaca a im- al do Ceará – UECE, menciona que, em e uma ótima semana!
portância de se valorizar a fala, o condições históricas que podem tor-
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IHU
Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
ON-LINE
Unisinos
Diretor de redação: Inácio André Langer e Darli Sampaio,
2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Thomas Szasz: A psiquiatria não pode ser reformada. Ela tem que ser abolida, assim
como a escravidão
8 Osvaldo Saidon: Uma era pós-manicomial?
12 Massimo Canevacci: A luta antimanicomial como uma luta cultural
16 Osvaldo Gradella Júnior: O nascimento do capitalismo e da internação dos excluídos
21 Fábio Alexandre Moraes: Luta antimanicomial, uma luta ético-política
24 Rosana Onocko Campos: O empoderamento dos usuários de saúde mental
28 Sandra Fagundes: O estigma da loucura ainda não foi superado
30 Martinho Braga Batista e Silva: O caso Damião Ximenes e a condenação do Brasil por
violação dos direitos humanos
33 José Jackson Sampaio Coelho: A psiquiatria e o exercício da humildade
37 Bernardo Salles Malamut: Uma psiquiatria a serviço do Estado contra os “indivíduos
desviantes”
Destaques da semana
41 Artigo da semana: Adriana Melo e Maria Teresa F. Ribeiro: Tempos e ritmos de ver:
cegueira e visibilidade no mundo contemporâneo
44 Fernanda Azeredo de Moraes: Clube da luta: um olhar de gênero
00 Livro da semana: Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto: Uma sociologia
indignada: horizonte e inspiração para pensar o Brasil
48 Coluna CEPOS
57 Destaques On-Line
IHU em Revista
58 Agenda
59 Marcelo Fabri: A alteridade radical de Levinas e a ética racionalista de Husserl
62 Lucas Henrique da Luz: Inside Job – Trabalho Interno e a visão plural do
capitalismo mundial
64 IHU Repórter: José Alcides Renner www.ihu.unisinos.br
twitter.com/ihu
bit.ly/ihufacebook
www.ihu.unisinos.br
3
Tema
de
Capa
Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Tema de Capa
A psiquiatria não pode ser
reformada. Ela tem que
ser abolida, assim como a
escravidão
Psiquiatria e Estado precisam ser separados. Além disso, o sujeito deve decidir, ou
não, se deve tomar medicamentos psiquiátricos, afirma Thomas Szasz
Por Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander
A
“loucura” não é silenciada pela “ra- forçado-involuntário de pessoas identificadas
zão”, rebate Thomas Szasz. “Ela é si- como escravas”. Ele tece duras críticas à luta
lenciada por pessoas chamadas de antimanicomial: “Em vez de enfocar a aboli-
‘psiquiatras’”. Para o professor emérito da ção da ‘escravidão psiquiátrica’, os indivíduos
Universidade do Estado de Nova Iorque em identificados com a ‘luta antimanicomial’ en-
Siracusa, “a psiquiatria, intrinsecamente li- focaram – equivocadamente, penso eu – a na-
gada à lei e à execução da lei, não pode ser tureza da doença justificando ostensivamente
reformada. Como a escravidão, ela precisa o uso de força psiquiátrica”.
ser abolida”. As declarações foram dadas por Defensor da separação entre psiquiatria e
Szasz à IHU On-Line na entrevista que conce- Estado, Szasz é conhecido mundialmente por
deu por e-mail. Crítico ferrenho da psiquiatria ser adversário da psiquiatria coercitiva. Es-
desde os anos 1950, ele discorda perempto- creveu livros como O mito da doença mental
riamente da legitimidade intelectual-médica (Rio De Janeiro: Zahar, 1979), originalmente
dessa área da medicina, assim como da As- publicado em 1960, e A fabricação da loucu-
sociação Psiquiátrica Americana e do Manu- ra: um estudo comparativo da Inquisição e do
al Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Movimento de Saúde Mental (Rio de Janei-
Mentais (DSM, na sigla em inglês). “Qual é ro: Zahar, 1976), cuja primeira edição veio a
a validade do DSM? É zero, digo eu”. Em seu público em 1970. Nasceu em Budapeste em
ponto de vista, a psiquiatria cumpre a função 1920 e continua em franca atividade intelec-
excludente antes ocupada pela religião, e o tual. Para conhecer seus textos e ideias, aces-
“controle-confinamento forçado-involuntário se www.szasz.com.
de pessoas identificadas como mentalmente Confira a entrevista.
doentes é análogo ao controle-confinamento www.ihu.unisinos.br
IHU On-Line – Desde que es- les e que esses desequilíbrios fictícios Anteriormente, as religiões cumpriam
creveu O mito da doença mental, são tratados com medicamentos. essa função social. Hoje em dia, a me-
há 51 anos, houve alguma mudança dicina-psiquiatria a cumpre.
na forma como a psiquiatria trata o IHU On-Line – Em que medida
“doente mental”? O que permanece o estigma da doença mental con- IHU On-Line – Quais são os prin-
o mesmo? tinua sendo um rótulo importante cipais avanços que percebe a partir
Thomas Szasz – Houve muitas para compreendermos a sociedade da luta antimanicomial pelo mundo?
mudanças. A principal mudança é que segregatória e excludente em que Thomas Szasz – Em minha opi-
agora os psiquiatras sustentam, e a vivemos? nião, a questão principal – ou talvez
maioria das pessoas acredita, que as Thomas Szasz – Todas as socie- até a única – referente à luta anti-
chamadas doenças mentais são cau- dades (grupos) são, por definição, manicomial é o poder de exercer
sadas por “desequilíbrios químicos” “excludentes” pelo fato de incluírem coerção, isto é, a legitimação do uso
no cérebro, ou são manifestações de- algumas pessoas e excluírem outras. de força contra pessoas chamadas
IHU On-Line – No Brasil, há uma outras. psiquiatra britânico. Destacou-se por sua
abordagem inovadora da doença mental
e, particularmente, da experiência
grande influência de Franco Basaglia
na reforma psiquiátrica. Hoje, a de- Anteriormente, da psicose. Promoveu uma revolução
de conceitos na sua área, ao buscar
sinstitucionalização da loucura tem compreender a lógica por trás dos sintomas
no agente comunitário e nos Centros as religiões ditos irracionais. As ideias de Lang sobre
as causas e o tratamento da disfunção
de Atenção Psicossocial – CAPs ele- mental grave, fortemente influenciadas
mentos importantes de uma nova
prática da saúde mental. Qual é a si-
cumpriam essa pelo existencialismo, foram de encontro
à psiquiatria ortodoxa. Para ele, os
tuação nos EUA no que diz respeito à
luta antimanicomial?
função social. sentimentos expressos pelo paciente
eram descrições válidas da experiência
vivida, mais do que simples sintomas
Thomas Szasz – A situação é se-
melhante. Basaglia1 adorava a associa-
Hoje em dia, de um distúrbio. Laing foi associado ao
movimento da antipsiquiatria, embora ele
próprio rejeitasse o rótulo. (Nota da IHU
ção entre a política (o Estado) e a psi-
quiatria (coerção médica). Ele queria
a medicina- On-Line)
3 Michel Foucault (1926-1984): filósofo
francês. Suas obras, desde a História da
ser – e a certa altura foi – uma espécie
de comissário psiquiátrico – do tipo
psiquiatria a Loucura até a História da sexualidade
(a qual não pôde completar devido a sua
cumpre”
benevolente, bondoso, é claro. Dis- morte) situam-se dentro de uma filosofia
do conhecimento. Suas teorias sobre o
cordo radicalmente das concepções e saber, o poder e o sujeito romperam com
políticas dele. Creio que a psiquiatria, as concepções modernas destes termos,
intrinsecamente ligada à lei e à execu- motivo pelo qual é considerado por
certos autores, contrariando a sua própria
ção da lei, não pode ser reformada. Como a escravidão, ela precisa ser opinião de si mesmo, um pós-moderno.
abolida, e não reformada. Seus primeiros trabalhos (História da
Loucura, O Nascimento da Clínica, As
Palavras e as Coisas, A Arqueologia do
1 Franco Basaglia (1924-1980): psi-quiatra IHU On-Line – Os doentes men- Saber) seguem uma linha estruturalista,
italiano. Promoveu uma importante tais continuam sendo os grandes bo- o que não impede que seja considerado
reforma no sistema de saúde mental de geralmente como um pós-estruturalista
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Leias as
são, e foram, presas em prédios dos filósofo alemão, conhecido por seus
conceitos além-do-homem, transvaloração
quais não podem sair. “Por que os tra- dos valores, niilismo, vontade de poder
e eterno retorno. Entre suas obras
figuram como as mais importantes Assim
a IHU On-Line dedicou matéria de capa
a Foucault: edição 119, de 18-10-2004,
disponível para download em http://
falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998), O anticristo
(Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia
entrevistas
migre.me/vMiS, edição 203, de 06-11-2006, da moral (5. ed. São Paulo: Centauro,
do dia no
disponível em http://migre.me/vMj7, e 2004). Escreveu até 1888, quando foi
edição 364, de 06-06-2011, disponível em acometido por um colapso nervoso que
http://bit.ly/k3Fcp3. Além disso, o IHU nunca o abandonou, até o dia de sua morte.
organizou, durante o ano de 2004, o evento A Nietzsche foi dedicado o tema de capa
Ciclo de Estudos sobre Michel Foucault, da edição número 127 da IHU On-Line, de
que também foi tema da edição número
13 dos Cadernos IHU em Formação,
disponível para download em http://migre.
13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo
do martelo e do crepúsculo, disponível
para download em http://migre.me/s7BB.
sítio do IHU:
me/vMjd sob o título Michel Foucault. Sua Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a
contribuição para a educação, a política entrevista exclusiva realizada pela IHU
e a ética. Confira, também, a entrevista On-Line edição 175, de 10-04-2006, com
com o filósofo José Ternes, concedida à o jesuíta cubano Emilio Brito, docente
IHU On-Line 325, sob o título Foucault, a na Universidade de Louvain-La-Neuve,
sociedade panóptica e o sujeito histórico,
www.ihu.
intitulada “Nietzsche e Paulo”, disponível
disponível em http://migre.me/zASO. De para download em http://migre.me/s7BH.
A edição 15 dos Cadernos IHU em formação
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13 a 16 de setembro de 2010 aconteceu
o XI Simpósio Internacional IHU: O (des) é intitulada O pensamento de Friedrich
governo biopolítico da vida humana. Para Nietzsche, e pode ser acessada em http://
maiores informações, acesse http://migre.
me/JyaH. Confira a edição 343 da IHU On-
Line, intitulada O (des)governo biopolítico
migre.me/s7BU. Confira, também, a
entrevista concedida por Ernildo Stein à
edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-
unisinos.br
da vida humana, publicada em 13-09- 05-2010, disponível em http://migre.me/
2010, disponível em http://bit.ly/bi5U9l, FC8R, intitulada O biologismo radical de
e a edição 344, intitulada Biopolitica, Nietzsche não pode ser minimizado, na qual
estado de excecao e vida nua. Um debate, discute ideias de sua conferência A crítica
disponível em http://bit.ly/9SQCgl. A de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e
edição 364, de 06-06-2011 é intitulada a questão da biopolítica, parte integrante
‘’História da loucura’’ e o discurso racional do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença
em debate, inspirada na obra História da - Pré-evento do XI Simpósio Internacional
loucura, e está disponível em http://bit. IHU: O (des)governo biopolítico da vida
ly/lXBq1m. (Nota da IHU On-Line) humana. Na edição 330 da revista IHU me/Jzvg. Na edição 388, de 09-04-2012,
4 LSD: acrônimo de Lysergsäurediethylamid, On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista leia a entrevista O amor fati como resposta
palavra alemã para a dietilamida do ácido Nietzsche, o pensamento trágico e a à tirania do sentido, com Danilo Bilate,
lisérgico, que é uma das mais potentes afirmação da totalidade da existência, disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota
substâncias alucinógenas conhecidas. (Nota concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e da IHU On-Line)
da IHU On-Line) disponível para download em http://migre.
“P
arece importante renovar o debate A exclusão, a reclusão, ou o crime que a luta
teórico em relação aos conceitos antimanicomial denuncia estão hoje, mais do
que suscitam uma proposta anti- que em loucura, no gatilho fácil, na brutalidade
manicomial para não deixá-la limitada à ques- e na marginalidade que condena milhares de
tão de fechamento, ou não, de manicômios e jovens, os crackeiros, os sem-trabalho, os mi-
para que enfrente os desafios de uma época lhões de desocupados jovens que em países
que já poderíamos chamar de pós-manico- colonizados e colonizadores já parecem conde-
mial”. A afirmação é do psicanalista argentino nados a não terem nenhum futuro”.
Osvaldo Saidon, em entrevista concedida por Osvaldo Saidon é médico, psicanalista e
e-mail à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, professor universitário, natural da Argentina.
a “luta antimanicomial se inscreve numa tra- Tem desenvolvido trabalhos de análise institu-
dição de luta libertária que aporta aos direitos cional no Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e
humanos a potencialidade para poderem su- Nicarágua. Viveu no Brasil entre 1976 e 1988.
perar uma prática que, às vezes, só tende a re- De sua produção bibliográfica, destacamos
petir o politicamente correto, como sustentam Practicas grupais: La escena institucional e cli-
muitas das chamadas ONGs dos direitos huma- nica y sociedad. Esquizoanalisis.
nos”. E provoca: “A questão é detectar em cada Confira a entrevista.
época e em cada lugar onde está o manicômio.
IHU On-Line - Lutar por uma so- Na Argentina o trabalho das mães canalítica na desinstitucionalização
ciedade sem manicômios é lutar pe- e dos filhos da Praça de Maio1 tem da loucura?
los direitos humanos? Por quê? sempre alentado a luta antimanico- Osvaldo Saidon - A prática psico-
Osvaldo Saidon - Gostaria de in- mial e isso tem sido parte, muitas ve- terapêutica tem mudado sua implica-
verter a pergunta, pois isso me per- zes, de sua incorreção política em rela- ção nos processos de desinstituciona-
mitiria responder melhor o que penso ção às instituições. Essa incorreção é a lização segundo as épocas e os lugares
dessa relação. A pergunta seria então: que lhes tem dado o nome de “loucas onde se tem desenvolvido. Tem ha-
lutar pelos direitos humanos é lutar da Praça de Maio” e, com isso, a po- vido uma diferença de tempo e lugar
por uma sociedade sem manicômios? tência que continuam desdobrando. entre o sucedido no Brasil, na França
Melhor seria, então, dizer que a luta e na Argentina, considerando-se os
antimanicomial permite à defesa dos IHU On-Line - Qual é a importân- três países onde a prática psicanalíti-
direitos humanos ter questões concre- cia da prática psicoterapêutica e psi- ca tem tomado um desdobramento
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tas de luta e evitar cair numa defesa importante na saúde pública. Desde
às vezes demasiado generalista, ou o final dos anos 1960, a psicanálise,
1 Mães da Praça de Maio: mulheres
abstrata, dos direitos humanos, que que se reúnem na Praça de Maio, na Argentina, participava ativamente
pode deixar inadvertidas as injustiças Buenos Aires, para exigirem notícias em projetos de reforma psiquiátrica
de classe – as questões coloniais e a de seus filhos desaparecidos durante e de humanização da prática hospita-
a ditadura militar na Argentina (1976-
denúncia dos crimes que o império 1983). Alguns pais, considerados lar. Os grupos operativos, a experiên-
perpetra, com sua política não somen- subversivos, tiveram seus filhos cia de serviços de saúde mental em
te belicosa, senão cultural e econômi- retirados de sua guarda e colocados hospitais públicos, a politização de
para a adoção durante os cinco
ca. A luta antimanicomial se inscreve anos de ditadura. Quando acabou a amplos setores de profissionais e a
numa tradição de luta libertária que ditadura, muitos filhos estavam sob ruptura por razões ideológico-políticas
aporta aos direitos humanos a poten- guarda de famílias de militares. Ainda da Associação Psicanalítica foram di-
hoje, todas as quintas-feiras, as mães
cialidade para poderem superar uma realizam manifestações na Praça fusores de uma prática que, de fato,
prática que, às vezes, só tende a repe- de Maio, em frente à Casa Rosada, questionou os institutos e instituídos
tir o politicamente correto, como sus- buscando manter o desaparecimento desse momento. Muitos do que tive-
de seus filhos vivo na memória de
tentam muitas das chamadas ONGs todos os Lisboa : Assirio & Alvim, 1966 ram de se exilar nos anos 1970 leva-
dos direitos humanos. argentinos. (Nota da IHU On-Line) ram essas propostas a vários lugares,
Tema de Capa
onde encontraram maior ou menor balho e na defesa do hospital público
repercussão. frente às corporações da saúde.
No Brasil o processo de maior
compromisso social e de crítica ins-
dos anos 1960 Na atualidade, as relações entre
saúde mental e direitos humanos se-
titucional dos psicanalistas somente
começou com a volta dos exilados bra-
a psicanálise, guem tendo que encarregar-se dessa
contradição. Constatamos ainda o
sileiros que realizaram sua formação
na França e com a associação que nós,
na Argentina, avanço e a contrarreforma que hoje
voltam a impulsionar os setores biolo-
psicanalistas de esquerda chegados da
Argentina junto de colegas mais politi-
participava gistas da psiquiatria, em muitos casos
com alianças com institutos psicanalí-
zados do Rio, de São Paulo e Belo Hori-
zonte, conseguimos desenvolver. ativamente ticos de diverso signo. Nesse sentido,
me parece importante renovar o de-
Na Europa, por outro lado, a luta
antimanicomial ou anti-institucional, em projetos bate teórico em relação aos conceitos
que suscitam uma proposta antima-
ligada de certo modo aos movimentos nicomial, para não deixá-la limitada à
de anticultura emergentes do maio de reforma questão de fechamento, ou não, de
francês, se desenvolveu através de manicômios, e para que enfrente os
uma discussão sobre a prática e a teo- psiquiátrica e desafios de uma época que já podería-
ria psicanalítica. Citemos os trabalhos mos chamar de pós-manicomial.
de Basaglia, a rede de antipsiquiatria, de humanização
a crítica institucional de Lourau e La- IHU On-Line - Quais são os hori-
passade, as contribuições definitivas da prática zontes que se abrem, a partir do tra-
que traz a História da loucura, de balho na clínica, no diálogo entre a
Foucault, e o Anti-Édipo2 de Deleuze3 hospitalar” razão e a loucura?
e Guattari4, ou os trabalhos de Castel Osvaldo Saidon - Esta pergunta
sobre o psicanalismo. dá pé para ampliar um pouco as refe-
rências que fazíamos à retomada psi-
Era pós-manicomial lado, a antipsiquiatria de Basaglia ou canalítica que se deu a partir dos anos
as experiências de Cooper5. Por outro 1980 no campo da saúde mental e a
Esses estudos nos surpreende- lado, a contundência e o fio teórico qual se tenta legitimar por um para-
ram “com a mão na massa”. Estavam que trazia o Anti-Édipo de Deleuze e digma que se qualifica a si mesmo de
se desenvolvendo uma infinidade de Guattari dividia águas e era impossível científico. Este fundamenta o seu acio-
experiências, tratamentos e projetos evitar o enfrentamento com um laca- namento, tanto em matemas ou tem-
que questionavam as instituições, mas nismo que vinha com seus foros reno- pos lógicos como nas investigações
que tinham uma forte marca psicanalí- vados salvar a institucionalização da neurocientíficas que os laboratórios
tica. Poucos se atreveram a assumir os psicanálise, o que terminava por pro- avalizam através de medicamentos
desafios que nos propunham, por um duzir uma exclusão de toda proposta psicotrópicos de última geração.
social ou política no campo da prática Se a isso se referem quando fa-
psicoterapêutica. lam da razão frente à desrazão, a uma
2 O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia Franco Basaglia costumava di- produção de verdade que se considera
(Lisboa: Assirio & Alvim, 1966). (Nota da
IHU On-Line) zer que alguns psicanalistas argenti- asséptica, neutra e definitiva, então a
3 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo nos são uma raridade, já que foram loucura, ao opor-se, é somente de-
francês. Assim como Foucault, foi um os que mais se identificaram com as sordem e caos. Se por loucura, como
dos estudiosos de Kant, mas tem em
Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas propostas antipsiquiátricas nos anos por razão, entendemos produções www.ihu.unisinos.br
interseções. Professor da Universidade de 1970. Ou seja, mais do que ver quais subjetivas datadas, mutantes e mar-
Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou as correntes da psicanálise que mais cadas por processos opostos, porém
ideias como as de devir, acontecimentos,
singularidades, conceitos que nos impelem contribuíram aos processos de de- complementares, participando de
a transformar a nós mesmos, incitando- sinstitucionalização na saúde mental, algo comum - o da instituição que os
nos a produzir espaços de criação e de podemos afirmar que o papel dos alberga -, abrimos outras possibilida-
produção de acontecimentos-outros. (Nota
da IHU On-Line) “psi” dependeu – e creio que assim des de pensar... Em definitivo, razão e
4 Pierre-Félix Guattari (1930-1992): continua – do compromisso social que loucura são uma mescla produtora de
filósofo e militante revolucionário francês. assumiram ou assumam em seu tra- obras as mais diversas e com poten-
Colaborou durante muitos anos com Gilles
Deleuze, escrevendo com este, entre cialidades criacionistas sempre vigen-
outros, os livros Anti-Édipo. Capitalismo e tes. Ninguém é louco 24 horas por dia,
Esquizofrenia e O que é Filosofia? Dotado nem racional ou razoável o dia inteiro.
de um estilo literário incomparável, é, 5 David Cooper (1931-1986): médico
de longe, um dos maiores inventores e psiquiatra sul-africano. Atuou na Por isso não vejo por que opor razão
conceituais do final do século XX. Inglaterra. Representante da corrente e loucura. Basta ver o esforço vão que
Esquizoanálise, transversalidade, ecosofia, antipsiquiátrica, denunciou a psiquiatria os grandes obsessivos fazem em dis-
caosmose, entre outros, são alguns dos oficial, que considerava submetida às
conceitos criados e desenvolvidos pelo necessidades da sociedade. (Nota da IHU criminar razão e caos, o que termina
autor. (Nota da IHU On-Line) On-Line) por aumentar suas dúvidas ao infinito.
uma revolução no âmbito humano: a ideia no momento de uma demanda insti- que vale a pena insistir na criação e
de que somos movidos pelo inconsciente. tucional. Todavia, é uma questão que invenção dos dispositivos que permi-
Freud, suas teorias e o tratamento com
seus pacientes foram controversos na Viena está talhada e esculpida impregnando tam a expressão do desviante. Creio
do século XIX, e continuam muito debatidos nossas relações institucionais, as rela- que entre outras coisas a isso se re-
hoje. A edição 179 da IHU On-Line, de 08- ções com nossos colegas, os atraves- feria Guattari na última época, quan-
05-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o
título Sigmund Freud. Mestre da suspeita, samentos na conjugalidade na família, do insistia no paradigma estético. No
disponível para consulta no link http:// na relação com os filhos, no modo de entanto, a questão das redes sociais
migre.me/s8jc. A edição 207, de 04-12- fazer política, na relação que estabe- e da internet em geral é um desafio
2006, tem como tema de capa Freud e a
religião, disponível para download em lecemos com as normas, ou em como à criação de novas formas de expres-
http://migre.me/s8jF. A edição 16 dos gastamos o nosso dinheiro. Por que são, ao mesmo tempo em que gerou
Cadernos IHU em formação tem como então agarrá-la somente com o diá-
título Quer entender a modernidade?
Freud explica, disponível para download logo psicanalítico, como se, ao não ��Parrésia: na retórica, parrésia é descrita
em http://migre.me/s8jU. (Nota da IHU fazer psicanálise, estivéssemos então como franqueza, confiança ou ousadia
On-Line) a salvo ou prevenidos contra todas as para falar em público. A palavra grega
9 José Manuel de los Reyes Gonzáles é frequentemente usada para descrever
de Prada y Ulloa (1844-1918): escritor e misérias que as jogadas do poder nos certos diálogos atribuídos a Jesus Cristo no
filósofo peruano. (Nota da IHU On-Line) impõem em todos esses espaços? Novo Testamento. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line – Como percebe o mo tempo, esta corrente exercita seu do da etnografia, que sempre menos
exercício do poder psiquiátrico em paradigma tradicionalmente recluso pertence só à antropologia cultural e
nossa sociedade? no próprio lugar mais ou menos fecha- se difunde e aplica criativamente na
Massimo Canevacci – A psiquia- do, separado do contexto mais amplo pesquisa empírica. A minha sugestão
tria parece-me sempre mais dividida e, por isso, isola a doença e cura este é que, depois da inicial experimenta-
em diferentes e, às vezes, contrastan- específico problema. O caso é que mu- ção entre etnografia e psiquiatria, a
tes correntes. A tradicional psiquiatria dou profundamente a etiologia destes etnopsiquiatria, baseada muito nas
“medicalizada”, isto é, que usa como tipos de doenças. Mudou a família, o questões “étnicas”, agora precisa se
principal instrumento de cura o pro- gênero, o trabalho, o território e, ain- esforçar para ser aplicada no contex-
duto farmacológico, em parte mudou. da mais, a comunicação e o consumo. to atual que, como acenado, é sempre
As novas gerações de fármacos não Por isso as relações entre psiquiatria mais determinado pela comunicação e
são mais como aqueles de 20 ou 30 e outras ciências humanas são funda- pelo consumo. E por uma tendência a
anos atrás. E isso é um bem. Ao mes- mentais, especificamente com o méto- pluralizar a clássica “identidade”.
mento do sujeito em determinada da, por dizer assim, que se torna mais to de multivíduo como uma tentativa
norma – uma realidade inescapável. poderosa e incontrolável produzindo de manifestar a multiplicidade do di-
A partir disso, qual é o espaço para as uma heteronímia subjetiva. víduo, isto é, dos eus como plural de
pessoas exercerem sua autonomia? Nesse sentido, o conceito de au- eu (que não seria nós). Praticar as di-
Massimo Canevacci – Esta é a tonomia, isto é, que cada pessoa cria ferenças da minha identidade que não
pergunta das perguntas. O poder sim- e transforma o seu próprio destino, é quer ser sempre idêntica a si mesma,
bólico e coercitivo não acaba no limite o desafio no qual um contexto mais viver identidades pluralizadas na pró-
daquilo que era o hospital psiquiátri- amplo se inclui entre a fantasmagoria pria multividualidade, onde os eus
co. A violência de um poder historica- corpo-mental de cada pessoa. Uma transbordam sem (espero!) causar a
mente determinado é difundida não novela, uma música, um filme, um regressão à esquizofrenia. Eu acho
somente nas estruturas políticas, eco- telejornal, aquela pessoa que mora que Basaglia interpretou e praticou
nômicas ou religiosas. Muito frequen- na frente ou encontra casualmente Nietzsche. A razão (como Adorno3 e
temente é incorporado como valor na rua pode provocar pânico incon-
na visão de muitas pessoas, pessoas trolável. Ser autônomo significa, para 3 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-
“normais” justa e problematicamen- mim, favorecer um nómos (como lei, 1969): sociólogo, filósofo, musicólogo e
compositor, definiu o perfil do pensamento
Tema de Capa
Horkheimer4 refletiram na Dialética do também o desafio desejante atual que
iluminismo) não se pode contrapor ao nunca se resolve. A beleza é o além do
mito, instinto, desejo etc. Aqui se abre
um discurso mais complexo.
culturas, o estupor.
“N
as sociedades pré-capitalistas, ap- esse modo de produção”. De acordo com Gra-
tidão ou inaptidão para o trabalho della, sob a égide do capitalismo não há outra
não era um critério importante na forma de lidar com os excluídos que ele mesmo
determinação do normal e anormal. Serão as se encarrega de produzir, a não ser internando-
transformações iniciadas com o advento do -os e isolando-os. Outra temática da entrevista
modo de produção capitalista” que irão defi- é o Movimento Nacional de Luta Antimanico-
nir os critérios daqueles que deveriam ser in- mial, que se constrói a partir de meados dos
ternados, explica o psicólogo Osvaldo Gradella anos 1970.
Júnior, na entrevista que concedeu por e-mail à Osvaldo Gradella Júnior é graduado em Psi-
IHU On-Line. “Nesse momento, saúde-doença cologia pela Universidade Federal Fluminense
passa a ser identificada como ordem-desor- – UFF, mestre em Psicologia pela Fundação
dem, e a loucura começa a ser vista como um Getúlio Vargas e doutor em Educação pela Uni-
problema social, resolvido pela Justiça”, com- versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
plementa. Segundo ele, “as instituições, em Filho – Unesp com a tese Sofrimento psíquico
geral, reproduzem as formas de relações so- e trabalho intelectual do docente universitário.
ciais predominantes na sociedade e, em uma Professor na Unesp, tem uma vasta experiên-
sociedade que tem como base a exploração do cia e trabalhos na temática de saúde mental.
homem pelo homem, a violência é inerente a Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que sentido a po; foi explicada em alguns momentos o início da divisão social do trabalho e
doença mental é uma produção social pela religião e, em outros, pela magia; do trabalho assalariado; a intensa re-
e histórica? Seria a doença mental um considerada em alguns momentos pressão à mendicância, à vagabunda-
mito, como afirmou Thomas Szasz1? como possessão e, em outros, como gem, à ociosidade (voluntária ou não),
Osvaldo Gradella Júnior – Bem, benção. Até aquele momento, não à perturbação da paz, consideradas
dizer que a doença mental é um pro- havia grande mobilidade na organi- obstáculos para o crescimento econô-
duto social e histórico implica compre- zação social, bem como era pouco mico; a criação de instituições como
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ender o momento de seu surgimento, discriminativa para com as diferenças casas de correção e de trabalho, hos-
ou seja, quando a loucura é apropriada individuais. Os loucos se misturavam pitais gerais (sem função curativa); de
como objeto de estudo pela medicina. com os pobres, mendigos, doentes ve- leis e normas que buscavam limpar as
Vamos lá: a loucura é objeto de preo- néreos, vagabundos e criminosos que cidades de mendigos e antissociais em
cupação dos estudiosos há muito tem- perambulavam pelos campos e locais geral, prover trabalho para os desocu-
onde se realizavam as pequenas tro- pados, punir a ociosidade e reeducar
1 Thomas Stephen Szasz (1920): psiquiatra cas e, dessa maneira, iam sobreviven- para a moralidade. Nesse momento,
e acadêmico húngaro, residente nos do pela generosidade alheia. Nas so- saúde-doença passa a ser identificada
Estados Unidos. Desde 1990, é Professor
Emérito de psiquiatria do Health Science ciedades pré-capitalistas, aptidão ou como ordem-desordem, e a loucura
Center (“Centro de Ciência da Saúde”) inaptidão para o trabalho não era um começa a ser vista como um problema
da Universidade do Estado de Nova Iorque critério importante na determinação social resolvido pela Justiça.
(SUNY), em Syracuse. Confira, nesta edição,
a entrevista especial concedida por Szasz do normal e anormal. Serão as trans- Até o século XVIII ela era objeto
à IHU On-Line: A psiquiatria não pode ser formações iniciadas com o advento do de estudo da Filosofia, portanto rela-
reformada. Ela tem que ser abolida, assim como modo de produção capitalista, ou seja, cionada às questões da existência, às
a escravidão. O material pode ser conferido,
também, no site do IHU em http://bit.ly/ as mudanças do sistema de produção paixões e às emoções. Será o médico
JWv6P5. (Nota da IHU On-Line) servil para um sistema de manufatura, francês Pinel que trará para si a tutela
ços substitutivos. Pode não ser uma considerado normalidade. Essas con-
Do ponto de vista legal, foi apre- expressão adequada, mas os servi- dições, que são de ordem econômica
sentado em 1989 o Projeto de Lei n. ços retomam uma prática tecnicista e social, são consideradas como pro-
3657–B de autoria do deputado Paulo e perderam o que era fundamental blemas do individuo e medicalizadas,
Delgado, que seria aprovado em 2001 para sua existência: os usuários e surgindo uma gama enorme de novos
com alterações substantivas – a manu- familiares enquanto sujeitos do seu distúrbios com os seus respectivos
tenção dos hospitais psiquiátricos. Em próprio processo de atenção. As ins- medicamentos, inclusive para sermos
1992, a Portaria 224 do Ministério da tituições formadoras pouco ou nada felizes. Em um levantamento recente
Saúde normatiza os CAPS e NAPS, as mudaram de sua concepção positivis- em um bairro sem unidade de saúde,
emergências psiquiátricas e a hospi- ta, e ao profissional falta a história e verificamos o uso cotidiano de medi-
talização bem como padrões mínimos uma nova possibilidade prática. Por- camentos variados e psiquiátricos sem
para atendimento em hospitais psiqui- tanto, reproduzem o modelo da ciên- nenhum acompanhamento médico.
átricos. O Conselho Regional de Psico- cia natural e do organicismo. Ou seja, a solução medicamentosa
logia – 6ª Região publicou, em 1997, IHU On-Line – Antes da reforma para amenizar os conflitos próprios da
uma edição de sua revista intitulada psiquiátrica empreendida por Pinel e existência humana.
“Trancar não é tratar – Liberdade: o Tuke, os loucos tinham a mente livre
“A
sociedade capitalista e seu mode- na que a saúde mental é um exemplo de trans-
lo de trabalho criam as condições disciplinaridade, emergindo como um novo
para a doença mental”. A análise é campo “capaz de lidar com a fragmentação e
do psicólogo Fábio Alexandre Moraes, na en- o reducionismo psiquiátrico”. A seu ver, militar
trevista que concedeu por e-mail à IHU On- na luta antimanicomial é tornar inseparáveis o
-Line. Segundo ele, há vários nexos que unem pensamento da ação do mundo, algo que re-
doença mental e trabalho, sobretudo “se con- flete uma dimensão política. “Afinal, como nos
siderarmos como a loucura foi se constituindo ensina Peter Pal Pelbart, os manicômios, agora,
como doença mental após a Idade Média e os são mentais, e são esses os muros mais difíceis
primeiros movimentos do capitalismo moder- de serem transpostos para se criar outros terri-
no. O trabalho, da maneira como foi concebi- tórios, capazes de abrigar as diferenças. Assim,
do por essa configuração econômica, política, a luta antimanicomial é ético-política”.
mas também cultural e subjetiva, foi um divi- Fábio Alexandre Moraes é psicólogo gra-
sor de águas”, explica. E complementa: “É na duado pela Universidade do Rio dos Sinos –
separação de quem trabalha e não trabalha Unisinos e especialista em Saúde Mental pela
que vamos encontrar as primeiras institui- Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul e
ções de sequestro da vida: para os órfãos, os em Psicologia Clínica. Cursou mestrado em Psi-
velhos, os ociosos de todos os matizes e para cologia Social e Institucional na Universidade
os loucos que perambulavam pelo mundo pré- Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS com a
-capitalista”. Fábio conclui que a “sociedade dissertação Abrindo a porta da casa dos loucos
capitalista desenvolveu ‘seu modelo de traba- (ou: para ativar a potência dos fluxos). Foi co-
lho’ tanto quanto desenvolveu as formas de ordenador do curso de Psicologia da Unisinos
adoecimento e as possibilidades de reconhe- (2001-2009), e atualmente leciona na Unisinos
cimento através da psicopatologia”. Assim, as e atua na área de saúde mental na Prefeitura
formas de adoecimento “nasceram junto com Municipal de Novo Hamburgo.
as formas de trabalho capitalista”. Ele mencio- Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Quais são os nexos vamos encontrar as primeiras institui- dessa função que visaria à reabilitação
que unem doença mental e trabalho? ções de sequestro da vida: para os ór- para vida social. Quem trabalha é por
Fábio Alexandre Moraes – São fãos, os velhos, os ociosos de todos os si só bom e, agora, saudável.
muitos os nexos, se considerarmos matizes e para os loucos que peram- Mesmo hoje conservamos a ideia
como a loucura foi se constituindo bulavam pelo mundo pré-capitalista. de que o sujeito “melhorou” quando
como doença mental após a Idade Além disso, não podemos deixar ele consegue, depois de ser diagnos-
Média e os primeiros movimentos de considerar que o trabalho foi uti- ticado como “portador de uma do-
do capitalismo moderno. O trabalho, lizado, ao longo da história das insti- ença mental”, se inserir ou retornar
da maneira como foi concebido por tuições manicomiais, como dispositivo ao mundo do trabalho. O que pode
essa configuração econômica, política, terapêutico (laborterapia). Se antes nos indicar essa genealogia da do-
mas também cultural e subjetiva, foi tínhamos a purificação e o restabele- ença mental, produto dos valores da
um divisor de águas. É na separação cimento da saúde pela religiosidade, modernidade, tanto quanto mostra
de quem trabalha e não trabalha que agora o trabalho passa a ter um pouco o lugar que o trabalho ocupa na vida
tamos falando da mesma coisa? Acho formas de trabalho capitalista. Não é ao sujeito, agora “a-sujeitado”, uma
que não, e a leitura genealógica de uma condição natural prévia que sim- boa justificativa para não se colocar
Foucault certamente poderia nos aju- plesmente emergiu ou que é determi- como vencedor, competitivo ou, pelo
dar a fazer as distinções e compreen- nada pelo modelo de trabalho. menos, se deixando ficar à margem
do jogo. Não pode ser autor e não se
IHU On-Line – Quais são as prin- sente em condições sê-lo. Muitos vão
cipais patologias que surgem a partir se apegar a essa “forma de existência”,
1 Christophe Dejours: psicanalista e da relação dos trabalhadores com o considerando que há menos possibili-
psiquiatra, professor de psicologia no
Conservatoire national des arts et métiers. mundo do trabalho? dades para a proliferação de singulari-
Ele é autor de diversos livros, dos quais Fábio Alexandre Moraes – A mi- dades. Mesmo que haja um discurso
destacamos Souffrance en France: la nha perspectiva de análise é ampla, em contrário (na mídia, principalmen-
banalisation de l’injustice sociale (Paris:
Seuil, 1998); Travail, usure mental. Essay não é a da “psicologia do trabalho”. te), o mundo tem se tornado cada vez
de psycopathologie du travail (Paris: Defendo a ideia de que a “doença mais homogêneo, menos diverso.
Bayard, 2000). De Christophe Dejours mental” foi criada pela ciência que se
publicamos uma entrevista sobre esse
livro, na 15ª edição, de 29 de abril de 2002. objetivou como tal na configuração ca- IHU On-Line – Qual é a importân-
(Nota da IHU On-Line) pitalista, como, muito resumidamen- cia da transdisciplinaridade para uma
N
ão se trata de mera utopia. Ela pode pelos usuários. Junto de outras variáveis, essa
“ser alcançada quando nas cidades se seria uma forma importante de empowerment,
investe em saúde”. A ponderação é empoderamento, em português claro. “Tenho
da médica Rosana Onocko Campos na entre- gostado muito dessa forma de pesquisa que
vista que concedeu, via e-mail, à IHU On-Line, nos permite dar voz aos usuários, trazer à tona
tecendo considerações sobre a reforma psi- como eles enxergam os serviços e as relações
quiátrica no Brasil. De acordo com a pesqui- que ali conseguem cultivar”, menciona.
sadora, essa reforma “é de um grande valor Rosana Onocko Campos é graduada em
técnico-político, sobretudo em épocas em que Ciências Médicas pela Universidade Nacional
a psiquiatria clássica, entregue a interesses co- de Rosário, na Argentina. É mestre e doutora
merciais, pretende apresentar-nos (a todos os em saúde coletiva pela Universidade Estadual
reformistas) como burros, mal informados ou, de Campinas – Unicamp com a tese O planeja-
na melhor das hipóteses, como ingênuos ig- mento no labirinto (São Paulo: Hucitec, 2003).
norantes bem-intencionados”. Rosana explica, É uma das organizadoras da obra Desafios da
também, o projeto Saúde mental e cidadania, avaliação de programas e serviços em saúde
financiado pelo International Development Re- (Campinas: Editora da Unicamp, 2011). Lecio-
search Center – IDRC, do Canadá, e do qual ela na no Departamento de Medicina Preventiva e
é coordenadora. Suas estratégicas e temáticas Social da Unicamp.
de investigações buscam revelar um conheci- Confira a entrevista.
mento diferente do acadêmico, reapropriado
IHU On-Line – Em que consiste UFF, UFRGS, UFRJ, UECe) e do Canadá tífico entre pesquisadores e usuários,
o projeto Saúde Mental e Cidadania (Universidade de Montreal) com mo- experiência bastante inédita no Brasil
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(Santé Mentale Citoyennété)? Como vimentos de usuários de serviços des- e que está nos dando um trabalho ra-
essa iniciativa pode “empoderar” os sa área, pessoas que tiveram ao lon- zoável. É difícil conciliar a linguagem
usuários da saúde mental? go de sua vida diagnóstico de alguma científica com a linguagem da vida
Rosana Onocko Campos – Trata- doença mental e que se organizaram cotidiana, mas estamos intentando
-se um projeto de pesquisa e ação para fazer valer seus direitos e com- aproximá-las.
que é atualmente financiado pelo bater o estigma sempre associado às Essas estratégias e a temática
International Development Research doenças mentais. Eles têm participa- das investigações (avaliação de ser-
Center – IDRC, do Canadá, e que bus- do tanto da definição de temáticas viços, uso de medicação, experiência
ca aproximar a comunidade da aca- de investigação (focando, então, no do adoecimento, etc.) buscam dese-
demia. Recebemos 1 milhão de dóla- que seriam para eles as prioridades quilibrar um pouco o polo do poder,
res canadenses em cinco anos e isso de pesquisa) como também de inves- desta vez visando que ele seja reapro-
está nos permitindo financiar uma tigações de caráter participativo que priado pelos usuários. O reconheci-
rede de pesquisa em saúde mental, desenvolvemos, inclusive da fase de mento de que eles portam um saber,
que junta várias universidades pú- análise e divulgação. Estamos traba- sim, diferente do acadêmico, porém
blicas brasileiras (Unicamp, Unifesp, lhando na escrita de um artigo cien- não menos valioso; a conscientização
P
essoas como sujeitos de direitos e de- E complementa dizendo que a liberdade tem
sejos, que necessitam de autonomia e caráter terapêutico, enquanto a loucura é algo
autoria. Assim são os usuários de saúde próprio do humano e não pode ser “deposita-
mental, define a diretora do Departamento de da” em alguns seres, isolados em instituições.
Ações em Saúde – DAS da Secretaria Estadual “Os serviços devem se adaptar às necessidades
de Saúde do Rio Grande do Sul, Sandra Fagun- dos usuários, e não o contrário. O cuidado é
des, na entrevista que concedeu por e-mail à produzido no encontro, na implicação, na afec-
IHU On-Line. Contudo, seus direitos são, mui- ção entre pessoas”.
tas vezes, desrespeitados, e outros ainda nem Sandra Fagundes é graduada em Psicologia
foram conquistados. O estigma da loucura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
por exemplo, ainda não foi completamente Grande do Sul – PUCRS e mestre em educa-
superado, aponta. A psicanalista afirma que a ção pela Universidade Federal do Rio Grande
prática da psiquiatria sem o lugar e o estigma do Sul – UFRGS com a dissertação Águas da
do hospício se dá nos territórios: “ruas, casas, pedagogia da implicação: intercessões da edu-
instituições de saúde, de educação, de cultura. cação para políticas públicas de saúde. Dirige
Há continuamente produção de práticas mani- o Departamento de Ações em Saúde – DAS e
comiais – excludentes – na sociedade, nos di- tem uma longa história de militância na luta
versos territórios, fora dos hospícios, que pre- antimanicomial e reforma psiquiátrica no Rio
cisam ser reconhecidas, analisadas, superadas Grande do Sul. É uma das organizadoras da
e substituídas. Este é um exercício cotidiano”. obra Acolhimento em Porto Alegre: um SUS de
Ela ressalta a importância da aprovação da lei todos para todos (Porto Alegre: Prefeitura de
da reforma psiquiátrica, que mudou o estatuto Porto Alegre, 2004).
do “louco” para cidadão de direitos e desejos. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais você consi- psiquiátricos possíveis de ofertar por de Saúde Mental e entidades e gesto-
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dera as principais conquistas oriun- hospital geral. A lei é o eixo do arca- res aliados da reforma psiquiátrica.
das da lei da reforma psiquiátrica em bouço jurídico-político da política de
nosso país? atenção integral à saúde mental no es- IHU On-Line – O que a política
Sandra Fagundes – A lei em si e tado. Integra praticamente todos pla- pública da reforma psiquiátrica pre-
sua aprovação já foram conquistas e nos, justificativas de portarias e reso- vê para as pessoas que necessitam
evidenciaram que a sociedade gaúcha luções do âmbito da saúde mental no de cuidado em função de sua saúde
estava disposta a mudar o estatuto Rio Grande do Sul. A lei é viva, produz mental?
do “louco”: de excluído a cidadão de mobilização: na última década houve Sandra Fagundes – Prevê uma
direitos e desejos. A lei teve uma fun- tentativas de revogar ou modificar a rede de ações e serviços diversifica-
ção de “dique”: sua vigência impediu lei reintroduzindo o hospital psiquiá- dos nos territórios e cidades onde as
que novos hospitais psiquiátricos fos- trico entre os serviços de saúde men- pessoas vivem, incluindo: Unidades
sem abertos e que os antigos fossem tal. Todas as tentativas fracassaram Básicas de Saúde – UBS, equipes de
ampliados. Ou seja, estancou de fato pela mobilização da sociedade, em saúde da família, Centros de Atenção
o crescimento de leitos em hospitais especial usuários, trabalhadores e fa- Psicossocial – CAPS (criança, adoles-
psiquiátricos. A lei tem uma função miliares integrantes do movimento da cente, adultos e dependentes de uso
reguladora: regrou o limite de leitos luta antimanicomial – Fórum Gaúcho de drogas), serviços residenciais tera-
A
pós ter sido internado numa noite de Corte Interamericana de Direitos Humanos e
sexta-feira, no ano de 1999, na Casa de este mesmo tribunal internacional condenou
Repouso Guararapes, hoje desativada, o Brasil por violação de direitos humanos em
o brasileiro de nome Damião Ximenes faleceu 2006”.
na segunda-feira subsequente. O laudo médico As afirmações podem ser conferidas na en-
apontava como causa mortis uma parada car- trevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
diorrespiratória, mas os hematomas e sangue Martinho Braga Batista e Silva é graduado
espalhados pelo corpo desmentiam o que a em Psicologia pela Universidade de Brasília
oficialidade afirmava. A irmã de Damião não se – UnB e especialista em Saúde Mental pela
conformou e redigiu uma “carta-denúncia para Fundação Oswaldo Cruz. É mestre em Saúde
a Comissão Interamericana de Direitos Huma- Coletiva pela Universidade Estadual do Rio
nos – entre muitos outros órgãos, nacionais de Janeiro – UERJ e doutor em Antropologia
e internacionais, de saúde, justiça e direitos Social pela Universidade Federal do Rio de Ja-
humanos, dos poderes Executivo, Legislativo neiro – UFRJ com a tese Entre o “desmame” e
e Judiciário – ainda em 1999, denúncia esta os “galinha d’água”: a vida fora dos hospícios
que foi acolhida por este órgão do Sistema In- no contexto da primeira condenação do Brasil
teramericano de Direitos Humanos”, comenta por violação de direitos humanos. Docente na
o psicólogo Martinho Braga Batista e Silva. “A UERJ, organizou a obra Legislação em saúde no
ausência de resposta alimentou a suspeita de sistema penitenciário (Brasília: Ministério da
que o país tinha responsabilidade por violação Saúde, 2010).
de direitos humanos na morte de Damião Xi- Confira a entrevista.
menes. Em 2005, aconteceu o julgamento na
IHU On-Line – Poderia recuperar uma sexta-feira e a manhã de uma respiratória. Outro laudo médico, re-
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o contexto da primeira condenação segunda-feira, momento no qual veio alizado em outra cidade e por outros
do Brasil por violação de direitos hu- a falecer. Neste fim de semana não se médicos, apontou morte por causa
manos em relação à internação psi- sabe ao certo o que aconteceu, mas indeterminada.
quiátrica? Qual é a situação atual? O quando sua mãe o visitou na segunda- Então a internação psiquiátrica
que aconteceu no bojo dessa conde- -feira viu Damião ensanguentado e na Casa foi o ponto de partida do Caso,
nação ao nosso país? com hematomas no corpo, ouvindo de a relação de conflito entre a equipe
Martinho Braga Batista e Sil- uma funcionária do setor de limpeza de um estabelecimento médico e um
va – A primeira condenação do Brasil do então hospital psiquiátrico privado paciente desencadeando outras re-
por violação de direitos humanos, co- conveniado ao Sistema Único de Saú- lações de conflito, entre família e Es-
nhecida como Caso Damião Ximenes, de – SUS que ele tinha sido espancado tado, entre tribunais internacionais e
aconteceu justamente por conta de por outros funcionários, conhecidos estados nacionais, bem como entre
uma internação psiquiátrica. Damião como “monitores de pátio”, de modo sanitaristas e juristas. Isso é um dos
Ximenes Lopes ficou internado na que, quando recebeu a notícia de conteúdos da tese de doutorado por
extinta Casa de Repouso Guararapes, sua morte pouco depois desta visita, mim defendida em fevereiro de 2011
do município de Sobral, no Ceará, em estranhou em muito o laudo médico no Programa de Pós-Graduação em
outubro de 1999, entre a noite de apontando morte por parada cardior- Antropologia Social do Museu Nacio-
Tema de Capa
humildade
Em condições históricas que podem tornar tudo um “manicômio”, é preciso repensar
o poder do psiquiatra e da psiquiatria sobre a equipe e o cliente, pondera José
Jackson Sampaio Coelho. Atualmente saúde e doença são constitutivos de um
processo histórico-social, observa
“A
psiquiatria é uma especialidade mé- psiquiátrica, ponderando que ela é uma “di-
dica (clínica e epidemiologia), uma mensão do movimento antimanicomial, ope-
consultoria para as demais especia- rativo de uma linha de intervenção”. E resgata
lidades médicas (interconsulta) e uma medici- as origens da psiquiatria: “o psiquiatra nasce
na especial (psiquiatria social, na fronteira do como alienista, depois do grande asilamento
direito e da religião), dada a transcendência de da loucura, realizada por meio das grandes
seu objeto (a mente, diferente do cérebro, ob- instituições de segregação. A imprecisão con-
jeto do neurologista; do psiquismo, objeto do ceitual de loucura, hoje categoria do senso
psicólogo; e do inconsciente, objeto do psica- comum, foi entendida como obstáculo à codi-
nalista). Qual, portanto, a contribuição positi- ficação científica da disciplina, daí a criação do
va da psiquiatria à dimensão saúde mental do neologismo alienista/alienismo”.
campo da saúde coletiva? Essa é a grande per- José Jackson Coelho Sampaio é médico psi-
gunta que nos desafia à humildade”. A reflexão quiatra graduado pela ABP/AMB, mestre em
é do médico psiquiatra José Jackson Coelho Medicina Social pela Universidade Estadual do
Sampaio, em entrevista concedida por e-mail Rio de Janeiro – UERJ e doutor em Medicina
à IHU On-Line. E adverte: “O poder individual Preventiva pela Universidade de São Paulo –
do psiquiatra e da psiquiatria, sobre a equipe USP. É professor titular em Saúde Pública, líder
e o cliente, pode tornar-se poder da equipe do Grupo de Pesquisa Vida e Trabalho, docen-
e do campo da saúde mental sobre o cliente. te efetivo do Programa de Pós-Graduação em
Como já dissemos (...), nas nossas condições Saúde Coletiva da Universidade Estadual do
históricas, tudo pode tornar-se manicômio”. O Ceará – UECE.
médico aborda também a questão da reforma Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma foi natureza asilar, e não na natureza dos ciamento já inverteu o perfil e a so-
implementada no Brasil e quais são atores, passível de confusão com ação ciedade brasileira incorporou o novo
as maiores conquistas da reforma trabalhista ou corporativa. paradigma, embora não de modo ex- www.ihu.unisinos.br
psiquiátrica? O resultado da luta do MBRP, na tenso e homogêneo, mas conquistou
José Jackson Coelho Sampaio – década de 1990, foi a aprovação da parcela significativa da mídia. Além
O Movimento Brasileiro de Reforma lei federal e de várias leis estaduais, disso, a reforma psiquiátrica pública
Psiquiátrica – MBRP, constituído na como a do Ceará, por exemplo, que associou-se à reforma sanitária, inte-
década de 1990 e em torno da luta precede a federal em nove anos. O re- grando o campo da saúde mental na
pela aprovação do Projeto de Lei Paulo sultado da aplicação da lei, na primei- atenção primária, por meio dos Núcle-
Delgado, envolve quase o mesmo con- ra década do século XXI, é de eviden- os de Apoio à Saúde da Família – NASF
junto de atores de processo anterior, te e substantiva mudança no marco e do matriciamento a partir dos Cen-
surgido a partir da visita de Franco Ba- normativo e nas ações de atenção ao tros de Atenção Psicossocial – CAPS.
saglia ao Brasil, em 1979, e que era de- portador de transtorno mental no Bra-
nominado de Movimento dos Traba- sil. Os leitos psiquiátricos em hospitais Superação de paradigma
lhadores de Saúde Mental. Penso que especializados perderam 2/3 de seu
a mudança de denominação deveu-se número. A rede de Centros de Atenção Correspondendo aos conceitos
à convicção de que deveríamos focar Psicossocial rapidamente ultrapassou de loucura e de alienação, aquilo que,
no objetivo político do fim do mode- o número de mil unidades (no Ceará já groso modo, podemos chamar de as-
lo assistencial hospitalocêntrico, de ultrapassou as cem unidades), o finan- sistência psiquiátrica, estabelece uma
Movimento da Luta Antimanicomial do cuidado, a acessibilidade de todos mento em saúde mental”, “sistema de
– MLAM, voltado para uma crítica da ao jogo dialético dos direitos e de- saúde mental”), um conjunto de disci-
própria organização histórica brasilei- veres, a produção de subjetividades plinas e teorias (“a psicologia integra
ra, encontrando no estado burocráti- criativas e autônomas e o desenvol- os conhecimentos da saúde mental”)
co-autoritário e na herança colonial- vimento do protagonismo dos indiví- e um estado do ser compreendido
-escravista respaldo para uma miríade duos fundamentam a sociedade de- por certa qualidade comportamental
de expressões manicomiais (escola, mocrática, sem confundir democracia (“isto faz bem à saúde mental”).
família, empresa, etc.) da nossa vida com uma natureza possível (“liberal
societária. O MLAM tem apresentado burguesa”), uma forma possível (“de- IHU On-Line – Qual é a atuali-
objetivos amplos e resultados práticos mocracia representativa”), uma tática dade e a pertinência da concepção
muito pequenos, refugiando-se, gros- possível de gestão pública (“escolha do poder psiquiátrico, formulada por
so modo, entre psicólogos e assisten- dos governantes”), ou com a sim- Foucault para compreendermos e
tes sociais, e criticando os limites e a ples expansão da oferta de emprego/ repensarmos a psiquiatria e a saúde
identificação do MBRP com as políti- renda/trabalho. mental em nosso tempo?
cas de Estado. José Jackson Coelho Sampaio – A
equipe multiprofissional, interdiscipli-
Tema de Capa
Estado contra os “indivíduos
desviantes”
Os “novos desviantes sociais” poderão ocupar o lugar discursivo antes reservado
aos loucos, adverte Bernardo Salles Malamut. “Limpezas urbanas” como aquelas
promovidas no Rio de Janeiro e São Paulo, contra os usuários de crack, são exemplo
dessa lógica manicomial
O
hospital psiquiátrico voltou a ser o “o MUT, Bernardo Salles; MODENA, Celina Maria;
destino de todas as mazelas sociais PASSOS, Izabel C. Friche. A rede de atenção à
que ‘não poderiam’ frequentar a rua e saúde mental na visão de médicos psiquiatras:
a vida na cidade. Todos aqueles indivíduos que A Stultifera Navis contemporânea. In: Cader-
não se encontram incluídos no sistema de pro- nos Brasileiros de Saúde Mental: Cinquenta
dução do capital parecem destinados a serem anos de História da Loucura. v. 3, n. 6, 2011).
internados. O movimento que vemos no Rio Segundo esses profissionais, o hospital psiqui-
de Janeiro e em São Paulo a respeito da inter- átrico fica no lugar de “sustentação do discurso
nação compulsória dos usuários de crack é um da reforma”, porém ainda é imprescindível. “O
exemplo importante dessa lógica manicomial. hospital psiquiátrico ainda é complementar à
Uma verdadeira ‘limpeza urbana’ tem sido fei- rede dos serviços substitutivos, segundo os en-
ta, não mais ‘em nome da razão’, mas agora trevistados”, acentua Bernardo.
‘em nome da saúde’. Os entrevistados já em Bernardo Salles Malamut é graduado em
2010 mostravam isso: a psiquiatria a serviço do Psicologia pela Pontifícia Universidade Ca-
Estado e de sua intolerância com os indivíduos tólica de Minas Gerais – PUC Minas, e espe-
desviantes”. A afirmação é do psicólogo Ber- cialista em Psicanálise: teoria e prática pela
nardo Salles Malamut, em entrevista concedi- Universidade Fumec. É mestre em Ciências
da com exclusividade por e-mail à IHU On-Line. da Saúde pela Fiocruz com a dissertação O
Essas conclusões foram obtidas através da pes- poder e o dispositivo: hospital psiquiátrico na
quisa acadêmica realizada por Malamut em contemporaneidade.
2010 com nove médicos psiquiatras (cf. MALA- Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br
IHU On-Line – Qual é a visão dos nais. A pesquisa (MALAMUT, Modena modelo anterior, que tinha no discur-
médicos psiquiatras sobre a rede de & Passos, 2011a; MALAMUT, Modena so médico-psiquiátrico sua única bali-
atenção à saúde mental? & Passos, 2011b) visava compreender za. Porém, é a partir de 2004 – com a
Bernardo Malamut – Sobre a a articulação entre um determinado aprovação do Programa Anual de Re-
visão dos médicos psiquiatras como contexto sócio-histórico e sua impli- estruturação da Assistência Hospitalar
uma classe de indivíduos, eu não te- cação em uma produção discursiva, e no SUS – que a legislação institui me-
ria condições de responder, já que por isso a opção pela pesquisa qualita- canismos claros para a progressiva ex-
minha pesquisa a respeito do tema tiva. Então posso esclarecer somente tinção dos manicômios, não havendo
foi restrita a nove médicos psiquiatras os resultados dessa pesquisa específi- entretanto na lei da reforma nenhuma
que trabalhavam em um hospital psi- ca. Importante lembrar que a reforma garantia da construção de uma rede
quiátrico público. Não se tratava de psiquiátrica visa uma assistência na assistencial, já que a rede é maior que
uma pesquisa que buscava obter uma rede, envolvendo os diversos apara- o conjunto dos serviços que a consti-
generalização através de uma amos- tos disponíveis, e em rede, abarcando tui. Assim, a rede que se constitui na
tra numérica, mas sim que buscava os vários atores que compõem a vida visão dos entrevistados está muito
obter um aprofundamento analítico do usuário na cidade, rompendo com aquém do necessário, e não consegui-
a partir do discurso desses profissio- a lógica segregadora e exclusivista do ria substituir o hospital psiquiátrico.
sa vir a público. Uma enorme mudan- o tempo todo tema dos entrevistados. grega. Entre suas obras, citamos: Eichmann
ça, entretanto, é sentida por todos os Sabemos que os usuários do sistema em Jerusalém - Uma reportagem sobre
a banalidade do mal (Lisboa: Tenacitas.
entrevistados – o hospital tornou-se de atenção à saúde mental sempre ti- 2004) e O Sistema Totalitário (Lisboa:
visível e com isso muito mais vigiado. veram uma “relação” próxima com o Publicações Dom Quixote.1978). Sobre
Isso é de enorme importância para a tema: ou acusados de promotores de Arendt, confira as edições 168 da IHU On-
Line, de 12-12- 2005, sob o título Hannah
reforma psiquiátrica, porque aponta atos violentos ou então sendo alvo de Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três
que o controle social é uma ferramen- terapêuticas bárbaras; e é importante mulheres que marcaram o século XX,
ta e instrumento de lutas políticas im- dizer como o combate à violência é disponível para download em http://bit.
ly/qMjoc9 e a edição 206, de 27-11-2006,
portantes. Os atos terríveis, que antes uma das principais bandeiras da refor- intitulada O mundo moderno é o mundo
eram cometidos “em nome da razão”, ma psiquiátrica. Em minha pesquisa sem política. Hannah Arendt 1906-1975,
hoje são moderados pelo olhar social. utilizei dos conceitos de violência em disponível para download em http://bit.
ly/rt6KMg. Nas Notícias Diárias de 01-
Porém, é importante lembrar que Arendt1 e poder em Foucault. Os en- 12-2006 você confere a entrevista Um
os entrevistados enfatizam um novo pensamento e uma presença provocativos,
‘perigo’: o hospital psiquiátrico tem concedida com exclusividade por Michelle-
1 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e Irène Brudny em 01-12-2006, disponível
voltado a ser o destino de todas as socióloga alemã, de origem judaica. Foi para download em http://bit.ly/o0pntA.
mazelas sociais que “não poderiam” influenciada por Husserl, Heidegger e Karl (Nota da IHU On-Line)
Tema de Capa
não poderiam ser atos exclusivamen- constituiu um marco na reforma psi-
te violentos, pois, se assim fossem, quiátrica. Em Belo Horizonte – local
eles em nada se distinguiriam de um
sequestro ou da prisão do corpo do
que sigamos em que moro – isso é claro na história
da reforma psiquiátrica. A psicanálise
outro. Desse modo, o jogo de poder
entra em cena. O poder não precisa
reinventando dá novamente voz ao louco, fazendo
da psicose um paradigma da liberda-
ser justificável, porque é próprio da
existência de comunidades; o que o
espaços coletivos de. Todavia, penso que é preciso valer-