Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
IJUÍ/RS
2018
IJUÍ/RS
2018
2
Catalogação na Publicação
A485e
Amaral, Antonio Carlos Gonçalves do.
Um espaço pedagógico de construção da autonomia possível às
pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si / Antonio Carlos
Gonçalves do Amaral. – Ijuí, 2018.
221 f. : il. ; 30 cm.
CDU: 616.89
DEDICATÓRIA E AGRADECIMENTOS
EPÍGRAFE
Epitáfio
Titãs
RESUMO
O estudo envolve as pessoas com esquizofrenia e seus familiares no CAPS II, na cidade de
Ijuí, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil. No total, foram entrevistados vinte e um (21)
usuários e vinte e um (21) de seus familiares. A pesquisa tem como problemática: “Um
espaço pedagógico de construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o
melhor cuidar de si”. Trata-se de uma pesquisa qualitativa descritiva compreensiva de Minayo
(2013), acrescida da análise de conteúdo de Bardin (2011). Contém um resumo histórico da
reforma psiquiátrica no Brasil, associando-a com a fala dos usuários e de seus familiares no
atual contexto da mesma. Adquirem destaque na reforma psiquiátrica os usuários e os seus
familiares no papel de protagonistas na produção de conhecimento. A Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) recebe atenção especial por ser um indispensável referencial para o
momento atual da saúde mental no Brasil. O CAPS II, como território pedagógico, por meio
do grupo mostra o enfrentamento dos déficits cognitivos, frequentemente presentes nas
pessoas com esquizofrenia, por meio de um relato da circulação dos usuários por diferentes
“territórios culturais” da cidade de Ijuí e da região. No processo educativo, usa-se a educação
popular como um método para dialogar com os usuários e seus familiares sobre esta nova
realidade possível em saúde mental, qual seja, a construção da autonomia possível às pessoas
com esquizofrenia para o melhor cuidar de si. Associam-se, necessariamente, a participação
familiar e sua observação da participação ativa e criativa dos usuários por meio da técnica do
grupo operativo (PICHON RIVIERE 2009). Examina-se a autonomia como um processo de
emancipação, na visão de Freire (2013) por meio de uma educação popular, e na
contextualização de Foucault (2014) a partir do cuidado de si. O aprendizado da autonomia
para o cuidar de si é o que se espera encontrar nas respostas dos usuários e de familiares tendo
como pano de fundo o “grupo operativo-terapêutico”. É necessário que, além da inclusão
social da pessoa com esquizofrenia inicialmente em sua família e na própria comunidade, se
evidencie o quanto de empoderamento essas pessoas estão conquistando para o cuidar de si
nesse processo de retorno à sua comunidade e à sua própria família. Observa-se ao longo
desta investigação o quanto o “grupo operativo-terapêutico” pôde constituir-se num espaço
pedagógico para a construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o
melhor cuidar de si.
SUMMARY
The study involves people with schizophrenia and their families at the CAPS II, in the city of
Ijuí, in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. In total, twenty one (21) users and twenty one
(21) of their families were interviewed. The research has as problematic: "A pedagogical
space of construction of the possible autonomy to the people with schizophrenia for the best
care of itself". This is a comprehensive descriptive qualitative research by Minayo (2013),
plus content analysis, Bardin (2011). It contains a historical summary of the psychiatric
reform in Brazil, associating with the speech of the users and their relatives in the current
context of the same. Users and their families are prominent in the psychiatric reform, as
protagonists in the production of knowledge. The Psychosocial Care Network (RAPS)
receives special attention for being an indispensable reference for the current moment of
mental health in Brazil. The CAPS II as a pedagogical territory, through the group, shows the
confrontation of the cognitive deficits, frequently present in people with schizophrenia,
through an account of the circulation of the users by different "cultural territories" of the city
of Ijuí and the region. In the educational process, popular education is used as a method to
dialogue with users and their families about this new possible reality in mental health, that is,
the construction of the possible autonomy for people with schizophrenia to take better care of
themselves. The family participation and observation of the active and creative participation
of the users are necessarily associated with the technique of the operating group (PICHON
RIVIERE 2009). Autonomy is examined as a process of emancipation, in the vision of Freire
(2013) through a popular education, and in the contextualization of Foucault (2014) from
caring for oneself. The learning of autonomy to care for oneself is what one expects to find in
the responses of the users and their relatives, against the background of the "therapeutic-
operative group”. It is necessary that, in addition to the social inclusion of the person with
schizophrenia, initially in their family and in the community itself, it is evident how much
empowerment these people are conquering to take care of themselves in this process of return
to their community and to their own family. It is observed throughout this investigation how
the "operative-therapeutic group” could constitute a pedagogical space for the construction of
the possible autonomy to the people with schizophrenia to the best care of itself.
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Classificação dos pacientes em relação à idade no CAPS II, Ijuí/RS - 2013 ......... 79
Tabela 2 - Classificação dos pacientes em relação à escolaridade no CAPS II, Ijuí/RS -
2013...........................................................................................................................................80
Tabela 3 - Classificação dos pacientes em relação ao estado civil no CAPS II, Ijuí/RS - 2013
.................................................................................................................................................. 81
Tabela 4 - Classificação dos pacientes em relação à renda declarada no CAPS II, Ijuí/RS -
2013 .......................................................................................................................................... 81
Tabela 5 - Tempo de participação dos pacientes no grupo no CAPS II, Ijuí/RS - 2013 ........ 82
LISTA DE GRÁFICOS
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................181
REFERÊNCIAS......................................................................................................................186
APÊNDICES..........................................................................................................................194
ANEXOS................................................................................................................................210
12
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Eis uma forte inquietação para a realização desta pesquisa: é possível trabalhar com os
usuários do CAPS II na cidade de Ijuí/RS e seus familiares na produção do conhecimento,
tornando-os protagonistas em um processo de pesquisa em educação na saúde mental?
Considero que a participação dos usuários e de seus familiares na pesquisa em saúde é um dos
temas cruciais no debate da saúde pública e para a construção de conhecimentos sobre o momento
atual da saúde, em especial, a saúde mental, objeto de nosso estudo.
O estudo tem como problemática “Um espaço pedagógico de construção da autonomia
possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si”. Esta pesquisa pode ser
uma vivência prática do quanto essa participação das pessoas com esquizofrenia viabiliza a
produção de conhecimentos para a saúde mental. É oportuno lembrar “Saber que ensinar não é
transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”
(FREIRE, 2013, p.47).
Outra importante motivação para a realização desta pesquisa se dá pela necessária
aproximação entre as áreas da saúde e da educação. Esta aproximação vem ocorrendo ao
longo de minha vivência profissional, pois iniciei minhas atividades profissionais com a
formação básica em Farmácia, especialização em Análises Clínicas, como professor junto a
alunos do ensino técnico em Análises Clínicas em escolas públicas e particulares na cidade de
Santa Maria/RS, no fim dos anos 70, início dos anos 80. Esta oportunidade me possibilitou
uma rica experiência de diálogo e aproximação entre escola e comunidade através das
atividades de pesquisa e prevenção em saúde pública por meio de trabalhos na disciplina de
14
1
Índice de Verminose na comunidade da Vila Maria (1979) uma comunidade com alta vulnerabilidade social, na
cidade de Santa Maria e que despertou em todos os envolvidos (alunos, professores, lideranças da comunidade) o
interesse pelo processo de educação em saúde na referida comunidade.
2
No presente estudo tomo como conceito de grupo operativo aquele grupo que visam “operar” com uma tarefa
definida, especialmente ligada ao aprendizado e podem ser divididos em quatro subtipos: ensino-aprendizagem,
institucionais, comunitários e terapêuticos, e como grupo terapêutico o que permite o “insight” para mudanças.
(ZIMERMAN apud PEREIRA, 2013, p.26). A tarefa nesta pesquisa é o conhecimento da doença mental
associada a capacidade do usuário em cuidar de si. E terapêutico para significar que o aprender a cuidar de si está
sendo um insight/empoderamento para o usuário. Sendo assim na presente pesquisa uso o termo “grupo
operativo-terapêutico”. (grifo meu).
15
3
Comunidade: A comunidade tem um locus territorial especifico e logo a seguir ele cita: “Comunidade é uma
coletividade de atores que partilham de uma aérea territorial limitada como base para o desempenho da maior
parte das atividades cotidiana”. (Dicionário de Ciências Sociais, 1986, p.229).
16
Existe uma forte correlação entre déficits funcionais e déficits cognitivos. Para
Pontes & Elikis 2013, p. 18, os principais déficits cognitivos, quando presentes, encontram-se
no âmbito da:
Pela importância das funções cognitivas, especialmente para atividades diárias, fica
evidente o prejuízo no desempenho do dia-a-dia das pessoas com esquizofrenia. Para Tufrey
(2010), na área da esquizofrenia é consenso entre os autores que a disfunção cognitiva
constitui uma característica elementar da patologia, sendo um fator de prognóstico importante
no que diz respeito à autonomia, à qualidade de vida do doente e ao funcionamento em
comunidade. Pesquisas que estudam o comprometimento cognitivo das pessoas com
esquizofrenia podem enriquecer as alternativas terapêuticas a essas pessoas. Elas têm
indispensável importância para viabilizar a inclusão social, com a autonomia possível aos
usuários de um serviço de saúde mental.
Marder (2004) detaca o projeto Measurement and Treatment Units for Research to
Improve Cognition in Schizophrenia (MATRICS) que envolve os centros norte-americanos de
pesquisa acadêmica, a indústria farmacêutica e a Food and Drug Administration (FDA). Essa
pesquisa visa identificar os déficits cognitivos da esquizofrenia e alternativas medicamentosas
e intervenções psicossociais para serem utilizadas no tratamento desses sintomas.
Sabe-se que existem diversas funções cognitivas que podem estar comprometidas
pela esquizofrenia. Como parte integrante do projeto MATRICS foi criado em parceria entre
os EUA e a Inglaterra o Cognitive Neuroscience Treatment Research to Improve Cognition in
Schizophrenia- (CNTRICS). Com auxílio do pesquisador Carter (2007), estabeleceram-se
neste centro seis parâmetros nos domínios cognitivos: Working memory, controle executivo,
atenção, memória de longo prazo, recepção e processamento social/emocional para a
investigação clínica das alterações neurocognitivas na esquizofrenia.
Em relação aos déficits cognitivos nas pessoas com esquizofrenia considero
indispensável destacar o papel da medicação antipsicótica, em especial neste estudo na cidade
de Ijuí/RS, onde os usuários utilizam, prioritariamente, como medicação a clozapina,
17
4
Neste contexto, uso o termo espaço como um novo meio para novos e diferentes estímulos (contribuições
educativas) que são oferecidos de forma regular e sistemática aos usuários (reuniões semanais do grupo com
duração média de uma hora) e aos familiares (reuniões mensais)
19
5
HEIDRICH, Andreia Valente, autora da: Reforma Psiquiátrica à brasileira: análise sob a perspectiva da
desinstitucionalização. Tese de Doutorado, (HEIDRICH, PUC 2007).
6
Autonomia: Assim, autonomia é um processo de decisão e de humanização que vamos construindo
historicamente, a partir de várias, inúmeras decisões que vamos tomando ao longo de nossa existência.
Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se construindo nas experiências
de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.)
Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 53)
20
Uma maneira de contribuir para que a pessoa com esquizofrenia se sinta integrada
no ambiente familiar é incentivando sua autonomia nas tarefas cotidianas em que ela
tem capacidade para mostrar sua eficiência. Isto pode contribuir para que ela se sinta
capaz de enfrentar novas situações.
7
Emancipatória: O processo emancipatório freiriano decorre de uma intencionalidade política declarada e
assumida por todos aqueles que são comprometidos com a transformação das condições e de situações de vida
dos oprimidos, contrariamente ao pessimismo e fatalismo autoritário defendido pela Pós-Modernidade, como
aponta o professor Jaime José Zitkoski (2006), e ao mecanismo etapista do marxismo ortodoxo, que afirma que o
processo de transformação social como sendo “certo” e “inevitável” (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI,
J.J. (orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 146)
21
Também recorro a Firmo (2015), que destaca a família como o local onde os
cuidados entre seus membros tencionam-se entre tutela e libertação e o quanto estes
elementos se farão presentes de uma ou de outra forma nas relações sociais, inclusive de
forma especial em nosso estudo na área da saúde mental. Para o autor as relações de cuidado,
poder e autonomia envolvidas revelam a família como produto e produtora das práticas de
saúde (FIRMO, 2015, p.222).
A respeito do que entende por “cuidado”, Firmo (2015) destaca em seu artigo
“Experiências dos cuidadores de pessoas com adoecimento psíquico em face à reforma
psiquiátrica: produção do cuidado, autonomia, empoderamento e resolubilidade” que cuidado
não se trata meramente do emprego de técnicas, mas toma o “cuidado” como um processo de
responsabilidade com os usuários, com os familiares, na produção de autonomia,
empoderamento e resolutividade. Em suas palavras a esse respeito, cuidado não é apenas
aplicação de técnicas, mas sim um processo de corresponsabilidade ante a busca pelo bem-
estar junto de quem o demanda.
Alves (2013) se refere a cuidado como o sentimento de compreensão por outro igual,
que pode muitas vezes ter mais facilidade de compreendê-lo que um “técnico em saúde
mental”. Destaca em suas próprias palavras o que pensa a respeito do cuidado estendido ao
outro:
importante, em particular quando atuam como cuidadores dos pacientes. Essa é uma
informação privilegiada, pois os familiares constituem os principais provedores de cuidados
cotidianos aos pacientes (BANDEIRA, 2014, p.42).
Bandeira (2014) em seu livro “Avaliação de serviços de Saúde Mental, princípios
metodológicos, indicadores de qualidade e instrumentos de medida” apresenta indicadores de
qualidade pertinentes para a realização de estudos avaliativos rigorosos sobre os pontos de
vista subjetivos dos diferentes atores (“pacientes”, familiares e profissionais) e suas
participações nos serviços de saúde mental.
É necessário fazer reflexões a esse respeito, pois tais estudos podem ter importantes
contribuições para o constante e saudável processo de reciclagem do movimento da reforma
psiquiátrica em nossa comunidade. Nas particularidades do movimento da reforma
psiquiátrica em nosso meio, esta pesquisa pode ser uma oportunidade de analisar e estimular a
participação dos familiares nos tratamentos das pessoas com sofrimento psíquico crônico.
Pode, assim, contribuir para reduzir o estigma e a sobrecarga que essas famílias carregam ao
longo de suas vidas, e ajudá-las na construção da autonomia possível a essas pessoas com
psicose crônica.
A respeito do estigma em saúde mental procuro evitar na presente pesquisa o termo
“paciente”8, pois ele pode estar associado a uma ideia de passividade. Do mesmo modo evito
o termo “doente mental”, que pode ter um aspecto reducionista, organicista em que o
indivíduo é reduzido a um órgão ou a uma doença, característico do “Modelo Biomédico”.
Assim o fazendo, espero contribuir para a redução do intenso estigma que acompanha o
“rótulo” de certas “doenças mentais”, associadas com a loucura (“o louco”). Ao contrário, de
forma mais ampla e integradora, a dimensão da “pessoa” em seu contexto sociofamiliar está
enfaticamente presente no modelo biopsicossocial. Outro termo associado a este modelo é o
termo “usuário”, que implica os direitos de alguém que usa um serviço público, portanto
estreitamente associado ao ato de cidadania.
Essas mudanças conceituais se fazem presentes nesta pesquisa de doutorado, o que,
por si só, considero um significativo aprendizado neste processo de construção da identidade
profissional, tendo em vista que na pesquisa de mestrado (Amaral, 2013) ainda não tinha
valorizado adequadamente essas diferenças conceituais, e que poderão ser vistas quando o
referido mestrado for citado e onde aparecerá o termo paciente. Acrescento que essas
8
Paciente: A palavra paciente vem do latim "patientem": o que sofre, o que padece. Este sentido primitivo pode
ser encontrado também na Gramática, onde dizemos que, na voz passiva, o sujeito que "sofre" a ação do verbo é
o "sujeito paciente" https://www.dicionarioetimologico.com.br/paciente/ acessado em 14/09/2017
23
mudanças a partir de meu aprendizado não se restringem apenas aos aspectos conceituais, mas
também à forma como vejo e me relaciono com essas pessoas em meu cotidiano. Evidencio,
assim, o quanto o Mestrado e o Doutorado em Educação nas Ciências podem contribuir na
discussão integradora dos referenciais teóricos e práticos de forma construtiva para a reflexão
da atuação e identidade profissional de seus participantes.
Entretanto, a par desta importante preocupação com os diferentes referenciais teóricos
utilizados em saúde mental, reputo oportuno caracterizar o que a literatura médica, de forma
consensual, considera como os sintomas mais característicos da pessoa com esquizofrenia.
Quanto aos sintomas apresentados por pessoas com esta psicose crônica (esquizofrenia),
podem ser classificados da seguinte forma, utilizando-se o Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (D.S.M. V) 2014, p.87:
Sintomas positivos: delírios, alucinações, desorganização do pensamento;
Sintomas negativos: diminuição da vontade e da afetividade, o empobrecimento
do pensamento e o isolamento social;
Sintomas cognitivos: dificuldade de atenção, concentração, compreensão e
abstração.
Sintomas afetivos: a depressão, a desesperança, e as ideias de tristeza e ruina,
inclusive autodestrutivas.
Apesar do alívio desses intensos sintomas em diferentes momentos na vida da pessoa
com esquizofrenia, na atual realidade do CAPS II, na cidade de Ijuí, percebe-se que não basta
a desinstitucionalização e que as propostas de tratamento na comunidade se referenciem
somente em modelos interrogatórios (baseados no normal e anormal) e na medicalização.
Portanto questiono o quanto é necessário um adequado espaço de atenção aos usuários e seus
familiares onde possam ser oferecidas novas alternativas de tratamento à pessoa com
sofrimento mental crônico em sua comunidade local. Uma possível solução é que nesse novo
espaço a pessoa seja prioritariamente ouvida, não só em suas queixas, mas também em que
contexto ocorreu seu adoecimento, quais seus desejos e suas possibilidades de realização. Na
problemática desta pesquisa, o quanto este espaço pode viabilizar as diferentes contribuições
educativas, em especial a participação do familiar no tratamento, o que pode ser indispensável
para a conquista da autonomia possível à pessoa com esquizofrenia.
Para Santin (2011), a partir dessa reformulação no atendimento às pessoas com
sofrimento mental em sua própria comunidade, os sujeitos que antes viviam enclausurados
nos hospitais psiquiátricos agora podem contar com um tratamento mais próximo de seus
24
Porém, nossa sociedade, bem como as famílias, estão pouco preparadas e amparadas
para acolher o portador de sofrimento psíquico, havendo ainda uma lacuna entre o
cuidado que se tem e o cuidado que se almeja ter em saúde mental. Por outro lado,
muitos são os esforços empreendidos pelos serviços e pelos profissionais da saúde
na busca por reverter a lógica de atenção à saúde mental arraigada na nossa cultura,
em que prevaleceu por muitos anos, a exclusão e o preconceito.
muito tempo ela é merecedora pela sua dedicação na humanização do tratamento dos “doentes
mentais” a quem ela chamava de clientes, numa maneira inovadora de referir-se ao doente
mental, ao “louco”. É possível observar a evolução do discurso da loucura e sua relação com
importantes autores e pesquisadores/as na área da saúde mental de diferentes nacionalidades e
suas decisivas contribuições para a reforma psiquiátrica que modificou o olhar subjetivante
para essa “pessoa diferente”. Faço um resumo histórico da reforma psiquiátrica no Brasil,
associando-a com a fala dos usuários e de seus familiares no atual contexto da mesma.
Constitui-se uma necessidade estimular o papel de protagonista aos usuários e aos seus
familiares na produção de conhecimento em saúde mental. A Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) recebe uma atenção especial por ser um indispensável referencial para o momento
atual da saúde mental no Brasil. Ressalto a necessidade de mudança do modelo
hospitalocêntrico (Biomédico) para o de atendimento das pessoas com sofrimento psíquico
crônico na sua própria comunidade (Biopsicossocial).
Examino no terceiro capítulo, Saúde mental e Comunidade local, a contextualização
de comunidade na pós-modernidade para chegar à realidade atual da cidade de Ijuí, e das
contribuições formais e informais possíveis à saúde mental pela comunidade local, bem como
questionar algumas resistências ainda presentes para um melhor acolhimento à pessoa com
sofrimento mental crônico em seu próprio território (ambulatório) de referência. Estudo
também as principais características das pessoas com esquizofrenia, usuários do CAPS II de
Ijuí, que participam da presente pesquisa de doutorado. O CAPS II como território
pedagógico mostra o enfrentamento dos déficits cognitivos, frequentemente presentes na
esquizofrenia, por meio de um relato da circulação dos usuários por diferentes “territórios
culturais”. Esses estímulos culturais permitem a cada um o enriquecimento de seu mundo
interno e assim viabilizar melhores condições para conquistar sua própria emancipação.
Destaco uma das atividades dos usuários deste serviço, enriquecida por um fragmento da arte-
terapia, para mostrar uma alternativa terapêutica de que a saúde mental pode dispor frente ao
forte estímulo ao uso excessivo de medicamentos que ainda teima em permanecer presente
nos dias atuais.
No quarto capítulo, O Processo Educativo, analiso a Educação Popular como um
método para dialogar com os usuários e seus familiares sobre esta nova realidade possível em
saúde mental, qual seja, a construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia
para o melhor cuidar de si, necessariamente associada à participação familiar e a observação
da participação ativa e criativa dos usuários por meio de um grupo “operativo-terapêutico”.
Isso permite a esses usuários uma nova subjetivação que não a do “louco inválido”. Discorro,
26
ainda, sobre o papel do grupo como espaço na comunidade onde devem ocorrer trocas de
vivências entre todos os envolvidos, o que viabiliza a construção de novos relacionamentos,
ajudando, assim, a pessoa com esquizofrenia a sair de seu isolamento. Destaco em especial o
“grupo operativo-terapêutico” como um espaço de enfrentamento ao modelo biomédico de
assistência em saúde mental o qual prioriza intensamente a medicalização.
No quinto capítulo, Autonomia como processo libertador para o cuidar de si,
inicialmente abordo a necessidade de o usuário e seu familiar vencerem preconceitos para
criarem as condições para uma nova subjetivação, sem esquecer-se de outros temas que ainda
se fazem presentes, de forma inquietante em nossos dias, tais como exclusão e inclusão social,
cujos enfrentamentos são inevitáveis para que uma nova subjetivação, com autonomia, seja
possível à pessoa com sofrimento mental crônico (psicose crônica).
Destaco os referenciais para subjetivação em saúde mental, de maneira especial o de
autonomia no processo de libertação para o cuidado de si. Examino a autonomia como um
processo de emancipação na visão de Freire (2013) por meio de uma educação popular, e na
contextualização de Foucault (2014) a partir do cuidado de si. O aprendizado da autonomia
para o cuidar de si é o que se espera encontrar nas respostas dos usuários e familiares tendo
como pano de fundo o “grupo operativo-terapêutico”.
Essas respostas são reunidas como elementos a serem refletidos pela análise de
conteúdo a partir da pesquisa de mestrado (2013) e aprofundadas na atual pesquisa de
compreensão da autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental e sua relação
com a participação familiar neste processo emancipatório e de construção da cidadania às
pessoas com esquizofrenia. São acrescidas pela entrevista, em que colaboro na construção do
retrato sociológico de uma usuária do CAPS II, obtido no percurso da atual pesquisa. Este
retrato sociológico é representativo, pois permite observar as resistências sociofamiliares que,
atualmente, ainda dificultam o processo do cuidado de si aos usuários de um serviço de saúde
mental.
Discorro nas Considerações Finais sobre o processo construtivo da autonomia das
pessoas que vivem às margens do social, neste estudo as que sofrem de esquizofrenia e, por
consequência, de diferentes formas de discriminação e de opressão. Autonomia que significa
para Freire (2013) dar-lhe poder e liberdade no contexto emancipatório, e para Foucault
(2014) um novo discurso com elementos para construção de uma nova subjetivação,
especialmente ligado à estética do cuidado de si.
É necessário que além da inclusão social das pessoas com esquizofrenia, inicialmente
em sua família e na própria comunidade, se evidencie o quanto de empoderamento essas
27
pessoas estão conquistando para o cuidar de si nesse processo de retorno à sua comunidade, à
sua família. Para que isto ocorra, observo ao longo desta investigação o quanto pode ser
indispensável estimular uma maior participação/cooperação dos familiares no tratamento em
saúde mental na comunidade de Ijuí e, em especial, no espaço do grupo.
28
9
Na pesquisa de mestrado (Amaral 2013) o termo mais adequado seria o de grupo operativo (tarefa de inclusão),
pois só agora na atual pesquisa os usuários estão em condições de apropriarem-se de suas experiências
(insight/empoderamento). Por isso passo a usar o termo “grupo operativo-terapêutico”. (grifo meu)
29
busca de sua inclusão social. Na dissertação de mestrado (2013) defendi a ideia de que o
grupo, por meio de uma educação dialógica entre seus participantes, constitui-se num espaço
efetivo para o processo de inclusão social da pessoa com doença mental em sua comunidade
e, em especial, em sua própria família.
Com esse estudo avaliei o grupo e sua real competência como alternativa terapêutica
para a inclusão social das pessoas com esquizofrenia em tratamento no CAPS II de Ijuí/RS,
operacionalizada por meio de uma prática de ensino e aprendizagem num grupo de atividade
interdisciplinar. Essa problematização foi necessária em razão do retorno das pessoas com
esquizofrenia à sua comunidade após períodos prolongados de institucionalização e da
necessidade de um local na comunidade para as práticas educativas e inclusivas em saúde
mental, considerando o despreparo da família e da própria comunidade para recebê-las.
Evidenciou-se ao final dessa pesquisa de mestrado o quanto o grupo constitui-se num espaço
efetivo no processo de inclusão das pessoas com psicose crônica junto ao CAPS II, na
cidade Ijuí/R.S.
A inquietação desencadeada a partir dessa prática de inclusão social da pessoa com
esquizofrenia refere-se à excessiva dependência dessas pessoas a suas famílias, ao próprio
CAPS II e à excessiva medicalização, fazendo-se necessário um local adequado à discussão
da autonomia possível na vida destes usuários, o que considero indispensável na construção
de sua cidadania10. A presente pesquisa possibilita, também, abordar o movimento da reforma
psiquiátrica e refletir sobre o seu atual momento na comunidade de Ijuí, o que pode ser feito
com a ajuda de várias áreas de conhecimentos, especialmente da saúde e da educação, e que
são tão caras a todos que trabalham em saúde mental.
A partir da dissertação de mestrado, Amaral (2013), criaram-se as condições e
motivações para a realização da presente pesquisa “Um espaço pedagógico de construção da
autonomia possível às pessoas com esquizofrenia para o melhor cuidar de si”.
Nesta pesquisa estudo, no período de 2004 a 2014, a viabilidade do grupo
“operativo-terapêutico” ser um espaço para construção da autonomia possível aos usuários do
CAPS II, na cidade de Ijuí. A pesquisa contou com a devida autorização pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Unijuí com o nº C.A.A.E.: 61720416.0.0000.5350. Destaco que os grupos
reúnem-se semanalmente, com duração de aproximadamente 50 minutos. Esses grupos
10
Cidadania: A cidadania em Freire é compreendida como apropriação da realidade para nela atuar,
participando conscientemente em favor da emancipação[...] Todo ser humano pode e necessita ser consciente de
sua cidadania. É necessário que seja consciente de sua situação e de seus direitos e deveres como pessoa
humana. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte:
Autentica Editora 2010. p. 67)
30
estudados são em número de três (3), cada grupo com média de oito (8) participantes, sendo
que três (3) não preencheram as condições de participar da pesquisa, totalizando um número
de 21 participantes.
Todos os participantes da pesquisa preencheram os seguintes critérios de seleção:
a) Usuários:
- Ter idade igual ou superior a 18 anos e ser alfabetizado;
- Ser usuário em tratamento prévio no CAPS II, de Ijuí/RS;
- Ser uma pessoa em tratamento para psicose crônica (esquizofrênicos);
- Fazer uso de medicação antipsicótica de segunda geração, ou atípica, isto ´é,
com um mínimo de efeitos colaterais, preferencialmente clozapina. Quando do uso de
clozapina, deverá ser considerada avaliação clínica prévia para excluir condições clínicas
que contra indiquem o seu uso, bem como a realização de exames periódicos de controle
hematológico;
- Aceitar participar e apresentar condições psíquicas de responder ao
instrumento de coleta de dados;
- Participar de uma reunião semanal realizada com o grupo de usuários, com
duração aproximada de 50 minutos;
- Estar acompanhado de um familiar na 1ª reunião do mês realizada com o grupo
de usuários;
- O participante do estudo não pode apresentar três faltas consecutivas sem
justificativa nas reuniões, conforme normas estabelecidas na constituição do grupo, pois
isto implicará o seu desligamento do grupo.
b) Familiares:
- Ter idade igual ou superior a 18 anos e ser alfabetizado;
- Acompanhar regularmente o seu familiar enfermo em seu tratamento;
- Aceitar participar e apresentar condições psíquicas de responder ao
instrumento de coleta de dados.
c) Riscos:
- Na ocorrência do usuário ou do familiar durante a aplicação do instrumento de
coleta de dados apresentar qualquer alteração física ou psíquica, este receberá
imediatamente atendimento adequado e poderá continuar como participante da pesquisa
em outro momento, se assim o desejar;
- Se suceder que algum dos participantes da pesquisa se sinta constrangido ou
desconfortável em responder a qualquer uma das questões que compõem o instrumento de
31
“temas” através dos quais faço uma análise das vivências dos usuários e de seus familiares e a
relação com a problemática estudada.
Na metodologia da Análise de Conteúdo considero oportuno dar destaque aos seus
elementos técnicos:
As categorias
No mestrado, (Amaral, 2013. p.9) as categorias, associadas às perguntas feitas aos
pacientes e aos seus familiares, aparecem na seguinte ordem:
Categoria 1-Empatia com o sofrimento mental do outro
Categoria 2- Percepção do sofrimento mental
Categoria 3- Capacidade de lidar com o estigma e o preconceito
Categoria 4: Socialização no ambiente familiar
Categoria 5-Confiabilidade no outro
Categorias 6: Capacidade de iniciativa em interações sociais
Categorias 7: Tempo gasto com o lar, trabalho e estudos
Categorias 8: Capacidade de autonomia.
Na presente pesquisa, as categorias são reagrupadas por afinidade em dois temas,
possibilitando uma melhor análise com a problemática atual, qual seja o grupo como espaço
pedagógico para a construção da autonomia possível aos usuários do CAPS II, de Ijuí/RS.
TEMA-I “CONHECENDO A ENFERMIDADE MENTAL”.
Categoria 1-Empatia com o sofrimento mental do outro
Categoria 2- Percepção do sofrimento mental
Categoria 3- Capacidade de lidar com o estigma e o preconceito
Categoria 4-Confiabilidade no outro
Essas categorias têm em comum os aspectos do reconhecimento da doença mental
em si e no outro assim como o estigma e os medos que a acompanha. Em especial aos
usuários que tanto necessitam deste entendimento, bem como do acompanhamento e do apoio
de seus familiares.
TEMA-II: “ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA”
Categoria 5- Socialização no ambiente familiar;
Categorias 6- Capacidade de iniciativa em interações sociais;
Categorias 7- Tempo gasto com o lar, trabalho e estudos;
Categorias 8- Capacidade de autonomia.
No segundo tema, busco evidenciar a ocorrência de uma vivência libertadora,
portando emancipatória, para os usuários associada à importante participação dos seus
34
Cabe lembrar que na sociologia o estudo do indivíduo pode ser considerado um objeto
bastante contemporâneo. Conforme Junior Lima & Massi, (2015, p.561):
Dessa forma, Lahire (2004) procura estudar as exceções que possam ocorrer à medida
que estuda o individual do deste contexto social, sendo assim uma maneira de contribuir para
o aprimoramento da sociologia bourdieusiana. Para tanto busca uma análise do indivíduo sem
desconsiderar as diferentes influências sociais (disposições) e considera, também, a sua
possibilidade de mobilidade social. O que se espera na metodologia do retrato sociológico é
justamente objetivar a subjetividade, identificando as marcas do social no individual,
construindo uma ponte entre os contextos macrossociológico e microssociológico.
A técnica dos retratos sociológicos de Lahire (2004) permite um novo olhar sobre uma
usuária do CAPS II, participante do “grupo operativo- terapêutico” na medida em que esta
técnica inscreve a experiência científica (em nosso estudo o adoecimento mental) e
educacional (em nosso contexto a sua capacidade de aprendizagem de cuidar-se/autonomia)
de um ator individual no contexto de sua trajetória social. No retrato sociológico de uma
usuária do serviço de saúde mental (CAPS II-Ijuí), procuro dar destaque, de forma detalhada,
à sua entrevista e assim ajudá-la a reconstruir sua própria história de vida e as dificuldades
que a acompanham em seu contexto histórico e sociofamiliar no seu processo de autonomia.
Para tanto, na análise individual de sua entrevista, busco aportes em Lahire (2004) e
sua metodologia de investigação para a pesquisa em educação. Ao longo desta entrevista a
complexidade de elementos que compõem sua história de vida podem ser vistos como
“disposições”, conceito defendido por Bernard Lahire (2004) em seu livro “RETRATOS
SOCIOLÓGICOS Disposições e variações individuais” e que se refere às múltiplas
influências que o indivíduo pode receber ao longo de sua vida. Embora, quando analisadas
separadamente, pareçam incongruentes e/ou incoerentes. Lahire (2004, p.23) assim se refere a
respeito de disposição:
destaque, em sua primeira fase, ao trabalho que tanto contribuiu para a desconstrução do
discurso da loucura: “História da Loucura na Idade Clássica” (1997), tema “dissecado” pelo
autor e a sua consequente relação com a normalização e que ainda teima em permanecer
vigente entre nós, através de rótulos de normalidade e de anormalidade. Também recebe um
destaque especial a terceira fase de sua obra quando passa a apresentar a subjetivação na
forma explicita através do cuidado de si, especialmente na sua obra: “A história da
sexualidade III o cuidado de si” (2013).
A relevância de Basaglia (1985), médico psiquiatra italiano, deve-se ao fato de ser
considerado um dos precursores da reforma psiquiátrica. Em sua experiência exitosa na Itália,
Basaglia (1985) criticava a postura tradicional da cultura médica, que transformava o
indivíduo e seu corpo em meros objetos de intervenção clínica. No campo das relações entre a
sociedade e a loucura, o autor assumia uma posição crítica para com a psiquiatria clássica e
hospitalar, por esta centrar-se no princípio do isolamento do “louco” (a internação como
modelo de tratamento), portanto, excludente e repressora. Questiona-se o quanto “a loucura”
representava economicamente para os grandes manicômios que recebiam do Estado para
cuidarem dessas pessoas diferentes, os “loucos”. Portanto, “mercadorias rentáveis” e que
deviam ser deixadas à parte, segregadas.
Nos dias atuais, Bauman (2008), filósofo polonês, nos fornece elementos para
compreender o mundo de hoje e seus contextos de subjetivação e de socialização a partir dos
quais pode-se fazer uma profunda reflexão sobre a transformação do ser humano em
mercadoria.
[...] ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode
manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira
perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A
“subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade
possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se
tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente
da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta –
é a transformação dos consumidores em mercadorias. (BAUMAN, 2008, p. 20).
Abrimos mão de nossa liberdade para não lidarmos com a responsabilidade, assim,
abrimos mãos de pensar. O principal objetivo da teoria crítica era a defesa da
autonomia, da liberdade de escolha e da autoafirmação humanas, do direito de ser e
de permanecer diferente. (BAUMAN, 2001, p.37).
Com relação a isso tenho uma observação a fazer: a meu ver, o grande interesse em
se rememorarem momentos passados é o de vê-los como recursos que a gente, como
leitor, como pessoa, pode usar com o intuito de melhor entender as ideias e melhor
desocultar o contexto humano, social e histórico em que o indivíduo que escreveu
estava inserido.
22 Pós-modernidade, segundo o professor Juremir Machado, pode ser descrita como o momento em que
(tomando Lyotard como influência) todas as grandes narrativas entram em crise. Lyotard “A pós-modernidade é
esse desencantamento em relação à ideia de um futuro garantido, certo, promovido pelas leis da história,
necessariamente melhor, redentor. “Ela [a pós-modernidade] é a construção de um presente possível”.
Disponível em: http://colunastortas.com.br/2014/05/15/pos-modernidade acesso em 30/06/2017
40
A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não
ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de
estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale
dizer em experiências respeitosas de liberdade. (FREIRE, 2013, p. 105)
vez, geram sínteses que geram outras teses e assim por diante. Trata-se de um processo de
totalização que nunca alcança uma etapa definitiva e acabada. (PEREIRA, 2013, p.3).
Para melhor compreender esta contextualização do autor, recorro ao esquema do “cone
invertido” ou “espiral dialética” de Pichon Rivière (2009).
Fig. 1 - Espiral Dialética ou Cone Invertido:
EXPLÍCITO: EXPLÍCITO:
13
Empregado por Sócrates na Grécia antiga, a dialética era entendida como a arte do diálogo, da argumentação
capaz de esclarecer os conceitos envolvidos em uma discussão. Para Konder (1998), entretanto, a conceituação
moderna de dialética pode ser entendida como o modo de pensar as contradições da realidade, compreendendo o
real como essencialmente contraditório e em constante transformação. (Konder apud PEREIRA, 2013, p. 23).
13.Cont.
Em Freire há visão dialética diferenciada em relação à tradição moderna. De uma forma distinta dos
clássicos da dialética moderna (Hegel e Marx), há em seu pensamento uma significativa diferença no modo
como fundamenta o processo dialético da vida humana em seu todo, pois parte da realidade concreta dos seres
humanos desumanizados com o objetivo de problematizar seu mundo através do diálogo crítico e transformados
das culturas. (STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed,
Belo Horizonte: Autentica Editora 2010. p. 115/6)
42
14
Nas palavras de Firmo: O empoderamento apresenta forte correlação com a possibilidade de mobilização do
povo para reivindicação de seus direitos e a fiscalização do desempenho dos serviços, para o desenvolvimento da
autonomia e o controle social, ou mesmo a sua redução. (FIRMO, 2015, p. 225).
Para Freire o empoderamento não é outorgado, pelo contrário, é resultado de uma práxis de reflexão e de
inserção crítica das pessoas, provocada pelos problemas ou pelas perguntas problematizadoras que os colocam
em ação. A essência do processo pedagógico de Freire consiste em “fazer a pergunta”. Mas não qualquer
pergunta: a pergunta que liberta, isto é, que o empodera e, consequentemente, o faz sempre mais livre.
(STRECK, D.R., REDIN, E., ZITOSKI, J.J. (Orgs.) Dicionário Paulo Freire 2ªed, Belo Horizonte: Autentica
Editora 2010. p. 147).
44
15
A interdisciplinaridade é um princípio mediador entre as diferentes disciplinas, não sendo elemento de
redução a um denominador comum, mas elemento teórico-metodológico da diferença e da criatividade. É o
princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da compreensão dos seus limites e, acima
de tudo, é o princípio da diversidade e da criatividade (ETGES, 1999 apud SANTO, 2007, p.15).
16
Subjetivação: basicamente, é o processo de tornar-se sujeito. Assim como a noção de sujeito, esse termo está
ancorado em diferentes perspectivas nas ciências humanas. Subjetivação é o ato de produzir subjetividades.
45
Para Alain Touraine, o processo de subjetivação é “a construção, por parte do indivíduo ou do grupo, de si
mesmo como sujeito” (TOURAINE, 2006, p.119).
46
A reforma psiquiátrica não pode fixar-se somente na luta antimanicomial, pois corre-
se o risco de desconsiderar-se o momento atual e as diferentes evoluções que ocorreram nas
diversas áreas da saúde mental, incluindo a discussão dos diferentes diagnósticos associados à
tecnologia da neuroimagem funcional do cérebro e a possibilidade de, assim, acompanhar as
mudanças morfológicas e funcionais em diferentes áreas cerebrais com modernas
terapêuticas, sob o risco de não valorizar essas conquistas como frutos da própria reforma.
47
2 A REFORMA PSIQUIÁTRICA
O poeta faz inicialmente um convite ao leitor: viver com criatividade, tornar sua vida
grande, o que associa com a colaboração, quase que impessoal, com sua pátria (mundo) e com
a humanidade. Para engrandecer sua pátria e colaborar com a evolução da humanidade, não
precisa viver a vida de forma egoísta, mas sim dedicá-la ou sacrificá-la pela humanidade.
Neste momento, quando escrevo sobre a mensagem poética de Fernando Pessoa, me ocorre à
lembrança um grande pensador de nossos tempos de “modernidade líquida” que assim viveu,
dedicando sua vida e sua obra literária à humanidade, especialmente pelo tema da convivência
humana, em especial com o “estranho” em nossa sociedade. Refiro-me a Zygmunt Bauman,
falecido em nove de janeiro de 2017, na cidade de Leeds, no Reino Unido.
A esse respeito, na reforma psiquiátrica, quantas pessoas dedicaram suas pesquisas,
suas vidas, algumas de forma anônima, para que as pessoas em sofrimento mental crônico
pudessem ter uma vida mais humana, mais criativa, mais verdadeira. Na presente pesquisa,
acrescento a esses colaboradores anônimos também os usuários de um serviço de saúde
mental, e que, ao participarem das entrevistas, além de terem um espaço de fala, deram, de
forma autêntica, suas contribuições para que se tenha uma visão a partir de suas vivências de
como veem e sentem o atual momento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, em especial, de
como se sentem na comunidade local, na cidade de Ijuí, R/S.
Portanto, passo a destacar algumas fontes inspiradoras para o movimento da reforma
psiquiátrica, ou seja, pessoas que contribuíram com a humanidade, tornando a vida humana
mais liberta. Procuro dar destaque à forma como contribuíram na discussão de poder,
48
nos anos de 1973-1974. Destaca a respeito desse curso que, enquanto em (1961-1ª edição),
História da Loucura na Idade Clássica insistia na problemática do fechamento e violência às
pessoas com doença mental, em 1974 sua preocupação será outra, será a de analisar o modo
como se estabelecem e o modo como circulam as relações de poder dentro desse espaço
médico que é a psiquiatria. (CAPONI, 2009, p.96).
Esse curso foi publicado em 2003 com o nome de “Le ouvouir psytriaque”. O
referido curso permite a Foucault (1974) abordar novos temas, como o poder disciplinador, a
normalização, as estratégias e táticas de controle do tempo e espaço. Com o advento da
psiquiatria, passa a prevalecer o poder psiquiátrico como normalizador do normal e do
anormal, mas também seus instrumentos de diagnóstico e tratamento, quais sejam: o
interrogatório, o uso de drogas e a hipnose.
Portanto, esses temas, de alguma forma, serão questionados ao longo desta pesquisa
para que novas condições de subjetivação possam ser vivenciadas. O “grupo operativo-
terapêutico” em saúde mental, pela participação efetiva de todos os envolvidos, pode
constituir-se em uma forma de resistência a essa forma tradicional de normalizar criada pelo
“poder psiquiátrico”, pois permite que seus participantes tenham vez e voz.
Como contribuições históricas à reforma psiquiátrica destaco que algumas
experiências já vinham sendo feitas em diferentes partes do mundo na busca de humanização
do atendimento ao “doente mental”, sem que as mesmas pudessem ser usadas como
referenciais em uma discussão mais sistematizada. Cito como um exemplo as Comunidades
Terapêuticas criadas por T. H. Main, em 1946, na Inglaterra. A consagração desse modelo de
reforma psiquiátrica se deu em 1959, com Maxwell Jones. Amarante (2003a) define o modelo
da Comunidade Terapêutica como sendo um processo de reformas institucionais
predominantemente restritas ao espaço do hospital psiquiátrico, marcado por medidas
administrativas e técnicas que enfatizavam aspectos democráticos, participativos e coletivos
(Amarante apud HEIDRICH 2007, p. 39).
Encontra-se outra fundamental contribuição à reforma psiquiátrica no trabalho de
Franco Basaglia (1985), médico psiquiatra que abriu mão desse poder sobre a “doença
mental” na busca da valorização da pessoa do “doente mental”. Na “Instituição negada”
Basaglia (1985) baseia-se: nas comunidades terapêuticas e presumidamente na obra de
Foucault (1961-1ª edição) "História da Loucura na Idade Clássica" para formular a "negação
da psiquiatria" como discurso e prática hegemônicos sobre a loucura. Ele não pretendia acabar
com a psiquiatria, mas considerava que apenas a psiquiatria não era capaz de dar conta do
fenômeno complexo que é a loucura.
50
Basaglia (1985) descreve que a partir da década de 60, em Gorizia (Itália) ocorre a
substituição do tratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento,
integrada por serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral,
cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas para os
doentes mentais. O sujeito acometido da loucura, para o autor, possui outras necessidades que
a prática psiquiátrica não daria conta. Basaglia (1985) também denuncia o que seria o "duplo
da doença mental", ou seja, tudo o que se sobrepunha à doença propriamente dita como
resultado do processo de institucionalização a que eram submetidos os “loucos” em sua
época.
Pela sua atuação profissional como médica psiquiatra que permitiu modificar e
humanizar uma prática em saúde mental para com as pessoas excluídas do
convívio humano, especialmente através da arte como possibilidade de seus
clientes manifestarem seus sentimentos e recriarem suas histórias de vida;
Pelo seu engajamento na política socialista de seu tempo, e que lhe trouxe
perseguições políticas17 e impedimento de seu exercício profissional.
Somando a todas essas características, acrescente-se o de ter o reconhecimento de
seu trabalho junto a Carl Gustav Jung, um dos maiores pesquisadores sobre o tema do
entendimento do inconsciente por meio da arte, em especial das mandalas e da figura do mito.
Nascida em Maceió (AL) em 1905, Nise Magalhães da Silveira, aos 15 anos, foi para
Salvador (BA) onde frequentou o curso de medicina. Ainda bastante jovem, aos 21 anos se
formou. Além de ser a caçula do curso foi a única mulher a se formar entre 157 alunos. Outro
fato a destacar foi seu trabalho de conclusão de curso: “Ensaios sobre a Criminalidade da
Mulher no Brasil”, considerando que Nise da Silveira formou-se no ano de 1926. Esses dados
levantados por Motta (2008) mostram um pouco de seu pioneirismo já na sua formação.
Depois de formada, foi morar no Rio de Janeiro onde começou a exercer função
pública como médica psiquiatra no ano de 1933. Esquerdista, atuante na União Feminina do
Brasil, precocemente foi afastada das suas atividades por perseguições políticas na ditadura
Vargas. Motta (2008) associa nos seus estudos a respeito da médica psiquiátrica que o
interesse da médica por atividades ocupacionais na saúde mental foi significativamente
influenciado pelo período de um ano e meio que esteve como prisioneira política ao ver seus
companheiros de cárcere buscarem atividades, especialmente culturais, para passar o tempo.
Em 1944, a psiquiatra é readmitida no serviço público, retornando ao trabalho no
antigo Centro Psiquiátrico Nacional, atual Instituto Municipal Nise da Silveira. Depois retorna
ao Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, onde funda a Seção de
Terapia Ocupacional no ano de 1946. Cria mais tarde o Museu das Imagens do Inconsciente
(1952) a partir do material produzido nos ateliês terapêuticos. Nise, com auxílio de colegas,
cria em 1956, no Rio de Janeiro, a Casa das Palmeiras, destinada ao tratamento e à
reabilitação de egressos de hospitais psiquiátricos.
17
Conta-se uma pequena anedota: Nise foi denunciada por uma enfermeira à polícia política de Vargas por ser
militante comunista e certamente portadora de ideias demais humanistas em seu atendimento aos doentes
mentais. Uma “paciente” esquizofrênica, amiga de Nise, sabedora do ocorrido, deu uma tremenda surra na
referida enfermeira, situação que Nise usava para dizer: vejam como o esquizofrênico pode ser afetivo e, eu
acrescento solidário com a pessoa que lhe é importante.
52
18
A arte-terapia usa a atividade artística como instrumento de intervenção profissional para a promoção da saúde
e a qualidade de vida, abrangendo hoje as mais diversas linguagens: plástica, sonora, literária, dramática e
corporal, a partir de técnicas expressivas como desenho, pintura, modelagem, música, poesia, dramatização e
dança. Tendo em vista a formação do profissional e o público com o qual trabalha, a arte-terapia encontra
diferentes aplicações: na avaliação, prevenção, tratamento e reabilitação voltados para a saúde, como
instrumento pedagógico na educação e como meio para o desenvolvimento (inter) pessoal através da criatividade
em contextos grupais. (REIS, A. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34 (1), 143)
53
pela falta de informações e por concepções erradas sobre as doenças mentais. (NOTO, 2012,
p. 81).
O importante é que esses conflitos sejam revividos de forma corretiva no grupo, pois
uma nova exposição sem reparos, apenas torna pior uma situação que já era ruim.
Deve-se, pelo contrário, explorar e desafiar continuamente os papéis fixos,
estabelecendo regras básicas que incentivem a investigação de relacionamentos e o
teste de novos comportamentos.
Com relação ao item “em casa como prefere estar”, os familiares mostram em suas
respostas a preocupação com o comportamento agressivo, embora expressem sua
compreensão de que isto faz parte da doença, incluindo neste aspecto a dificuldade que a
pessoa com sofrimento mental tem de confiar no outro. “Brigava, maltratava todos, queria
matar a mãe. Era muito difícil de conviver” (F.19, C.5). Esta resposta do familiar mostra o
despreparo da família para receber e conviver com a pessoa que tem esquizofrenia, muitas
vezes pela incapacidade do familiar para lidar com situações tão complexas, acrescidas de seu
desconhecimento sobre a “doença mental”.
Assim, o familiar pode ter contribuído, inconscientemente, para o encaminhamento
prévio de seu familiar enfermo a institucionalizações crônicas, com a consequente quebra dos
vínculos e referências dessa pessoa com a família e com a própria comunidade. É oportuno
destacar que, embora o potencial para a violência que essas pessoas com psicose crônica
possuem em suas crises, a grande maioria dos crimes de violência não envolvem pessoas com
esquizofrenia como frequentemente se tenta associar, especialmente na mídia.
58
dificuldades” (F.11, C.1). A compreensão desta familiar, presente no seu cotidiano, cria as
condições para o marido vivenciar uma nova subjetivação, com autonomia.
Para Santin (2011, p. 150), de modo geral a abordagem familiar recai sobre os
padrões relacionais e de comunicação no meio familiar:
Portanto, para que a família possa participar de forma adequada é indispensável que os
profissionais da saúde mental estejam adequadamente preparados para essa tarefa educativa
junto aos familiares. Ao questionamento de como o usuário prefere estar em casa, deve-se
levar em consideração as dificuldades vivenciadas pelo familiar para lidar com o isolamento e
a desorganização do seu familiar enfermo, “Antes era apático, se isolava, não saia de casa,
nem da própria higiene cuidava, quarto todo desarrumado, parecia estar de mal com o
mundo”. (F.1, C.5).
Proporcionar um espaço educativo para enfrentar tais situações requer uma necessária
capacitação de todos os envolvidos, tais como criar e valorizar espaços de escuta e diálogo na
própria comunidade para usuários do serviço de saúde mental e seus familiares. Um espaço de
ensino e aprendizagem para uma nova subjetivação, que não a “do louco excluído”, mas sim
de alguém capaz de conquistar sua autonomia possível. Esta deve ser uma prioridade em
saúde mental no atual contexto da reforma psiquiátrica.
Portanto, é indispensável uma educação que se constitua num processo dialógico que
permita trocas entre os diferentes participantes: usuários e seus familiares, na busca de
mudanças a essa lógica tão excludente em saúde mental ainda presente em nossa realidade.
Assim, o “grupo operativo-terapêutico” constitui-se num espaço de empoderamento aos seus
participantes, um dos princípios básicos da educação popular. No atual momento da reforma
psiquiátrica junto à comunidade local este tipo de educação é indispensável. Nas palavras de
60
Vasconcelos19 (1997), a educação popular passou a ser um instrumento efetivo que fortalece
as relações com as populações.
“Ficava só deitada, se isolava da família, não gostava de sair” (F.15, C.5). Nesta
resposta a respeito de como o usuário preferia estar em casa, o familiar, ao usar o tempo
passado nos verbos desta frase (ficava, se isolava, não gostava), indica que ocorreram
mudanças no comportamento deste usuário. Espaços como o “grupo operativo-terapêutico”
oferecem condições para mudanças, especialmente pela escuta, diálogo e entendimento,
principalmente quando essas terapêuticas são oferecidas nos serviços de saúde junto à
comunidade.
Não se pode esquecer que foi na comunidade e com a (in) voluntária participação da
própria família que surgiu a iniciativa de internação/institucionalização do usuário “em
tempos remotos”, essencialmente pelo despreparo da mesma em lidar com os conflitos. Esses
fatos que não podem ser esquecidos pelo movimento da reforma psiquiátrica, considerando
que esta possa estar sempre se reinventando em suas prioridades como movimento para
superar essas resistências.
Vencer preconceito e resistências é o que se pode pensar a partir do depoimento deste
familiar, ao responder o questionamento de como seu familiar enfermo se sente afetado pelo
preconceito, “Não queria muito participar, foi com diálogo, conversa e conselho, ele tinha
muita vergonha do que os outros iriam pensar dele, mas enfim está em tratamento”. (F.9,
C.3). Este entendimento é indispensável na busca de modificar o processo habitual de
subjetivação da pessoa com doença mental, tendo como referências iniciais as normas de
exclusão tão presentes em uma sociedade baseada essencialmente na produção e no consumo,
em que o normal está associado ao ser produtivo, e o anormal ao estar improdutivo.
Nesta contextualização, faz-se indispensável repensar novos espaços de subjetivação
na própria comunidade com a participação de todos os envolvidos nesse processo em que se
almeja autonomia com cidadania, reflexão esta contextualizada nos princípios da educação
popular.
19
Assim, no setor da saúde, a educação popular passou a se desenvolver, entre tantas outras, como um
instrumento de reorientação da globalidade de suas práticas, na medida em que dinamiza, desobstrui e fortalece a
relação com a população e seus movimentos organizados. (VASCONSCELOS, 1997, p. 143).
61
Caponi (2009) questiona o quanto ainda hoje a reforma psiquiátrica repete formas
tradicionais de tratamento baseadas nos interrogatórios e no excesso de medicalização. Essa
prática ocorre inclusive nos próprios CAPS, reforçando a necessidade de que esses espaços de
escuta, de diálogo, de participação, constituam-se em uma alternativa às formas tradicionais
de tratamento que ainda existem em serviços de saúde mental, e na própria comunidade em
estudo.
Especialmente por priorizar a dimensão da subjetividade ao “diferente”, uma das
prioridades do movimento da reforma psiquiátrica é o atendimento da pessoa com doença
mental na sua própria comunidade. Leandro (2008) destaca que é na comunidade que se
reforça a subjetividade.
A reforma psiquiátrica busca a mudança do modelo hospitalocêntrico para o
biopsicossocial, modelo este que busca o atendimento do usuário em saúde mental na própria
comunidade. O CAPS é um exemplo deste atendimento. Porém, esta nova postura pode, em
um primeiro momento, mostrar o despreparo da comunidade para receber a pessoa com
psicose crônica. É oportuno lembrar que a comunidade possa ter contribuído, por
desinformação, para encaminhar essas pessoas a partir do próprio ambiente familiar
conflitado a uma institucionalização crônica, trazendo a consequente quebra dos vínculos e
referências dessas pessoas na família e na comunidade.
Em Gonçalves (2001) já há registro de importantes contradições na reforma
psiquiátrica. Para o autor o doente mental estava sendo entregue à família sem o devido
conhecimento das reais necessidades e condições da família, especialmente das cuidadoras em
termos materiais, psicossociais, de saúde e qualidade de vida, aspectos estes profundamente
interligados. Percebe-se que nas condições atuais estas contradições ainda persistem, inclusive
na comunidade local, na cidade de Ijuí.
Daí a importância de criar as condições de informação e de educação para que estas
famílias e a própria comunidade estejam mais bem preparadas para receber as pessoas com
sofrimento mental crônico. O “grupo operativo-terapêutico” pode ser um espaço educacional
para ajudar os familiares a estarem preparados para receber e acolher seus familiares com
esquizofrenia.
Por fim, reputo ser oportuno enfatizar a participação dos familiares nas atividades
educativas junto aos usuários do CAPS II Ijuí (R.S.). Uso o termo participação associado ao
cotidiano familiar a partir de um importante depoimento do pai de um jovem com sofrimento
62
psíquico crônico e com intensas intercorrências clínicas. Sinto este pai extremamente
solidário com o filho em seu complexo tratamento clínico e emocional.
Faço o registo deste depoimento pelo intenso ensinamento que este pai proporcionou
a todos nós: o de que a participação do familiar deve vir acompanhada da coerência no
cotidiano familiar. Lembrando que o engajamento do familiar só poderá ocorrer a partir de
um aprendizado que implica sua participação nos “grupos operativo-terapêuticos”, ou em
outras atividades de atendimento nos espaços de saúde mental oferecidos na comunidade.
Em uma das reuniões/assembleias mensais em que participam usuários, familiares e
profissionais da saúde mental, este pai destacou de forma enfática: “Que não bastava
participar das reuniões e depois não colocar em prática os ensinamentos compartilhados
entre eles na reunião, se não fossem levados para o dia-a-dia do lar com seu familiar”.
(palavras textuais).
Devo lembrar que as diferentes formas de segregação ao “doente mental” sempre
estiveram presentes ao longo da história. É oportuno destacar um dos mais importantes
instrumentos para que a atual política de saúde mental possa consolidar-se como uma
ferramenta de inclusão e emancipação a todos os seus usuários. Refiro-me à Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS).
20
Fonte:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html, acessado em
10/03/18.
65
local onde pode ocorrer sua efetiva fiscalização por todos os envolvidos com a saúde mental.
Destaco que no momento atual todos os programas citados são essenciais na RAPS para uma
verdadeira inclusão social, mas ainda precisam ser incrementados com auxilio e fiscalização
da própria comunidade, em especial por todos os envolvidos com a saúde mental também na
cidade de Ijuí.
É oportuno destacar que no município de Ijuí a regulamentação da saúde mental é
complementada pela Lei nº 6519, de 27 de março de 2017. Esta lei foi recentemente criada
com especial participação de um alguns setores da comunidade ligados à saúde mental. Seu
texto completo aparece na parte dos anexos (p.211).
Ressalto que essas leis devem ter mecanismos de viabilidade no contexto de inclusão
social na comunidade local e dispositivos de fiscalização de sua aplicação no contexto das
políticas públicas. Cabe aqui destacar as palavras de Boneti, 2006, p.72 a respeito da
heterogeneidade no pensamento das pessoas que se relacionam às políticas públicas:
É na comunidade, este lugar cada vez menos acolhedor e cada vez mais assustador, que o
outro passa a ser um estranho, e onde ocorrem os principais conflitos no acolhimento à pessoa com
sofrimento mental. O esperado seria que as diferentes contribuições para esse acolhimento
pudessem estar articuladas entre si, caso contrário estariam repetindo na própria comunidade um
68
sintoma tão presente na esquizofrenia, qual seja, o de olhar a vida de forma fragmentada e
assustadora.
69
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
21
O poema “Tabacaria” pode ser considerado por muitos críticos literários um dos dez melhores poemas
escritos por Fernando Pessoa, e um dos melhores da língua portuguesa. Seus aspectos físicos com versificação
livre; e a preocupação de seu conteúdo, qual seja, o de relatar a subjetividade e descrença da vida, são
trabalhados ao longo desse poema. Reproduz, assim, um ritmo acelerado, presente no cotidiano das grandes
cidades. Simultaneamente, expressa os problemas internos do eu - lírico estes intensamente presentes na
21Cont.
sociedade atual, moderna, sem tempo para refletir sobre a vida, com obrigações apenas de “seguir o bonde”.
Essa ideia de rapidez pode ser associada ao estilo futurista, em que tudo é muito efêmero. Disponível em
http://www.revistabula.com/522-os-10-melhores-poemas-de-fernando-pessoa-2/ acessado em 30/06/2017
70
que é um engenheiro. Como poeta que é, deixa de lado o olhar de engenheiro e lança em
muitos versos a literalidade em que expressa a condição do homem da sua época, já imerso
num progresso emergente das cidades. Isto fica evidente em “Janelas do meu quarto” em que
o autor observa o vai e vem da cidade.
Neste aspecto poético, “janela de meu quarto” pode ser associado com o habitual
isolamento em que os usuários de nosso serviço de saúde mental se encontram quando
regressam para suas casas, para suas famílias e para suas comunidades vindos dos
manicômios, das longas internações. É uma imagem de seu isolamento por onde podem ver a
vida passar, sem suas participações efetivas na vida diária de sua comunidade. Espera-se que
a autonomia libertadora incentivada em seus tratamentos seja estimulada pelos familiares e
pelas diferentes contribuições educativas da comunidade local, ajudando-os a saírem de seu
isolamento.
No poema Tabacaria, o poeta olha sua comunidade e sua cidade através da janela de
sua provável casa, ou de “sua própria alma”. E hoje, em que janela se observa nossa
comunidade, nossa cidade, nosso mundo globalizado? Pelo Windows de nosso computador,
pelo face book de nossos celulares? Ou somos nós observados, na era digital, por estes meios
de informatização?
Como pode ser entendido o papel da comunidade em um mundo globalizado? Ou as
comunidades tradicionais estão sendo dissolvidas? Para refletir sobre estes questionamentos
considero oportuno recorrer novamente a Bauman (2003) quando este refere que, com o
advento da informática e seu fluxo de informação, a fronteira entre o dentro e o fora não pode
mais ser estabelecida. Este fato é considerado pelo autor um golpe mortal no entendimento
comunitário. BAUMAN (2003), ao falar da convivência humana nos dias atuais, destaca:
Lembro que Bauman (2003), em seu livro “Comunidade a busca por segurança no
mundo atual”, aborda a dinâmica das convivências humanas em um mundo globalizado.
Neste mundo, a liberdade e a segurança são colocadas nos pratos de uma balança, e o seu
equilíbrio torna-se praticamente impossível.
71
Porém, se esta vivência não se estender até suas comunidades de origem, os grupos, e
por que não os próprios CAPS, transformam-se em guetos verdadeiros de onde as pessoas em
72
sofrimento mental não poderão sair e separadas dos guetos voluntários onde essas mesmas
pessoas não podem entrar. Não esqueçamos que, para Bauman (2003), gueto é a negação do
conceito de comunidade. Porém, olhando sob uma perspectiva otimista, Bauman (2003)
oferece uma alternativa: de como pode ser uma comunidade nos dias de hoje, ou seja, um
espaço de compartilhamento. Para Bauman,
“Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e
precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e
do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e de responsabilidade em relação
aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa
desses direitos”. (BAUMAN, 2003, p.134).
Ijuí está localizada na região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, a 395 km da
capital Porto Alegre. O município de Ijuí 22ocupa a 22º colocação entre 496 municípios que
abrangem o Estado. Com 83.089 habitantes, segundo dados do IBGE, publicados no Diário
Oficial da União em junho de 2016, é o município mais populoso da região Noroeste do
Estado. Por ser uma cidade universitária e com importantes recursos hospitalares, Ijuí tem um
22
Ijuí é conhecida por Terra das Culturas Diversificadas, Cidade Universitária, Colmeia do Trabalho, Terra das
Fontes de Água Mineral e Portal das Missões. Localizada no Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, em um
entroncamento rodoviário que é passagem obrigatória para o MERCOSUL e a 395 km da capital Porto Alegre.
73
23
Esta informação encontra-se http://www.ijui.rs.gov.br/paginas/saude, acessado em 12/03/2018.
75
24
O Hospital de Caridade de Ijuí (HCI) surgiu da necessidade de atendimento médico-hospitalar, a partir do
crescimento da cidade, na década de 30. Em 19 de junho de 1935, formou-se a Associação Hospital de Caridade
de Ijuí, e em 9 de junho de 1940, o primeiro pavilhão foi construído. A partir dos anos 80, foi aberto à
comunidade, exigindo adequação e ampliação.
76
com as demais junto ao HCI. Sempre que possível, os usuários são acompanhados de seus
familiares e prioritariamente atendidos por uma equipe interdisciplinar.
Um aspecto possível na evolução habitual de uma pessoa com psicose crônica,
especialmente na esquizofrenia, é que podem ocorrer surtos psicóticos acompanhados dos
riscos que a pessoa possa oferecer a si e a outros. Em situações extremas, faz-se necessário,
para sua proteção, internação breve e se possível na própria comunidade, com a participação
constante dos familiares, evitando-se, assim, seu isolamento e quebra de vínculos familiares.
Para Louzã, (2007) “A meta primordial da hospitalização, quando ocorre, deve ser a de
estabelecer uma ligação efetiva entre o usuário e os sistemas de apoio da comunidade”.
Na atual realidade da saúde mental na cidade de Ijuí, a internação de um usuário do
CAPS II ou dos diferentes ambulatórios que compõem a rede municipal de saúde, faz-se
necessária durante um episódio de surto psicótico e não tem o caráter de isolamento ou de
exclusão, pois o mesmo é internado na própria comunidade, na Unidade de Saúde Mental do
HCI, que tem seis leitos individuais. Esta unidade é integrada às demais unidades do hospital,
onde o usuário fica internado pelo SUS, de preferência com acompanhamento familiar.
Este tipo de assistência permite um atendimento integral ao usuário e à sua família
pela equipe interdisciplinar de saúde mental do HCI. Possibilita também que, se evidencie
adoecimento familiar e não só do usuário do serviço de saúde mental. Esta
avaliação/internação deve ser feita de forma integrada com os profissionais do CAPS II, ou
dos ambulatórios de referência que acompanham o usuário quando em seu atendimento
ambulatorial, facilitando o seu acompanhamento após a alta hospitalar. Esta possibilidade de
atendimento interinstitucional valoriza as práticas integrativas e integradoras.
É oportuno destacar que este tipo de atendimento interdisciplinar integrando o CAPS
II ou o ambulatório em que o usuário é referenciado junto à comunidade e o serviço de Saúde
Mental do HCI permitem internações breves, com períodos médios de uma a duas semanas,
com objetivos bem definidos de internação/avaliação e tratamento da crise.
Junto ao HCI atualmente existe um ambulatório de saúde mental para atender as
pessoas de vários convênios de saúde que usavam, por diversas razões, a saúde mental na rede
pública. Com isso, espera-se contribuir para diminuir a sobrecarga da própria rede pública.
Este ambulatório destina-se a atender a uma clientela extra-hospitalar, mas também usuários
dos diferentes serviços do hospital. Em especial dá-se destaque aos usuários do Centro de Alta
Complexidade em Oncologia (CACON), pessoas que muitas vezes não têm um espaço
adequado para falar de seus complexos aspectos emocionais.
77
25
O Hospital Bom Pastor (HBP), foi fundado em 18 de maio de 1981 pela Cooperativa Regional Tríticola
Serrana Ltda (Cotrijuí). A meta era atender associados e produtores rurais de sua área de ação. Em dezembro de
1988, passou a ser administrado pela comunidade com a criação da Sociedade Hospitalar Beneficente Ijuí, que
em janeiro de 2005 passou a ser chamada de Associação Hospital Bom Pastor de Ijuí.
78
26
Podemos compreender a territorialidade como uma espécie de âncora ou ponto de referência cultural onde é
possível a vivência com os outros em um determinado período de tempo.
Pesquisas realizadas na área de saúde mental, em cuja temática se inserem os CAPS como campo de estudo,
apontam para a precariedade das ações territoriais e, consequentemente, para a necessidade da aproximação do
serviço à comunidade. (VIEIRA FILHO E NÓBREGA, 2004, p. 375)
79
de trabalho é, portanto, um forte elemento para a cronificação dessas pessoas junto ao CAPS
II em nossa própria comunidade.
Consciente dessas limitações para o trabalho educativo junto aos usuários com
psicose crônica e a seus familiares, faz-se necessário avaliar a viabilidade de um espaço
adequado na construção da autonomia possível a estes usuários em sua própria comunidade. E
também analisar a importância das contribuições educativas, em especial a participação de
seus familiares, em um processo de educação popular em saúde mental.
Kaplan & Sadock (2016) enfatizam que o início da “doença” antes dos 10 anos ou
após os 50 anos é extremamente raro. Cerca de 90% dos “pacientes” com esquizofrenia têm
80
entre 15 e 55 anos. Considerando-se a entrada na 3ª idade aos 60 anos, de acordo com o Plano
Nacional do Idoso (PNI), encontra-se na atual pesquisa que apenas 5% da amostra pode ser
considerada no período de menor inserção no mercado de trabalho.
Os dados acima nos permitem verificar que 95% de nossa população estudada estão
em condições de se sentirem produtivas nos critérios de trabalho, em nossa sociedade. Na
produção criativa, portanto associada a uma melhor qualidade de vida, deve-se incluir toda a
nossa população, inclusive as pessoas com mais de 60 anos de idade.
Com relação à escolaridade dos pacientes, foram encontrados os seguintes resultados:
Viúvo Um paciente 5%
Como 85% de nossos pacientes são solteiros ou separados, isso nos permite inferir
que existe uma relação direta entre a “doença’ esquizofrenia e um dos seus principais
sintomas: o isolamento, o que repercute direta e intensamente na capacidade dessas pessoas
terem relacionamentos, especialmente fora da família de origem”. Assim sendo, permite-se
pensar a esquizofrenia como uma “doença” vincular, isto é, relacionada à capacidade de
formar vínculos (BION, 2004, p. 103).
A tabela a seguir registra a renda declarada dos pacientes:
Tabela 4 - Classificação dos pacientes em relação à renda declarada no CAPS II,
Ijuí/RS-2013
Renda Usuário Percentual
Um salário mínimo (aux. Doença) Sete pacientes 33%
Com relação à renda dos pacientes, os dados permitem questionar por que a grande ou
absoluta maioria dos usuários está fora do mercado formal de trabalho. Questiono o quanto
para estas pessoas as fontes de renda: auxílio doença, pensão, aposentadoria tornam-se um
importante limitante ao trabalho pelo medo de perder o benefício. Além disso, esta limitação
associa-se á baixa escolaridade e ao limitado preparo profissional.
Não pode ser desconsiderado que há uma efetiva discriminação no mercado de
trabalho às pessoas com “doenças mentais”, fazendo com que estas busquem essas rendas-
benefício, inclusive por processos de interdição judicial, para assim auxiliarem no seu
sustento mínimo ou ser complemento indispensável na renda familiar e para alívio financeiro
da mesma.
A tabela seguinte registra o tempo de participação dos pacientes no grupo
Tabela 5 - Tempo de participação dos pacientes no grupo no CAPS II, Ijuí/RS- 2013
Tempo de grupo Usuário Percentual
0 - 2 anos Seis pacientes 28,57%
É nesse sentido que a categoria território se mostra pertinente, tanto no que se refere
ao alcance social dos bens produzidos pela sociedade moderna, quanto para a
investigação das realidades sociais mais deploráveis. Se de um lado o território -
cenário das relações sociais -, pode ser essencial para investigar a
apropriação/dominação do espaço e sua relação com a saúde, de outro, torna-se
importante para o planejamento de ações que permitam diminuir os impactos dessa
apropriação na vida das pessoas. (FARIA, 2009, p.37)
alimentos naturais. O contato dos usuários com este novo território dentro da própria
comunidade possibilitou o aprendizado de socialização, isto é, que podem sair de seu
isolamento. Também possibilitou aos usuários estarem mais próximos de pessoas com as
quais puderam ter um diálogo enriquecedor sobre atividades ligadas à natureza e à produção
de alimentos.
No território cultural, o grupo, por meio de uma “biblioteca” de periódicos e revistas
doadas ao CAPS II, ofereceu de forma regular opções de leituras aos usuários do serviço. Ao
final do período da reunião, cada um poderia fazer um resumo daquela “manchete” que lhe
tinha chamado atenção, possibilitando, assim, uma maior aproximação com outros contextos
da realidade de seu interesse.
Outro território cultural a que os usuários tiveram acesso foi a biblioteca pública
municipal onde, com a orientação da terapeuta ocupacional, puderam ter acesso a esse
universo enriquecedor. Foram feitas frequentes e regulares visitas, o que lhes permitiu o
contato com diferentes produções literárias, de acordo com seus interesses de leitura.
Considera-se esta atividade enriquecedora para o universo das palavras, das imagens de cada
um dos usuários e facilitadora para seu processo de comunicação.
No território do mundo do trabalho, os usuários puderam fazer visitas pré-agendadas
a algumas indústrias produtoras de alimentos do município onde foram recebidos por um
funcionário da empresa encarregado de mostrar as instalações e o funcionamento do processo
industrial na produção de alimentos. Isto causou uma satisfação especial para alguns usuários,
pois em outros momentos tinham trabalhado em tais indústrias. Enfatizo, como observador
participante, que os usuários foram sempre tratados com muito carinho e respeito pelos
diretores e funcionários dessas empresas onde sempre ao final da visita recebiam algum tipo
de “mimo”.
Com relação às atividades no território do lazer, pude acompanhar os frequentes
“piqueniques” às áreas de lazer das mineradoras de águas minerais da Fonte Ijuí e Itaí onde
sempre havia programação para o dia inteiro. O lazer incluía atividades esportivas,
apresentações musicais e o tradicional churrasquinho organizado pelos usuários e seus
familiares com a ajuda dos profissionais da equipe que os acompanhavam. Sempre que esses
passeios implicavam um deslocamento mais longo, eram fornecidos ônibus pelas próprias
empresas de transporte do município.
Ainda como atividades de lazer e cultura, foram feitas visitas ao SESC.
Sistematicamente esta instituição participa na organização de diferentes atividades culturais a
todos os envolvidos, incluído peças teatrais e apresentação de filmes previamente escolhidos
86
pelos usuários. Cabe destaque especial aos passeios que foram feitos com os grupos, em
diferentes momentos, às ruinas de São Miguel pela possibilidade do contato com a cultura
indígena e sua importância para toda região missioneira. Atualmente, local resgatado como
patrimônio histórico da humanidade.
Certamente esta circulação dos usuários por esses diferentes territórios enriqueceu o
mundo interior de cada um com novos símbolos, com novas palavras, com novas memórias e,
assim, ampliou a capacidade de comunicação, a capacidade cognitiva, permitindo e
facilitando a convivência no grupo, na família e propiciando a cada um a apropriação de sua
vivência social a partir da visão de território como um local com função social.
Outra atividade que enriquece o mundo interno das pessoas com esquizofrenia é arte-
terapia realizada no “grupo operativo-terapêutico” do CAPS II, na cidade de Ijuí. Este
trabalho que contou com a orientação de uma artista plástica visa não só resgatar a própria
capacidade dos usuários para diferentes atividades, mas também, promover mudanças na
autoimagem desses sujeitos, isto é, deixarem de ver a si mesmo como um inválido. A arte-
terapia também estimula a capacidade destas pessoas de apropriarem-se da realidade a partir
de suas opiniões a respeito da releitura da obra, em estudo.
Um fragmento do trabalho dos usuários em arte-terapia
Nos grupos com a orientação da artista plástica e com a participação dos usuários
foram reproduzidas algumas releituras de obras de arte e viabilizada a manifestação de seus
sentimentos ao produzi-las e observá-las. Esta é uma maneira de os usuários expressarem e
apropriarem-se de seus sentimentos e, por extensão, de seus corpos, de suas histórias de vida,
facilitando, assim, a reconstrução de uma nova identidade, que não a do “louco inválido”, mas
sim de uma pessoa com capacidade de produção criativa. Portanto uma pessoa com direitos à
inclusão social, à emancipação, ao reconhecimento e respeito à diferença, elementos tão
importantes na metodologia da educação popular.
A arte é uma forma de comunicação que ajuda a compreender e respeitar as
diferenças. Conforme Monteiro(2009), referenciando-se na mitologia junguiana, a arte é a
linguagem da alma; permite escutar a alma de outrem:
se uma comunicação que está além das fronteiras, que não precisa estar baseada
restritamente no código verbal. (MONTEIRO, 2009, p.21).
U. 19: “O grito para mim significa tristeza porque o homem está sem orelha e está
numa escuridão perto do mar, numa ponte. O mar parece estar agitado com ondas fortes”.
U.17: “O grito me passa curiosidade o que está acontecendo?”.
U.10: “Eu acho que o mundo está acabando para esta pessoa doente da cabeça.
Não sabe o que está acabando ao ficar doente. Não vê o mundo ao redor”.
Os usuários, ao expressarem seus sentimentos sobre esta obra, mostram também sua
subjetividade. Esses sentimentos podem evidenciar sua preservada capacidade cognitiva de
observação da realidade; sua capacidade de curiosidade por esta realidade; sua tristeza frente à
finitude das coisas; mas também sua capacidade de pertencimento à espécie humana. Nota-se
o quanto está presente a capacidade dos usuários de falarem de suas vivências que podem ser
transformadas através do grupo em experiência, permitindo a cada um, em especial, a
apropriação de seu corpo, de suas emoções e por que não de sua própria história de vida, em
uma autêntica individualização no social. Viabiliza-se, assim, uma intensa e rica contribuição
educativa não formal através da arte-terapia.
Embora os exemplos relatados pela observação participante a respeito do trânsito dos
usuários entre os diferentes territórios citados, inclusive no de arte-terapia, ainda há em nossa
comunidade de Ijuí uma forte resistência para que os usuários que estão estáveis em seus
tratamentos no CAPS II possam ser referenciados aos seus respectivos ambulatórios de
origem. Todavia, não se pode deixar de registrar os esforços da equipe matricial do CAPS II
para reduzir essas resistências. Questiono se esta resistência estaria associada ao próprio
processo em construção de inclusão e de emancipação na saúde mental e indicaria que a
reforma psiquiátrica sempre enfrentará resistências e riscos de retrocesso.
As mudanças no processo da Reforma Psiquiátrica são desafios constantes aos
profissionais da saúde mental, aos responsáveis pelas políticas públicas de saúde no seu
cotidiano institucional. A esses agentes públicos cabe a tarefa de expandir e consolidar as
mudanças numa rede de cuidados que tenha como base a compreensão de território, os
princípios de integralidade e a participação popular. É indispensável a sua própria
qualificação técnica e que sua vontade política parta dos desejos da população. Enfatizo que a
mudança do modelo hospitalocêntrico para o modelo de tratamento na comunidade por si só
não garante a transformação da prática realizada no campo da saúde mental especialmente
enquanto as diferentes contribuições da comunidade na área da saúde mental não tiverem o
mínimo de articulação e integração. Frente a estes desafios o papel do CAPS é fundamental
junto às comunidades locais. Em nosso estudo, de maneira especial o do CAPS II junto à
comunidade de Ijuí/RS.
89
A seguir discorro sobre o processo educativo e de como ele pode ocorrer em saúde
mental. Utilizo este espaço para falar da importância da educação popular no Brasil e na
América e por que não de sua influência na pedagogia social tão utilizada na Europa. Destaco
a utilização da educação popular como uma metodologia à qual se associa a prática do “grupo
operativo-terapêutico”. Para tal, recorro a uma comparação entre as fases do círculo da cultura
e as fases que ocorrem no grupo, tanto em sua tarefa inicial de inclusão social, quanto na
consequente e necessária construção da autonomia possível aos usuários de um serviço de
saúde mental.
90
4 O PROCESSO EDUCATIVO
Viajar neste poema significa conhecer-se a si mesmo e não conhecer outros países.
Ser outro constantemente, estar aberto a mudanças. Por a alma não ter raízes, não estar
apegado ‘às coisas’.
“De viver de ver somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir”.
Este desprendimento, estar aberto a mudanças, é uma condição fundamental para que
ocorra o processo educativo. Aprender é viver essa ansiedade da troca do conhecido e ir para
esse lugar desconhecido.
4.1 A EDUCAÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Ao iniciar este tema, retomo o questionamento já levantado no mestrado (Amaral
2013) e que espero seja também pertinente nesta nova pesquisa a respeito do processo
educativo em saúde mental. Educação inclusiva de quem?
- Das pessoas com psicose crônica (esquizofrenia) para que aceitem suas
“diferenças” em relação a um padrão de normalização do ser produtivo, tomado como
sinônimo de ser saudável, ser normal; para que aceitem o estigma profundamente gerador de
preconceitos;
-Dos familiares para lidarem com sua culpa de não estarem formando/produzindo
pessoas dentro da lógica de produção e consumo, o que agrava as desigualdades sociais, pois,
por diversas razões, a psicose crônica dificulta a mobilidade social;
91
A Educação Popular como prática e teoria tem uma história de mais de cem anos no
Brasil e na América Latina. O processo de formulação de uma pedagogia que se
nutre de diferentes abordagens filosóficas e de práticas educativas populares
concretas está fortemente ligada a pedagogia de Paulo Freire. A relação fundamental
entre sociedade e educação na obra de Paulo Freire permite compreender qual é o
significado de educação, tomada como possibilidade de libertação humana, na nossa
27
Para Freire a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as
classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação libertadora, que é, ao mesmo
tempo, gnoseológica, política, ética e estética. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige
que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que requer a curiosidade
epistemológica, a problematização, a rigorosidade, a criatividade, o diálogo, a vivência da práxis e o
protagonismo dos sujeitos. (PALUDO, C., Dicionário Paulo Freire, Ed. Autêntica 2010, p.141).
93
28
O social representa algo autônomo, com um sentido próprio, que não pode ser reduzido às estruturas sociais,
nem à sociedade, nem aos processos psíquicos internos dos indivíduos. A categoria do “social” é direcionada às
relações reais- “submersas no indivíduo e na sociedade como um todo”.
Fichtner B., 2013, p. 353, A EDUCAÇÃO POPULAR UMA VISÃO EUROPEIA, in Educação Popular Lugar
de construção social e coletiva, STRECK.D; ESTEBAN, M.T. (orgs.) - Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
94
da educação bancária. Em ambos, a apreensão da realidade passa a ser uma prioridade aos
seus participantes.
Vários movimentos da cultura popular retomam os procedimentos de dinâmica de
grupos juntamente com uma crítica ética e, sobretudo, política, daquilo a que Paulo Freire deu
o nome de uma educação bancária por oposição a uma educação libertadora. Nesta surgem e
difundem-se práticas de ensinar e aprender fundadas na horizontalidade das interações
pedagógicas, no diálogo e na vivência de aprendizagem como um processo ativo e partilhado
na construção do saber (BRANDÃO, 2010, p. 69).
EDUCAÇÃO POPULAR: FASES DO CÍRCULO DA CULTURA
No “círculo de cultura”, o diálogo deixa de ser uma simples metodologia ou uma
técnica de ação grupal e passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no
suposto de que aprender é aprender a dizer sua palavra (BRANDÃO, 2010, p. 69).
No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidade de
consciências”; não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações
solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica de
grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo (FREIRE, 2017,
p.15). Destaco que o coordenador (“observador participante”) deve ser conhecedor da
realidade local dos participantes.
Fig. 4 Fases do círculo da cultura (segundo Freire 2016, p.78)
Levantamento do universo
vocabulário.
Estas práticas não são tanto a aplicação de uma concepção educacional, mas sua
recriação e reinvenção, por conta da pluralidade de contextos, temáticas e atores
com os quais interage; em consequência, vem se gerando práticas e saberes
emergentes, que devem ser documentados e tornar-se objeto de reflexão na busca da
reconstrução da educação popular como pedagogia emancipatória.
(Torres apud STRECK, 2013, p. 16).
29
Para Freire a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as
classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação libertadora, que é, ao mesmo
tempo, gnoseológica, política, ética e estética. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige
que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que requer a curiosidade
epistemológica, a problematização, a rigorosidade, a criatividade, o diálogo, a vivência da práxis e o
protagonismo dos sujeitos. (PALUDO, C., Dicionário Paulo Freire, Ed. Autêntica 2010, p.141).
96
A seguir, procuro evidenciar que este processo vem ocorrendo de forma consistente, e por que
não sistemática, já que os encontros dos grupos são semanais.
O usuário, quando questionado sobre sua capacidade de reconhecer a doença mental
no outro, mostra em sua resposta o desconhecimento que ele tinha sobre sua doença e como
isso dificultava para ele lidar com a mesma: “Ajudou porque antes não conhecia nada sobre
isto, sobre a “doença”, aqui começou a ver conversar com as pessoas e aprender a
identificar”. (U. 6, C.1). A aprendizagem é feita, assim, na presença do outro, do colega que
enfrenta as mesmas dificuldades com a esquizofrenia. Dessa maneira, essas contribuições
educativas podem ser indispensáveis para desmitificar a “doença mental”, muitas vezes vista
como um ato punitivo dos céus, ou da terra.
A Educação popular em saúde mental através do grupo possibilita aos usuários
trabalharem a aceitação da “doença mental”, o que não deve ser considerado como sinônimo
de resignação, mas, sim, o reconhecimento das limitações. Isto contribui para uma nova
subjetivação do usuário, não esquecendo que todo esse processo é acompanhado por seus
familiares, o que permite que essa aprendizagem possa ser reforçada em seu cotidiano
familiar.
Os grupos no CAPS II são opções relevantes porque permitem não só as trocas de
informações, mas também um caráter educativo e formativo, e com um alcance muito amplo
na própria comunidade. Vasconcelos (2013), em seu artigo “Educação popular em saúde”, no
livro “Educação Popular: lugar de construção social coletiva” reflete a respeito de como essas
trocas nos serviços de saúde se estendem e se ampliam na comunidade.
“O debate continua para além dos espaços educativos da equipe de saúde, pois as
conversas são muito intensas nas comunidades, gerando repercussões imprevistas. A
valorização dos espaços educativos coletivos contribui ainda para o fortalecimento
de uma cultura organizativa e cidadã na comunidade”.
(VASCONCELOS 2013, p. 115).
30
Delgado (2014) discorre na educação em saúde mental a respeito de alguns
importantes trabalhos sobre o aspecto educativo destinado aos familiares nos CAPS, mas
acentua que esse trabalho não é feito de forma sistemática. O autor destaca ainda que essas
estratégias para trabalhar a família da pessoa com “doença mental” precisam ser construídas
com situações educativas, capacitação de habilidades para situações da vida diária, construção
de estratégias de solidariedade e ajuda mútua.
Nas respostas dos usuários e familiares constata-se que o “grupo operativo-
terapêutico” constitui-se num espaço que permite o compartilhamento dessas experiências
entre todos os participantes. O familiar na próxima resposta mostra sua intensa afetividade em
relação ao seu familiar enfermo e também o seu aprendizado de perceber mudanças no
comportamento, nos afetos deste usuário uma atitude de compreensão, de apoio nesses
momentos através do diálogo, “Pela maneira de agir, de se portar parece muitas vezes que
eles nos olham dizendo: precisamos de amor, carinho, compreensão, não só de remédios”.
(F.1, C.1). Destaco, em especial, a parte final da resposta: “não é só de remédios que ele
precisa”.
A resposta a seguir fala explicitamente a respeito do aprendizado com o outro, na
convivência com o outro, portanto uma educação essencialmente dialógica, “A convivência
com as pessoas ensinou a agir de forma certa nas situações delicadas”. (F.2, C.1). Nesta
resposta do familiar vê-se um exemplo de aprendizagem compartilhada entre iguais, sem que
necessariamente o processo hierarquizado esteja presente, mas sim prioritariamente o desejo
de aprender para lidar com situações que afetam diretamente seus cotidianos. Esta resposta
constitui-se numa importante demonstração de educação popular, propiciada por esse
ambiente de compartilhamento presente no grupo.
Percebe-se que o processo educativo no grupo vem ocorrendo na relação informal dos
seus participantes, pois a convivência dos familiares das pessoas com esquizofrenia permite a
constante troca de informações sobre seus cotidianos. Por outro lado, de maneira formal, o
grupo tem sido um espaço importante conforme as falas de seus usuários e familiares,
inclusive nos momentos em que os profissionais são chamados pelo grupo a darem sua
contribuição no esclarecimento de determinadas dúvidas ou em momentos de “ruídos” no
processo de comunicação.
30
Para Delgado (2014), o acompanhamento e apoio às famílias de usuários em atendimento na rede de saúde
mental é um importante e urgente desafio da política pública. Os serviços de saúde mental, entre os quais os
CAPS, apesar de realizarem, de acordo com as informações disponíveis, ações terapêuticas e de apoio dirigidas a
familiares [...] não utilizam, de forma sistemática, estratégias de informação, educação em saúde e construção de
autonomia, direcionadas a familiares de pacientes esquizofrênicos ou com outros transtornos mentais graves.
(DELGAD0, 2014, p.1106).
98
Os familiares, ao serem questionados sobre os efeitos que o grupo tem nos seus
entendimentos do que ocorre com seus familiares enfermos, reforçam em suas respostas o
papel educativo que o grupo em saúde mental tem para eles. Esses resultados evidenciam que
o grupo constitui-se num espaço efetivo para o processo de ensino aos familiares no
reconhecimento da esquizofrenia no outro e em seu familiar enfermo. O familiar, ao aprender
a conviver com as diferenças, ajuda ao seu familiar com psicose crônica a prevenir as crises, a
construir outro lugar nesta família, numa nova subjetivação que não a da exclusão.
Vasconcelos (2013) destaca a importância da educação popular na construção de
práticas educativas em grupos dentro do serviço de saúde e em atividades coletivas na
comunidade. Embora não esteja referindo-se especificamente aos grupos operativo-
terapêuticos em saúde mental, mas aos grupos de forma geral, mostra que a vivência em
grupo permite o exercício de participação de iguais onde cada um tem seu lugar de fala e a
quem falar.
Torres (2001), em seu artigo “Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no
campo da saúde mental”, destaca a importância do exercício participativo para a mudança da
condição de usuário/objeto para usuário/ator, tornando-o sujeito político.
Para Delgado 31
(2014), a proposta de “aprendizado através de parceiros”, também
chamados de tutores, associada ao processo participativo na comunidade está constantemente
em evolução. Cabe à educação popular no campo da saúde pública motivar, ordenar e
sistematizar pedagogicamente essa participação, e não a mera audiência de “palestras
cientificas”, em um modelo de educação bancária, respeitando assim as diferenças e os
tempos adequados de aprendizagens de seus participantes.
31
A proposta de “aprendizado através de parceiros” (peer education), no campo da Saúde Pública, supõe que
os tutores cujo saber tem grande aceitação e credibilidade, justamente por nascer da experiência, sejam eles
próprios sujeitos da forma de transmissão do conhecimento que desenvolvem, sentindo-se “empoderados” em
sua nova prática (TURNER; SHEPHERD, 1999), o que dificilmente ocorreria se os familiares se colocassem na
mera posição de audiência de palestras científicas ou técnicas. (DELGADO, 2014, p.1113).
99
Faz-se oportuno destacar o quanto observo ao longo desta práxis com grupos em saúde
mental a possibilidade de mudanças para os usuários e seus familiares, especialmente na
reconstrução de seus vínculos. Inicialmente nas reuniões do grupo, mas espera-se que esta
reconstrução se estenda ao seu cotidiano familiar. A vivência com as diferenças
primeiramente se faz no dia-a-dia dessas famílias. Saliento, de maneira especial, a
32
importância que as orientações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2013) na área de Saúde
Mental dão ao papel dos grupos e de outros dispositivos no apoio aos familiares e aos
cuidadores, ou seja, de serem espaços de produção de sentido para suas vidas associado a
atividades prazerosas.
O Ministério da Saúde (BRASIL, 2013) valoriza a práxis de Pichon Rivière (2009)
associada à importância de as pessoas se sentirem participantes ativas no grupo, isto é, com o
sentimento de pertencimento grupal. Assim, em nosso tempo atual, o grupo pode ser
considerado como um elemento fundamental no cuidado em saúde mental.
O grupo deve ser proposto de tal modo a permitir que seus integrantes tenham voz,
espaço e corpos presentes; se sintam verdadeiramente como integrantes ativos de um
grupo. Não há participação verdadeiramente ativa em um grupo sem que os sujeitos
que se colocam tenham condição de ser ouvidos em suas demandas, para depois
poder ouvir e colaborar com a demanda alheia e proposta geral; constituindo,
somente a partir daí, um verdadeiro sentimento de pertencimento grupal.
(M.S. 2013, p.123).
32
[...] Essa atuação pode ser realizada de diferentes maneiras, como: – Oferecimento de acolhimento escuta
regulares e periódicas; – Grupos de orientação aos familiares; – Grupos de cuidado aos cuidadores; –
Intervenções domiciliares que diminuam a sobrecarga da família cuidadora; – Oferecimento de dispositivos da
rede social de apoio onde os familiares cuidadores de pessoas com sofrimento psíquico possam ter garantido
também espaços de produção de sentido para sua vida, vinculados a atividades prazerosas e significativas a cada
um.( BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde
mental, Departamento de Atenção Básica, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. (Cadernos de
Atenção Básica nº 34) – Brasília: Ministério da Saúde, 2013, p.67).
102
33
BRASIL (2013) por meio do Ministério da Saúde em seu caderno de atenção básica nº34, p. 121 em saúde
mental valoriza os grupos, enquanto tecnologia de cuidado complexa e diversificada, são teorizados pelas mais
diferentes molduras teóricas, podendo ser úteis nas formulações de dinâmicas grupais. Tais ofertas das formas de
intervenção são derivadas das demandas recorrentes dos profissionais que desejam incorporar novas ferramentas
de trabalho, perguntando-se “como faço grupo?”, “como saio do meu espaço clínico individual?”, entendendo
este espaço como produtor de saúde e possuindo impacto nos determinantes e condicionantes de saúde dos
sujeitos e coletividades. (BRASIL, 2013, p. 121).
104
aprendizagem para as pessoas envolvidas. Aprender em grupo significa uma leitura crítica da
realidade, uma atitude investigadora, uma abertura para as dúvidas, para as novas inquietações
e para mudanças, características estas presentes na dialética pichoniana.
A dialética é entendida por alguns estudiosos como um método cientifico; outros a
consideram como consciência de classe; e outros a associam com a teoria crítica social. Para
Pereira (2013, p.24), a diferença entre estes dois últimos entendimentos é de que a base
ontológica da teoria crítica não é o proletariado, mas a essência humana negada e oprimida
pelo capitalismo. Recorro novamente ao estudo de Pereira (2013) para reforçar a compreensão
a respeito do uso que Pichon-Rivière (2009) faz do conceito de dialética. Nas palavras
textuais de Pereira (2013) destaca-se o quanto Pichon-Rivière (2009) percebe o ser humano
imerso em uma realidade concreta e sua possibilidade de transformá-la:
USUÁRIOS FAMILIARES
Resistências a mudanças:
Conflitos= Fantasias inconscientes
Adesão ao tratamento= Diálogo
Prevenção das crises= Estabilidade
Apropriação de:
Seu próprio corpo: “atividades físicas” (T.O.)
Seus Sentimentos: seus relatos, arte-terapia
Sentimentos básicos:
Pertença, cooperação e pertinência
USUÁRIOS FAMILIARES
VÍNCULOS DE COMUNICAÇÃO-DIÁLOGO
APREENSÃO DA REALIDADE
(Aprendizagem das mudanças)
MUDANÇAS NA AUTOIMAGEM
(Dependência-Suas Capacidades)
AUTONOMIA POSSÍVEL,
PARA O CUIDAR DE SI
Na figura 6, estuda-se a viabilidade por meio das diferentes fases no “grupo operativo-
terapêutico” do processo de autonomia possível aos usuários do CAPS II, objeto da presente
tese.
O grupo é uma prática efetiva a ser analisada pela viabilidade de constituir-se num
espaço de aprendizado participativo de todos os envolvidos em saúde mental. Examina-se
107
também, o quanto a participação efetiva dos familiares no grupo pode contribuir para a
construção de um novo espaço de subjetivação, extensivo ao seu ambiente familiar.
Faz-se oportuno expor o resumo de uma importante pesquisa feita por Durão (2004)
com grupos e a associação com diferentes momentos do tratamento de pessoas com psicose
crônica. A autora trabalha em sua dissertação: “Grupo de Acompanhamento de Pacientes e
Familiares de Portadores de Esquizofrenia Medicados com Clozapina: O Impacto Sobre o
Cotidiano de Suas Vidas”.
Durão (2004) divide sua pesquisa em três momentos: o cotidiano dos pacientes sem o
uso de medicação; o cotidiano dos pacientes com o uso da medicação; e em um terceiro
momento o cotidiano dos pacientes com o uso da medicação e a participação no grupo
terapêutico, em todas as situações com o acompanhamento dos pacientes e familiares.
Durão34 (2004) destaca em suas observações do primeiro momento, quando os
entrevistados estão sem o uso da medicação clozapina e sem o acompanhamento em grupo,
que predominava o sofrimento e a agressividade.
No segundo momento, Durão35 (2004) observa que, após iniciar o uso da medicação
clozapina, mas sem participarem ainda no grupo, os participantes apresentavam melhora
significativa na agressividade associada ao sofrimento dessas pessoas com psicose crônica.
A autora pesquisa a importância do uso da medicação clozapina para a diminuição da
agressividade no relacionamento entre os pacientes e familiares. Para isso, socorre-se dos
pesquisadores Bechelli & Caetano, utilizados na citação a seguir:
34
O primeiro momento do estudo, analisado até aqui, permite-nos observar que antes do uso da clozapina e
acompanhamento em grupo, o cotidiano dos pacientes e seus familiares era permeado por sofrimento e
agressividade, aspectos estes que influenciavam negativamente o relacionamento com pessoas significativas
pertencentes ou não ao ambiente familiar. A sintomatologia resultante da doença contribuía ainda para a
diminuição do desempenho ou até mesmo para ruptura das atividades de trabalho, estudo e de convívio social.
(DURÃO, 2004, p. 71).
35
No segundo momento: Podemos observar que após o uso da clozapina, antes de realizarem acompanhamento
em grupo, os pacientes apresentaram melhora significativa da agressividade, a qual era marcante e responsável
por grande sofrimento psíquico tanto dos pacientes quanto dos familiares. Entretanto, embora tenha ocorrido
melhora da agressividade, os sintomas negativos da doença permaneceram dificultando os relacionamentos, o
trabalho, o estudo, as atividades sociais e outras atividades do cotidiano dos pacientes. (DURÃO, 2004, p. 78).
108
36
No terceiro momento: Quando questionados sobre os vários aspectos do cotidiano do paciente, após
participação no grupo, foi possível observar que tanto os familiares quanto os pacientes expressaram satisfação
com o tratamento que vem recebendo, o que pode ser observado através dos temas que emergiram de seus
depoimentos. (DURÃO, 2004, p. 81).
109
Para tanto, é indispensável refletir sobre as prioridades dadas aos recursos financeiros
para a política de saúde mental, pois os mesmos estão associados à escolha de modelo de
atenção em saúde a ser priorizado, ou seja, o biomédico ou o biopsicossocial. Certamente tal
escolha está implicada com a viabilidade de uma verdadeira inclusão social e não apenas a
desinstitucionalização das pessoas com doença mental. Para isto me apoio no estudo: “A
análise do financiamento da Saúde Mental no Brasil após 2001”, feito por Edineia Figueira
dos Anjos Oliveira37 que avalia os recursos para a saúde mental no período de 2001 a 2014.
Em seu estudo, a autora realizou a pesquisa documental, utilizando: relatório final da
IV Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM); Relatório Nacional de Saúde Mental
2003- 2006, 2007-2010, 2011-2014; Saúde Mental em Dados nº11; dados do Sistema
Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) enviados pela Coordenação
Nacional de Saúde Mental. Analisou ainda os sistemas de informações que se constituem em
bancos de dados do governo Federal: Departamento de Informática do Sistema Único de
Saúde (DATASUS) e Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Eis suas
palavras a respeito de seus questionamentos:
No referido estudo, a autora também reflete sobre que modelo de atenção em saúde
possa estar sendo privilegiado. Neste contexto, questiono o papel do “grupo operativo-
terapêutico” no atendimento aos usuários de um serviço de saúde mental na comunidade de
Ijuí. Especialmente aos usuários com psicose crônica (esquizofrenia) e as perspectivas de sua
verdadeira inclusão social e não apenas a sua desinstitucionalização, considerando os aspectos
que envolvem a política nacional de recursos financeiros para uma verdadeira política de
inclusão social, objetivo maior da reforma psiquiátrica no Brasil.
37
Aluna do Programa de pós-graduação em política social (PPGPS) (doutorado) da Universidade Federal do
Espírito Santo. Bolsista da FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo).
110
Foi a partir deste belíssimo texto de John Donne (1623) que o escritor norte-
americano Ernest Hemingway inspirou-se para o título do seu romance “Por Quem os Sinos
Dobram” (1940). O “grupo operativo-terapêutico” não pode funcionar como uma ilha, pois
sua importância deve ser melhor estudada pelo risco de a atual política de saúde mental ficar
diminuída, especialmente como um espaço de oposição ao modelo biomédico de assistência à
saúde. Quando se estuda a evolução dos recursos destinados à saúde mental, evidenciam-se
algumas inversões gritantes naquilo que deveria ser a política participativa e emancipatória a
todos os envolvidos.
Como as demais políticas sociais no Brasil, a política de saúde mental brasileira sofre
com a insuficiência de recursos, considerando que é do excedente econômico do capital que
se utiliza para o financiamento das políticas sociais. No atual neoliberalismo brasileiro a
prioridade do excedente é utilizado para o pagamento da dívida externa e seus juros. Os
recursos destinados à saúde, em especial os gastos realizados na saúde mental ao longo dos
anos, revelam a questionável prioridade dada a esta área por parte do Estado, considerando
que, apesar do direito constituído e regulamentado por portarias, não se garantiram recursos
satisfatórios para implementação plena dos serviços de saúde mental. Implementação que
implica a mudança de paradigma do modelo biomédico, centralizado prioritariamente na
medicalização para um modelo biopsicossocial de assistência à saúde que contemple todos os
aspectos ambientais, sociais e familiares do adoecimento (OLIVEIRA, 2016, p.12).
Nesse sentido, Oliveira (2016) destaca a necessidade de ampliação dos recursos
destinados à saúde mental para possibilitar a implantação da rede assistencial proposta pela
Portaria 3.099 de 201138, que caminha na direção da consolidação da proposta da reforma
psiquiátrica e que tem como um dos seus objetivos que os gastos hospitalares sejam menores
que os gastos extra-hospitalares, induzindo, assim, a mudança do modelo de atendimento em
saúde mental. Destaco que não basta atingir este objetivo, mas que se avaliem criteriosamente
38
Estabelece, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), recursos a serem incorporados ao Teto
Financeiro Anual da Assistência Ambulatorial e Hospitalar de Média e Alta Complexidade dos Estados, Distrito
Federal e Municípios referentes ao novo tipo de financiamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
111
A luta por mais recurso na saúde mental para construção e manutenção de serviços
extra hospitalar reflete a correlação de forças sociais e os interesses envolvidos na
apropriação dos recursos públicos. Revela o comprometimento da gestão do fundo
público com os interesses do capital, evidenciando um Estado comprometido com os
interesses da classe dominante, ainda que dispense algumas ações para atender as
pressões das classes subalternas (OLIVEIRA, 2016, p.13).
39
Medicamento é o principal agente tóxico que causa intoxicação em seres humanos no Brasil, ocupando o
primeiro lugar nas estatísticas do SINITOX desde 1994; os benzodiazepínicos, antigripais, antidepressivos, anti-
inflamatórios são as classes de medicamentos que mais causam intoxicações em nosso País (44% foram
classificadas como tentativas de suicídio e 40% como acidentes, sendo que as crianças menores de cinco anos –
33% e adultos de 20 a 29 anos – 19% constituíram as faixas etárias mais acometidas pelas intoxicações por
medicamentos). Bortoletto, Maria Élide e Bochner, Rosany: Impacto dos Medicamentos nas Intoxicações
Humanas no Brasil (Cad. Saúde Pública, RJ 15 (4)859869-out/dez. l999).
114
mental agudo e/ou crônico, seja ambulatorial, seja hospitalar, faz-se necessário o registro da
mudança no perfil das pessoas que buscam os serviços de Pronto Atendimento (P.A) e de
Pronto Socorro (P.S) em saúde mental em nossa comunidade, especialmente nos últimos
anos.
Anteriormente, as pessoas que procuravam esses serviços o faziam por graves
quadros psicóticos em agudização, associados ao intenso despreparo das famílias e da própria
comunidade em dar-lhes uma atenção adequada. Atualmente, um número expressivo de
pessoas que procuram esses serviços o fazem por frequentes e graves intoxicações
medicamentosas, seja por uma severa tentativa de suicídio, seja como uma forma de pedir
socorro por seus conflitos sociofamiliares que estão intensamente agudizados. Necessário é
que se considere tão frequentes e graves situações como um fenômeno de saúde pública a
requerer um estudo mais acurado. Que razões estão presentes neste fenômeno” cultural” em
saúde pública?
Será que este fato ocorre por um excesso de medicalização, especialmente na rede
pública, muitas vezes associado à sobrecarga no trabalho dos profissionais e a
suas dificuldades para uma escuta mais adequada das queixas de sofrimento do
usuário e de seus familiares, o que, na maioria das vezes, por si só dispensaria a
medicalização em excesso?
Pela falta de uma adequada ação educativa em relação ao uso da medicação?
Aos profissionais da medicina, pelo uso excessivo de várias medicações para uma
“mesma queixa”, o que pode ser chamada de uma indiscriminada
“polifarmacologia”?
Aos serviços de dispensação da medicação os quais, na maioria das vezes, dão a
medicação para um período prolongado de tempo, às vezes por um período de
meses, fazendo que o usuário leve para sua casa caixas e caixas de medicação?
Ao usuário que deposita um poder mágico na medicação, dispensando-o, assim,
de uma maior responsabilidade com os cuidados de sua própria saúde?
Pela falta de um comprometimento familiar, em especial nas situações em que
seu familiar enfermo está com sua saúde mental tão vulnerável que não tem
condições de assumir os cuidados com sua medicação, fazendo-se indispensável a
presença do familiar nos diferentes momentos do atendimento?
115
de gastos com essas ações variou entre 3,63 % em 2003 e 3,55% em 2006 do montante gasto
com ações extra-hospitalares. Surpreendentemente, a partir de 2007, o percentual gasto com
as ações de reinserção social caiu, chegando em 2014 a 1,25% do total gasto com as ações
extra-hospitalares. Com esses dados fica desnudado que as portarias que regulamentam estes
programas não garantiram a expansão desses serviços de forma satisfatória que caracterize
avanço no processo de desinstitucionalização (OLIVEIRA, 2016, p.9).
Para o programa de incentivo aos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT)40,o
Ministério da Saúde assegura dois tipos de financiamento: pelo repasse a fundo de incentivo
no valor de 10 mil reais por cada módulo implantado com oito moradores, recurso que se
destina a fazer pequenos reparos no imóvel, equipar a residência com móveis,
eletrodomésticos e utensílios necessários, tido como recurso de investimento; pelo custeio das
Residências terapêuticas, que é feito por meio da realocação das Autorizações para
Internações Hospitalares (AIHs) - dos leitos psiquiátricos de longa permanência
descredenciados do SUS para o Programa de Saúde Mental.
Este último mecanismo mostrou-se insuficiente, pois as realocações das AIHs dos
leitos descredenciados do SUS para a permanência dos moradores na Residência Terapêutica
não são automáticas, mas dependem de pactuação entre os gestores municipais e estaduais
para garantir que o recurso seja, de fato, utilizado para o custeio dos SRTs e permaneça no
fundo estadual ou municipal. Em alguns estados ou regiões, tal ajustamento foi efetivo, porém
em diversos municípios com número importante de leitos tais ajustes não se realizaram
satisfatoriamente (OLIVEIRA, 2016, p.9).
Esses indicadores mostram a necessidade de ampliação das verbas para ações extra-
hospitalares de reinserção social: dos incentivos para as Residências Terapêuticas, do
Programa de Volta para Casa e o Incentivo de Inclusão social. Considero um dos fatores que
contribuem para esses limitados recursos na saúde mental para as ações de reinserção social a
pequena participação da comunidade na fiscalização desses recursos e a acentuada
desarticulação nas três esferas de poder: federal, estadual e municipal.
Cabe esclarecer que no município de Ijuí não existem os Serviços das Residências
Terapêuticas (SRT). Neste contexto, considero indispensável ressaltar que a falta deste
serviço deixa inúmeras pessoas com esquizofrenia morando em condições precárias, sem as
40
SRT, regulamentado pela Portaria nº106/GM/MS, de 11 de fevereiro de 2000, prevê o acolhimento de pessoas
com internação de longa permanência (dois anos ou mais ininterruptos), egressas de hospitais psiquiátricos e
hospitais de custódia sendo estratégicos no processo de desospitalização e reinserção social de pessoas
longamente internados nessas estruturas hospitalares.
117
mínimas condições de higiene, o que força estes usuários a terem uma maior dependência ao
CAPS II e a uma maior dificuldade para conquistarem sua autonomia possível.
Neste cenário, a luta por mais recurso à saúde mental para construção e manutenção de
serviços extra-hospitalares torna-se indispensável, embora não se desconsidere a correlação de
forças sociais e os interesses envolvidos na apropriação desses recursos públicos. Para
Oliveira, 2016, p.13, esta intensa apropriação dos recursos públicos pelas classes dominantes:
“Revela o comprometimento da gestão do fundo público com os interesses do capital,
evidenciando um Estado comprometido com os interesses da classe dominante, ainda que
dispense algumas ações para atender as pressões das classes subalternas”.
Com este estudo e as importantes constatações feitas por Oliveira (2016) evidencia-se
que há muito a ser feito na reforma psiquiátrica. Para tanto, torna-se indispensável a
participação da comunidade para uma verdadeira inclusão social. É, portanto, prioritária a
participação democrática das forças populares que atuam na comunidade para que possa
ocorrer, efetivamente, resistência à espoliação do Estado pelos interesses econômicos, como
o da indústria farmacêutica, que veladamente se articulam, em especial, pelo modelo
biomédico de assistência à saúde para que, predomine uma medicina curativa em detrimento
de uma efetiva medicina preventiva.
Neste nosso estudo em saúde mental, a medicina preventiva está associada à construção da
autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental na comunidade de Ijuí. O que se
deseja é que essas pessoas com esquizofrenia sejam emancipadas e não tuteladas pelos próprios
serviços de saúde da comunidade, e que possam dar-se conta de sua capacidade de cuidar-se na
perspectiva de emancipação, um dos fundamentos básicos da educação popular.
O Modelo Biopsicossocial em Saúde Mental, uma nova realidade possível.
É absolutamente indispensável contrapor-se aos discursos que buscam ser
hegemônicos no modelo biomédico de assistência à saúde, pois que valorizam tão somente a
medicalização e os procedimentos de alta tecnologia, ou seja, a biotecnologia na saúde, em
que predomina a razão instrumental em detrimento de uma razão da ação comunicativa.
Neste modelo de assistência à saúde, muitas vezes os padrões éticos dos diferentes
segmentos envolvidos são questionáveis, na medida que submetem suas atuações
exclusivamente aos interesses econômicos da indústria farmacêutica e da indústria de
biotecnologia. O questionamento destes padrões éticos não implica desconhecer a necessidade
do uso criterioso de medicamentos e a importância da biotecnologia para uma melhor
expectativa e qualidade de vida.
118
familiares dos usuários junto ao grupo, buscando relacioná-la com a autonomia possível aos
usuários. Neste estudo, o grupo prioriza a participação de todos os envolvidos, oportunizando,
em especial aos profissionais participantes, uma vivência interdisciplinar que permite uma
reflexão do momento atual da reforma psiquiátrica em nossa comunidade.
Neste contexto, a participação das diferentes áreas de atuação profissional junto ao
grupo é indispensável, pois evidencia um modelo de intervenção interdisciplinar não
hierarquizada, como preconiza o modelo biopsicossocial, baseada nas demandas das próprias
necessidades dos usuários do grupo.
O registro desta participação foi feito a partir da pergunta, realizada no mestrado
(Amaral 2013): De que forma sua área de atuação profissional pode contribuir em um grupo
operativo- terapêutico de inclusão social de “pacientes” psicóticos? É indispensável ressaltar
que as contribuições permanecem ocorrendo ao longo de todo o período de atividades do
grupo, com destaque especial no período atual em que a pesquisa de doutorado vem sendo
realizada, pois a mesma considera que não basta incluir, mas que é preciso criar condições de
autonomia possível, de emancipação às pessoas com esquizofrenia, participantes do grupo.
Para tanto as contribuições das diferentes áreas da saúde se tornam indispensáveis conforme
se observa em seus relatos.
Auxiliar de Assistência Social: “Quando iniciei na saúde mental (trabalhar “com
loucos” como diziam há 25 anos) eram só medicamentos e hospício; ao passar dos anos foi
então se transformando e eu sem formação nenhuma acompanhando, foram se formando
equipes, assim eu vi encantada a evolução na saúde mental: o quanto é importante um grupo
de inclusão social, o potencial de cada um, a capacidade, a alegria, o sorriso voltando em seus
rostos”.
Assistente Social: “A família do paciente que participa dos grupos também é
atendida pelos profissionais do CAPS e pelo Serviço Social; a rede familiar é um dos eixos de
sustentação do tratamento, sendo o resgate de vínculos, a conscientização do tratamento
medicamentoso, e a importância do comparecimento ao CAPS. O Serviço Social trabalhou no
grupo questões referentes aos direitos e deveres dos pacientes, tais como: Benefícios
Assistenciais, Auxílio-Doença, Aposentadoria, Moradias, Habitação, entre outras...”.
Artista Plástica: “Da experiência que tenho enquanto artista plástica considero toda
forma de arte como uma verdadeira terapia. Arte-terapia atua como facilitadora, abrindo um
caminho de reequilíbrio interior, resgate de identidade, autoestima, refletindo na melhora de
sua conduta nas relações com o seu grupo, meio, sociedade”.
120
Fernando Pessoa neste poema “Não sei quantas almas tenho” reflete acerca de si
próprio. Parece haver um sentimento de multiplicidade e de um questionamento que pode
ser universal, tentando responder à questão “Quem sou eu”? Faz-se oportuno lembrar um
estudo sobre o poeta Fernando Pessoa a respeito de seus conflitos emocionais e seu processo
criativo, imortalizado como um dos maiores poetas da língua portuguesa.
Eis o título do estudo: “Estudo Patográfico de Fernando Pessoa” feito por
Albuquerque e Bastos 41(2009), apresentado no Congresso Brasileiro de Psiquiatria em 2010.
Em seu resumo é destacada a preocupação em delinear seu “múltiplo perfil psicológico e
41
“Fernando Pessoa, incontestavelmente um dos maiores gênios da literatura universal, é objeto deste estudo
patográfico. Através da análise de sua biografia e obra, os autores buscam delinear seus perfis psicológico e
psicopatológico e caracterizar uma associação entre sua evidente bipolaridade e seu padrão criativo. Os dados do
estudo revelam claramente um componente bipolar e sugerem haver influência de seu humor de base sobre a
atividade literária, quanto ao conteúdo, número de poemas e estilo literário. Verifica-se a presença de múltiplas
comorbidades: Dependência de Álcool, Transtornos de Ansiedade Generalizada, de Ansiedade Social, além de
Fobias Específicas. Do ponto de vista caracterológico, constata-se um Transtorno de Personalidade Esquizoide,
com evidentes transtornos da psicossexualidade. (ALBUQUERQUE E BASTOS, 2009).
122
psicopatológico” (grifo meu para destacar a que ponto pode chegar a “microscopia da
alma”), mas que não impediram a sua produção criativa por meio de suas obras poéticas, de
reconhecimento mundial.
Frente a esta caracterização, fruto de um cuidadoso estudo por parte de seus autores,
quero destacar as palavras-chaves: bipolaridade; espectro bipolar; criatividade, utilizadas
para caracterizar e facilitar a busca do assunto e, entre elas, de forma especial, a palavra
“criatividade”. Frente a tamanho sofrimento psíquico do poeta Fernando Pessoa na busca de
sua identidade, evidencia-se o caráter sublimatório em sua obra, dando a todos um legado
primoroso sobre o conflito humano e a sua universalidade. Seriam esses traços “patológicos”
característicos de sua pessoa que o tornaram diferente e com dificuldade de convivência
social? Questiono: Não teria a sociedade da sua época, também, o isolado por ser “diferente”?
Concebo esta questão como extremamente relacionada ao atual processo de
subjetivação em saúde mental. Inicialmente nesta contextualização sobre subjetivação destaco
as respostas dos usuários e de seu familiares no enfrentamento do preconceito como elemento
importante para a construção de uma nova subjetivação, que não a do “louco excluído”, mas
sim de uma pessoa com capacidades de cuidar de si, de ter sua autonomia possível.
preconceito/estigma em suas vidas por meio das diferentes contribuições educativas na saúde
mental.
Ao ser questionado sobre sentir-se afetado pelo preconceito à “doença mental”, a
resposta deste usuário impressiona pelo nível de sofrimento que ela expressa: “Antes do
tratamento era amigo das pessoas. Hoje o chamam de louco porque vou ao CAPS. Sente-se
acusado, maltratado.” (U.9, C.3). Tal exclusão construída ao longo dos séculos permanece e
ainda se faz presente em nossos dias, É indispensável, neste momento, a reflexão a partir da
obra de Foucault (1997) “História da Loucura na Idade Clássica” de como se construiu essa
realidade de discriminação e exclusão ao longo dos séculos, e como essas se produzem a
partir da divisão binária do normal e do anormal, numa repetição do discurso de poder e
dispositivos disciplinares. Em suas palavras:
Quando alguém adoece num grupo familiar há tendência de excluir esse membro,
surgindo o mecanismo de segregação, de cuja intensidade dependerá o prognóstico
do paciente. A marginalização produz-se porque o doente é depositário das
ansiedades de seu grupo e, assim, trata-se de afastá-lo com a fantasia de que, com
desaparecimento dele, desaparecerá a ansiedade. (PICHON-RIVIÈRE, 2009, p. 78).
Não se pode esquecer, porém, que o processo de ansiedade faz parte da vida do ser
humano cotidianamente, acentuando-se em diferentes momentos e em distintas fases de sua
vida, tendo em vista que todo processo de mudança gera ansiedade. Acrescente-se a isto o fato
de que vivemos em uma sociedade de produção e consumo, que gera constantemente
ansiedade pela necessidade da satisfação de “infinitos desejos”, o que por si implica escolha
de um objeto de consumo em detrimento de centenas de desejos frustrados, numa perversa
lógica mercantilista geradora de ansiedade.
Nessa dialética de exclusão e inclusão dão-se as condições na comunidade local para
que o movimento social pela reforma psiquiátrica possa estar continuamente se reciclando.
Faz-se necessário um processo educativo que viabilize o enfrentamento do preconceito aos
usuários do serviço de saúde mental e, posteriormente, uma menor dependência dessas
pessoas a este serviço e aos seus próprios familiares (autonomia possível). A inclusão social
que se busca nesse espaço de um “grupo operativo-terapêutico” em saúde mental por meio
de uma educação popular é uma inclusão que possa estar inserida num processo de (nova)
subjetivação, de autonomia e cidadania.
Reputo oportuno destacar a resposta de um usuário ao assunto da improdutividade, já
mencionado em outros momentos: “No começo me incomodava com o que as pessoas
pensavam que CAPS era lugar de louco, que não fazia nada.” (U.6, C.3). Nesta resposta, há
um intenso sofrimento vivenciado quando ele percebe que as pessoas associam CAPS II como
“lugar de louco”. Questiono por que agora não se incomoda mais, pois usa o verbo no
125
passado. Seguramente o grupo teve participação nessa mudança, podendo assim constituir-se
num espaço para a construção de relações de solidariedade no enfrentamento ao preconceito
por parte dos usuários do CAPS II.
O aspecto do preconceito é possivelmente um importante fator de resistência para o
usuário buscar tratamento em saúde mental. Por outro lado, reforça a competência do grupo
para discutir o tema “preconceito” em relação à “doença mental”, ocasião em que o usuário
pode encontrar outras pessoas com quem se identificar, dar e receber solidariedade. Percebi
essa mudança em suas falas de modo subjetivo, mas também de forma clara nas palavras que
usam em muitas de suas respostas ao tema preconceito.
Destaco as condições adversas nos dias atuais para o processo de subjetivação, tendo
em vista as intensas e constantes mudanças que se vive no mundo atual, considerado por
Bauman (2001) “o mundo da modernidade líquida”, tamanha é sua fluidez, isto é, nada é
sólido, permanente. Esse fato provoca constantes mudanças nos referenciais e valores no
convívio social, dificultando o processo de subjetivação/identificação.
Que outro tipo de subjetivação é possível nessa sociedade descrita por Bauman
(2001) como modernidade líquida que não o das pessoas se tornarem mercadoria nessa lógica
de produção/consumo? “Nessa modernidade líquida, o que escorre em nossas mãos e não
podemos pegar é nossa liberdade”. E sem ela não é possível participar no processo de
subjetivação; as pessoas permanecem no mundo das coisas, dos objetos, impedidos de
conquistarem autonomia e cidadania.
Na saúde mental é importante entender o sofrimento que a segregação causa à pessoa
com psicose crônica, especialmente na esquizofrenia, sofrimento que pode ser compartilhado
no “grupo operativo-terapêutico” onde se encontram presentes outros usuários, seus familiares
e os profissionais da saúde mental. Este encontro permite que os participantes possam mediar
e dar um novo significado a tal sofrimento, especialmente a partir da “produção-criativa” dos
usuários, possibilitando-lhes, novas subjetivações que não a de “loucos/ inválidos”.
Ressalto que o processo de “produção-criativa” dos usuários de um serviço de saúde
mental deve ser considerado uma importante forma de resistência à “subjetivação-objetos”,
possibilitando uma nova subjetivação às pessoas com sofrimento mental crônico para que
possa ocorrer um novo olhar de si mesmo, de seu familiar e da comunidade, que não o do
“vagabundo/inválido”.
Ao ser questionado sobre como se sente afetado pelo preconceito da “doença
mental,” o familiar participante do grupo mostra-se compreensivo e solidário ao usuário,
“Não é ele que quer ser assim, a família tem que aprender a suportar” (F.8, C. 3). Porém,
126
não podemos esquecer que, na maioria das vezes, a incompreensão, quando ocorre é por falta
de conhecimento das pessoas envolvidas, até mesmo em nossos dias atuais.
Ao observar-se a importância da participação dos familiares no tratamento da pessoa
com psicose crônica, reforço a necessidade de iniciativas que promovam a educação e
esclarecimentos aos mesmos, viabilizados pela participação no tratamento de seu familiar
enfermo. O grupo é um importante espaço para tal participação.
Para Delgado42 (2014), a falta de esclarecimentos aos familiares atrapalha o seu
cotidiano, justificando assim a importância da educação em saúde mental. Em seu texto
destaca a fala de um familiar: “pelo amor de Deus! Me explica o que é esquizofrenia! Me
ensina a cuidar de minha filha”.
Para Silveira (2005), o entendimento do processo de adoecimento é fator
indispensável para prevenir crises ou recaídas que geram tanto sofrimento ao usuário e a todos
os familiares de seu convívio. As palavras de Silveira (2005) a respeito da adesão ao
tratamento:
42
A maioria dos familiares relatou que a ausência desse “esclarecimento” e de uma “explicação” atrapalham a
lida cotidiana, o que justifica a existência de abordagens psicoeducativas e/ou educação em saúde mental. De
acordo com eles, a falta de iniciativas das equipes dos serviços para orientação sobre como lidar com a situação é
um problema. Apesar disso, alguns participantes reconhecerem que, a partir do tratamento no CAPS, passaram a
entender e a lidar melhor com a situação, [...] “pelo amor de Deus! Me explica o que é esquizofrenia! Me ensina
a cuidar da minha filha”. (DELGADO ,2014, p.1118-19).
127
de seu familiar como “pré-requisito” à adesão ao tratamento e não como uma resignação
passiva.
O grupo permite a todos seus participantes vivência com as diferenças, algo tão
indispensável nos dias atuais. Vivências que podem tornar-se experiências e que nas palavras
de Bondía (2002) diferem de experimento, pois naquela há necessidade da ação ser
vivenciada, apropriada por parte da pessoa que a vive enquanto neste apenas repetição da ação
“sem ser tocada por ela”.
Bauman43 (2001), referindo-se a outros tipos de diferenças, convida a todos para
pensarem a respeito da arte deste aprendizado de convivência com as diferenças. Pondero o
quanto este aprendizado da aceitação e do convívio com as diferenças passa primeiramente
pela família para depois se estender ao social. E nos dias de hoje possa ser uma necessidade
indispensável para a sobrevivência da sociedade como tal.
Subjetivamente, na maioria das falas dos envolvidos na pesquisa, percebo o quanto
os familiares são tocados por suas vivências compartilhadas no grupo, o que considero uma
real experiência de ensino e aprendizagem. Esta lhes será de intensa utilidade para possibilitar
que ocorra o processo de uma nova subjetivação, com a autonomia possível à pessoa com
esquizofrenia no seu cotidiano familiar.
Após abordar com auxílio das palavras dos usuários e de seus familiares o
enfrentamento do preconceito às pessoas com doença mental, a seguir contextualizo alguns
referenciais teóricos usados como subsídios para o estudo de uma nova subjetivação em saúde
mental.
43
Para Bauman: A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e
beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte,
requer estudo e exercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade dos seres humanos e a ambivalência de
todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam [...] (BAUMAN, 2001, p.135).
44
Assim, institui-se uma demarcação estrita de territórios epistemológicos, de forma que a intervenção da
psicanálise sobre o corpo-organismo foi excluída. Com isso, o corpo-organismo foi colonizado pela medicina e o
psiquismo desencarnado foi entregue a psicanálise. Dessa maneira, o sujeito foi repartido entre saberes e práticas
clínicas, para o prejuízo não apenas da psicanálise, mas principalmente das subjetividades sofrentes. (BIRMAN,
2000, p. 58).
128
b-Teoria do reconhecimento
Abordo este tema da subjetivação na saúde e em especial na saúde mental também à
luz da “teoria do reconhecimento”. Para tanto recorro ás ideias de Honneth (2003), que vê o
reconhecimento como um processo de construção da identidade, atribuindo à identidade o
sentido de liberdade individual e de autonomia. Neste processo, a intersubjetividade assume
um papel central, pois esta identificação é construída por meio da interação social. O autor em
sua obra “Luta por Reconhecimento a gramática moral dos conflitos sociais” sistematiza o
conceito de reconhecimento tomando como base os escritos de Hegel, especialmente quando
este autor se vale da filosofia da consciência. Na sua escrita, Honneth (2003) retoma os textos
do jovem Hegel, que destaca: “o indivíduo só pode ter uma relação positiva consigo se for
reconhecido pelos demais membros da comunidade” (WERLE, 2008, p. 188).
Honneth45(1996) apresenta a distinção das três esferas do reconhecimento: a dos
afetos e da autoconfiança; a das leis e direitos (do auto respeito); a da solidariedade social e da
autoestima. Para Carmo (2015), são três os espaços onde o sujeito pode experienciar o
reconhecimento: na família, onde o indivíduo é reconhecido como ser amante; no direito, o
indivíduo é reconhecido como pessoa de direito; no estado, o indivíduo é reconhecido como
sujeito socializado em sua unicidade. Para o autor esses espaços se relacionam entre si: na
experiência do amor a possibilidade de autoconfiança; na experiência do direito, o
autorrespeito e na experiência da solidariedade/estado a autoestima (CARMO, 2015, p. 7).
As ideias de Axel Honneth (2003) são associadas à saúde em especial nos estudos de
Carmo (2015). Em suas palavras:
45
Axel Honneth nasceu em 18 de julho de 1949 na cidade de Essen (Alemanha). Filósofo e sociólogo é
considerado, um dos principais nomes da terceira geração da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Professor
da Universidade de Frankfurt, A partir de 2001 torna-se diretor do Instituto para Pesquisa Social da mesma
universidade. Seus estudos sobre reconhecimento tornaram-se bastante relevantes, e o autor aborda o assunto no
livro "Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais" (1996), In: (HONNETH, 2003, p. 29-
69)
130
A luta por reconhecimento de Honneth (2003) tem nas relações intersubjetivas dos
sujeitos a base para sua construção teórica. Compreender como se dão as relações
interpessoais entre os sujeitos, identificando situações de conflitos, pontos de tensão
moral, situações de desrespeito que motivem ações dos sujeitos é de grande
importância para estudos das ciências sociais. Através deste estudo verificou-se a
aplicação da teoria do reconhecimento de Honneth (2003) no campo da saúde e a
importância desta teoria para os estudos nas ciências da saúde.
(CARMO, 2015, p 5).
c- Cuidado de si
Em outro contexto de subjetivação, Ortega46(2001), ao escrever sobre o assunto em
“Corpo Afeto Linguagem a questão do sentido hoje,” convida a pensar sobre a mudança do
eixo de poder para o da subjetivação, tão presente na fase posterior das obras de Foucault,
especialmente em Histórias da sexualidade II: o uso dos prazeres (1994) e na História da
sexualidade III: o cuidar de si (2014). Apresenta assim um caminho como forma de
resistência ao processo de normatização, qual seja o da (nova) subjetivação, do cuidar de si.
Foucault (2014) utiliza como objeto de estudo a moral presente no pensamento greco-
romano no qual a ética está associada a um estilo de vida, e que serve como reflexão para “o
cuidar de si” no contexto da realidade atual. O cuidado de si deve ser relevante para a
construção do sujeito, isto é, para ele decidir sua própria vida, ou seja, ter autonomia. Portanto
o cuidar de si é indispensável no processo de subjetivação do ser humano.
Este processo do cuidar de si não ocorre de forma automática embora tão estimulado
pelos intensos apelos estéticos em nossa atual sociedade de consumo e com fortes traços de
narcisismo. Sem perceberem, as pessoas estão tornando-se mercadorias. Esta pode ser
considerada uma das marcas da sociedade contemporânea. Nesta lógica consumista há intensa
dificuldade de mudança, e o cuidar de si exige uma luta diária. Nas palavras de Touraine47
(2006), “Não há sujeito senão rebelde, dividido entre raiva e esperança”. E nesse cenário,
criar as condições para que ocorra um novo processo de subjetivação torna-se um desafio para
as contribuições educativas em saúde mental.
Convém destacar no contexto atual a visão de Bauman (2005) a respeito das
dificuldades das pessoas constituírem suas identidades numa sociedade globalizada, e em
tempos de transitoriedade intensa na modernidade líquida.
46
Com a introdução do cuidado de si e da estética da existência, Foucault efetuou em seu pensamento um
deslocamento cuja principal consequência foi o privilégio do eixo da subjetivação em detrimento do eixo do
poder. Com isso, o sujeito deixou de ser concebido como resultado de práticas disciplinares, passando a ser
tematizado de forma autônoma [...]. (ORTEGA, 2001, p. 160).
47
Para Touraine, (2006): “O sujeito se forma na vontade de escapar às forças, às regras, aos poderes que
impedem de sermos nós mesmos, que procuram reduzir-nos ao estado de componente de seu sistema e de seu
controle sobre a atividade, as intenções e as interações de todos. Estas lutas contra o que nos rouba o sentido de
nossa existência são sempre lutas desiguais contra um poder, uma ordem. Não há sujeito senão rebelde, dividido
entre raiva e esperança”. (TOURAINE, 2006, p. 119).
133
produtivo não impede que se estimulem os usuários do serviço de saúde mental a serem
criativos em suas atividades. Para isso é indispensável respeitar os seus tempos de
aprendizagens, os seus tempos para realizarem suas tarefas e não o tempo imposto pela
sociedade da “modernidade líquida”.
Nessa dialética de invalidez e produção criativa dão-se as condições na comunidade
local para que os profissionais atuantes na saúde, os familiares envolvidos e os usuários do
serviço de saúde mental possam estar continuamente se reciclando, especialmente no respeito
às diferenças, no tempo de aprendizagem de cada um dos usuários.
“Hoje se sente mais tranquilo, mais calmo, antes não tinha paciência para
atividades.” (U.21, C. 8). A mudança a que se refere este usuário ao ser questionado sobre
autonomia é que antes sua ansiedade/agitação não lhe permitia ter persistência para as suas
atividades. Será essa intensa ansiedade uma das dificuldades para que a pessoa com psicose
crônica inicie e conclua suas atividades? Será que os familiares percebem como lidar com
essas limitações no seu convívio diário? Trabalhar esses aspectos com o usuário e o seu
familiar em um local que permita o diálogo educativo a ambos é indispensável para se
responder a essas questões.
A resposta deste familiar participante do grupo: “Depois que começou a participar
do grupo ficou mais responsável, começou a ter mais interesse nas atividades”. (F.12, C.8) é
resultado das suas observações das diversas mudanças em seu familiar enfermo e ocorre a
partir das diferentes contribuições educativas no grupo. Essas mudanças podem ser uma
motivação para que no cotidiano de sua casa o familiar possa continuar a dar o estímulo
adequado para o usuário realizar suas atividades, participando assim ativamente na construção
da autonomia possível a essa pessoa que vivia isolada.
É imprescindível trabalhar e aprofundar esses aspectos do “cuidado de si” abordados
no cotidiano familiar para que o usuário possa construir uma nova subjetivação, que não a do
louco inválido. No contexto dos referenciais para uma nova subjetivação, é indispensável
refletir sobre a autonomia que as pessoas com doença mental conseguem conquistar.
5.1.2 Autonomia um referencial indispensável para uma nova subjetivação
A palavra autonomia48 tem origem no grego e significa: autos (si mesmo) e nomos
(lei), indicando a capacidade de um indivíduo de se autodeterminar, autorrealizar. Qual a
relação entre autonomia e saúde, em especial a saúde mental?
48
No dicionário Aurélio encontram-se os seguintes significados para autonomia:
1. Faculdade de se governar por si mesmo;
2. Direito ou faculdade de se reger (uma nação) por leis próprias;
136
49
Para Flickinger o significado do conceito iluminista de autonomia é intimamente ligado ao da maioridade.
Falar da maioridade expressa apenas o status legal e político da autonomia, que, por sua vez, traz consigo uma
49 Cont.
conotação ético-moral. Ao esboçar sua resposta à pergunta: “Que é esclarecimento?”, I. Kant fez da
maioridade o conceito-chave para explicar o que deveria ser entendido com o termo “esclarecimento” ou
137
“De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem “nada, que não
podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo
isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade”. Falam de si como os que
não sabem e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de
saber que lhe são impostos são os convencionais.” (FREIRE,2017, p. 69)
“iluminismo”. A tarefa de tirar a pessoa do estado da menoridade, dando-lhe a competência de decidir sobre seus
interesses e sua atuação, sem intromissão de outros, marca o centro da argumentação kantiana. Usar seu próprio
entendimento é a virtude do homem esclarecido, que dele faz um ser autônomo. (FLICKINGER, 2011, p. 8)
138
“Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha
presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta de influências das forças
sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o
que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo”.
(FREIRE, 2013, p. 53)
Portanto, resistir não é simplesmente se opor. É algo muito mais difícil e complexo:
é criar, é produzir rupturas, é afirmar outras lógicas, outras realidades.
50
Nessa perspectiva, busca-se o desenvolvimento de uma consciência crítica (FREIRE, 1980) envolvendo o
entendimento de como as relações de poder na sociedade moldam as experiências e percepções de cada pessoa, e
de poder identificar como cada um pode ter um papel dentro de uma mudança social. Isto é particularmente
importante em situações de opressão, discriminação, desigualdade e assujeitamento, a partir das quais os
indivíduos internalizam crenças e representações de invalidação sobre sua própria identidade e poder.
(Freire apud ALVES 2013, p. 53).
139
51
Parece que o ponto nodal está em definir o que pode ser entendido como autonomia para nós e para a clientela
assistida. De acordo com Leal a produção de autonomia pode ser caracterizada em duas vias: Primeiro o
abandono da expectativa de resolutividade e eficácia a partir da comparação com o nosso desempenho; e
segundo a criação de outras possibilidades de vida a partir deste outro padrão de subjetivação.
(Leal apud SANTOS, 2000, p.47).
140
medida em que assume mais responsabilidade consigo mesmo em cuidar de si. Nas palavras
de Santos (2000):
Freire (2013) fala da raiva, da indignação e o papel formador que ela pode ter quando
se direciona as injustiças, ao desamor [...].
Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra
as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a
violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os
limites que a confirmam perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se
alongar em odiosidade. (FREIRE, 2013, p. 41).
“um estrangeiro”. Cabe aqui perguntar: a que solidariedade Bauman (2001) está se referindo?
No contexto da saúde mental será a solidariedade de ouvir o outro, de respeitar as diferenças?
Neste contexto associo a resposta de um familiar participante do grupo ao item
empatia com o sofrimento mental do outro: "De acompanhar meu marido nos encontros e dos
outros pacientes falarem a respeito do mesmo problema e de ver que às vezes não são iguais,
mas passam pelas mesmas dificuldades”. (F.11, C. 1) como um modelo ao que Bauman
(2001) se refere como solidariedade no respeito às diferenças. Esta solidariedade contribui
para construir a autonomia das pessoas, em especial pelo respeito à diversidade.
A autonomia é uma construção cultural, não é algo natural, depende da relação do
homem com os outros e destes com o conhecimento. “Neste processo, o ato de ensinar é criar
as possibilidades para a construção do conhecimento” (FREIRE,1998, p. 43).
No atual estágio de conhecimento em relação à esquizofrenia, questiona-se o que
pode ser entendido como cura: a ausência de crises e/ou a ausência de internações, a menor
dependência dos usuários ao serviço de saúde mental, a menor dependência à medicalização,
ou a menor dependência à sua família. Percebe-se a partir desses questionamentos sobre o
conceito de cura a necessidade de se construir novos conhecimento a este respeito. Portanto
faz-se oportuno trabalhar na construção de uma política da aceitação do diferente. Também
não se pode esquecer que a diferença é um elemento indispensável na constituição da
subjetividade, embora seja acentuadamente desconsiderada no processo de normalização, tão
presente em nossa sociedade.
Esta contextualização mostra que o atual conhecimento em saúde mental implica
prioritariamente respeitar as diferenças e o diferente (cidadão) num constante processo de
aprendizagem libertadora do estigma, do preconceito. Possibilita ao usuários a construção de
uma autonomia possível, especialmente para um melhor cuidar de si.
Na perspectiva de uma nova subjetivação em saúde mental, estudo a melhora dos
usuários que assumem seus tratamentos no CAPS II Ijuí R/S, pois, além da redução acentuada
na frequência de suas crises, passam a ocupar um novo papel em sua estrutura familiar, isto é,
uma nova subjetivação que não a da exclusão. Neste contexto é oportuno lembrar Freire
(2013), para quem a ideia de liberdade não exime a pessoa de sua responsabilidade. “Gosto de
ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada,
preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja
responsabilidade não posso me eximir” (FREIRE, 2013, p.52).
É pertinente lembrar um usuário que tinha frequentes e intensas crises antes de
assumir seu tratamento junto ao grupo. Crises que causavam um intenso sofrimento a si e aos
144
seus familiares, pois em seus surtos perdiam todo contato com o mesmo. Passava longos
períodos desaparecido, vivendo como um “andarilho.” Atualmente este usuário encontra-se
estável, fora das crises e novamente integrado em seu ambiente familiar. “Sim, voltei a
estudar, passei para 5ª série, hoje moro num sítio com minha irmã e trabalho bastante, é
muito bom estar ocupado”. (U.1, C.7).
Os usuários, após as reuniões do grupo, participaram de atividades de alfabetização e
reforço escolar durante três semestres, com a orientação de professoras cedida pela secretaria
de educação do município de Ijuí. Certamente este foi um importante fator para motivar este
usuário para voltar a estudar, além do importante apoio familiar. Este usuário está tendo uma
participação responsável no processo de construção de sua autonomia possível.
A construção desta emancipação, desta autonomia possível aos usuários de um serviço
de saúde mental constitui-se num dos temas prioritários para a reforma psiquiátrica atual na
medida em que se busca inclusão social com autonomia e cidadania. Ratifico que o
movimento de humanização da saúde mental no Brasil necessita constantemente estar
revisando seus objetivos e as resistências a enfrentar, capacidade que considero indispensável
para que os diferentes movimentos sociais não sofram desastrosos esvaziamentos.
Está implícito na resposta deste familiar: “Hoje ele ajuda a fazer as atividades em
casa, por ex.: lavar sua própria roupa”. (F.13, C.7), o que é possível de autonomia para o seu
familiar enfermo em determinado momento. É oportuno voltar ao questionamento sobre o
conceito de cura, e a enorme dificuldade para se trabalhar uma política de aceitação do
diferente.
Reputo como cura a menor dependência do usuário ao serviço de saúde mental e,
porque não, ao seu próprio familiar. Evidência que pode ser reforçada pela opinião desse
familiar, incluindo o seu grau de satisfação com a melhora de seu familiar enfermo, pois a
opinião/participação do familiar não pode ser desconsiderada em nenhuma fase do tratamento.
Essa luta pelo outro só é alcançada se for permitido ao usuário e familiar estar à
frente da decisão de como se cuidar, de como gostariam de ser cuidados,
direcionando o foco tanto de militância quanto de crítica ao modelo manicomial,
possibilitando assim a autonomia do sujeito. (ALVES, 2013, p.67)
que o tema é abordado de forma enfática, buscando subsídios na ética do período clássico
para ser discutido e refletido como uma forma estética para a nossa atualidade. Nesta fase: A
História da sexualidade II (o uso dos prazeres) (1984), A História da sexualidade III (o
cuidado de si) (1985).
Na genealogia do poder, que se constitui na segunda parte da obra de Michel Foucault,
o autor faz uma análise sobre o poder. Primeiramente sobre o poder disciplinador e o
desdobramento deste no biopoder (poder sobre os corpos). A organização social é constituída,
em sua visão, pelas microrrelações de dominação que se encontram construídas e reforçadas
nos espaços institucionais que garantem, a partir do século XVII, formas de controle sobre os
indivíduos, utilizando para tal os seus corpos.
A fragilidade de nossos corpos faz com que, por meio da disciplina, possam ser
manipulados e com isso normalizados e regularizados. Na obra: Vigiar e punir, Foucault
(2000) dedica-se a analisar o nascimento das prisões, mas também demonstra como uma
concepção social do corpo como objeto se realiza nesse espaço. Percebe-se no pensamento
foucaultiano a preocupação em esclarecer um pouco mais esta relação entre corpo e poder a
partir da época clássica.
Para Caponi52 (2009), podemos ver esta dialética entre o mundo dos direitos versus
o mundo das exceções. Em seu artigo: “A persistência do poder psiquiátrico”, destaca que o
poder disciplinador domestica o corpo. Eis suas palavras: “O psiquiátrico será esse lugar onde
a vontade perturbada, as condutas indesejadas e as paixões pervertidas se defrontam com a
retidão da moralidade socialmente esperada” (CAPONI 2009, p.101).
Por outro lado, a autonomia para o cuidado de si é relevante para a constituição do
sujeito, isto é, para ele decidir sua própria vida, ou seja, enfrentar o condicionamento social.
Portanto, o cuidar de si é indispensável no processo de subjetivação do ser humano. Foucault
(1985) enfatiza o “sujeito” como elemento presente em sua obra a partir de um processo de
construção, especialmente em sua terceira fase quando procura estudar a arte de cuidar de si.
Para tanto contextualizo, a obra de Foucault (2014): A história da sexualidade III o cuidado de
si.
Foucault (2014), baseado nas culturas dos gregos, dos romanos e registradas no
pensamento de Platão, Sócrates, Sêneca, Marco Aurélio e outros filósofos, toma o cuidado de
si como cuidado do corpo, alma e espírito, constituindo a autovaloração do ser. Na abordagem
52
Distinção entre o mundo dos corpos que devem ser cuidados e o mundo habitado por aqueles que têm o
estatuto de vida nua, de vidas que foram postas “fora da jurisdição humana” de modo tal que “a violência
cometida contra eles não constitui nenhum sacrilégio”. (CAPONI, 2009. p.102).
147
deste tema no referido contexto é oportuno questionar quem deve cuidar de si. A resposta
pode ser encontrada em Foucault (2014) quando o autor reflete a respeito do que os filósofos
da época clássica recomendavam:
Mas que os filósofos recomendam cuidar-se não quer dizer que esse zelo esteja
reservado para aqueles que escolhem uma vida semelhante a deles; ou que tal atitude
só seja indispensável durante o tempo que se passe junto a eles. É um princípio
válido para todos, todo o tempo e durante toda a vida. (FOUCAULT, 2014, p. 62)
para com seu familiar enfermo, o que permite refazer laços familiares. O usuário deixa de ser
excluído e passa a ser pertencente à família. Este entendimento entre usuários e familiares é
indispensável para um ambiente acolhedor no cotidiano familiar.
Categoria 03 – Capacidade de lidar com o estigma e o preconceito- Usuários/
Familiares
As respostas dos usuários em suas participações no CAPS II, através do “grupo
operativo-terapêutico”, revelam suas maneiras de encarar o estigma e o preconceito.
Observa-se uma evolução, pois inicialmente sentiam-se (verbo no tempo passado)
inferiores, discriminados pelas pessoas, considerados como “loucos”, e o CAPS II como
“lugar de quem não faz nada”.
Na percepção dos familiares, as principais ideias ligadas ao tema preconceito são de
que este existe na enfermidade mental, e de forma significativa está presente em seu
cotidiano causando um duplo sofrimento: lidar com a “doença mental” e com o preconceito
que a acompanha. Este empoderamento por meio da convivência com o outro, por sentir que
não está sozinho, é indispensável no enfrentamento ao preconceito, na construção da
autonomia possível aos usuários com esquizofrenia.
Categoria 4 - confiabilidade no outro- Usuários/ Familiares
Na maioria das respostas dos usuários predomina o verbo no tempo passado ao se
referirem a um sentimento comum, qual seja o de isolamento. Conclui-se que o grupo
contribuiu nas mudanças ao ajudá-los a saírem de seus isolamentos (“era mais fechada, agora
se relaciona melhor”).
Percebe-se nas falas dos familiares o quanto o grupo tem papel fundamental para
mudanças para ajudar o usuário a sair de seu isolamento; ajudá-lo a modificar sua forma de
pensar; a perceber que pode estar distorcendo a realidade e vendo o mundo de forma
assustadora. O processo de ensino e aprendizagem foi efetivo aos participantes do grupo,
usuários e familiares para entenderem a doença mental, suas limitações e essencialmente
como lidar com ela. Estas etapas são indispensáveis para que essas pessoas possam, a partir
do conhecimento e apreensão de sua realidade, construir sua própria autonomia possível,
especialmente para um melhor cuidado de si. Portanto num processo emancipatório, princípio
básico para a educação popular.
A abordagem do tema II nos permite aprofundar os elementos que possam ser
considerados essenciais para a construção da autonomia possível aos usuários com psicose
crônica (esquizofrenia) no CAPS II, na cidade de Ijuí R/S.
TEMA II: “OS ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA”
152
escolaridade, o que se constitui em uma forte motivação para que o tema educação esteja
constantemente presente nas discussões do grupo, mesmo que de maneira informal, na medida
em que a educação popular prioriza a participação criativa de todos os envolvidos no processo
educativo e emancipatório. Nos diferentes temas abordados, percebeu-se que na maioria dos
usuários está presente a capacidade de simbolizar suas emoções, de vivenciar suas ações e
também de adquirir novos conhecimentos embora sua capacidade cognitiva frequentemente
possa apresentar algum tipo de comprometimento.
Esta capacidade cognitiva pode e deve ser estimulada por um novo meio acolhedor e
estimulante como o grupo, mas também em seu ambiente familiar facilitando o
aprofundamento de questões como participação no lar, no trabalho e nos estudos.
Categoria 8 - Capacidade de autonomia- Usuários/Familiares
A construção da autonomia é por si só um processo contínuo que não se esgota por
uma determinada técnica, ou num determinado período de vida. O que se espera, e as
respostas dos usuários mostram isso, é que o grupo possa ser um espaço onde a prática de
educação popular, de vivência dialógica e participativa contribua para a construção da
autonomia possível aos seus participantes.
Conclui-se que no espaço do grupo é indispensável e fundamental a participação dos
familiares no processo de emancipação, no cuidado de si às pessoas com sofrimento mental
crônico, pois este processo educativo deve estender-se ao cotidiano familiar.
As categorias agrupadas no Tema II mostram que os usuários, em sua grande maioria,
após iniciarem no “grupo operativo-terapêutico”, permanecem vinculados a ele por longos
períodos. Isto permite pensar no importante papel de socialização que o grupo pode exercer
por meio de uma educação participativa, mas acima de tudo num papel libertador e educativo
nos cuidados de si e com os outros usuários envolvidos.
Observa-se a função educativa que o grupo pode ter para os usuários e seus familiares:
Por suas regularidades na frequência no grupo ao longo desse período;
Como suas referências a um lugar de encontro com outros usuários, seus
familiares e os profissionais de saúde mental;
Pela construção de vínculos, o que para a pessoa com sofrimento psíquico crônico,
especialmente o esquizofrênico, representa um grande desafio. Vínculos
libertadores do caráter isolacionista;
Na intensa prática educativa nos cuidados de si na presença do outro. Todos estes
elementos estarão presentes no tema a seguir.
154
consegue relacionar esta sua maneira agressiva de agir com a agressividade de seu ambiente
familiar, especialmente por parte de seu pai.
Percebe-se um diálogo desconexo que reflete a fragmentação de suas ideias,
associado a sua forma de pensar. Esta forma de pensar e falar cria uma dificuldade de
comunicação, e consequentemente de se relacionar.
Ao longo de seu relato observam-se os sintomas iniciais: “Desde pequena fui
agressiva e desconfiada”, “Aos 15 anos comecei a juventude turbulenta, agredia as pessoas
verbalmente e fisicamente”. Em se tratando de uma pessoa com psicose crônica
(esquizofrenia) são os sintomas que precedem e agudizam-se em seu primeiro “surto”.
Questiono o quanto essa fase de sua vida (“aos 15 anos”) possa ser uma fase de maiores
exigências sociofamiliares, as quais ela não consegue responder adequadamente. Reflito o
quanto esta situação pode ser traumática a todos os envolvidos, pois é quando se evidencia a
fragmentação de seu mundo interno e, por projeção, de seu mundo externo.
Observa-se nesta jovem uma intensa luta para aceitar seu adoecimento psíquico e
consequentemente buscar ajuda. “No começo eu não aceitava que precisava de ajuda [...].”
Mas logo a seguir aparece o seu lado mais saudável, a sua capacidade em pedir ajuda, o que
reforça sua intensa busca pela saúde, o que eu considero ser um incipiente, mas significativo
passo na luta pelo cuidar se de si.
Mesmo fora das crises, seu sofrimento maior está em conviver com suas
desconfianças: consigo mesma, com as pessoas e com o mundo. Isso pode ser para ela um
duplo sofrimento: lidar com o adoecimento associado às suas limitações e com as exigências
de desempenho que, em muitos momentos, se fazem presentes em sua vida, especialmente na
adolescência quando é frequente o aparecimento das primeiras crises. E os familiares como
reagem?
Assis 53(2013) observa as dificuldades que os próprios familiares encontram para agir
habitualmente nos momentos de intenso conflito e sofrimento. Acrescento a isso o quanto se
faz necessário neste momento um espaço de acolhimento e de esclarecimentos educativos ao
usuário e ao seu familiar em sua própria comunidade.
A “esquizofrenia” é tomada como um exemplo clássico das psicoses crônicas. Esta
doença pode ser “controlada” e, mais do que isso, pode-se planejar o seu tratamento por meio
53
Assis: “Os familiares normalmente ficam sem saber como agir quando um membro da família adoece com
esquizofrenia, É uma experiência nova e que traz dificuldades, e os familiares podem ficar entre dois extremos: o
conformismo, que leva a não procurar caminhos para melhorar os relacionamentos, ou a não aceitação, que leva
a querer que as coisas se resolvam de uma hora para outra, seja mudando o medicamento, confiando em apenas
um tipo de profissional da saúde ou não aceitando a doença”. (ASSIS, 2013, p. 28).
156
54
Assis (2013) observa que em cada crise alguns vínculos são quebrados, o que se
confirma nas vivências de uma pessoa com esquizofrenia. É necessário ressaltar que a
esquizofrenia é “uma doença multifatorial” como demonstra a própria usuária do CAPS II ao
longo de sua fala. Entre os fatores, o bioquímico é verificado pelo excesso do mediador
químico dopamina presente nas pessoas com esquizofrenia.
A clozapina é uma medicação antipsicótica muito utilizada nas psicoses crônicas.
Não só pela sua característica básica, que é a de inibir o excesso do mediador químico
dopamina, especialmente presente nas crises da esquizofrenia, mas essencialmente por
contribuir na socialização dos pacientes. Tendo em vista que seus efeitos colaterais são
mínimos, sua especificidade permite a redução do uso excessivo de medicação em tais
situações. Relaciono a esses dados o papel de destaque que ela (usuária) dá à medicação
clozapina, pois se trata de um antipsicótico de “última geração”, com importante papel na
prevenção das crises e apoio para a socialização.
Além do enfoque clínico-medicamentoso, não se pode desconsiderar a persistência
que ela mantém há mais de cinco anos, qual seja a de buscar um ambiente “familiar” no
CAPS, o que pode estar relacionado com sua motivação de encontrar um ambiente acolhedor
e de proteção tendo em vista os frequentes conflitos mencionados anteriormente em sua
própria família, associados a uma proteção de caráter autoritário (interditatório?), embora
agora descritos como cuidadosos.
Que aspectos você considera importante destacar em seu tratamento?
Participo do CAPS desde 2010. Tenho acompanhamento psicológico, terapia
ocupacional e psiquiatria (grupo). No colégio gostava da disciplina de português, mas tinha
dificuldade em matemática, reprovei dois anos na escola.
Sinto-me melhor quando participo do CAPS, se eu pudesse eu viria todos os dias
participar. A comida e o almoço são muito bons e os profissionais dão atenção e se
preocupam com os pacientes. Sinto falta do futebol que tinha no SESC as sextas com o
professor de Educação Física.
54
ASSIS destaca: Em um episódio psicótico agudo, a pessoa pode sofrer uma série de perdas; por isso, é
importante procurar ajuda médica. O fato de ela acreditar nas experiências que está vivendo e de ter a capacidade
crítica obscurecida pelos sintomas, causa perdas nos relacionamentos e perdas difíceis de recuperar na vida
interior. Relacionamentos importantes e que servem de referência para a pessoa, muitas vezes, quebram-se de
maneira que as situações criadas dificilmente são superadas. As vivências internas nas crises são reais,
assustadoras e profundas que podem levar muito para serem compreendidas e causar desajuste social e perda de
autoestima, ambas difíceis de serem superadas. (ASSIS, 2013, p.36).
158
A gente jogava no SESC toda sexta, mas essa atividade não tem mais. Também gosto
dos passeios do CAPS é muito bom passear com a equipe e os “pacientes”, participo de
segunda e quarta no CAPS.
Meus pais quando podem participam dos grupos e assembleias, mas eu procuro
saber o tratamento certinho para não entrar em crise. Sei que não posso ficar sem
medicação, pois entro em surto e não controlo minhas atitudes. Eu sempre tive o
comportamento explosivo, mas hoje fazendo o uso da medicação, fico melhor.
Tenho poucos, mas alguns amigos que conquistei participando do CAPS. Na
verdade o CAPS é uma família e precisamos dar valor. Sinto falta dos passeios com a antiga
T.O. (Terapeuta Ocupacional) que não faz mais parte do CAPS II, de Ijuí.
Análise e interpretação dos dados
Destaco, no primeiro parágrafo, a fragmentação de seu discurso, isto é, são frases que
parecem não ter conexão entre si e decorrem de sua própria forma de pensar que, em muitos
momentos, apresenta-se desconexa. Este processo é muito frequente no pensamento e na fala
da pessoa com esquizofrenia, o que dificulta o seu processo de comunicação, aumentando
assim sua propensão ao isolamento.
As informações sobre a vida escolar são muito limitadas e parecem estar fora de
contexto. É possível pensar que essas dificuldades estejam associadas a algum tipo de
limitação cognitiva e/ou à sua percepção distorcida da realidade, vendo o meio externo de
forma hostil, e/ou as suas frequentes desistências de suas atividades.
Ela menciona em sua fala a redução das atividades fora do CAPS II, “A gente jogava
no SESC toda sexta, mas essa atividade não tem mais”, como o futebol junto ao SESC,
organizado por estagiários da UNIJUÍ e que deixou de existir. Essas interrupções nas
atividades, especialmente as realizadas na comunidade e de caráter “extramuros” deveriam
provocar algo de inquietante aos envolvidos nas políticas de saúde mental na comunidade de
Ijuí, especialmente pelos prejuízos da descontinuidade nos tratamentos de seus usuários.
Essa inquietação deve gerar alguns questionamentos: O CAPS não estará
funcionando como uma ilha na comunidade? Qual o verdadeiro movimento do CAPS em
direção à comunidade? Estarão esses estagiários sem o devido vínculo de continuidade com a
estrutura pública de saúde mental, contribuindo assim para a interrupção de algumas
atividades junto à comunidade? Que efeito tem para a usuária essas interrupções nas
atividades?
A usuária do CAPS II fala em algumas entrevistas das diferentes atividades as quais
ela se sentia motivada a participar mas deixaram de existir. O que representa para ela as
159
interrupções nos vínculos que ela começa a estabelecer com essas pessoas e depois são
interrompidos de forma prematura ou não trabalhados adequadamente? Ao se referir à falta da
terapeuta ocupacional que saiu, evidencia-se a sua provável capacidade (disposição) de
formar vínculos. “Sinto falta dos passeios com a antiga T.O. que não faz mais parte do
CAPS”. Ela também pode estar falando de sua dificuldade na elaboração de perdas.
É indispensável um planejamento por parte do CAPS II de Ijuí para a construção de
um programa de integração dos seus usuários, familiares e profissionais da saúde mental em
atividades junto à comunidade, o que inclui o planejamento de um programa de estágio mais
duradouro com as instituições de ensino superior, ou parcerias com outras instituições da
comunidade. Essas questões estão profundamente associadas à efetiva criação de políticas
públicas para inserção dessas pessoas com psicose crônica na comunidade, pois, para que uma
disposição de participação se constitua como tal, é necessário um estímulo regular e contínuo.
Essas são abordagens que considero indispensáveis na construção de
55
relacionamentos para uma autonomia possível. Assis (2013), a esse respeito, refere que a
pessoa com psicose crônica não perde suas qualidades humanas. Observo nesta usuária do
serviço de saúde mental um profundo reconhecimento pelos profissionais que a acolhem e lhe
dão atenção e carinho. “Sinto-me melhor quando participo do CAPS, se eu pudesse eu viria
todos os dias participar. [...] os profissionais dão atenção e se preocupam com os pacientes”.
Esta acolhida considero indispensável para desfazer a hostilidade do mundo externo que está
tão presente em seu mundo interno.
Esse acolhimento poderá ser estendido a seu ambiente familiar, pois pode ser sentido
e visto nas atividades da usuária junto ao CAPS por seus próprios familiares, e por extensão
poderá ser experenciado no seu cotidiano familiar. Esse novo ambiente poderá contribuir
decisivamente para que ela possa ter condições de uma nova subjetivação que não a de
exclusão (“do louco”). E na construção de uma nova disposição familiar mais acolhedora a
essa pessoa com sofrimento psíquico crônico.
Quais atividades você estás planejando realizar, neste momento, em sua vida?
55
Assis (2013), falando sobre a capacidade de estabelecer relacionamentos: “É importante compreender que a
pessoa com esquizofrenia mantém suas qualidades humanas, e são estas que permite estabelecer
relacionamentos, por meio dos quais o crescimento se torna possível. Muitas pessoas com esquizofrenia e
familiares desanimam diante das dificuldades imediatas, mas é preciso ter em mente que os resultados são
construídos com o tempo, como dissemos anteriormente. Sempre é possível melhorar, independentemente do
número de crises agudas que se tenha vivido ou do grau de comprometimento que elas causaram”. (ASSIS,
2013, p.135).
160
Estou conversando com algumas amigas para voltar a jogar futebol. Faz muito
tempo que não pratico atividade física, no momento estou dando muita atenção para a saúde
de minha mãe que não está bem. Procuro ajudar em casa no que meu pai me pede.
Gosto muito de vir no CAPS porque tenho amigos de verdade. Em casa tenho o
hábito de ler livros de religião católica, também gosto de ver filmes de ação.
Às vezes fico pensando o que será da minha vida, mas sei que sem remédio não
posso ficar e preciso do acompanhamento do CAPS.
A gente faz planos e Deus faz outros. O importante é ter saúde, o resto a gente dá um
jeito, tenho vontade de viajar conhecer lugares diferentes, passear com a família porque a
família da gente são quem realmente se importam. Agradeço a Deus pelo CAPS existir
porque não sei o que seria de mim sem o acompanhamento psicológico e os remédios.
Minha família sempre está presente procurando me ajudar e me auxiliar no
tratamento. Eu entrego minha vida a Deus, pois ele faz o melhor pra mim.
Às vezes fico pensando o que será da minha vida, o que Deus guardou pra mim?
Mas eu acho que as pessoas têm algo para realizar na vida. Ninguém nasceu sem um motivo,
todos têm algo para ensinar para outros.
O mundo é muito sujo, as pessoas geralmente não se importam com ninguém e
querem estar por cima pisando nos outros. Ganância, Inveja... Enfim temos que ter jogo de
cintura para não cair.
O mundo é muito sujo, mas ainda existem pessoas boas que fazem atitudes de
coração aberto para ajudar os outros.
Análise e interpretação dos dados
Em sua fala aparece um intenso sentimento de apreensão com o seu futuro: “Às vezes
fico pensando o que será da minha vida...”, associado a seu basal de medo e de desconfiança
com a crueldade do mundo.
Na continuidade, novamente o discurso mostra-se muito fragmentado, porém sempre
está presente mesmo que de forma velada a sua preocupação com o seu futuro. Aparece
também uma disposição, um sentimento de proteção ora associado à religião ora à família.
56
Assis (2013), especialmente a respeito do papel da família na vida dessas pessoas, enfatiza
56
Assis: “Nossa forma de ver a esquizofrenia e a família parte da compreensão de que a doença não caracteriza
o sujeito, e que ele, como qualquer outra pessoa, tem seu jeito de ser, seus desejos, suas qualidades e seus
defeitos. Há situações em que o indivíduo com esquizofrenia necessita tanto receber cuidados, compartilhar a
vida com a família. Muitas pessoas com a doença são exiladas dentro de sua própria casa. Essa é uma situação
que pode ser mudada”. (ASSIS, 2013, p.168).
161
que suas vidas não se restringem a sua doença e que necessitam compartilhar a vida com a
família.
Percebe-se nas palavras da entrevistada que sua família está presente em sua vida
embora em alguns momentos com um forte componente de autoritarismo. Mesmo assim ela
frequentemente procura fazer-se presente nas necessidades da família. Porém, isto não lhe
basta para fazer a mudança interna: perceber o seu lado humano e prestativo, pois seu mundo
interno projetado no mundo externo permanece sendo muito mau, muito sujo. Associo esta
dificuldade à falta de estímulos adequados ao longo de sua vida, a um possível déficit
cognitivo e/ou por “sequelas” de suas frequentes crises prévias embora seu esforço para
construir as disposições mais adequadas: condições mínimas de apoio no grupo, no CAPS II,
na família e, quiçá, na própria comunidade.
Compreendo a angústia intensa que lhe provoca esse esforço e as limitações para
construir objetivos de longo prazo, e isso faz pensar que este seu processo na busca de
autonomia possível será contínuo, sofrido e possivelmente com momentos de recaídas, o que
não impede que se façam questionamentos a respeito dessas dificuldades:
-Será essa uma disposição que recebe de sua própria classe social e que lhe destina
apenas objetivos limitados no tempo e no espaço, e que perpetua assim as injustiças e
desigualdades sociais?
-Será essa uma disposição em função de sua própria psicose crônica e que lhe
dificulta planejamentos de longo prazo, o que de certa forma também lhe dificulta sua
mobilidade social?
-Ou será essa a disposição que lhe é oferecida pela sociedade pós-moderna que não
sabe e ao que parece não quer aprender a respeitar o diferente? E em consequência não sabe
respeitar a diferença de tempo de cada um em seu processo de aprendizagem e criatividade
que não sejam os de produção para consumo em massa?
Como tem sido a sua rotina de atividades no CAPS II atualmente?
Ultimamente tenho ajudado em casa na limpeza. Venho no CAPS segunda e
quarta, tenho o grupo de segunda e psicologia.
Às vezes tenho crises e saio de casa sem rumo, moro com meu pai e mãe. Adoro vir
no CAPS porque me sinto segura. Quando estou em casa procuro ocupar a cabeça fazendo
alguma coisa, minhas irmãs vêm nos visitar são do interior.
Não posso ficar sem o remédio porque me torno agressiva e paranoica, às vezes
tenho escutado vozes de comando e sentindo que as pessoas estão contra mim, na verdade
não confio em ninguém.
162
Fiz vários amigos no aqui no CAPS e sinto falta deles, sei que vou ter que tomar
remédio para o resto da vida porque ele me ajuda muito. No começo eu não aceitava que
precisava tomar remédio, era agressiva e até agredi várias pessoas inclusive meu pai, nunca
tive medo de ninguém. O que me ajuda muito é ter psicologia uma vez por semana para o eu
contar um pouco do que acontece.
Adoro vir no CAPS, às vezes fazem passeio eu gosto de participar. O almoço é muito
bom e o café também. Sinto-me muito bem em vir no CAPS.
O CAPS pra mim é uma família sempre procuram dar atenção para os pacientes.
Não sei o que seria de mim se não participasse do CAPS provavelmente teria feito algo
terrível.
Estou seguindo a dieta da nutricionista do CAPS. Também venho quinta à tarde no
grupo de canto. Quando não estou bem procuro a equipe do CAPS e digo o que está
acontecendo, procuro ajuda se não pode acontecer algo.
O remédio clozapina foi uma maravilha, me ajuda muito, meu pai me lembra sempre
de tomar na hora certa, ainda bem que ganho ele pois não teria como comprar, estou
emagrecendo e cuidando da saúde, fazendo o que o nutricionista me disse.
Análise e interpretação dos dados
Esta preocupação de ajudar em casa aparece com regularidade e sem associação com
o sentimento de estar se sentindo vigiada como ocorre frequentemente em suas atividades fora
de casa, “Ultimamente tenho ajudado em casa na limpeza”. A seguir ela faz um breve
comentário sobre seus momentos de crise sem relacionar com algum desencadeante, “Às
vezes tenho crises e saio de casa sem rumo, moro com meu pai e mãe”.
Este relato pode estar associado a uma disposição para estar repetindo e
fortalecendo, mesmo que inconsciente, o seu papel de uma pessoa doente, reforçado pelo fato
de ela retornar a falar sobre suas atividades em casa. Será que sente algum tipo de interdição
para realizar as atividades fora de casa?
Em sua entrevista, percebe-se o relato, de forma inconsciente, de um intenso conflito:
viver o papel de uma pessoa com doença mental e os benefícios que daí advêm. Por outro
lado, há também sua busca por uma vida em que ela possa se libertar desse papel, podendo
construir sua nova subjetivação, que não a do “louco/inválido”.
Este esforço de libertar-se do papel de inválido aparece ao falar sobre ser responsável
em suas atividades: “Quando estou em casa procuro ocupar a cabeça fazendo alguma coisa,
minhas irmãs vêm nos visitar são do interior”. E continua ao falar nos cuidados consigo ao
163
assumir seu tratamento em seus diferentes aspectos, inclusive o nutricional, mas também ao
procurar sair de seu isolamento.
Novamente busco nas referências de Assis57 (2013) elementos para refletir a respeito
da superação e da qualidade de vida possível às pessoas com esquizofrenia e a sua integração
social.
Faz-se oportuno o questionamento dos valores de convivência que estamos perdendo
ao longo de nossa caminhada civilizatória, tais como tolerância, solidariedade e respeito às
diferenças.
Que espaços de participação você e seus familiares têm tido no CAPS II?
Tivemos assembleia e cada familiar contou um pouco da rotina do “paciente”.
É muito importante fazer o uso dos remédios e ajudar em casa. Ter higiene deve ser
fundamental para o tratamento.
O CAPS tem me ajudado muito, meu pai me ajuda no uso da medicação e nas
atividades diárias, ajudo a organizar a limpeza da casa. O CAPS pra mim é uma família e sei
que preciso tomar medicação para sempre. Caso eu não tomar entro em crise ficando
extremamente agressiva e paranoica.
No CAPS tenho amigos de verdade que fiz nesta trajetória. No começo eu não
aceitava que precisava de tratamento, mas, devido as crises que tive minha família decidiu
procurar ajuda e faz cinco anos que tenho participado do CAPS. Não tenho condições
psicológicas para trabalhar mas procuro cuidar da saúde para não agravar o problema.
Análise e interpretação dos dados
Esta frase, presente em uma entrevista anterior, aqui se repete, “No começo não
aceitava que precisasse de tratamento/estar doente”, o que mostra a sua dificuldade para
aceitar limitações e para lidar com as mesmas. Por outo lado, embora a sua intensa
característica fóbica/paranoide percebe-se que ela, no momento, consegue contribuir para um
ambiente familiar menos conflitante.
Suas respostas apresentam uma disposição para falar de sua doença, “O CAPS pra
mim é uma família e sei que preciso tomar medicação para sempre”. Isto mostra a possível
57
Assis refere que uma boa qualidade de vida é o principal resultado da superação. Entendemos que a qualidade
de vida é mais ampla que o conforto material e, seguindo os tratamentos, ela se caracteriza por relações
familiares harmônicas, integração social e uma vida produtiva. Esses elementos são muito importantes para que a
vida tenha sentido. A aceitação da doença, o autocuidado e a tranquilidade interior só são alcançado por
intermédio desse sentido que cada um encontra para a própria vida. Nele, as estratégias e mudanças para a
superação da esquizofrenia servem também para todas as pessoas que são comprometidas com a realidade que a
vida lhe coloca. (ASSIS, 2013, p.193).
164
visão que tenha de si como uma pessoa doente. Sua vida, suas atividades, suas relações são
resultado desta visão que tem de si. Será possível refazer esta imagem que tem de si?
Destaco o quanto este é um processo no qual a sua participação e a de seus familiares
se tornam indispensáveis. E as reuniões do grupo, as assembleias, com a participação de todos
os grupos juntos possam ser importantes espaços para tomar consciência desta forma de
pensar e de viver condicionada pela narrativa do “louco/invalido” que vem se construindo ao
longo de sua vida, viabilizando assim refazer sua imagem e vivenciar alternativas mais
saudáveis para uma melhor qualidade de vida.
As assembleias58 dos grupos operativo-terapêuticos são mensais e organizadas com a
participação dos usuários e de seus familiares, “Tivemos assembleia e cada familiar contou
um pouco da rotina do “paciente””. Esses usuários e seus familiares ocupam um espaço de
destaque na “mesa diretora” de onde escolhem suas prioridades a serem debatidas. Os
profissionais da saúde procuram exercer uma função de apoio nas assembleias.
Essas assembleias vêm sendo realizadas de forma regular (mensalmente) ao longo
desses anos, criando disposição de participação a todos esses usuários, o que pode ser
incorporada a suas vidas e à vida de seus familiares. Assim, gera uma nova vivência
participativa em família e em outras instâncias sociais, o que constitui um processo
emancipatório, próprio da educação popular em saúde mental.
A entrevistada percebe uma importante limitação para as atividades profissionais e a
associa à sua “doença”. Porém, em outro momento, ela destacou que está tendo oportunidade
de ser mais participativa em outras atividades, inclusive na área de lazer, o que pode
repercutir em sua qualidade de vida. Será que a sociedade pós-moderna em suas diferentes
instâncias, tais como família, escola, igreja, meios de comunicação, não reforçam em todos
uma disposição a valorizar a vida apenas e tão somente no aspecto de ser produtivo numa
sociedade prioritariamente de produção e consumo?
Como têm sido os seus relacionamentos afetivos no passado e na atualidade?
Desde pequena fui muito antissocial. Tive poucos amigos não confiava em
ninguém. Os meninos e meninas mostravam (interesse) em ter algum relacionamento comigo.
58
Nas assembleias evidencia-se uma forte preocupação pelos cuidados preventivos para evitar uma recaída:
medos dos sofrimentos advindos para o usuário e para os familiares. Os familiares num processo de trocas de
informação horizontalizada e não hierarquizada relatam suas histórias de muito sofrimento com todos os
envolvidos, especialmente quando o usuário interrompe seu tratamento, e ocorrem recaídas. Nas assembleias em
alguns momentos alguns profissionais são convidados para debaterem temas específicos como prevenção de
crises, cuidados de higiene e saúde, cuidados gerais em casa, sua participação nas atividades do lar, nas
atividades de lazer, sempre direcionadas a sua autonomia.
165
Até hoje eu não fico muito tempo com uma pessoa, pois começa a paranoia de que estão me
traindo ou fazendo coisas por traz de mim.
Eu posso até gostar da pessoa, mas no momento que perco a confiança nunca mais
procuro ter contato com ela. Procuro me afastar do que pegar raiva, porque sinto vontade de
agredir quem me faz mal. Eu não tenho remorso, no momento estou solteira, costumo contar
da minha vida para a mãe e o psicólogo porque só confio neles.
Meus relacionamentos sempre tiveram pouca duração eu não consigo me entregar
por medo de me enganarem e me fazerem de idiota, mas uma hora vai surgir alguém legal
que entenda e eu confie. Tudo tem seu tempo. O importante é ter saúde.
Análise e interpretação dos dados
Fica evidente o quanto é assustadora a sua visão interna de mundo (objetos internos),
“Desde pequena fui muito antissocial. Tive poucos amigos, não confiava em ninguém.” Esta
distorção em seu mundo interno lhe traz uma visão distorcida da realidade onde os objetos
externos lhe são persecutórios, o que constitui assim a base de seu isolamento e a dificuldade
de relacionamentos inicialmente em seu próprio meio familiar e, “por extensão”, fora dele.
Esta usuária do CAPS II surpreende especialmente ao final de suas falas de intenso
sofrimento quando aparece sempre uma perspectiva de esperança, mesmo que em alguns
momentos com uma forte carga mística, “[...] mas uma hora vai surgir alguém legal que
entenda e eu confie. Tudo tem seu tempo”.
Será este componente místico/religioso uma disposição familiar? E se for esta uma
disposição, o quanto de repercussão tem no “destino” de seus relacionamentos? Por outro
lado, será este componente místico a motivação para ela buscar o controle e a estabilidade em
seus momentos de impulsividade e agressividade?
O controle de sua agressividade, por si só, não precisa estar associado ao conceito de
“cura de sua doença”, mas ao de uma melhor qualidade de vida, de menos isolamento social.
Quais suas motivações para estudar ou para trabalhar?
Fiz dois cursos técnicos, enfermagem e farmácia. Na área de enfermagem
trabalhei em curtos períodos, nesta função era muito cobrada e entrava em crises. Gostei
do curso, porém não tenho competência para trabalhar. É algo que não gosto de fazer, me
formei, mas não tive êxito na função.
Meus colegas de trabalho sempre estavam cuidando o meu serviço pra ver se eu
cometeria algum erro e falavam mal de mim pelas costas. Eu não tinha habilidade, esquecia
de fazer as coisas e várias vezes brigava verbalmente com os colegas. A profissão de
166
enfermagem mexeu muito com o meu psicológico, me abalou muito e agravou a paranoia da
minha cabeça.
O curso é muito bom, mas não foi feito para mim. Trabalhei várias vezes, mas por
pouco tempo porque minhas atitudes cancelavam o contrato de experiência, eu sou uma
pessoa muito fraca para trabalhar nessa área, eu não aceito a morte e isso me abala muito.
Sei que a morte foi feita para todos, mas eu não aceito.
Eu estudei muito isso agravou meu psicológico, neste curso eu aprendi que eu
precisava de ajuda quando fizemos estagio no CAPS, e decidi buscar ajuda. Faz seis anos
que me trato no CAPS, tenho atendimento e medicação, sei que vou ter que fazer uso da
medicação para sempre se não entro em crise e acabo fazendo algo grave. Aprendi muitas
coisas nesses cursos.
O CAPS é uma segunda família pra mim, tenho amigos de verdade e se não fosse o
CAPS eu já teria feito algo agravante. Eu tenho o conhecimento da teoria porem minha
mente não me ajuda a realizar as coisas, cansei de tentar e não conseguir não adianta eu ter
vontade e a cabeça não ajudar, isso me causa mais sofrimento.
Análise e interpretação dos dados
A que tipo de “interdição” esta usuária se refere quando afirma, “Gostei muito de
meus cursos, mas não tenho condições de trabalhar”? Novamente percebe-se uma
ambivalência: o seu esforço para buscar capacitação e a constante sensação de estar sendo
vigiada em suas atividades, o que a faz desistir.
Na entrevista, esta “interdição” mostra um aspecto de sua história assim como a de
muitos usuários do serviço de saúde mental. Estará ela realmente interditada parcialmente ou
de forma total? Este é um expediente usado por familiares, muitas vezes por orientação
jurídica para assim ter acesso ao processo de benefício, isto é, a uma renda junto ao INSS.
Nas condições de seu meio sociofamiliar (disposição), esta renda passa a representar
um importante valor para o usuário e para a sua família. É oportuno refletir sobre as
dimensões que esses aspectos podem ter no universo da saúde mental.
No aspecto financeiro, quando ocorre o benefício, questiono se é uma renda
supervisionada e associada a melhores condições de vida, moradia, escolaridade e
profissionalização tanto quando possível a essas pessoas.
Espera-se que essas interdições, quando ocorrem, não estejam associadas somente a
benefícios financeiros dos familiares/cuidadores, mas que, acima de tudo, preservem sempre o
aspecto ético da clínica (benefício clínico ao usuário) e o direito jurídico da reversibilidade
167
para as referidas interdições, caso contrário poderão ser um severo agravante clínico e um
prejuízo aos direitos dos usuários.
Especula-se que poderão ser inúmeras as repercussões emocionais e legais que
possam ter as interdições na vida dessas pessoas. Questiono se, neste aspecto, ainda estamos
no período da história clássica, tão bem abordado por Foucault (1997) na “História da
Loucura na Idade Clássica” quando o “louco” não possuía direito algum.
Essas interdições, quando não associadas ao aspecto ético da clínica, em minha
opinião, não são compatíveis com os novos referenciais para a saúde mental, quais sejam:
para os usuários e aos seus familiares uma educação e uma prática em saúde mental que
auxiliem o usuário na construção de condições para uma nova subjetivação de autonomia e
cidadania e não a de exclusão. Princípios fundamentais na educação popular, pois que deseja
ser emancipatória.
Você pode falar das suas rotinas no momento atual?
No momento estou preocupada com a saúde de minha mãe. Faz alguns dias
que não consigo dormir e ando agitada.
Esse benefício que eu recebo me ajuda muito porque não consigo trabalhar. E posso
ajudar em casa nas despesas. Estudei muito, mas não consigo permanecer nos empregos por
algumas paranoias que com o tempo surgem. Uma vez fui trabalhar no hospital e fiquei 15
dias, após me demitiram.
Eu não consigo controlar alguns pensamentos, as vezes eu caminho o dia inteiro na
rua sem rumo para pensar na vida e me distrair. O meu psicólogo me sugeriu fazer algum
curso pra ocupar a mente e me distrair e estou pensando na possibilidade de voltar a estudar
ou fazer um curso bom.
Eu sei que não tenho saúde mental para trabalhar, mas vou me esforçar para ocupar
a mente e melhorar minha situação mental. Eu já passei por muita coisa e se não fosse a
ajuda do CAPS eu estaria muito mal.
Quero voltar a jogar futebol, pois me ajuda mito a me distrair e passar o tempo, mas
devagar as coisas vão acontecendo.
Análise e interpretação dos dados
Que luta atroz em sua mente na tentativa de sentir-se útil e ao mesmo tempo conviver
com seu mundo interno, “Estudei muito, mas não consigo permanecer nos empregos por
algumas paranoias que com o tempo surgem”. Quase todas as pessoas lhe parecem hostis o
tempo todo. Em seu relato aparecem momentos de resignação: viver com benefício social
168
para ajudar nas despesas da casa. Não estará, assim, reafirmando a narrativa de ser “doente
mental”?
Além deste componente psicótico (distorção da realidade) em sua mente, questiono o
quanto essa sensação de fracasso possa estar associada a um componente depressivo, com
uma intensidade melancólica, de morte, “Eu sei que não tenho saúde mental para trabalhar,
mas vou me esforçar para ocupar a mente e melhorar minha situação mental.”
Melancolia reforça seu isolamento e descrédito no mundo. Como vencê-la? Com
mais medicação? Ou talvez a ouvindo mais, dando-lhe mais espaço para falar de suas
inseguranças, oferecendo-lhe atividades (T.O.) que lhe permitam aumentar sua confiança, sua
interação com o mundo?
Será o esporte uma ponte para transitar, transpor desse mundo hostil para um mundo
onde possa sentir-se uma pessoa conectada com a vida?
Esta disposição para o esporte aparece com frequência em suas respostas, em seus
projetos de atividades, “Quero voltar a jogar futebol, pois me ajuda muito a me distrair e
passar o tempo, mas devagar as coisas vão acontecendo.” Em uma de suas respostas, fala da
falta que lhe fazia a atividade do futebol associada às atividades da terapia ocupacional.
Também busca um estímulo em seu psicólogo para se motivar e não desistir, tentar
novamente. E esse parece ser um componente importante no retrato social de sua vida, um
eterno conflito entre tentar e desistir.
Intervenção pontual da equipe
Os profissionais de diferentes áreas que a acompanham no “grupo operativo-
terapêutico”: assistência social, enfermagem, medicina psiquiátrica tiveram uma discussão
informal do caso e após houve uma troca de opinião com o psicólogo que a acompanha em
seu atendimento individual. Nesses encontros ficou evidenciada a preocupação com “algum
tipo de interdição psicológica” que a usuária do CAPS II pudesse estar tendo e que estivesse
interferindo em seu tratamento, pois, apesar de seu esforço, constantemente não persistia nas
atividades.
O grupo de profissionais questionou as repercussões que esta possível “interdição”
pudesse estar provocando em sua vida, possivelmente aumentando seu componente paranoide
em relação às suas atividades. Ficou combinado de comum acordo fazer um estudo com todos
os envolvidos, incluindo a avaliação dos aspectos jurídicos para poder manter seu benefício e
reverter sua interdição plena (dado obtido em seu prontuário), se possível para parcial ou
retirá-la completamente, desde que não implicasse risco de perder o benefício.
169
acompanharia por toda vida, afirmando que ela em muitos momentos entra em crise e se torna
agressiva. Considero que neste momento evidencia-se a disposição familiar (pais) em ver e
tratar a filha não só como uma pessoa limitada, mas mais ainda como alguém com invalidez
total e permanente.
Observou-se que durante a fala do pai a mãe fazia discretos gestos de concordância
quando ele olhava para ela. A filha permanecia de cabeça baixa, reforçando para os
profissionais o quanto ela poderia estar vivenciando um sentimento de medo. Frente ao
silêncio de todos, o pai novamente repetia os mesmos argumentos anteriores.
Adequadamente, a equipe ponderou ao pai, à sua esposa e à filha o respeito por sua
posição, mas destacou o fato de ela permanecer interditada judicialmente não a tornava
inválida para as suas atividades, inclusive cuidar de si. Da mesma forma, a equipe ponderou
se era possível contar com auxílio dos pais para estimular a filha em suas atividades.
A resposta dos pais foi sim, que eles iriam auxiliar a filha em suas atividades. Nesse
momento, o clima tenso que envolvia a todos foi reduzindo de intensidade, pois com a
intervenção da equipe aliviou-se o intenso medo do pai de perder o benefício. A partir desse
momento passou-se a discutir como poderia ser o apoio da família para que a filha pudesse ser
estimulada a se cuidar mais.
Notou-se que com o clima mais ameno a mãe demonstrou intenso interesse de
participar de atividades junto com a filha, tais como caminhadas, idas à academia, organizar
sua alimentação. O pai acompanhava a tudo dando o seu consentimento de forma implícita.
Ao final, perguntou-se à usuária qual era sua motivação atual, ao que ela respondeu
que estava necessitando desse apoio da família para se manter com persistência em suas
atividades. Nesse momento, a usuária do serviço estava com a cabeça levantada, olhando a
todos e sorridente.
Faz-se indispensável entender o medo desses pais e o quanto esse sentimento
acabava interditando a usuária, ou seja, incapacitando a filha inclusive para cuidar de si. Isso
se justifica pelo medo de perder o benefício que a filha vem recebendo.
Destaco o esforço da equipe para contar com a ajuda do pai, evitando uma relação de
hostilidade que só tenderia a prejudicar o tratamento. Os profissionais que atuam no grupo, e
em especial em seu acompanhamento psicológico individual, poderão construir melhores
condições para em outro momento tratar a referida questão da “interdição plena” da usuária.
Interdição que pode estar relacionada a outros aspectos que não só o financeiro, embora este
tenha sido o enfoque prioritário no momento.
171
Qual a sua opinião sobre o encontro da equipe com os seus familiares na sua
presença?
“Meus pais vieram conversar com a equipe do CAPS, isso me ajudou muito,
pois eu estava muito parada sem praticar alguma atividade física ou ocupar a cabeça me
distraindo.
Meus pais estão me dando muita atenção e acompanhando meu tratamento, eles
cuidam e ajudam na minha saúde. Estão me incentivando a continuar o tratamento. Eu
prático caminhada três vezes por semana durante quarenta minutos e uma vez por semana
jogo futebol no meu bairro isso me ajuda a relaxar o corpo e a mente.
Meu pai me incentiva a praticar esportes, cuida do meu remédio e minha
alimentação, a mãe cuida de mim em todos os sentidos sempre me lembrando de que preciso
me cuidar melhor (banho, dentes, limpeza, organização). Estou vindo a pé ao CAPS e volto
de ônibus.
Minha mãe está cuidando muito de minha alimentação. Antes eu me servia bastante
e agora me sirvo o suficiente, conforme a nutricionista me explicou. A alteração da
medicação está me deixando mais aliviada, diminuindo um pouco a paranoia.
Quando eu pratico futebol nós nos distraímos, conversamos e praticamos exercícios.
Me faz muito bem conversar com os amigos para ocupar a cabeça”.
172
59
Reafirmando Heidrich (2007) a respeito da sobrecarga do CAPS II: “o CAPS II deve destinar-se ao tratamento
de 360 usuários, especialmente os com maior vulnerabilidade sócio familiar”. No momento o CAPS II da cidade
de Ijuí está com mais de 1000 usuários. Entre tantos motivos, considero importante destacar que, no momento,
não se tem um ambulatório de saúde mental funcionando em nossa cidade, para onde poderiam ser referenciados
os usuários com menos vulnerabilidade e a dificuldade de referenciar os usuários, do CAPS II, estáveis em seus
tratamentos para a rede básica, são fatores que certamente estão relacionados com a atual sobrecarga deste
serviço especializado junto à comunidade local. (HEIDRICH 2007).
175
atividade fora do CAPS II (“extramuros”) contribuindo assim para suas verdadeiras inserções
na comunidade, local onde se espera que ocorra o respeito a suas diferenças e onde possam
ocorrer suas inserções sociais, mantendo, sempre que necessário, seus referenciais de apoio na
rede pública de saúde.
Uma motivação atual dos usuários do CAPS II é a participação em atividades fora,
isto é, a sua motivação para organizar atividades extramuros. Esta motivação tem facilitado a
aproximação com a casa AMA (Auto Mutua Ajuda) de Ijuí, instituição ligada ao projeto
Italiano “FARE INSIEME”60 (Fazer Juntos) do serviço de saúde mental de Trento, na Itália,
que se constitui numa alternativa de acolhimento dos usuários do CAPS II na comunidade.
Neste modelo de atendimento não existe a participação hierárquica. Estão todos no mesmo
nível: os colaboradores voluntários que podem ser profissionais da saúde mental, os usuários
e seus familiares. Constitui-se em um local de encontro para o livre exercício para diferentes
atividades ocupacionais e atividades culturais (oficinas).
A participação de todos os envolvidos com os grupos terapêuticos mostra o quanto é
possível uma prática emancipatória por meio da educação popular em saúde mental,
especialmente ajudando a criar nos usuários o desejo para atividades fora do CAPS II. Essas
atividades são indispensáveis para a construção da autonomia e cidadania de seus
participantes.
Destaco que durante a entrevista houve um bate-papo informal com o pai da usuária
com a finalidade de uma aproximação maior dele com o serviço. Durante essa conversa,
várias vezes houve interrupção pela usuária para convidar o pai a ir com ela à casa AMA,
sendo sempre afirmativa a sua resposta. O pai, em vários momentos, mostrava-se satisfeito ao
ouvir as atividades relatadas pela filha.
Ressalto, para finalizar, a importância de o pai ouvir o relato que evidenciou a
capacidade da filha em realizar atividades, não podendo e não devendo ser tratada por ele
como uma pessoa inválida. Reforço a importância da equipe não ter entrado em conflito com
os familiares, tornando-os aliados no processo de tratamento da filha. Evidencia-se assim a
necessidade de os profissionais de saúde mental estarem preparados para lidar com os
intensos conflitos familiares que afloram nesses atendimentos.
Procuro ao longo desta entrevista destacar algumas disposições que constituem uma
história da vida de uma pessoa que, sei de antemão, tratar-se de uma pessoa com psicose
60
FARE INSIEME: Neste modelo de atendimento não existe a participação hierárquica, mas sim estão todos no
mesmo nível: os colaboradores voluntários, que podem ser profissionais da saúde mental e de outras atividades
profissionais, os usuários, e seus familiares. Sendo, assim, um local de encontro para o livre exercício de diferentes
atividades ocupacionais, e atividades culturais (oficinas).
176
crônica, e que me despertou o desejo de entrevistá-la por saber muito pouco a seu respeito,
especialmente dos temas disposicionais ao longo de sua vida.
Em determinados momentos da entrevista, após a prévia e devida discussão com os
profissionais da equipe, puderam ocorrer intervenções necessárias do entrevistador e de outros
profissionais da instituição com a entrevistada e/ou seus familiares. Nesse momento a
entrevista se aproximou de uma pesquisa-ação pela possibilidade de o pesquisador fazer
intervenções ao longo do processo.
Fica evidenciada ao longo desta entrevista a importância de um espaço para as
contribuições educativas em saúde mental e, em especial, a participação dos familiares e o
relato de suas dificuldades na participação do processo da autonomia possível às pessoas com
sofrimento mental crônico, motivação para esta pesquisa no doutorado em Educação nas
Ciências da UNIJUÍ/RS.
Reflexão crítica sobre a entrevista na busca de construção do retrato
sociológico da usuária do CAPS II:
Chama atenção em sua fala as frequentes e repetitivas desorganizações de seu
pensamento e as frequentes repetições de uma narrativa em que enfatiza o papel de “doente
mental”, reforçado por aspectos familiares. Logo a seguir passa a falar da importância do
CAPS II em sua vida. Será na esperança de encontrar outro modelo familiar onde possa ser
ouvida e entendida em seus desejos de autonomia?
Mesmo com alguns momentos de uma adequada intervenção interdisciplinar, tem-se
a ideia de que a usuária não consegue apropriar-se dessas vivências tornando-as experiências
de vida e assim levar para fora desses “muros” os benefícios destas terapias individuais ou em
grupo. Portanto, sua vida permanece fragmentada.
Que influência pode ter para o seu tratamento o fato de estar oficialmente
interditada? Reputo que o atual processo terapêutico com essa usuária do serviço de saúde
mental, apesar de todas as boas motivações dos envolvidos, pode estar viciado em sua origem,
na qual a “interdição plena” desta pessoa faz parte da perversa influência de um sistema de
produção e consumo que tudo deve transformar em ganhos financeiros, inclusive a “doença
mental”. Porém não desconsidero que outros fatores associados ao seu processo de interdição
possam ainda não terem sido abordados.
Reforço que todas essas influências devem ser consideradas para a construção de um
retrato sociológico, e também este poderá ser utilizado para a construção de um plano
terapêutico personalizado e que ao longo do tempo poderá efetivamente contribuir na vida
177
O autor refere-se ao risco que se corre pelo não aprendizado da convivência com as
diferenças em um amplo contexto social, mas penso que o mesmo pode ser aplicado em nosso
estudo no que se refere aos conflitos familiares associados à doença mental.
A emancipação é indispensável para o exercício da cidadania. Pode-se afirmar, usando
as palavras de Loureiro (2009), que cidadania é o direito a ter direitos, além do dever de lutar
por estes. Não é só isso, cidadania também representa a necessidade de reconhecimento de
direitos e deveres.
5.5 CIDADANIA
Como construir a cidadania aos usuários de um serviço de saúde mental? Que
associações já existem na construção deste processo em saúde mental?
61
Segundo Lahire (2004), ao organizar uma lista das disposições de um indivíduo, fica claro que cada um “é o
produto de uma mistura bastante sutil de disposições variadas” e que essas disposições “não mantém nenhum
vínculo de necessidade lógica entre si”. (LAHIRE, 2004, p. 40).
178
Na sociedade descrita por Bauman (2001) como “modernidade líquida”, que opção a
pessoa tem que não a de se tornar mercadoria? Nessa modernidade líquida não se consegue
pegar a liberdade e assim se permanece no mundo das coisas, dos objetos. Portanto impedida
de constituir-se como pessoa emancipada, de conquistar sua cidadania. Na saúde mental a
construção da cidadania é viabilizada inicialmente nas próprias associações de usuários.
Nas palavras de Santos (2000), a família tem papel fundamental nesse processo como
primeiro local de acolhimento do excluído em saúde mental. Destaca também que existem
várias associações que lutam por esses espaços de resgate dos direito à assistência digna, à
integração social, ao resgaste da cidadania. A seguir cito exemplos de associações que
contribuem para o resgate da cidadania à pessoa com psicose crônica, usuária dos serviços de
saúde mental.
A Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia
(ABRAE)62 foi fundada no ano de 2002 na cidade de São Paulo por um grupo de familiares,
pessoas com Esquizofrenia, e seus amigos. A referida associação busca realizar ações em que
seus membros através do diálogo entre todos os envolvidos exerçam seus direitos no processo
de construção de sua cidadania.
Ao acessar à página da ABRAE, encontramos no item seus direitos as seguintes leis:
Lei 8.080 do ano de 1990, que regulamenta o funcionamento do Sistema Único de Saúde, e a
Lei 10.216 do ano de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais. Estas e outras informações podem ser encontradas no seu site e em
seu home Page, informações que visam contribuir para combater o estigma da “doença
mental”. São notícias, informações, vídeos e diversas outras formas de interação entre seus
participantes.
62
ABRAE: Entre as principais atividades, desenvolve: grupos de apoio para familiares e para portadores;
encontros públicos para conversar sobre questões relacionadas à esquizofrenia com a participação de
profissionais, familiares e portadores; estratégias de informação por meio de informativos, boletins, materiais
impressos e um site (www.abrebrasil.org.br).
179
Destaco também, o projeto FÊNIX63 pró-saúde mental, associação sem fins lucrativos.
Fundada em São Paulo em 1997, o projeto Fênix destina-se a dar apoio às pessoas com
transtornos mentais e aos seus familiares, principalmente por meio dos grupos de autoajuda.
No estado do Rio Grande do Sul existe a Associação Gaúcha de Familiares de
64
Pacientes Esquizofrênicos (AGAFAPE), criada pelo engajamento dos familiares no apoio à
saúde mental. A criação desta associação teve o apoio do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre. Sua fundação foi em 24 de junho de 1992 como sociedade civil filantrópica, sem fins
lucrativos, partidários, raciais ou religiosos.
Na cidade de Ijuí-RS, a casa de Auto Mutua Ajuda (AMA) pode ser considerada uma
organização civil, sem fins lucrativos, que se ocupa da defesa das pessoas com transtornos
mentais por meio de voluntários de diferentes níveis sociais e das diferentes áreas
profissionais. A Associação de Saúde Mental de Ijuí (ASSAMI),65 que é uma associação civil
de direito privado, sem fins lucrativos, sem distinção de raça, credo e cor, foi fundada em 28
de janeiro de 2008, com sede na rua Ernesto Alves n° 399, e foro na cidade de Ijuí-RS. Ela
representa os interesses dos usuários, familiares, profissionais e apoiadores da Saúde Mental
do Município de Ijuí, com tempo e duração indeterminados e de âmbito local. São objetivos
da Associação:
Alterar a cultura existente frente ao sofrimento psíquico, rompendo com estigmas;
Propiciar a quem desejar espaços para assumir responsabilidades e
PROTAGONIZAR;
Colocar à disposição oportunidades para melhorar a qualidade de vida de todos;
Compartilhar de experiências individuais e coletivas;
Identificar nos problemas possibilidades de mudança e que é possível ser feliz;
Crer que mudanças são possíveis;
Reconhecer que cada um tem o seu tempo e saber ver o tempo como um aliado;
Favorecer a humanização dos serviços e atuar na perspectiva da promoção da
saúde.
Outro local onde os usuários, familiares e profissionais da saúde podem buscar
informações sobre a política nacional de saúde mental e sua legislação específica é no portal
do Ministério da Saúde 66.
63
O site do projeto FÊNIX é www.fenix.org.br
64
AGAFAPE, seu site: http://www.agafape.org.br.
65
ASSAMI, seu site: http://redehumanizasus.net/5471-a-associacao-de-saude-mental-de-ijui-assami-um-espaco-
coletivo-de-fazer-juntosespaco-de-co-gestao-co-participacao-co-r/
66
Portal do Ministério da Saúde: http://portalms.saude.gov.br/saude-para-voce/saude-mental
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reputo que após o estudo sobre a contribuição do grupo para a inclusão social dos
usuários de um serviço de saúde mental (Amaral 2013), criaram-se as condições para a
presente pesquisa estudar a viabilidade do grupo como espaço para as diferentes contribuições
educativas no processo de autonomia possível a essas pessoas e a relação com a participação
de seus familiares no contexto de uma educação popular e emancipatória.
Questiona-se que sonhos, que realidades são possíveis na saúde mental da
comunidade local, na cidade de Ijuí/R.S. O espaço do “grupo operativo-terapêutico” ajuda a
construir na saúde mental do município de Ijuí é uma realidade em que os usuários e seus
familiares fazem uma generosa troca a respeito de suas dificuldades, de suas esperanças, de
seus sonhos de serem felizes.
Nos diferentes temas abordados, percebe-se que na maioria das pessoas com
esquizofrenia a capacidade de simbolizar suas emoções, vivenciar suas ações e também de
adquirir novos conhecimentos devem ser constantemente estimuladas, mesmo quando a
capacidade cognitiva dessas pessoas possa ter algum tipo de comprometimento.
As limitações cognitivas quando presentes nas pessoas com esquizofrenia não foram
desconsideradas, pois houve efetivo estímulo para circularem em diferentes territórios
culturais. Cada um recebia diferentes estímulos para o enriquecimento de seu mundo interno.
Constatou-se que estas pessoas não têm indicação de “adestramento” (produção-consumo),
mas sim a concepção de uma produção criativa em suas atividades, assim como a
possibilidade de estudo e de trabalho como direito e como meio de conquista da sua liberdade
para o cuidado de si.
A partir dessa efetiva prática de participação que envolve os usuários, familiares e
profissionais da saúde mental, constata-se que o empoderamento dos usuários e de seus
familiares ocorreu na troca de informações e vivências entre todos os envolvidos no grupo e
fez parte deste processo da construção da autonomia do usuário em relação ao CAPS II e por
que não em relação ao seu próprio familiar. Considero que, para tanto, foi indispensável o
empoderamento dos usuários de suas atuais vivências no “grupo operativo-terapêutico” no
CAPS II, na cidade de Ijui/R.S, tornando assim essas experiências integrantes de suas vidas.
Ao longo deste estudo evidenciou-se o quanto o movimento da reforma psiquiátrica,
como os demais movimentos sociais, deve estar sempre reatualizando seus objetivos sob o
risco de deixar de estar em sintonia com as efetivas prioridades de seus participantes. No atual
momento da saúde mental no Brasil, referenciando-se na RAPS, faz-se necessário além da
182
desisnstitucionalização uma verdadeira inclusão social das pessoas com esquizofrenia. Esta
inclusão social só ocorrerá quando as pessoas com doença mental tiverem um local de vez e
voz para as suas verdadeiras necessidades e assim conquistarem sua emancipação, sua
autonomia possível para um melhor cuidar de si.
Em nossa realidade vê-se que não basta a desinstitucionalização do “doente mental”
e que as propostas de tratamento na comunidade se referenciem apenas em modelos
interrogatórios, baseados no normal e anormal, prioritariamente associados à medicalização.
O esperado é que as alternativas de tratamento possam oferecer outros tipos de atenção, isto é,
que a pessoa possa ser prioritariamente ouvida, não só em suas queixas, mas em que contexto
familiar ocorreu seu adoecimento, quais seus desejos e suas possibilidades de realização.
Neste último cenário, constrói-se o modelo biopsicossocial. Portanto o grupo também deve
ser considerado como um efetivo espaço de enfrentamento ao tradicional modelo biomédico
de assistência à saúde.
A análise das respostas dos usuários deste serviço evidenciam também o importante
papel do grupo nas tarefas de ensino e aprendizagem para auxiliar o usuário do CAPS II a
notar quando o outro não está bem, mas também reconhecer-se no outro. É indispensável que
o usuário reconheça quando não está bem para que possa buscar ajuda, prevenindo crises e o
seu consequente sofrimento, bem como o de seu familiar. O entendimento de não estar bem
pode ser o início do processo libertador do estigma de inválido e assim poder melhor cuidar
de si e na medida do possível prevenir o seu adoecimento. O melhor cuidar de si é
indispensável para seu melhor convívio social e para a construção se sua autonomia possível.
Em relação aos efeitos na convivência e na interação social da pessoa com
esquizofrenia com os outros participantes do grupo identifica-se na maioria das respostas o
aprendizado de um novo papel ao conviver com os colegas de grupo, o que a ajuda a superar
uma dificuldade básica que é a de se relacionar com os demais e o seu consequente
isolamento, tão presente nesta doença mental. Inserir-se em uma atividade no grupo é
essencial, pois permite ao usuário as condições para o desenvolvimento de suas
potencialidades, de sua valorização pessoal e para satisfação das necessidades básicas de
socialização.
O registro das falas dos familiares está associada a uma aprendizagem de compreensão
para com seu familiar enfermo, o que permite a ambos refazerem laços familiares. O usuário
deixa de ser excluído e passa a sentir-se pertencente a sua família. Observa-se em suas falas o
quanto os familiares são tocados por vivências compartilhadas com os outros participantes
dos grupos operativo-terapêuticos. Esta experiência de ensino e aprendizagem é de intensa
183
uma metodologia de educação popular em saúde. Essas contribuições educativas estão sendo
decisivas na construção da autonomia possível a estas pessoas com esquizofrenia.
Por outro lado, percebe-se que, a par deste processo de construção de autonomia
possível aos usuários para o cuidar de si no espaço do “grupo operativo-terapêutico”,
persistem práticas baseadas prioritariamente na medicalização, o que pode ser evidenciado
pelo uso excessivo de medicação e as frequentes intoxicações medicamentosas. Este
fenômeno evidencia o quanto ainda existe uma forte presença do modelo biomédico na saúde
mental de nossa comunidade o qual baseia-se na valorização excessiva da medicação. Para
este fenômeno ser estudado de forma mais consistente, é indispensável que haja um adequado
registro e acompanhamento dos casos de intoxicações medicamentosas no momento do seus
atendimentos pelos órgãos de saúde do município, do estado e da União.
Estar atento a estes fenômenos que ocorrem em nossa comunidade é uma prioridade
na construção da emancipação dos usuários e na sua menor dependência ao serviço de saúde
mental, assim como perceber as resistências que ocorrem em diferentes contextos
sociofamiliares para a emancipação e um melhor cuidar de si. Essas resistências aparecem ao
longo do retrato sociológico de uma usuária do CAPS II e que também estão associadas a um
maior ou menor grau de dependência ao seu meio familiar.
No retrato sociológico de uma usuária do serviço de saúde mental evidencia-se a
importância dos familiares terem um espaço de aprendizagem sobre o adoecimento e o
tratamento dos seus familiares enfermos para poderem ajudar em seu cotidiano familiar na
construção da autonomia possível às pessoas com esquizofrenia. Destaca-se que este é um
processo lento e que requer adequadas articulações e intervenções interdisciplinares com os
diferentes profissionais envolvidos no tratamento.
Contudo, faz-se necessário destacar que o retrato sociológico de uma usuária do
CAPS II mostra que o “grupo operativo-terapêutico” não dispensa as diferentes intervenções
interdisciplinares. Também não dispensa o tratamento individual de muitos de seus
participantes, bem como, em alguns momentos, de seus próprios familiares. Isso reforça que
os diferentes tratamentos em saúde mental não são excludentes, mas sim complementares.
Reconhece-se assim que há uma necessidade indispensável de contribuições
educativas na saúde mental. E que há muito por fazer neste processo educativo, especialmente
que deve existir um interesse relevante na participação familiar nas questões de saúde mental,
no momento atual da reforma psiquiátrica no Brasil, em especial na comunidade de Ijuí. Faz-
se necessário reconhecer a produção nacional como indicativa da necessidade de diálogo das
famílias, dos profissionais e dos serviços em saúde mental. É também uma oportunidade de se
185
articular uma rede de interlocução para despertar mais questionamentos e alternativas para as
práticas atuais com as famílias.
Este é o momento adequado para destacar algumas constatações que o espaço do
“grupo operativo-terapêutico” gerou neste estudo:
Que as pessoas com sofrimento mental crônico (esquizofrenia) têm desejos;
Que é possível aproximar esses desejos de suas realidades atuais;
Que é possível ter-se uma ideia das dificuldades que os usuários do CAPS II
enfrentam no seu dia-a-dia;
Que em algum momento de seus relatos pode ser indispensável algum tipo de
intervenção interdisciplinar, com eles ou com seus familiares.
O grupo constituiu-se como um espaço efetivo para a liberdade de diálogo e, a partir
deste, para a construção do processo emancipatório, bem como a apropriação de sua
capacidade em cuidar-se. Porém, neste processo, o olhar e as intervenções terapêuticas
voltadas para o individual serão sempre indispensáveis, especialmente em um contexto
interdisciplinar.
Responde-se assim à problemática estudada de que o “grupo operativo-terapêutico”
do CAPS II, na cidade de Ijuí constitui-se num espaço efetivo para a construção da autonomia
possível às pessoas com esquizofrenia por meio das diferentes contribuições educativas em
saúde mental e, em especial, a participação dos familiares que são fundamentais na construção
da autonomia de seus familiares enfermos. Autonomia, na visão de Freire (2013) por meio de
uma educação popular e emancipatória, portanto libertadora, e na interpretação de Foucault
(1984) a partir do cuidado de si.
Se esta escrita não puder ser compartilhada com a comunidade, tornando-se
testemunho de que uma outra realidade é possível, estaremos sempre em um país distante
onde a tristeza e a inércia predominam. Na lembrança do verso de Fernando Pessoa encontro
motivação para crer que o compartilhar sempre é possível: “Mas colhe rosas”. Porque não
colhê-las. Encerro esta escrita com os versos de Raul Seixas da música Por Quem Os Sinos
Dobram: “Coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz
Coragem, coragem, que eu sei que você pode mais”.
186
REFERÊNCIAS
______. Diagnóstico médico social de uma população pediátrica e sua relação com a
desnutrição. Revista do Centro de Ciências da Saúde (UFSM) (Cessou em 1992). Cont.
0103-4499 Saúde (Santa Maria), v. 15, p. 1-2, 1989; Meio de divulgação: Impresso;
ISSN/ISBN: 010204.
______. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Editora
Zahar, 2003, p.7 e p.18-19.
BONETI, L. W. Políticas Públicas por Dentro. 2.ed. Editora Unijuí: Ijuí, 2006, p.72
______. Saúde Mental em Dados 11, Brasília (DF), ano 7, n. 11, 2012. Disponível em:
Acesso em: 10 ago. 2018.
DONNE, J. “Meditações”. Traduzido por Fabio Cyrino. Edição bilíngue, São Paulo:
Landamark, 2007
FETT, A. K.; VIECHTBAUER, W.; DOMINGUEZ, M. D.; STONE, W. S.; GLATT, S. J.;
KRABBENDAM, L. The relation-ship betwen neurocognitionand social cognition with
functional ouctomes in shizhroneia: a meta-analysis. Neurosci Biobehav Rev. 2011; 35(3);
573-88.
______. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Jorge Zahar - RJ, 1994.
______. História da Loucura na Idade Clássica. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p.165.
______. Vigiar e punir. Nascimento da Prisão. Traduzido por Raquel Ramalhete. 23.ed.
Vozes - RJ, 2000.
189
______. Microfísica do Poder. Traduzido por Roberto Machado. 20.ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2004.
FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. Aprendendo com a própria história. 4.ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2010.
______. CONSCIENTIZAÇÃO: Traduzido por Tiago José Risi Leme. São Paulo: Cortez,
2016.
______. Pedagogia do Oprimido. 64.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017, p. 69.
MOTTA, A. A. Humana, demasiadamente humana. In revista psique ciência & vida edição
especial, Ed. Escala. Ano III- n. 7, 2008.
OMS (2001) The World Health Report, 2001-Mental Health: New Understanding, New Hope
[sn.t.]
______.The World Health Report, 2008- Primary Health Care Now More Than Ever [s.n.t.].
______. O processo grupal. 8.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 12.
STRECK, D. R.; Dicionário Paulo Freire 2.ed. Belo Horizonte: Autentica Editora 2010.
______. Educação popular nos serviços de saúde. São Paulo. Ed. HUCITEC, 1997. p. 143.
ZIMERMAN, D., & OSÓRIO, L. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes
Médicas. 1997.
______. D. E. Bion: da teoria à prática – uma leitura didática. 2.ed. Porto Alegre: Artmed,
2004.
OBRAS CONSULTADAS:
______. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. (2007).
______. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 1995. p. 49.
MEAD, G. H. Mind Self and Society from the Standpoint of a Social Behaviorist (Edited
by Charles W. Morris). Chicago: University of Chicago.1934
APÊNDICES:
CATEGORIA 01:
Capacidade de percepção Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários sobre sua
da doença mental no outro Usuários participação no grupo e sua relação com os
por parte dos usuários do referenciais teóricos.
grupo:
CATEGORIA 02 Capacidade
de percepção de seu próprio Unidades de registro: Análise das respostas dos usuários
sofrimento mental no grupo Usuários. sobre sua participação no grupo
U.2 – “O grupo ajudou a ficar Este usuário fala das mudanças que vêm
mais forte, entender melhor as Entender (forte/melhor); ocorrendo com ele. Destaca-se o seu
coisas” entendimento (aprendizagem da realidade),
que está ficando mais forte. Picho-Rivière
(2009). Isso viabiliza um melhor cuidar de
si. Foucault (2014). Para Freire(2017), a
auto desvalia é outra características a ser
enfrentada pelos “oprimidos”.
CATEGORIA 02:
Percepção da doença
mental em seu ‘familiar” Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares sobre
após sua participação no familiares. sua participação no grupo
grupo.
U.7 – “Eu me sentia inferior Observa-se uma evolução neste usuário, pois,
aos demais, pessoas. Tinha Sentir (inferior/pessoas); inicialmente, sentia-se (verbo no tempo passado)
medo de tudo” inferior, discriminado pelas pessoas, com medo de
tudo. Para Pichon-Rivière (2009, p.57): “A loucura
é a expressão de nossa incapacidade para suporta e
elaborar um montante determinado de sofrimento”.
U.9 – “Antes do tratamento Ao falar de suas perdas, este usuário retrata uma
era amigo das pessoas. Hoje realidade que ainda teima em persistir em nossos
o chamam de louco porque dias, ou seja, o da discriminação ao diferente. E
Perder (amigos/respeito)
vou ao CAPS. Sente-se uma associação do CAPS como um local de
acusado, maltratado”. loucos. (vivência de realidade) Pichon Rivière
(2009). Portanto o processo educativo deve
considerar esta realidade.
U.1 – “Sentia-se apático e se Sentir (apático/isolava- Nesta resposta do usuários predomina o verbo no
isolava, não queria conversa se); tempo passado ao se referir a um sentimento
com ninguém”. comum, qual seja o de isolamento. Conclui-se que
o grupo contribuiu nessa mudança ao ajudá-lo a
sair de seu isolamento. Aprendizagem de
mudanças Pichon-Rivière (2009)
CATEGORIA 04
Familiares
Confiabilidade no outro Unidades de registro: Análise das respostas dos familiares sobre sua
dos familiares participação no grupo.
F.1 – “Não queria ver Segregar O isolamento deste usuário está associado à sua
ninguém, se escondia no (esconder/quarto) visão distorcida da realidade. Isto implica
quarto”. considerar que esta visão possa ser refeita através
da aprendizagem em um processo de comunicação
com alguém igual e que pode entendê-lo e ser
entendido por ele. Aprendizagem de mudanças,
novos vínculos Pichon-Rivière (2009,2007)
F.8 – “Consegue falar com
A resposta deste familiar permite inferir que no
família, antes do tratamento
grupo criaram-se condições para a aprendizagem
causava medo aos familiares, Causar
de mudanças: ver o mundo de maneira menos
com expressões de ódio, com (medo/agressividade)
hostil, facilitando, assim, a construção de vínculos
alguns momentos de
mais saudáveis. Aprendizagem de mudanças.
agressividade”.
Pichon-Rivière (2009)
O isolamento deste usuário levou a seu isolamento
F.11 – “Nunca foi muito de em sua própria família, com um importante
Conviver
ter amigos, sempre foi calado empobrecimento de seu mundo interno. No grupo,
(isolado/só);
e eram pouca às vezes de ir criam-se condições para a aprendizagem da
ou receber alguém lá em realidade: ver o mundo de maneira menos hostil,
casa”. facilitando a construção de vínculos mais
saudáveis. Pichon-Rivière (2009,2007)
F.12 – “Depois que ele entrou Melhorar O familiar reconhece o importante papel de
no grupo melhorou o (relacionamentos/ socialização propiciado pelo grupo. Portanto uma
relacionamento com os amigos); individualização no social. Esses novos vínculos
amigos” são indispensáveis ao usuário no processo
libertador de seu isolamento e para aprender a
cuidar de si com a ajuda do outro. Foucault
(2014)
U.10 – “Grupo ajuda, Constatar A reposta deste usuário mostra que o grupo
(limitação/tratamento) não consegue ajudá-lo na melhora de seu
conversando sobre o tratamento, relacionamento familiar. Portanto o grupo
mas não ajuda no constitui-se um espaço importante no
tratamento, mas deve estar atento aos
relacionamento aspectos individuais de seus usuários.
familiar(isolamento)”. Dificuldade para criar vínculos. Pichon-
Rivière (2007)
203
F.20 – “Não era bom! Havia muitos Constatar O familiar mostra em sua resposta
desentendimentos e discussão com a (desentendimento/família) sobre o ambiente familiar o quanto
família”! estava presente e aparece em seu
registro a preocupação com a
dificuldade de relacionamento, com
seu familiar enfermo. “Discriminação
familiar”. (PICHON-RIVIÈRE, 2009,
p. 78).
F.19 – “Brigava, maltratava todos, Conviver Na fala deste familiar fica evidenciada
queria matar a mãe. Era muito (violência/agressão) a sua sobrecarga para lidar com seu
difícil de conviver”. familiar enfermo nas crises. Portanto
uma das funções básicas do grupo
deve ser propiciar ao usuário e a seu
familiar a aprendizagem da prevenção
das crises. Aprendizagem de
mudanças. Pichon-Rivière (2009).
U.6 – “Bastante, antes não Aprender A consciência deste usuário das mudanças
conversava com ninguém, não (sair/conversar). que lhe estão ocorrendo é indispensável para
saia, se escondia, só dormia. Hoje se apropriar de suas vivências. Tem, assim,
consegue sair bastante, conversa”. um aprendizado mais consistente e que lhe
permite um real empoderamento de suas
capacidades. Portanto, um processo de
educação emancipatória. Freire (2016)
estimula o empoderamento das pessoas
(usuários e familiares).
205
F.1 – “Não queria ver Este familiar fala do isolamento prévio, algo
ninguém, se escondia no Modificar intenso no comportamento habitual das
quarto”. (escondia/mostrar-se); pessoas com a esquizofrenia, mas percebe-
se que ocorreram mudanças pelo tempo
verbal passado (queria, escondia). Para
Pichon Rivière (2009) a educação em saúde
implica a aprendizagem de mudanças
F.8 – “Consegue falar com Esta resposta mostra que o grupo funciona
Conversar
família, antes do tratamento como um espaço para a aprendizagem de
(medo/conviver);
causava medo aos familiares, mudanças: o usuário poder lidar melhor
com expressões de ódio, com com sua agressividade, sair de seu
alguns momentos de isolamento (socializar-se). Este é um
agressividade”. empoderamento indispensável para sua
emancipação. Pichon Rivière (2009)
U.1 – “Sim, voltei a estudar, Após voltar a estudar ele fala das melhores
passei para 5ª série, hoje moro condições de vida, na medida em que passa a
num sítio com minha irmã e Motivar (estudar/ocupação); ter um trabalho e que sente-se bem em estar
trabalho bastante, é muito bom ocupado. O apoio familiar certamente
estar ocupado”. contribuiu no aprendizado deste usuário estar
mais confiante em si, podendo, assim, ter
mais autonomia. Cuidar de si Foucault (2014)
U.22 – “Antes refere que tinha Será que este usuário está se referindo ao
Regredir “antes de adoecer”, evidenciando, assim,
mais atividades, hoje não sai mais
(limitação/casa); uma percepção de que o adoecer lhe
sozinha, a não ser para fazer trouxe severas limitações. Este aspecto de
conscientização é indispensável para fazer
compras perto de casa”.
mudanças possíveis, especialmente no
poder cuidar-se mais. Aprendizagem da
realidade. Pichon Rivière (2009).
F.5 – “Hoje ele limpa a casa, Este familiar reconhece que houve
Emancipar
mudanças no aprendizado de seu familiar
aquece sua própria alimentação”. (autonomia/ alimentação);
enfermo, isto é, poder cuidar-se mais,
especialmente em seu ambiente familiar.
Portanto neste momento o grupo, em sua
tarefa de ajudar os usuários a cuidarem
mais de si, está sendo um espaço efetivo de
ajuda. Aprendizagem das mudanças. Pichon
Rivière (2009).
ANEXOS
O Presidente da Câmara Municipal de Ijuí, Estado do Rio Grande do Sul. Faço saber que a
Câmara de Vereadores decreta e eu promulgo a seguinte LEI:
III - participar do controle e fiscalização das ações e serviços públicos e privados na área da
Saúde Mental;
Art. 5º - São objetivos gerais da Rede de Atenção Psicossocial, conforme Portaria MS/GM
nº 3.088/2011:
III - garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no
território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e
da atenção às urgências.
III - reduzir danos provocados pelo consumo de crack, álcool e outras drogas;
VII - produzir e ofertar informações sobre direitos das pessoas, medidas de prevenção e
cuidado e os serviços disponíveis na rede;
Art. 7º - A rede interinstitucional atuará pelo intermédio dos Serviços de Saúde Mental da
Secretaria Municipal de Saúde e instituições governamentais, não governamentais e
privadas.
III - Atenção de Urgência e Emergência: SAMU 192, Pronto Socorro 24h em Hospital
220
V - Atenção Hospitalar: Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral pelo SUS e Serviço
Hospitalar de Referência de Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas;
VII - Reabilitação Psicossocial: Casa de Auto Mútua Ajuda - Casa AMA - mantida pela
Associação de Saúde Mental de Ijuí - ASSAMI.
Art. 9º - O Sistema Municipal de Saúde Mental será composto pelos serviços existentes e
outros que poderão ser implantados de acordo com a necessidade da população.
III - Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas - CAPS AD, responsável
pela organização da RAPS para população adulta usuária de álcool e outras drogas.
Parágrafo único. A ASSAMI e a Casa de Auto Mútua Ajuda - Casa AMA - são instâncias
de estímulo ao protagonismo de usuários, familiares, profissionais e apoiadores da
comunidade por meio da metodologia do "fazer juntos".
(https://leismunicipais.com.br/a1/rs/i/ijui/lei-ordinaria/2017/652/6519/lei-ordinaria-n-6519-
2017-dispoe-sobre-a-rede-de-atencao-psicossocial-de-ijui-e-da-outras-providencias) acessado
em 15/03/2018.
221