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IHU

Ousadia e

ON-LINE
sensibilidade
Caetano e Gil, duas
vidas em uma só
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 476 | Ano XV
03/11/2015

ISSN 1981-8769
(impresso)
ISSN 1981-8793
(online)

Celso Fernando Favaretto: A musicalidade disruptiva


da Tropicália em 50 anos de trajetória artística
Pedro Bustamante Teixeira: Ousadia e sensibilidade de
uma vida inteira
Christopher Dunn: A vanguarda caleidoscópica do Brasil
expressa na obra de Caetano e Gil

Marcelo Medeiros: Xavier Albó: Luiz Carlos Susin e


“Não se deve tributar Caminhos Gilmar Zampieri:
as grandes fortunas. de uma vida Por uma teologia da
Deve-se tributar todas pelos Andes libertação animal
as fortunas”
Editorial

Ousadia e sensibilidade. Caetano e


Gil, duas vidas em uma só

C
aetano Veloso e Gilberto Gil Complementam esta edição um peril
somam cem anos de amizade e com o antropólogo jesuíta Xavier Albó,
música. No ano em que se cele- contando a trajetória desde sua saída
bram os 50 anos de carreira dos dois ar- da Espanha, na adolescência, chegada
tistas, a revista IHU On-Line rememora na América Latina e todo seu desenvol-
a carreira dos dois artistas. Ao debater vimento intelectual junto com os povos
a vida e a obra destes dois ilustres baia- originários dos Andes.
nos, este número reúne entrevistas com A entrevista com Manfredo Araújo
pesquisadores e pensadores que deba- de Oliveira revisita a história da me- A IHU On-Line é a revista do Instituto
tem a produção artística e os impactos tafísica e sugere o desenvolvimento de Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi-
do trabalho na cultura brasileira. uma ilosoia sistemática. cação pode ser acessada às segundas-feiras
Contribuem para o debate Celso Fa- A entrevista com Milton Cruz, pes- no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço
varetto, doutor em Filosoia e profes- quisador do Observatório das Metrópo- www.ihuonline.unisinos.br.
sor aposentado da Universidade de São les/Núcleo Porto Alegre, propõe uma
A versão impressa circula às terças-feiras, a
Paulo – USP, que analisa a forma pela relexão sobre que cidade queremos
partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo
qual Caetano e Gil foram impactados para o futuro, tendo como pano de fun- da IHU On-Line é copyleft.
do o projeto de revitalização do Cais
pelo Tropicalismo e como suas carreiras
Mauá e sua relação com Porto Alegre. Diretor de Redação
foram deinidas e transformaram o ce- Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br)
Na próxima semana realiza-se a últi-
nário cultural brasileiro.
ma etapa do Ciclo de Estudos que anali- Jornalistas
Em sua entrevista, Pedro Bustaman-
sou e debateu, a partir da realidade da João Vitor Santos - MTB 13.051/RS
te Teixeira fala sobre a dimensão das
desigualdade social brasileira, o livro O (joaovs@unisinos.br)
contribuições artística e política de Gil-
Capital do Século XXI, de Thomas Piket- Leslie Chaves – MTB 12.415/RS
berto Gil e Caetano Veloso no cenário
ty. A sessão consistirá na webconferên- (leslies@unisinos.br)
2 cultural brasileiro e internacional, e sa-
cia de Marcelo Medeiros, pesquisador Márcia Junges - MTB 9.447/RS
lienta: “A vida desses artistas é de uma (mjunges@unisinos.br)
do Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
coragem, de uma entrega comovente”. Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS
cada – Ipea e professor na UnB. Segundo
Para Frederico Coelho, professor (prfachin@unisinos.br)
ele, na entrevista publicada nesta edi-
dos cursos de graduação em Literatura Ricardo Machado - MTB 15.598/RS
ção, peremptoriamente airma: “Não
e Artes Cênicas e do Programa de Pós- (ricardom@unisinos.br)
se deve tributar as grandes fortunas.
Graduação em Literatura, na Pontifícia Deve-se tributar todas as fortunas.” Revisão
Universidade Católica do Rio – PUC-Rio, Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri, Carla Bigliardi
Projeto Gráico
a obra dos artistas pensa e conta a his- professores de teologia, acabam de pu-
tória do país ao expressar o anseio por blicar o livro A vida dos outros. Ética e Ricardo Machado
uma nação vanguardista. teologia da libertação animal (São Paulo:
Para Alexandre Faria, professor de Paulinas, 2015). Na entrevista publicada Editoração
Literatura no Departamento de Letras Rafael Tarcísio Forneck
nesta edição, airmam que “o livro abre
– ICHL da Universidade Federal de Juiz um debate no campo teológico como, ao Atualização diária do sítio
de Fora, em Minas Gerais, “Caetano e que se sabe, nunca tinha sido feito expli- Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
Gil criaram e representam personagens citamente, pelo menos no Brasil”. Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner,
que são leitores do Brasil, como tantos Recordando os 498 anos da Reforma Matheus Freitas e Nahiene Machado.
outros de sua geração”. Segundo ele, “o Luterana, de Oneide Bobsin, profes- Colaboração
que se coloca hoje em dia é se isso ain- sor de Ciências da Religião na Escola Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesqui-
da é possível para um artista”. Superior de Teologia – EST, publicamos sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de
Para Miguel Jost Ramos, mestre e a entrevista sob o título “’’Uma Igreja Curitiba-PR.
doutor em Estudos de Literatura pela da Reforma precisa estar sempre sendo
PUC-Rio, Caetano e Gil inauguram uma reformada’’.
forma de fazer música no Brasil, mistu- Dois artigos, igualmente, podem ser
rando pop com o erudito, o novo com o lidos nesta edição. O artigo O princípio
tradicional e a comunicação de massa da sinodalidade em uma Igreja pós-
com a contracultura. convencional, sobre o Sínodo da Famí-
lia é de Sérgio Coutinho, professor de Instituto Humanitas Unisinos - IHU
Christopher Dunn, doutor em Estu-
Av. Unisinos, 950
dos Luso-brasileiros pela Brown Univer- História da Igreja, e Contenção da Rús-
São Leopoldo / RS
sity e professor de Literatura e estudos sia, ontem e hoje, de Diego Pautasso, CEP: 93022-000
culturais brasileiros na Tulane Univer- professor de Relações Internacionais da
sity, de Nova Orleans, Estados Unidos, Unisinos. Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
A todas e a todos uma boa leitura e e-mail: humanitas@unisinos.br
considera que a vasta produção cultural
Diretor: Inácio Neutzling
dos dois tropicalistas apresenta para o uma ótima semana!
Gerente Administrativo: Jacinto
mundo uma imagem plural e dinâmica Schneider (jacintos@unisinos.br)
do Brasil. Foto da Capa: Pedro Waddington

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


Sumário
Destaques da Semana
6 Destaques On-Line
8 Linha do Tempo
10 Eventos – Flávio Comim: O engodo da classe média acomodada
12 Peril - Xavier Albó: Caminhos de uma vida pelos Andes
16 Milton Cruz: A cidade (rebelde) da modernidade tardia contra a cidade fordista-industrial
24 Manfredo Araújo de Oliveira: Francisco e a metafísica como ecologia integral: a questão fundamental
do pensamento contemporâneo
36 Estante - Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri: Por uma teologia da libertação animal

Tema de Capa
42 Biograias - Duas vidas, uma vida
44 Celso Fernando Favaretto: A musicalidade disruptiva da Tropicália em 50 anos de trajetória artística
51 Pedro Bustamante Teixeira: Ousadia e sensibilidade de uma vida inteira
56 Frederico Oliveira Coelho: Caetano e Gil: Uma trajetória de construção utópica e autorrelexiva do 3
Brasil
60 Alexandre Faria: A luidez artística entre as estruturas
65 Miguel Jost Ramos: Os libertadores da criação artística brasileira
72 Christopher Dunn: A vanguarda caleidoscópica do Brasil expressa na obra de Caetano e Gil
77 Baú da IHU On-Line

IHU em Revista
80 Agenda de Eventos
82 Eventos - Marcelo Medeiros: “Não se deve tributar as grandes fortunas. Deve-se tributar todas as
fortunas”
85 Sérgio Ricardo Coutinho: O princípio da sinodalidade em uma Igreja pós-convencional
88 Oneide Bobsin: “Uma Igreja da Reforma precisa estar sempre sendo reformada”
92 #Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos: Contenção da Rússia, ontem e hoje
94 Publicações
95 Retrovisor

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


IHU
ON-LINE

Destaques da
Semana
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Destaques On-Line
Entrevistas publicadas entre os dias 26-10-2015 e 30-10-2015 no sítio do IHU

A crise política e as alternativas. “Quem inverterá esse


quadro? Nós temos de construir esse ‘quem’”
Entrevista com Cândido Grzybowski, graduado em Filosoia, na Faculdade de
Filosoia, Ciências e Letras de Ijuí, Rio Grande do Sul, mestre em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor em Socio-
logia pela Sorbone, Paris. É diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas – Ibase.
Publicada em 30-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1MmXKHG

“O diagnóstico da crise de hegemonia que iz anteriormente só vem se conir-


mando, basta observarmos que há uma espécie de paralisia na política: os maiores
partidos não conseguem criar um acordo de governabilidade, cada um quer tirar Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
6 uma lasca de cá e outra de lá, e isso paralisa o governo e o Congresso”, diz Grzy-
bowski à IHU On-Line, na entrevista, concedida por telefone.

Crise política: a estratégia do tensionamento


Entrevista com Benedito Tadeu César, graduado em Ciências Sociais pela Facul-
dade de Filosoia, Ciências e Letras de Rio Claro, mestre em Antropologia Social
pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais
pela mesma universidade. É professor aposentado da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – UFRGS.
Publicada em 29-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1RDSVOC

“Se Dilma não conseguir recompor sua base parlamentar, se manterá esse cres-
cente tensionamento: num momento parece que o governo vai explodir, depois a
tensão diminui, a crise mais geral passa e acham que Dilma poderá governar, mas
depois de uns dias de calmaria começa tudo outra vez, e ela não consegue sair do
lugar. A tática hoje é mantê-la emparedada para tirá-la a partir do terceiro ano de Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
governo, quando os efeitos do ajuste iscal estarão fazendo efeito e o país come-
çará a sair desse processo de desaceleração”. A avaliação é do sociólogo Benedito Tadeu César, em entrevista
concedida à IHU On-Line por telefone.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DE CAPA IHU EM REVISTA

A fraude da reforma agrária em Santa Catarina


Entrevista com Gert Schinke, historiador e ecologista. Atualmente é presidente
do Instituto para o Desenvolvimento de Mentalidade Marítima – Inmar, e ex-presi-
dente da Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses – FEEC.
Publicada em 28-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1OdNZ5n

A atuação do Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina – IRASC no estado


catarinense, na década de 1960, durante a ditadura militar brasileira, culminou
numa “antirreforma agrária”, diz Gert Schinke, autor de O golpe da reforma agrá-
ria (Florianópolis: Insular, 2015), à IHU On-Line. Segundo ele, desde 1964, o órgão
foi “paulatinamente instrumentalizado para executar mera ‘regularização fundiá-
ria’ e distribuição de glebas em supostas terras devolutas pertencentes ao Estado
Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
de Santa Catarina”.

Açailândia, MA. Comunidade de Piquiá de Baixo:


deslocamentos forçados e a ausência do Estado
brasileiro
Entrevista com Dário Bossi, padre comboniano, é membro da rede Justiça nos
Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
Publicada em 27-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1LGWwdj
7
A situação da comunidade de Piquiá de Baixo, que vive no bairro industrial da
cidade de Açailândia, no Maranhão, denunciada internacionalmente, foi tema da
audiência sobre “Violência contra Povos Indígenas” na Comissão Interamericana
de Direitos Humanos – CIDH da Organização dos Estados Americanos – OEA, em
Washington, nos EUA. De acordo com Dário Bossi, que acompanha a situação dos
moradores da região, a principal reivindicação das famílias “é o reassentamento Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
coletivo numa região livre da poluição”, já que há 27 anos a comunidade “sofre
pelos danos provocados por cinco empresas siderúrgicas e pelas atividades de es-
coamento de ferro da mineradora Vale S.A.”.

PEC 215: a expressão da disputa de terras no país


Entrevista com Maurício Guetta, graduado em Direito pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo – PUC-SP e mestre em Direito Ambiental pela mesma
instituição e pela Université Paris 1. Atualmente é advogado do Instituto Socio-
ambiental – ISA e professor convidado do Curso de Direito Ambiental da Escola
Superior da Advocacia no Rio de Janeiro – OAB/RJ e professor-assistente do Curso
de Especialização em Direito Ambiental da COGEAE-PUC/SP.
Publicada em 26-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1KKZf1e

A retomada das sessões da Comissão para tratar da Proposta de Emenda Cons-


titucional – PEC 215 “denota uma clara ofensiva ruralista contra os direitos ter-
ritoriais indígenas, além dos direitos das comunidades quilombolas e dos direitos
de natureza ambiental, que pertencem a toda a coletividade brasileira”, airma Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br

Maurício Guetta em entrevista à IHU On-Line por e-mail.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Linha do Tempo
A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, entre os dias 26-10-2015 e 30-10-2015, relacionada a assuntos
que tiveram repercussão ao longo da semana

Lei de terrorismo, Manifestantes As mulheres na


aprovada no Senado, invadem arena e prova do Enem 2015
fragiliza protestos no protestam durante e o discurso de ódio
Brasil Jogos Indígenas contra os direitos
humanos
Moradores da periferia quei- Cerca de 200 indígenas de di-
mam um ônibus para protestar Em um contexto extrema-
versas etnias invadiram o estádio
contra a morte de um jovem nas mente conservador e de imen-
dos Jogos Mundiais Indígenas e
mãos da polícia. Durante uma sos retrocessos para os direitos
interromperam as competições das mulheres no Brasil – tanto
manifestação de estudantes con-
da noite desta quarta-feira (28). no Congresso Nacional como na
tra o fechamento de escolas es-
Logo antes das 19h, o grupo en- execução de políticas públicas –
taduais, uma estação do metrô
trou na Arena Verde e invadiu esse último inal de semana foi
é apedrejada. Em passeata pelo
o campo com cartazes e gritos marcado pela surpreendente for-
impeachment da presidenta Dil-
contra a PEC 215 – o projeto de ma como algumas das questões
ma Rousseff, um rapaz que ves-
8 foram abordadas pelo Exame Na-
tia camiseta vermelha é agredido emenda constitucional que teve
cional do Ensino Médio (Enem).
com tapas e pontapés. De acordo sua primeira aprovação ontem
por comissão especial da Câmara A reportagem foi publicada por
com uma lei aprovada na noite
dos Deputados. Plataforma de Direitos Humanos
desta quarta no Senado, todos os
– Dhesca Brasil, 29-10-2015.
exemplos podem ser enquadra-
A reportagem é de Júlia Dias
dos como atos de terrorismo, e Assim que abriram o caderno
Carneiro, publicada por BBC Bra-
aqueles que os praticaram estão de provas no último sábado (24)
sil, 29-10-2015. os/as estudantes se depararam
sujeitos a penas de 16 a 24 anos.
No centro do campo, os indíge- com uma questão, em especial,
A reportagem é de Gil Alessi, que chamou a atenção e rapi-
nas formaram um grande círcu-
publicada por El País, 29-10-2015. damente ganhou destaque nas
lo e deram-se as mãos, gritando
O projeto de lei chega num redes sociais. A prova de Ciên-
“não à PEC 215”. Segundo eles, o
momento em que o Brasil é sacu- cias Humanas e Suas Tecnolo-
texto diiculta a demarcação de gias trazia a seguinte airmação
dido por protestos de toda natu-
terras. Depois, agruparam-se ao da ilósofa Simone de Beauvoir:
reza, diante do aprofundamento
lado de uma das arquibancadas, “Ninguém nasce mulher: torna-
da crise política e econômica: de
onde alguns líderes do movimen- -se mulher. Nenhum destino bio-
professores que se queixam do
to discursaram, apropriando-se lógico, psíquico, econômico dei-
fechamento de escolas, a mo-
de um dos microfones do evento ne a forma que a fêmea humana
vimentos sociais que protestam assume no seio da sociedade; é o
contra o ajuste iscal, passan- enquanto o público que até en-
conjunto da civilização que ela-
do pelos movimento pró e con- tão assistia às provas de corrida
bora esse produto intermediário
tra impeachment da presidenta de 100 metros acompanhava em entre o macho e o castrado que
Dilma. silêncio. qualiicam o feminino.”
Leia mais em http://bit. Leia mais em http://bit. Leia mais em http://bit.
ly/1OdS3Cy ly/1MmZXTN ly/1HhhnQk

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DE CAPA IHU EM REVISTA

O cardeal Pell A brasileirização das Mudança climática


e a economia eleições na Argentina
(eucarística). Artigo
pode reduzir
capacidade
de Andrea Grillo Quem acompanhou a apura-
ção dos resultados do primeiro hidrelétrica em até
Um Sínodo não pode ser inter- turno da Argentina tendo vivido
pretado como um “balanço eco-
20%
o que aconteceu nas eleições
nômico”. É óbvio que, se em um brasileiras do ano passado deve
balanço não “entra” um item, Temperaturas mais elevadas,
ter sentido aquele clássico déjà
este também não pode “sair”. mudança no regime de chuvas e
vu: um candidato governista que
Se em um balanço não entra
as pesquisas diziam que lutava aumento de eventos climáticos
“comunhão”, também não pode
sair “comunhão”: isso é pacíico. por uma vitória no primeiro tur- extremos são apenas uma parte
Será possível que o bispo mais no, e apesar de ser apoiado por da história das mudanças climá-
experiente em economia não te- um presidente muito popular,
termina obtendo uma magra e
ticas. A forma como essas mu- 9
nha se dado conta disso?
danças vão impactar agricultura,
decepcionante vitória, contra
A opinião é do teólogo italia-
um opositor de direita lertan- geração de energia, infraestru-
no Andrea Grillo, leigo casado,
professor do Pontifício Ateneu do com consignas de esquerda e tura, oferta d’água e saúde é o
S. Anselmo, de Roma, do Insti- alcançando uma derrota com sa-
outrolado que acaba de ganhar
tuto Teológico Marchigiano, de bor de vitória, já que começa a
detalhes para o Brasil.
Ancona, e do Instituto de Litur- corrida pelo segundo como claro
gia Pastoral da Abadia de Santa favorito. A reportagem é de Giovana
Giustina, de Pádua. O artigo foi
A reportagem é de Victor Fa- Girardi, publicada pelo jornal O
publicado no seu blog Come Se
Non, 28-10-2015. A tradução é de rinelli, publicada por CartaCapi- Estado de S. Paulo, 29-10-2015.
Moisés Sbardelotto. tal, 27-10-2015.
Considerado o mais importan-
Conira um trecho. O primeiro personagem pode
te estudo sobre como diversos
ser tanto Dilma Rousseff quanto
Desde que o Sínodo se concluiu,
o peronista Daniel Scioli – o can- setores vão reagir diante do cli-
o cardeal George Pell concede
entrevistas em que defende: didato governista nas eleições ma modiicado, o projeto Brasil
argentinas, que teve 36,8% dos 2040 - Alternativas de Adapta-
- o magistério sobre a família
votos no último domingo. O opo-
saiu totalmente conirmado da ção às Mudanças Climáticas foi
sitor, em um dos casos, é Aécio
Relatio, cujo texto, na sua opi-
Neves, no outro, é o neoliberal publicado no dia 28-10-2015 no
nião, repetiria totalmente a Fa-
miliaris consortio; Mauricio Macri – 34,3% dos votos. site da extinta Secretaria de

Leia mais em http://bit. Leia mais em http://bit. Assuntos Estratégicos (SAE) da


ly/1OdSNaP ly/1PUXC9a Presidência.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

EVENTOS

O engodo da classe
média acomodada
Flavio Comim propõe uma relexão acerca do que sustenta o sistema
do capital no século XXI, que engana atraindo as pessoas para uma
falsa ideia de vida menos desigual

10

Por João Vitor Santos

A quinta-feira, 29-10, encerrou ty, e o Capital no Século XXI (Rio Comim chama a atenção para um
em clima de provocação. Em mais de Janeiro: Intrínseca, 2014). En- sistema que faz com que se busque
um encontro do Ciclo de Estudos O tretanto, Comim desaiou a plateia bens que lhe coniram uma signii-
Capital no Século XXI – uma discus- a pensar porque esse capital espe- cação, vendendo a ideia de que não
são sobre a desigualdade no Brasil, culativo e seu sistema inanceiro, se é pobre e que consegue acessar
o economista e professor da Univer- tais bens de consumo como os ri-
que é o verdadeiro gerador de ri-
sidade Federal do Rio Grande do Sul cos. É o exemplo do carro. Quem
queza no mundo hoje, sustenta-se
– UFRGS, Flávio Comim, debateu o tem, se vê desobrigado a depender
sem que não haja resistências. “A
tema Políticas públicas de regula- do sistema público de transporte.
renda não é só a renda e sim a le- Logo, tem autonomia, liberdade
ção do capital e possibilidades para gitimidade que ela carrega. O que e vantagem sobre quem não tem.
um Estado social no Brasil. nos faz sentir classe média? E pior: O mesmo funciona com smartpho-
Como os demais painelistas, teve o que nos faz sentir acima da classe nes, TV’s modernas de tela plana,
a fala iluminada por Thomas Piket- média?”, provoca o professor. viagens... “É uma forma de ilusão.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

As pessoas acham que consumindo conseguem acessar bens que an- balho. “Pois assim (olhando só para
esses bens do 1% mais rico fazem tes não se imagina para pessoas a renda do trabalho) se tem ideia
parte desse 1%”, explica. A perver- mais humildes. Outro exemplo que que a desigualdade diminui, mas
sidade está no fato de que, além traz é a possibilidade de se viajar na realidade não. Os pobres estão
de achar que se está nesse grupo, de avião. Mais pessoas – e de clas- cada vez mais pobres. A classe mé-
a classe média acaba alimentando se social mais baixa – fazem isso. dia vê seu dinheiro diminuindo e os
o sistema com sua casa própria e “Mas ainda está distante de uma ricos estão cada vez mais ricos”,
bens que consume. “E acabamos real mudança de paradigma. E é pontua, ao atribuir esse movimen-
tendo uma aceitação por algo que justamente essa ideia de mudança to ao fato de, ao não olharmos para
não entendemos. São as migalhas que incomoda essa classe do 1%”, o papel do capital nesse século,
que sobram para além desse 1% aponta. não entendermos de fato o meca-
mais rico que Piketty fala”, com- nismo que faz essa roda girar só a
Comim traz esse cenário para se
pleta Comim. favor do 1%. ■
pensar além do que Piketty ilumina
O professor reconhece que há ao demonstrar que a renda do capi- Conira a reportagem completa
uma inclusão e que mais pessoas tal é muito superior a renda do tra- em http://bit.ly/1RDRS16

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

PERFIL

Xavier Albó – Caminhos de


uma vida pelos Andes
Por Ricardo Machado

Xavier Albó tem um olhar terno e


vívido. As marcas do tempo impres-
sas em sua pele são testemunhas
silenciosas de uma vida marcada
por descobertas, resistência e luta.
Ao comentar sobre a própria histó-
ria, percebe-a a partir dos outros.
Começa falando de Luis Espinal,1 o
padre, artista e ativista espanhol
que aterrissou na Bolívia em 1968,
em plena ditadura René Barrien-
tos.2 Este, depois de ter sido eleito

FOTO: LESLIE CHAVES


via voto popular em 1966, havia
mudado a constituição e governava
o país ditatorialmente. Essa deci-
12 são foi tomada depois que a guerri-
lha liderada por Che Guevara,3 as-
sassinado em 1967, avançou sobre
o território boliviano. Albó. Recentemente, porém, seu tam a história de Espinal. A vida
nome rodou o mundo depois que fez do pequenino catalão Xavier
Espinal em vida não fora tão o atual presidente da Bolívia, Evo Albó, que aos 16 anos descobriu a
célebre fora da Bolívia, conta Morales,4 presenteou o Papa Fran- América Latina, um homem forte,
cisco com um cruciixo em forma mas sua sensibilidade não permi-
1 Luis Espinal Camps: poeta, jornalista,
cineasta e padre jesuíta. Nascido na Espanha de marreta e foice. Os sentidos te longos diálogos sobre o amigo
em 1932 e assassinado por um grupo de para- da amizade com Espinal ecoa no Espinal, pois os olhos mareiam, a
militares em março de 1980 durante o clima presente de Albó. Emociona-se ao goela tranca e a voz não sai.

Chegada à Bolívia
de tensão prévio ao golpe de Estado do dita-
dor Luis Garzía Meza. O IHU divulgou um
falar do amigo, assassinado pelos
amplo material sobre Espinal, que pode ser militares, em 1980. Foi o impacto
lido nas Notícias do Dia, dos quais destaca- desta amizade que fez Albó, com
mos Em La Paz o Papa Francisco prestará seu corpo esguio, acotovelar-se às Quando Xavier Albó chegou à Bo-
homenagem ao jesuíta padre Luis Espinal, lívia, em julho de 1952, o país ha-
assassinado pela ditadura, publicado nas No- portas do Palácio Quemado,5 sede
do governo boliviano, para con- via sido palco, meses antes, de um
tícias do Dia, de 05-05-2015, disponível em
http://bit.ly/1l5NkGP; e Documentário recu- seguir icar frente a frente com trágico momento, em que centenas
pera a trajetória de Luis Espinal, publicado de pessoas foram mortas no que i-
o Papa Francisco. Lá entregou
nas Notícias do Dia, de 06-11-2011, disponí- cou conhecido como a Revolução
vel em http://bit.ly/1RrRsv0. (Nota da IHU três livros a Bergoglio que con-
Boliviana, considerada um dos pri-
On-Line)
2 René Barrientos Ortuño (1919-1969): 4 Juan Evo Morales Ayma (1959): é o atu- meiros levantes da América Latina
foi um militar e político boliviano, vice-pre- al presidente da Bolívia e líder do movimen- feito por operários e camponeses,
sidente de seu país em 1964 e presidente da to esquedista boliviaano cocalero. Morales é que reivindicavam a nacionaliza-
Bolívia entre 5 de novembro de 1964 e 26 de também líder do partido Movimento para o ção das reinarias de petróleo e gás
maio de 1965 e novamente entre 6 de agosto Socialismo. (Nota da IHU On-Line)
5 Palacio Quemado (Palácio Queimado): é
de 1966 e 27 de abril de 1969. (Nota da IHU
natural.
On-Line) o nome popular da sede do governo da Bolí-
3 Che Guevara (Ernesto Guevara de la Ser- via, localizado na Praça Murillo, em La Paz. Do velho ao novo
na ou El Che, 1928-1967): um dos mais famo- O palácio abriga os escritórios presidenciais mundo
sos revolucionários comunistas da história. e o gabinete do presidente. Seu nome recorda
Foi tema da edição 239 da IHU On-Line, uma revolta ocorrida no século XIX, quando
de 08-10-2007, disponível em http://migre. o edifício sofreu um incêndio. (Nota da IHU Albó com outros colegas noviços
me/2pebG. (Nota da IHU On-Line) On-Line) da Companhia de Jesus foram colo-

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cados em um barco da Companhia agosto. “Outra lembrança dos pri- Aproximação com os
Itália, na Espanha, e enviados a meiros dias em que estive na Bolívia
Quechuas
Buenos Aires. “No dia em que cru- foi de uma nevasca muito intensa
závamos a linha do Equador rece- que cobriu Cochabamba. Havia um
bemos a notícia de que Eva Perón Albó conta que quando precisou
vale lindo e branco”, relembra.
havia morrido”, recorda Albó, que, fazer magistério, uma das etapas
apesar de ser catalão, intitula-se Anos de formação na formação de um jesuíta, sua ex-
como um espanhol quando se tra- periência foi diferente da maioria
ta de conversar, pois é muito fa- Xavier Albó era muito jovem de seus colegas. “Nesta etapa da
lante. “Quando se faz uma mísera quando chegou à Bolívia, estava no formação todos deveriam ir traba-
pergunta ao espanhol ele responde primeiro ano de noviciado e havia lhar em um colégio, mas comigo
com uma palestra”, brinca. feito os primeiros meses na Espa- foi diferente. Antes, logo que havia
Naquela viagem, descobriram nha. No primeiro dia das férias, chegado eu tive que aprender a lín-
que a distância entre a Espanha ainda em 1952, foram a uma fazen- gua Quechua. Eu fui o ajudante de
e a Argentina era de um oceano da na Bolívia, que tinha as mesmas um senhor que sabia muitas coisas
e dezenove dias. O tempo de tra- características do território antes e era muito competente para idio-
vessia serviu para que os jovens da reforma agrária realizada por
espanhóis, na época não muito in- mas. Assim, as palavras que ele ia
Estenssoro,7 que acabou ocorren-
teirados sobre a América Latina, aprendendo no idioma Quechua eu
do a partir do ano seguinte. Antes
compreendessem o que signiica- de viajar para o Equador, onde fez deveria colocá-las em ordem. Isso
va a morte de Evita,6 sobretudo a formação em Filosoia, concluiu me permitiu ser o sistematizador
porque estavam embarcados com um segundo ano de noviciado, em das coisas que espontaneamen-
muitos migrantes argentinos. “No que aprendeu idiomas, estudou os te se sabia”, descreve. “Assim foi
navio houve um funeral muito so- clássicos e complementou a forma- a maneira como aprendi a língua
lene, em que cantávamos na missa
ção humanística. Quechua rapidamente”, completa.
por Evita. Assim fui introduzido à
América Latina”, conta. “Enquanto eu estudava Filoso- Depois de estudar no Equador, o
ia, também realizei um doutorado jovem catalão, que havia aportado
O trem da morte cuja tese foi sobre o principal co- poucos anos antes na América Lati-
munista do Equador, Manuel Agus- na, voltou à Bolívia e a essa altura
Ao chegar a Buenos Aires, o gru- tín Aguirre8”, explica. “Tornei-me
dominava o idioma Quechua. “Era 13
po icou por quatro dias na capital amigo deste senhor, ia à sua casa.
comum que, alternadamente, i-
argentina, depois partiu de trem Por sorte, não havia muitas coisas
para La Paz, na Bolívia. Segundo escritas sobre ele, então não preci- zéssemos discursos no refeitório. E
Albó, viajaram entre Córdoba e a sei fazer muitas pesquisas”, brinca quando chegou minha vez o iz todo
fronteira com a Bolívia em um va- Albó, que estudou as ideias marxis- em Quechua. Ninguém entendeu,
gão-dormitório, onde depois seriam tas em Aguirre, tese que depois, exceto um colega que compreendia
deixados pela locomotiva até que justiica ele, teve que refutar, uma o idioma e sugeriu – Diga-lhes que
outra composição os transportasse prática tipicamente jesuíta. “Ape- rezem um pai nosso. Três vezes!”,
no território boliviano até a capital. sar disso sempre tive boas recor- diverte-se ao lembrar. Com menos
A propósito, na região boliviana, dações dele”, diz. Albó só viria a de 18 anos, já dominava o idioma
chama-se popularmente a composi- estudar Teologia tempos depois,
ção de “trem da morte”, devido à Quechua e podia praticá-lo com ou-
quando retornou a Barcelona para tros colegas do Equador e do Peru.
altitude em que trafega, apesar de
um período de estudos.
fazer isso com extremo vagar.
7 Anjo Victor Paz Estenssoro (1907-
Índio, a palavra maldita
“A paisagem no começo era linda,
2001): era advogado, ex-ministro e político
com lagos enormes, depois vinham boliviano. Foi presidente boliviano em qua- Na década de 1950, falar de ín-
os perais (o trem tinha cremalhei- tro ocasiões (1952-1956; 1960-1964; 1964
ras, que servem para ele não andar e 1985-1989). Em seu primeiro mandato
dios na Bolívia era “proibido”. Os
para trás), e assim chegamos a La (1952-1956) iniciou a Revolução Nacional – indígenas haviam se convertido,
Paz”, descreve. Ficaram felizes uma das transformações sociais mais impor- como um passe de mágica euro-
tantes (e contraditória) da América Latina no
porque havia uma grande festa na século XX, em três áreas principais: a refor- peizante, em “camponeses”, por
cidade e disseram uns aos outros ma agrária, o sufrágio universal e a naciona- conta de decisões políticas da épo-
“olha como nos recebem bem com lização de grandes empresas de mineração. ca, justamente quando o país era
(Nota da IHU On-Line)
8 Manuel Agustín Aguirre Rios (1903-
todas essas bandeiras”, mas depois presidido por Estenssoro. “Houve
se deram conta de que se tratava da 1992): era um político equatoriano e profes- uma profunda reforma agrária na
Festa Pátria, celebrada no dia 2 de sor. Em várias ocasiões, foi Secretário-Geral
do Partido Socialista do Equador, fundador
parte andina da Bolívia, a região
6 María Eva Duarte de Perón (1919- e primeiro secretário-geral do Partido Socia- de maior altitude, ao passo que
1952): foi uma atriz e líder política argenti- lista Revolucionário equatoriano e primeiro em outras partes foi o contrário”,
na. Tornou-se primeira-dama da Argentina Decano da Faculdade de Economia da Uni-
quando o general Juan Domingo Perón foi versidade Central de Ecuador. (Nota da IHU explica. A região andina era basi-
eleito presidente. (Nota da IHU On-Line) On-Line) camente habitada por indígenas

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

que falavam Quechua9 e Aymara,10 senhor chegou e disse: –‘Senhorita! na Espanha o nomeou Bedel, uma
idioma que Albó também aprendeu O menino precisar fazer xixi’, pe- espécie de líder hierarquicamente
a falar. “Na parte andina, os indí- dindo ajuda, sem se dar conta de abaixo do chamado Superior. Nes-
genas compunham cerca de 80% da que a roupa não era um vestido, ta tarefa, cabia a Albó participar
população quando os territórios co- mas uma batina”, diverte-se Albó. diariamente de reuniões. “Neste
meçaram a ser ocupados por conta momento fui questionado sobre o
A zona onde morava era uma fa-
da reforma agrária”, relata. que gostaria de estudar. Nunca ti-
zenda imensa que havia pertencido
nha pensado muito sobre isso, mas
Para aquele jovem e miúdo espa- a Antenor Patiño,11 um dos homens
depois de reletir um pouco resolvi
nhol coube, como tarefa principal, mais ricos de sua época, industri-
que estudaria Antropologia”, des-
aprender idiomas indígenas e, para ário que era comparado aos Rock-
creve. “Fiz alguns contatos e minha
tanto, o dispensaram de realizar feller.12 Um cavalo manso, dos mais
decisão foi a de estudar nos Estados
o magistério em uma escola. Isso pacíicos que pertencia à família
Unidos, em Cornell, Nova York.”
permitiu uma experiência abso- Patiño, foi emprestado a Albó, que
lutamente nova, uma espécie de assim percorria as distâncias entre Em apenas três anos concluiu o
“renascimento” latino-americano. um sítio e outro. doutorado em Antropologia, isso
“Fui enviado a uma comunidade porque seu doutorado no Equador
“Eu nunca fui um bom ginete. Volta
Quechua e vivi com os indígenas
e meia era derrubado por um galho permitiu que se beneiciasse de al-
durante três anos. No tempo em gumas disciplinas. “No departamen-
de árvore”, conta e gargalha ao se
que o mundo olhava para o espa- to de Antropologia da universidade
lembrar dos episódios. “Eu visitava
ço, na época em que as sondas es- as comunidades pedindo apoio inan- havia uma disciplina sobre o idioma
paciais eram enviadas à superfície ceiro das famílias, um peso apenas, Quechua, onde eu trabalhava como
lunar, eu estava em uma comuni- para construirmos uma escola. Mas a professor assistente, e com isso
dade chamada Cliza. Neste lugar, família de Patiño, depois que soube consegui uma bolsa de estudos”,
eu passei dois meses, retornando das ambições do projeto, discordou, explica. “Minha tese foi uma com-
uma vez por semana à cidade para porque seria demasiado longo e sé- binação entre os temas da Linguísti-
asseio, quando tomava banho, fa- rio. Tive que voltar a cada um dos ca, Antropologia e Sociologia rural.
zia a barba e me confessava. Isso lugares para devolver o dinheiro. As- Ao longo de aproximadamente 300
foi muito bom, pois aprimorei bem sim conheci todas as comunidades”, páginas faço uma análise sobre as
meus conhecimentos sobre idiomas conta. “Essa foi minha primeira vi- mudanças ocorridas na Bolívia após
indígenas”, pondera. vência das contradições de classe.” a reforma agrária”, conta.
14
Professor substituto O caminho à Cipca
Albó é falante. A colcha de me-
Antropologia
Quando retornou à Bolívia, jun-
mórias com que tece a narrativa tamente com outros dois jesuítas,
Tempos depois foi recebido como
de sua própria vida é cheia de ane- Luís Alegre e Francisco Javier San-
sacerdote em San Joan, em Barcelo-
dotas. Certa vez, ao substituir a tiago, Xavier Albó fundou o Centro
na. Na mesma época, Roma sediava
professora, que estava em licença de Investigación y Promoción del
o Concílio Vaticano II. O provincial
maternidade, de uma pequena es- Campesinado – CIPCA. Atualmente,
11 Antenor Patiño Rodríguez (1896-
cola localizada em uma comunida- Albó é o único jesuíta do centro
de Quechua onde vivia (e na épo- 1982): era um empresário boliviano. Herdei- que conta com mais de 100 leigos
ca havia rumores de que ali seria ro de Simon I. Patiño, chamado de “King of trabalhando em projetos sustenta-
fundada uma escola dos jesuítas), Tin” para ser o proprietário das maiores mi- dos inanceiramente por organiza-
nas de estanho na Bolívia e controlar o mer-
protagonizou uma cena de hilária cado mundial para esse mineral. As minas ções europeias. “A maior parte das
confusão. “Recordo o dia que um foram nacionalizadas em 1952 na revolução pessoas trabalha na área de ação;
boliviana e integrado ao Mining Corporation ainda que tenhamos vários pesqui-
9 Quíchua (qhichwa simi ou runa simi) tam- da Bolívia. (Nota da IHU On-Line) sadores, o trabalho da Cipca é fo-
bém chamado de quechua ou quéchua: é 12 John Davison Rockefeller (1839–
uma importante família de línguas indíge- 1937): foi um investidor, empresário e ilan- cado nas ações”, diz.
nas da América do Sul, ainda hoje falada por tropo americano. Rockefeller revolucionou o
cerca de dez milhões de pessoas de diversos setor do petróleo e deiniu a estrutura moder- La Paz e El Alto
grupos étnicos da Argentina, Bolívia, Chile, na da ilantropia, ainda muito em voga. Em
Colômbia, Equador e Peru ao longo dos An- 1870, fundou a Standard Oil Company e a co-
des. Possui vários dialetos inteligíveis entre mandou agressivamente até sua aposentado- Atualmente Albó é um dos maio-
si. É uma das línguas oiciais de Bolívia, Peru ria oicial em 1897. A Standard Oil começou res nomes da Antropologia na Amé-
e Equador. (Nota da IHU On-Line) com uma parceria em Ohio de John com seu rica Latina e no mundo. Vive na
10 Aymará também chamado de Aimará irmão, William Rockefeller, Henry Fagler, cidade de El Alto, que ica a 4.100
ou Aimara: é o nome de um povo, estabe- Jabez Bostwick, o químico Samuel Andrews
lecido desde a Era pré-colombiana no sul do e Stephen V. Harkness. Como a importância
metros de altitude, imediatamente
Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile. No do querosene e da gasolina estava em alta, a ao lado de La Paz. As duas localida-
Peru os falantes da língua aimará somam riqueza de Rockefeller cresceu e ele se tornou des estão ligadas por um teleférico.
mais de 300 mil pessoas, o que leva a supor o homem mais rico do mundo e o primeiro “La Paz é uma cidade maravilhosa,
que o grupo étnico é bem maior. Aí estão mais americano a ter mais de um bilhão de dólares.
concentrados no departamento de Puno (per- Em 1937, ano de sua morte, sua fortuna foi
cheia de cerros, é uma espécie de
to do Lago Titicaca), nas regiões Moquegua, avaliada em 1,4 bilhão de dólares. (Nota da Rio de Janeiro sem mar. Ao mesmo
Arequipa e Tacna. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) tempo que é maravilhosa, é caó-

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tica e cheia de contrastes. Temos ceu e cresceu. É com essa simpli- estada no Rio Grande do Sul, sofreu
agora um dos teleféricos mais mo- cidade e sensibilidade que Xavier uma queda, que lhe custou, inicial-
dernos do mundo, que transporta Albó ica contente de fazer o ca- mente, cinco pontos na altura da
milhões de pessoas entre El Alto e minho entre El Alto e La Paz, a testa e mais dois dias no Brasil,
La Paz”, avalia. bordo do teleférico, que ele clas- pois a companhia aérea não permi-
O jesuíta-antropólogo-ativista é siica como “uma beleza”. Ele vê o tiu que ele embarcasse devido aos
um sujeito de hábitos simples. Os mundo nesta dialética entre o caos riscos da recente sutura.
poucos cabelos que ainda ostenta cosmopolita da capital e a tranqui-
O tropeço, porém, era um sinal.
sobre a cabeça testemunham o ca- lidade montanhosa de onde mora. Ao chegar à Bolívia, Albó foi ao
minhar de uma mente que produz Além de tudo, alegra-se com o médico e identiicaram um tumor
pensamentos entre a erudição do sistema de transporte implantado em seu cérebro, que apesar de be-
pensamento ocidental e genialida- na região e com a velhice. “Esta é nigno estava em estágio avançado.
de simples, mas não menos com- uma das grandes obras de Evo. E Dias depois retiraram o tumor e
plexa, do pensamento originário. eu, que sou velho, pago a metade ele se recuperou muito bem, tan-
Albó é de matriz europeia, mas foi do preço”, sorri. to que logo pediu seu computador,

Posfácio de uma vida


forjado no contato com os indíge- assim que os efeitos da anestesia

em construção
nas e vê o planeta terra não como passaram. Recebeu muitas visitas
uma prateleira de commodities, e emocionou-se com todas elas,
mas como Pacha mama. levantando-se para abraçar um por
Xavier Albó não parece ser afei- Este peril foi construído desde um em gesto de gratidão. Tal “tra-
to a muitas vaidades. Quando uma conversa de mais de duas ho- vessura” gerou um coágulo na re-
fala repetidas vezes da amizade ras com Xaviér Albó, que visitou o gião operada, o que o levou à sala
que tem com o Ministro das Rela- Instituto Humanitas Unisinos – IHU, de cirurgia novamente.
ções Exteriores boliviano, David onde apresentou duas conferências
Albó teve alta e se recupera
Choquehuanca,13 não se refere ao – Bem-Viver. Impactos na América
Latina – IHU ideias e O grande de- bem, ainda que lentamente, dos
amigo com pompa alguma, senão
procedimentos. Faz isioterapia
com carinho de quem o conheceu saio dos indígenas nos países an-
diariamente e busca retomar, com
na comunidade Aymara onde nas- dinos: seus direitos sobre recursos
passos ainda mais frágeis, embora
naturais, no dia 27 de agosto de
13 David Choquehuanca Céspedes 2015.
persistentes, seu caminho na Amé-
(1961): é um sindicalista aimara boli- rica Latina, que começou a ser tri- 15
viano e líder político. Atualmente ocu- Travesso para idade que tem, lhado há mais de 60 anos, quando
pa o cargo de Ministro de Relações Ex-
teriores, durante o primeiro, segundo
81 anos, Albó é um sujeito muito seus pés, ao desembarcar de um
e terceiro mandato do presidente Evo ativo, embora caminhe com passos navio vindo da Espanha, tocaram o
Morales. (Nota da IHU On-Line) frágeis e cuidadosos. Durante sua continente.■

LEIA MAIS...
— O grande desaio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre os recursos naturais.
Cadernos ihu ideias, edição 225, disponível em http://bit.ly/1Uhu9cT;
— As peripécias do padre Xavier Albó para conseguir falar com o Papa sobre o seu amigo Luis
Espinal. Reportagem com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 12-08-2015, no sítio
do IHU, disponível em http://bit.ly/1My4rgt;
— “Luis Espinal não era comunista”, airma Xavier Albó. Reportagem com Xavier Albó pu-
blicada nas Notícias do Dia, de 10-07-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/1My4kBu;
— Um Deus de rosto indígena. Entrevista com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de
28-07-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Wp2UZx;
— O ideal da suma qamaña. Os indígenas e a nova Constituição da Bolívia. Entrevista com
Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 14-07-2010, no sítio do IHU, disponível em
http://bit.ly/1KLdeEq;
— A constituição mais humanista da América Latina. Entrevista com Xavier Albó publicada nas
Notícias do Dia, de 05-02-2009, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GPNlZ2.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ENTREVISTA

A cidade (rebelde) da modernidade


tardia contra a cidade fordista-
industrial
Milton Cruz propõe uma relexão sobre que cidade se quer no futuro, a partir do
projeto de revitalização do Cais Mauá e sua relação com Porto Alegre
Por João Vitor Santos

P ara o professor e pesquisador


Milton Cruz, a cidade moderna
é aquela que pensa humanisti-
camente, valorizando os espaços públi-
na Orla do Guaíba (uma região peculiar
da cidade) diminuiria o diferencial de
Porto Alegre na rede de cidades globais
e aumentaria a sua homogeneização.
cos para convívio social, e é conectada Queremos nos tornar iguais às demais
com questões ambientais e não só eco- cidades que apostaram tudo no auto-
nômicas. Assim, entende que a propos- móvel e nos shoppings?”, questiona.
ta de revitalização do Cais Mauá, em E ainda há outro detalhe: o empre-
Porto Alegre, é uma bela oportunidade endimento é apoiado na dependência
de pensar a cidade com vistas ao fu- de um modal rodoviário já saturado.
16 turo. Entretanto, destaca que muitos “Como um shopping com 4.800 vagas
desses princípios não parecem estar de estacionamento para automóvel na
sendo levados em conta. “Não apre- orla do Guaíba não agravará os proble-
senta estudos e pesquisas que mostrem mas criados pela circulação dos atuais
qual a dinâmica atual do Centro Histó- 30.000 veículos/dia? E qual a garantia
rico em termos econômicos, sociais e de que não estamos construindo um
culturais, quais as tendências espera- ‘shopping fantasma’, como os existen-
das para o futuro e como o empreen- tes em muitas cidades norte-america-
dimento irá promover a qualiicação do nas, que logo precisará passar por uma
desenvolvimento da região”, destaca. reconversão em seu uso?”, acrescenta.
“Penso que o debate em torno da re- Milton Cruz é doutor e mestre em
vitalização do Cais Mauá revela dois Sociologia pela Universidade Federal
projetos de cidade: a cidade (rebelde) do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atua
da modernidade tardia contra a cidade como pesquisador do Observatório das
fordista-industrial. E que o futuro da Metrópoles/Núcleo Porto Alegre. Parti-
cidade depende da capacidade da so- cipou como pesquisador do Instituto de
ciedade civil em apresentar um Projeto Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e
Alternativo de Modernização capaz de da Fundação de Economia e Estatística
articular as propostas fragmentadas”, – FEE/RS. Ainda é graduado em Ciên-
completa. cias Sociais e em Engenharia Eletrôni-
Além disso, na entrevista concedida ca. No último dia 22-10, ele proferiu
por e-mail à IHU On-Line, Cruz critica a conferência “Cais Mauá: duas visões
a ideia de apoiar toda a reforma num em disputa sobre qual o projeto de ci-
dade”, no Instituto Humanitas Unisinos
modelo econômico/comercial que visa
– IHU. A reportagem da cobertura da
transformar o Cais em apenas mais um
palestra está disponível em http://bit.
grande centro de compras. “A localiza-
ly/1PUsre6.
ção de um empreendimento comercial
existente em todas as partes do mundo Conira a entrevista.

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Exemplos de outras estes problemas são criados por


cidades
IHU On-Line – Como o senhor
avalia o projeto de revitalização apenas 19% da população que uti-
do Cais Mauá? Quais os avanços e liza o carro para ir ao trabalho),
limitações do projeto? O EIA/RIMA também não fala das constatamos que ele causa mais de
alternativas de revitalização im- 45 mil mortes no trânsito por ano
Milton Cruz – O Consórcio Cais
plementadas nas áreas portuárias no país, contribui signiicativamen-
Mauá airma, no relatório de im-
de outras cidades e o seu resultado te na poluição do ar, para a perda
pacto social, econômico e am-
econômico e social, o que ajudaria de tempo no trânsito e o estresse
biental (EIA/RIMA) apresentado
a buscar ideias para a elaboração urbano. Neste contexto, pode-se
para a Secretaria do Meio Ambien-
de um projeto que mais se ajusta perguntar ao Consórcio Cais Mauá
te de Porto Alegre, que o projeto
à realidade de Porto Alegre. Várias e, inclusive, aos governos estadual
para a Orla do Guaíba, localiza-
cidades no mundo sofreram com a e municipal que estão aprovando
do entre a Rodoviária e a Usina
perda de função de seus portos e o projeto: como um Shopping com
do Gasômetro, irá “revitalizar” a
tiveram de buscar novas alterna- 4.800 vagas de estacionamento
região. Mas o EIA/RIMA não apre-
tivas para eles, como ocorreu com para automóvel na orla do Guaíba
senta estudos e pesquisas que
Boston nos anos 1950, Nova York não agravará os problemas criados
mostrem qual a dinâmica atual
em 1960, Baltimore em 1970, Ro- pela circulação dos atuais 30.000
do Centro Histórico (bairro que se
terdã em 1980, Buenos Aires e Bar- veículos/dia? E qual a garantia de
desenvolveu com as atividades do
celona em 1990, e Belém em 2000. que não estamos construindo um
porto Cais Mauá) em termos eco-
“shopping fantasma”, como os
Dependência do modal
nômicos, sociais e culturais, quais
existentes em muitas cidades nor-
as tendências esperadas para o
te-americanas, que logo precisará
futuro e como o empreendimento rodoviário passar por uma reconversão em seu
(formado por um Shopping, três
uso?
edifícios corporativos – torres e A modernização tecnológica dos
garagens) irá promover a quali- meios de transporte e das comuni- O projeto do Shopping inviabili-
icação do desenvolvimento da cações mudou a relação da cidade za a ideia de uma praça contínua
região. com o porto assim como com as fer- (Praça Brigadeiro Sampaio) e arbo-
rovias. Mas esta modernização não rizada que ligaria a Rua dos Andra-
O Centro Histórico já tem uma
é um processo natural, depende de das, Sete de Setembro e Siqueira
dinâmica própria que o torna um
decisões tomadas principalmente Campos com a Usina do Gasôme- 17
dos bairros com maior poder de tro, criando um espaço de convi-
pelos governos, como foi o caso
atração da cidade. Ali estão lo- vência contíguo e aberto ao pú-
brasileiro de assumir o transporte
calizadas a sede do Governo Es- blico através do rebaixamento da
rodoviário (as rodovias pavimen-
tadual e Municipal, a Assembleia Av. João Goulart. Esta proposta, de
tadas, o automóvel e o caminhão)
Legislativa e a Câmara Municipal. movimentos como o Cais Mauá de
como o símbolo do desenvolvimen-
Também conta com a maioria dos Todos2, reduziria o ruído provoca-
to 1. Esta escolha produziu uma
bancos presentes no estado, o do pelos automóveis e melhoraria
infraestrutura de transporte e um
Mercado Público, o Museu de Ar- a sensação térmica do entorno que
comportamento social que promo-
tes do Rio Grande do Sul – MARGS, tem prédios residenciais.
ve o uso exacerbado do automóvel
o Santander Cultural, a Casa de
para o transporte de passageiros
Cultura Mário Quintana, a Usina
e dos caminhões para o transpor- Pensando no futuro
do Gasômetro, o Anfiteatro Pôr
te de cargas em detrimento de um
do Sol, comércio de rua bastante
modelo de transporte mais equili- Na perspectiva de um planeja-
diversificado. Além disso, conta
brado, mais eiciente em termos de mento estratégico da cidade, é
com a infraestrutura de trans-
gasto de energia e menos poluen- preciso considerar: em primeiro
porte que contempla o Aeropor-
te, pois despreza o transporte fer- lugar, a perda de atratividade dos
to Internacional Salgado Filho, o
roviário e hidroviário. Shoppings, pois os dados mostram
trem metropolitano (Trensurb), o
que em 1990, nos Estados Unidos,
transporte hidroviário de turismo Fazendo uma relexão sobre os se construíram 140 por ano e em
e de passageiros (Catamarã, Cis- impactos negativos do uso que se 2007 nenhum foi construído; em
ne Branco), a estação rodoviária faz do automóvel nas cidades do segundo lugar, que a localização
(que recebe ônibus de todo país, Brasil de hoje (e destacando que de um empreendimento comer-
do Mercosul e interior do estado) cial existente em todas as par-
por onde passam as linhas muni- 1 O Plano de Metas de Juscelino Kubits-
chek destinou 93% dos recursos para os se- tes do mundo na Orla do Guaíba
cipais de quase todos os bairros tores dos transportes, energia, e indústrias de
da cidade, além da paisagem base, enquanto os outros dois setores incluí- 2 Cais Mauá de Todos: movimento coletivo
natural que permite aos porto- dos no plano, alimentação e educação, ica- de resistência ao modelo empregado no pro-
alegrenses contemplar a beleza ram com o restante. Fonte: http://cpdoc.fgv. jeto de revitalização do Cais Mauá e que luta
br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/ pelo uso comum da área pública. Saiba mais
do pôr do sol sobre as águas do PlanodeMetas. Acesso em 27/10/2015. (Nota sobre o grupo em http://on.fb.me/1SlJVyC.
Guaíba. do entrevistado) (Nota da IHU On-Line)

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(uma região peculiar da cidade) construídas (com construções que de não explorada pelo empreendi-
diminuiria o diferencial de Porto não foram projetadas para o apro- mento, que apenas reserva 347 va-
Alegre na rede de cidades globais veitamento da água da chuva e da gas para bicicletas, é a instalação
e aumentaria a sua homogeneiza- energia do sol, e tampouco para de uma ciclovia de 8,7 Km entre o
ção. Queremos nos tornar iguais o uso da arborização como regu- muro e o Guaíba interligando toda
às demais cidades que apostaram ladora microclimática e para o a extensão do Cais Mauá com o nor-
tudo no automóvel e nos Shoppin- embelezamento da paisagem) que te e o sul da cidade, ajustando-se
gs? O exemplo de Detroit, cidade nos anos 1990. As chuvas deste ao Plano Cicloviário da Prefeitura
norte-americana sede da General mês izeram o nível das águas do Municipal de Porto Alegre.
Motors que já foi a quinta maior Guaíba igualar as marcas dos anos
cidade do país e hoje é a décima 1960 e mostraram que o Muro da
oitava, que em 2013 decretou fa- Mauá apresenta problemas na sua
Cidade fordista-
lência, deve nos servir de alerta contenção com o vazamento de industrial
para os riscos que a cidade corre uma das comportas, assim como
ao icar dependente de apenas um as bombas instaladas para levar As questões problemáticas aqui
setor econômico para o seu de- as águas da cidade para o Guaíba apresentadas fazem parte do
senvolvimento. A concorrência das (que apresentaram problemas) e o mundo contemporâneo em rápi-
montadoras japonesas e de outros sistema de drenagem natural. da transformação, mas que o EIA/

Diagnóstico de
países fez desmoronar o sonho de RIMA não leva em consideração,
pois o seu enfoque é o do plane-
carências do centro
vida dos norte-americanos daque-
la cidade hoje abandonada. Este jamento e da construção da ci-
exemplo recomenda que devemos dade fordista-industrial, hoje em
analisar com cautela a justiicati- O empreendimento apresenta declínio. A velocidade com que os
va da geração de empregos, pois o como aspectos positivos a recu- governos locais conseguem tomar
projeto de “revitalização” do Cais peração e utilização do Setor Ar- (boas) decisões para o planeja-
Mauá não se articula (não dialoga) mazéns, previsto para operar em mento que prepara as cidades para
com a tendência atual da econo- meados de 2018 (que poderia ser as mudanças sociais, econômicas e
mia mundial (também chamada de a ancoragem inicial do empreendi- ambientais ainda é mais lenta que
sociedade do conhecimento), que mento), a criação de uma área de a dos problemas criados pela mo-
18 está mais dependente de serviços convívio para população no Setor dernização urbana e as mudanças
de alta especialização que supor- Docas, onde se situa o Frigoríico e climáticas.
tam setores inovadores como os da uma Praça hoje não utilizada pela
tecnologia da informação. população. O diagnóstico do Cen-
tro Histórico indicou a carência IHU On-Line – Em que medida
Não foram realizados estudos a recuperação do Cais Mauá pela
sobre a evolução dos serviços e de equipamentos e espaços para
crianças, idosos, jovens, e famí- iniciativa privada, tornando-o
o comércio de Porto Alegre e da
lias. O diagnóstico das carências também um empreendimento
Região Metropolitana que hoje
e potencialidades do Centro reco- imobiliário, ressigniica o debate
funcionam como uma conurbação
onde se estabelecem intensas tro- menda que a prioridade seja dada acerca dos espaços públicos e de
para a revitalização e o uso imedia- uso comum da cidade? Como deve
cas e deslocamentos. Tampouco se
to das Praças e dos Armazéns, com ser o papel do poder público nes-
leva em consideração os Relató-
a instalação de atividades que ala- se processo?
rios Climáticos, como o do IPCC/
vanquem a atual dinâmica cultural
AR de número 6 (Ministério da Milton Cruz – O projeto, que se
e social já existente do outro lado
Ciência e Tecnologia/INPE), que vislumbra no EIA/RIMA apresenta-
do Muro da Mauá, como são as Bie-
mostra a tendência de aumento do ao órgão municipal encarrega-
nais do Mercosul, a Feira do Livro,
da temperatura supericial de 2 do de aprovar o andamento do em-
as atividades culturais do Margs e
a 4 graus centígrados. Qual o im-
da Casa de Cultura Mário Quintana, preendimento, segue a lógica das
pacto das mudanças climáticas no
e as visitas de turistas ao patrimô- grandes obras que buscam ganhar
Centro Histórico e no Guaíba? Que
nio histórico e cultural. com a infraestrutura urbana insta-
tipo de medida mitigatória pode-
lada e a dinâmica social e econô-
ria ser tomada para aumentar o O cronograma físico-inanceiro
grau de segurança dos moradores proposto pelo Consórcio Cais Mauá mica de uma região com capacida-
e o bem-estar de uma região al- precisa ser alterado segundo estas de de atração de consumidores de
tamente densiicada e com tem- prioridades, que poderiam ser mo- toda cidade e da Região Metropoli-
peraturas superiores aos demais nitoradas e avaliadas na sua função tana. Uma região que agregará ao
bairros? O regime de chuvas que de revitalização do Centro Históri- seu patrimônio histórico e cultural
vêm se apresentando na Região co da capital gaúcha, e que devem a paisagem do Guaíba e do Pôr do
Metropolitana e no Rio Grande do dar um retorno mais rápido a um Sol, que hoje não pode ser desfru-
Sul revela a vulnerabilidade de menor custo e com menos riscos tada, com todo o valor simbólico
nossas cidades, hoje muito mais para a cidade. Outra potencialida- e afetivo que a população porto-

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DE CAPA IHU EM REVISTA

alegrense lhe atribui3. A valoriza- (Brasília), Arena da Amazônia (Ma- terço) de representantes do Mu-
ção do Centro Histórico com o uso naus) e Arena Pantanal (Cuiabá) – nicípio, 1/3 (um terço) de repre-
social que se pode fazer do Cais atingiu pelo menos R$ 10 milhões sentantes da comunidade local, e
Mauá não pode ser reduzida a ga- desde o im do Mundial. O exemplo 1/3 (um terço) de representantes
nhos econômicos a serem garanti- da Copa indica que ainda domina a da sociedade civil organizada; e a
dos por consumidores. O espaço é, prática da implantação de grandes criação de uma Operação Urbana
em primeiro lugar, um patrimônio empreendimentos na cidade sem Consorciada do Centro Histórico;
de uma cidade que pode e deve consulta à população, como re- além da criação de um Sistema
ter garantida a sua função social comenda o Estatuto da Cidade de de Acompanhamento das Ações do
criando lugares de convivência aos 2001, sem análise do papel do em- Cais Mauá, que se relaciona com
diferentes estratos sociais e es- preendimento na dinâmica real da mais de 15 programas e projetos
paços de educação urbana para a cidade e da região e sem o acom- do município.
cidadania. panhamento da sociedade nas fa-
Relação entre as
pessoas e o cais
ses de planejamento, implantação
Para que a cidade cumpra sua
e funcionamento das obras.
função de educadora da cidada-
nia e garanta o bem-estar cole- Este aprendizado sugere que
tivo, o Poder Público deve atuar o melhor seria a participação da Levando em consideração os
como mediador e regulador dos sociedade na deinição de qual o usos que a população faz da Orla
empreendimentos que impactam melhor projeto para o Cais Mauá. do Guaíba, onde ela tem acesso li-
na vida da cidade, equilibrando o O instrumento da Operação Urbana vre para caminhar, namorar, andar
interesse econômico privado com Consorciada permite a participa- de bicicleta e skate, passear com
as demandas da população e as ção da sociedade, dos moradores, o cachorro, tomar um chimarrão,
recomendações de especialistas do empreendedor e do governo em passear de barco ou sentar para
como os estudiosos das mudanças obras que impactam signiicativa- contemplar o momento em que
climáticas. Continuar acreditando mente na cidade. A Lomba do Pi- o sol se põe no horizonte e sobre
que mais construções (edifícios, nheiro, um bairro da zona leste de o “espelho d´água” que o Guaíba
viadutos etc.) é sinônimo de desen- Porto Alegre, vem implementando cria, é de se perguntar se as pes-
volvimento é não aprender com o um projeto-piloto de Operação soas poderão fazer o mesmo no
passado recente que nos apresenta Urbana Consorciada. Esta Lei Cais Mauá. O convívio da popula-
muitos exemplos de obras que não Complementar nº 627/2009 permi- ção com esta paisagem desperta 19
cumprem papel algum no desenvol- te, por meio de uma parceria entre emoções que se expressam em pa-
vimento e ainda deixam problemas o poder público e o setor privado, lavras como: “minha cidade ama-
para o Poder Público resolver, mas alternativas de inanciamento para da”, “maravilhoso”, “saudades”,
que garantiram o lucro de empre- a organização do transporte cole- “amo tudo isso” e “rio mais lindo
sas da construção civil. tivo, ampliação dos espaços pú- do mundo”, o que mostra o valor
blicos, implantação de programas afetivo dos porto-alegrenses com
Exemplo da Copa e habitacionais de interesse social a Orla do Guaíba e que deveria
Operação Urbana ou mesmo a melhoria da infraes- ser preservado e até estimulado
Consorciada trutura e do sistema viário da re- pelo projeto. Valorização que se
gião onde é realizada4. Esta experi- agregaria ao patrimônio cultural,
ência compreende um conjunto de afetivo e à identidade da cidade,
De acordo com um levantamento
intervenções e medidas coordena- que ainda não aparece na propos-
feito pela BBC Brasil, o prejuízo de
das pelo Poder Executivo Munici- ta de revitalização do Cais Mauá,
apenas três “elefantes brancos” da
pal, por intermédio da Secretaria mas que poderia tornar o empre-
Copa – os estádios Mané Garrincha
do Planejamento Municipal – SPM, endedor um exemplo de agente
3 As páginas do Facebook intituladas “Pôr com a participação de proprietá- econômico inovador na realização
do Sol na Orla do Guaíba” e “Orla do Guaí- rios, moradores, usuários perma- de uma iniciativa orientada pela
ba” apresentam, respectivamente, 2.248 e responsabilidade ética, social e
52.576 “curtidas” e “visitas”, fotos do sol no
nentes e investidores privados. O
horizonte, do “espelho d´água” e comentários objetivo é alcançar transformações ambiental.
sobre o que os usuários sentem ao caminhar, urbanísticas estruturais, melhorias
namorar, andar de bicicleta e skate, passear sociais e valorização ambiental na IHU On-Line – O muro da Aveni-
com o cachorro, tomar um chimarrão, pas-
sear de barco ou sentar para contemplar o área. da Mauá é visto por muitos como
momento em que o sol se põe. A paisagem entrave para integrar a cidade à
desperta emoções que se expressam em pa- Poderia ser proposta criação de
orla do Guaíba. Como o senhor
lavras como: “minha cidade amada”, “mara- um Comitê de Desenvolvimento
vê esse debate acerca do muro
vilhoso”, “saudades”, “amo tudo isso”, e “rio do Centro Histórico para formu-
mais lindo do mundo”. Fontes: https://www. e das barreiras físicas que impe-
lar e acompanhar os planos e os
facebook.com/P%C3%B4r-do-Sol-na-Orla- dem essa integração? E que ou-
-do-Gua%C3%ADba-196859143678334/; e projetos urbanísticos com 1/3 (um
tras barreiras não físicas estão em
https://www.facebook.com/pages/Orla-do-
-Gua%C3%ADba/185301931541340. Acesso 4 Fonte: SMURB, Secretaria da Prefeitura de jogo nessa ideia de revitalizar o
em 27/10/2015. (Nota do entrevistado) Porto Alegre. (Nota do entrevistado) espaço?

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Milton Cruz – Acredito que o para o aniversário da Associação dade emancipada das relações que
muro da Mauá tornou-se um sím- de Moradores ou para os ciclistas geram subjetividades alienadas e
bolo emblemático das barreiras realizarem oicinas aos que que- dependentes.
que impedem o acesso ao patri- rem aprender a andar. Ver crianças
Para Boaventura de Sousa San-
mônio cultural e afetivo da cidade brincando com seus pais ou ciclis-
tos7, a sociedade que caminha
que a população porto-alegrense tas andando na rua desenvolve
para a emancipação não pode re-
valoriza muito, como a Orla do uma percepção de bairro muito
produzir as relações de poder e
Guaíba, o Parque da Redenção e a mais amigável e afetiva que aquela
alienação que caracterizam a ação
Feira do Livro. Desde 1941 o muro imagem produzida pelos carros an-
instrumental que hoje domina a
nunca foi acionado para proteger dando velozmente pela mesma via.
economia e a política. O projeto
a cidade como foi projetado e, A mudança de uso do espaço urba-
da sociedade emancipada deve ser
talvez, viesse a falhar em muitos no produz percepções e sentimen-
conduzido por uma subjetividade
pontos como sugere o vazamen- tos diferentes sobre as possibilida-
que orienta sua ação a partir do
to de uma das comportas neste des que a cidade moderna oferece.
“mapa emancipatório” que busca
ano de 2015 e os alagamentos na Os projetos devem qualiicar esta
o reconhecimento (identidade) e
Rodoviária, Voluntários e outras percepção e as sensações que o in-
a redistribuição (igualdade) e tem
regiões ao norte do Centro His- divíduo urbano elabora ao interagir
como princípios norteadores a so-
tórico. Passaram-se 74 anos sem com seu bairro e a cidade.
lidariedade (ética), a participação
A cidade e a sociedade
que a população, principalmente
(política), e a expressão estética
a do Centro, pudesse ter acesso
(prazer, autoria, artefactualida-
ao Cais e suas praças. Várias ge- pós-moderna de). Para Habermas8, os espaços
rações perderam a oportunidade
sociais devem garantir interações
de criar seus ilhos em contato Para muitos pesquisadores, as comunicativas que se baseiem na
com o Guaíba, o que não pode mudanças radicais pelas quais esta- consistência dos argumentos e no
ser mensurado economicamente, mos passando caracterizariam um reconhecimento do outro como
mas deve ser avaliado na pers- novo período do capitalismo que portador de opiniões que devem ser
pectiva da educação urbana que vem sendo denominado como a so- valorizadas e levadas em conside-
a cidade propicia, ou não, aos ciedade pós-moderna (Harvey)5 ou ração na tomada de decisão. As ex-
seus moradores, principalmente sociedade da modernidade tardia perimentações participativas como
para aqueles que não têm acesso
20 aos bens culturais e econômicos
(Giddens)6. Para Giddens, este pe- o Orçamento e o Planejamento
ríodo cria instabilidades que amea- Participativo seriam criações locais
fundamentais para a formação da çam a segurança do indivíduo, isto que privilegiam este tipo de intera-
consciência cidadã moderna. é, podem desorganizar a sua capa- ção, as trocas comunicativas.
Na perspectiva da (boa) cidade cidade de dar um sentido de ordem
e continuidade ao seu “projeto de A partir destas abordagens, é ne-
do futuro, aquela que promove
vida”. Esta habilidade do indivíduo cessário analisar o projeto e a prá-
valores como o respeito ao outro
e ao diálogo, se fazem necessários em dar sentido a sua vida é funda-
mental para a experimentação de 7 Boaventura de Sousa Santos (1940-):
projetos que promovam a intera- doutor em Sociologia do Direito pela Univer-
ção entre indivíduos diferentes emoções estáveis positivas, para se
sidade de Yale, Estados Unidos, e professor
em termos de renda, culturais, evitar a ansiedade e o adoecimen- catedrático da Faculdade de Economia da
crença religiosa e etnia, de for- to, e para se construir uma socie- Universidade de Coimbra, Portugal. É um
dos principais intelectuais da área de ciên-
ma a que as crianças aprendam, cias sociais, com mérito internacionalmente
desde pequenas, a conviver com 5 David Harvey (1935): é um geógrafo mar- reconhecido, tendo ganho especial popula-
pessoas que partilham valores xista britânico, formado na Universidade de ridade no Brasil, principalmente depois de
Cambridge. É professor da City University of ter participado nas três edições do Fórum
Social Mundial, em Porto Alegre. Conira a
distintos daqueles da sua famí-
New York e trabalha com diversas questões
lia. Condomínios fechados, pré- ligadas à geograia urbana. (Nota da IHU entrevista O Fórum Social Mundial desaia-
dios e casas gradeados, parques On-Line) do por novas perspectivas, concedida por
e praças cercados constroem uma 6 Anthony Giddens: sociólogo inglês, foi Boaventura ao sítio do Instituto Humanitas
diretor da “London School of Economics Unisinos – IHU em 30-01-2010, disponível
percepção social da cidade que and Political Science” (LSE). É autor de 34 em http://bit.ly/BoaventuraIHU. (Nota da
está em perigo e que precisa se obras, publicadas em 29 línguas, e de inú- IHU On-Line)
proteger, e desconstrói a imagem meros artigos. Em 1985 foi co-fundador da 8 Jürgen Habermas (1929): ilósofo ale-
da cidade acolhedora e amiga que “Academic Publishing House Polity Press”. É mão, principal estudioso da segunda geração
também conhecido como o mentor da idéia da Escola de Frankfurt. Herdando as dis-
permite que as crianças brinquem da Terceira Via. Entre suas obras publicadas cussões da Escola de Frankfurt, Habermas
na rua. em português citamos As Conseqüências da aponta a ação comunicativa como superação
Modernidade (Oeiras: Celta, 1992); Capita- da razão iluminista transformada num novo
Felizmente temos projetos que lismo e moderna teoria social: uma análise mito, o qual encobre a dominação burguesa
fecham por alguns dias no ano as das obras de Marx, Durkheim e Max Weber (razão instrumental). Para ele, o logos deve
(Lisboa: Editorial Presença, 1994); Trans- contruir-se pela troca de idéias, opiniões e
ruas, dominadas pelo automóvel,
formações da Intimidade – Sexualidade, informações entre os sujeitos históricos, esta-
para as crianças brincarem com Amor, e Erotismo nas Sociedades Modernas belecendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-
seus pais (como no dia da Criança), (Oeiras: Celta Editora, 1996). (Nota da IHU -se para o conhecimento e a ética. (Nota da
On-Line) IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

tica dos atores, que se destacam que herdarão suas virtudes e seus política e governamental (de em-
no planejamento e na construção problemas. perramento das instituições de-
da cidade da modernidade tardia, mocráticas) em que a cidade e a
Entretanto, acredito que este
buscando por elementos que ca- cidadania reclamam por novas
período de muita atividade e cria-
racterizam os espaços, os equipa- modalidades de participação nos
tividade se esgotou. A euforia com
mentos, as tecnologias e os modos benefícios criados pela produção
a participação social desapareceu
de gestão que favorecem a convi- urbano-industrial que é, hoje, a
e a crença no seu poder trans-
vência urbana e dão estabilidade e maior da história da humanida-
formador hoje é desestabilizada
segurança para o indivíduo interagir de, mas ainda é extremamente
pelo poder fragmentador e desor-
comunicativamente e viver a cidade mal distribuída. A rede de cidades
ganizador das relações políticas e
como criação e construção (social) brasileira cresceu muito nos últi-
econômicas clientelistas. Estamos
organizada para o bem-estar cole- vivenciando um período em que o mos anos acrescentando aos polos
tivo. Lugares como a praça pública Orçamento Participativo (que ain- tradicionais de desenvolvimento,
em que pais e ilhos podem brincar da hoje é inspiração para mais de como as metrópoles de São Paulo e
após o trabalho e aos ins de se- mil cidades de todo mundo que o Rio de Janeiro, muitas outras regi-
mana, equipamentos e tecnologias experimentam em diferentes mo- ões que estão demandando políti-
modernas como o transporte públi- dalidades) enfrenta grandes diicul- cas públicas eicazes na mobilidade
co que permite deslocar-se pela ci- dades para realizar a promessa de urbana, na segurança, na saúde,
dade em busca de serviços de saúde passarmos, segundo Abers (2000), e, principalmente, na inclusão de
e atividades culturais e de lazer, e “Do clientelismo à cooperação” e muitos na categoria de cidadãos
governança e gestão inovadoras que consolidarmos uma nova arquitetu- e projetos de bairros e territórios
introduzem novos instrumentos de ra de gestão pública capaz de fa- que garantam o bem-estar indivi-
participação e novas modalidades zer interagir o governo local com a dual e coletivo.
de deslocamento com as ciclovias e organização da sociedade civil na
as pedovias (que incentivam andar produção de políticas públicas que IHU On-Line – A partir do debate
de bicicleta e a pé). respondam, de modo participativo em torno da revitalização do Cais
e inovador, aos desaios da socieda- Mauá, como pensar um projeto
IHU On-Line – Como se integrar de da complexidade e da transfor- de cidade do futuro que preconi-
a debates como esse do Cais, que mação acelerada e às expectativas ze não só desenvolvimento eco-
tratam de recuperação de áreas da sociedade que busca o bem-es- nômico, mas também bem-estar 21
públicas, evitando que se tornem tar individual e coletivo. social em ambientes urbanos?

Experiências e
apenas mercadoria do capital es-
Milton Cruz – Penso que o de-
peculativo e mercado imobiliário?
bate em torno da revitalização do
Qual o papel da sociedade civil mobilizações Cais Mauá revela dois projetos de
nesse contexto?
cidade: a cidade (rebelde) da mo-
Milton Cruz – A sociedade ci- Mas a sociedade civil ainda cum- dernidade tardia contra a cidade
vil cumpriu um papel muito im- pre um papel fundamental na fordista-industrial. E que o futuro
portante na luta contra o modelo desnaturalização da atual modali- da cidade depende da capacida-
de cidade construído pelo regime dade de modernização e no escla- de da sociedade civil em apre-
político-econômico ditatorial, um recimento e na formação de uma sentar um Projeto Alternativo de
modelo elitista, excludente e que opinião pública que seja capaz de Modernização capaz de articular
dispensava a participação ativa e intervir em favor da construção de as propostas fragmentadas (ainda
organizada da sociedade na elabo- uma cidade culturalmente rica e muito inluenciadas pelo mode-
ração de políticas públicas. A so- diversiicada que se mostre capaz lo fordista-industrial de cidade)
ciedade civil conseguiu introduzir de se rebelar contra a homogenei- e convencer a opinião pública da
na Constituição de 1988 e nas Leis zação e ao fenômeno que vem tor- sua consistência e sustentabilida-
Orgânicas Municipais o direito do nando as instituições e os negócios de. Os instrumentos de regulação,
cada vez mais permeáveis à prática
indivíduo de participar do planeja- controle e planejamento devem
da corrupção e da troca de favo-
mento da cidade, e com a criação orientar-se a partir do objetivo
res. A cidade de Porto Alegre já
do Ministério das Cidades e a apro- da modernização includente que
deu mostras desta capacidade ao
vação do Estatuto da Cidade, de promove os valores da cidadania
criar o Orçamento e o Planejamen-
2001, deiniu diretrizes para a or- e a construção da subjetividade
to Participativo, o Fórum Social
ganização da Cidade de modo que comprometida com o futuro da
Mundial, ao organizar o Movimento
ela cumpra a sua função social, humanidade. Faz urgente regular
do Não contra o projeto do Pontal
isto é, para que ela não se torne o “apetite” voraz de setores do
do Estaleiro e, agora, o Movimento
uma mercadoria acessível apenas mercado em lucrar com o patrimô-
Cais Mauá Para Todos.
àqueles que podem pagar, mas que nio histórico e cultural e a infra-
acolha a todos que contribuem Entretanto, este é um período estrutura urbana construída pelas
para a sua construção e aos jovens de grande fragmentação da ação gerações anteriores.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ENTREVISTA

Francisco e a metafísica como ecologia


integral: a questão fundamental do
pensamento contemporâneo
O ilósofo Manfredo Araújo de Oliveira revisita a história da metafísica e sugere o
desenvolvimento de uma ilosoia sistemática

“O
Por Patricia Fachin e João Vitor Santos

papa põe-se na linha do que não nada. Ele repôs, contra todos os dualismos
muitos ilósofos aspiram hoje. vigentes no nosso mundo, uma visão global sin-
Esse é o ponto que não está tética, sistemática, de ver as conectividades
sendo visto”, diz Manfredo Araújo de Oliveira universais de todas as coisas”, destaca.
à IHU On-Line, na entrevista a seguir, con-
Para Manfredo, depois da recusa ou de uma
cedida pessoalmente quando esteve no Insti-
reinterpretação do que seria a metafísica des-
tuto Humanitas Unisinos – IHU, e participou
de Kant, a ilosoia deve recuperar uma pers-
de uma mesa-redonda sobre a Carta Encíclica
pectiva sistemática, e tratar das “conectivida-
Laudato Si’.
des”, ou seja, “pensar o que ética tem a ver
Na avaliação do ilósofo, a contribuição do com metafísica, o que tem a ver antropologia
24 papa para pensar os dilemas da COP-21, a ser com ética e ilosoia da natureza”. E frisa:
realizada em Paris no inal deste ano, só foi “Não dá mais para icar pensando em ilosoias
viável “porque abriu a perspectiva que torna que criam dualismos insustentáveis. O papa
isso possível, e é disso que acho que o pessoal está diante de um certo anseio que os ilósofos
não está se dando conta”, comenta. norte-americanos também têm, que é superar
De acordo com Manfredo, hoje muitos cien- o “gap” entre teoria e mundo, linguagem e re-
tistas ou ilósofos que adotam uma visão “inte- alidade. Essa é a questão fundamental do pen-
grada” dos saberes ainda estão pensando numa samento contemporâneo. Mas os ilósofos não
perspectiva epistemológica, ou seja, estão conseguiram ir adiante”.
“dizendo apenas que é preciso juntar química, Na entrevista a seguir, Manfredo de Araújo
física, matemática, humanidades, tecnicida- Oliveira revisita a história da metafísica no
des. Mas o papa vai muito além disso, vai numa pensamento ocidental e sugere a sua retomada
visão holística da realidade, que vê a realidade como ponto fundamental para compreender a
de fato como um todo”, explica. Segundo ele, realidade na sua totalidade.
o que está “embutido” na Encíclica Laudato Si’
Manfredo Araújo de Oliveira é graduado
é uma “perspectiva ontológica, metafísica, é
em Filosoia pela Faculdade de Filosoia de
algo grandioso, porque a ilosoia hoje apenas
Fortaleza, mestre em Teologia pela Pontifícia
vislumbra superar os dualismos, o dualismo
Universidade Gregoriana de Roma e doutor em
cartesiano, mas não é só isso, temos de superar
Filosoia pela Universität Ludwig Maximilian
o dualismo ontológico, porque a realidade foi
de Munique, Alemanha. Atualmente é profes-
dividida toda em pedaços e ninguém vê mais
sor titular da Universidade Federal do Ceará.
relação de uma coisa com outra”, acentua.
Recentemente, Manfredo Araújo de Oliveira
De acordo com o ilósofo, o capítulo cen- lançou seu novo livro intitulado A ontologia em
tral da Encíclica papal é o quarto, que trata debate no pensamento contemporâneo (São
da ecologia integral, “que supera aquela visão Paulo: Paulus, 2014).
analítica de que as coisas estão separadas en-
A entrevista foi publicada originalmente nas
tre si. O papa traz uma visão metafísica sobre
Notícias do Dia, de 20-10-2015, disponível em
a globalidade. Há uma dimensão de contingên-
http://bit.ly/1l5Wcfn.
cia, que não se explica por ela mesma, ou seja,
trata-se da pergunta de por que existe algo e Conira a entrevista.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DE CAPA IHU EM REVISTA

IHU On-Line – Quais foram Heidegger3, Wittgenstein4 e os pensar o Ser em seu todo, mas tra-
as diferentes razões que le- membros do Círculo de Viena, ta de pensar as condições de possi-
a recusar a metafísica ou a pro- bilidade a partir do sujeito. Esse é
varam alguns ilósofos, a
por outro tipo de metafísica? o grande problema, porque se tra-
exemplo de Kant , Nietzsche ,
1 2
Eles de fato quiseram recusá-la ta de uma restrição. Foi aí que se
1 Immanuel Kant (1724-1804): ilósofo
ou quiseram fazer outro tipo de criou aquela dicotomia entre aqui-
prussiano, considerado como o último gran- metafísica? lo que eu não conheço de jeito ne-
de ilósofo dos princípios da era moderna, nhum, que no fundo é a realidade
representante do Iluminismo. Kant teve um Manfredo Araújo de Oliveira –
mesma, e aquilo que posso organi-
grande impacto no romantismo alemão e nas Kant queria uma outra metafísica,
ilosoias idealistas do século XIX, as quais se que era em primeiro lugar uma te- zar a partir das categorias. Então,
tornaram um ponto de partida para Hegel.
oria das condições de possibilida- a metafísica em Kant era, em pri-
Kant estabeleceu uma distinção entre os fe-
nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- de do conhecimento humano, que meiro lugar, a metafísica da epis-
menon), isto é, entre o que nos aparece e o para mim signiica uma metafísica temologia, depois a metafísica dos
que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não costumes e, por im, ele levantou
poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- extremamente restrita à dimensão
mento cientíico, como até então pretendera epistemológica. Quer dizer, ela não a pergunta fundamental de como
a metafísica clássica. A ciência se restringi- trata propriamente daquilo que se- é possível pensar a unidade entre
ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria essas duas dimensões. Mas como
constituída pelas formas a priori da sensibili- ria a tarefa da metafísica, que é
dade (espaço e tempo) e pelas categorias do ele eliminou essa possibilidade
entendimento. A IHU On-Line número 93, tido, com Danilo Bilate, disponível em http:// num primeiro momento, terminou
de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) fazendo uma metafísica que pode-
à vida e à obra do pensador com o título Kant: 3 Martin Heidegger (1889-1976): ilósofo
razão, liberdade e ética, disponível para do- alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo mos chamar de “como se”, que é a
wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também (1927). A problemática heideggeriana é am- terceira Crítica [Crítica do Juízo],
sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas
normalmente ignorada quando se
em Formação número 2, intitulado Em- sobre o humanismo (1947), Introdução à
manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e metafísica (1953). Sobre Heidegger, conira fala de Kant.
ética, que pode ser acessado em http://bit. as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O
ly/ihuem02. Conira, ainda, a edição 417 da século de Heidegger, disponível em http:// A dimensão comum, abrangente
revista IHU On-Line, de 06-05-2013, inti- bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, inti- e unitária, para ele, é apenas uma
tulada A autonomia do sujeito, hoje. Impera- tulada Ser e tempo. A desconstrução da me-
tivos e desaios, disponível em http://bit.ly/ tafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Conira,
ilosoia de “como se isso fosse pos-
ihuon417. (Nota da IHU On-Line) ainda, Cadernos IHU Em Formação nº sível”, como Wittgenstein, aliás, 25
2 Friedrich Nietzsche (1844-1900): iló- 12, Martin Heidegger. A desconstrução da faz semelhante no Tractatus [Trac-
sofo alemão, conhecido por seus conceitos metafísica, que pode ser acessado em http://
bit.ly/ihuem12. Conira, também, a entrevista
além-do-homem, transvaloração dos va-
tatus Logico-Philosophicus], quan-
lores, niilismo, vontade de poder e eterno concedida por Ernildo Stein à edição 328 da do diz que há isomoria entre lin-
retorno. Entre suas obras iguram como as revista IHU On-Line, de 10-05-2010, dispo- guagem e mundo. Wittgenstein diz
mais importantes Assim falou Zaratustra nível em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O
(9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, biologismo radical de Nietzsche não pode ser que essa isomoria existe porque a
1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) minimizado, na qual discute ideias de sua forma lógica diz respeito tanto à
e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: conferência A crítica de Heidegger ao biolo- linguagem quanto ao mundo, e se a
Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando gismo de Nietzsche e a questão da biopolítica,
foi acometido por um colapso nervoso que parte integrante do ciclo de estudos Filosoias ilosoia fosse possível, se pensaria
nunca o abandonou até o dia de sua morte. da diferença – pré-evento do XI Simpósio In- a forma lógica. Mas para ele, a i-
A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da ternacional IHU: O (des)governo biopolítico
losoia não é possível, porque meu
edição número 127 da IHU On-Line, de da vida humana. (Nota da IHU On-Line)
13-12-2004, intitulado Nietzsche: ilósofo 4 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): iló- conhecimento e minha linguagem
do martelo e do crepúsculo, disponível para sofo austríaco, considerado um dos maiores estão completamente voltados
download em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição do século XX, tendo contribuido com diver-
sas inovações nos campos da lógica, ilosoia
15 dos Cadernos IHU em formação é intitu-
para dizer o que são os fatos e,
lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e da linguagem, epistemologia, dentre outros portanto, não temos condições de
pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. campos. A maior parte de seus escritos foi pensar a unidade.
Conira, também, a entrevista concedida por publicada postumamente, mas seu primeiro

Nietzsche e a luta de
Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU livro foi publicado em vida: Tractatus Logi-
On-Line, de 10-05-2010, disponível em co-Philosophicus, em 1921. Os primeiros tra-
http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis- balhos de Wittgenstein foram marcados pelas forças
mo radical de Nietzsche não pode ser mini- idéias de Arthur Schopenhauer, assim como
mizado, na qual discute ideias de sua confe- pelos novos sistemas de lógica idealizados por
rência A crítica de Heidegger ao biologismo Bertrand Russel e Gottllob Frege. Quando o Nietzsche, a meu ver, é seme-
de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte Tractatus foi publicado, inluenciou profun- lhante a Heidegger. Aliás, as críti-
integrante do Ciclo de Estudos Filosoias da damente o Círculo de Viena e seu positivismo
lógico (ou empirismo lógico). Conira na edi-
diferença – Pré-evento do XI Simpósio Inter-
cas que Heidegger faz à metafísica
nacional IHU: O (des)governo biopolítico da ção 308 da IHU On-Line, de 14-09-2009, a partem de Nietzsche. Nietzsche
vida humana. Na edição 330 da Revista IHU entrevista O silêncio e a experiência do inefá- esbraveja contra a metafísica,
On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista vel em Wittgenstein, com Luigi Perissinotto,
Nietzsche, o pensamento trágico e a airma- disponível em http://bit.ly/ihuon308. Leia,
considerava o platonismo e o cris-
ção da totalidade da existência, concedida também, a entrevista A religiosidade mística tianismo os grandes inimigos da
pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível em Wittgenstein, concedida por Paulo Mar- vida, mas no fundo ele tem uma
para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na gutti, concedida à revista IHU On-Line 362,
edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista de 23-05-2011, disponível em http://bit.ly/ nova metafísica, que é a teoria da
O amor fati como resposta à tirania do sen- ihuon362. (Nota da IHU On-Line) vontade de poder, que é uma es-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

trutura que marca tudo; ou seja, o “Estou em diiculdades de lingua- e Baumgarten [Alexander Gottlieb
que é mundo? O mundo é uma luta gem. Toda linguagem ocidental é Baumgarten]7, quer dizer, aquela
de forças. baseada na metafísica da ontoteo- ontologia que se pergunta sobre os
logia e, portanto, não dá”. Mas ele constitutivos fundamentais do ente
Desta forma se mostra que há
nunca construiu ou pensou numa enquanto tal, qualquer que seja
diferentes propostas, porque Kant
linguagem alternativa, numa teoria ele; em seguida, consideravam-se
também pode ser dito como não
alternativa, porque havia, por par- os três grandes campos de entes e
destruidor da metafísica, pois su-
te de Heidegger, uma ligação tão chamaram isso de metafísicas es-
gere uma nova metafísica, mas que
profunda com uma certa maneira peciais ou ontologias especiais ou
de metafísica tem muito pouco.
de entender a fenomenologia, que regionais, que consiste em:
Nietzsche, embora negue a meta-
tem na intuição o elemento funda-
física, termina tendo uma ontolo- 1) o tratamento das coisas da na-
mental, que o impediu de articular
gia especíica. No meu livro “On- tureza, da cosmologia;
uma teoria.
tologia em debate no pensamento
contemporâneo”(Paulus, 2014), Heidegger escreveu o verbete 2) os tratamentos dos fenômenos
digo que ele repôs a metafísica sobre fenomenologia para uma psíquicos, da psicologia racional;
através de uma metafísica da teo- nova edição da Enciclopédia Britâ- 3) e o tratamento de Deus, a
ria da vontade de poder, que não é nica, e Husserl [Edmund Husserl]5 teologia.
uma categoria epistemológica, mas icou furioso com a apresentação
ontológica, porque diz o que acon- que ele fez da fenomenologia. Po- Podemos dizer, independente do
tece no mundo: o mundo é uma rém, ele argumentou que todo o problema de Deus, que não pode
luta de poderes e é a partir daí que pensamento da fenomenologia de ser tratado, na minha maneira de
ele constrói a sua visão de mundo. Husserl se concentrava na relação entender, como uma ontologia es-

Heidegger e a
entre a “subjetividade constituin- pecial – mas isso não é tema para

metafísica originária
te”, aquela que constitui toda e ser tratado aqui –, que a metafísica
qualquer realidade como objeto do hoje tem dois momentos: a metafí-
conhecimento humano, e o “obje- sica enquanto teoria dos entes, que
Em relação a Heidegger há uma to constituído” por ela. Ora, o Ser se pergunta pelo que há de comum
grande confusão, porque icou mais diz respeito tanto ao sujeito cons- entre os entes, suas características
26 ou menos estabelecido, pela opi- tituinte quanto ao objeto consti- fundamentais, ou seja, com quais
nião pública ilosóica, que Heide- tuído, ou seja, está em jogo aqui categorias podemos pensá-los; e,
gger escreveu toda a sua ilosoia aquela unidade que torna possível em última instância, há uma “Te-
para destruir a metafísica. Claro distinguir e relacionar sujeito e oria do Ser” propriamente dita,
que Heidegger, em parte, tem cul- objeto. intuída por Heidegger, mas nunca

Metafísica
pa, porque ele fala de uma manei- pensada por ele, ou seja, Ser como
ra como se fosse isso, quando na aquela dimensão abrangente,
realidade uma aproximação mais aquela dimensão que é o comum a
séria e profunda do pensamento Convencionou-se distinguir a
todas as realidades. De modo que
dele mostra que ele é contra uma metafísica enquanto ontologia, ou
esses autores que você citou têm
forma de metafísica que não atin- seja, enquanto é uma teoria dos
diferentes entradas e perspectivas
giu aquilo que para ele seria pro- entes, em dois grandes momentos:
em que se fala de destruição e re-
priamente a metafísica. Sua tese é o primeiro é aquele que depois se
composição da metafísica.
de que toda a metafísica ocidental chamou de ontologia geral (na lin-
é uma ontoteologia, quer dizer, é guagem de Wolff [Christian Wolff]6 de 1710, chama-se Anfangs-Gründe Aller
uma teoria do ente, que busca o Mathematischen Wissenschafften. (Nota da
5 Edmund Husserl (Edmund Gustav Al- IHU On-Line)
Ser do ente; o Ser, porém, icou brecht Husserl, 1859-1938): matemático e 7 Alexander Gottlieb Baumgarten: Filósofo
sempre no horizonte e nunca foi ilósofo alemão, conhecido como o fundador alemão nascido em Berlim, criador do vocá-
da fenomenologia, nascido em uma família bulo Aesthetica (=estética). Ensinou nas Uni-
tematizado e ao invés disso se ape-
judaica numa pequena localidade da Morávia versidades de Halle e em Frankfurt e escre-
lou para um fundamento do ente, (região da atual República Tcheca). Husserl veu em latim sua obra mais notável Aestheti-
o Ente Supremo. Heidegger queria apresenta como ideia fundamental de seu ca (1750-1758), onde descreveu o conceito da
anti-psicologismo a “intencionalidade da nova palavra. Nomeado professor de ilosoia
uma metafísica mais originária do consciência”, desenvolvendo conceitos como da Universidade de Franfurt-sobre-o-Oder
que aquela que a ilosoia ociden- os da intuição eidética e epoché. Inluenciou, (1740), onde permanece 22 anos, até falecer
tal foi capaz de criar. Do ponto de entre outros, os alemães Edith Stein, Eugen relativamente jovem. Adepto de Christian
Fink e Martin Heidegger e os franceses Jean- Wolff (1679-1754), o ordenador didático do
vista intuitivo, é uma intuição ge- -Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Michel pensamento do barão Gottfried Wilhelm von
nial, mas que não foi capaz de se Henry e Jacques Derrida. (Nota da IHU Leibniz (1646-1716), em seu trabalho Medi-
constituir como uma teoria mini- On-Line) tações ilosóicas sobre algumas questões da
6 Christian Wolff (1679-1754): ilósofo ale- obra poética (1735) introduziu pela primeira
mamente consistente. Tem certos mão que inluenciou os pressupostos raciona- vez o termo estética, no estrito signiicado
momentos em que Heidegger diz: listas de Immanuel Kant. Sua primeira obra, dessa palavra hoje. (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

IHU On-Line – As teorias de Wit- de possibilidade do conhecimento e ilosoia continental, tal como
tgenstein tiveram um impacto de qualquer coisa e, com isso, a alguns sugerem que exista, ao
mais negativo sobre a metafísica? ilosoia deixou de ser uma teoria menos nesses termos que o se-
do mundo e se fez uma teoria dos nhor explica?
Manfredo Araújo de Oliveira –
pressupostos do conhecimento do
Sim, foi um impacto negativo num Manfredo Araújo de Oliveira –
mundo.
primeiro momento. Tanto é que ele Não nesses termos. Como diz John
abandonou a ilosoia e foi para um Desde então a ontologia foi con- McDowell9 nos EUA, nada escapa à
mosteiro, mas o abade conseguiu siderada alguma coisa banida da dimensão do conceitual. Quando
mostrar a ele que o lugar dele não face do universo. Mas, por incrí- você fala de alguma coisa, já está
era na abadia, mas na ilosoia (ri- vel que pareça, ali onde a meta- falando e, portanto, já está utili-
sos). Mas veja, há três momentos física tinha também sido banida zando conceitos e, nesse sentido,
no pensamento de Wittgenstein e de uma maneira violenta por uma não há lacuna, não há um gap –
o terceiro é praticamente desco- concepção que ligou a Reviravolta como diz Putnam [Hilary Putnam]10
nhecido. O primeiro momento é do Linguística e o empirismo ilosói- – entre a linguagem e o mundo.
Tractatus, no qual ele disse: “Sobre co, no seio do Positivismo Lógico, Então, o problema é através da lin-
o que não se pode falar, deve-se no ambiente da ilosoia analítica guagem tematizar o mundo. Nesse
calar”. Mas isso não quer dizer que se recuperou a metafísica. E os sentido você volta a entender que
as coisas das quais a metafísica, a americanos, ao contrário dos euro- a metafísica não é uma disciplina
religião e a moral tratam não se- peus – que têm até medo de falar a entre as outras, mas a pressuposta
jam as mais importantes, mas não palavra metafísica –, repuseram a de todas e, portanto, se recupera,
podemos falar sobre elas porque metafísica com a maior tranquili- de alguma maneira, aquilo que di-
a linguagem é condicionada a fa- dade e passaram a dar um intensi-
zia Aristóteles quando questionava:
lar dos fatos. No segundo momen- vo tratamento. Hoje há uma certa
“Por que é necessário levantar a
to, Wittgenstein começou a fazer confusão na compreensão do que é
pergunta do ente enquanto ente?”
uma crítica muito grande à ideia a ilosoia analítica. Moore [George
Por que eu devo fazer isso? Porque,
de linguagem, à ideia de realidade Edward Moore]8 diz com muita cla-
dizia ele, tudo aquilo que eu trato
que estava presente no Tractatus, reza que, quando se fala de iloso-
em ilosoia é ente e, portanto, o
e desembocou num pragmatismo ia analítica, pode-se entender isso
radical. Mas, depois disso, há um de duas formas: como uma iloso-
que é o ente está pressuposto por 27
todas as outras disciplinas. Nesse
terceiro momento em que ele co- ia da linguagem, ou seja, que faz
sentido, a metafísica trabalha as
meça a se aproximar muito mais da da linguagem o seu objeto – e não
categorias com as quais nós consi-
metafísica anterior a tudo isso. No é essa a perspectiva fundamental
deramos toda e qualquer realidade
livro Da certeza, ele toma posição da ilosoia analítica; ou uma “ilo-
sobre o ceticismo e faz airmações e, nesse sentido, ela é pressuposta
soia através da linguagem”, para
sistemáticas. Eu iquei até espan- dizer que a análise da linguagem por todas as outras.

Tradição metafísica
tado ao ler essa obra, consideran- é o espaço, a instância em que
do tudo que ele havia dito antes. uma teoria ilosóica se articula e
Quando li esse livro pela primeira então, necessariamente, se passa
A grande tradição da metafísica
vez, achei que não estava enten- pela análise da linguagem na con-
dendo, porque ele faz airmações ocidental de fato foi uma teoria
sideração de qualquer problema
fortes que se contrapõem à outra ontoteológica, isto é, dos entes, e
ilosóico.
fase. Recentemente descobri os in- não teve a intuição, como Tomás
Nesse sentido, é perfeitamen- de Aquino teve, de que existe uma
térpretes da última fase e vi que
te possível conciliar a Reviravolta dimensão mais englobante que a
eu estava certo (risos).
Linguística com uma metafísica na questão do que é o ente enquanto
medida em que se leva em consi- ente. Tomando isso dentro da cons-
IHU On-Line – Como se faz me- deração a compreensão de que a ciência teórica que temos hoje, as
tafísica contemporaneamente? mediação linguística é fundamen- ilosoias que saíram da Reviravolta
O que os ilósofos entendem por tal porque a linguagem é um dos
isso? elementos fundamentais de uma 9 John McDowell (1942): é um ilósofo
contemporâneo. Foi membro do University
Manfredo Araújo de Oliveira – teoria.
College da Universidade de Oxford, e atual-
A metafísica tinha sido banida da mente professor na Universidade de Pittsbur-
face da terra quando Kant episte- gh. (Nota da IHU On-Line)
10 Hilary Whitehall Putnam (Chicago,
IHU On-Line – Então não há uma
mologizou a ilosoia, dizendo que separação entre ilosoia analítica Illinois, 31 de julho de 1926): é um ilósofo es-
antes de se perguntar por qualquer tadunidense que vem sendo uma igura cen-
8 George Edward Moore (1873-1958): i- tral da ilosoia ocidental desde os anos 1960,
especialmente em ilosoia da mente, ilosoia
coisa temos de nos perguntar sobre
lósofo britânico. Juntamente com Bertrand
aquele que pergunta sobre qual- Russell, foi co-fundador do movimento ana- da linguagem e ilosoia da ciência. (Nota da
quer coisa ou sobre as condições lítico em ilosoia. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Linguística não têm muita consci- cular minimamente, teoricamente, cação” (1999), onde diz que reto-
ência dessa “dimensão primordial” o que ele queria com essa história. ma os problemas teóricos.
que Heidegger chamava de Ser. Nas
Ele também escreveu “A teoria
ilosoias analíticas, as metafísicas IHU On-Line – Alguns ilósofos da Ação Comunicativa” (1981), em
reconstituídas nos séculos XX e XXI também falam em pós-metafísica. que tinha a preocupação de dar
são teorias dos entes e normal- Como o senhor entende isso? uma base teórica e epistemológica
mente nem são uma teoria do ente
Manfredo Araújo de Oliveira às Ciências Sociais, tanto que seus
enquanto tal, mas elas tratam de
grandes interlocutores nesta obra
uma série de problemas, como o – Habermas12, hoje, é um dos i-
são todos sociólogos, como Max
problema dos mundos possíveis, o lósofos que fala em pensamento
Weber, Marx, os autores da sociolo-
problema do realismo e do antirre- pós-metafísico e diz que aí está
gia dos sistemas. No livro de 1999,
alismo, o problema das modalida- o passo decisivo do pensamento
ele diz que o grande desaio hoje é
des, mas normalmente não são te- hoje. Ele diz que o acontecimen-
uma mudança fundamental de pa-
orias que juntem esses problemas to teórico mais fundamental da
radigma: passar de um paradigma
de forma sistemática, ao contrário, ilosoia do século XX foi a Revira- mentalista (uma ilosoia da consci-
são trabalhadas algumas questões volta Linguística e adota a ideia de ência), que é a metafísica, ou seja,
isoladamente. Quine [Willard van Orman Quine]13 a ilosoia transcendental clássica
de que ela colocou a ilosoia num que situou as condições elimináveis
Nesse sentido, eu diria que o
patamar teórico completamente do conhecimento humano na esfera
grande método da ilosoia analíti-
ca – depois que a ilosoia tinha se diferente. Agora, isso signiica, do mundo inteligível, para uma i-
tornado praticamente uma consi- para Habermas, que a metafísica losoia transcendental pragmática,
deração histórica dos diversos iló- se tornou impensável e o problema que vai descobrir essas condições
sofos do passado – foi voltar a uma fundamental é, portanto, articular de possibilidade do conhecimento
dimensão sistemática, no sentido o pós-metafísico, ou seja, devemos humano que se geram nas práticas
de querer trabalhar novamente os fundamentar tudo pós-metaisi- simbólicas dos mundos vividos em
problemas e não somente interpre- camente. Agora, se você vai atrás que as pessoas estão inseridas. En-
tações dos ilósofos de nossa tra- para ver o que Habermas pensa so- tão é preciso, como ele diz, descer
dição. Porém a diiculdade é que bre pós-metafísica, tem de se per- do mundo inteligível – e por isso
28 guntar o que é metafísica para ele metafísico – para a terra, onde se
os analíticos não têm ainda clara-
mente uma ideia de que há uma para poder entender o que chama situam as pessoas. Portanto, para
integração das diversas questões. de pós-metafísico. Habermas, a tarefa fundamental
Por outro lado, saiu também da Re- da ilosoia hoje é se tornar um
Por incrível que pareça, Haber- pensamento pós-metafísico, o que
viravolta Linguística a ilosoia fe-
mas manifesta uma ignorância signiica dizer, superar o modelo da
nomenológica hermenêutica, com
enciclopédica em relação a toda ilosoia transcendental clássica e
Heidegger e Gadamer [Hans-Georg
a metafísica anterior a Kant. Para descer às bases do mundo.
Gadamer]11, que têm o grande mé-
ele, metafísica é a tentativa kan-
rito de ter levantado a questão do Tanto é assim que ele diz que a
tiana de reformulação da ilosoia,
Ser, mas não conseguem pensá-la metafísica clássica foi idealista,
ou seja, da ilosoia transcendental
por uma série de motivos, entre porque ela não pensou na prática
clássica que, como ele diz, situa a
outros, o fato de ter considerado da construção dos nossos esquemas
esfera transcendental no mundo
como momento secundário a di- transcendentais e muito menos
inteligível. Ele diz isso com muita
mensão teórica da ilosoia. Eles pensou que esses esquemas trans-
apelam para grandes intuições, que clareza no livro “Verdade e Justii-
cendentais vêm de um processo de
são importantes, mas que não che- 12 Jürgen Habermas (1929): ilósofo ale- evolução da natureza (teoria do
gam a se constituir teoricamente. mão, principal estudioso da segunda geração naturalismo fraco).
Heidegger, nos escritos publicados da Escola de Frankfurt. Herdando as discus-
sões da Escola de Frankfurt, Habermas apon-
Uso da palavra
metafísica
depois da sua morte, sempre vol- ta a ação comunicativa como superação da ra-
tou com muita insistência à mesma zão iluminista transformada num novo mito,
questão fundamental, de repetidos o qual encobre a dominação burguesa (razão
instrumental). Para ele, o logos deve cons-
modos, mas sem ser capaz de arti- truir-se pela troca de ideias, opiniões e infor- Habermas diz que se põe numa
mações entre os sujeitos históricos, estabele- tradição transcendental fraca, não
11 Hans-Georg Gadamer: ilósofo alemão, cendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se vê mais a dicotomia entre o empí-
autor de Verdade e método (Petrópolis: Vo- para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU
zes, 1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos On-Line) rico e o transcendental, e diz que
102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a 13 Willard Van Orman Quine (1908-2000): na verdade ontologia não é tare-
matéria de capa da IHU On-Line número 9, um dos mais inluentes ilósofos e lógicos fa da ilosoia. A ilosoia continua
de 18-03- 2002, Nosso adeus a Hans-Georg norte-americanos do século XX, considerado
Gadamer, disponível em http://migre.me/ o maior ilósofo analítico da segunda metade tendo como tarefa explicitar os
DtiK. (Nota da IHU On-Line) deste século. (Nota da IHU On-Line) pressupostos do nosso conhecer e

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nosso agir no mundo. Essa é a per- damentos últimos da realidade de conjuntos), ou seja, ontologia
gunta transcendental. Mas chega como um todo? é matemática. Mas a realidade é
um momento em que Habermas mais do que isso, é também even-
Manfredo Araújo de Oliveira –
diz que tem de postular um mun- to, ou seja, o novo, o não espe-
Num primeiro momento a formu-
do objetivo. E como é esse mundo? rado e, por isso, temos de pensar
lação não é boa porque pode ser
Um conjunto de objetos que têm essas duas dimensões. Markus Ga-
entendida no sentido da ontoteolo-
propriedades e relações. Veja, isto briel, Slavoj Žižek17 e outros agora
gia. Foi essa a pretensão dela des-
é a ontologia clássica, bem direiti- fazem a ilosoia da initude radi-
de que nasceu. Agora, é possível
nho (risos). Entretanto, ele não diz cal (tese de Meillassoux), dizendo
entender isso em diferentes níveis:
uma palavra sobre isso. O mesmo que só existe uma coisa necessária
pode ser num nível de airmar que
acontece com John McDowell, que no mundo: a contingência (risos).
há entidades no mundo – então, o
diz que o grande desaio contem- Todos esses ilósofos, como João
que é uma entidade é o nível da
porâneo é o que foi articulado por Branquinho18 também em Portugal,
ontologia –, mas posso pensar a
Putnam, ou seja, superar o “gap” fazem esse esforço importante de
esfera abrangente que é comum
que se criou entre linguagem e volta à ontologia. Branquinho aca-
a todas as entidades – isso seria
mundo, teoria e realidade. Ele diz bou de escrever uma obra chamada
propriamente a metafísica dois,
que nós já ultrapassamos isso e Metafísica logicamente disciplina-
ou seja, uma teoria do Ser estrita-
analisa essa questão do ponto de da. E o que é logicamente disci-
mente falando.
vista da conceitualidade (nada está plinada? É aquela metafísica que
fora do conceito). Mas ele não ar- Apareceu na Alemanha um li- vai pegar os principais problemas
ticula uma ontologia. Ou seja, diz vro do Markus Gabriel15, que é o que Aristóteles levantou, mas vai
que a dicotomia tem de ser supe- bebê da ilosoia hoje, e o neorre- trabalhá-los com o instrumental ló-
rada, mas sempre pensa implicita- alismo dele é decorrente de uma gico que a Reviravolta Linguística
mente de forma transcendental (a ontologia que surgiu na França, pôs à disposição dos ilósofos com
partir do conceito e não também a com Badiou.16 Ele é importante a lógica pós-fregeana. Então, para
partir do ser). porque essa nova ontologia parte eles, a única coisa que se pode
Hoje acho que se tornou simples- da seguinte percepção inicial: a aproveitar da Reviravolta Linguís-
mente caótico o uso da palavra Reviravolta Linguística do século tica é o instrumental lógico para
metafísica, e quando recebo um XX, quando se tornou pragmática, dar rigor lógico às considerações 29
trabalho que trata de metafísica, considerou a linguagem como pro- metafísicas. Essa nova corrente de
logo pergunto para a pessoa me dução humana, mas considerada ontologia quer passar por cima da
dizer o que entende por metafí- como produção humana a lingua- Reviravolta Linguística.
sica. Os norte-americanos de or- gem é uma realidade diferenciada,
dem analítica, por exemplo, sim- cada povo tem a sua, quer dizer,
IHU On-Line – Considerando isso
plesmente identiicam metafísica cairíamos, através disso, num re-
que o senhor disse até agora, de
com ontologia. Michael Loux14, por lativismo muito radical. O que im-
que estão entendendo metafísica
exemplo, faz pura ontologia, mas porta agora? Esquecer isso, deixar
por ontologia, e o atual avanço
ele chama isso de metafísica. Da- essa história da Reviravolta Lin-
das ciências naturais, ainda há
vid Lewis e companhia limitada fa- guística para trás e fazer, simples-
espaço para a ilosoia em termos
zem o mesmo. mente, ontologia. Agora, como?
gerais, para a metafísica? Que as-
Caída do céu?
Na Europa, quando se fala em
Para resolver isso, Badiou diz 17 Slavoj Zizek (Slavoj Žižek, 1949): ilóso-
metafísica, se escuta xingamento fo e teórico crítico esloveno. É professor da
de todos os lados. Então, eu nem que temos de fazer duas grandes European Graduate School e pesquisador
digo num primeiro momento que aproximações: uma da dimensão senior no Instituto de Sociologia da Univer-
estática do mundo, e quem dá con- sidade de Liubliana. É também professor vi-
sou um metafísico, porque eu ge- sitante em várias universidades estaduniden-
raria na cabeça das pessoas as mais ta disso é a matemática (a teoria ses, entre as quais estão a Universidade de
diferentes interpretações e as pio- Columbia, Princeton, a New School for Social
15 Markus Gabriel (1980): é um ilósofo Research, de Nova York, e a Universidade
res do que eu sou (risos). alemão e autor na Universidade de Bonn. de Michigan. Publicou recentemente Menos
Além de seu trabalho mais especializado, ele que nada. Hegel e a sombra do materialismo
também tem escrito livros populares sobre dialético (São Paulo: Boitempo, 2013) (Nota
IHU On-Line – Por metafísica ilosóicas questões. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)
podemos compreender uma di- 16 Alain Badiou (1937): ilósofo, dramatur- 18 João Branquinho: é mestre em Filosoia
mensão da ilosoia que tem como go e romancista, leciona ilosoia na Univer- (Filosoia da Linguagem e Lógica) Pela Uni-
sidade de Paris-VII Vincennes e no Collège versidade de Lisboa (1985), D. Phil. (Doctor
objetivo compreender os fun- International de Philosophie. É autor, entre of Philosophy) Pela Universidade de Oxford
muitos outros, do livro Saint Paul. La fonda- (1992), entre suas produções, destaque para
14 Michael J. Loux (1942): é um ilósofo tion de l’universalisme (Paris: PUF, 1997), o Relatório Sobre metafísica logicamente dis-
americano, e professor de Filosoia na Uni- várias vezes reeditado na França e traduzido ciplinada. É Professor Catedrático de Filoso-
versidade de Notre Dame. (Nota da IHU em diferentes línguas como o inglês e o italia- ia na Universidade de Lisboa, Onde Ensina
On-Line) no. (Nota da IHU On-Line) Lógica e Metafísica. (Nota da IHU On-Line)

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pectos da realidade dizem respei- Manfredo Araújo de Oliveira – quais são as estruturas especíicas
to à ciência e o que deve dizer Alguns explicitamente também, de determinados campos, ou seja,
respeito à ilosoia e como elas mas muitos implicitamente porque o que é o orgânico? Essa é uma bri-
devem dialogar? eles não trabalham essas questões. ga que os biólogos têm de fazer.
A metafísica hoje se desdobra em No meio dessas duas esferas tem
Manfredo Araújo de Oliveira –
uma série de problemas e há uma uma dimensão intermediária que
Quando se recuperou a metafísica,
lista de questões que são trabalha- é ilosóica, que consiste em pegar
ela foi recuperada no nível da onto-
das. É uma metafísica embrionária, todas as informações do que são as
logia e não da ontologia geral, mas
mas já é importante porque, como dimensões particulares e pensá-las
se pegam questões especiais, como
ela foi considerada uma coisa proi- a partir das estruturas universais.
a questão da mente, que virou a
bida e sem sentido, temos de ver Isso é a nova versão das metafísicas
coqueluche do mundo contempo-
que existe hoje uma boa parte especiais do passado.
râneo, mas que no fundo tem uma
Três campos do saber
teoria metafísica fortíssima. de ilósofos que consideram essas
questões pensáveis e com sentido.
Os saberes devem estar entrela-
çados, mas não se pode perder os Hoje é muito importante ter cla- Então, temos três grandes cam-
quadros teóricos a partir de onde reza de que toda teoria tem um pos de saber: as ciências de um
os diversos saberes se constituem, marco, e o marco determina não só modo geral, que têm como tarefa
porque a partir do respectivo qua- todo o tipo de problema que pode tematizar as estruturas especíicas
dro teórico é possível avaliar os surgir, mas que respostas a teoria e particulares de todos os campos
saberes. Então, eu não posso ao pode dar. Então hoje estamos sen- da realidade; tem a ilosoia que
mesmo tempo fazer uma ciência do obrigados – infelizmente poucos em última instância é metafísica,
empírica e ilosoia, achando que pensam nisso –, a nos perguntar o pensando as estruturas universais;
tudo é a mesma coisa. Esse é o que nos dão as ciências da nature- e tem, por im, aquilo que ica no
grande problema da ilosoia da za nas suas diversas propostas de meio, que são as ontologias espe-
mente, que já não distingue mais o compreensão, porque há propostas ciais, que são metafísicas, mas que
que diz respeito à ciência, à neuro- muito diferenciadas. Na física, por pegam o trabalho das ciências e
ciência, e quais são as questões de exemplo, existe a mecânica clássi- pensam isso a partir das estruturas
30 ordem ontológica que são postas, ca, a mecânica quântica, a relati- universais. Nesse sentido, a ciência
porque no fundo a ilosoia da men- vista, a teoria de todas as coisas. não só explica os fatos, como Wit-
te é uma grande ontologia, uma Isso ainda é uma ciência? Até que tgenstein diz, mas explica o que
teoria muito especíica do ente. Os ponto ela é cientíica? Stephen Ha- as coisas são nas suas particulari-
dualismos ou monismo que se têm wking19 está até fazendo airma- dades, quais são os constitutivos
aí são todos ontológicos, embora ções sobre Deus a partir da ciência. especíicos das coisas. Portanto,
não se tenha nunca uma clareza Mas isso é ciência? A ciência traba- é uma tarefa muito maior para as
explícita da ontologia com que se lha com esse marco teórico? São ciências.
está trabalhando, ou seja, icam perguntas que devem ser feitas.
Se não se diferenciam as dife-
usando ontologia sem se dar conta Se você distingue a ilosoia da ci- rentes atividades, adota-se o dis-
dela (risos). ência, você diria que a ilosoia te- curso de que existe a neurociência
A tese fundamental da filosofia ria como tarefa se preocupar com e, portanto, não se precisa mais
da mente em sua vertente fisica- aquilo que são as estruturas univer- de ilosoia. Trata-se de saber que
lista é: toda e qualquer realida- sais presentes em todos os campos existem diferentes tipos de sabe-
de é física. Quando se diz isso, da realidade, ou seja, na esfera do res e que não podemos encontrar
não se está mais trabalhando a físico, do biológico etc. Mas existe tudo em todos os lugares, porque
mente, mas dizendo algo sobre ainda uma outra dimensão do co- os quadros teóricos são diferen-
toda e qualquer realidade e fa- nhecimento, que é se perguntar tes. Eu não vejo problema em os
zendo metafísica (no nível da
19 Stephen William Hawking (Oxford,
saberes dialogarem, mas eles não
ontologia geral). Como se justi- 1942): é um físico teórico e cosmólogo bri- podem perder as suas especiici-
fica isso, é outra questão. Hoje tânico e um dos mais consagrados cientistas dades. Um ilósofo que ignora a
implicitamente há uma teoria da atualidade. Doutor em cosmologia, foi
professor lucasiano de matemática na Uni-
ciência está perdido, embora esse
metafísica materialista, porque versidade de Cambridge[3] , onde hoje en- seja um problema enorme, porque
a maior parte dos filósofos, im- contra-se como professor lucasiano emérito, há uma multiplicidade de saberes
plicitamente, acha que o mundo um posto que foi ocupado por Isaac Newton,
Paul Dirac e Charles Babbage. Atualmente, é
na ciência. O que é física? Há inú-
inteiro é físico. diretor de pesquisa do Departamento de Ma- meras propostas. A mesma coisa
temática Aplicada e Física Teórica (DAMTP) ocorre com a ilosoia, porque há
e fundador do Centro de Cosmologia Teórica
IHU On-Line – Implicitamente (CTC) da Universidade de Cambridge. (Nota quadros teóricos diferenciados. O
ou explícita e declaradamente? da IHU On-Line) ilósofo não vai poder contar com a

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ideia de que existe a ilosoia, mas Uma revolução ilosóica não ma coisa que a ameba e não posso
existem ilosoias. Mas ele terá de acontece abruptamente, ela se dizer que, porque todas as coisas
fazer a comparação de por que es- gestou por um longo processo que têm algo em comum, não há uma
colheu uma determinada ilosoia e começou na Idade Média tardia e diversidade fundamental de efeti-
aí o ilósofo vai buscar as razões de se articulou de maneira plena em vação daquilo que é comum. Então
por que trata a ilosoia de deter- Kant. o homem como um ser que pensa,
minado modo. reage, argumenta, usa conceitos,
Eu digo que a posição hegemô-
que decide, delibera, não pode
nica em ilosoia ainda é a trans-
IHU On-Line – Que impasses ser igual a uma ameba. Então, o
cendental nesse sentido, porque
percebe entre aqueles que de- que é especíico do antirrealis-
o antirrealismo é uma maneira
fendem uma posição realista, que mo enquanto herdeiro da ilosoia
diferente de dizer que todo co-
traz consigo uma concepção de transcendental é que esses esque-
nhecimento tem uma mediação e
que não criamos o mundo, mas mas produzidos pelo homem são
essa mediação é subjetiva ou in-
o encontramos, que é possível determinantes do que seja o real,
tersubjetiva. O realismo diz que
ter uma descrição verdadeira, ou seja, o real é visto a partir do
existe um mundo completamente
objetiva, correta e completa do sentido que o ser humano dá a ele.
independente de mim, da minha
mundo como ele é em si mesmo, linguagem etc. Ambas as posições
Essa concepção do subjetivo no an-
e de outro lado, a posição antir- a meu ver são insustentáveis.
tirrealismo é que é o problemático.
realista, que culmina em aceitar Putnam diz isso com toda clareza:
o construtivismo, o relativismo e Uma posição que diz que há um nada existe fora da “nossa” lin-
o estruturalismo epistemológico? mundo que é independente da guagem, dos “nossos” esquemas,
Por que as teses antirrealistas teoria, da consciência, da lingua- então a linguagem é apenas algo
parecem ter bastante peso nas gem é equivocada, porque se au- “nosso”. Ela é, em primeiro lugar,
humanidades? todestrói: estou acabando de fa- algo nosso, mas a pergunta é se ela
lar do mundo e falo dele a partir não é uma estrutura do mundo que
Manfredo Araújo de Oliveira de conceitos, que são expressos é anterior a nós. Então, enquanto
– Óbvio que essa posição é mais na linguagem. O que não quer di- a linguagem é uma produção hu-
aceita, porque ela corresponde a zer que não exista o mundo em si mana, japonês é produzido pelos
uma posição que se estabeleceu
– defendi esse ponto de vista na
mesmo na sua constituição. Nesse japoneses, e português pelos por- 31
ponto, o antirrealismo tem razão tugueses, mas a linguagem é uma
minha tese de doutorado – ainda sobre o realismo ao dizer que o esfera de expressão e, enquanto
na Escolástica tardo-medieval com conhecimento não mediado não é tal, ela ultrapassa as diversas pro-
Ockham [Guilherme de Ockham]20 humano, porque sempre existe a duções históricas.
e Suárez [Francisco Suárez]21. Não esfera na qual se articula seu co-
dá para entender a metafísica mo- nhecimento. Kant achou que era Realismo
derna sem entender Suárez, por- a esfera da consciência. Depois
que todos os modernos aprende- Então, eu defendo um realismo
da Virada Linguística, sabemos
ram metafísica com ele.
que é a esfera da linguagem. O não ingênuo. O antirrealismo tem
20 William de Ockham (1285-1350): i- problema é que o antirrealismo razão em dizer que a tese clássica
lósofo lógico, teólogo escolástico inglês, entende essas esferas de me- do realismo é insustentável. É o que
frade franciscano e criador da teoria conhe- diação como esferas do sujeito Hegel disse de Kant, ou seja, como
cida como Navalha de Ockham (em inglês,
Ockham’s Razor), que dizia que as “pluralida- ou da intersubjetividade e com Kant fala de uma coisa em si que é
des não devem ser postas sem necessidade”. isso se prende, queira ou não, ao incognoscível? Se fosse incognoscí-
Considerado um dos fundadores do nomina- vel, não poderia falar (risos). Nesse
lismo, teoria que airmava a inexistência dos
modelo anterior; é um esquema
universais, que seriam apenas nomes dados transcendental. sentido as airmações do antirrea-

O papa é
às coisas, e portanto produto de nossa mente lismo têm razão de ser, porque um

antropocêntrico?
sem uma existência prática assegurada. Por conhecimento independente de
causa de suas ideias foi excomungado pela
Igreja. O conceito, bastante revolucionário linguagem, de consciência, é im-
para a época, defende a intuição como ponto pensável: ele se destrói a si mesmo
de partida para o conhecimento do universo. Veja, acusam o papa de antropo-
Ockham foi discípulo do ilósofo Duns Scotus
na medida em que se expressa. É o
e precursor do empirismo inglês, do carte- cêntrico, mas eu digo que o pessoal que Apel [Karl-Otto Apel]22 sempre
sianismo, do criticismo kantiano e da ciência não entende o que é propriamente
moderna. (Nota da IHU On-Line) antropocentrismo ou se utilizam de 22 Karl-Otto Apel (Düsseldorf, 1922): é
21 Francisco Suárez (1548-1617): padre um ilósofo alemão e professor emérito da
jesuíta, teólogo, ilósofo e jurista espanhol, outro conceito de antropocentris- Johann Wolfgang Goethe-Universität de
conhecido também como Doctor Eximius. Na mo. Para muitos, já se considera Frankfurt am Main. Licenciado em Bonn e
escolástica fundou uma escola que recebe seu antropocêntrico o que distingue doutor em ilosoia em Mogúncia, em 1960.
nome, o suarismo, independente do tomis- Foi professor em Kiel (1962-1969), Saar-
mo. De suas obras, destacam-se Disputatio- o ser humano de outras entidades brücken (1969-1972) e na Johann Wolfgang
nes Metaphysicae. (Nota da IHU On-Line) no mundo. O homem não é a mes- Goethe-Universität (1972-1990). Tornou-se

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

chamou de “contradição performa- aí. Puntel23 tem, em Estrutura e ção metafísica não se faz teologia,
tiva”: eu me autodestruo no pro- Ser (Estrutura e ser: um quadro pensei que isto constitui um bom
ferimento. O problema é como eu referencial teórico para uma i- questionamento para a teologia
entendo essa mediação. losoia sistemática. São Leopoldo: brasileira também.
Ed. Unisinos, 2008), uma consid-
Então, num primeiro momento
eração muito interessante sobre IHU On-Line – Como vê o uso
o antirrealismo vence o realismo,
realismo e antirrealismo. Ele diz que Žižek faz da Teologia para
mas um antirrealismo que se enten-
que a posição realista clássica é elaborar suas teorias?
de numa perspectiva puramente
insustentável. E do outro lado tem
subjetivista/intersubjetivista per- Manfredo Araújo de Oliveira –
o problema do antirrealismo, que
de a verdade do realismo, de que Eu não li tudo que ele escreveu,
terminou num pragmatismo fraco,
existe o mundo, e o mundo ica à porque ele é um escritor que não
que resolve tudo na linguística.
mercê do sujeito. E é acerca desse se cansa. Mas acho que ele faz uma
problema que o papa chama aten- Aliás, eu acabei de fazer uma barafunda enorme. Não quer dizer
ção quando fala do antropocentris- recensão de um livro do norueguês que ele não tenha intuições impor-
mo. Esses dias eu fui ministrar uma A. Eikrem (Síntese, n. 133, p. 315- tantes, mas não consegui entender
palestra e uma pessoa disse: “O 321) – ele publicou esse livro na seu conceito de emancipação e
papa é antropocêntrico, porque diz Alemanha em inglês –, que se cha- nem o que ele propõe hoje como
que cultura é algo especiicamente ma Ser na religião. Da pragmática ação política etc. Até agora estou
humano, mas e a cultura das gali- à hermenêutica na direção da me- em pequenas aproximações porque
nhas?”. Antropocêntrico signiica tafísica, e é extremamente inte- não consegui descobrir o io condu-
dizer que o homem é o centro do ressante, embora eu concorde que tor da teoria dele: de um lado está
universo, que ele é o princípio de ele não atinou para o que é o Ser Hegel, de outro está a psicanálise.
determinação de tudo, ou seja, do qual falam Heidegger e Puntel.
Então, uma hora eu acho que ele
tudo se determina com referência Hoje, na Noruega, o interesse por
psicanalisa Hegel, outra eu acho
ao homem, ao “eu penso”. E esse parte do pensamento de Puntel se
que ele hegelianisa a psicanálise e
é o problema que o antirrealismo dá entre os teólogos luteranos exa-
não sei como ele junta tudo isso.
não resolve e acaba caindo numa tamente por causa da recuperação
posição que faz do sujeito a de- da dimensão metafísica. Esse livro
32 terminação de tudo. Até porque o do norueguês causou um rebuliço IHU On-Line – O que o senhor
sujeito é contingente e inito e não nos ambientes luteranos da Norue- entende por crise da modernida-
pode ser a expressão e a fonte de ga, porque a teologia se concen- de? Ela está associada a essas mu-
sentido de tudo. Como posso eu ser trou na pragmática e na postura danças que foram acontecendo
a fonte de sentido do mundo? Que pós-moderna, mas como ele diz, se na ilosoia?
pretensão é essa? (risos) você não chega à dimensão meta- Manfredo Araújo de Oliveira –
física, tudo ica no ar, porque di- Sim, está. Quando se fala em crise
É possível pensar diferente, sem
mensões pragmáticas, semânticas da modernidade se fala em crise
ter de voltar a uma posição objeti-
ou hermenêuticas são subdimen- do paradigma transcendental de
vista greco-medieval, que não pen-
sões de uma dimensão maior que é pensar, ou seja, a questão da cen-
sava a mediação, embora a intuía.
o Ser. Portanto, ele quer mostrar os tralidade do ser humano. Hoje essa
De modo que não podemos dizer
pressupostos pragmáticos, herme- palavra se alargou e é isso que está
que tudo que se fez na modernida-
nêuticos e metafísicos da teologia presente na Encíclica Laudato Si’
de é sem valor, porque se levantou
enquanto teoria. do papa. Quando ele fala em crise
esse problema de que o realismo
do estilo pré-Kant não se sustenta Escrevi um texto sobre o livro da modernidade, se trata de uma
mais, embora Kant não tenha ra- dele porque a ilosoia da religião determinada concepção de razão
zão. Aí é que está a questão. no Brasil, quando ela existe, se na modernidade que os frankfurtia-
concentra quase só em conside- nos chamaram de “instrumental”,
rações da ilosoia analítica, ou que é aquela razão que se enten-
IHU On-Line – A relação en-
pragmática, ou hermenêutica, mas de como a possibilitação de uma
tre sujeito e objeto tem de ser
nunca metafísica. Quando vi esse ação eicaz do homem no mundo
objetiva?
teólogo dizendo que sem media- para dominar a natureza. Então,
Manfredo Araújo de Oliveira a crise da modernidade signiica a
– Sim, é objetiva, portanto não é 23 Lorenz Bruno Puntel: ilósofo brasilei- crise do encurtamento da razão do
que eu me prenda nas minhas re- ro radicado na Alemanha, professor em Mu-
nique. (Nota da IHU On-Line)
ponto de vista ilosóico, porque se
lações subjetivas. O desaio está Padre José Nogueira Machado: ilósofo pegou uma dimensão da razão e se
brasileiro, que com Karl-Heinz colaborou
um dos teóricos mais inluentes da Escola de
disse que a razão é isso e mais nada
na tradução da Fenomenologia do espírito,
Frankfurt, após a morte de Adorno, no inal realizada pelo Prof. Dr. Paulo Gaspar de além disso, de modo que a razão
da década de 1960. (Nota da IHU On-Line) Meneses, SJ. (Nota da IHU On-Line) se limitou à ciência e quando ela

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DE CAPA IHU EM REVISTA

faz ilosoia, ela faz ilosoia nos IHU On-Line – Mas não são, Idade Média e Tomás de Aquino
modelos da ilosoia transcenden- certo? chamavam de razão é o que os ale-
tal nos seus diferentes matizes. mães chamavam de entendimento,
Manfredo Araújo de Oliveira –
Quando eu escrevi a “Filosoia na ou seja, o conhecimento cientíi-
Não são, e o papa chama atenção
crise da modernidade”(Loyola, 3a. co. O que os gregos chamavam de
disso quando fala de biocentrismo,
ed. 2001), era exatamente nesse razão (nous), Kant vai chamar de
no sentido de dizer que o homem é
sentido dos frankfurtianos, como Vernunft, que é razão literalmen-
um ser vivo como outros animais,
te traduzido para o português, mas
sendo a razão cientíica a única o que implica ter de se preocupar
é o que os medievais chamavam
possível. Eu também iquei impres- com todos os seres vivos. Que te-
de inteligência. Então, quando os
sionado com o que eles chamavam nha de se preocupar com todos os
franceses falam de razão, entende-
de materialismo complexo, que se- seres vivos, é inegável, mas agora,
-se conhecimento cientíico, mas
ria algo parecido com o que Edgar dizer que não haja especiicidade,
os alemães, quando falam de ra-
Morin24 chama de o pensamento é um problema – eu chamo isso de
zão, pensam na razão abrangente.
complexo. metafísica abstrata, uma meta-
Daí a confusão.
física que não é capaz de pensar
Hoje, o que se fala de crise da as diferenças. Esse é o desaio do Quando se fala em razão, fala-se
modernidade é a crise da centra- pensamento contemporâneo: pen- de uma determinada maneira de a
lidade do sujeito e do que isso sig- sar a unidade fundamental, sim, espiritualidade humana se realizar,
niicou como uma redução da natu- em todas as coisas, mas há uma que é aquilo que hoje chamamos
reza a puro meio da ação humana diferença num nível profundo que de ciência. Porque razão para os
e, portanto, a concepção de que a é ontológica. medievais e gregos era o conheci-
natureza está à disposição da ação mento de derivação, diferente da
Quando o papa diz que tudo tem a
humana e que o homem é o possui- intuição. Os gregos diziam que ha-
ver com tudo, tudo está relaciona-
via o nous que intui os princípios,
dor e o senhor da natureza. É essa do com tudo, ele não está dizendo
e tem aquele conhecimento que
concepção subjetivista do homem simplesmente que é possível haver se deduz a partir dos princípios in-
como ser poderoso. O homem par- uma cooperação entre as ciências, tuídos. O conhecimento dedutivo
ticipou de uma mentira, como diz o mas que há uma visão ontológica hoje se realiza na ciência, que é
papa, ao dizer que todas as coisas que diz que tudo está relacionado axiomática-dedutiva. O problema 33
da natureza estão ilimitadamente com tudo, uma conectividade uni- todo está aqui, sempre se tem de
à disposição do ser humano, não se versal de tudo com tudo. Isso por- apelar para um plano mais funda-
dando conta de que sem a regene- que tudo tem um mesmo esquema mental. A tarefa do ilósofo é apon-
ração das coisas da natureza, tudo fundamental, pode ser considera- tar para essa esfera. A razão tem
se acaba. do com uma categoria metafísica a ver com o logos, tem a ver com
única e fundamental que pensa teoria e teoria tem níveis, e o últi-
Agora, há esse problema: não se todas as coisas e ao mesmo tem- mo nível é o englobante.
pode superar uma unilateralidade po a diversidade imensa de todas
com outra unilateralidade. E al- as coisas, porque essa realidade O problema é que aquilo que
guns querem superar isso dizendo se realiza de maneiras diferentes, hoje chamamos de demonstração
o seguinte: o homem e todas as como estava dizendo antes, nas di- é o modelo que na ilosoia da ci-
versas esferas. O problema que He- ência se chama axiomático-dedu-
coisas são iguais.
gel punha, de pensar a identidade tivo, ou seja, pressupõe axiomas
24 Edgar Morin (1921): sociólogo francês, e a diferença, é o problema central e deles tiro conclusões. E para
autor da célebre obra O Método. Os seis li- Aristóteles era isso também, mas
vros da série foram tema do Ciclo de Estu-
da metafísica hoje. De modo que
dos sobre “O Método”, promovido pelo IHU é muito ambígua essa expressão da ele tem outra forma de falar para
em parceria com a Livraria Cultura de Porto crise da modernidade, porque você legitimar coisas, que é legitimar a
Alegre em 2004. Embora seja estudioso da esfera dos princípios. Ele chamou
complexidade crescente do conhecimento pode cair em outra unilateralidade
cientíico e suas interações com as questões absurda de dizer que todas as coi- isso de refutação, ou seja, trata-se
humanas, sociais e políticas, se recusa a ser sas são físicas, por exemplo negan- de mostrar que o sujeito entra em
enquadrado na sociologia e prefere abarcar contradição consigo mesmo. Basta
um campo de conhecimentos mais vasto: i- do a enorme diferença no real.
losoia, economia, política, ecologia e até bio- ver que quando alguém diz “não
logia, pois, para ele, não há pensamento que há verdade”, se está dizendo isso,
corresponda à nova era planetária. Além de O IHU On-Line – E há uma confu-
pressupõe-se que pelo menos a
Método, é autor de, entre outros, A religação são em relação ao que se entende
dos saberes. O desaio do século XXI (Ber- por razão, também?
frase que ele proferiu é verdadei-
trand do Brasil, 2001). Conira a edição es- ra. Isso é a contradição performa-
pecial sobre esse pensador, intitulada Edgar Manfredo Araújo de Oliveira tiva que Apel explica como sendo
Morin e o pensamento complexo, de 10-09-
2012, disponível em http://bit.ly/ihuon402. – Sim, infelizmente aqui há uma a contradição entre aquilo que
(Nota da IHU On-Line) confusão. O que os franceses, a estou dizendo e o ato de proferir

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

a sentença, porque no ato eu me ses gestos de extrema ternura são isso porque abriu a perspectiva que
entrego. Então, o fato de não po- importantes. torna isso possível, e é disso que
der demonstrar dedutivamente não acho que o pessoal não está se dan-
esgota o problema da legitimação IHU On-Line – Qual é o ponto do conta.
por outros caminhos. fundamental da Encíclica Lauda- Um cientista – que deve ser in-
to Si’? diano – falou da ecologia integral
IHU On-Line – E como avalia Manfredo Araújo de Oliveira – como um pensamento “integrado”
aquelas análises que querem Diria que é o quarto capítulo, que (não integral). Ele diz que os pro-
fundamentar toda a realidade na trata da ecologia integral, que su- blemas da natureza são tão graves
História? pera aquela “visão analítica” de e complexos, que só um pensamen-
que as coisas estão separadas entre to que seja capaz de integrar os di-
Manfredo Araújo de Oliveira –
si. O papa traz uma visão metafí- versos modelos cientíicos pode dar
Isso pode ser tentado sem negar a
sica sobre a globalidade. Há uma conta das questões. Aí, nós ainda
dimensão metafísica, pois constitui
dimensão de contingência, que não estamos num nível epistemológico,
um certo nível de acesso ao real.
se explica por ela mesma, ou seja, ou seja, ele não está dizendo que
Há certas coisas que são imutáveis,
trata-se da pergunta de por que a realidade em última instância é
que aparecem em todas as mu-
existe algo e não nada (Leibniz). unitária porque tudo tem a ver com
danças, quer dizer, há estruturas
Por outro lado, ele repôs, contra tudo, está integrado com tudo. Ele
universais, apesar da história. As
todos os dualismos vigentes no está dizendo apenas que é preciso
pessoas misturam graus de verdade
nosso mundo, uma visão global sin- juntar química, física, matemá-
com relativismo. Não é isso; pode-
tética, sistemática, de ver as co- tica, humanidades, tecnicidades.
-se conhecer tudo em graus dife- nectividades universais de todas as Mas o papa vai muito além disso,
renciados de verdade. Ou seja, o coisas. Não dá mais para icar pen- apresenta uma visão holística da
conhecimento do real é um proces- sando em ilosoias que criam dua- realidade, que vê a realidade de
so aberto ao ininito. lismos insustentáveis. O papa está fato como um todo. Eu quase caí
diante de um certo anseio que os para trás quando li a Encíclica e
IHU On-Line – Como está ava- ilósofos norte-americanos também nem estava esperando isso. O que
liando o pontiicado do papa? têm, que é superar o gap entre te- está embutido na perspectiva onto-
34 oria e mundo, linguagem e realida- lógica, metafísica, é algo grandio-
Manfredo Araújo de Oliveira – O
de. Essa é a questão fundamental so, porque a ilosoia hoje apenas
papa é um barato, porque ele tem
do pensamento contemporâneo. vislumbra superar os dualismos, o
atitudes e parece que desceu para
Mas os ilósofos não conseguiram ir dualismo cartesiano, mas não é só
a Terra; é um ser humano capaz
adiante. isso, temos de superar o dualismo
de viver a dimensão humana e é
ontológico, porque a realidade foi
isso que encanta. Ele desmitiicou
IHU On-Line – Isso signiica que dividida toda em pedaços e nin-
o papado ao mostrar que é um ser
tem de ter uma unidade entre ser guém vê mais relação de uma coisa
humano como qualquer outro, tem
e pensar? Como o senhor pensa com outra.
apenas uma missão especíica e a
essa identidade?
missão primeira é humanizar, e isso
IHU On-Line – E para recuperar
ele está fazendo. Ele está tocando Manfredo Araújo de Oliveira
– Exatamente. A questão é saber essa visão totalizante, a ilosoia
em questões fundamentais, dia-
como se deve pensar isso. Identi- tem de ser sistemática?
loga com todas as pessoas. É uma
“revolução pragmática” no sentido dade entre ser e pensar não signi- Manfredo Araújo de Oliveira –
de que ele apresenta uma igura ica identiicação, mas que o pen- Sim, mas temos de entender siste-
humana do papa. Eu vivi o último sar é a expressão do Ser e o Ser é ma de um modo diferente daquele
ano de João XXIII em Roma e ele expressável, articulável, é em si que Spinoza e Hegel izeram, ou
era incrível. Lembro que numa au- mesmo inteligível, compreensível. seja, não é pôr um axioma no topo
diência ele estava lendo em vários O papa põe-se na linha do que mui- do qual se deriva tudo ou expor a
tos ilósofos aspiram hoje. Esse é integração de tudo através de con-
idiomas e quando chegou a hora de
o ponto que não está sendo visto.
ler em inglês, ele disse: “Agora es-
Ele deu uma contribuição enorme do efeito estufa. Em 2015, a COP tem sua 21ª
tou frito” (risos). Lembro-me tam- edição (daí COP 21), a ser realizada em Paris,
para pensar os dilemas da COP-21
bém da história de que ele treinou França, em dezembro. O objetivo é revisar o
em Paris,25 mas ele está fazendo comprometimento dos países, analisar os in-
como deveria tratar com Jacque- ventários de emissões e discutir novas desco-
line Kennedy enquanto esposa do 25 COP 21: A COP é a Conferência das Par- bertas cientíicas sobre o tema. Foi criada na
presidente norte-americano, mas tes da Convenção-Quadro das Nações Unidas ECO-92 e teve sua primeira edição em 1995,
sobre Mudança Climática. É a autoridade em Berlim na Alemanha. Desde então, reuni-
quando ele a viu, gritou simples- máxima para a tomada de decisões sobre os ões da COP ocorrem anualmente. (Nota da
mente: “Jacqueline” (risos). Es- esforços para controlar a emissão dos gases IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

tradições. Sistema quer dizer a co- nos EUA, em que os ilósofos fa- brasileiros. Recebo uma recensão
nectividade, ou seja, pensar o que zem referência uns aos trabalhos do meu livro na Espanha e não no
ética tem a ver com metafísica, o dos outros? Começou-se a fazer Brasil, e acho isso muito estranho. É
que tem a ver antropologia com isso no Brasil, minimamente? impressionante como não há debate
ética e ilosoia da natureza. Uma público no Brasil; é como se tudo
Manfredo Araújo de Oliveira –
vez eu disse para um colega ana-
Ainda não começamos isso no Brasil que viesse de fora fosse melhor do
lítico que ele fazia ilosoia como que o que se tem aqui.
e a primeira grande diiculdade da
se izesse matemática, ou seja,
existência de um debate público. João Carlos Salles, que é reitor
com problemas segmentados, sem
Temos ainda uma cabeça subde- da Universidade Federal da Bahia,
pensar a relação entre eles. Ele,
senvolvida; os ilósofos brasileiros fez um esforço gigantesco, quando
então, respondeu que fazia uma
não se leem a si mesmos. Veja, à frente da ANPOF, para estimular
grande coisa porque já tinha saído nos EUA praticamente não existia
de uma visão completamente his- a criação de uma literatura ilo-
ilosoia, a não ser algumas teorias sóica em língua nacional, mas o
toricista da ilosoia. Eu concordo, pragmáticas. Na Europa se dizia
mas é preciso ir além. As pessoas, movimento que existe é contrário
que nos EUA não existia ilosoia, a isso, porque muitos ilósofos bra-
às vezes, não entendem e dizem e hoje os EUA é o lugar no mundo
que eu sou um comentador de i- sileiros acham que têm de falar e
talvez mais importante para a ilo- publicar em inglês no país.
lósofos, mas não entendem que o soia, tanto que a língua inglesa se
que está por trás de comentar um tornou obrigatória para quem faz
autor é entender de que modo ele IHU On-Line – Organizar uma
ilosoia hoje.
pode contribuir para resolver um literatura brasileira não signiica
problema de ordem sistemática. Em Belo Horizonte, num congres- fazer uma ilosoia brasileira?
so sobre Apel, eu estava caminhan-
O ilósofo sistemático não é aque- do com um dos discípulos dele, que Manfredo Araújo de Oliveira –
le que está interessado somente me disse: “Veja que interessante Claro, temos de fazer ilosoia no
em ver historicamente o que os os americanos, eles nos conhecem, Brasil, nos EUA, e criar um diálo-
outros disseram, mas aquele que mas não nos citam; só citam os an- go, mas não defendo algo como
pensa conectividades fundamen- tigos, Kant, Hegel, mas eles se co- alguns defendem, que estudar i-
tais em todas as coisas e em última nhecem a si mesmos e citam uns aos losoia brasileira signiica apenas 35
instância descobre uma esfera que outros”. No Brasil as pessoas têm ler ilósofos brasileiros ou ilósofos
liga todas as esferas, a conexão das medo de citar um colega, porque latino-americanos, porque isso é
conexões. É isso que é um ilósofo acham que o seu artigo vai baixar um absurdo, uma vez que a ilo-
sistemático estritamente, e é isso de nível. Então, é impressionante soia é algo universal. Do mesmo
que eu procuro fazer. Sei que eu como os ilósofos brasileiros não se modo, não posso fazer matemáti-
sou um extraterrestre, mas isso conhecem e, portanto, não há de- ca falando de um tipo de matemá-
pouco me importa (risos). bate público. Nós escrevemos para tica que se faz só no Brasil. Agora,
quem? Não sei. Sinceramente acho ler o que os brasileiros escrevem é
IHU On-Line – Quais são as dii- que sou um dos pouquíssimos que lê fundamental para começar a criar
culdades de se fazer no Brasil uma os ilósofos brasileiros e não tenho um debate ilosóico público no
discussão ilosóica pública, como vergonha de citar e discutir com país. 

LEIA MAIS...
— Filosoia, teologia e autonomia a partir de Rahner. Entrevista com Manfredo Araújo de
Oliveira, publicada na revista IHU On-Line nº 446, de 16-06-2014, disponível em http://bit.
ly/1LYF1Di
— Contingência e liberdade. A aporia fundamental do sistema hegeliano. Entrevista com Man-
fredo Araújo de Oliveira, publicada na revista IHU On-Line nº 261, de 09-06-2008, disponível
em http://bit.ly/1LYF1TO
— O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng. Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira, pu-
blicada nas Notícias do Dia, de 19-08-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/1O7fkpP
— O ECOmenismo de Laudato Si’. Revista IHU On-Line nº 469, disponível em http://bit.
ly/1PQo04f

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ESTANTE

Por uma teologia da


libertação animal
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri apresentam livro que retoma a história

Q
ocidental da ética animal e propõem novas perspectivas para analisar a questão
Por Ricardo Machado

uem são os outros? Esta pergunta das da indústria de cosméticos e da moda,


tem milênios. Já foi respondida o livro recoloca o debate em torno do
de milhares de formas diferente tema. “Portanto, ética e ilosoicamente,
e mesmo assim ainda não foi totalmen- é preciso fazer valer a nossa condição de
te respondida. Luiz Carlos Susin e Gilmar seres livres, isto é, capazes de dizer não.
Zampieri dão novos contornos à questão E no caso, capazes de dizer não à indús-
ao responderem. “Os animais são os ‘ou- tria do sofrimento e da morte”,
tros’. E os outros sempre inspiram as me-
ponderam.
lhores relexões éticas porque a ética é
Luiz Carlos Susin é frei capu-
a inclusão do outro”, provocam, ao con-
cederem entrevista por e-mail à IHU On- chinho, mestre e doutor em Teo-
Line, sobre o livro A vida dos outros. Ética logia pela Pontifícia Universidade
e teologia da libertação animal (São Paulo: Gregoriana de Roma. Leciona na
Paulinas, 2015). PUCRS e na Escola Superior de
36 “Na segunda parte o livro pergunta se a
Teologia e Espiritualidade Fran-
ciscana – Estef, em Porto Alegre.
forma como tratamos os animais não hu-
É também secretário-geral do Fó-
manos, é a forma correta, boa, moral e
rum Mundial de Teologia e Liber-
eticamente justiicada e, se não for a me-
tação. Dentre suas obras, desta-
lhor forma, o que deveríamos fazer para
camos Teologia para outro mundo possível
cessar de causar terror, sofrimento e morte
(Paulinas, 2006).
a um ser que compartilha com os humanos
pelo menos duas condições básicas que lhe Gilmar Zampieri, frade capuchinho,
confere igual consideração de interesse e graduado em Filosoia pela Universidade
direitos, a saber: eles sofrem e vivem uma Católica de Pelotas e em Teologia pela
vida e são sujeitos de uma vida que vale Escola Superior de Teologia e Espirituali-
por si e não são meio para uma outra vida dade Franciscana (ESTEF), com mestrado
ou interesse”, exempliicam. nas duas áreas na Pontifícia Universidade
Em tempos de ofensivas cada vez mais Católica de Porto Alegre. É professor de
amplas e variadas sobre o direito dos ani- Ética e Direitos Humanos no Centro Uni-
mais, que há muito deixaram de ser sacrii- versitário Lasalle de Canoas e de Teologia
cados apenas para a alimentação humana, Fundamental na ESTEF.
mas são uma das “commodities” preferi- Conira a entrevista.

IHU On-Line – Em sentido am- te, da relação dos homens com os prêmio Nobel de literatura, J.M.
plo, do que trata o livro A vida animais. Relação que sempre foi Coetzee,1 em seu livro A vida dos
dos outros. Ética e teologia da cruel, mas com o incremento da
libertação animal? De que forma indústria da carne, ovos, leite e 1 John Maxwell Coetzee: escritor sul-afri-
ele atualiza o debate ético a cer- seus derivados, com a indústria cano Nobel de Literatura em 2003, sendo o
ca do tema? do couro, pele, com indústria dos quarto escritor africano a receber esta honra-
cosméticos e produtos químicos ria e o segundo no seu país (depois de Nadine
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- Gordimer, em 1991). A sua carreira literária
no campo da icção começou em 1969, mas o
testados em animais, aumentou
pieri – O livro trata, primeiramen-
assustadoramente, a ponto de o seu primeiro livro, Dusklands, só foi publica-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

animais (São Paulo: Companhia das homem tem dignidade, tudo o mais e Tom Regan,6 sustentar essa posi-
Letras, 2002), sugerir uma insti- têm preço”. Se o animal tem preço, ção é, no mínimo, desinformação
gante analogia entre o holocausto então pode ser tratado como coisa ou uma postura alheia e insensí-
humano perpetrado aos judeus na e substituído por qualquer coisa e vel com o que há de mais elevado
segunda guerra mundial, e o holo- nisso não implica um erro do ponto moralmente. E o que há de mais
causto animal imposto, diariamen- de vista moral. elevado moralmente é justamen-
te, pelo homem aos indefesos e ino- te a proteção, compaixão, justiça,
centes animais. A conclusão é que o Novas visões libertação e cuidado para com o
termo “campos de concentração” é mais frágil e vulnerável, inclusive
o que melhor deine a nossa relação Hoje, porém, essa concepção já os animais não humanos. Nesse as-
com os “outros” animais. A primei- não faz sentido. Depois de Jeremy pecto impõe-se uma real conversão
ra parte do livro se debruça sobre Bentham,3 Darwin,4 Peter Singer5 animal, ao lado da conversão eco-
esses “campos de concentração” lógica proposta pelo Papa Francis-
(estimação, pesquisa, instrumen- menon), isto é, entre o que nos aparece e o
co7 na Laudato Si’.

Debate ético
tos, entretenimento, alimentação) que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não
mostrando como os animais, no atu- poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci-
al estágio da indústria, são coisii- mento cientíico, como até então pretendera
a metafísica clássica. A ciência se restringi-
cados, sem consideração para com E, por im, o livro apresenta uma
ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria
seus interesses e direitos. constituída pelas formas a priori da sensibili- novidade no debate atual em torno

Segunda parte
dade (espaço e tempo) e pelas categorias do do bem-estar e direitos dos animais.
entendimento. A IHU On-Line número 93, A tradição religiosa e teológica oci-
de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa dental de cunho judaico-cristã, rei-
à vida e à obra do pensador com o título Kant:
Na segunda parte o livro pergun- razão, liberdade e ética, disponível para do-
teradamente, tem sido criticada e
ta se a forma como tratamos os wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também acusada de antropocêntrica pelos
animais não humanos, é a forma sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU defensores dos direitos dos animais.
correta, boa, moral e eticamente em Formação número 2, intitulado Em- Uma leitura fundamentalista da Bí-
manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e
justiicada e, se não for a melhor blia justiicou e fundamentou uma
ética, que pode ser acessado em http://bit.
forma, o que deveríamos fazer para ly/ihuem02. Conira, ainda, a edição 417 da postura antropocêntrica e desastro-
cessar de causar terror, sofrimento revista IHU On-Line, de 06-05-2013, intitu- sa para o meio ambiente e, sobretu-
e morte a um ser que compartilha lada A autonomia do sujeito, hoje. Impera- do, para os animais. Mas, não é fa-
com os humanos pelo menos duas tivos e desaios, disponível em http://bit.ly/ zer justiça com a Bíblia e com Deus,
condições básicas que lhe confere
ihuon417. (Nota da IHU On-Line)
3 Jeremy Bentham (1748-1832). Filósofo,
continuar repetindo mantras do 37
igual consideração de interesse e jurista e reformador social britânico. É reco- tipo: Deus não se preocupa com o
direitos, a saber: eles sofrem e vi- nhecido como o fundador do utilitarismo mo- boi; está escrito na Bíblia que deve-
vem uma vida e são sujeitos de uma derno, que prega o desenvolvimento de ações mos nos multiplicar, dominar e sub-
com a máxima eiciência para o bem-estar
vida que vale por si e não são meio meter tudo, inclusive os animais,
social e a felicidade. Foi também o primeiro
para uma outra vida ou interesse. a utilizar o termo deontologia, para se refe- a nosso favor etc. Para reverter o
Nesse particular o livro resgata a rir ao conjunto de princípios éticos a serem que está inscrito no inconsciente
história da ética, nos seus momen- aplicados às atividades proissionais. (Nota do senso comum religioso, e até de
tos e autores mais representativos, da IHU On-Line) uma postura teológica conservadora
4 Charles Darwin (Charles Robert Darwin,
e faz ver como a temática dos ani- 1809-1882): naturalista britânico, propositor
e fundamentalista, será necessário
mais tem sido posta e debatida. da teoria da seleção natural e da base da teo-
Tradicionalmente os ilósofos justii- ria da evolução no livro A Origem das Espé-
caram o trato dos animais como coi- cies. Organizou suas principais ideias a partir
de uma visita ao arquipélago de Galápagos, paixão, em http://bit.ly/ihuon191. Singer é
sa e propriedade do humano, sem
quando percebeu que pássaros da mesma autor, entre outros, de The way we eat. Why
valor inerente e, portanto, fora da espécie possuíam características morfológi- our food choices matter? (New York: Rodale,
comunidade moral, colocado no rei- cas diferentes, o que estava relacionado com 2006). (Nota da IHU On-Line)
no das coisas e não no reino dos ins o ambiente em que viviam. Em 30-11-2005, 6 Tom Regan (1938): é um ilósofo norte-
em si mesmo. Essa postura hierar- a professora Anna Carolina Krebs Pereira -americano que se especializado na teoria
Regner apresentou a palestra obra Sobre a dos direitos animais. É professor emérito
de Filosoia da Universidade da Carolina do
quizante e antropocêntrica culmina origem das espécies através da seleção na-
em Kant2 na conhecida fórmula: “O tural ou a preservação de raças favorecidas Norte, onde ele lecionou desde 1967 até a sua
na luta pela vida, de Charles Darwin, no aposentadoria em 2001. Ativista dos direitos
evento Abrindo o Livro, do Instituto Hu- animais, publicou, entre outros The Case for
do na África do Sul em 1974. Coetzee recebeu manitas Unisinos – IHU. Sobre o assun- Animal Rights e Animal Rights and Human
vários prémios antes do Nobel e foi o primei- to, conira as edições 300 da IHU On-Line, de Obligations (organizado juntamente com
ro a receber o Booker Prize por duas vezes. 13-07-2009, Evolução e fé. Ecos de Darwin, Peter Singer). Jaulas Vazias (Porto Alegre:
(Nota da IHU On-Line) disponível em http://bit.ly/UsZlrR, e 306, Editora Lugano, 2006) é seu primeiro livro
2 Immanuel Kant (1724-1804): ilósofo de 31-08-2009, intitulada Ecos de Darwin, publicado no Brasil. (Nota da IHU On-Line)
prussiano, considerado como o último gran- disponível em http://bit.ly/1tABfrH. De 9 a 7 Papa Francisco (1936): Argentino ilho de
de ilósofo dos princípios da era moderna, 12-09-2009, o IHU promoveu o IX Simpósio imigrantes italianos, Jorge Mario Bergoglio é
representante do Iluminismo. Kant teve um Internacional IHU: Ecos de Darwin. (Nota da o atual chefe de estado do Vaticano e Papa da
grande impacto no romantismo alemão e nas IHU On-Line) Igreja Católica, sucedendo o Papa Bento XVI.
ilosoias idealistas do século XIX, as quais se 5 Peter Singer (1946): ilósofo australiano. É o primeiro papa nascido no continente
tornaram um ponto de partida para Hegel. Concedeu entrevista na edição 191 da IHU americano, o primeiro não europeu no papa-
Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- On-Line, de 14-08-2006, intitulada Por do em mais de 1200 anos e o primeiro jesuíta
nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- uma ética do alimento. Sobriedade e Com- a assumir o cargo. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

um longo esforço de hermenêutica dizer cruéis. Esses animais vivem ler com atenção. O Papa Francisco,
que, modestamente, o livro propõe. em campos de concentrações e sa- na Laudato si’, insiste que é mais
criicados no altar do mercado que do que tempo de corrigir uma lei-
Nesse aspecto o livro abre um
é insensível aos humanos e muito tura antropocêntrica e arbitrária
debate no campo teológico como,
mais insensível à vida dos animais do célebre mandato de “dominar”
ao que se sabe, nunca tinha sido
não humanos. sobre os animais que, na verdade,
feito explicitamente, pelo menos
é governar no sentido ético, res-
no Brasil. Provocativamente, o sub-
título sugere o fazer teológico sob
Os animais ponsável. Além disso, o Papa leva
mais adiante a compreensão de
um novo enfoque, para além do
Quando se pergunta quem são que os animais tem um valor em
ecoteológico que, a nosso ver, não
os animais, é preciso colocar a di- si mesmos, inerente às suas vidas,
dá conta de pensar a especiicida-
mensão qualitativa e quantitativa. e não podem ser reduzidos a uso
de dos seres particulares sencien-
Bem sabemos da variedade que se humano.
tes e sujeitos de uma vida como
esconde sob o nome genérico: ani-
são os animais.
mais. Animal é o mosquito, a mos- IHU On-Line – A partir de quan-
ca, a barata, o inseto mais imper- do os animais passam a ser vistos
IHU On-Line – Quem são os ani- ceptível, o passarinho, o cachorro, como seres de direitos? De que
mais? Qual a questão de fundo o gato, o boi, o leão etc. Não po- forma isso coloca em questão o
que está por trás desta pergunta? demos continuar com a postura antropocentrismo exacerbado
De que forma ela se torna ética e especista seletiva que constituiu a que surge a partir do Iluminismo?
ilosoicamente um ponto crucial moral tradicional. Amamos e cuida-
em nosso tempo? mos os cachorros e gatos, mas ma- Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam-
tamos e comemos sem sentimento pieri – Por muito tempo, e ainda
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam-
de culpa, vergonha e indignação, o continuamos com essa mentalida-
pieri – Os animais são os “outros”.
boi, a vaca, o carneiro, o coelho, o de, pensamos que os animais só
E os outros sempre inspiram as
peixe etc. Como continuar susten- teriam direitos indiretos. Direitos
melhores relexões éticas porque
tando essa postura? indiretos que nos colocam deveres
a ética é a inclusão do outro. No
indiretos. Tanto Tomás de Aquino8
âmbito humano, costumamos dizer Portanto, ética e ilosoicamente, quanto Kant, expressam essa con-
que os outros são os diferentes, os é preciso fazer valer a nossa condi- cepção limpidamente. Eles dizem
não-eu, os de fora do círculo do ção de seres livres, isto é, capazes que não devemos maltratar ou
eu, os mais distantes, os além da
38 margem, os pobres etc. Fala-se,
de dizer não. E no caso, capazes de matar animais não porque a eles
dizer não à indústria do sofrimento devemos algum respeito por um
até mesmo, do outro totalmente e da morte que constitui a indús- valor inerente que nos obrigaria a
outro. E diz-se que um ser huma- tria da carne, ovos e leite, para dar não maltratar. Não. Segundo esses
no é tanto mais ético e religioso, um exemplo apenas. autores, e eles são a síntese do
quanto mais for capaz de respeitar
todo antropocentrismo, não deve-
e se sacriicar pelo outro. Ora, não
IHU On-Line – Em termos teoló- mos maltratar os animais, porque
seria o caso de pensar os animais
gicos e bíblicos, como se compre- em maltratando-os nos tornamos
como os outros, verdadeiramente
endeu historicamente a relação piores e desumanos. Não devemos
outros? Por isso o título pode soar
entre o ser humano e os animais ser cruéis com os animais, porque,
provocativo: A vida dos outros.
(Gênesis 1:26-28 )? Qual o impac- com isso nos tornaríamos insensí-
Os outros, que são os animais, to da Laudato Si’ (LS 69) sobre a veis e propensos a cometer cruel-
são muitos. Não ininitos, mas, cer- hermenêutica bíblica e como isso dade também com os humanos. O
tamente, incontáveis. Não há re- atualiza o debate? argumento é, pois, de deveres in-
censeamento de todos os animais diretos exatamente porque os ani-
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- mais não portam direitos. Isso mu-
que vivem na terra, debaixo da
pieri – O texto bíblico está reple- dou no século XX, através de vários
terra, no ar e nas águas. São incon-
to de referências aos animais, da autores, mas principalmente com
táveis! Mas há uma conta que os ór-
primeira à ultima pagina. Mas para Peter Singer, e mais deinitivamen-
gãos governamentais conhecem e
ver o obvio é necessário prestar te, com o ilósofo americano Tom
os defensores dos direitos dos ani-
atenção de forma diferente. A Es-
mais também conhecem. Estima-
critura foi objeto de uma leitura
-se que assassinamos anualmente
viciada por, praticamente, os dois 8 São Tomás de Aquino (1225-1274): pa-
em torno de 60 bilhões de animais,
mil anos que se seguiram ao tex- dre dominicano, teólogo, distinto expoente
para o nosso prazer na alimenta- da escolástica, proclamado santo e cognomi-
to. Ela traz uma história da relação
ção. Isso signiica algo em torno nado Doctor Communis ou Doctor Angelicus
dos humanos com os demais seres
de 180 milhões diariamente. Sete pela Igreja Católica. Seu maior mérito foi a
vivos, sobretudo com os mais pró- síntese do cristianismo com a visão aristoté-
milhões por hora. Os números im-
ximos, os animais. Nessa história lica do mundo, introduzindo o aristotelismo,
pressionam. Os números também
está tanto a tragédia da relação sendo redescoberto na Idade Média, na es-
têm peso moral. Não é a mesma colástica anterior. Em suas duas “Summae”,
de abuso – comer, sacriicar, ido-
coisa a morte de um e a morte de sistematizou o conhecimento teológico e ilo-
sóico de sua época: são elas a Summa Theo-
latrar etc – como os ensinamentos
bilhões. Esses animais são criados
que provem dos próprios animais, logiae e a Summa Contra Gentiles. (Nota da
em condições precárias, para não
o que é mais do que se imagina ao IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Regan. É inestimável a contribui- A questão é que nunca se colocou para uma mudança de mentalidade
ção desses dois pensadores para a explicitamente um enfoque teoló- e de ação em relação aos animais.
inclusão dos animais não humanos gico em que o sujeito seja a vaca, E a conclusão é que a acusação
na roda do discurso e prática mo- o boi, o cachorro etc. Até há uma de que a tradição judaico-cristã é
ral. A partir desses dois autores a ecoteologia da libertação com re- antropocêntrica e especista, não
ação de não maltratar e não matar lativo relevo e produção teológica. se conirma, quando a leitura bí-
muda de centro. Não é por nossa A Laudato Si’ é um bom exemplo. blica for colocada numa ajustada
causa, é por eles mesmos. Mas na ecoteologia, parece-nos, há hermenêutica.
um excesso de platonismo. Insiste-
-se, acertadamente, na necessida- IHU On-Line – Como Francisco
IHU On-Line – Metodologica-
de de pensar o todo, as conexões, de Assis ajuda a pensar a questão
mente, como a Teologia de Liber-
a integralidade. Acertada e corajo- animal nos dias atuais? Que har-
tação Animal aborda a questão de samente o Papa Francisco eleva em
fundo em torno dos direitos dos monias possíveis há entre o ser
nível teológico e religioso a rele- humano e os animais? De que or-
animais? xão em torno da ecologia integral, dem é tal desaio ético?
Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- pensando a necessidade do cuida-
do da casa comum de uma forma Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam-
pieri – Se o título do livro pode pa-
que une economia, política, ética, pieri – Para compreender Francisco
recer demasiado e provocativo, o
antropologia, religião, ciências e é necessário distinguir dois tipos
subtítulo pode parecer pretensio- de escritos: os dele mesmo, que
so, inadequado e inoportuno. Mas é teologia.
são poucos, e o que depois se es-
importante lembrar que o livro que O valor dessa relexão e dessa creveu sobre ele. Francisco prefe-
levantou a poeira da nossa consci- metodologia é inestimável. Mas re deixar os animais viverem suas
ência moral foi exatamente o livro ainda não chega ao ponto de uma próprias vidas e, por isso, proíbe
que se intitula Libertação Animal possível teologia da libertação seus seguidores de terem animais
(Porto Alegre: Lugano, 2004), de animal. E sem uma teologia da li- de criação. Ele se recusa a utilizar
Peter Singer. bertação animal, a relexão ica a animais até para seu encantamen-
meio caminho. E por quê? Porque to. Ao invés de dispor dos animais,
Sabemos que a teologia da li-
os animais não compõem o meio sugere que se deve estar disposto
bertação opera com o método ver,
ambiente, não são apenas parte de a “obedecer” os animais, se Deus
julgar e agir, agora também in-
um todo, não são valiosos somente assim quiser. Isso parece bobagem,
corporado até pelo Papa, como é 39
como espécie para a harmonia do mas, na verdade, é uma inversão
o caso da Laudato Si’. O ponto de todo. Não. Os animais são nossos da hierarquia em que os humanos
partida para uma teologia da liber- irmãos. São nossos iguais, mesmo sempre se colocam no topo da hie-
tação sempre será uma situação de sendo os “outros”. São iguais no rarquia da vida. Para ele, o manda-
opressão, escravidão, sofrimento, sofrimento e no desejo de viver to bíblico de governar é traduzido
cruz. Lá onde não há cruz, não há livres, em estado de bem estar, em “servir” inclusive os animais.
porque insistir e proclamar a res- com saúde e respeito. Eles não Os textos poéticos coincidem to-
surreição e libertação. Onde há são um produto, uma mercadoria dos no fato de que Francisco ama-
paz, bem-estar, vida plena, liber- na cadeia alimentar. Eles não são va uma relação de reciprocidade
dade etc, aí acontece o reino e a algo, são alguém. Se aceitarmos com os animais, cada um falando
glória. A libertação arranca da dor. isso, então há um longo caminho a sua própria língua: ele pregava
A libertação inicia lá onde o sofri- de teologia da libertação animal a o evangelho e o louvor a Deus, e
mento e morte se insinuam. É teo- ser percorrido. O nosso intuito foi os animais gorgeavam, abanavam o
logia porque o horizonte de juízo, exatamente, além de revisitar as rabo... uma convivência que ante-
avaliação e de olhar é da fé no sen- fontes ilosóicas na sua dimensão cipa o sonho de Isaías, a boa convi-
tido religioso, em nosso caso, com ética, testar as fontes bíblicas para vência entre humanos e animais no
fonte bíblica. ver se é possível contar com a fé gozo do Reino do Messias. 

LEIA MAIS...
— A semântica do sacrifício na obra da salvação. Entrevista com Luiz Carlos Susin publicada na
revista IHU On-Line, nº 403, de 24-09-2012, disponível em http://bit.ly/1l5PiH7;
— Franz Rosenzweig. Um pensador para ajudar o Ocidente a se curar de sua esquizofrenia.
Entrevista com Luiz Carlos Susin publicada na revista IHU On-Line, nº 386, de 19-03-2012,
disponível em http://bit.ly/1KVXEpz;
— A evolução como elemento central do espiritismo. Entrevista com Luiz Carlos Susin publi-
cada na revista IHU On-Line, nº 349, de 01-11-2010, disponível em http://bit.ly/1k7mmOS;
— Uma Igreja tradicionalista nunca será criativa. Entrevista com Luiz Carlos Susin publicada
na revista IHU On-Line, nº 320, de 21-12-2009, disponível em http://bit.ly/1Q3cv9x.

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IHU
ON-LINE

Tema de
Capa
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Biograias

Duas vidas, uma vida


Por Ricardo Machado

N ascido em 1942, na cidade de Santo Amaro da Puriicação, no recôncavo


baiano, Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso, quinto de uma família
baiana de sete ilhos, chega aos 50 anos de carreira. Começou cantando
em bares de Salvador com sua irmã. Quando estava em casa, volta e meia era
interpelado por dona Canô, sua mãe, que o chamava dizendo: “Caetano, vem ver
o preto que você gosta”. O preto era Gilberto Gil.
No mesmo ano, nasceu em Salvador, mas cresceu no interior da Bahia, em Itu-
açu, um pequeno moleque miúdo e negro que não resistia ao primeiro tilintar de
clarinete, que ressoava na festa à padroeira. Deixava-se levar pela música, que
era ao mesmo tempo a música da terra e a música do céu. Seu nome, Gilberto Gil.
Estes dois pequenos personagens mal podiam imaginar que suas vidas iriam se
cruzar e seriam muitas e uma só. Em 2015 celebram-se os 50 anos de carreira
de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cuja obra ilustra a riqueza de um país em sua
essência. Dois dos grandes nomes do Tropicalismo, Gil e Caetano retomam o an-
tropofagismo como forma de devolver o Brasil ao Brasil.
Perseguidos e censurados pelo regime de exceção, exilaram-se em Londres.
Voltaram ao país na reabertura política. Agora, já de cabelos brancos e olhares
42 serenos, consta em seus currículos Grammys, milhares de discos vendidos e uma
carreira digna das bodas de ouro.
A biograia de Caetano e Gil vem sendo contada há cinco décadas e recontá-
-la seria um exercício precário e vão. O que fazemos nas próximas páginas não é
recontar a história de Gil e Caetano, mas apresentar olhares de “uma vida” que
reverbera em nossa cultura.
Com vocês, Caetano e Gil!

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Discograia Caetano Veloso Discograia Gilberto Gil


1967 – Domingo 1963 – Salvador – 1962/1963
1967 – Caetano Veloso 1967 – Louvação
1968 – Tropicália ou Panis et Circencis 1968 – Tropicália ou Panis et Circencis
1969 – Caetano Veloso 1968 – Gilberto Gil
1971 – Caetano Veloso 1969 – Gilberto Gil
1972 – Transa 1970 – Copacabana Mon Amour (trilha sonora)
1973 – Araçá Azul 1971 – Gilberto Gil
1975 – Joia 1972 – Barra 69 – Caetano e Gil Ao Vivo na Bahia
1975 – Qualquer Coisa 1972 – Expresso 2222
1977 – Bicho 1974 – Cidade Do Salvador
1978 – Muito – Dentro da Estrela Azulada 1974 – Ao Vivo
1979 – Cinema Transcendental 1975 – Refazenda
1981 – Outras Palavras 1975 – Gil & Jorge – Ogum – Xangô
1982 – Brasil 1977 – Refavela
1984 – Velô 1977 – Refestança
1978 – Ao Vivo em Montreux
1986 – Totalmente Demais
1979 – Nightingale
1986 – Caetano Veloso
1979 – Realce
1989 – Estrangeiro
1981 – Brasil
1991 – 1991
1981 – Luar (A Gente Precisa Ver o Luar)
1993 – Tropicália 2
1982 – Um Banda Um
1994 – Fina Estampa
1983 – Extra [WEA Latina]
2002 – Eu Não Peço Desculpa (com Jorge Mautner)
1984 – Quilombo (trilha sonora)
2004 – A Foreign Sound
1984 – Raça Humana
2006 – Cê 1985 – Dia Dorim Noite Neon
2009 – Zii e Zie 1987 – Em Concerto
2012 – Abraçaço 1987 – Um Trem para as Estrelas (trilha sonora)
1988 – Ao Vivo em Tóquio (Live in Tokyo)
1989 – O Eterno Deus Mu Dança
1991 – Parabolicamará
1994 – Acústico MTV 43
1995 – Esotérico: Live in USA 1994
1995 – Oriente: Live in Tokyo
1996 – Em Concerto
1996 – Luar
1997 – Indigo Blue
1997 – Quanta
1998 – Ao Vivo em Tóquio (Live in Tokyo) [Braziloid]
1998 – O Sol de Oslo
1998 – O Viramundo (Ao Vivo)
1998 – Quanta Gente Veio Ver
1998 – Ensaio Geral (caixa com gravações de 1967
a 1977)
2000 – Me, You, Them
2001 – Milton e Gil
2001 – São João Vivo
2002 – Kaya N’Gan Daya
2002 – Quanta Live
2002 – Z: 300 Anos de Zumbi
2004 – Eletrácustico
2005 – Ao Vivo
2005 – As Canções de Eu, Tu, Eles
2005 – Soul of Brazil
2006 – Gil Luminoso
2006 – Rhythms of Bahia
2008 – Banda Larga Cordel
2009 – BandaDois – Ao Vivo
2010 – Fé na Festa
2010 – Fé na Festa: Ao Vivo
2011 – Gil + 10: Gilberto Gil Convida ao vivo
2012 – Concerto de cordas e Máquinas de Ritmo
2014 – Gilbertos Samba
2014 – Live in London ‘71 – (com Gal Costa)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

A musicalidade disruptiva da
Tropicália em 50 anos de
trajetória artística
Para Celso Fernando Favaretto, no tropicalismo Caetano e Gil deiniram
suas carreiras e transformaram o cenário cultural brasileiro
Por Leslie Chaves

O s 50 anos de carreira de Caetano


e Gil são repletos de acontecimen-
tos interessantes e signiicativos.
Entre os mais marcantes, destaca-se o Tropi-
calismo, que representa uma revolução cul-
Segundo Favaretto, até hoje Caetano e Gil
“são muito iéis a essa origem tropicalista,
ou seja, experimental e deinidora de ou-
tros modos de compor e cantar, que levam
a outros modos de audição, a partir de uma
tural no sentido mais amplo da expressão. vinculação simultânea com a tradição da
Conforme Celso Fernando Favaretto aponta música popular brasileira e as inluências
em entrevista por telefone à IHU On-Line, do presente, tanto nacionais como interna-
esse movimento “vem responder a uma ne- cionais, na música, arte e cultura em geral.
cessidade experimental, a qual tinha duas Soma-se ainda a presença e atuação política
facetas: um lado propriamente musical, isto de ambos”.
é, levar adiante o que a Bossa Nova já havia
44 Celso Fernando Favaretto é graduado em
trazido de modernização e, por outro lado,
Filosoia pela Pontifícia Universidade Cató-
responder, de maneira radical e muito parti-
lica de Campinas – PUC-Campinas, mestre
cular, aos desaios sociais e políticos que se
e doutor em Filosoia pela Universidade de
acentuaram depois do golpe de 1964”.
São Paulo – USP, onde também tem livre-
Para o pesquisador, as referências da Tro- docência pela Faculdade de Educação e
picália reverberam até hoje no campo ar- aposentou-se como professor. Entre suas
tístico brasileiro construindo novos modos publicações destacam-se Tropicália: alego-
de criação e fruição artística, articulando ria, alegria (São Paulo: Kairós Editora, 1979)
variadas fontes de alimentação, de diversos e A invenção de Hélio Oiticica (São Paulo:
locais e temporalidades, ao engajamento Edusp, 1992).
às questões do contexto social e político.
Conira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- juntamente com Torquato Neto1, Capinan2 e Tom Zé3.
cia do movimento Tropicalista nas 1 Torquato Pereira de Araújo Neto de 1960, com o AI-5 e o exílio dos amigos e
carreiras de Gil e Caetano? De que (1944 – 1972): nascido em Teresina, foi um parceiros Gil e Caetano, viajou pela Europa e
poeta brasileiro, jornalista, letrista de músi- Estados Unidos. De volta ao Brasil, no início
forma foi se compondo o cenário ca popular, experimentador ligado à contra- dos anos 1970, Torquato começou a se iso-
cultura. Torquato atuava como um agente lar, sentindo-se alienado tanto pelo regime
para a emersão deste movimento? cultural e polemista defensor das manifesta- militar quanto pela “patrulha ideológica” de
ções artísticas de vanguarda, como a Tropi- esquerda. Ele se suicida em 1972. (Nota da
cália, o cinema marginal e a poesia concreta, IHU On-Line)
Celso Fernando Favaretto – No circulando no meio cultural efervescente da 2 José Carlos Capinam (1941): mais co-
época, ao lado de amigos como os poetas Dé- nhecido como Capinam ou Capinan é um po-
Tropicalismo, Caetano e Gil se de- cio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, eta e músico brasileiro. Também é jornalista.
iniram como cancionistas, como o cineasta Ivan Cardoso e o artista plástico Nascido em Esplanada, na Bahia, tem uma
Hélio Oiticica. Nesta época, Torquato pas- vasta obra literária e diversas composições
músicos da música popular brasilei- sou a ser visto como um dos participantes musicais. Participou ativamente da Tropicália
do Tropicalismo, tendo escrito o breviário como um destacado letrista. (Nota da IHU
ra. Eles foram os principais criado- Tropicalismo para principiantes, no qual On-Line)
defendeu a necessidade de criar um “pop” 3 Antônio José Santana Martins – Tom
res e integrantes desse movimento, genuinamente brasileiro. No inal da década Zé (1936): é um compositor, cantor, arran-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

ainda os desenvolvimentos na mú-


sica erudita contemporânea e na
música popular, nesse último caso
a emergência daquilo que seria a
A musicalidade encontrou um Bossa Nova12, com o surgimento
dos três primeiros discos de João
lugar disruptivo, uma mudança Gilberto13 e a atividade enorme de
do ouvido musical brasileiro Tom Jobim14 e de outros músicos
que vão surgindo, chamados de
“bossanovistas”.
O Tropicalismo surgiu da necessi- Janeiro; ou na poesia, como a Po-
dade de uma revisão do que vinha esia Concreta7 de Augusto, Harol- Os anos 1950 foram aqueles em
sendo a música popular brasileira, do8 e Décio Pignatari9; também os que efetivamente começou a haver
que ao mesmo tempo respondia processos que aos poucos vão ge- uma modernização da sociedade
de maneira muito direta às pres- rar o Cinema Novo10, inicialmente brasileira, inclusive em termos es-
sões políticas e sociais daquele com Nelson Pereira dos Santos11; e truturais, políticos e econômicos,
momento dos anos 1960, tanto as mas principalmente houve a in-
questões anteriores quanto poste- em 1954, o grupo era formado pelo artista trodução da modernidade cultural
carioca Ivan Serpa e vários de seus alunos e
riores ao golpe de 19644; e estava ex-alunos. O grupo aceitava pintores de todos que se buscava desde os anos do
tentando responder ao impulso de os gêneros, inclusive igurativistas e, segundo
modernidade que se desenvolvia Ivan Serpa, a única condição para participar sidade de São Paulo, turma de 1952. Conside-
do grupo era romper com as fórmulas da ve- rado um dos mais importantes cineastas do
nas artes e na cultura desde os lha academia, dispondo-se a questionar a arte país, seu ilme Vidas Secas, baseado na obra
anos 1950. Momento em que apa- e caminhar pelos próprios pés. A extinção do de Graciliano Ramos, é um dos ilmes brasi-
Grupo Frente, em 1956, foi uma conseqüên- leiros mais premiados em todos os tempos,
recia uma série de proposições cia natural do crescimento do prestígio de sendo reconhecido como obra-prima. Foi um
de vanguarda nas artes plásticas, muitos de seus participantes, os quais pas- dos precursores do movimento do Cinema
como o grupo Ruptura5, de São saram a encontrar condições de prosseguir Novo. É o fundador do curso de graduação
cada um o seu próprio caminho. (Nota da em Cinema da Universidade Federal Flumi-
Paulo, e o grupo Frente6, do Rio de IHU On-Line) nense. (Nota da IHU On-Line)
7 Poesia Concreta: é um tipo de poesia 12 Bossa nova: derivado do samba e com 45
jador e jardineiro brasileiro. É considerado vanguardista, de caráter experimental, ba- forte inluência do jazz, trata-se de um mo-
uma das iguras mais originais da música po- sicamente visual, que procura estruturar o vimento da música popular brasileira do inal
pular brasileira, tendo participado ativamen- texto poético escrito a partir do espaço do dos ano 50 lançado por João Gilberto, Tom
te do movimento musical conhecido como seu suporte, sendo ele a página de um livro Jobim, Vinícius de Moraes e jovens cantores
Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma ou não, buscando a superação do verso como e/ou compositores de classe média da zona
voz alternativa inluente no cenário musical unidade rítmico-formal. Surgiu na década de sul carioca. De início, o termo era apenas
do Brasil. (Nota da IHU On-Line) 1950 no Brasil e na Suíça, tendo sido primei- relativo a um novo modo de cantar e tocar
4 Golpe Militar: Movimento delagrado em ramente nomeada por Augusto de Campos samba naquela época, ou seja, a uma refor-
1º de abril de 1964. Os militares brasileiros, na revista Noigandres de número 2, de 1955, mulação estética dentro do moderno samba
apoiados pela pressão internacional anti- publicada por um grupo de poetas homônimo carioca urbano. Com o passar dos anos, a
comunista liderada e inanciada pelos EUA, à revista e que produziam uma poesia ains. Bossa Nova tornou-se um dos movimentos
desencadearam a Operação Brother Sam, que (Nota da IHU On-Line) mais inluentes da história da música popu-
garantiu a execução do Golpe, que destituiu 8 Augusto e Haroldo de Campos: poe- lar brasileira, conhecido em todo o mundo ,
do poder o presidente João Goulart, o Jango. tas concretistas brasileiros. (Nota do IHU um grande exemplo disso é a música Garota
Em seu lugar os militares assumem o poder. On-Line) de Ipanema composta em 1962 por Vinícius
Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar 9 Décio Pignatari (1927-2012): Nascido em de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Sobre o
o IHU publicou o 4º número dos Cadernos Jundiaí, SP, foi um publicitário, poeta, ator, tema, conira a edição da IHU On-Line inti-
IHU em Formação, intitulado Ditadura 1964. ensaísta, professor e tradutor brasileiro. Des- tulada Chega de saudade... Bossa Nova, 50
A memória do regime militar. Conira, tam- de os anos 1950, realizava experiências com anos, de 08-09-2008, disponível em http://
bém, as edições nº 96 da IHU On-Line, inti- a linguagem poética, incorporando recursos bit.ly/YzDFvb. (Nota da IHU On-Line)
tulada O regime militar: a economia, a igreja, visuais e a fragmentação das palavras. Tais 13 João Gilberto Prado Pereira de Oli-
a imprensa e o imaginário, de 12 de abril de aventuras verbais culminaram no Concre- veira: conhecido como João Gilberto, violo-
2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005, 1964- tismo, movimento estético que fundou jun- nista e cantor, é considerado um dos pais da
2004: hora de passar o Brasil a limpo. (Nota to com Augusto e Haroldo de Campos, com bossa-nova brasileira, juntamente com Tom
da IHU On-Line) quem editou as revistas Noigandres e Inven- Jobim. Nasceu em Juazeiro (BA), em 1931,
5 Grupo Ruptura: Grupo de artistas surgi- ção e publicou a Teoria da Poesia Concreta mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1950.
do na cidade de São Paulo, em 1952, reunindo (1965). Sua obra poética está reunida em Perfecionista, apresenta-se com sucesso em
os pioneiros do Concretismo no Brasil. Lide- Poesia Pois é Poesia (1977). (Nota da IHU todo o mundo (Nota do IHU On-Line)
rado por Waldemar Cordeiro, seu porta-voz On-Line) 14 Antônio Carlos Brasileiro de Almei-
e principal teórico, o grupo era, a princípio, 10 Cinema Novo: movimento cinematográ- da Jobim (1927-1994): mais conhecido
formado também por Geraldo de Barros, Luís ico brasileiro, inluenciado pelo neo-realis- como Tom Jobim, foi um compositor, maes-
Sacilotto, Lothar Charroux, Kazmer Fejer, mo italiano e pela “Nouvelle Vague” francesa, tro, pianista, cantor, arranjador e violonista
Anatol Wladslaw e Leopoldo Haar, recebendo com reputação internacional. Surge em cir- brasileiro. É considerado o maior expoente
a adesão posterior de Hermelino Fiaminghi, cunstâncias idênticas ao do movimento ho- de todos os tempos da música brasileira pela
Judith Lauand e Maurício Nogueira Lima. mônimo português, também referido como revista Rolling Stone, e um dos criadores do
(Nota da IHU On-Line) Novo Cinema. (Nota da IHU On-Line) movimento da bossa nova. É praticamente
6 Grupo Frente: foi um grupo artístico 11 Nelson Pereira dos Santos (1928): é uma unanimidade entre críticos e público em
brasileiro, considerado um marco no movi- um diretor de cinema brasileiro. Bacharel em termos de qualidade e soisticação musical.
mento construtivo das artes plásticas. Criado direito pela Faculdade de Direito da Univer- (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Modernismo de 2215 e que inal- da música popular brasileira, como ziram uma reconiguração da mú-
mente se efetivou. E essa efeti- também elementos da chamada sica popular que não só deiniu a
vação se deu em novas condições, música contemporânea e outros carreira deles como compositores
em uma sociedade em ritmo de de- de procedências diversas, como do e cantores, cancionistas, como re-
senvolvimento, pelo menos de ma- cinema, teatro e literatura, o Tro- deiniu os rumos da música popular
neira mais acentuada a partir do picalismo compôs uma suma mui- brasileira.
governo de Juscelino Kubitschek16, to interessante em que o contexto A partir de então, muitos músi-
com as consequentes mudanças so- social e político encontrava aí uma cos, mais jovens ou não, passaram
ciais, inclusive nos costumes, nas nova forma de expressão, com a a ter uma liberdade imensa de
relações entre as pessoas, na edu- nova acentuação de uma política composição. Coisa que não tinham
cação, nos meios de comunicação, disruptiva. Simultaneamente, a antes, seja pela pressão das impo-
que começavam a se desenvolver, musicalidade encontrou um lugar sições da cultura de massa, seja
na produção de livros e na tradu- também disruptivo, isto é, uma pela pressão vinda da necessidade
ção de títulos estrangeiros; enim, mudança do ouvido musical brasi- da música de expressar a realida-
houve uma veloz transformação leiro. Isso porque a integração de de brasileira, seja pelo fato de os
cultural dos anos 1950 até o inal procedimentos de vanguarda, das compositores ainda não consegui-
dos anos 1960. mais diversas procedências, fazia rem fundir as novas contribuições
com que as músicas tropicalistas vindas de dentro e de fora do país.
Dentro deste contexto, o Tropica-
fossem um tanto quanto estranhas,
lismo vem responder a uma neces- Depois de 1968, que foi o mo-
tanto na letra como na musicalida-
sidade experimental, a qual tinha mento tropicalista da cultura bra-
de. Caetano e Gil, como eu disse
duas facetas: um lado propriamen- sileira, a música e outras artes
antes, com Torquato Neto, Tom Zé
te musical, isto é, levar adiante o encontraram, exatamente devido
e Capinan, juntando-se a eles o
que a Bossa Nova já havia trazido às atividades tropicalistas, uma li-
canto da Gal Costa17, algumas ve-
de modernização, e por outro lado berdade muito maior de atuação,
zes o da Nara Leão18 etc., produ-
responder, de maneira radical e de criatividade e desenvolvimentos
muito particular, aos desaios so- 17 Maria da Graça Costa Penna Bur- variados em diferentes atos.
ciais e políticos que se acentuaram gos – Gal Costa (1945): é uma cantora
46 depois do golpe de 1964. O Tropi-
brasileira. Gal estreou ao lado de Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé IHU On-Line – Como está situ-
calismo deu uma resposta singular, e outros, o espetáculo Nós, Por Exemplo..., ado o movimento Tropicalista na
muito especial a essas duas coisas. – que estreou em 22 de agosto de 1964-, que
inaugurou o Teatro Vila Velha, em Salvador. narrativa construída por Caetano
Altamente experimental, incluin- Nesse mesmo ano participou de Nova Bossa e Gil ao longo dos seus 50 anos de
Velha, Velha Bossa Nova, no mesmo local e carreira?
do não só os elementos da tradição com os mesmos parceiros. (Nota da IHU
On-Line)
18 Nara Lofego Leão Diegues – Nara
Celso Fernando Favaretto – Nos
15 Semana de Arte Moderna: também
chamada de Semana de 1922, ocorreu em São Leão (1989): foi uma cantora brasileira con- anos de 1967 e 1968, prioritaria-
Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro daquele siderada a musa da Bossa Nova, movimento mente, eles desenvolveram um pro-
ano, no Teatro Municipal. Representou uma que nasceu em 1957, quando Nara fazia reu-
verdadeira renovação de linguagem, na busca niões no apartamento de seus pais, em Copa-
grama propriamente experimental
de experimentação, na liberdade criadora da cabana, das quais participavam nomes que de música popular brasileira. Eles
ruptura com o passado e até corporal, pois a seriam consagrados no gênero, como Roberto já vinham ensaiando isso antes, em
arte passou então da vanguarda para o mo- Menescal, Carlos Lyra, Chico Feitosa e Ronal-
dernismo. Participaram da Semana nomes do Bôscoli. Mas a consagração efetiva ocorre
algumas músicas, mas nesse perío-
consagrados do modernismo brasileiro, como após o golpe militar de 1964, com a apresen- do eles deinem uma nova postura
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víc- tação do espetáculo Opinião, ao lado de João diante daquilo que se entende por
tor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, do Vale e Zé Keti, um espetáculo de crítica
Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, social à dura repressão imposta pelo regime música popular e outros modos de
Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do militar. Nara Leão vai mudando suas prefe- fazer música popular.
Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti en- rências musicais ao longo dos anos 1960. De
tre outros. (Nota da IHU On-Line) musa da Bossa Nova, passa a ser cantora de Uma vez encerrado o Movimen-
16 Juscelino Kubitschek de Oliveira protesto e simpatizante das atividades dos to Tropicalista – eu digo encerrado
(1902-1976): médico e político brasileiro, Centros Populares de Cultura da UNE. Em
conhecido como JK. Foi presidente do Brasil 1966, interpretou a canção A Banda, de Chico porque com o AI-519 não só houve
entre 1956 e 1961, sendo o responsável pela Buarque no Festival de Música Popular Brasi-
construção de Brasília, a nova capital federal. leira (TV Record), que ganhou o festival e pú- 19 AI-5 (Ato Institucional Número Cin-
Juscelino instituiu o plano de governo base- blico brasileiro. Dentre as suas interpretações co): decretado pelo general Arthur da Costa
ado no slogan “Cinquenta anos em cinco”, mais conhecidas, destacam-se O Barquinho, e Silva, que ocupava a cadeira de presidente,
direcionado para a rápida industrialização A Banda e Com Açúcar e com Afeto – feita a em 13 de dezembro de 1968, foi um instru-
do País (especialmente via indústria automo- seu pedido por Chico Buarque, cantor e com- mento de poder que deu ao regime militar
bilística). Além do progresso econômico, no positor a quem homenagearia nesse disco poderes políticos absolutos. A primeira con-
entanto, houve também um grande aumento homônimo, lançado em 1980. Nara também sequência do AI-5 foi o fechamento por quase
da dívida pública. Sobre JK, conira a edição aderiu ao movimento tropicalista, tendo par- um ano do Congresso Nacional. O ato repre-
166, de 28-11-2005, A imaginação no poder. ticipado do disco-manifesto do movimento – sentou o ápice da radicalização do regime de
JK, 50 anos depois, disponível em http://bit. Tropicália ou Panis et Circensis, lançado pela exceção e inaugurou o período em que as li-
ly/ihuon166. (Nota da IHU On-Line) Philips em 1968. (Nota da IHU On-Line) berdades individuais foram mais restringidas

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DE CAPA IHU EM REVISTA

muita repressão da censura e do ção, a partir de uma vinculação si- Em Londres, Caetano e Gil, em-
regime militar, como também Ca- multânea com a tradição da música bora morando juntos e trabalhando
etano e Gil saíram do país –, en- popular brasileira, de Noel Rosa21 perto, começaram a desenvolver
tre o inal de 1968 e o período em em diante, e com as inluências do carreiras e, principalmente, modos
que icaram exilados em Londres presente, tanto nacionais como in- muito particulares de fazer músi-
eles foram redeinindo a maneira ternacionais, na música, na arte e ca; ao voltarem para o Brasil, eles
de trabalharem na música, porém na cultura em geral. Soma-se ainda se particularizaram mais ainda.
em condições adversas. Eles esta- a presença e atuação política de Cada um seguiu sugestões e inte-
vam no exterior em contato com ambos. resses muito próprios. Ambos se
músicos e outros artistas das mais tornaram astros, artistas da maior
diferentes proveniências, e nesse importância no Brasil até hoje.
contexto puderam repensar aquilo Eles dois, juntamente com Chico
que tinham feito no Tropicalismo. Buarque22, talvez sejam as presen-
Primeiro eles mantiveram sempre
a importância da experimentação.
No Tropicalismo ças artísticas na música popular
mais relevantes surgidas dos anos
Caetano e Gil se
deiniram como
Segundo, conservaram a impor- 1960 para cá.
tância do cruzamento da tradição
Assim, não se pode dizer que
da música popular brasileira com
houve um grupo formal, e neces-
aquilo que estava aparecendo, cancionistas sariamente esses artistas nunca
como no Brasil os desenvolvimen-
deiniram uma posição em unísso-
tos que vinham da Jovem Guarda, IHU On-Line – De que modo a no. Muitas vezes, inclusive, não em
e no exterior o rock, que participou identidade do Movimento Tropi- termos de música, mas em termos
da constituição de alguns agrupa- calista se relaciona com as iden- de cultura e de política, nem sem-
mentos no país; um dos exemplos tidades de Caetano e Gil indivi- pre eles tiveram a mesma posição,
mais importantes foram Os Mutan- dualmente? Como interpretar a mas evidentemente sempre se res-
tes20, que trabalharam diretamen- atuação desses artistas individu- peitaram e mantêm uma relação
te com eles. almente e coletivamente? muito viva e forte de amizade e
Desta inter-relação entre novas
Celso Fernando Favaretto – Na participação cultural, haja vista 47
referências musicais, nacionais e os shows que eles izeram recen-
verdade, não houve formalmente
internacionais, e a experimentação temente, tanto no exterior como
um grupo. Em 1968 o que se cha-
tropicalista que eles tinham desen- aqui no Brasil, comemorando os 50
mou de “grupo baiano” se consti-
volvido durante dois anos, vão, anos de carreira. Eles continuam
tuiu aos poucos em torno do Caeta-
cada um deles, encontrar caminhos irmãos, parceiros, mas cada um
no e do Gil principalmente, junto
singulares para continuar fazen- com sua singularidade.
com o Torquato, o Capinan e o Tom
do música brasileira, mas com os
Zé. Naquela época, até se pode
mais diversos sotaques, exatamen- IHU On-Line – Você poderia falar
dizer que houve um grupo baiano
te porque estavam inluenciados um pouco sobre o papel do músico
pensando e trabalhando junto, que
pelo cruzamento de muitas refe- popular na sociedade brasileira,
constituiu um programa de traba-
rências. Isso eles vão desenvolver principalmente à luz das discus-
lho que atuou durante dois anos.
de lá até hoje, porque são muito sões em torno do posicionamento
Terminado esse período, eles se
iéis a essa origem tropicalista, ou
22 Chico Buarque de Hollanda (1944):
distanciaram. Caetano e Gil foram
seja, experimental e deinidora de
para Londres, Tom Zé, Torquato e músico, dramaturgo e escritor brasileiro,
outros modos de compor e cantar,
Capinan icaram por aqui. Em se- conhecido por ser um dos maiores nomes da
que levam a outros modos de audi- MPB. Sua discograia conta com aproximada-
guida o Torquato morre, o Capinan mente oitenta discos, entre eles discos-solo,
e desrespeitadas, constituindo-se em movi- volta para a Bahia e o Tom Zé ica em parceira com outros músicos e compac-
mento inal de “legalização” da arbitrariedade meio obscurecido em São Paulo até tos. É compositor de Construção, considera-
que pavimentou uma escalada de torturas e da uma das melhores músicas brasileiras já
assassinatos contra opositores reais e imagi- reaparecer décadas depois. feitas. Filho do historiador Sérgio Buarque de
nários ao regime. (Nota da IHU On-Line) Holanda, iniciou sua carreira como escritor
20 Os Mutantes: banda psicodélica bra- 21 Noel de Medeiros Rosa – Noel Rosa em 1962. Ganhou destaque como cantor a
sileira formada em 1966, em São Paulo, por (1910-1937): sambista, cantor, compositor, partir de 1966, quando lançou seu primeiro
Rita Lee (vocais), Sérgio Dias (guitarra, vo- bandolinista, violonista brasileiro e um dos álbum, Chico Buarque de Hollanda, e venceu
cais) e Arnaldo Baptista (baixo, teclado, vo- maiores e mais importantes artistas da músi- o Festival de Música Popular Brasileira com a
cais). Depois de quase trinta anos ausentes ca no Brasil. Teve contribuição fundamental música A Banda. Socialista declarado autoe-
dos palcos, o grupo retorna em 2006 com sua na legitimação do samba de morro e no “as- xilou-se na Itália em 1969, devido à crescen-
formação clássica, exceção feita a Rita Lee, falto”, ou seja, entre a classe média e o rádio, te repressão da regime militar do Brasil nos
que não aceitou voltar ao grupo. A cantora principal meio de comunicação em sua época chamados “anos de chumbo”, tornando-se,
Zélia Duncan foi convidada a assumir os vo- – fato de grande importância, não só o sam- ao retornar, em 1970, um dos artistas mais
cais e desde então acompanha a banda. (Nota ba, mas a história da música popular brasilei- ativos na crítica política e na luta pela demo-
da IHU On-Line) ra. (Nota da IHU On-Line) cratização no país. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

político de Caetano e Gil, que se Gil, distintamente de Caetano, mo, músicos como Jards Macalé23
identiicavam com o compromis- foi além, em certo momento foi e Walter Franco24 – só para citar
so artístico e estético, porém por vereador em Salvador, depois foi dois, que continuaram a fazer uma
um lado foram perseguidos pelo ministro da Cultura. Afora ele ter experimentação na linha tropica-
regime ditatorial e por outro mui- uma signiicação social com a mú- lista – nunca tiveram realmente
to cobrados por parte do público? sica, a partir das suas declarações oportunidade clara de fazer discos
Como esses conlitos incidiram na e atuação, acabou exercendo car- que recebessem mais apoio, que
carreira de ambos? gos políticos. Já Caetano age di- fossem distribuídos nacionalmen-
ferente, pois sua atuação política te em grande escala. Aí a ques-
Celso Fernando Favaretto –
está na música que ele faz, na sua tão é da relação entre mercado e
Como fez parte do próprio Tro-
produção intelectual escrita, nas experimentação.
picalismo, a relação entre arte e
referências que faz em entrevistas
política sempre foi o lugar em que Como se sabe, a experimentação
ou em shows etc. Mas ambos nunca
eles estiveram e estão até hoje. geralmente não vende. Não pen-
deixaram de aliar experimentalis-
Eles são acima de tudo artistas, se que os Tropicalistas venderam
mo artístico e participação social.
sempre se deiniram como músi- muito no tempo do Tropicalismo,
cos populares e o compromisso porque a audição deles era mui-
inicial deles era um avanço e um IHU On-Line – Em seu livro “Tro-
picália alegoria alegria” (Divinó- to difícil, mas seu trabalho serviu
trabalho dentro da música popu- para abrir as portas para muitas
lar, mas em nenhum momento eles polis: Kairós, 1979) consta uma
airmação de Luiz Tatit apontan- experimentações musicais e outras
deixaram de participar da vida
do que “o Tropicalismo deixou tentativas que vieram logo depois,
política e social brasileira. Entre-
23 Jards Anet da Silva – Jards Macalé
tanto, nem sempre essa participa- estilhaços em diversos lugares da
ção precisa ser feita sob a forma cultura brasileira”, os quais ainda (1943): é um ator, cantor e compositor bra-
estão vívidos. Nas obras de Caeta- sileiro. Começou carreira proissional em
de militância; ela pode ser feita 1965, como violonista no Grupo Opinião. Fez
através do trabalho artístico em no e Gil, onde é possível veriicar direção musical dos primeiros espetáculos de
si, onde eles sempre se posicio- essas fagulhas atualmente? Maria Bethânia. Teve composições gravadas
por Elisete Cardoso, Nara Leão. Com Gal Cos-
naram. Em alguns momentos esse Celso Fernando Favaretto – É ta, Paulinho da Viola e o parceiro José Carlos
48 trabalho inclusive levou-os a ser difícil citar pontualmente essa in- Capinam, criou a agência Tropicarte, para ad-
ministrar os próprios espetáculos. Em 1969,
mais explícitos. O Tropicalismo ao luência na obra deles, mas o fato participou do 4.º Festival Internacional da
mesmo tempo era uma pesquisa mais importante é que o trabalho Canção apresentando a canção Gotham City,
de linguagens artísticas, particu- dos tropicalistas liberou os artistas e lançou o primeiro disco, “Só Morto”. Ma-
calé é autor de canções como Vapor Barato,
larmente na música popular, era para pesquisas que até então eles Anjo Exterminado, Mal Secreto, Movimento
experimental na música e no cam- não ousavam fazer. Mais ainda, o dos Barcos, Rua Real Grandeza, Alteza, Ho-
po artístico em geral, mas tam- tel das Estrelas, Poema da Rosa. Teve como
Tropicalismo abriu um campo social
parceiros Capinam, Waly Salomão, Torquato
bém era experimental em pensar de audição de música até então in- Neto, Naná Vasconcelos, Xico Chaves, Jorge
novas relações entre arte e cultu- terditado. Por exemplo, naquele Mautner, Gláuber Rocha e ainda Abel Silva,
ra e arte e política. Tanto é assim Vinícius de Morais, Fausto Nilo. Entre os
tempo se considerava que o rock intérpretes de suas canções, estão Gal Cos-
que grande parte das músicas dos e a Jovem Guarda produziam mú- ta (“Hotel das Estrelas” e “Vapor barato”),
tropicalistas é experimental artis- sicas alienadas, não nacionalistas Maria Bethânia (“Anjo exterminado” e “Mo-
vimento dos barcos”), Clara Nunes (“O mais-
ticamente e muito política, fazen- etc. O Tropicalismo quebrou essas -que-perfeito”), Camisa de Vênus (“Gotham
do a crítica da sociedade brasilei- alegações muito falsas porque não City”) e O Rappa (“Vapor Barato”), entre ou-
ra daquele momento. tros. (Nota da IHU On-Line)
24 Walter Rosciano Franco – Walter
condiziam com as condições cultu-
O importante é que eles sempre
rais do Brasil e do mundo naquele Franco (1945): é um cantor e compositor
momento de luxo de informações paulistano. Não chegou a participar de ne-
se posicionaram, nunca deixaram nhum movimento cultural musical, como
culturais e artísticas de todas as
de fazer isso. Naquele tempo, exa- bossa nova ou tropicalismo, mas sempre es-
partes e de crítica à concepção es- teve na vanguarda, em vários momentos. Já
tamente porque o momento dos
tanque de gêneros de música e de era parte da Vanguarda Paulista, antes mes-
anos 1960 propiciava e exigia, as mo da expressão ser cunhada pela geração de
arte em geral. Isto é que perdurou!
coisas eram mais explícitas. Dos Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Traba-
lhou com arranjadores como Rogério Duprat
anos 1970 até hoje nem sempre os Depois do Tropicalismo os mú-
e Júlio Medaglia, e teve a letra da música
posicionamentos políticos são tão sicos se sentiram autorizados a “Cabeça” traduzida para o inglês por Augusto
explícitos nas músicas, nem sem- fazer o que tinham necessidade e de Campos. Seu álbum mais aclamado pela
crítica é Revolver, de 1975. Walter Franco já
pre as canções são explicitamente vontade e que não tinham espaço foi regravado por artistas como Leila Pinhei-
críticas, mas o são no modo de fa- para fazer. Por exemplo, a indús- ro, Oswaldo Montenegro e Chico Buarque,
zer música internamente, através tria fonográica não aceitava mú- além de bandas de rock como Ira!, Camisa de
Vênus, Pato Fu e Titãs que também regrava-
da formulação de novas lingua- sica experimental, tanto era assim ram músicas do compositor. (Nota da IHU
gens, temas e assuntos. que, mesmo depois do Tropicalis- On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

como eu citei, Walter Franco e Ma- do baião etc.; nem só era a música tigante, bonita, simples e que foi
calé, ainda Luiz Melodia25, João folclórica das diversas regiões do cativante no momento e até hoje
Bosco26 e tanta gente que se de- país, mas também incluía aquilo envolve pelo seu ritmo bastante
senvolveu depois de uma maneira que artistas cultos faziam conju- rápido. É como se cantássemos
muito singular. gando diferentes tradições cultu- sempre “Alegria, alegria” com um
rais. Isso é que possibilitou a emer- sorriso nos lábios.
Esses artistas não apareceriam
gência de uma produção musical,
com facilidade, ou talvez fosse
que também teve a inluência de IHU On-Line – De que forma a
impossível que eles surgissem se
outras áreas artísticas, muito gran- canção “Domingo no parque”, de
o Tropicalismo não tivesse aberto
de a partir dos anos 1970 até hoje. Gilberto Gil, emprega a prática
as portas da seguinte maneira: ao
mesmo tempo airmando a experi- antropofágica oswaldiana?
mentação como sendo também um Celso Fernando Favaretto –
domínio próprio da música popular
Essa música surgiu no mesmo fes-
brasileira e mostrando que a mú-
tival da Record em que é lançada
sica popular do Brasil não era só o
Caetano e Gil
reconiguraram
“Alegria, alegria”. Ambas foram
que foi produzido nos anos 1920,
premiadas: Se bem me lembro,
como Noel Rosa e outros; nem
“Domingo no parque” icou em
eram apenas os ritmos que vieram
depois por inluência do mambo e a música popu- terceiro lugar e “Alegria, ale-
gria” em quarto. “Domingo no
25 Luiz Carlos dos Santos – Luiz Melo-
lar brasileira parque” é uma música altamen-
dia (1951): é um ator, cantor e compositor te experimental, só que é diversa
brasileiro de MPB, rock, blues, soul e sam-
ba. Começou sua carreira musical em 1963, IHU On-Line – De que forma a da do Caetano. Em meu livro, por
ao mesmo tempo em que trabalhava como canção “Alegria, Alegria”, de Ca- exemplo, eu mostrei que enquan-
tipógrafo, vendedor, caixeiro e músico em
bares noturnos. Em 1964 formou o conjunto
etano Veloso, representa uma das to “Alegria, alegria” poderia ser
musical Os Instantâneos, com Manoel, Na- marcas da atividade dos tropica- comparada com um ilme de Go-
zareno e Mizinho. Lança seu primeiro LP em listas. Por quê? dard27, isto é, um ilme sem cor-
1973, Pérola Negra. No “Festival Abertura”,
tes, em continuidade, “Domingo
competição musical da Rede Globo, conse-
gue chegar à inal com sua canção “Ébano”.
Celso Fernando Favaretto – Essa
no parque”, ao contrário, é uma
49
Nas décadas seguintes Melodia lançou di- foi a primeira música que Caetano
música toda construída, como o
versos álbuns e realizou shows no Brasil e na apresentou no festival da TV Re-
Europa. Em 1987, apresentou-se em Chate- cinema do Eisenstein28. Então,
cord. É uma canção que revela que
auvallon, na França, e em Berna, Suíça. Em é uma canção feita pela monta-
1992, participou do “III Festival de Música estávamos vivendo um momento
gem de diversas cenas, gerando
de Folcalquier”, na França, e, em 2004, do histórico de abertura nos compor-
Festival de Jazz de Montreux, à beira do Lago a história de um amor. O mais
tamentos, de vida muito marcada
Leman, onde se apresentou no Auditorium importante é a maneira como a
Stravinski, palco principal do festival. (Nota pelo consumo, pelas referências
da IHU On-Line) música se desenvolve, ela vai se
do rock, mas principalmente mar-
26 João Bosco de Freitas Mucci – João construindo aos poucos em um
Bosco (1946): é um cantor, violonista e com-
cada por muitas informações que
vinham pela imprensa, pela banca ritmo meio alucinante, que vai
positor brasileiro. começou a tocar violão aos
doze anos, incentivado por uma família re- de jornal como ele diz, ainda pelo produzindo uma iguração, como
pleta de músicos. Alguns anos depois, iniciou
27 Jean-Luc Godard (1930): cineasta fran-
na Escola de Minas em Ouro Preto cursando
cinema etc. Então é uma música
Engenharia Civil. Apesar de não deixar de muito ágil e muito bonita que con- cês, reconhecido por um cinema vanguardista
lado os estudos, dedicava-se sobremaneira à templa esses diferentes aspectos e polêmico, que tomou como temas e assumiu
carreira musical, inluenciado principalmen- como forma, de maneira ágil, original e quase
te por gêneros como jazz e bossa nova e pelo da abertura cultural que se estava sempre provocadora, os dilemas e perplexi-
tropicalismo. Foi em Ouro Preto, em 1967, vivendo. No cerne dessa canção dades do século XX. Além disso, é também
que conheceu Vinícius de Moraes, com o tem uma referência clara à situa- um dos principais nomes da Nouvelle Vague,
qual compôs as seguintes canções: rosa-dos- assim como Truffaut. Um de seus ilmes é Vi-
-ventos, Samba do Pouso e O mergulhador ção brasileira. vre sa vie (1962). (Nota da IHU On-Line)
– dentre outras. Em 1970 conheceu aquele 28 Serguei Mikhailovitch Eisenstein
que viria a ser o mais frequente parceiro, com Caetano fala, num certo momen- (1898 – 1948): foi um dos mais importantes
quem compôs mais de uma centena de can- to, “no coração do Brasil”, quer di- cineastas soviéticos. Foi também um ilmó-
ções: Aldir Blanc, O mestre sala dos mares, logo. Relacionado ao movimento de arte de
zer: tudo isso está acontecendo no
O bêbado e a equilibrista, Bala com bala, Kid vanguarda russa, participou ativamente da
cavaquinho, Caça à raposa, Falso brilhante, país como um todo. Há uma crítica Revolução de 1917 e da consolidação do ci-
O rancho da goiabada, De frente pro crime, política interna porque a música nema como meio de expressão artística. No-
Fantasia, Bodas de prata, Latin Lover, O ron- tabilizou-se por seus ilmes mudos A Greve,
co da cuíca, Corsário, dentre muitas outras.
é leve, meio irônica inclusive, vai O Encouraçado Potemkin e Outubro, assim
Em 1972 conheceu Elis Regina, que gravou narrando fatos e nomes e, ao fa- como os épicos históricos Alexandre Nevski
uma parceria sua com Blanc: Bala com Bala; a zer essa narração, diz que tudo isso e Ivan, o Terrível. Sua obra inluenciou for-
carreira deslanchou quando da interpretação temente os primeiros cineastas devido ao seu
da cantora para o bolero Dois pra lá, dois pra está compondo naquele momento uso inovador de escritos sobre montagem.
cá. (Nota da IHU On-Line) o Brasil. É uma música muito ins- (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

se estivéssemos vendo alguma interrompeu uma produção cul- do Teatro Oicina31, do cinema de
coisa acontecer, como um cinema tural, educativa, social e políti- Glauber Rocha32 e a tantas outras
na nossa frente. Essa introdução ca que vinha se desenvolvendo
da época. Os militares reagem, e
do cinema vai ser fundamental na numa tentativa de pensar um
música do Caetano e do Gil desde Brasil mais livre, mais liberado ao produzir o AI-5 enrijecem ainda
então. dos mecanismos internacionais mais a censura, a prisão, o exílio
de controle, um país menos de- e a tortura. Isto realmente foi um
Essa música do Gil não se con-
sigual, que deveria fazer reforma golpe dentro do golpe. 1964 já ha-
trapõe à do Caetano, representa
iscal e agrária. Então, foi inter-
o outro lado dele. “Domingo no via sido brutal, mas 1968 foi du-
rompido esse processo que vinha
parque” é experimental, constru- plamente brutal.■
se conigurando com diiculdades
tivista como “Alegria, alegria”, só
desde os anos 1950 de diversas
que enquanto Caetano chama a do Estudante, que apresenta, em 1958, seu
maneiras. texto “Eles Não Usam Black-Tie”, que perma-
atenção para o ritmo de vida da so- nece mais de um ano em cartaz e abre espaço
ciedade de consumo, Gil está aten- Nesse sentido, o golpe militar para o surgimento de um movimento para re-
tando para o outro lado da história foi terrível porque parou os desen- velar novos autores brasileiros, destacando-
-se, entre outros, Vianna Filho e Flávio Mi-
e da nossa sociedade: o modo de volvimentos da cultura brasileira
gliaccio. Numa outra fase, o Teatro de Arena
vida popular. de uma maneira drástica, não só volta-se para os musicais, sob a inluência do
porque instaurou a censura, mas teatro de Bertold Brecht, com espetáculos
Sobre a sua pergunta, todo o Tro- como “Arena conta Zumbi” e “Arena conta
também porque efetuou prisões, Tiradentes”, duas parcerias de Augusto Boal e
picalismo é oswaldiano e antropo- torturou, exilou etc. A partir de Gianfrancesco Guarnieri. A inovação é o cha-
fágico, porque ele vai integrando 1965, houve uma retomada da mado sistema coringa, em que todos os atores
referências, sob a forma de cita- revezavam-se representando quase todos os
análise do que havia sido a cultura personagens, sem caracterização. Mas a re-
ção, de música, de literatura, de brasileira nos anos anteriores ao pressão do governo militar a partir de 1964
cinema, de teatro... ele integra. golpe, as inluências que ele pro- e o Ato Institucional nº 5, o AI-5, impedem
a continuidade destas experiências. E a traje-
vocou, e novas táticas e estraté- tória do grupo é interrompida 1972. (Nota da
IHU On-Line – De que maneira gias foram sendo construídas en- IHU On-Line)
31 Teatro Oicina Uzyna Uzona ou sim-
a ditadura militar se conigurou
plesmente Teatro Oicina: é uma compa-
tre 1965 e 1968.
50 como uma força reativa à liberda-
Em 1968, ao perceber que estas nhia de teatro do Brasil, localizada em São
de que emergiu na década de 60 Paulo no bairro do Bixiga. Foi fundada em
novas táticas e estratégias cultu- 1958 na Faculdade de Direito da Universi-
e se materializou no Brasil com os dade de São Paulo – USP por Amir Haddad,
rais estavam produzindo resultado
tropicalistas? José Celso Martinez Correa e Carlos Queiroz
e estabelecendo novamente uma Telles. O local de grande parte da experiên-
Celso Fernando Favaretto – conscientização muito grande da cia cênica internacional, que reuniu de Bre-
Mais do que reativa, a ditadura estagnação que o regime ditato- cht, Sartre ao Living Theatre. Foi neste lugar
que foi lançado um importante manifesto da
foi reacionária. O golpe de 196429 rial havia provocado, o governo cultura brasileira, o Tropicalismo, versão na
militar reage fortemente às cria- década de sessenta do movimento antropofá-
29 Golpe Militar: Movimento delagrado ções artísticas, como as tropica- gico de Oswald de Andrade. Este inluenciou
em 1º de abril de 1964. Os militares brasilei- músicos, poetas e outros artistas. (Nota da
ros, apoiados pela pressão internacional an- listas, as do Teatro de Arena30, IHU On-Line)
ticomunista liderada e inanciada pelos EUA, 32 Glauber de Andrade Rocha – Glau-
desencadearam a Operação Brother Sam, que 30 Teatro de Arena: fundado em São Pau- ber Rocha (1939 – 1981): foi um cineasta
garantiu a execução do Golpe, que destituiu lo, em 1953, pelo ator e diretor José Renato, brasileiro, ator e escritor. Começou a realizar
do poder o presidente João Goulart, o Jango. que faz parte da primeira turma da Escola de ilmagens (seu ilme Pátio, de 1959, ao mes-
Em seu lugar os militares assumem o poder. Arte Dramática de São Paulo (EAD), como mo tempo em que ingressou na Faculdade de
Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar forma de se contrapor aos espetáculos pro- Direito da Bahia, hoje da Universidade Fe-
o IHU publicou o 4º número dos Cadernos duzidos na época pelo Teatro Brasileiro de deral da Bahia, entre 1959 a 1961), que logo
IHU em Formação, intitulado Ditadura 1964. Comédia (TBC). A proposta era de apresentar abandonou para iniciar uma breve carreira
A memória do regime militar. Conira, tam- produções de baixo custo, que durante dois jornalística, em que o foco era sempre sua
bém, as edições nº 96 da IHU On-Line, inti- anos forma apresentadas em espaços impro- paixão pelo cinema. Queria uma arte enga-
tulada O regime militar: a economia, a igreja, visados. Em 1955, uma garagem na Rua The- jada ao pensamento e pregava uma nova es-
a imprensa e o imaginário, de 12 de abril de odoro Baima, no centro de São Paulo, é adap- tética, uma revisão crítica da realidade. Era
2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005, 1964 – tada e passa a ser a sede da companhia. Atin- visto pela ditadura militar, que se instalou no
2004: hora de passar o Brasil a limpo. (Nota ge o sucesso com a chegada de Gianfrancesco país em 1964, como um elemento subversivo.
da IHU On-Line) Guarnieri, um jovem ator do Teatro Paulista (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS...
— Tropicalismo, uma revolução? Entrevista especial com Celso Fernando Favaretto publicada
na Revista IHU On-Line nº 411, de 10-12-2012, disponível em http://bit.ly/1ScEFxd.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Ousadia e sensibilidade
de uma vida inteira
Para Pedro Bustamante Teixeira, essas são tônicas que marcam os
50 anos de carreira de Caetano e Gil, que simultaneamente se
mantêm situados no tempo e fora dele
Por Leslie Chaves

G ilberto Gil e Caetano Veloso


participaram ativamente dos
diversos momentos históricos
que marcaram a construção do Brasil,
tanto cultural quanto politicamente. Ao
gênero, raciais, homoafetivas, religio-
sas, rítmicas, tudo isso estará presente
na obra desses artistas que mais pela
micropolítica do que pela macropolíti-
ca detonariam um processo de abertura
mesmo tempo que seus protagonismos mental e corporal que, por outros cami-
pontuaram os contextos sociopolíticos nhos, também levarão à abertura polí-
do país que perpassaram os 50 anos tica”, frisa.
de suas carreiras, ambos continuam se
Ao longo da entrevista, Pedro Busta-
reinventando, prática que os mantêm
mante Teixeira fala sobre a dimensão
atentos e vivos em qualquer tempo. “A
das contribuições artística e política de
importância de Caetano e de Gil para
Gilberto Gil e Caetano Veloso no cenário
a formação da cultura brasileira, na se- 51
cultural brasileiro e internacional e sa-
gunda metade do século XX, é central.
lienta: “A vida desses artistas é de uma
Não só pelo impacto que causaram com
coragem, de uma entrega comovente. O
a virada tropicalista – que vem para
artista não é esse que se permite viver
questionar as bases de um nacionalismo
o que deveria de fato ser vivido? É por
cultural essencialista, herdeiro de um
isso que assim o são, por todos nós que
modernismo Mário Andradiano, predo-
não o somos”.
minante na MPB e nas artes ditas bra-
sileiras no início dos anos 60 –, mas por Pedro Bustamante Teixeira é gradu-
continuarem tropicalistas, neoantropó- ado em Língua Portuguesa e Língua Ita-
fagos, ao longo de todos esses anos, o liana e suas respectivas literaturas pela
que signiica, apesar do paradoxo, ja- Universidade Federal de Juiz de Fora
mais repousar no mesmo”, ressalta Pe- – UFJF, instituição pela qual também
dro Bustamante Teixeira em entrevista obteve os títulos de especialista em
por e-mail à IHU On-Line. Estudos Literários, mestre e doutor em
Letras: Estudos Literários. Entre suas
Para o professor e pesquisador, o
publicações destacam-se Do samba à
trabalho de Caetano e Gil foi um dos
Bossa Nova: inventando um país (Curiti-
precursores do processo de redemocra-
ba: Appris, 2015), tema de sua pesquisa
tização da sociedade brasileira, anteci-
de mestrado, e Sonhe com os sonhos ou
pando causas que atualmente estão na
o ano em que tive 18 anos (Rio de Janei-
agenda política mundial. “Nos anos 70,
ro: Animula Vagula Blandula, 2000).
ambos irão engajar-se em causas levan-
tadas pela contracultura. Questões de Conira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- é o principal aspecto que lhes dá para a formação da cultura brasi-
cia de Caetano e Gil para a for- notoriedade nesse contexto? leira, na segunda metade do século
mação da cultura brasileira na se- Pedro Bustamante Teixeira – A XX, é central. Não só pelo impacto
gunda metade do século XX? Qual importância de Caetano e de Gil que causaram com a virada tropi-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

calista1 – que vem para questionar anos 70, assim como ser tropica- mem uma postura menos marginal,
as bases de um nacionalismo cul- lista nos anos 80 não é o mesmo do que pelo que izeram com o
tural essencialista, herdeiro de um que ser tropicalista nos anos 90, movimento tropicalista. A prisão e
modernismo Mário Andradiano2, e assim por diante. O que signiica o exílio, mais os vinte anos de um
predominante na MPB e nas artes ser tropicalista hoje? Os aggiorna- regime militar no Brasil, cobririam
ditas brasileiras no início dos anos mentos4 da dupla não são senão o com um grosso véu essa parte da
60 –, mas por continuarem tropica- esforço de se manterem iéis a uma história da dupla. Por muitos anos,
listas, neoantropófagos3, ao longo série de princípios, tropicalistas, as referências ao tropicalismo, à
de todos esses anos, o que signii- no tempo presente. Acredito que prisão, ao regime e ao exílio ti-
ca, apesar do paradoxo, jamais re- vem daí a notoriedade da dupla. nham que ser escamoteadas. Daí
pousar no mesmo.
As respostas que eles dão ao tempo ser tão difícil visualizar uma coe-
nunca são as mesmas. E não o sen- rência na práxis artística e política
Ser tropicalista nos anos 60 não do, estaremos sempre atentos ao desses dois artistas. Sem a compre-
é o mesmo que ser tropicalista nos que dizem, porque dizem confor- ensão da proposta inicial da Tropi-
me uma lógica muito singular, não- cália, é mesmo inviável entender
1 Tropicalismo, Movimento tropica-
lista ou Tropicália: movimento cultural
-binária, embrionária no modernis- a movimentação desses artistas ao
brasileiro que surgiu sob a inluência das mo da Semana de 225 – em Oswald longo do tempo.
correntes artísticas de vanguarda e da cultura de Andrade6 sobretudo – e que só
pop nacional e estrangeira (como o pop-rock se inaugura na música popular e de Mas acontece que ambos tive-
e o concretismo), misturou manifestações
massa com o tropicalismo. ram, dado o acordo que izeram
tradicionais da cultura brasileira a inovações
estéticas radicais. Tinha objetivos comporta-
com o tempo, a sorte de ver o mun-
mentais, que encontraram eco em boa parte do e o Brasil dar muitas voltas. E,
da sociedade, sob o regime militar, no inal da
IHU On-Line – Como vêm se situ-
aquilo que não se entendia e que
década de 1960. O movimento manifestou-se ando ao longo do tempo as obras
principalmente na música (cujos maiores
não se podia explicar, teve o tem-
de Caetano e Gil no cenário cul-
representantes foram Gilberto Gil, Torquato po de se revelar também. O que a
Neto, Os Mutantes e Tom Zé); manifestações
tural brasileiro? E para além do
princípio parecia rendição ao mer-
artísticas diversas, como as artes plásticas Brasil?
(destaque para a igura de Hélio Oiticica), o
cado ou um lagrante da alienação
cinema (o movimento sofreu inluências e in- Pedro Bustamante Teixeira – Ca- desses artistas, se revelaria um
luenciou o Cinema novo de Gláuber Rocha) e etano e Gil acabaram se tornando projeto artístico radical, um dos
52 o teatro brasileiro (sobretudo nas peças anár-
quicas de José Celso Martinez Corrêa). Um
muito mais famosos pelo que ize- mais ousados movimentos artísti-
dos maiores exemplos do movimento tropi- ram depois do exílio, quando assu- cos da segunda metade do século
calista foi uma das canções de Caetano Velo- XX. Talvez o primeiro movimento
so, denominada exatamente de “Tropicália”. 4 Aggiornamento: é um termo italiano,
que signiica “atualização”. Esta palavra foi
Leia a edição 411, intitulada Tropicalismo. O
artístico a enfrentar de frente o
desejo de uma modernidade amorosa para o a orientação chave dada como objetivo para binarismo que tanto marcou o sé-
Brasil, disponível em http://bit.ly/ihuon411. o Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa culo XX.
(Nota da IHU On-Line) João XXIII em 1962. Por outras palavras, o
2 Mário Raul de Morais Andrade (1893- aggiornamento é a adaptação e a nova apre- A redemocratização nos anos
1945): poeta, romancista, crítico de arte, fol- sentação dos princípios católicos ao mundo
80, que reunia, talvez por uma
clorista, musicólogo e ensaísta brasileiro. Em atual e moderno, sendo por isso um objetivo
1917 foi publicado o seu primeiro livro de ver- fundamental do Concílio Vaticano II. Aqui última vez, os artistas da Música
sos: Há uma gota de sangue em cada poema. na entrevista este termo é empregado com o Popular Brasileira em prol de um
A sua segunda obra, Pauliceia desvairada, sentido de inovação, atualização, como citado
objetivo comum, apagava certas
colocou-o entre os pioneiros do movimento inicialmente. (Nota da IHU On-Line)
modernista no Brasil, culminando, em 1922, 5 Semana de Arte Moderna: também diversidades ideológicas, que a
como uma das iguras mais proeminentes da chamada de Semana de 1922, ocorreu em São volta das eleições diretas faria
famosa Semana da Arte Moderna. Durante a Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro daquele novamente aparecer. O im do
década de 1920 continuou sua carreira literá- ano, no Teatro Municipal. Representou uma
ria, ao mesmo tempo que exercia a função de verdadeira renovação de linguagem, na busca regime militar7 com a campanha
crítico musical e de artes plásticas na impren- de experimentação, na liberdade criadora da
sa escrita. Em 1928 publicou seu romance ruptura com o passado e até corporal, pois a 7 Golpe Militar: movimento delagrado em
mais conhecido, Macunaíma, considerado arte passou então da vanguarda para o mo- 1º de abril de 1964. Os militares brasileiros,
por muitos como uma das obras capitais da dernismo. Participaram da Semana nomes apoiados pela pressão internacional anti-
narrativa brasileira no século XX. Alguns dos consagrados do modernismo brasileiro, como comunista liderada e inanciada pelos EUA,
seus livros de poesia mais conhecidos são: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víc- desencadearam a Operação Brother Sam, que
Losango cáqui, Clã do jabuti, Remate de ma- tor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, garantiu a execução do Golpe, que destituiu
les, Poesias e Lira paulistana. (Nota da IHU Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, do poder o presidente João Goulart, o Jango.
On-Line) Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Em seu lugar os militares assumem o poder.
3 Movimento Antropofágico: manifes- Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti en- Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar
tação artística brasileira da década de 1920. tre outros. (Nota da IHU On-Line) o IHU publicou o 4º número dos Cadernos
Baseado no Manifesto Antropófago, escrito 6 José Oswald de Sousa Andrade (1890- IHU em formação, intitulado Ditadura
por Oswald de Andrade, o movimento antro- 1954): escritor, ensaísta e dramaturgo brasi- 1964. A memória do regime militar. Conira,
pofágico brasileiro tinha por objetivo a de- leiro. Foi um dos promotores da Semana de também, as edições nº 96 da IHU On-Line,
glutição (daí o caráter metafórico da palavra Arte Moderna de 1922 em São Paulo, tornan- intitulada O regime militar: a economia, a
“antropofágico”) da cultura norte-americana do-se um dos grandes nomes do modernismo igreja, a imprensa e o imaginário, de 12 de
e europeia. Foi certamente um dos marcos literário brasileiro. Foi considerado pela crí- abril de 2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005,
do modernismo brasileiro. (Nota da IHU tica como o elemento mais rebelde do grupo. 1964 – 2004: hora de passar o Brasil a lim-
On-Line) (Nota da IHU On-Line) po. (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

das Diretas Já8 daria início a um Embora tardio, o êxito planetá- Cepecista9 que reduziria sobrema-
rearranjo das forças políticas do rio da Tropicália provocaria uma neira em sua leitura ideológica,
país. Caetano e Gil, por sua vez, o série de lançamentos nos anos 90, um movimento musical singular
primeiro, “menos estrangeiro no no Brasil e no mundo. A descons- brasileiro que airmava a nossa
lugar que no momento”, e o se- trução tropicalista tornar-se-ia música para muito além das nossas
gundo, mais envolvido com a polí- inalmente inteligível. Não por fronteiras. Foram eles, sobretudo
tica do que com a música (Gil tor- acaso, nos anos 90, a divisão en- Caetano Veloso, os primeiros a de-
nara-se vereador de Salvador pelo tre rock e MPB que marcou os anos nunciar a regressão da estética da
PMDB em 1988, e no ano seguinte música popular diante da progres-
se iliara ao Partido Verde), não são de uma arte engajada no Bra-
se enquadravam no ambiente eu- sil. No entanto, a crítica, sozinha,
fórico da reabertura política. O não seria capaz de enfraquecer um
movimento nacionalista de esquer-
que antes era nebuloso, a saber, o
papel desempenhado pela Tropi-
A vida desses da como era o da música popular
nos anos 60.
cália nos idos de 1967/1968, per- artistas é de
maneceria oculto, mesmo após a Com o tropicalismo, a crítica en-
reabertura política. uma coragem, im transformava-se em práxis, e
Mas os anos 90 veriam reemergir de uma entre- então, o que era tabu para a es-
querda se transformaria em totem
soluções tropicalistas para equa-
lizar binarismos antigos, políticos
ga comovente para a Tropicália. E enfraquecendo
uma ideologia hegemônica conse-
e culturais que voltavam a pre- guia-se salvar a sua maior vítima,
dominar nos anos 80. Além disso, que, ao contrário do que se pensa-
nos anos 90, os discos tropicalistas 80 começa a ser violada. Artistas
va, não era o regime militar, e sim
voltam a ser cultuados por cole- retomam estratégias tropicalistas
a própria arte brasileira, já que a
cionadores, tanto no Brasil quanto para circularem livres entre os
cartilha cepecista sacriicava dois
fora dele. São redescobertos Os opostos. É quando Cazuza vai gra-
dos seus mais exitosos movimentos:
Mutantes, Tom Zé, Rogério Duprat, var Cartola, quando Marisa Monte
a poesia concreta e a bossa nova.
e, logo depois, o Caetano, o Gil e a regrava em um só disco: Os Mu- São os tropicalistas os artíices de
Gal tropicalista. tantes, Caetano, Candeia e Titãs. um movimento que irá detonar os 53
Quando Arnaldo Antunes deixa os pressupostos essencialistas de uma
8 Diretas Já: foi um movimento civil de rei- Titãs para se tornar um dos prin- arte popular. São eles que incluirão
vindicação por eleições presidenciais diretas cipais artistas brasileiros da con-
no Brasil ocorrido em 1983-1984. A possibili- os Beatles, a arte pop, a alegria
dade de eleições diretas para a Presidência da temporaneidade. Quando os Para- oswaldiana e a contracultura nas
República no Brasil se concretizaria com a vo- lamas do Sucesso voltam-se para a rodas das esquerdas. E sempre com
tação da proposta de Emenda Constitucional música brasileira.
Dante de Oliveira pelo Congresso. Entretan-
um senso de responsabilidade mui-
to, a Proposta de Emenda Constitucional foi Enim, ora explicitamente ora to grande diante do público, algo
rejeitada, frustrando a sociedade brasileira. inédito no Brasil. A dupla não só
Ainda assim, os adeptos do movimento con-
implicitamente, o tropicalismo de
Gil e de Caetano foi sempre uma agia, como também não se furtava
quistaram uma vitória parcial em janeiro do
ano seguinte quando Tancredo Neves foi elei- questão a ser debatida não só na a explicar as suas razões e os seus
to presidente pelo Colégio Eleitoral. A ideia
cultura brasileira como também na propósitos.
de criar um movimento a favor de eleições di-
retas foi lançada em 1983, pelo então senador política, ainda que por muitas ve- Nos anos 70, ambos irão enga-
alagoano Teotônio Vilela no programa Canal zes preferiu-se acreditar que ela já jar-se em causas levantadas pela
Livre da Rede Bandeirantes. A primeira ma-
nifestação pública a favor de eleições diretas
estava superada. contracultura. Questões de gênero,
ocorreu no recém-emancipado município de raciais, homoafetivas, religiosas,
Abreu e Lima, em Pernambuco, no dia 31 de rítmicas, tudo isso estará presen-
IHU On-Line – Que história do
março de 1983. Organizada por membros do
Brasil é contada ao longo dos 50 te na obra desses artistas que mais
Partido do Movimento Democrático Brasi-
leiro (PMDB) no município, a manifestação anos de carreira de Caetano e Gil? pela micropolítica do que pela ma-
foi noticiada pelos jornais do estado. Diver-
9 Centro Popular de Cultura (CPC):
Quais são as passagens mais mar-
sas outras manifestações se seguiram a esta,
porém a que ganhou mais notoriedade públi- cantes da narrativa construída foi uma organização associada à União Na-
ca foi a realizada em São Paulo, no Vale do pelos artistas? cional de Estudantes (UNE). Foi criado em
Anhangabaú, no Centro da Capital, que co- 1961 no Rio de Janeiro, no Brasil. Foi extinto
memorava seu aniversário – dia 25 de janei- Pedro Bustamante Teixeira – pelo Golpe de Estado no Brasil em 1964. Um
ro. Mais de 1,5 milhão de pessoas se reuniram Advindo do que já se chamou de grupo de intelectuais de esquerda, com o ob-
para declarar apoio ao Movimento das Dire- jetivo de criar e divulgar uma “arte popular
tas Já. O ato foi liderado por Tancredo Neves, segunda geração da bossa nova, revolucionária”, reuniu artistas de diversas
Franco Montoro, Orestes Quércia, Fernando Caetano Veloso e Gilberto Gil, áreas, como teatro, música, cinema, literatu-
Henrique Cardoso, Mário Covas, Luiz Inácio primeiramente, operaram para ra e artes plásticas, para defender o caráter
Lula da Silva e Pedro Simon, além de artistas coletivo e didático da obra de arte, bem como
e intelectuais engajados pela causa. (Nota da assegurar importância da bos- o engajamento político do artista. (Nota da
IHU On-Line) sa nova para além da ideologia IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

cropolítica detonariam um proces- bem à geração dos anos 90, acom- para, como diz Caetano: “manter
so de abertura mental e corporal panhando Marisa Monte, os Para- o sol no centro do céu”. Signiica
que, por outros caminhos, também lamas do Sucesso e outros. Agora, também desconiar dos pares opo-
levarão à abertura política. Se a justo agora, estão os dois juntos sitivos, para desconstruir dogmas e
ditadura, como já airmam muitos encerrando uma turnê internacio- hegemonias culturais. E signiica,
historiadores, não foi só militar, e nal no Brasil em que comemoram antes de tudo, zelar pela liberdade
sim civil-militar, os questionamen- 50 anos de carreira. de experimentação artística, geral
tos micropolíticos e comportamen- e irrestrita. Signiica zelar pela be-
Enim, a vida desses artistas é de
tais levantados pela dupla também leza da arte nacional ao longo do
uma coragem, de uma entrega co- tempo, que se dá por acolher e não
terão sua importância no processo
movente. O artista não é esse que se por expelir outras culturas.
de reabertura. Como diz a canção:
permite viver o que deveria de fato
“pipoca ali, aqui, pipoca lá, desa-
ser vivido? É por isso que assim o são,
noitece e amanhã tudo mudou”. IHU On-Line – De que maneira
por todos nós que não o somos.
Nos anos 80, já com carreiras in- a ousadia e sensibilidade artística
ternacionais mais sólidas, acompa- de Caetano e Gil para inluências
IHU On-Line – O que representa culturais diversas do Brasil e de
nhariam de perto o surgimento do para a carreira de Caetano e Gil
BRock10 e serviriam de inspiração outros países vêm contribuindo
o posicionamento político con- ao longo dos 50 anos de carreira
para muitos artistas que se propu- testatório (questionador tanto da
nham a ir além do rock ou além da dos dois artistas para o cenário
direita quanto da esquerda) que cultural brasileiro?
MPB. Nos anos 90, saudaram com eles sempre tiveram (a despeito
entusiasmo o sucesso do samba- Pedro Bustamante Teixeira –
de não sobreporem a política à
reggae, o ressurgimento dos blocos Ousadia e sensibilidade regeram a
arte)?
afro, participariam ativamente na vida de Caetano e de Gil ao longo
recuperação da Tropicália, e sem- Pedro Bustamante Teixeira – A de todos esses anos. No entanto, é
pre em frente, iriam, ambos, se diiculdade de se entender os po- a partir da ruptura tropicalista que
tornando cada vez mais famosos no sicionamentos políticos de Caeta- se acentuam os aspectos que lhes
mundo. no e de Gil é a mesma que se tem diferenciariam dos outros composi-
para entender a Tropicália ou, ex- tores da MPB. O rompimento com
Em 2006, o Caetano sério do iní-
pandindo, a contracultura. A socie- um padrão estético nacionalista,
54 cio dos anos 2000 rejuvenesce e
dade contemporânea ainda não se o livre luxo entre as ideologias
sorri com a Banda Cê, e Gil investe
acostumou a viver para além dos de então, a presença de um jeito
na excelência de sua música, repe-
binarismos clássicos. Querem o de corpo, masculino e feminino,
tindo aquilo que Caetano izera no
sim ou o não. Isso ou aquilo. À es- o lerte com o mundo, enim, faz
inal dos anos 90 com a regência de
querda ou à direita. Não admitem aparecer o protótipo de um novo
Jacques Morelembaum, já que an-
o talvez, o isso e aquilo ou, o que homem, de uma nova mulher, de
tes de Caetano, integrara-se muito
seria mais trágico ainda, o nem isso um novo artista. É esse novo artis-
10 BRock: denominação dada por Nelson nem aquilo. Ou seja, não se admite ta que servirá de modelo para uma
Motta, para o período dos anos 80 em que senão o preconcebido, o já dado. leva de artistas que vem, dentre
novas bandas brasileiras surgiram, sob in- Mas Caetano e Gil não se furtam
luência principal de bandas dos anos 70. A
eles os Novos Baianos, Ney Mato-
efervescência que cursava nos primeiros anos de pensar, mesmo em público. Mais grosso, Djavan, Cazuza, Marisa
da década e o im da ditadura foram os princi- importante que o resultante de um Monte e Adriana Calcanhotto.
pais motivos que propiciaram o renascimento determinado raciocínio é o pró-
do rock, com integrantes que até então eram
jovens impedidos de falar e com os anos 80
prio e explícito ato de pensar. De IHU On-Line – Que canções
puderam se expressar. É caracterizado por pensar o movimento, não o todo. dos dois artistas você destacaria
inluências variadas, indo do new wave, pas- Porque mesmo o todo é regido pelo como as mais representativas na
sando pelo punk e o próprio conteúdo pop
emergente do inal da década de 70. Ainda
“tempo, tempo, tempo, tempo”11 trajetória dos 50 anos de carreira
assim, em alguns casos, tomou por referência de Caetano ou pelo “eterno deus de ambos? Por quê?
ritmos como o reggae e a soul music. Suas le- mudança”12 de Gil. Assim o que
tras falam na maioria das vezes sobre amores vale para a vida, vale para a arte, Pedro Bustamante Teixeira –
perdidos ou bem-sucedidos, não deixando de Acredito que seja muito compli-
abordar algumas temáticas sociais. O grande vale para a política, nessa ordem e
não ao contrário. cado destacar as canções mais re-
diferencial das bandas deste período era a
capacidade de falar sobre estes assuntos sem presentativas na trajetória deles,
deixar a música tomar um peso emocional ou Ser tropicalista signiica estar em se fosse para dizer alguns discos
político exagerados. Fora a capacidade que movimento, para ser vários sendo o já seria bem complicado, canções
seus integrantes tinham de falar a respeito
mesmo. Na medida em que o tem- então... Mas, arriscando um pou-
de quase tudo com um tom de ironia, outra
característica marcante do movimento. Outra po passa é preciso reposicionar-se co, diria que a recente “Não Tenho
particularidade típica foi o visual próprio da Medo da Morte” (2008) de Gilberto
época, cabelos armados ou bastante curtos 11 Canção “Oração ao tempo”, de Caetano Ve-
Gil apresenta muito bem um pro-
para as meninas, gel, roupas coloridas e ex- loso, 1970. (Nota da IHU On-Line)
travagantes para os meninos. (Nota da IHU 12 Canção “O eterno Deus Mu Dança”, de Gil- cesso de composição seu, bem ilo-
On-Line) berto Gil, 1989. (Nota da IHU On-Line) sóico, que representa ainda assim

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DE CAPA IHU EM REVISTA

apenas uma faceta de sua obra. etano e Gil são reconhecidos e cul- ou da dor esperançosa da canção
Já para Caetano, é impossível não tuados como grandes artistas. de protesto.
pensar em “Quereres”13, para ten-
tar dar conta de sua maneira sin- IHU On-Line – Em um de seus IHU On-Line – Você menciona
gular de pensar, e na poesia de estudos, você menciona que “Os que a Tropicália foi o primeiro
“Ciúme”14 e de “Terra” (1968). Mutantes em 1967 abriam cami- movimento a apontar uma saída
nho para um devir-rock à música essencialmente contracultural e,
IHU On-Line – Como se dá a re- e à poesia de Caetano”. Poderia sobretudo, artística, para o con-
lação de Caetano e Gil com outros texto político entre as décadas de
artistas do cenário cultural bra- 1960 e 1970. O que representou
sileiro e internacional ao longo essa alternativa em termos políti-
desses anos de carreira? cos e culturais para o cenário bra-
sileiro da época? Ela se relete de
Pedro Bustamante Teixeira –
Após o rompimento tropicalista,
Ousadia e sen- alguma maneira atualmente?
que é claro, deixou algumas rusgas, sibilidade rege- Pedro Bustamante Teixeira – Na
tanto Gil quanto Caetano caminha- época a Tropicália representou um
ram para uma harmonia cada vez
ram a vida de rompimento. Quebra de paradig-
maior com seus pares no cenário Caetano e de Gil ma. Instauração de um novo pro-
nacional. Ainda que se negassem ao blema numa época de crise. Isto
tropicalista alguns espaços na es- ao longo de to- é, uma época que, para alguns, a
querda mais tradicional, fora dela a
simpatia era quase total. Sobretudo
dos esses anos inserção de uma outra questão pa-
recerá inapropriada, e para outros,
a partir da prisão e do exílio, quan- urgente. Para as esquerdas uma
do se tornavam heróis nacionais. Por falar um pouco sobre o que sig- traição que só será perdoada com
outro lado, Caetano e Gil sempre se niica essa inluência no traba- a prisão e o exílio. Contudo, como
entusiasmaram pelo novo, e assim, lho tanto de Caetano quanto dos essa história não termina com o
jamais adotaram atitudes reativas Mutantes? perdão das esquerdas, fatalmente
para com os artistas vindouros. as mesmas diferenças se sobressal-
Pedro Bustamante Teixeira – tariam e novos confrontos ideológi-
Quanto à inluência internacio- Até o contato com Caetano e Gil, cos se instaurariam por conta dessa
55
nal, somente agora podemos ob- Os Mutantes eram uma banda de eterna desainação entre as partes.
servar alguns relexos da Tropicália rock ‘n’ roll antinacionalista que Pois aceitar o perdão não signiica
em artistas como Devendra Banhart compunha em inglês. Como já dis- se juntar ao algoz, a paz entre as
e Beck. A conjuntura nacional não se Rita Lee, Caetano e Gil foram partes não silenciará as vozes, nem
permitiu ao tropicalismo voos se- mostrando a eles como poderiam de um lado, nem de outro.
melhantes aos da bossa nova, e a fazer o que faziam em português.
saída para o exílio de Caetano e Concomitantemente, os Mutantes Mais recentemente, quando Gil
de Gil não signiicou, apesar das mostravam a Caetano e Gil o lifes- é convidado pelo presidente Lula a
tentativas, a consagração interna- tyle rock ‘n’ roll que eles, até en- assumir, em seu primeiro mandato,
cional desses artistas. Então o que tão, jamais haviam presenciado. A o Ministério da Cultura, o músico
poderia ter se dado concomitan- partir do tropicalismo, Os Mutantes faz questão de destacar, afastando
temente ao movimento, só viria a começavam a se sentir novamente a hipótese de um estranho conluio
se dar muito depois nos “estranhos brasileiros, e poderiam até mesmo político: “saibam que quem vai
anos 90”. Contudo, hoje, nos pa- fazer música popular. Sem o rock comandar o Ministério da Cultu-
íses lusófonos, na Inglaterra, nos de Os Mutantes, diicilmente os ra é um tropicalista”. Ou seja, há
EUA e no Japão, e em boa parte baianos Caetano e Gil teriam as sempre um descompasso, que con-
dos países de língua neolatina, Ca- credenciais para adentrarem em sidero sadio, entre a Tropicália e as
mundo novo que não lhes perten- esquerdas que foi, é e continuará
13 Canção de Caetano Veloso, “O Quereres”,
cia ainda, e assim seria bem mais sendo essencial para o amadureci-
1984. (Nota da IHU On-Line)
14 Canção de Caetano Veloso, “O Ciúme”, complicado ir muito além do oti- mento de um pensamento cultural
1987. (Nota da IHU On-Line) mismo melancólico da bossa nova e político no Brasil e no mundo.■

LEIA MAIS...
— Um movimento libertário? Entrevista especial com Pedro Bustamante Teixeira, publicada na
revista IHU On-Line, nº 411, de 10-12-2012, disponível em http://bit.ly/1Gvlcqi;
— O samba como símbolo de brasilidade. Entrevista especial com Pedro Bustamante Teixeira, pu-
blicada na revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/1MgsxWK.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Caetano e Gil: Uma trajetória


de construção utópica e
autorrelexiva do Brasil
Para Frederico Oliveira Coelho, a obra dos artistas pensa e conta a
história do país e expressa o anseio por uma nação vanguardista
Por Leslie Chaves

A versatilidade e a ousadia artís-


tica sempre permearam as car-
reiras de Gilberto Gil e Caetano
Veloso. De acordo com Frederico Olivei-
ra Coelho, esse peril fez com que a arte
uma concepção arrojada de nação, mas
simultaneamente atenta às adversida-
des. “A grande contribuição de ambos
foi por uma política da diversidade de
gêneros, etnias e opiniões. Caetano e
de ambos circulasse em espaços bastan- Gil assumiram uma sexualidade dúbia
te diversos da cultura. Eles “transitaram e reivindicaram a cultura africana no
durante boa parte de sua carreira entre Brasil e a cultura negra brasileira como
os públicos soisticados e populares. Não base de seus trabalhos. Se há uma ‘his-
só atuaram no âmbito massivo da música tória do Brasil’ contada nessas trajetó-
popular brasileira – isto é, o rádio, a te- rias, é a história de um país sempre em
56 levisão e a indústria fonográica –, como construção utópica pelo viés da diferen-
sempre estiveram próximos de repertó- ça e sempre autorrelexivo na consciên-
rios de vanguarda através de conversas, cia de suas mazelas e limites”, aponta.
trabalhos e relações com intelectuais
ligados à poesia concreta, ao cinema Frederico Oliveira Coelho é graduado
experimental, à poesia, à literatura e em História e mestre em História Social
às artes visuais”, explica o professor em pela Universidade Federal do Rio de Ja-
entrevista por e-mail à IHU On-Line. neiro – UFRJ e doutor em Literatura Bra-
sileira pela Pontifícia Universidade Ca-
Esse trânsito intenso entre diversas
tólica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atua
áreas e públicos, o contato com varia-
como pesquisador para documentários,
das fontes de inluências e ainda o en-
gajamento político atento às demandas sítios eletrônicos, editoras e institui-
dos diferentes momentos conjunturais ções culturais. Atualmente é professor
do Brasil contribuíram para que Caetano dos cursos de graduação em Literatura
e Gil construíssem carreiras sólidas em e Artes Cênicas e do Programa de Pós-
âmbito nacional e internacional. “Todos -Graduação em Literatura, Cultura e
esses elementos, aliados, claro, à quali- Contemporaneidade do Departamento
dade dos seus trabalhos, izeram deles de Letras da PUC-Rio. Entre suas publi-
personagens centrais na formação cul- cações destacam-se Eu, brasileiro, con-
tural brasileira do seu período”, confor- fesso minha culpa e meu pecado – cul-
me ressalta Coelho. tura marginal no Brasil nas décadas de
1960 e 1970 (Rio de Janeiro: Civilização
Para o professor e pesquisador, o al- Brasileira, 2010), Livro ou livro-me – os
cance da obra desses dois artistas, in- escritos babilônicos de Hélio Oiticica
dividual e coletivamente, chegou tanto
(1971-1978) (Rio de Janeiro: Ed. UERJ,
à cultura de massa quanto à Academia.
2010), Série Encontros – Tropicália (Rio
Foi sobretudo a Tropicália a responsável
de Janeiro: Azougue Editorial, 2008) e
por abrir passagem no Brasil para infor-
A MPB em discussão – Entrevistas (Belo
mações acerca do que acontecia com
Horizonte: UFMG, 2005).
a juventude mundial e por ampliar o
repertório cultural do país, a partir de Conira a entrevista.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

nês e são respeitados por nomes de


peso em diferentes países.

IHU On-Line – As obras de Gil e


Suas canções e opiniões torna- Caetano se inluenciam recipro-
camente? Como se dá e em que
ram-se patrimônio pessoal de aspectos é possível se perceber
essa inluência mútua?
milhões de ouvintes e temas de
relexões críticas no centro do Frederico Oliveira Coelho – Sim,
desde o início dos dois, ainda nos
pensamento acadêmico nacional primeiros anos de 1960, eles se
tornaram amigos musicais, dividin-
do repertórios, descobertas, tra-
IHU On-Line – Qual a importân- dito, do massivo ao soisticado. Isso balhos. Caetano sempre apontou a
cia de Caetano e Gil para a for- compõe uma trajetória bem sólida, excelência musical de Gil como um
mação da cultura brasileira na se- em que seus discos foram comen- motor que o ensinou bastante, as-
gunda metade do século XX? Qual tando as mudanças mais importan- sim como Caetano foi sempre uma
é o principal aspecto que lhes dá tes da sociedade e da cultura brasi- espécie de liderança natural, “or-
notoriedade nesse contexto? leira e mundial. Desde o momento ganizando o movimento” das ações
tropicalista no im dos anos 1960, deles e do grupo de amigos mais
Frederico Oliveira Coelho –
passando pela fase internacional amplo ao redor dos dois. Em 1964,
Creio que é difícil precisar exa-
do exílio no início dos anos 1970, ainda em Salvador, ele já estava di-
tamente a importância de dois
mergulhando na relação da Bahia rigindo Gil, Gal, Bethânia e outros
artistas que transitaram durante e da África com o Brasil, lertan- amigos no espetáculo “Nós, por
boa parte de sua carreira entre os do com a black music através do exemplo”. Mas Caetano viu, em
públicos soisticados e populares. movimento Black Rio1, assumindo o casa, Gil cantar na televisão antes
Não só atuaram no âmbito massivo rock pop dos anos 1980, se tornan- de se conhecerem. Quando vieram
da música popular brasileira – isto do proissionais maduros nos anos para o Rio (Caetano) e São Paulo
é, o rádio, a televisão e a indústria 1990 e lançando discos de forma (Gil), vieram por motivos distintos,
fonográica –, como sempre esti- ininterrupta até hoje, todos es- mas rapidamente se articularam 57
veram próximos de repertórios de ses fatos os colocam sempre como em amizades e trabalhos. São par-
vanguarda através de conversas, referência entre diferentes gera- ceiros de canções, de discos, de
trabalhos e relações com intelec- ções. No que diz respeito às suas projetos, de turnês, de famílias. É
tuais ligados à poesia concreta, ao carreiras internacionais, também impossível que a obra de um não
cinema experimental, à poesia, à são sólidas, apesar de em escala cause profundo impacto na obra do
literatura e às artes visuais. Suas reduzida. Nunca foram pop stars outro.
canções e suas opiniões tornaram- mundiais, mas sempre izeram tur-
-se patrimônio pessoal de milhões
1 Movimento Black Rio: surgido nos anos
IHU On-Line – Que história do
de ouvintes e temas de relexões
1970, foi uma espécie de resposta a uma Brasil é contada ao longo dos 50
críticas que atingiram o centro do
época de contestação, de luta por direitos anos de carreira de Caetano e Gil?
pensamento acadêmico nacional. humanos, de uma procura involuntária por Quais são as passagens mais mar-
Além disso, os dois, principalmen- uma identidade negra universal, com base
cantes da narrativa construída
te Gilberto Gil, nunca se furtaram no que os negros americanos reivindicavam
e que os africanos recém-libertos do domínio pelos artistas?
em participar dos desaios políticos colonial europeu se permitiam fazer em sua
do país. Todos esses elementos, terra, após séculos de diáspora para Améri- Frederico Oliveira Coelho –
aliados, claro, à qualidade dos seus ca e a própria Europa. O gênero que fundia a Uma história de um país que pre-
soul music ao samba ganhava uma projeção
trabalhos, izeram deles persona- cisou, em poucas décadas, sair de
inédita e transbordava e importava ideias: os
gens centrais na formação cultural artistas burilavam suas canções, enquanto os uma condição rural, pré-industrial
brasileira do seu período. adeptos em geral se espelhavam na luta pelos e arcaica para uma situação de
direitos civis nos Estados Unidos para com- sociedade urbana, tecnológica e
bater o preconceito racial. Os artistas negros
IHU On-Line – Como vêm se situ- de massa. Que teve de entender
tornaram-se subversivos por exibir orgulho
de sua cultura e cor. Não pretendiam, ne- como lidar com a demanda mo-
ando ao longo do tempo as obras
cessariamente, se vincular à luta armada ou, derna de ruptura com a tradição
de Caetano e Gil no cenário cul- apesar da importação de valores, aos Pante- e, simultaneamente, com a força
tural brasileiro? E para além do ras Negras. A musicalidade era o ponto de
Brasil? convergência daquela geração e a inluência tradicional da Nação. A geração
estrangeira surgiu como uma opção à MPB, de Gil e Caetano foi responsável
Frederico Oliveira Coelho – Eles que não oferecia canais para ela se expressar. por pensar politicamente e esteti-
sempre tiveram em estado de trân- Entretanto, com o período ditatorial a ação
camente essa passagem dramática
repressiva surtiu efeito neutralizador e o ím-
sito entre extremos da divisão cul- peto e a atitude original se esvaíram. (Nota da dos anos 1950/1970 que o país vi-
tural moderna, do popular ao eru- IHU On-Line) veu. Claro que um dos momentos

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

culminantes e desencadeadores de O movimento surgiu esponta- mento de trabalho. Ambos dizem,


conlitos que até hoje permane- neamente, por uma série de con- em entrevistas, que se tornaram
cem no debate cultural brasileiro tingências e de uma tentativa da compositores mais concentrados e
foi o breve momento tropicalista mídia e de críticos em sintetizar melhores músicos. Além disso, ti-
de 1967/1968, em que os compo- em uma palavra – um ismo, bem ao veram a possibilidade de conviver
sitores baianos e seus parceiros estilo das vanguardas modernas – a com a cena de rock mais intensa
marcaram profundamente o ima- ação coletiva desses artistas. A im- do período que era a de Londres.
ginário brasileiro ao nos mostrar portância do movimento também Viram shows de músicos no auge,
nossas contradições nesse projeto já vem sendo debatida há décadas. foram aos grandes festivais como o
moderno-conservador que sempre Foi marcante, pois despertou de- da Ilha de Wight2 e tudo isso contri-
nos serviu de lastro para nos expli- bates, se espalhou pela cultura de buiu decisivamente para suas vidas
carmos. O enfrentamento do com- massa e pela Academia, tornou-se e suas obras.
ponente nacionalista presente nas tanto tema de camiseta quanto de
esquerdas de seu tempo, a aber- teses, virou documentários, enim,
IHU On-Line – Como as obras de
tura das matrizes tradicionais da sua atuação em apenas dois anos
Gil e Caetano dialogam/se contra-
canção para outras fontes inter- se desdobrou em muitos outros
põem com outros estilos musicais
nacionais e industriais, o comen- eventos que reivindicaram ali a sua
que circulam no cenário cultural
tário poético sobre uma sociedade origem. Por ter sido responsável
brasileiro? Como se deram tais re-
paralisada pelas benesses fugazes pela entrada sistemática de uma
série de informações globalizadas lações ao longo dessas cinco dé-
de um regime civil-militar, são cadas? Que momento (ou momen-
temas fundamentais ao redor do sobre a juventude mundial em uma
época que isso não ocorria no país, tos) o senhor destaca como mais
período dos seus primeiros discos. marcante?
No mais, a grande contribuição também contribuiu para a amplia-
de ambos foi por uma política da ção do repertório cultural do país. Frederico Oliveira Coelho –
diversidade de gêneros, etnias e Eles sempre foram antenas li-
opiniões. Caetano e Gil assumiram gadas ao que circulava de mais
uma sexualidade dúbia e reivindi- contemporâneo na sua época.
caram a cultura africana no Brasil Ao mesmo tempo, sempre tive-
e a cultura negra brasileira como São parceiros ram capacidade de articular as
58 base de seus trabalhos. Se há uma novidades com o repertório tra-
“história do Brasil” contada nes- de canções, de dicional do cancioneiro nacional.
Luiz Gonzaga e Bob Marley, João
sas trajetórias, é a história de um
país sempre em construção utópi-
discos, de pro- Gilberto e Pixies, Stevie Wonder
jetos, de turnês,
de famílias. É
ca pelo viés da diferença e sempre e Peninha, Black Rio e Racionais
autorrelexivo na consciência de MCs, todos esses e muitos outros

impossível que a
suas mazelas e limites. sons atravessam suas obras desde
o início. Na busca dessa lingua-
gem universal e brasileira, algu-
IHU On-Line – Como é a partici-
pação de Gil e Caetano no Tropi-
obra de um não mas experiências foram mais feli-
zes que outras. Se nos anos 1980
calismo? De que forma participa- cause profun- a aproximação com o pop pasteu-
ram da gênese e construção desse
movimento? Qual a importância do impacto na rizado das rádios não resultou em
discos potentes, nos dias atuais
desse movimento nas carreiras
de ambos e na história brasileira?
obra do outro ambos apresentam trabalhos pro-
vocadores e que não são óbvios.
Frederico Oliveira Coelho – Essa Como fã, o momento mais feliz
participação está amplamente ma- IHU On-Line – De que forma a foram os anos 1970, em que suas
peada em inúmeros trabalhos de experiência do exílio de Caetano ideias estavam em diálogo com
todos os tipos e qualidades que e Gil aparece em suas obras? uma série de experimentações e
foram feitos ao longo dos últimos Frederico Oliveira Coelho – Di-
50 anos. Os dois são fundadores de 2 Festival da Ilha de Wight: (The Isle of
retamente nas suas letras e nos Wight Festival) é um festival musical que
uma ideia que teve parceiros fun- discos que izeram no exílio (cada acontece anualmente na Ilha de Wight, In-
damentais para que fosse concebi- um gravou dois discos em Londres). glaterra. Foi realizado originalmente entre
da e executada. O talento de am- Comentaram de formas bem distin- 1968 e 1970, respectivamente em Ford Farm
(próximo a Godshill), Wootton e Afton Down
bos se junta ao talento de jovens tas o fato, em que Caetano assumiu (próximo a Freshwater). A edição de 1970 foi
como Torquato Neto, José Carlos um viés melancólico e nostálgico e de longe a maior e mais famosa dos primeiros
Capinam, Rogério Duarte, Rogerio Gil assumiu um viés universalista festivais desse estilo. O evento foi retomado
em 2002 no Seaclose Park, um local de re-
Duprat, Os Mutantes, Hélio Oiti- e airmativo. Essas diferenças i-
creação nos arredores de Newport. Tem sido
cica, Rubens Gerchman e muitos caram evidentes também na rela- realizado anualmente desde então. (Nota da
outros. ção dos dois com o violão, instru- IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

renovações temáticas da música Frederico Oliveira Coelho – São públicos sempre aguardam deles
e da cultura em geral. Mesmo as- muitos públicos para quem está há provocações, qualidade, inventi-
sim, é difícil dizer que momento meio século trabalhando. A rela- vidade e, ao mesmo tempo, ma-
é mais marcante que outro, pois ção sempre foi positiva, calcada nutenção do mesmo – como ocor-
toda a trajetória deles é coesa e na formação de um corpo de can- re com qualquer clássico forjado
de extrema qualidade. ções incontornáveis no imaginário na lógica da ruptura. Assim, cada
nacional do século XX. Suas letras um ao seu modo, eles continuam
e melodias passam de pais para i- ampliando e renovando públicos –
IHU On-Line – De que maneira lhos, frequentam escolas em todas seja Caetano com sua guinada ao
o senhor avalia a relação de Cae- as idades, fazem parte de trilhas power trio dos últimos três discos,
tano e Gil com o público? De que sonoras infantis, são estudadas na seja Gil se envolvendo diretamen-
forma foi sendo construído o pú- universidade, tornaram-se stan- te no planejamento e execução
blico desses artistas? Que peril dards da história de nossa músi- de novas políticas culturais para
de público eles tiveram e têm ao ca, enim, são obras que estão na a juventude e os múltiplos povos
longo dos 50 anos de carreira? corrente sanguínea de todos. Seus brasileiros.■

LEIA MAIS...
— Tropicalismo, “força fatal” da música popular. Entrevista especial com Frederico Oliveira
Coelho publicada na revista IHU On-Line, nº 411, de 10-12-2012, disponível em http://bit.
ly/1k7nZLV
— A música na Semana de Arte Moderna: luidez entre o erudito e o popular. Entrevista espe-
cial com Frederico Oliveira Coelho publicada na revista IHU On-Line, nº 395, de 04-06-2012,
disponível em http://bit.ly/1Mq693p

59

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

A luidez artística entre as estruturas


Alexandre Faria destaca a habilidade de Caetano e Gil em perambular
entre estilos musicais e posições políticas que se polarizam
Por Leslie Chaves e João Vitor Santos

C aetano Veloso e Gilberto Gil


surgem em um momento de
“popularização e massiicação
no Brasil do projeto estético e políti-
co do modernismo literário”, destaca
ensão coletiva, a ideia de povo, mas a
reairmação de um individualismo em
liberdade, o que é, até hoje, potente
e necessário frente às ondas de con-
servadorismo que avançam no Brasil”,
o professor de Literatura Alexandre explica o professor. Na entrevista, con-
Faria. Entretanto, entende que o su- cedida por e-mail à IHU On-Line, Fa-
cesso dos dois pode ser atribuído à ria ainda destaca o domínio e trabalho
habilidade de não se aterem apenas empregado pelos artistas na compo-
a um estilo ou mesmo a uma posição sição e interpretação das letras. Eles
política única. Ao mesmo tempo que concebem cada música de forma mui-
absorviam novidades estéticas, não se tíssimo particular. “A variedade de gê-
colocavam como alternativos, respon- neros musicais em que ambos investem
dendo também a demandas do merca- é a prova de uma pesquisa detalhada
do fonográico. “Talvez o aspecto que sobre a melhor maneira de cantar uma
60 melhor tenha garantido a notoriedade letra ou de pôr letra numa canção”.
de Caetano e Gil nesse panorama tão Alexandre Faria é professor de Li-
rico tenha sido a habilidade que ambos teratura no Departamento de Letras –
tiveram para entrar e sair das estrutu- ICHL da Universidade Federal de Juiz
ras. A Bossa Nova, o CPC/UNE, a Jovem de Fora, em Minas Gerais. Graduado
Guarda/Ieieiê, forças que se polariza- em Letras pela Universidade do Estado
vam naquela segunda metade dos anos do Rio de Janeiro – UERJ, é mestre em
1960, foram todas visitadas pelos par- Literatura Brasileira na PUC-Rio. Publi-
ceiros baianos, que, no entanto, não se cou o livro Literatura de subtração: ex-
comprometeram com nenhuma delas”, periência urbana e literatura contem-
destaca. porânea (Rio de Janeiro: Papel Virtual,
Faria reconhece que o trabalho dos 1999), resultante de sua dissertação
artistas é banhado por questões políti- de mestrado. Em 1998, ingressou no
cas. O que não quer dizer que assumis- doutorado em Letras, também na PUC-
sem a postura dura de resistência. “As -Rio. Desenvolveu pesquisa sobre a re-
presentação da identidade nacional na
canções que envolvem o projeto tropi-
cultura brasileira contemporânea, que
calista não são absolutamente canções
resultou na tese “O Brasil presente:
de protesto, embora tenham um espí-
construções-ruínas do imaginário na-
rito de contestação, no plano mais am-
cional contemporâneo”.
plo, dos valores e comportamentos da
época. Não há, no entanto, uma apre- Conira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- Alexandre Faria – Talvez, a me- nem na esfera musical. Sem falar
cia de Caetano e Gil para a for- lhor maneira de pensar essa ques- nos compositores da 2ª Geração
mação da cultura brasileira na se- tão seja imaginar Caetano e Gil
da Bossa Nova, que também des-
gunda metade do século XX? Qual como pessoas certas na hora certa.
é o principal aspecto que lhes dá Mas não foram os únicos no cená- pontavam nos festivais, na própria
notoriedade nesse contexto? rio cultural brasileiro dos anos 60, onda tropicalista iguras como Tom

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Guimarães Rosa9, Clarice Lispec-


tor10 e outros autores modernis-

O tempo deixa claro que a al-


tas. Se a Tropicália11 radicalizou

9 João Guimarães Rosa (1908-1967):


escritor, médico e diplomata brasileiro.
ternativa tropicalista foi mui-
to mais eiciente na articula-
Como escritor, criou uma técnica de lingua-
gem narrativa e descritiva pessoal. Sempre

ção entre política e estética


considerou as fontes vivas do falar erudito
ou sertanejo, mas, sem reproduzi-las num
realismo documental, reutilizou suas estru-
turas e vocábulos, estilizando-os e reinven-
tando-os num discurso musical e eficaz de
grande beleza plástica. Sua obra parte do
regionalismo mineiro para o universalismo,
Zé1, Rogério Duprat2, Rogério Du- e massiicação no Brasil do projeto oscilando entre o realismo épico e o mágico,
arte3, Os mutantes4, entre outros, estético e político do modernismo integrando o natural, o místico, o fantásti-
co e o infantil. Entre suas obras, citamos:
foram importantes na constitui- literário. Sagarana, Corpo de baile, Grande sertão:
ção desse contexto a que nos re- veredas, considerada uma das principais
ferimos. É um contexto que, em Momento em que artistas li- obras da literatura brasileira, Primeiras
gados à canção popular, ao ci- estórias (1962), Tutameia (1967). A edi-
linhas gerais, pode ser pensado
ção 178 da IHU On-Line, de 02-05-2006,
como o momento de popularização nema, ao teatro, à televisão dedicou ao autor a matéria de capa, sob o
título “Sertão é do tamanho do mundo”.
1 Antônio José Santana Martins – Tom
(incipiente naquele momento)
50 anos da obra de João Guimarães Rosa,
Zé (1936): é um compositor, cantor, arran- desenvolvem suas linguagens disponível para download em http://migre.
jador e jardineiro brasileiro. É considerado a partir do profícuo diálogo me/qQX8. De 25 de abril a 25-05-2006 o
uma das iguras mais originais da música po- IHU promoveu o Seminário Guimarães
pular brasileira, tendo participado ativamen- com Oswald5 e Mário de Andra- Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Veredas.
te do movimento musical conhecido como de6, com os romancistas de 30, Confira, ainda, a edição 275 da revista IHU
Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma On-Line, de 29-09-2008, intitulada Ma-
voz alternativa inluente no cenário musical com Drummond7, João Cabral8, chado de Assis e Guimarães Rosa: intér-
do Brasil. (Nota da IHU On-Line) pretes do Brasil, disponível em http://bit.
2 Rogério Duprat (1932-2006): 5 José Oswald de Sousa Andrade (1890- ly/mBZOCe. (Nota da IHU On-Line)
compositor e maestro brasileiro. Um dos 1954): escritor, ensaísta e dramaturgo brasi- 10 Clarice Lispector (1920-1977): escri-
maiores responsáveis pela ascensão da
Tropicália, personalizando o som do então
leiro. Foi um dos promotores da Semana de
Arte Moderna de 1922 em São Paulo, tornan-
tora nascida na Ucrânia. De família judaica,
emigrou para o Brasil quando tinha apenas
61
emergente movimento musical com arranjos do-se um dos grandes nomes do modernismo dois meses de idade. Começou a escrever
bem elaborados, criativos e perfeitamente literário brasileiro. Foi considerado pela crí- logo que aprendeu a ler, na cidade de Reci-
antenados com as tendências internacionais tica como o elemento mais rebelde do grupo. fe. Em 1944 publicou seu primeiro roman-
da época. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) ce, Perto do coração selvagem. A literatura
3 Rogério Duarte Guimarães (Ubaíra, 6 Mário Raul de Moraes Andrade (1893- brasileira era nesta altura dominada por
10 de abril de 1939): Intelectual multimédia 1945): poeta, escritor, crítico literário, musi- uma tendência essencialmente regionalis-
baiano, Rogério Duarte é artista gráico, mú- cólogo, folclorista, ensaísta brasileiro. Ele foi ta, com personagens contando a difícil re-
sico, compositor, poeta, tradutor e professor. um dos pioneiros da poesia moderna brasi- alidade social do país na época. Lispector
Nos anos 60 mudou-se para o Rio de Janeiro, leira com a publicação de seu livro Pauliceia surpreendeu a crítica com seu romance,
onde trabalhou como diretor de arte da UNE e Desvairada em 1922. Andrade exerceu uma quer pela problemática de caráter existen-
da Editora Vozes. Foi o autor de vários carta- grande inluência na literatura moderna bra- cial, completamente inovadora, quer pelo
zes para ilmes de seu amigo Glauber Rocha, sileira e, como ensaísta e estudioso – foi um estilo solto elíptico, e fragmentário, remi-
como Deus e o diabo na terra do sol (símbo- pioneiro do campo da etnomusicologia – sua niscente de James Joyce e Virginia Woolf,
lo do cinema nacional), Terra em transe e A inluência transcendeu as fronteiras do Bra- ainda mais revolucionário. Seu romance
idade da terra. Também criou, para este úl- sil. (Nota da IHU On-Line) mais famoso embora menos característico
timo, a trilha sonora. Entre os vários artistas 7 Carlos Drummond de Andrade (1902- quer temática quer estilisticamente, é A
com os quais colaborou, contam-se Gilberto 1987): poeta brasileiro, nascido em Minas hora da estrela, o último publicado antes
Gil, Caetano Veloso, João Gilberto, Jorge Ben Gerais. Além de poesia, produziu livros in- de sua morte. Este livro conta a vida de Ma-
e Gal Costa. Considerado um dos mentores fantis, contos e crônicas. Conira a edição 232 cabéa, uma nordestina de Alagoas que vai
intelectuais do movimento tropicalista, Rogé- da revista IHU On-Line, de 20-08-2007, morar no Rio de Janeiro, em uma pensão,
rio foi também um dos primeiros a ser preso intitulada Carlos Drummond de Andrade: o tendo sua vida descrita por um escritor fic-
e a denunciar publicamente a tortura no regi- poeta e escritor que detinha o sentimento do tício chamado Rodrigo S.M. Sobre a autora,
me militar. Preso juntamente com seu irmão mundo, disponível em http://bit.ly/1beJjIJ. confira a edição 228 da IHU On-Line, de
Ronaldo Duarte, o caso mobilizou artistas e (Nota da IHU On-Line) 16-07-2008, intitulada Clarice Lispector.
mereceu ampla divulgação no jornal carioca 8 João Cabral de Melo Neto (1920-1999): Uma pomba na busca eterna pelo ninho,
Correio da Manhã, que publicou uma carta poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poéti- disponível para download em http://migre.
coletiva pedindo a libertação dos “Irmãos ca, caracterizada pelo rigor estético, com poe- me/qQHT. (Nota da IHU On-Line)
Duarte”. (Nota da IHU On-Line) mas avessos a confessionalismos e marcados 11 Tropicalismo, Movimento tropica-
4 Os Mutantes: banda psicodélica brasilei- pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma lista ou Tropicália: movimento cultural
ra formada em 1966, em São Paulo, por Rita nova forma de fazer poesia no Brasil. Mem- brasileiro que surgiu sob a inluência das
Lee (vocais), Sérgio Dias (guitarra, vocais) e bro da Academia Pernambucana de Letras e correntes artísticas de vanguarda e da cultura
Arnaldo Baptista (baixo, teclado, vocais). De- da Academia Brasileira de Letras, foi agra- pop nacional e estrangeira (como o pop-rock
pois de quase trinta anos ausentes dos palcos, ciado com vários prêmios literários. Conira e o concretismo) misturou manifestações
o grupo retorna em 2006 com sua formação a edição 310 da revista IHU On-Line, de tradicionais da cultura brasileira a inovações
clássica, exceção feita a Rita Lee, que não 05-10-2009, intitulada A secura do sertão estéticas radicais. Tinha objetivos comporta-
aceitou voltar ao grupo. A cantora Zélia Dun- nos versos de João Cabral de Melo Neto, mentais, que encontraram eco em boa parte
can chegou a integrar a banda nesse período. disponível para download em http://bit. da sociedade, sob o regime militar, no inal da
(Nota da IHU On-Line) ly/1P9KBqL. (Nota da IHU On-Line) década de 1960. O movimento manifestou-se

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

programaticamente a aposta na IHU On-Line – Que história do contorno étnico-social que valoriza
interseção entre as tradições Brasil é contada pelas letras das a diferença em detrimento do pro-
arcaicas e a modernidade indus- canções ao longo dos cinquenta jeto nacional que buscava alguma
trial na cultura brasileira, este anos de carreira de Caetano e forma de unidade fundamentada
aspecto estará presente, em ou- Gil? Quais são as passagens mais na diversidade.
tra medida, nas diversas produ- marcantes da narrativa construí-
Caetano e Gil são autores de pro-
ções não tropicalistas do período. da pelos artistas?
jetos de interpretação do Brasil,
Nesse sentido, talvez o aspecto
Alexandre Faria – O fato de es- que estão explícitos em canções-
que melhor tenha garantido a no-
tarem atuando sempre na tensão -manifesto como “Tropicália” (Ve-
toriedade de Caetano e Gil nes-
entre as demandas comerciais e os loso) e “Geleia Geral” (Gil e Tor-
se panorama tão rico tenha sido
anseios de um projeto estético e quato Neto), ou em “Haiti” (da
a habilidade que ambos tiveram
político, pode-se dizer que os ar- dupla), que justamente por esse
para entrar e sair das estruturas.
tistas (e nesse caso não só Caetano aspecto, apesar de constituir-se
A Bossa Nova, o CPC/UNE12, a Jo-
e Gil, mas todos os ligados a essa pela linguagem do RAP, difere do
vem Guarda/Ieieiê13, forças que
geração que tiveram e têm um pa- RAP típico, do que chamei “voz
se polarizavam naquela segun-
pel preponderante junto ao públi- da comunidade”, por representar
da metade dos anos 1960, foram
co e ao mercado) constituem a si o preto/pobre como o outro e não
todas visitadas pelos parceiros
mesmos como personagens. Com- como o eu. Quando o refrão airma
baianos, que, no entanto, não se
positores de canções, parceiros de e nega que o Haiti é/não é aqui (ci-
comprometeram com nenhuma
outros músicos ainados com seus tando outra canção de Caetano “o
delas. Da mesma maneira que, ao
projetos, e capazes de circular em Havaí que seja aqui”), este “aqui”
longo da carreira, não se negaram
refere-se à nação brasileira. O eu
às demandas do mercado fono-
que surge nas canções de Caetano
gráico e cultural nem somente se
e Gil, nas canções que manifestam
renderam a ele.
esse projeto político, coloca-se
principalmente na música (cujos maiores
representantes foram Gilberto Gil, Torquato
(Caetano e Gil) como o cantor (crítico, é claro) do
Brasil.
Neto, Os Mutantes e Tom Zé); manifestações
artísticas diversas, como as artes plásticas
Tornam-se Enim, Caetano e Gil criaram e
62 (destaque para a igura de Hélio Oiticica), o
cinema (o movimento sofreu inluências e in-
herdeiros dos representam personagens que são
luenciou o Cinema novo de Glauber Rocha) e leitores do Brasil, como tantos ou-
o teatro brasileiro (sobretudo nas peças anár- modernistas tros de sua geração. Isso só foi pos-
quicas de José Celso Martinez Corrêa). Um
dos maiores exemplos do movimento tropi- da primeira sível graças ao legado modernista
de que são herdeiros diretos. O que
calista foi uma das canções de Caetano Velo-
so, denominada exatamente de “Tropicália”. metade do se coloca hoje em dia é se isso ain-
Leia a edição 411, intitulada Tropicalismo. O da é possível para um artista.
desejo de uma modernidade amorosa para o século XX
Brasil, disponível em http://bit.ly/ihuon411.
(Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – De que modo o
12 Centro Popular de Cultura (CPC): foi diversas estruturas da indústria fo- senhor avalia as letras das can-
uma organização associada à União Nacional
de Estudantes (UNE), criado em 1961, no Rio nográica, do mercado, do mains- ções compostas por Gil e Caeta-
de Janeiro. Foi extinto pelo Golpe de Estado tream, tornam-se personagens que no durante o período ditatorial
no Brasil em 1964. Um grupo de intelectuais interpretam a si mesmos enquanto no Brasil, em que os artistas
de esquerda, com o objetivo de criar e divul-
gar uma “arte popular revolucionária”, reu- artistas, portadores de uma voz se posicionavam politicamen-
niu artistas de diversas áreas, como teatro, privilegiada que pode ser difundi- te contra esse sistema e eram
música, cinema, literatura e artes plásticas, da como leitura e interpretação do constantemente vigiados pela
para defender o caráter coletivo e didático da
obra de arte, bem como o engajamento políti-
Brasil. censura?
co do artista. (Nota da IHU On-Line) Alexandre Faria – Caetano e Gil
Também nesse sentido, tornam-
13 Jovem Guarda: movimento cultural
brasileiro surgido em meados da década de -se herdeiros dos modernistas da praticamente não izeram a can-
1960, que mesclava música, comportamento primeira metade do século XX, mo- ção de protesto típica dos anos
e moda. Surgida em agosto de 1965, a partir mento em que o autor e o intelec- 60/70. É claro que haverá uma ou
de um programa televisivo exibido pela TV
Record, em São Paulo, apresentado pelo can- tual colocam sua obra em função outra exceção, das quais me lem-
tor e compositor Roberto Carlos, juntamente da ideologia nacional. São artistas bro agora de “Roda” (Gil e João
com o também cantor e compositor Erasmo diametralmente diferentes dos Augusto). Mas as canções que en-
Carlos e da cantora Wanderléa, a Jovem
Guarda deu origem a toda uma nova lingua-
que, no BRock anos 80, embalados volvem o projeto tropicalista não
gem musical e comportamental no Brasil. Sua pela onda Punk, escapam pelo do it são absolutamente canções de
alegria e descontração transformaram-na em yourself; ou dos que, como no RAP, protesto, embora tenham um es-
um dos maiores fenômenos nacionais do sé-
culo XX. Sua principal inluência era o rock
a partir dos anos 90, começaram a pírito de contestação, no plano
and roll do inal da década de 1950 e início representar “a voz da comunida- mais amplo, dos valores e com-
dos 1960. (Nota da IHU On-Line) de”, num movimento de evidente portamentos da época. Não há, no

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DE CAPA IHU EM REVISTA

entanto, uma apreensão coletiva, mento militar. Lida longe do calor da canção. Por isso, falar de uma
a ideia de povo, mas a reairmação da hora, a canção de Vandré é uma poesia, isoladamente, deixaria a
de um individualismo em liberda- convocação para um alinhamento à desejar em se tratando da leitura
de, o que é, até hoje, potente esquerda. de suas canções. Mas consideran-
e necessário frente às ondas de do a letra que fazem, é tentador,
O tempo deixa claro que a alter-
conservadorismo que avançam no para o crítico – e muitos o fazem
nativa tropicalista foi muito mais
Brasil.
eiciente na articulação entre po- – deslocá-los para o lugar do poe-
Quando a personagem da canção lítica e estética, na compreensão ta. Não que seja mais importante,
“Alegria, alegria” (Caetano) diz ou melhor, ser poeta do que letris-
“Eu vou... sem livros e sem fuzil”, ta. São trabalhos diferentes. Mas
demarca exatamente uma posição o trato que Caetano e Gil dão à
de quem não se alinha nem aos letra demonstra, quase sempre,
militares no poder (fuzil) nem ao
CPC/UNE (livros). Outros gestos, Caetano e uma habilidade que ultrapassa, e
às vezes iguala-se, a de letristas
demarcados na canção, como “eu
tomo uma Coca-Cola” são arre-
Gil criaram e que são unanimemente considera-
dos ótimos.
dios ao projeto anti-imperialista representam
de esquerda. Caetano Veloso fará Isso é um diferencial da dupla
personagens
que são leitores
uma canção de protesto mais tí- que talvez só encontre equiva-
pica muito tardiamente, nos anos lência em alguns outros nomes,
1980, que é “Podres poderes”. Há todos mais ou menos da mesma
que se frisar que Gil e Caetano, do Brasil geração, dentre os quais é obri-
como eu disse na questão anterior, gatório citar Chico Buarque15.
nunca deixaram de dialogar com Outros letristas à altura desses
as estratégias e as convenções
nomes destacam-se como apenas
composicionais da época. Há, por profunda das contradições que ain-
da assombram a sociedade brasi- letristas, mas não são intérpre-
exemplo, uma referência a Mari-
leira. A compreensão do Brasil por tes da própria canção, e aí temos
ghella14, num grito dado por Gil,
na gravação feita por ambos da esse viés torna claro por que ainda um time muito maior. Não vou me
canção “Alfômega” (Gil), do Disco hoje a classe média/alta ocupa a lembrar de todos os nomes agora, 63
Branco (1969) de Veloso. Mas isso Avenida Paulista para pedir golpe, mas são gênios como Aldir Blanc16,
ica tão subliminar que quase nun- conclamar a volta dos militares
15 Chico Buarque [Francisco Buarque
ca é mencionado. e manifestar sem “silêncio sorri- de Hollanda] (1944): músico, compositor,
dente” o ódio aos pretos, pobres, teatrólogo e escritor carioca. Ganhou fama
Por outro lado, a maneira como nordestinos etc. É signiicativo por sua música, que comenta o estado social,
os valores simbólicos são apropria- como, nesse momento, a igura de econômico e cultural do Brasil. Abordou a
dos pela cultura ao longo do tem- ditadura e, fugindo dela, criou um pseudôni-
Marighella reapareça no cancionei- mo para continuar compondo e não ser bar-
po pode relativizar essas leituras. ro de Caetano (“Um comunista”, rado pela censura: Julinho da Adelaide com
Quando “Alegria, alegria” se tor- Abraçaço). Nessa canção ica cla- o qual compôs apenas três músicas. Sobre a
nou tema de abertura de uma mi- ro o elogio da posição dissidente canção “Cálice”, além do título da composi-
nissérie da Globo sobre os anos de ção ter som idêntico à expressão cale-se, seus
do líder comunista em relação ao versos poderiam ser confundidos com uma
chumbo (“Anos Rebeldes”, de Gil- projeto autoritário e totalitarista divagação religiosa, tal como no trecho “Pai,
berto Braga), foi equivocadamen- do partido. afasta de mim esse cálice, De vinho tinto de
te assimilada como uma canção sangue, Como beber dessa bebida amarga,
Tragar a dor, engolir a labuta, Mesmo calada
de protesto da época. Da mesma a boca, resta o peito, Silêncio na cidade não se
IHU On-Line – De que modo o
forma, nada me assustará se “Pra escuta”. Gilberto Gil e Chico Buarque foram
senhor avalia a poesia nas can-
não dizer que não falei das lores” proibidos pela censura de cantar a canção em
ções de Gil e Caetano? Quais ca- parceria no festival Phono 73, que aconteceu
(Vandré) venha a ser usada numa
racterísticas você destacaria como de 11 a 13 de maio de 1973, no Anhembi, em
campanha publicitária do alista- São Paulo. A dupla resolveu peitar a censura
as mais marcantes no trabalho dos
ao vivo, mas teve os microfones desligados.
14 Carlos Marighella (1911-1969): político artistas? Por quê? (Nota da IHU On-Line)
e guerrilheiro brasileiro, um dos principais 16 Aldir Blanc Mendes (1946): compo-
organizadores da luta armada para a im- Alexandre Faria – As melhores sitor e escritor brasileiro. Notabilizou-se
plantação do Comunismo no Brasil e contra escolas do estudo da canção desa- como letrista a partir de suas parcerias com
o regime militar a partir de 1964. Preso no conselham a ler a letra dissociada João Bosco, criando músicas como “Bala
Presídio Especial de São Paulo, Marighella com Bala” (sucesso na voz de Elis Regina),
foi torturado pela polícia de Filinto Müller.
dos demais elementos constituin- “O Mestre-Sala dos Mares”, “De Frente Pro
Na noite de 04-11-1969 Marighella foi surpre- tes do todo, a melodia, o ritmo, a Crime” e “Caça à Raposa”. Uma de suas can-
endido por uma emboscada na alameda Casa harmonia, o desempenho vocal e ções mais conhecidas, em parceria com João
Branca, na capital paulista. Foi morto a tiros (nas apresentações ao vivo) corpo- Bosco, é “O Bêbado e a Equilibrista”, que se
por agentes do DOPS, em uma ação coorde- tornou um hino contra a ditadura militar,
nada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. ral do artista. Todos esses elemen- também tendo sido gravada por Elis Regina.
(Nota da IHU On-Line) tos são signiicativos para a leitura (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Paulo Cesar Pinheiro17, Fausto prova de uma pesquisa detalhada amplos, sem isso conter um as-
Nilo18, Fernando Brant19 etc. sobre a melhor maneira de cantar pecto absolutamente idiossincrá-
uma letra ou de pôr letra numa tico. As únicas menções que já
IHU On-Line – De que forma le- canção. Ao mesmo tempo, o ecle- podem ser historicamente garan-
tra e música se relacionam nas tismo é marca do que poderíamos tidas são as canções-manifesto
canções de Caetano e Gil? Que chamar de registro poético-musical do movimento tropicalista, “Tro-
papéis desempenham na constru- dos artistas. Usamos aqui o termo picália” e “Geleia geral”; as que
ção simbólica transmitida nas mú- registro no mesmo sentido em que os lançaram no festival de 1967,
sicas? O que representou para o se pode falar em registro linguísti- “Alegria, alegria” e “Domingo no
cenário cultural brasileiro as ex- co, diferentes níveis de acessibili- parque”; e a antológica gravação
dade a um código. É assim que suas ao vivo de “Proibido proibir”, no
perimentações estéticas?
canções variam desde elaborações Festival Internacional da Canção
Alexandre Faria- É evidente o bastante acessíveis (e isso não quer de 1968, no Teatro Universida-
trabalho da articulação entre letra dizer simples ou fáceis ou pobres, de Católica – TUCA, da Pontifícia
e música na produção de Caetano como alguns costumam entender), Universidade Católica – PUC-SP,
e Gil. A variedade de gêneros mu- em diálogo com profundas tradi- principalmente pelo conteúdo do
sicais em que ambos investem é a ções populares brasileiras, como o discurso furioso de Caetano. Com
samba e o baião, até elaborações exceção desse título, qualquer ci-
17 Paulo César Francisco Pinheiro tação de canções parecerá pessoal
(1949): compositor e poeta brasileiro. Tem
mais voluntariamente hibridizadas
mais de duas mil canções, das quais mais de (porque aquelas já são híbridas e aleatória. Eu mesmo teria diver-
mil gravadas, compostas com cerca de 120 em sua origem), em momentos de sas playlists de ambos e dos dois
parceiros, uma grande variedade que inclui
maior ou menor experimentação. juntos para compartilhar.
músicos como João Nogueira, João de Aqui-
no, Francis Hime, Dori Caymmi, Raphael
É claro que o custo de acessibi- Cumpre ressaltar, ainda, que
Rabello, Antônio Carlos Jobim, Ivan Lins,
Edu Lobo, Mauro Duarte, Guinga, Toquinho, lidade das canções mais experi- embora estejam comemorando os
Eduardo Gudin, Luciana Rabello, Mauricio 50 anos de carreira juntos (como
Carrilho, Cristovão Bastos, Sergio Santos,
mentais é alto e pode representar
Moacyr Luz, Danilo Caymmi, Baden Powell “fracassos” comerciais, como foi o o izeram pelos 25 anos, em 1993,
e Maria Bethânia. (Nota da IHU On-Line) caso do disco Araçá Azul, de Velo- com Tropicália 2) e sejam os dois
64 18 Fausto Nilo Costa Júnior (1944): com-
positor, arquiteto e poeta brasileiro. Deixou a so. Outro aspecto é que o diálogo nomes mais lembrados quando se
cidade natal aos onze anos de idade e foi para com musicalidades populares mui- fala de Tropicália, estamos rele-
a capital, Fortaleza, onde viria a se formar tas vezes se estabelece através de tindo sobre dois artistas bastante
em Arquitetura, na Faculdade de Arquitetu- diferentes entre si. Compartilham
ra da Universidade Federal do Ceará. Junto letras que se tornam profundamen-
com Antonio Carlos Aires Medina. Em 1971 te relexivas sobre aquele gênero uma amizade pública mais do que
mudou-se para Brasília e depois São Paulo e opções artísticas e estéticas que
Rio de Janeiro. Gravou o primeiro grande su-
que está sendo executado. Aconte-
cesso, “Fim do mundo”, em 1972. É conside- ce, por exemplo, em “Desde que o cada um evidencia em sua obra. O
rado até hoje, ao lado de Paulo César Pinhei- samba é samba”, “Miami macule- sintoma disso é que só em alguns
ro, Ivan Lins, Vítor Martins, Caetano Veloso, momentos muito pontuais assina-
Gilberto Gil, Tom Jobim, Roberto & Erasmo lê”, ou “Funk melódico”.
Carlos Vinícius de Moraes, Chico Buarque e ram parcerias. Como a entrevista
Noel Rosa, um dos compositores com maior é feita sobre os dois juntos, talvez
número de composições, cerca de 400 suces- IHU On-Line – Que canções
fosse o caso de lembrar aqui suas
sos. (Nota da IHU On-Line) dos dois artistas você destacaria
19 Fernando Rocha Brant, conhecido parcerias, que não deve chegar no
como as mais representativas na
como Fernando Brant (1946-2015): foi com- total a 20 títulos, dos quais eu des-
positor brasileiro. Na década de 1960, na ci- trajetória dos 50 anos de carreira
dade de Belo Horizonte participou do movi-
taco “Panis et circenses”, “Divino
de ambos? Por quê?
mento musical Clube da Esquina e durante a maravilhoso”, “Batmacumba”,
sua carreira foi parceiro de Milton Nascimen- Alexandre Faria – É pratica- “Cinema novo”, “Haiti”, além da
to, Lô Borges, Wagner Tiso, Márcio Borges,
Nivaldo Ornelas, Toninho Horta e Paulo Bra- mente impossível eleger algumas recentíssima “As Camélias do Qui-
ga. (Nota da IHU On-Line) canções, de dois repertórios tão lombo do Leblon”.■

LEIA MAIS...
— A palavra escrita, falada e cantada como realizações da arte literária. Entrevista com
Alexandre Faria, publicada na revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011, disponível em
http://bit.ly/1OcZVnW.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Os libertadores da criação
artística brasileira
Para Miguel Jost Ramos, Caetano e Gil inauguram uma forma de fazer
música no Brasil. Eles misturam o pop com o erudito, o novo com o
tradicional e a comunicação de massa com a contracultura
Por Leslie Chaves e João Vitor Santos

I magine um liquidiicador que re-


cebe doses de arcaico e moderno,
de popular e erudito, de elemen-
to pop e elemento folclórico, da comu-
uma aproximação com colaboradores
jovens que trouxeram para o seu traba-
lho uma estética inovadora e original”,
destaca. Gil, por sua vez, é entendido
nicação de massa e da contracultura, pelo professor como um verdadeiro
tudo ao mesmo tempo. O resultado multiculturalista brasileiro que vai do
dessa mistura é uma “geleia geral” que rock, reggae, funk, ao disco e ao soul
mixa elementos culturais diversos. Para norte-americano, sem esquecer marcas
o professor do departamento de Letras bem nacionais como o samba. “Gil tem
da Pontifícia Universidade Católica do um aspecto do seu trabalho que o co-
Rio de Janeiro – PUC-Rio Miguel Jost loca numa relação especial com outros
Ramos, essa é a receita do movimento instrumentistas e compositores. Sua
65
da Tropicália, que tem Gilberto Gil e forma de entender e conceber músi-
Caetano Veloso como seus expoentes. ca tem uma originalidade muito forte,
“Como consequência, inluenciaram marca de sua assinatura, e, ao mesmo
muitas gerações posteriores de artistas tempo, o coloca como um virtuoso da
brasileiros de diferentes linguagens a música brasileira”, completa.
ampliarem suas possibilidades de atu- Miguel Jost Ramos é formado em
ação”, destaca. Assim, Ramos entende Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre
que os parceiros abandonam a ideia de e doutor em Estudos de Literatura por
dicotomia cultural, estética e política esta mesma instituição. É pesquisador
e passam a ver “seus aspectos de com- musical, atuando junto ao Núcleo de
plementaridade e tensão”. O resulta- Estudos em Literatura e Música – Nelim,
do é que “Caetano e Gil libertaram a da PUC-Rio. Tem experiência nas áreas
criação artística brasileira de amar- de Literatura e Sociologia, com ênfase
ras históricas como, por exemplo, o em Cultura Brasileira, Música Popular
nacionalismo fechado e tacanho que e Produção Cultural Contemporânea.
acreditava numa essência da música Desde 2013, atua como parecerista em
popular brasileira a ser preservada e editais para teatro e música na Secre-
protegida”. taria de Cultura do município do Rio de
Na entrevista a seguir, concedida por Janeiro e na Secretaria de Cultura do
e-mail à IHU On-Line, Ramos ainda Espírito Santo. Atualmente é pós-dou-
destaca o caráter de complementari- torando CAPES/PNPD no Departamento
de Letras da PUC-Rio, onde atua como
dade das carreiras, inluenciando-se
professor e coordena o curso de ex-
mutuamente. “Caetano sempre se ca-
tensão e pós-graduação em Literatura,
racterizou por ser um compositor e in-
Arte e Pensamento Contemporâneo.
térprete atento ao contemporâneo. Em
muitos momentos de sua obra vemos Conira a entrevista.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

inúmeras vezes sobre isso em sua


obra. O fato é que estamos falando
de um período da Cidade da Bahia
muito rico, que teve, não ao mes-
mo tempo, a presença de nomes
A carreira de ambos é marca-
da por uma pluralidade que
como Glauber Rocha4, Raul Seixas5,

nos diiculta apontar uma ca-


Maria Bethânia, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé6,

racterística ou mesmo delimi-


Waly Salomão7, Rogério Duarte8,

e televisão e diversos ensaios sobre urbanis-


mo e história da Bahia e do Brasil. (Nota da
tar um espaço de atuação IHU On-Line)
4 Glauber de Andrade Rocha (1939-
1981): foi um cineasta brasileiro, ator e escri-
IHU On-Line – Como se deu a a educação brasileira, e com uma tor. Começou a realizar ilmagens (seu ilme
direção às perspectivas contempo- Pátio, de 1959), ao mesmo tempo em que
aproximação artística entre Gil
ingressou na Faculdade de Direito da Bahia,
e Caetano e como entender essa râneas e de vanguarda. Fortaleceu onde atualmente é a Universidade Federal da
aliança que perdura até os dias de também as faculdades das áre- Bahia, entre 1959 a 1961, e logo abandonou
hoje? as das ciências humanas e sociais para iniciar uma breve carreira jornalística,
em que o foco era sempre sua paixão pelo
com investimentos estruturais e no cinema. Ele se propunha a fazer uma arte
Miguel Jost Ramos – A cidade corpo docente, e criou o primeiro engajada ao pensamento e pregava uma nova
de Salvador na década de 1960 centro de estudos afro-orientais estética, uma revisão crítica da realidade. Era
(Cidade da Bahia à época) vivia da academia brasileira, sob a ba- visto pela ditadura militar que se instalou no
uma efervescência cultural muito país, em 1964, como um elemento subversi-
tuta de Agostinho Santos2, igura vo. (Nota da IHU On-Line)
especíica na história brasileira. paradigmática da UFBA naquele 5 Raul Seixas (1945-1989): cantor, compo-
Esse fato decorria, a meu ver, prin- momento. sitor brasileiro, pioneiro do rock. É conside-
cipalmente da experiência radical rado o pai do rock brasileiro. Em 1973, lançou
São inúmeros os relatos, de quem Kirg-Há, Bandolo! (Nota da IHU On-Line)
proposta pela Universidade Federal 6 Antônio José Santana Martins – Tom
Zé (1936): é um compositor, cantor, arran-
da Bahia – UFBA sob a direção do viveu em Salvador nestes anos, de
66 reitor Edgar Santos1 a partir do im que essa experiência de uma ‘nova’ jador e jardineiro brasileiro. É considerado
universidade criou na cidade um uma das iguras mais originais da música po-
dos anos 50. Médico e político de pular brasileira, tendo participado ativamen-
tendências conservadoras, Edgar ambiente que fomentava e incen-
te do movimento musical conhecido como
Santos aplicou na Universidade da tivava a criação artística, o deba- Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma
te, o pensamento crítico, e que foi voz alternativa inluente no cenário musical
Bahia uma proposta, nunca reedi- do Brasil. (Nota da IHU On-Line)
decisivo para toda uma geração na
tada em mesma escala na univer- 7 Waly Dias Salomão (1943-2003): poeta
brasileiro. Era ilho de sírio com uma serta-
qual estavam inseridos também
sidade brasileira, de investimentos
Caetano e Gil. Quem melhor cha- neja, formou-se em Direito pela Universidade
amplos e decisivos nas escolas de Federal da Bahia em 1967, mas nunca exer-
ma atenção para essa experiência
linguagens artísticas como dan- ceu a proissão. Cursou a Escola de Teatro da
e o impacto dela é o antropólogo
ça, teatro e música. Como reitor, mesma universidade (1963-1964) e estudou
Antonio Risério3, que já escreveu inglês na Columbia University, Nova York
convidou professores e artistas do
(1974-1975). Na década de 1960, participou
Brasil e do exterior para gerir es- 2 Agostinho dos Santos (1932-1973): do movimento tropicalista. Foi também uma
ses investimentos, e lhes concedeu cantor e compositor brasileiro. Seu maior igura importante da contracultura no Brasil,
sucesso foi cantando músicas da peça Orfeu nos anos 1970. Atuou em diversas áreas da
da Conceição e depois do ilme Orfeu Negro,
total liberdade para criação de
cultura brasileira. Foi letrista de canções de
programas ousados, inéditos para como Manhã de Carnaval e Felicidade. Par- sucesso, como “Vapor Barato”, em parceria
ticipou da apresentação de bossa nova no com Jards Macalé. (Nota da IHU On-Line)
1 Edgard do Rêgo Santos (1894-1962): Carnegie Hall, em Nova Iorque (1962). Fale- 8 Rogério Duarte Guimarães (1939): in-
médico e político brasileiro. Formou-se na ceu, em 1973, em trágico desastre aéreo nas telectual multimédia baiano, Rogério Duarte
Faculdade de Medicina em 1917, clinicou na imediações do Aeroporto de Orly em Paris, é artista gráico, músico, compositor, poeta,
cidade de São Paulo, e em 1922 volta para a no Voo Varig 820. (Nota da IHU On-Line) tradutor e professor. Nos anos 60 mudou-se
Bahia. Em seguida, segue para a Europa, em 3 Antonio Risério (1953): antropólogo, para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como
viagem de estudos e trabalho em hospitais poeta, ensaísta e historiador brasileiro. Em diretor de arte da UNE e da Editora Vozes.
da França e Alemanha. De volta ao Brasil 1968, fez política estudantil, mergulhou na Foi o autor de vários cartazes para ilmes
em 1924, ingressa por concurso no quadro contracultura, sendo preso como subversivo de seu amigo Glauber Rocha, como Deus e
de docentes da sua Faculdade de Medicina, pela ditadura militar aos dezesseis anos de o diabo na terra do sol (símbolo do cinema
como lente da recém-criada cátedra de Pa- idade. Em 1995, defende tese de mestrado em nacional), Terra em transe e A idade da ter-
tologia Cirúrgica. Neste concurso apresenta Sociologia com especialização em Antropolo- ra. Também criou, para este último, a trilha
duas teses: “Câncer de bexiga” e “Intervenção gia na Universidade Federal da Bahia. Inte- sonora. Entre os vários artistas com os quais
cirúrgica nos domínios do simpático”. Assu- grou grupos de trabalho que implantaram a colaborou, contam-se Gilberto Gil, Caetano
me a direção do Hospital do Pronto-Socorro televisão educativa, as fundações Gregório de Veloso, João Gilberto, Jorge Ben e Gal Costa.
de Salvador, acumulando com a direção da Matos e Ondazul, e o Hospital Sarah Kubits- Considerado um dos mentores intelectuais do
Faculdade de Medicina da Bahia. Após a chek, na Bahia. Elaborou o projeto geral para movimento tropicalista, Rogério foi também
extinção do Estado Novo, esteve à frente da implantação do Museu da Língua Portuguesa um dos primeiros a ser preso e a denunciar
uniicação das faculdades baianas na Univer- em São Paulo, e do Cais do Sertão Luiz Gon- publicamente a tortura no regime militar.
sidade da Bahia. (Nota da IHU On-Line) zaga, no Recife. Tem feito roteiros de cinema Preso juntamente com seu irmão Ronaldo

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Carlos Nelson Coutinho9, entre cos, harmônicos, melódicos, assim Agrippino de Paula12, e os irmãos
muitos outros que protagonizaram como de procedimentos e suportes Haroldo e Augusto de Campos13
uma cena cultural e intelectual vi- da cultura pop, da pop art, da mú- também são um dado fundamen-
talizada. Esse é o ambiente urbano sica erudita de vanguarda, da poe- tal para entender como a música
e cultural que aproximou Gil e Ca- popular expandia o seu campo de
sia concreta, da publicidade, entre
etano e lhes proporcionou a chance atuação e de interesses naque-
de fazerem coisas juntos no teatro outros meios do qual o tropicalismo
le momento. Gil e Caetano, sem
e na música. se apropriou, revolucionou a forma dúvida alguma, foram forças cen-
trais desse processo, e esse é um
No sentido prático e biográico,
é importante constatar que Gil já primeiro aspecto a destacar que
tinha uma breve carreira de músi- caracteriza de maneira singular o
co nos programas de auditório de surgimento dos dois artistas.
rádios e televisões da Bahia, e que
Caetano, ainda em Santo Amaro, já
Caetano e Gil Após o exílio dos dois em Londres
entre 1969 e 1971-2, imposto pela
sabia quem era e prestava relativa abriram uma ditadura civil militar brasileira, e a
atenção em Gilberto Gil. Caetano volta ao Brasil já sem o compromis-
citou muitas vezes em entrevistas possibilidade so com o movimento tropicalista,
e depoimentos o fato de que sua
mãe lhe gritava da frente da tele-
nova de fazer suas carreiras percorreram cami-
nhos diversos. Assim, compõem um
visão: “Caetano, venha ver aquele música no Brasil quadro muito complexo para apon-
preto que você gosta tocando vio- tar uma característica ou outra que
lão na televisão”. Assim, ao chegar seja a mais marcante.
em Salvador, vindo de Santo Ama- de se pensar e fazer música no Bra-
ro, ele já reconhecia o lugar de Gil sil com implicações presentes até IHU On-Line – Qual a importân-
como músico popular.
os dias de hoje. cia de Caetano e Gil para a for-
mação da cultura brasileira na se-
IHU On-Line – Quais caracte- O trânsito com artistas de outras
gunda metade do século XX? Qual
rísticas você destacaria como as linguagens como Zé Celso Marti- é o principal aspecto que lhes dá
mais marcantes do trabalho de Gil nez Correa10, Hélio Oiticica11, José
e Caetano? Por quê?
notoriedade nesse contexto? 67
10 José Celso Martinez Corrêa, conheci- Miguel Jost Ramos – Caetano e
Miguel Jost Ramos – A carreira do como Zé Celso (1937): é uma das pessoas Gil abriram uma possibilidade nova
de ambos é marcada por uma plu- mais importantes ligadas ao teatro brasileiro.
Destacou-se como um dos principais direto- de fazer música no Brasil, e como
ralidade que nos diiculta apontar res, atores, dramaturgos e encenadores do consequência inluenciaram muitas
uma característica ou mesmo deli- Brasil. Seu trabalho, encarado às vezes como gerações posteriores de artistas
mitar um espaço de atuação para orgiástico e antropofágico, iniciou-se no im
da década de 1950, e se deiniu na década de
brasileiros de diferentes lingua-
estes dois artistas. Mas podemos gens a ampliarem suas possibilida-
1960 quando Zé Celso liderou a importan-
dizer que, num primeiro momento, te Teatro Oicina − grupo amador formado des de atuação. O fato de adotar
dentro do que consideramos ser o quando integrava a Faculdade de Direito da como dado positivo a coexistência
período do tropicalismo, Gil e Ca- Universidade de São Paulo. (Nota da IHU
On-Line) do arcaico e do moderno, do popu-
11 Hélio Oiticica (1937-1980): pintor, escul-
etano foram artíices de profundas lar e do erudito, do elemento pop e
transformações nos horizontes es- tor, artista plástico e performático de aspira- do elemento folclórico, da comuni-
téticos da canção popular produ- ções anarquistas. É considerado por muitos
um dos artistas mais revolucionários de seu cação de massa e da contracultura,
zida no Brasil. A incorporação de entre outras dicotomias que não
tempo e sua obra experimental e inovadora
uma série de novos elementos líri- é reconhecida internacionalmente. Em 1959, eram pensadas em suas obras como
fundou o Grupo Neoconcreto, ao lado de ar-
Duarte, o caso mobilizou artistas e mereceu tistas como Amilcar de Castro, Lygia Clark,
polos de oposição, mas sim em seus
ampla divulgação no jornal carioca Correio Lygia Pape e Franz Weissmann. Na década aspectos de complementaridade
da Manhã, que publicou uma carta coletiva de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé, que e tensão, Caetano e Gil liberta-
pedindo a libertação dos “Irmãos Duarte”. ele chamava de “antiarte por excelência” e
ram a criação artística brasileira
(Nota da IHU On-Line) uma pintura viva e ambulante. O Parangolé é
9 Carlos Nelson Coutinho: ilósofo brasi- uma espécie de capa (ou bandeira, estandar- de amarras históricas como, por
leiro, livre docente pela Universidade Federal te ou tenda) que só mostra plenamente seus
do Rio de Janeiro e docente nesta instituição. tons, cores, formas, texturas, graismos e tex- fazia parte da dimensão da sua obra. (Nota da
Organizou as obras Ler Gramsci, entender a tos (mensagens como “Incorporo a Revolta” e IHU On-Line)
realidade (Rio de Janeiro: Civilização Brasi- “Estou Possuido”), e os materiais com que é 12 José Agrippino de Paula (1937–2007):
leira, 2003) e Antonio Gramsci, Escritos po- executado (tecido, borracha, tinta, papel, vi- escritor brasileiro. Dentre os livros de sua
líticos (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, dro, cola, plástico, corda, palha) a partir dos autoria se destaca PanAmérica (1967), obra
2004). Traduziu para o português os Cader- movimentos de alguém que o vista. Por isso, é fundamental para o desenvolvimento do
nos do cárcere, lançados pela editora Civi- considerado uma escultura móvel. Em 1965, movimento da Tropicália. (Nota da IHU
lização Brasileira. É autor de, entre outros, foi expulso de uma mostra no Museu de Arte On-Line)
Marxismo e Política. A dualidade de poderes Moderna do Rio de Janeiro por levar ao even- 13 Augusto e Haroldo de Campos: po-
e outros ensaios (São Paulo: Cortez, 1996). to integrantes da Mangueira vestidos com pa- etas concretistas brasileiros. (Nota do IHU
(Nota da IHU On-Line) rangolés. A experiência dos morros cariocas On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

exemplo, o nacionalismo fechado estrangeiros interessados por suas IHU On-Line – Que elementos
e tacanho que acreditava numa es- obras. Se não desfrutaram do mes- você destacaria como mais rele-
sência da música popular brasileira mo impacto que o sucesso de artis- vantes na construção dos peris
a ser preservada e protegida. A ex- tas da Bossa Nova como João Gil- de artista e das obras de Caeta-
periência tropicalista de colocar no berto14 e Tom Jobim15 gerou fora do no e Gil? Quais mais contribuíram
mesmo liquidiicador, e criar uma Brasil, não deixam de ter uma car- para eles serem como são?
verdadeira miscelânea, ou melhor, reira internacional de destaque em
Miguel Jost Ramos – Caetano, ao
uma verdadeira geleia geral, em vendas, público e crítica. E, ainda,
longo de sua carreira, sempre se
que misturava e mixava os elemen- ambos criaram parcerias com ar-
caracterizou por ser um composi-
tos culturais mais diversos que con-
tor e intérprete atento ao contem-
viviam no Brasil, é uma marca dei-
porâneo. Em muitos momentos de
nitiva da história desse movimento
sua obra vemos uma aproximação
e, mais especiicamente, dos dois
com colaboradores jovens que
cantores e compositores.
Ao longo des- trouxeram para o seu trabalho uma
estética inovadora e original. Isso
IHU On-Line – Como vem se situ- tas décadas aconteceu em trabalhos dos anos

naram iguras
ando ao longo do tempo as obras
de Caetano e Gil no cenário cul-
ambos se tor- 70, 80, 90, e mesmo de 2000 para
cá. Sua veste ‘camaleônica’ é uma
tural brasileiro? E para além do marca muito forte e pode ser vista
Brasil? paradigmáticas de forma clara em discos que in-
Miguel Jost Ramos – Caetano e do nosso meio terviram no cenário cultural do seu
tempo de maneira contundente
Gil tem, desde 1967, um papel de

bém político
protagonismo no cenário cultural cultural e tam- como “Araçá Azul” (1973), “Estran-
brasileiro. Suas canções, seus dis- geiro” (1989) ou mesmo o recente
cos, shows, turnês possuem enor- “Cê” (2006), primeiro disco da tri-
me relevância e ampla divulgação logia completada por “Zii e Zie”
dos meios de comunicação, dos cir- tistas de fora do Brasil de grande (2009) e “Abraçaço” (2012).
cuitos da crítica, e costumam atin- projeção na música mundial. Vide, Gil tem um aspecto do seu traba-
gir um grande e iel público. Para por exemplo, a colaboração de Gil-
68 além disso, são constantemente berto Gil com nomes consagrados
lho que o coloca numa relação es-
pecial com outros instrumentistas
abordados e questionados a res- da música norte-americana como e compositores. Sua forma de en-
ponderem sobre os mais variados Stevie Wonder16 e Quincy Jones17. tender e conceber música tem uma
temas da política e da sociedade originalidade muito forte, marca
brasileira. Em todas as entrevis- 14 João Gilberto Prado Pereira de Oli-
veira: conhecido como João Gilberto, violo-
de sua assinatura, e, ao mesmo
tas que concedem, os dois artistas tempo, o coloca como um virtuoso
nista e cantor, é considerado um dos pais da
são chamados a comentar fatos bossa-nova brasileira, juntamente com Tom da música brasileira. Sua veia tro-
mais distintos da política nacional, Jobim. Nasceu em Juazeiro (BA), em 1931, picalista, permanente no interesse
como a corrupção de determinado mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1950.
Perfeccionista, apresenta-se com sucesso em por experiências da cultura pop
partido ou governo, sua posição na todo o mundo (Nota do IHU On-Line) como o rock, o reggae, o funk, a
política de drogas, ou do aborto, 15 Antonio Carlos Jobim (1927-1994.): disco e o soul norte-americano, se
ou da redução da maioridade pe- músico brasileiro. Foi pianista, composi-
tor, arranjador, cantor, violonista e um dos
expressa também no conhecimen-
nal, ou do direito ao casamento, to profundo da tradição da música
principais compositores da bossa-nova. Fez
entre tantos outros temas polêmi- carreira internacional. Sua composição “Ga- popular brasileira por via do sam-
cos para nossa sociedade. Ao longo rota de Ipanema”, composta em parceria com
Vinicius de Morais em 1962, chegou a igurar
ba, o samba de roda da Bahia e o
destas décadas ambos se tornaram baião. Gil é um multiculturalista
entre as dez mais executadas do mundo, ten-
iguras paradigmáticas do nosso do sido gravada pelo cantor estadunidense no sentido pleno do termo, e não
meio cultural e também político. Frank Sinatra, entre outros intérpretes. So- no contexto da armadilha político-
Seus posicionamentos a favor de bre o tema bossa-nova, conira a edição 272
da revista IHU On-Line, 08-09-2008, inti-
retórica que o termo criou dos
um candidato A ou B, ou a favor tulada Chega de saudade... Bossa nova, 50 anos 90 para cá. Seu interesse em
do posicionamento X ou Y dentro anos, disponível para download em http:// pesquisar, descobrir e processar
de um tema polêmico, costumam bit.ly/1jXeSh7. (Nota do IHU On-Line).
16 Stevie Wonder (1950): nome artístico
sonoridades de todos os lugares e
gerar acalorados debates em meios fontes possíveis é uma espécie de
de Stevland Hardaway Morris, compositor,
de comunicação, crítica e redes. cantor e ativista de causas humanitárias e
sociais estadunidense. Gravou mais de trinta te 50 anos na indústria do entretenimen-
Tanto Gil quanto Caetano tem um sucessos que alcançaram o top ten e ganhou to, o trabalho de Jones foi indicado para 79
relevante destaque internacional 25 Grammy Awards, o maior número já ga- Grammy Award, sendo premiado com 27
de suas carreiras. Seus shows em nho por um artista masculino. (Nota da IHU destes, e um Grammy Legends Award em
On-Line) 1991. Ele é mais conhecido por ajudar o ícone
17 Quincy Delight Jones Jr. (1933): em-
turnês internacionais têm, além da
cultural Michael Jackson a produzir o álbum
presença de brasileiros radicados presário, arranjador vocal e produtor musical Thriller, que viria a ser o álbum mais vendido
no exterior, um grande número de de trilhas sonoras norte-americano. Duran- de todos os tempos. (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

motor do seu trabalho nesses 50 plo, a partir de meados da déca- Sucesso20 e Cazuza21, nos anos 90
anos de carreira e música. da de 70, se aproximou muito do com Chico Science22 e Arnaldo An-
caldeirão musical da black music tunes23, e não cabeira aqui citar
IHU On-Line – Como se dá a in- internacional. Seus discos da fase todas suas inúmeras parceiras que
luência mútua entre as obras “Re” – “Refazenda” (1975), “Refa- reiicam essa vocação para o diálo-
dos dois? Em que aspectos é mais vela” (1977), “Realce” (1979) – são go musical e cultural.
perceptível? o retrato mais iel desse envolvi- Caetano até hoje também des-
mento e interesse. Gil também foi dobra sua carreira em parcerias di-
Miguel Jost Ramos – Como par-
ceiros desde o início de suas car- versas com artistas de sua geração
reiras, e estando sempre próximos e mais jovens. Desde seu primeiro
como interlocutores e amigos, Gil e disco com Gal24, passando por Chi-
Caetano construíram uma cumpli- co Buarque25, sua irmã Bethânia26,
cidade evidente entre seus traba- Caetano, ao lon- 20 Paralamas do Sucesso: é uma banda
de ska e rock, formada no município lumi-
lhos. Cumplicidade citada e expli-
citada em muitos depoimentos, e go de sua car- nense de Seropédica, no Estado do Rio de
que faz com que ainda hoje os dois Janeiro em 1982. Seus integrantes desde en-
saiam em uma longa turnê nacional reira, sempre tão são Herbert Vianna (guitarra e vocal), Bi
Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria). No
e internacional para comemoração
de 50 anos de carreira. Gil airmou
se caracterizou início a banda misturava rock com reggae,
posteriormente passaram a agregar instru-
muitas vezes que não saberia di- por ser um com- mentos de sopro e ritmos latinos. (Nota da
IHU On-Line)
zer se teria sido capaz de realizar
tudo que fez na música brasileira
positor e intér- 21 Cazuza (1958-1990): cantor e compositor
brasileiro que ganhou fama como vocalista e
se não houvesse Caetano por perto prete atento ao principal letrista da banda Barão Vermelho.
Sua parceria com Roberto Frejat foi critica-
e como parceiro. Caetano cita até
hoje que foi Gil quem fez ele per- contemporâneo mente aclamada. (Nota da IHU On-Line)
22 Francisco de Assis França – Chico
der o ‘medo’ da música e do violão Science (1966-1997): mais conhecido pela
como instrumento. alcunha de Chico Science, foi um cantor e
compositor brasileiro, um dos principais co-
Só esses dados já seriam fortes um artista voltado para a pesquisa laboradores do movimento manguebeat em
demais para entendermos a inlu- e conhecimento de tradições popu- meados da década de 1990. (Nota da IHU
On-Line)
69
ência recíproca das suas obras, lares e regionais do Brasil. Do seu 23 Arnaldo Augusto Nora Antunes Fi-
mas podemos ir além e chamar interesse pela Banda de Pífanos do lho – Arnaldo Antunes (1960): músico,
atenção também para discos que Caruaru18 no início de sua carreira poeta, compositor, ex-VJ e artista visual bra-
sileiro. (Nota da IHU On-Line)
lançaram juntos ou individualmen- até aproximações recentes com 24 Maria da Graça Costa Penna Bur-
te em períodos que mantiveram outros artistas populares, são inú- gos – Gal Costa (1945): é uma cantora
forte contato. “Tropicália” (1968), meros exemplos desse trânsito que brasileira. Gal estreou ao lado de Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé
“Transa” (1972), “Expresso 2222” sempre se propôs. Esteve também e outros, o espetáculo Nós, Por Exemplo...,
(1972), “Tropicália 2” (1993) são junto com diversos artistas da sua – que estreou em 22 de agosto de 1964-, que
demonstrações signiicativas desse geração em shows, discos e outros inaugurou o Teatro Vila Velha, em Salvador.
Nesse mesmo ano participou de Nova Bossa
entrelaço entre os dois músicos. trabalhos. Talvez o disco com Jor- Velha, Velha Bossa Nova, no mesmo local e
ge Ben19 seja um dos mais signii- com os mesmos parceiros. (Nota da IHU
On-Line)
25 Chico Buarque de Hollanda (1944):
IHU On-Line – Como as obras de cativos desses exemplos. Nos anos
ambos dialogam/se contrapõem 80, trabalharia com Paralamas do músico, dramaturgo e escritor brasileiro,
com outros estilos musicais e ar- conhecido por ser um dos maiores nomes da
tistas dos cenários culturais bra- 18 Banda de Pífanos de Caruaru ou Ban- MPB. Sua discograia conta com aproximada-
da de Pífanos Zabumba de Caruaru: conjunto mente 80 discos, entre eles discos-solo, em
sileiro e internacional? Que mo- de música instrumental regional do Nordeste parceira com outros músicos e compactos.
mento (ou momentos) o senhor brasileiro composta por pífanos e percussão. É compositor de Construção, considerada
destaca como mais marcante? (Nota da IHU On-Line) uma das melhores músicas brasileiras já fei-
19 Jorge Ben Jor (1945): guitarrista, cantor tas. Filho do historiador Sérgio Buarque de
Miguel Jost Ramos – Em diversos e compositor popular brasileiro. Seu estilo ca- Holanda, iniciou sua carreira como escritor
trabalhos de suas carreiras, Caeta- racterístico possui diversos elementos, entre em 1962. Ganhou destaque como cantor a
eles: rock and roll, samba, samba rock (termo partir de 1966, quando lançou seu primeiro
no e Gil apontaram para inluên- que gosta de usar), bossa nova, jazz, maraca- álbum, Chico Buarque de Hollanda, e venceu
cias de outros artistas e procura- tu, funk, ska e até mesmo hip hop, com letras o Festival de Música Popular Brasileira com a
ram dialogar com outras escolas da que misturam humor e sátira, além de temas música “A Banda”. Socialista declarado auto-
esotéricos. A obra de Jorge Ben tem uma im- exilou-se na Itália em 1969, devido à crescen-
música brasileira e internacional. portância singular para a música brasileira, te repressão do regime militar do Brasil nos
O tropicalismo já era uma airma- por incorporar elementos novos no suingue chamados “anos de chumbo”, tornando-se,
ção desse desejo e isso se realiza e na maneira de tocar violão, com caracterís- ao retornar, em 1970, um dos artistas mais
ticas do rock, soul e funk norte-americanos. ativos na crítica política e na luta pela demo-
Além disso, trouxe inluências árabes e afri-
em muitos outros momentos e dis-
cratização no país. (Nota da IHU On-Line)
cos de suas respectivas carreiras a canas, oriundas de sua mãe, nascida na Etió- 26 Maria Bethânia (1946): é uma cantora
partir dos anos 70. Gil, por exem- pia. (Nota da IHU On-Line) brasileira de MPB. Nascida em Santo Ama-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Odair José27, David Byrne28, Grupo da música popular. Assim como Gil, Marley38 e, recentemente, um dis-
Olodum29, Jorge Mautner30, Maria Caetano traz em muitos dos seus co só de sambas gravados por João
Gadú31, Roberto Carlos32, entre discos a assinatura de produtores Gilberto em sua discograia. É no-
musicais com os quais travou um tório também seu trabalho de reve-
muitos outros, o compositor divide
diálogo intenso e precioso. Des- rência à tradição do baião no Brasil
palco e estúdio com outros artistas de Rogério Duprat33, no período e à obra de Luiz Gonzaga39. Caeta-
ro da Puriicação, Bahia, ela participou, na
tropicalista, passando pela con- no Veloso rendeu homenagens mais
juventude, de peças teatrais ao lado de seu tribuição de Jards Macalé34 para panorâmicas em que interpretava
irmão, o cantor Caetano Veloso e de outros o disco “Transa”, e chegando em clássicos do cancioneiro latino-
cantores proeminentes da época. Em 1965, -americano e norte-americano.
nomes mais recentes em sua car-
mudou-se para o Rio de Janeiro onde come-
çou sua carreira musical substituindo a can- reira como Arto Lindsay35, Jac- Uma curiosidade a mais que pode-
tora Nara Leão no espetáculo Opinião. (Nota ques Morelembaum36 e Alexandre mos perceber em Caetano está na
da IHU On-Line) maneira constante que cita outros
27 Odair José de Araújo (1948): é um can-
Kassin37, são muitos os momentos
tor e compositor brasileiro, de estilo popular- em que Caetano traz para seus músicos em letras de sua autoria,
romântico-brega. (Nota IHU On-Line) discos a contribuição e assinatu- como Djavan40, Donato41, Kassin,
28 David Byrne (1952): nascido em Dum- ra de músicos e arranjadores que entre muitos.
barton, Escócia, Reino Unido, é um músico,
compositor e produtor musical conhecido conferem aos discos sonoridades
por ter fundado a banda Talking Heads, em novas. IHU On-Line – Qual a importân-
1974, um dos grupos precursores dos estilos cia do movimento tropicalista
new wave e worldbeat. Além do trabalho com Caetano e Gil também criaram,
o grupo, compôs trilhas para artistas como nas carreiras de Gil e Caetano?
em determinados momentos de
Twyla Tharp e Robert Wilson, nomes da dan- De que forma foi se compondo
ça e do drama respectivamente, além do ilme
suas carreiras, espécies de ‘discos
o cenário para a emersão deste
O Último Imperador (de 1987, realizado por tributos’ em que homenageiam ou
Bernardo Bertolucci) pelo qual ganhou um
movimento?
releem algumas de suas principais
Oscar. Também dirigiu o ilme “True Stories”
inluências na música. Gil gravou Miguel Joel – Como disse, o tro-
(de 1986) e produziu diversos álbuns de mú-
sica caribenha e brasileira (incluindo traba- um disco de canções só de Bob picalismo é determinante para
lho com Tom Zé e Margareth Menezes), no-
tadamente “Rei Momo” (de 1989) e um vídeo 33 Rogério Duprat (1932-2006): compo- 38 Robert Nesta Marley – Bob Marley
documentário sobre o candomblé chamado sitor e maestro brasileiro. Um dos maiores (1945-1981): um cantor, guitarrista e com-
“The House of Life” (também de 1989). (Nota responsáveis pela ascensão da Tropicália, positor jamaicano, o mais conhecido músico
70 da IHU On-Line)
29 Grupo Olodum: fundado como bloco
personalizando o som do então emergente
movimento musical com arranjos bem ela-
de reggae de todos os tempos, famoso por
popularizar o género. Marley já vendeu mais
afro carnavalesco em Salvador no ano de borados, criativos e perfeitamente antenados de 75 milhões de discos. A maior parte do seu
1979, a Banda Olodum é atualmente um gru- com as tendências internacionais da época. trabalho lidava com os problemas dos pobres
po cultural, considerado uma organização (Nota da IHU On-Line) e oprimidos. Levou, através de sua música,
não-governamental reconhecida como de 34 Jards Anet da Silva (1943): conhecido o movimento rastafári e suas ideias de paz,
utilidade pública pelo governo do estado da como Macalé, é um ator, cantor e compositor irmandade, igualdade social, preservação
Bahia. Depois da estréia no carnaval de 1980, brasileiro. (Nota da IHU On-Line) ambiental, libertação, resistência, liberdade
a banda conquistou quase dois mil associados 35 Arthur Morgan Lindsay (1953): é e amor universal ao mundo. (Nota da IHU
e passou a abordar temas históricos relativos um cantor, guitarrista, produtor musical e On-Line)
às culturas africana e brasileira. (Nota da compositor estadunidense. (Nota da IHU 39 Luiz Gonzaga do Nascimento – o Rei
IHU On-Line) On-Line) do Baião (1912-1989): foi um importante
30 Jorge Mautner (1941): cantor, com- 36 Jaques Morelenbaum (1954): é um compositor e cantor popular brasileiro. Foi
positor e escritor brasileiro. (Nota da IHU violoncelista, arranjador, maestro, produtor uma das mais completas, importantes e in-
On-Line) musical e compositor brasileiro. Filho do ma- ventivas iguras da música popular brasileira.
31 Mayra Corrêa Aygadoux – Maria Gadú estro Henrique Morelenbaum e da professora Cantando acompanhado de sua sanfona, za-
(1986): cantora, compositora de canções e de piano Sarah Morelenbaum, é irmão de Lu- bumba e triângulo, levou a alegria das festas
violonista brasileira de Música Popular. Des- cia Morelenbaum, clarinetista da Orquestra juninas e dos forrós pé-de-serra, bem como
de sua estreia, Maria chamou a atenção de Sinfônica Brasileira, e de Eduardo Morelen- a pobreza, as tristezas e as injustiças de sua
público e crítica, sendo indicada duas vezes baum, maestro, arranjador e instrumentista. árida terra, o Sertão Nordestino, ao resto do
ao Grammy Latino. (Nota IHU On-Line) É casado com a cantora Paula Morelenbaum. país, numa época em que a maioria desco-
32 Roberto Carlos Braga (1941): cantor Iniciou a carreira musical como integrante nhecia o baião, o xote e o xaxado. (Nota da
e compositor brasileiro, um dos primeiros do grupo A Barca do Sol, participou também IHU On-Line)
ídolos jovens da cultura brasileira, liderando da Nova Banda em dez anos de parceria com 40 Djavan Caetano Viana (1949): cantor,
o primeiro grande movimento de rock feito Antônio Carlos Jobim, atuando em espetácu- compositor, produtor musical e violonista
no Brasil. Além dos discos, estrelou um pro- los e gravações que os levaram a vencedores brasileiro. As músicas de Djavan são conheci-
grama na TV Record, chamado Jovem Guar- do Grammy com o CD Antônio Brasileiro. das pelas suas “cores”. Ele retrata muito bem
da (que batizou esse movimento de rock), e Destacado como violoncelista, estudou músi- em suas composições a riqueza das cores do
ilmes inspirados na fórmula lançada pelos ca no Brasil e mais tarde ingressou no New dia a dia e se utiliza de seus elementos em
Beatles – como “Roberto Carlos em Ritmo England Conservatory, onde frequentou as construções metafóricas de maneira distin-
de Aventura”, “Roberto Carlos e o Diamante classes de Madeline Foley, que, por sua vez, ta dos demais compositores. As músicas são
Cor-de-rosa” e “Roberto Carlos a 300km por foi discípula de Pablo Casals. (Nota da IHU amplas, confortáveis chegando ao requinte de
Hora”. Atualmente continua se apresentando On-Line) um luxo acessível a todos. Até hoje é conheci-
com frequência e produz anualmente um es- 37 Alexandre Kamal Kassin (1974): pro- do mundialmente pela sua tradição e o ritmo
pecial que vai ao ar na semana do Natal pela dutor musical, cantor, compositor e multi- da música cantada. (Nota da IHU On-Line)
Rede Globo, mesma época em que costuma- -instrumentista brasileiro. É um dos princi- 41 João Donato de Oliveira Neto (1934):
vam ser lançados seus discos anuais. Segundo pais produtores musicais brasileiros. Inte- mais conhecido apenas como João Donato, é
a ABPD, o Roberto Carlos é o artista solo com grou junto com Moreno Veloso e Domenico um pianista, acordeonista, arranjador, can-
mais álbuns vendidos na história do Brasil. Lancelotti, o aclamado grupo +2. (Nota da tor e compositor brasileiro. (Nota da IHU
(Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

toda produção cultural brasileira discussões em torno do posiciona- outros músicos populares de sua
a partir do im dos anos 60. Seu mento político de Caetano e Gil, geração. Essa foi uma década com
legado é enorme em nosso país, que de um lado foram persegui- muitas particularidades e é pos-
o que podemos ver nas inúmeras dos pelo regime ditatorial e, de sível dizer que talvez tenha sido
citações, pesquisas, homenagens, outro, muito cobrados por parte um dos raros momentos em que se
tributos, antologias que rememo- do público? realmente acreditou que a cultu-
ram a experiência do movimento. ra tinha implicações diretas sobre
Miguel Jost Ramos – A música
Caetano e Gil, como duas das vozes a realidade política e social bra-
tem, desde sempre, um papel mui- sileira. Discussões como arte en-
mais representativas dessa experi-
ência, são, e serão, sempre lem- gajada, papel do intelectual e do
brados por seu protagonismo nesse artista nas transformações e lutas
período. Acredito que em relação sociais, nacionalismo versus im-
ao desenvolvimento de suas carrei- perialismo cultural, resistência à
Gil e Caetano
construíram
ras, o legado tropicalista teve mui- ditadura, eram temas do dia a dia
to peso nos anos 70, quando, ainda entre músicos, compositores e de-
no período da ditadura civil militar mais artistas. Muitos acreditavam,
brasileira, muitos esperavam que uma cumplicida- de fato, que o compositor popular
atitudes fortes e contestadoras pu- deveria ser o porta-voz de uma sé-
dessem vir dos dois compositores à de evidente entre rie de demandas políticas e sociais
semelhança do que ocorrera entre do Brasil. O uso inteligente dessa
67 e 68.
seus trabalhos crença por parte dos produtores de
televisão, e também dos festivais
Na imprensa alternativa e no
de música, criou um ambiente de
público jovem havia também uma to particular no Brasil. Seguindo
polarização entre determinados
tentativa de entender por que o a ideia defendida por José Miguel
grupos, como o do tropicalismo e
tropicalismo não se conigurava Wisnik42 de que em nosso país sal-
o da canção de protesto, e gerou
mais como um movimento organi- tamos da tradição oral para uma ainda mais repercussão em cima de
zado e por que Gil e Caetano se tradição áudio-audiovisual, e que algumas divergências entre estes.
recusavam a responder em nome não passamos pela consolidação
do tropicalismo ou como seus re- da escrita e da leitura em nossa O fato é que se jogou muita luz
presentantes. A partir dos anos 80 sociedade, podemos entender que sobre esse lugar do compositor 71
e na chegada aos 90, quando inclu- canção popular e urbana brasilei- popular como alguém que deveria
sive eles gravam o disco “Tropicá- ra, como conigurada no início do comentar e interpretar o país. Ana-
lia 2”, essa pressão e expectativa século XX, foi decisiva em temas lisando depoimentos e entrevistas
começam a se dissipar. Hoje, em básicos da identidade nacional bra- daquele momento com os compo-
vez de expectativa, o que encon- sileira como a uniicação da língua. sitores e cantores, encontramos
tramos é um tom de celebração e, Isso também para a compreensão perguntas que anos antes seria
por vezes, até mesmo mítico em de determinadas práticas e costu- inimaginável vermos sendo feitas a
relação à participação de ambos mes como tipicamente brasileiras. artistas ligados à bossa nova ou ao
no movimento. Através do rádio se inventou muito samba jazz. Talvez pela violência
do que até hoje entendemos como com que a ditadura reagiu à pre-
Contudo, acredito que podemos sença destes compositores como
airmar que, como prática e proce- “o Brasil”. A canção popular foi o
meio pelo qual se revelou e explici- referências de um pensamento
dimento, como estética e política, de oposição ao regime autoritá-
o tropicalismo sempre se manteve tou essa ideia de país. Esse já é um
dado signiicativo para entender- rio, talvez pela forma contunden-
presente ao longo dos 50 anos de te com que eles se pronunciavam
carreira dos dois compositores. O mos a centralidade que a canção
nesse período, o que aconteceu foi
problema que se conigura nesse popular desempenhou para nós.
que se consolidou no Brasil, princi-
caso é de como interpretamos o Como não nos cabe aqui repisar palmente em relação a esta gera-
que foi o Tropicalismo. Entenden- toda essa história, podemos sal- ção de artistas, uma prática de exi-
do-o, como eu preiro, como prá- tar diretamente para os anos 60 e gir e cobrar do músico popular uma
tica e procedimento, é possível tentar entender em qual contexto postura política deinida diante dos
sim airmar sua permanência nos estavam inseridos Gil, Caetano e mais variados e surpreendentes te-
trabalhos de Gil e Caetano, assim mas. Esse é um movimento que se
como de outros que não são o tema 42 José Miguel Soares Wisnik (1948): inicia nos anos 60, mas que perdura
dessa nossa conversa. músico, compositor e ensaísta brasileiro. É
também professor de Literatura Brasileira
na nossa história cultural ainda nos
na Universidade de São Paulo. Graduado em dias de hoje. Caetano, Gil e Chi-
IHU On-Line – Você poderia fa- Letras (Português) pela Universidade de São co Buarque talvez sejam a repre-
Paulo (1970), mestre (1974) e doutor em Teo-
lar um pouco sobre o papel do sentação máxima desse papel que
ria Literária e Literatura Comparada (1980),
músico popular na sociedade bra- pela mesma Universidade. (Nota da IHU também coube ao músico popular
sileira, principalmente à luz das On-Line) no Brasil.■

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

A vanguarda caleidoscópica do Brasil


expressa na obra de Caetano e Gil
Para Christopher Dunn, a vasta produção cultural dos dois tropicalistas apresenta
para o mundo uma imagem plural e dinâmica do país
Por Leslie Chaves

H á algum tempo o trabalho de


Gilberto Gil e Caetano Velo-
so é consagrado no exterior.
Esse reconhecimento foi sendo cons-
truído ao longo da trajetória desses
“ambos são conhecidos como vozes que
não podem ser reduzidas a uma linha,
porque eles podem transitar por diver-
sos estilos. Dentro deste contexto am-
plo, eles são associados, por exemplo,
artistas a partir de sua ousadia criativa com a louvação da Bahia, vista como
e liberdade de experimentação. Na en- um lugar mágico de produção cultural
trevista concedida por telefone à IHU muito forte. Ao mesmo tempo, são co-
On-Line, Christopher Dunn aponta que nhecidos como artistas que retratam o
essa riqueza cultural encantou o pú- Brasil com uma sensibilidade crítica,
blico norte-americano, que estava ha- abordando os problemas sociais, como
bituado a associar a música brasileira a violência policial, a pobreza, a de-
72 prioritariamente à Bossa Nova antes de sigualdade de classe, as questões ra-
tomarem contato com a obra tropica- ciais e de gênero. Esses temas entram
lista. “Em meados dos anos 1990 hou- na música de Caetano e Gil há muito
ve, aqui nos Estados Unidos, um surto tempo”.
de interesse na Tropicália, que foi mui-
to tardio, mais de 20 anos depois. Nos Christopher Dunn é doutor em Estu-
anos 1960 não se sabia nada da Tropi- dos Luso-brasileiros pela Brown Univer-
cália aqui e mesmo depois, nos anos sity e professor de Literatura e estudos
1970 e 1980, havia pouca informação culturais brasileiros na Tulane Univer-
sobre isso, só mesmo os estudiosos co- sity, de Nova Orleans, Estados Unidos.
nheciam. Então, a partir dos anos 1990 Entre suas publicações destacam-se
houve a descoberta dessa música que Brutality Garden: Tropicália and the
soava psicodélica, e as pessoas icaram emergence of a Brazilian Countercul-
fascinadas”, conta. ture (Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 2001), além de Brazil-
A partir da obra desses dois artistas
ian Popular Music and Citizenship (Dur-
não só a música e o cenário cultural
ham: Duke University Press, 2011) e
brasileiro começam a ganhar diferen-
Brazilian popular music and globaliza-
tes nuances aos olhos do mundo, mas
tion (Londres: Routledge, 2001), obras
também a representação do Brasil no
das quais é coorganizador.
exterior se complexiica e recebe no-
vos referenciais. Como aponta Dunn, Conira a entrevista.

IHU On-Line – De onde partiu va com a história latino-america- do pela música brasileira. Foi as-
seu interesse pelos estudos sobre na. Ele era meio brasilianista, mas sim que resolvi visitar o Brasil pela
a cultura brasileira? como historiador, não era musicó- primeira vez e fui icando cada vez
logo. Porém, ele tinha uma coleção mais interessado no assunto.
Christopher Dunn – Quando eu de discos de MPB e era daquela
estava na faculdade tive um pro- grande geração dos anos 1960. Ou- Depois, decidi fazer uma pós-
fessor muito querido que trabalha- vindo os discos, eu iquei apaixona- -graduação e durante o curso tive

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DE CAPA IHU EM REVISTA

João Gilberto8 e outros artistas da


Bossa Nova. Hoje em dia esse gosto
já está muito mais diversiicado, as
pessoas conhecem vários aspectos
Eles são grandes referências da música brasileira.

para a música e a cultura


mundial porque são re-
IHU On-Line – Como a música
brasileira de uma forma geral é
vista no exterior? E nos Estados
almente dois gênios Unidos?
Christopher Dunn – Como eu es-
a oportunidade de produzir um lançou um selo de discos chamado tava dizendo, o conhecimento e o
programa de rádio. Então nós re- Luaka Bop, que ainda existe. Esse gosto pela música brasileira têm
solvemos fazer uma edição sobre a selo era dedicado a encontrar mú- se diversiicado muito nos últimos
Tropicália, porque completava 25 sica internacional interessante. O tempos. Atualmente é bastante
anos de seu surgimento – isso foi primeiro disco que ele lançou foi de comum ter norte-americanos que
em 1992. Naquela época, nos Esta- música brasileira4, e logo depois, conhecem, por exemplo, o forró;
dos Unidos não se falava da Tropi- em 1990, lançou uma coletânea5 há bandas desse gênero aqui e di-
cália, então foi uma das primeiras de músicas do Tom Zé. Esse álbum versos grupos que cultuam músicas
reportagens sobre o movimento. foi muito importante tanto para o do nordeste brasileiro. Tem cresci-
Nesse período eu conheci Gil, Ca- artista quanto para o público nor- do muito o número de bandas de
etano e Tom Zé1, que me concede- te-americano e europeu, porque a música brasileira que tocam aqui
ram entrevistas para o programa. música dele soava muito diferente, nos Estados Unidos, tipicamente
Foi a partir daí que eu percebi que experimental e vanguardista e essa são formadas por brasileiros radi-
a Tropicália seria um tema perfeito não era a impressão que as pessoas cados aqui e norte-americanos que
para uma tese. tinham da música brasileira. Antes gostam de música brasileira.
dos anos 1990 a música brasileira
Esse foi um momento interessan- Em meados dos anos 1990 houve,
era uma subcategoria de Jazz, era
aqui nos Estados Unidos, um surto
73
te porque no inal dos anos 1980 o sempre vendida nas lojas nessa se-
David Byrne2, dos Talking Heads3, de interesse na Tropicália. Um crí-
ção, por causa da Bossa Nova6. O
tico do jornal The New York Times
1 Antônio José Santana Martins – Tom
público que ouvia música brasilei-
escreveu sobre o Tropicalismo e co-
Zé (1936): é um compositor, cantor, arran- ra em geral apreciava Tom Jobim7,
meçou a circular mais a música do
jador e jardineiro brasileiro. É considerado
uma das iguras mais originais da música po- music, principalmente ritmos africanos. O movimento. Esse interesse foi mui-
pular brasileira, tendo participado ativamen- grupo existiu de 1974 até 1991. (Nota da IHU to tardio, mais de 20 anos depois.
te do movimento musical conhecido como On-Line)
4 Disco Beleza Tropical (1989). (Nota da
Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma
Nos anos 1960 não se sabia nada da
voz alternativa inluente no cenário musical IHU On-Line) Tropicália aqui e mesmo depois,
do Brasil. (Nota da IHU On-Line) 5 Disco The Best of Tom Zé (1990). (Nota nos anos 1970 e 1980, havia pouca
2 David Byrne (1952): Nascido em Dum- da IHU On-Line)
barton, Escócia, Reino Unido, é um músico, 6 Bossa nova: derivado do samba e com
informação sobre isso, só mesmo
compositor e produtor musical conhecido forte inluência do jazz, trata-se de um mo- os estudiosos conheciam. Então, a
por ter fundado a banda Talking Heads, em vimento da música popular brasileira do i- partir dos anos 1990 houve a des-
1974, um dos grupos precursores dos esti- nal dos anos 1950 lançado por João Gilber-
los new wave e worldbeat. Além do trabalho to, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e jovens coberta dessa música que soava
com o grupo, compôs trilhas para artistas cantores e/ou compositores de classe média psicodélica, e as pessoas icaram
como Twyla Tharp e Robert Wilson, nomes da zona sul carioca. De início, o termo era fascinadas. Foram relançados aqui
da dança e do drama, respectivamente, além apenas relativo a um novo modo de cantar e
do ilme O Último Imperador (de 1987, rea- tocar samba naquela época, ou seja, a uma re- os discos tropicalistas, e artistas
lizado por Bernardo Bertolucci) pelo qual ga- formulação estética dentro do moderno sam-
nhou um Oscar. Também dirigiu o ilme True ba carioca urbano. Com o passar dos anos, a sileiro. É considerado o maior expoente de
Stories (de 1986) e produziu diversos álbuns Bossa Nova tornou-se um dos movimentos todos os tempos da música brasileira pela
de música caribenha e brasileira (incluindo mais inluentes da história da música popular revista Rolling Stone, e um dos criadores do
trabalho com Tom Zé e Margareth Menezes), brasileira, conhecido em todo o mundo, um movimento da bossa nova. É praticamente
notadamente Rei Momo (de 1989) e um vídeo grande exemplo disso é a música “Garota de uma unanimidade entre críticos e público em
documentário sobre o candomblé chamado Ipanema”, composta em 1962 por Vinícius termos de qualidade e soisticação musical.
The House of Life (também de 1989). (Nota de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Sobre o (Nota da IHU On-Line)
da IHU On-Line) tema, conira a edição da IHU On-Line in- 8 João Gilberto Prado Pereira de Oli-
3 Talking Heads: banda surgida em Nova titulada Chega de saudade... Bossa Nova, 50 veira: conhecido como João Gilberto, violo-
Iorque, Estados Unidos, no dia 8 de setem- anos, de 08-09-2008, disponível em http:// nista e cantor, é considerado um dos pais da
bro de 1974, entre os movimentos punk e new bit.ly/YzDFvb. (Nota da IHU On-Line) bossa nova brasileira, juntamente com Tom
wave. Formada pelo guitarrista e vocalista 7 Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Nasceu em Juazeiro (BA), em 1931,
David Byrne, Chris Frantz, Tina Weymouth e Jobim (1927-1994): mais conhecido como mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1950.
Jerry Harrison, a banda ganhou notoriedade Tom Jobim, foi um compositor, maestro, Perfeccionista, apresenta-se com sucesso em
por fundir o rock e o new wave com a world pianista, cantor, arranjador e violonista bra- todo o mundo. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

como Gal Costa9 e Os Mutantes10 foi traduzido para o inglês. No iní- Christopher Dunn – Acima de
izeram muito sucesso. cio dos anos 1990 ele foi chama- tudo Caetano e Gil são cosmopoli-
Hoje a Tropicália é uma referên- do para escrever um ensaio sobre tas, mas também têm uma grande
cia para um público considerável Carmen Miranda11 e acho que esse sensibilidade para a própria tra-
de pessoas que acompanham a trabalho também despertou o inte- dição. Eles comunicam os valores
música mundial. Também há mais resse pelo pensamento de Caetano estéticos e culturais da tradição
artistas brasileiros se apresentando e sua leitura da cultura brasileira. brasileira, mas também são conhe-
aqui, o que contribui para construir cedores profundos das tradições de
Então ambos têm um prestígio,
uma noção muito mais diversiica- mas não uma referência de massa,
diversos outros países. Isso se de-
da da música brasileira do que ha- monstra, por exemplo, pelo fato de
atingem um público predominante-
via cerca de 30 anos atrás. eles logo no início da carreira abra-
mente de estudantes, intelectuais
e pessoas que têm uma certa sensi- çarem a linguagem do rock, como
IHU On-Line – Em geral como bilidade para a música internacio- os Beatles12 e Bob Dylan13, enim,
são vistos especiicamente Caeta- nal. Imagino que eles tenham mais a música feita nos Estados Unidos
no e Gil no exterior? E nos Esta- e Inglaterra, e incorporarem esses
público na Europa, onde têm uma
dos Unidos? elementos no próprio trabalho.
Christopher Dunn – Eles são Mesmo trabalhando dentro da tra-
grandes referências para a mú- dição brasileira, eles estão sempre
sica e a cultura mundial porque muito antenados no que está acon-
são realmente dois gênios. O fato Em meados dos tecendo no cenário internacional.
de Gil ter sido ministro da Cultura Não é que sejam os únicos a fazer
anos 1990 hou-
ve, aqui nos
também contribuiu para ampliar o isso, mas eles tiveram uma certa
conhecimento sobre o trabalho de- sensibilidade ao longo dos anos que
les. Ele veio muitas vezes aos Esta- facilitou esse trânsito entre Brasil
dos Unidos, esteve na universidade Estados Uni- e o mundo. Como eu disse, são cos-
em que leciono, onde recebeu o
título de Doutor Honoris Causa. A
dos, um sur- mopolitas que têm essa vantagem
de criar música enraizada na tra-
74 atuação dele como ministro atraiu to de interesse dição local, mas ao mesmo tempo
muita atenção, ele apareceu muito
na mídia como um administrador
na Tropicália 12 The Beatles: banda de rock inglesa, cria-
cultural, uma referência muito im- da no inal da década de 1950. Formada por
John Lennon (guitarra e vocal), Paul McCar-
portante, para além de sua carrei- tney (baixo e vocal), George Harrison (gui-
ra de artista. história mais conhecida. Ao longo tarra e vocal) e Ringo Star (bateria e vocal),
dessas cinco décadas de carrei- é o grupo musical considerado mais bem-
No caso do Caetano, o conheci- sucedido e aclamado da história da música
mento sobre ele passou pela sua
ra, tenho a impressão de que eles popular. Enraizada do skifle e do rock and
têm feito mais turnês pelos países roll da década de 1950, a banda veio mais
atuação como intelectual público, tarde a assumir diversos gêneros que vão do
muito em função da publicação do europeus. Porém, quando eles se folk rock ao rock psicodélico, muitas vezes
livro Verdade Tropical (São Paulo: apresentam aqui nos Estados Uni- incorporando elementos da música clássica
dos, atraem bastante público nos e outros, em formas inovadoras e criativas.
Companhia das Letras, 1997), que Sua crescente popularidade, que a imprensa
shows. britânica chamava de “Beatlemania”, fez com
9 Maria da Graça Costa Penna Burgos que eles crescessem em soisticação. Os Bea-
– Gal Costa (1945): mais conhecida como tles vieram a ser percebidos como a encarna-
Gal Costa, é uma cantora brasileira. Gal es- IHU On-Line – Quais caracte- ção de ideais progressistas e sua inluência se
treou ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, rísticas você destacaria como as estendeu até as revoluções sociais e culturais
Maria Bethânia, Tom Zé e outros, o espetá- da década de 1960. (Nota da IHU On-Line)
culo Nós, Por Exemplo..., que estreou em 22 mais marcantes do trabalho de Gil 13 Bob Dylan (nome artístico de Robert
de agosto de 1964, que inaugurou o Teatro e Caetano? Por quê? Quais se des- Allen Zimmerman) (1941): é um cantor e
Vila Velha, em Salvador. Nesse mesmo ano compositor norte-americano de música Folk
dono de uma extensa discograia. Em 2004,
tacam no exterior?
participou de Nova Bossa Velha, Velha Bossa
Nova, no mesmo local e com os mesmos par- foi eleito pela revista Rolling Stone o 7º maior
ceiros. (Nota da IHU On-Line) cantor de todos os tempos e, pela mesma re-
10 Os Mutantes: banda psicodélica brasilei- 11 Maria do Carmo Miranda da Cunha vista, o 2º melhor artista da música de todos
ra formada em 1966, em São Paulo, por Rita (1909-1955): mais conhecida como Carmen os tempos, icando atrás somente dos Bea-
Lee (vocais), Sérgio Dias (guitarra, vocais) Miranda, foi uma cantora e atriz luso-bra- tles, e uma de suas principais canções, “Like
e Arnaldo Baptista (baixo, teclado, vocais). sileira. Sua carreira artística transcorreu no a Rolling Stone”, foi escolhida como uma das
Depois de quase trinta anos ausentes dos pal- Brasil e Estados Unidos entre as décadas de melhores de todos os tempos. Inluenciou di-
cos, o grupo retornou em 2006 com sua for- 1930 e 1950. Trabalhou no rádio, no teatro de retamente grandes nomes do rock americano
mação clássica, exceção feita a Rita Lee, que revista, no cinema e na televisão. Foi consi- e britânico dos anos de 1960 e 1970. Em 2012,
não aceitou voltar ao grupo. A cantora Zélia derada pela revista Rolling Stone como a 15ª Dylan foi condecorado com a Medalha Presi-
Duncan foi convidada a assumir os vocais e maior voz da música brasileira. Um ícone e dencial da Liberdade pelo presidente dos Es-
desde então acompanha a banda. (Nota da símbolo internacional do país no exterior. tados Unidos Barack Obama. (Nota da IHU
IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

bastante engajada com as coisas posição de destaque é relevante. esse. Foi a primeira vez que uma
que vêm de fora. Também acho sempre interessan- música de um bloco afro foi gra-
te lembrar que os dois até hoje vada. Então acho que essa foi uma
IHU On-Line – O exílio de Caeta- se identiicam como tropicalistas. passagem importante.
no e Gil em Londres deixou inlu- Desse modo, essa foi uma experi-
Sobre o Caetano, acho que a gra-
ências no cenário cultural inter- ência claramente formadora.
vação do disco Estrangeiro (1989)
nacional? Quais? De que modo? A música que eles produziram na foi bem interessante, sobretudo
Christopher Dunn – Estamos fa- volta do exílio também foi muito para a sua projeção internacional,
lando de cerca de dois anos e meio, signiicativa. Aqueles dois discos porque foi produzido em Nova Ior-
entre junho de 1969 e janeiro de que eles lançaram em 1972, no que com a participação de músi-
1972, relativamente pouco tempo, caso de Caetano foi Transa e no de cos de lá. Já nos anos 1990, outro
e também os dois icaram basica- Gil Expresso 2222, marcaram a vol- ponto que marcou a carreira dele
mente na Inglaterra. Eles até viaja- ta deles para o Brasil e foram fun- foi seu trabalho com Jaques More-
ram para a França, não para fazer damentais para o cenário cultural lenbaum16, que tocou violoncelo e
shows, mas para visitar amigos. Gil daquele tempo, o início dos anos fez os arranjos das canções. Além
chegou a passar em Nova Iorque em 1970. desses há muitos momentos inte-
1971. Assim, esse exílio teve mais ressantes de projetos dele com
Depois eu destacaria como mo-
impacto sobre a cena folk rock grandes bandas e outros com gru-
mento interessante o inal da dé-
britânica, mas tenho a impressão pos menores e novas propostas de
cada de 1970, quando eles abraça-
de que não houve uma inluência som. Essa capacidade de se rein-
ram a música negra internacional,
muito signiicativa em outros cam- ventar de Caetano é que chama a
como o soul e o reggae. Eles chega-
pos. Por exemplo, toda a produção atenção.
ram a viajar para a África, onde Gil
deles de 1968 teve pouca projeção participou do Festival de Arte Ne- Mais tarde, no início dos anos
na época. O público deles em Lon- gra – Festac14, na Nigéria. Naquele 1990, quando lançaram Tropicália
dres, na Inglaterra, era restrito. tempo eles também começaram II (1993), eles vieram aos Estados
Então, a projeção deles como a se aproximar das manifestações Unidos fazer shows. Isso foi jus-
músicos internacionais foi relativa- populares afro-baianas, como os tamente naquele período em que
mente pequena durante o exílio, só blocos afros, e tiveram um papel houve a descoberta da Tropicália, 75
a partir dos anos 1980 é que assume muito importante na difusão e, que era desconhecida nos Estados
mais relevância. No inal dos anos de alguma forma, na legitimação Unidos. Ambos estavam comple-
1970 Gil fez uma tentativa de bus- desses grupos emergentes. Gil, no
car projeção internacional, quando disco Refavela (1977), gravou uma
da história africana vinculando-os com a
ele gravou um disco em Los Angeles música do Ilê Aiyê15, a Que bloco é história do negro no Brasil, construindo um
intitulado Nightingale (1979), com mesmo passado, uma linha histórica da ne-
14 II Festival Negro e Africano das Ar- gritude. O seu movimento rítmico musical,
tes e da Cultura – Festac: nos meses de
algumas composições em inglês. inventado na década de 1970, foi responsá-
Foi uma tentativa de atrair um janeiro e fevereiro de 1977, foi realizado na vel por uma revolução no carnaval baiano. A
público norte-americano, mas não Nigéria o II Festival Negro e Africano das Ar- partir desse movimento, a musicalidade do
tes e da Cultura, o Festac. O primeiro festival carnaval da Bahia ganha força com os ritmos
teve muito êxito. O disco é inte- havia acontecido em 1966, em Dakar, Sene- oriundos da tradição africana favorecendo o
ressante, é bom, mas não surtiu o gal. Os dois projetos representavam a emer- reconhecimento de uma identidade peculiar
resultado esperado. Nos últimos 20 gência e a airmação dos países e da identi- baiana, marcadamente negra. (Nota da IHU
dade africana perante o mundo, funcionavam On-Line)
como pontes e ao mesmo tempo ampliicado-
anos é que eles realmente conquis- 16 Jaques Morelenbaum (1954): é um vio-
taram um público bem maior. res de divulgação e troca de culturas e entre loncelista, arranjador, maestro, produtor mu-
os países ricos e colonizadores e os africanos, sical e compositor brasileiro. Iniciou a carrei-
já em grande número, independentes. (Nota ra musical como integrante do grupo A Barca
IHU On-Line – Ao longo dos 50 da IHU On-Line) do Sol, participou também da Nova Banda em
anos de carreira de Caetano e Gil, 15 Ilê Aiyê: é o mais antigo bloco afro do dez anos de parceria com Antônio Carlos Jo-
carnaval da cidade de Salvador, no estado bim, atuando em espetáculos e gravações que
quais momentos destacaria como da Bahia, Brasil. Criado em 1º de novembro os levaram a vencedores do Grammy com o
mais signiicativos no cenário cul- de 1974, foi o primeiro bloco afro do Brasil e CD Antônio Brasileiro. Destacado como vio-
tural mundial? hoje constitui um grupo cultural de luta pela loncelista, estudou música no Brasil e mais
valorização e inclusão da população afrodes- tarde ingressou no New England Conserva-
Christopher Dunn – Há muitos cendente, inspirando a criação de muitos ou- tory, onde frequentou as classes de Madeline
tros grupos culturais no Brasil e no mundo. Foley, que, por sua vez, foi discípula de Pablo
momentos interessantes, é até
Na sua primeira apresentação, no carnaval Casals. Em 1995 integrou o Quarteto Jobim
difícil escolher, mas vou destacar de 1975, o Ilê Aiyê apresentou a música “Que Morelenbaum com o qual excursionou várias
alguns. A experiência Tropicalista Bloco é Esse”, de Paulinho Camafeu. Desde vezes à Europa, aos Estados Unidos, além do
que foi fundado, o Ilê Aiyê vem homenagean- Brasil. Formou juntamente com Paula More-
é uma dessas fases importantes,
do os países, nações e culturas africanos e as lenbaum e o renomado pianista e compositor
foi uma experiência fundamental. revoltas negras brasileiras que contribuíram japonês Ryuichi Sakamoto o grupo M2S, com
O fato de terem participado de um fortemente para o processo de fortalecimento o qual gravou vários projetos, incluindo os
da identidade étnica e da autoestima do ne- memoráveis “Casa” e “A day in New York”.
trabalho coletivo assumindo uma
gro brasileiro, tornando populares os temas (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

tando 50 anos de idade nessa épo- por exemplo, com a louvação da fardo de Caetano e Gil me parece
ca. Já eram artistas bem estabe- Bahia, vista como um lugar mágico mais pesado, porque eles são da
lecidos e foi um momento em que de produção cultural muito forte. geração dos anos 1960, em que a
havia um interesse não somente na Ao mesmo tempo, ambos são co- questão da tomada de posição era
música que eles estavam fazendo nhecidos como artistas que retra- muito importante e muito espera-
naquele instante, mas também na tam o Brasil com uma sensibilidade da no Brasil. Os artistas da geração
obra que eles tinham construído crítica, abordando os problemas deles nos Estados Unidos, em ge-
nos anos 1960 e 1970. sociais, como a violência policial, ral, não são tão cobrados hoje em
a pobreza, a desigualdade de clas- dia pelas suas posições políticas
IHU On-Line – Que Brasil é re- se, as questões raciais e de gênero. e usualmente não fazem grandes
tratado ao exterior a partir das Esses temas entram na música de intervenções.
obras de Caetano e Gil? Caetano e Gil há muito tempo. En-
tão, quando o público pode acom- Eu sinto em Caetano e Gil uma
Christopher Dunn – Isso depende panhar e entender as letras das certa ambivalência. Por um lado
muito do nível da proiciência na músicas, tem uma ideia bem mais vejo que eles querem fazer inter-
língua portuguesa que o estrangei- rica do Brasil. Depende muito do venções no espaço público sobre
ro tem. Porque, para um público ouvinte, de sua experiência com a diferentes temáticas, mas ao mes-
que não entende português, é su- língua e a cultura brasileira. mo tempo, às vezes, percebo um
iciente apreciar somente a músi- certo recuo, uma volta a um di-
ca e os aspectos mais tipicamente recionamento mais efetivo para o
IHU On-Line – Desde a Tropicália
brasileiros da sonoridade dos gê- campo estético e cultural.
Caetano e Gil são tensionados a
neros musicais do Brasil e as ex-
assumirem uma posição mais mi- É uma questão complexa, e o
perimentações com as inluências
litante diante das questões políti- caso de Israel, por exemplo, é
internacionais. Mas para aqueles
cas que se apresentam ao longo da bastante complicado. O que me
estrangeiros que falam português
trajetória deles, seja no contexto parece é que eles entenderam a
a imagem que recebem é muito
brasileiro, seja no internacional, importância de fazer o show nes-
variada. É difícil generalizar essa
como nas polêmicas em torno do se país e falar sobre o assunto, dar
representação, porque Caetano e
76 Gil têm uma vasta obra. Uma coisa
show de ambos em Israel. De que o posicionamento deles a respeito
modo o senhor interpreta o papel das ações do governo de lá. Mas
que é possível apontar é que ambos
de músico desempenhado pelos acho que a própria história de Gil e
são conhecidos como vozes que não
dois artistas no exterior?
podem ser reduzidas a uma linha, Caetano foi decisiva para eles de-
porque eles podem transitar por Christopher Dunn – Cada socie- cidirem ir a Israel, país onde eles
diversos estilos. Dentro deste con- dade tem artistas que são mais também têm um público há bastan-
texto amplo, eles são associados, engajados, entretanto acho que o te tempo.■

LEIA MAIS...
— Fazer música: uma prática de cidadania. Entrevista especial com Christopher Dunn publi-
cada na Revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/1M19ikF.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Baú da IHU On-Line


Conira outras publicações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
nas quais foi abordado o tema da música

• Tropicalismo. O desejo de uma modernidade amorosa para o Brasil. Revista IHU On-Line nº 411, de 10-12-
2012, disponível em http://bit.ly/20qxtD3;

• Canção: a palavra cantada. Revista IHU On-Line nº 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/20qxNS9;

• Chega de saudade... Bossa Nova, 50 anos. Revista IHU On-Line nº 272, de 08-09-2008, disponível em
http://bit.ly/20qxNS9;

• Rock ‘n’ roll na veia. Revista IHU On-Line nº 212, de 19-03-2007, disponível em http://bit.ly/1MesEqd;

• Jazz. O som da surpresa. Revista IHU On-Line nº 139, de 02-05-2005, disponível em http://bit.ly/1iAfpEj.

77

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


IHU
ON-LINE

IHU em
Revista
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Agenda de Eventos
Conira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU de
03-11-2015 a 13-11-2015

I Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-


americanos – I CI – EHILA
Início: 04/11/2015 (quarta-feira)
04/11 a Término: 06/11/2015 (sexta-feira)
06/11 Local: Auditório Central – UNISINOS, Campus de São Leopoldo da UNISINOS (Av. Unisi-
nos, 950, São Leopoldo – RS).
Saiba mais em: http://bit.ly/1NefsCC

Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e


Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da
vida e o comum
80
Conferência: Movimentos sociais de resistência: coletivos de ocupação urbana 05/11
Conferencistas: Guilherme Schroder – Ocupação Pandorga, Lorena Castillo – Cole-
tivo Ateneu Libertário a Batalha da Varzea, Darci Campos dos Santos – Vila Gaúcha
– Porto Alegre e
Orley Maria da Silveira – Vila União – Porto Alegre.
Horário: 17h às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1jXsHfv

Ciclo de Estudos: Saúde e segurança no trabalho na região


do Vale do Rio dos Sinos
O Ciclo compreende atividades presenciais e através de Ensino à Distância – EAD
09/11 a Saiba mais em http://bit.ly/1Mn1War
26/11

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Oicina: Realidades da Educação Infantil no Vale do Sinos e


RMPA
Ministrantes: Profa.. Gislaine Leães e a Profa. MS Maria Claudia Bombassaro – SMED
10/11 – POA
Horário: 14h às 17h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1Wm0Yq7

Ciclo de Estudos O Capital no Século XXI – uma


discussão sobre a desigualdade no Brasil
Conferência: Os ricos e a desigualdade de renda no Brasil 11/11
Conferencista: Prof. Dr. Marcelo Medeiros – UnB e Ipea
Horário: 17h30min às 19h
Local: A atividade será uma webconferência, transmitida na Sala Ignacio Ellacuría
e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1PanvjQ

81

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

EVENTOS

“Não se deve tributar as


grandes fortunas. Deve-se
tributar todas as fortunas”
O economista e pesquisador Marcelo Medeiros apresentará na próxima
semana, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dados de uma pesquisa
recente sobre a desigualdade brasileira
Por Ricardo Machado

O s desaios com relação à ini-


quidade social, educacional
e econômica no Brasil foram
pensados historicamente observando
a base da pirâmide social. Para ten-
mente, pelos ricos. Por isso o compor-
tamento da renda dos ricos afeta muito
o comportamento geral da desigualda-
de”, avalia. “Não se deve tributar as
grandes fortunas. Deve-se tributar to-
tar compreender melhor o fenômeno, das as fortunas”, provoca.
o pesquisador e economista Marcelo
Medeiros virou a realidade de cabeça Marcelo Medeiros é graduado em
para baixo e se deu conta de por que, Economia pela Universidade de Brasília
apesar dos anos de estudo, soluções – UnB, mestre e doutor em Sociologia
82 efetivas para o problema nunca foram pela mesma instituição. Atualmente é
apontadas. “Os ricos concentram uma pesquisador do Instituto de Pesquisa
fração muito grande da renda total e, Econômica Aplicada – Ipea e professor
por isso, têm um peso gigantesco na na UnB. Além disso, leciona anualmen-
desigualdade. Falar de desigualdade te na Universidad Nacional de General
é falar de ricos, da diferença entre os San Martín -UNSAM, Buenos Aires. Foi
ricos e o resto. O que acontece com a pesquisador no International Poverty
pobreza não muda muito a desigualda- Centre – UNDP, pesquisador-visitante
de”, destaca em entrevista por e-mail no CSC – Cambridge University, no Ins-
à IHU On-Line. titute for Human Development – Delhi,
no Indira Ghandi Institute – Mumbai, na
O professor chama atenção para o
Sophia University – Tóquio, no CNRS-
fato de que um quarto de toda a ren-
Cermes3 – Paris e na University of Cali-
da do país está concentrado em 1%
fornia – Berkeley, além de especialista
dos adultos, o que justiica observar
em avaliação de políticas do Tribunal
os ricos para compreender a pobreza.
de Contas da União – TCU.
“Quando se fala de renda, se fala de
algo que é apropriado, predominante- Conira a entrevista.

IHU On-Line – Quais serão os da no Brasil no último ano. Ela tem O que acontece com a pobreza não
pontos centrais a serem aborda- como eixo uma ideia simples, mas muda muito a desigualdade.
dos na conferência Os ricos e a
importante: os ricos concentram
desigualdade de renda no Brasil, IHU On-Line – Quem são os ricos
uma fração muito grande da ren-
evento que ocorre na próxima do Brasil? De que forma eles de-
semana? da total e, por isso, têm um peso sequilibram a balança da justiça
gigantesco na desigualdade. Falar econômica e social no país?
Marcelo Medeiros – Essa confe-
rência sintetiza os resultados de de desigualdade é falar de ricos, da Marcelo Medeiros – Ainda pre-
estudos sobre desigualdade de ren- diferença entre os ricos e o resto. cisamos saber mais sobre isso.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

preensão sobre o fenômeno da


desigualdade?
Marcelo Medeiros – Essa pesqui-
sa e outra, publicada quase simul-
Quando se fala de renda, se fala
de algo que é apropriado, predo-
taneamente, usam os novos dados

minantemente, pelos ricos. Por


do imposto de renda para analisar
a história recente da desigualdade.
Esses dados apontam que a desi-
gualdade no Brasil é maior do que
isso o comportamento da renda estávamos calculando até recente-
dos ricos afeta muito o compor- mente e, ao contrário do que todos
nós acreditávamos, não caiu entre
tamento geral da desigualdade 2006 e 2012. E quando digo “nós”,
me incluo: quando olhava apenas
para os dados da PNAD eu também
Temos que reavaliar parte do que te qualidade, e a história contada
achava que havia queda. Mas em
sabemos sobre desigualdade depois a partir da PNAD passa a dominar
pesquisa sempre é assim, diante de
que os dados do Imposto de Ren- acerca do que sabemos sobre desi-
novos dados temos que rever nos-
da conirmaram aquilo que muitos gualdade. Porém, a partir da déca-
sas posições. A interpretação que
suspeitavam: nossas informações da de 2000 os dados tributários vol- parece mais prudente é a de que
sobre renda nas pesquisas domici- taram a ter muita importância em houve estabilidade entre 2006 e
liares estavam subestimadas. Mas todo o mundo, pois são uma forma 2012, não queda.
já sabemos, por exemplo, que cada de se analisar a história de longo
pessoa das elites ocupacionais e prazo da desigualdade. No Brasil, a De todo modo, o que importa não
educacionais contribui de forma primeira série de longo prazo sobre são os pequenos sobe e desce e sim
muito desproporcional para a de- desigualdade ano a ano é do Pedro as grandes tendências, pois é isso
sigualdade de renda. Elites edu- Souza, do Ipea, publicada em 2014, que ajuda a explicar o que causa a
cacionais são as pessoas com for- e que cobre de 1933 a 2012. Recen- desigualdade no país e o que pode
mação naquilo que alguns chamam temente essa série foi alongada e ser feito para reduzi-la. Precisa- 83
de proissões imperiais, como me- conta com dados desde 1928. mos saber o que muda no que sa-
dicina, engenharia, direito e algu- bemos sobre desigualdade diante
mas outras novas atividades. Elites É difícil resumir um período tão das novas evidências do imposto
ocupacionais são os empresários. longo de história em poucas pala- de renda. Aprendemos muito com
Estudos recentes também mostram vras, mas há algo na série que cha- as PNAD, agora precisamos colocar
que essas elites são compostas pre- ma a atenção: nos períodos de di- esse conhecimento à prova, pois as
dominantemente por homens bran- tadura a desigualdade sobe, nos de PNAD subestimam a renda no topo
cos com mais de 45 anos de idade. democracia ela cai. Ao que parece, da distribuição.
As desigualdades de gênero, raça os níveis mais baixos de desigual-
e geração parecem ser maiores do dade da história brasileira foram IHU On-Line – Por que estudar
que se acreditava. no começo dos anos 1960 e isso foi os mais ricos? De que forma eles
revertido bruscamente em 1964, ajudam a compreender os mean-
IHU On-Line – Historicamente, mesmo antes do milagre econômi- dros de uma sociedade em que a
quais foram os aspectos determi- co do inal da década. Não deve- maioria massiva da população é
nantes da desigualdade no Brasil? mos, portanto, subestimar o papel pobre?
Como foram medidos e analisados que o Estado e a política têm na
Marcelo Medeiros – Um quarto
os dados sobre a desigualdade? desigualdade.
de toda a renda do país está con-
Marcelo Medeiros – Os primeiros centrado em 1% dos adultos. Meta-
estudos sobre desigualdade de ren- IHU On-Line – De que forma a de em 5% da população. Quando se
da no Brasil datam da década de pesquisa A estabilidade da de- fala de renda, fala-se de algo que
1930. Eram estudos baseados em sigualdade de renda no Brasil, é apropriado, predominantemen-
dados do imposto de renda, recém- 2006 a 2012: Estimativa com da- te, pelos ricos. Por isso o compor-
-criado. Há estudos parecidos nas dos do imposto de renda e pes- tamento da renda dos ricos afeta
décadas de 1940, 1950 e 1960. A quisas domiciliares,1 publicada muito o comportamento geral da
partir dos anos 1970 o Brasil passa ano passado, atualiza nossa com- desigualdade. Aliás, também quan-
a contar com a Pesquisa Nacional do se fala de crescimento, fala-se
1 Leia mais sobre a pesquisa nas Notícias
por Amostra de Domicílio – PNAD, do Dia do IHU, disponível em http://bit. de algo que será apropriado, pre-
pesquisas domiciliares de excelen- ly/1LZLYny. (Nota da IHU On-Line) dominantemente, pelos ricos. En-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

tre 2006 e 2012, o 1% mais rico i- pagas pelo Estado contribuem com IHU On-Line – Em que medida
cou com 28% dos frutos de todo o uma parcela não desprezível da a taxação das grandes fortunas
crescimento do país. desigualdade, mas isso não é ne- pode contribuir no processo de
cessariamente um problema: se o redução da iniquidade social? Em
IHU On-Line – Embora os pro- Estado contratar mais enfermeiras que medida são insuicientes?
gramas sociais do Estado sejam para cuidar de pacientes nos hos-
Marcelo Medeiros – Não se deve
voltados à população mais empo- pitais públicos, pagará mais salá-
tributar as grandes fortunas. Deve-
brecida, como explicar o fato de rios e irá provavelmente aumentar
-se tributar todas as fortunas. Im-
que os maiores luxos de renda sua participação na desigualdade,
postos são uma contribuição feita
estatal sejam destinados às popu- mas isso não deve ser visto como
para cuidar do bem comum. Todos
lações da parte de cima da pirâ- algo ruim. Nem todo aumento da
têm o dever de contribuir para o
mide social? Como compreender desigualdade é ruim, nem toda re-
bem comum, na proporção de suas
os paradoxos que estão em jogo dução é boa. O problema é bem
capacidades. Quem pode mais,
nestes processos? mais complicado.
paga mais. Por isso, precisamos
Marcelo Medeiros – O que é im- rever não só a forma como tribu-
portante nisso é entender que o IHU On-Line – De que ordem são tamos fortunas, mas toda nossa
Estado é importante para determi- os desaios para superar a desi- tributação. Precisamos há anos de
nar a desigualdade. Ou seja, desi- gualdade social no Brasil? algo difícil de fazer, uma reforma
gualdade é um problema político, tributária. Nas últimas décadas só
Marcelo Medeiros – Não existe
no sentido dado pela Economia temos feito remendos, mas ne-
uma solução simples, rápida e ba-
Política à expressão. Quando o Es- nhuma reforma de maior fôlego.
rata para um problema dessa mag-
tado faz políticas para os mais po-
nitude. Uma fórmula mágica desse Temos uma carga tributária dese-
bres, ajuda a reduzir um pouco a
tipo provavelmente está fadada quilibrada, que dá muito peso aos
desigualdade; mas quando dá sub-
ao fracasso. Não é simples fazer o tributos sobre produção, consumo
sídios, investe em infraestrutura,
Brasil ter a desigualdade da Áus- e trabalho e pouco peso ao imposto
ou mesmo quando faz políticas de
tria, assim como não é simples o de renda. Deveria ser o contrário,
controle da inlação, ele pode es-
Brasil ter o PIB per capita da Áus- pois o imposto de renda é economi-
tar ajudando diretamente os mais
84 ricos. tria. Uma coisa é certa: igualdade camente muito mais eiciente que
tem custos, esses custos não são outros impostos, além de ser tam-
Nosso estudo mostra que a baixos. Criar uma sociedade justa bém mais justo.
maior parte da população dá ou dá trabalho, e justiça implica re-
recebe diretamente rendas do Es- É importante termos uma tribu-
duzir uma série de vantagens que
tado. Por exemplo, dá na forma de tação melhor, que ao mesmo tem-
hoje tem a população mais rica.
imposto de renda e contribuições po seja mais produtiva e mais justa
previdenciárias e recebe na for- Por outro lado, igualdade é mais que a atual. Mas há muito mais na
ma de transferências e salários. O eiciente. É melhor para a econo- promoção da igualdade que os tri-
saldo desses luxos de renda é que mia. Nossos níveis de desigualdade butos. Os impostos são importantes
o Estado acaba transferindo mais são disfuncionais, atrapalham o para arrecadar de um lado e fazer
dinheiro para os mais ricos do que bom desempenho de nossa econo- investimentos de outro. É com
para os mais pobres. Em parte, isso mia, estimulam comportamentos impostos que se cria infraestrutu-
é esperado, pois as pessoas con- predatórios e desestimulam com- ra e se investe em educação, por
tratadas pelo Estado geralmente portamentos produtivos. Temos exemplo. Sem esses e outros inves-
têm maior qualiicação e isso está que mudar isso, mas vai custar timentos, vamos icar para trás na
associado a maiores salários. É im- muito, econômica e politicamente, corrida internacional estabelecida
portante entender que as rendas e levará um bom tempo. pela globalização. ■

LEIA MAIS...
— Desigualdade de renda no Brasil: os 10% mais ricos e a metade mais pobre. Entrevista com
Marcelo Medeiros publicada nas Notícias do Dia, de 01-10-2014, no sítio do IHU, disponível
em http://bit.ly/1GMvu57;
— Problema está ligado à questão cultural, e não à baixa renda familiar. Artigo de Marcelo
Medeiros reproduzido nas Notícias do Dia, de 03-01-2012, no sítio do IHU, disponível em
http://bit.ly/1MkD6bj.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

TEOLOGIA PÚBLICA

O princípio da sinodalidade em
uma Igreja pós-convencional

“O
Por Sérgio Ricardo Coutinho

Sínodo possibilitou aos participantes que colocassem sua racio-


nalidade comunicativa em uso. Realizado em duas etapas, este
evento provocou, pelo menos na esfera do sistema burocrático
romano, a abertura de um processo de liberação do ‘potencial de racionalidade
contido no agir comunicativo’, por meio daquilo que Habermas chamou de ‘verba-
lização do sagrado’. A ideia de verbalização do sagrado traduz uma ‘secularização
racional’ do vínculo social primitivo na força ilocucionária da linguagem, cuja au-
toridade está ligada à força não-coercitiva, motivada racionalmente, pelo melhor
argumento”, escreve Sérgio Coutinho, professor de História.
Segundo ele, através desse encontro, “Francisco conduz a Igreja a se encontrar
com a sociedade moderna pós-convencional, ‘sem medo e sem esconder a cabeça
na areia’”. Coutinho ainda entende que o Papa está “disposto a dar provas da sua
vitalidade na contemporaneidade e sem ‘medo de abalar as consciências aneste-
siadas ou sujar as mãos discutindo, animada e francamente’”.
Sérgio Ricardo Coutinho é professor de História da Igreja no Instituto São Boa-
ventura de Brasília e da disciplina “Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais”,
85
no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília.
O artigo foi publicado originalmente nas Notícias do Dia, de 28-10-2015, no sítio
do IHU, disponível em http://bit.ly/1GJfC3I.
Eis o artigo.

“Uma condição geral de base é a seguinte: falar cla- exerce-se com estas duas atitudes”. (Discurso do Papa
ro. Que ninguém diga: ‘Isto não se pode dizer; pensará Francisco na abertura da III Assembleia Geral Extraor-
de mim assim ou assim...’. É necessário dizer tudo o dinária do Sínodo dos Bispos, 06/10/2014).
que se sente com parrésia1. Depois do último Consis-
Francisco propôs, há um ano, uma “reviravolta lin-
tório (fevereiro de 2014), no qual se falou sobre a fa-
guística” (linguistic turn): dizer tudo sem medo e ou-
mília, um cardeal escreveu-me dizendo: é uma lástima
que alguns Purpurados não tiveram a coragem de di- vir com humildade. Com isso, a Igreja, após o encer-
zer certas coisas por respeito ao Papa, talvez julgando ramento deste Sínodo da Família2, retoma a prática
que o Papa pensasse de outra maneira. Isto não está 2 Sínodo da Família: em 2013 o papa Francisco convocou o Sínodo
bem, isto não é sinodalidade, porque é necessário di- sobre a família, intitulado “Sínodo dos Bispos: os desaios pastorais da
família no contexto da evangelização”. Na primeira etapa, o Vaticano
zer tudo aquilo que, no Senhor, sentimos que devemos
enviou às dioceses do mundo todo um questionário de 38 perguntas
dizer: sem hesitações, sem medo. E, ao mesmo tem- sobre o tema, que serviu como um documento preparatório para a III
po, é preciso ouvir com humildade e aceitar de cora- Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Famí-
lia, que ocorreu em outubro de 2014. Durante a III Assembleia Extra-
ção aberto aquilo que os irmãos dizem. A sinodalidade ordinária do Sínodo dos Bispos, no Vaticano foi produzido um texto
com 46 pontos a serem reletidos pela comunidade católica. Todo esse
1 Parrésia: na retórica, parrésia é descrita como franqueza, coniança processo culminou na XIV Assembleia Geral Ordinária, que ocorreu
ou ousadia para falar em público. A palavra grega é frequentemente entre 4 e 25 de outubro de 2015, no Vaticano. O discurso do Papa Fran-
usada para descrever certos diálogos atribuídos a Jesus Cristo no Novo cisco aos bispos pode ser conferido pelo link http://bit.ly/1kQWt60. O
Testamento. (Nota da IHU On-Line) sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU também vem publicando

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

nicativa. Ou seja, o proferimento


linguístico também é uma forma
de ação. É uma forma de agir que

O Sínodo possibilitou
serve ao estabelecimento de rela-
ções interpessoais. É o que Haber-

aos participantes que


mas chama por agir comunicativo.
O conceito habermasiano de ra-
zão comunicativa visa mostrar que
colocassem sua a estrutura racional interna dos
racionalidade processos de intercompreensão se
produz melhor num contexto so-
comunicativa em uso cial, político e cultural, em que o
“mundo vivido” não é mais o mo-
nopólio das interpretações arcaicas
iniciada no Concílio Vaticano II3 e se reinsere na mo-
subtraídas à relexão e das instituições autoritárias,
dernidade pós-convencional.
mas se abre à resolução discursiva dos problemas
Seguindo a tese de Jürgen Habermas4, a Igreja, de- sociais e políticos (e, porque não, eclesiais e pasto-
pois de 50 anos, faz novamente uma reviravolta linguís- rais). Por isso, Habermas acredita nos progressos de
tica, deixando de lado a concentração quase que ex- uma socialização relexiva no próprio seio do mundo
clusivista na dimensão semântica (conceitual-abstrata) vivido, apoiando-se nos recursos da discussão, isto
da linguagem dogmática. Com este Sínodo, a partir da é, efetuando-se na perspectiva do agir orientado a
parrésia dos Padres sinodais, a Igreja voltou a valorizar intercompreensão.
as “situações de fala”, das pretensões de validade, dos
O Sínodo possibilitou aos participantes que colocas-
argumentos, do uso da linguagem e de seus contextos,
sem sua racionalidade comunicativa em uso (e muitos
das tomadas de posição e dos papéis dialogais dos falan-
deles com muitos anos de inutilidade). Realizado em
tes. Numa palavra: da pragmática da linguagem.
duas etapas, este evento provocou, pelo menos na es-
De fato, este Sínodo possibilitou uma reviravolta fera do sistema burocrático romano (“colonizador” e
pragmática em que a linguagem passou a ser percebi- responsável por muitas patologias no “mundo da vida”
86 da não somente na sua dimensão semântica-conceitu- das comunidades eclesiais), a abertura de um proces-
al, mas, fundamentalmente, em sua dimensão comu- so de liberação do “potencial de racionalidade contido
no agir comunicativo”, por meio daquilo que Habermas
uma série de materiais acerca do Sínodo que pode ser acessado em ihu. chamou de “verbalização do sagrado”. A ideia de verba-
unisinos.br. (Nota da IHU On-Line)
3 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962 pelo Papa João
lização do sagrado traduz uma “secularização racional”
XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerramen- do vínculo social primitivo na força ilocucionária da lin-
to deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo VI. A revisão proposta por este guagem (realizar uma ação através de um enunciado),
Concílio estava centrada na visão da Igreja como uma congregação
de fé, substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior, que
cuja autoridade está ligada à força não-coercitiva, mo-
declarara a infalibilidade papal. As transformações que introduziu fo- tivada racionalmente, pelo melhor argumento.
ram no sentido da democratização dos ritos, como a missa rezada em
vernáculo, aproximando a Igreja dos iéis dos diferentes países. Este O Concílio Vaticano II, no nosso entender, já tinha
Concílio encontrou resistência dos setores conservadores da Igreja, iniciado o processo de dissolução de um imaginário e
defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos
poucos, esvaziados, retornando a Igreja à estrutura rígida preconizada
de ações tradicionais no meio do episcopado, do cle-
pelo Concílio Vaticano I. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU ro e dos iéis. No entanto, os últimos 30 anos icaram
produziu a edição 297, Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, de marcados por uma retomada de uma Igreja autorrefe-
15-6-2009, disponível em http://bit.ly/o2e8cX, bem como a edição
401, de 03-09-2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50 anos depois,
rencial, simultaneamente pré-convencional e conven-
disponível em http://bit.ly/REokjn, e a edição 425, de 01-07-2013, cional. Ou seja, por um lado, uma Igreja marcada por
intitulada O Concílio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar práticas direcionadas a legitimar autoridades, onde se
a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, disponível em http://bit.
ly/1cUUZfC. Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU
procurou criar homogeneidades e similitudes compor-
promoveu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igre- tamentais. O consenso era obtido mediante a imposi-
ja no contexto das transformações tecnocientíicas e socioculturais da ção de uma fala oriunda do topo do poder (o papado)
contemporaneidade. As repercussões do evento podem ser conferidas
na IHU On-Line, edição 466, de 01-06-2015, disponível em http://
à totalidade dos iéis, determinando a permanência do
bit.ly/1IfYpJ2 e também em Notícias do Dia no sítio IHU. (Nota da estado de coisas, das relações sócio-eclesiais, manten-
IHU On-Line) do nas pessoas a resignação.
4 Jürgen Habermas (1929): ilósofo alemão, principal estudioso
da segunda geração da Escola de Frankfurt. Herdando as discussões Conforme bem lembrou o historiador Alberto Mello-
da Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa como
ni5, desde o século XI, o pontíice sempre subtraiu a
superação da razão iluminista transformada num novo mito, o qual
encobre a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos
deve construir-se pela troca de ideias, opiniões e informações entre os 5 Alberto Melloni (1959): historiador da igreja conhecido especial-
sujeitos históricos, estabelecendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se mente por seu trabalho sobre o Concílio Vaticano II. Melloni estudou
para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line) em Bolonha, Cornell e Fribourg. Ele lecionou na Universidade de Bo-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

potestade dos bispos. Paulo VI6 restitui algumas facul- tra Francisco. Como afirma Massimo Faggioli 7, isto
dades em atenção ao Vaticano II. No entanto, neste se deu, em parte, pela “aversão pessoal ao papa
Sínodo, “nunca, há mil anos, um papa tinha cedido argentino por parte dos órfãos dos pontificados
poderes por vontade própria”. anteriores”, mas também pelo “sintoma da ideo-
Por outro lado, e simultaneamente, uma Igreja logização e doutrinalização do catolicismo ‘lei e
centralizada numa normatividade social baseada na ordem’”.
“Lei” (Código de Direito canônico e Catecismo da Este Sínodo propiciou um novo ethos que privile-
Igreja Católica) e conirmada pela Tradição de modo giou a “verbalização do sagrado”, a inovação, a par-
formal. Toda a identidade católica, coletiva ou indi- ticipação, a iniciativa, a parceria, a deliberação co-
vidual, devia estar baseada na aceitação das conven- mum, as reformas negociadas e não outorgadas, não
ções, em conformidade com as normas numa imitação permitindo a repetição literal da Tradição e obrigan-
ou reprodução social. De fato, como mais uma vez do a uma interpretação das mudanças. Neste modelo
lembra Meloni, o próprio Sínodo dos bispos, apesar do de Igreja pós-convencional, Francisco encontrou nos
nome, nunca foi nada mais do que um órgão consulti- “princípios de organização” de sinodalidade e de co-
vo, que entregava ao papa os próprios antagonismos, legialidade, e no princípio da “misericórdia”, aqueles
para que ele mediasse e chegasse a um consenso por valores universais presentes no Evangelho: integrida-
todos sem correr riscos. de, direitos humanos, reciprocidade, justiça social,
Foram os defensores deste modelo de Igreja que liberdade e igualdade.
geraram os incidentes e destilaram o veneno con-
Com este Sínodo, Francisco conduz a Igre-
lonha, a Universidade de Roma III e é professor de História do Cristia- ja a se encontrar com a sociedade moderna pós-
nismo na Universidade de Modena e Reggio Emilia, titular da Cátedra convencional, “sem medo e sem esconder a cabeça
Unesco para o Pluralismo Religioso e Paz, e Diretor da Fondazione per
le Scienze Religiosas João XXIII de Estudos da Religião em Bolonha.
na areia”, disposto a dar provas da sua vitalidade
Também é colunista do Il Corriere della Sera e é comentarista da RAI na contemporaneidade e sem “medo de abalar as
TV. Leia O modelo de família que surge do Sínodo, artigo de Alberto consciências anestesiadas ou sujar as mãos discu-
Melloni publicado nas Notícias do Dia, de 26-10-2015, disponível em
http://bit.ly/1XLDpnG. (Nota da IHU On-Line) tindo, animada e francamente”.■
6 Papa Paulo VI: nascido Giovanni Battista Enrico Antonio Maria
Montini, Paulo VI foi o Sumo Pontíice da Igreja Católica Apostólica 7 Massimo Faggioli (1970): historiador da Igreja, Professor Associa-
de 21 de junho de 1963 até 1978, ano de sua morte. Sucedeu ao Papa do do Departamento de Teologia e diretor do Instituto para o catolicis-
87
João XXIII, que convocou o Concílio Vaticano II, e decidiu continuar mo e Cidadania na Universidade de St. Thomas, St. Paul, Minnesota.
os trabalhos do predecessor. Promoveu melhorias nas relações ecu- Leia, também, O ataque contra Francisco: a carta dos 13, mas não só,
mênicas com os Ortodoxos, Anglicanos e Protestantes, o que resultou artigo de Massimo Faggioli publicado nas Notícias do Dia, de 14-10-
em diversos encontros e acordos históricos. (Nota da IHU On-Line) 2015, disponível em http://bit.ly/1HoreUy. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS...
— Igreja e sociedade: o projeto de Francisco. Artigo de Sérgio Ricardo Coutinho, publicado em
Notícias do Dia de 25-06-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/1N7ioRl.
— O desaio da conversão pastoral e de um novo modelo de Igreja. Entrevista com Sérgio
Ricardo Coutinho, publicada na revista IHU On-Line nº 465, de 18-05-2015, disponível em
http://bit.ly/1LBEglD.
— Os “novos” bispos de Francisco no Brasil: mudar para que as coisas continuem as mesmas.
Artigo de Sérgio Ricardo Coutinho, publicado em Notícias do Dia de 19-02-2015, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1LBEo4k.
— Para além de ruptura e continuidade. O Concílio Vaticano II e os diferentes projetos histó-
ricos. Entrevista com Sérgio Ricardo Coutinho, publicada na revista IHU On-Line nº 395, de
04-06-2012, disponível em http://bit.ly/1LBEtVJ.
— A recepção de Francisco no Brasil Entre o início e o im de uma “primavera”. Artigo de
Sérgio Ricardo Coutinho, publicado em Notícias do Dia de 24-03-2013, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1S9bmvl.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

TEOLOGIA PÚBLICA

“Uma Igreja da Reforma precisa


estar sempre sendo reformada”
“Não há organização religiosa que perpasse os tempos sem um corpo
doutrinário, que podemos chamar, no caso das instituições cristãs,
de princípios fundamentais”, avalia Oneide Bobsin
Por Patrícia Fachin

A pesar de o termo protestante


estar “cada vez mais em desu-
so no Brasil”, nas duas Igrejas
Luteranas – IELB e IECLB – “que trazem
em sua identiicação uma explicitação
individualmente. Costumo brincar que
o sistema capitalismo não tem graça.
E os iéis destas Igrejas herdeiras de
uma concepção gratuita da vida e da
fé estão tão integrados na visão ideo-
do patrimônio teológico do reformador lógica do sistema, que diiculta a expli-
Martinho Lutero (...) o traço étnico citação de uma peculiaridade que não
teuto-brasileiro ainda é muito saliente. é própria das Igrejas da Reforma, mas
Mas isto é um traço externo. Tais igre- do cristianismo com as suas múltiplas
jas luteranas, herdeiras da Reforma do igrejas – a reciprocidade que nasce da
século XVI, continuam atualizando a
88 gratuidade”, justiica.
compreensão de que os seres humanos
não podem contribuir com a salvação. Em 2017, as Igrejas Evangélicas de
Mas tocados por ela, a salvação de gra- Conissão Luterana irão celebrar os 500
ça por meio da fé, se envolvem com os da Reforma, e uma série de atividades
problemas da humanidade”, diz Onei- estão sendo planejadas para marcar a
de Bobsin à IHU On-Line, na entrevista data. Toda essa movimentação, diz Bo-
a seguir, concedida por e-mail por oca- bsin, “tem relação com a busca de atu-
sião do dia de hoje em que se celebra alização da Reforma do século XVI, com
os 498 anos da Reforma. o objetivo de reairmar a mensagem de
De acordo com Bobsin, “este traço Cristo para um mundo globalizado, ain-
distintivo é de difícil tradução para o da pouco reconciliado”.
nosso contexto brasileiro; e não o é Oneide Bobsin é professor de Ciên-
por causa do catolicismo. Acho que a
cias da Religião na Escola Superior de
concepção de vida que se baseia na
Teologia – EST, e é doutor em Ciências
graça de Deus bate de frente com a
Sociais pela Pontifícia Universidade de
visão de mundo do sistema capitalista
São Paulo – PUC-SP.
de consumo, que nos vende a ilusão de
que somos poderosos e podemos tudo Conira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o signiica- ma. Valho-me da condição de pro- burguesa e a revolução socialista.
do da Reforma? fessor de Ciências da Religião para São referências que nos consti-
comentar as perguntas. tuem como ocidente distinto de
Oneide Bobsin – O meu ponto de outros povos. Como vivemos cinco
partida não se baseia estritamente Para o nosso mundo ocidental séculos após o movimento da Re-
numa teologia confessional, embo- a Reforma Protestante é uma das forma Protestante, não temos mais
ra eu seja um teólogo identiicado grandes referências. No campo po- a dimensão do lugar que a religião
com uma Igreja oriunda da Refor- lítico tivemos a revolução francesa ocupava naquela época. Uma mu-

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DE CAPA IHU EM REVISTA

que o sistema capitalismo não tem


graça. E os iéis destas Igrejas her-
deiras de uma concepção gratuita

Quando a pureza religiosa, polí-


da vida e da fé estão tão integra-
dos na visão ideológica do sistema,
que diiculta a explicitação de uma
tica ou de outra natureza se ins- peculiaridade que não é própria
tala, procura-se eliminar o dife- das Igrejas da Reforma, mas do

rente, simbólica ou isicamente


cristianismo com as suas múltiplas
igrejas – a reciprocidade que nasce
da gratuidade.

IHU On-Line – Na igreja católica,


dança no campo religioso impac- IHU On-Line – Qual é a peculia- ao menos em algumas regiões do
tava profundamente a sociedade ridade do protestantismo pratica- país, percebe-se um sincretismo
em suas múltipla dimensões. Hoje, do no Brasil? religioso. O mesmo ocorre en-
em nosso contexto, uma mudan- tre os protestantes? Como avalia
Oneide Bobsin – O termo “pro-
ça religiosa tende mais para uma esse tipo de fenômeno e de que
testante” está cada vez mais em
adaptação à sociedade. Evidente modo o protestantismo dialoga
desuso no Brasil. A grande mídia
que precisamos desconsiderar o com o pluralismo religioso e o
comprou a proposta de igrejas
impacto do fundamentalismo. Tam- sincretismo?
pentecostais que renomearam os
bém precisamos considerar que a
cristãos não católicos apostóli- Oneide Bobsin – Parto do pres-
Reforma Protestante foi um movi- cos romanos como “evangélicos”.
mento religioso dentro da cristan- suposto que não há religião pura.
Não vou, pois, falar deste campo E quando a pureza religiosa, políti-
dade ocidental heterogêneo e que “evangélico”, que também bebe,
não tinha como objetivo a cisão do ca ou de outra natureza se instala,
de certa forma, da Reforma do sé- procura-se eliminar o diferente,
cristianismo. culo XVI. Limito-me às duas Igre- simbólica ou isicamente. Não con-
jas Luteranas – IELB e IECLB – que seguimos entender o Novo Testa-
IHU On-Line – Qual foi o impac- trazem em sua identiicação uma
89
mento sem o Antigo Testamento.
to religioso, social e cultural da explicitação do patrimônio teoló- Na verdade, os cristãos são judeu-
Reforma? gico do reformador Martinho Lute- -cristão. Nossa Bíblia é composta
Oneide Bobsin – Nenhum fenô- ro, apesar das diferenças entre si. de duas tradições, embora as Igre-
meno, seja ele social, político ou Como protestantismo luterano de jas cristãs lêem o Antigo Testamen-
religioso pode ser visto de forma transplante, o traço étnico teuto- to através do Novo. Assim, como há
estanque. Há uma inter-relação -brasileiro ainda é muito saliente. uma variedade de práticas católi-
entre as diversas dimensões da Mas isto é um traço externo. Tais cas que se interpenetram com ou-
realidade. Nesta perspectiva, a igrejas luteranas, herdeiras da Re- tras tradições religiosas, como, por
Reforma retomou aspectos impor- forma do século XVI, continuam exemplo, a indígena ou de matriz
tantes do cristianismo que a se- atualizando a compreensão de que africana, da mesma forma, no pro-
dimentação eclesiástica fora tor- os seres humanos não podem con- testantismo isto também ocorre,
nando irrelevante. A valorização tribuir com a salvação. Mas tocado embora seja menos admitido pelo
da educação pública recebeu for- por ela, a salvação de graça por clero e por teólogos. Principal-
te impulso da Reforma; no campo meio da fé, se envolvem com os mente no contexto urbano, onde o
político, a separação entre Igreja problemas da humanidade. controle social da comunidade de
e Estado impulsionou uma autono- Em outras palavras, o que rece- fé é menor, há pessoas luteranas
mia relativa entre política e reli- bemos na fé devemos passar aos que recorrem a outros credos nos
gião. Igreja e Estado passam a ser outros no amor. Este traço distin- momentos difíceis da vida, como
distintos, mas não separados. Com tivo é de difícil tradução para o luto, desemprego, doença etc. E
isto temos impulsos para a consti- nosso contexto brasileiro; e não o não signiica que estas pessoas dei-
tuição do Estado moderno, laico. é por causa do catolicismo. Acho xam de participar de sua Igreja.
Repito, não que isto tivesse sido que a concepção de vida que se No imaginário religioso dominante,
um plano explícito dos reformado- baseia na graça de Deus bate de os sistemas religiosos são comple-
res; antes foi uma decorrências de frente com a visão de mundo do mentários. Na cabeça da religião
novas concepções que já estavam sistema capitalista de consumo, oicial existe uma certa ilusão de
nos primórdios do cristianismo. A que nos vende a ilusão de que so- exclusão dos sistemas, que para
música e o estudo das línguas anti- mos poderosos e podemos tudo a maioria é complementar. Como
gas recebem impulsos. individualmente. Costumo brincar a televisão trouxe a religião para

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

dentro de casa, este processo sin- diferenças de princípios entre as a partir dos efeitos da legalidade,
crético tende a se aprofundar. Igrejas. Mas isto é assunto para com a eleição de Ildo Meneghet-
teologia confessional. ti para o Governo do Estado. De
IHU On-Line – Na igreja católi- qualquer forma, a transferência
ca há tentativas de rever tanto IHU On-Line – Em que consiste da Assembleia foi um duro golpe
a doutrina quanto as práticas de sua pesquisa acerca da atuação na IECLB da época, gerando, logo
atuação, a exemplo do Sínodo dos da Igreja Evangélica de Conissão em seguida, um rico debate de in-
bispos, que discutiu uma série de Luterana no Brasil durante a dita- serção dela no contexto brasileiro
questões relacionadas à família. dura militar? empobrecido.
Há possibilidade de revisões dou-
Oneide Bobsin – Estou concluin-
trinais ou das práticas religiosas IHU On-Line – Como estão os
do uma pesquisa sobre Direitos
entre os protestantes? Em que preparativos para a celebração
Humanos, Ditadura Civil-militar
aspectos? Como se dá essa discus- dos 500 anos da Reforma?
e Igreja. A pesquisa privilegiou o
são na sua igreja?
entorno dos anos de 1970, quando Oneide Bobsin – Há um grande
Oneide Bobsin – Não há organiza- deveria ocorrer no Brasil a Assem- movimento bem diversiicado no
ção religiosa que perpasse os tem- bleia da Federação Luterana Mun- sentido de buscar uma atualiza-
pos sem um corpo doutrinário, que dial, uma assembleias de igrejas ção da mensagem da Reforma para
podemos chamar, no caso das ins- luteranas que representavam mais múltiplos contextos, sem cair con-
tituições cristãs, de princípios fun- ou menos 70 milhões de pessoas. fessionalismos excludentes, como
damentais. Tais princípios podem Poucas semanas antes de sua rea- no passado. Tenho poucas condi-
ser comparados aos fundamentos lização, ela fora transferida para ções para fazer avaliações quan-
de um prédio, via de regra, não Evian, França. Comitivas de várias titativas. No campo teológico há
visíveis. Mas, diante da complexi- partes do mundo estavam reticen- uma grande movimentação. A Fa-
dade da vida, de novos desaios e tes com a presença do Governo culdades EST, por exemplo, criou
de novas perguntas, as instituições brasileiro na Assembleia. Circula- uma Cátedra de Pesquisa sobre
precisam descongelar a tradução va pela Europa e pela América do Lutero. Assim, há tantas outras
das doutrinas para que possam ser Norte, de onde viria grande par- iniciativas no campo teológico e
relevantes para os novos tempos. te das comitivas, que o regime
90 As perguntam mudam; elas preci- brasileiro desrespeitava os direi-
eclesial mundo afora. Tenho certe-
za que toda a movimentação tem
sam ser respondidas com as mes- tos humanos, especialmente dos
relação com a busca de atualização
mas doutrinas. Na maioria das igre- oponentes políticos. A questão da
da Reforma do século XVI, com o
jas cristãs, e não é diferente nas tortura dos inimigos do governo
objetivo de reairmar a mensagem
grandes religiões, são formados militar era vista como inverdades
de Cristo para um mundo globaliza-
corpos de teólogos e teólogos, cuja denunciadas pela imprensa inter-
do, ainda pouco reconciliado.
tarefa é auscultar as novas pergun- nacional para algumas das lideran-
tas e atualizar as tradições. Preiro ças locais. Ainal, precisamos constante-
falar em atualização que “revisão mente de reformas em todos os
A direção da Igreja Luterana
de doutrinas”. campos. Lutero havia dito que
de então airmava que não havia
uma Igreja da Reforma precisa
Uma instituição religiosa que tortura no Brasil, embora pessoas
estar sempre sendo reformada.
não sabe traduzir sua mensagem exiladas comentavam o contrário
Esperamos isto para o Estado bra-
para novos tempos, certamen- no exterior. Fiz uma pesquisa en-
sileiro, bem como necessitamos
te trai seus princípios. Um dos trevistando um grupo de pessoas
de tantas outras reformas, como
problemas das Igrejas, muitas luteranas que participaram na re-
agrária, a política, educacional,
vezes, reside na dificuldade de sistência ao Regime Militar através
tradução de princípios. A tradu- da participação política, movimen- urbana etc., de forma a que to-
ção das palavras de Cristo é um tos estudantil e, posteriormente, dos/as sejam incluídos/as na dis-
problema complexo, que merece na luta dos pequenos agricultores. tribuição da riqueza. Uma das
revisão no sentido de atualiza- Tais pessoas conirmam a existên- grandes contribuições da Reforma
ção, mas sem cair em modismos. cia de violação aos direitos hu- Protestante foi a subordinação
Há poucos dias o padre Zezinho manos, torturas, antes de 1970, da economia à política. Vivemos
disse algo fundamental, como embora os “anos de chumbo” são numa subordinação da política a
aviso a alguns dos novos padres considerados a partir de 70. A Co- interesses econômicos de elites,
cantores: “Quando o meio se tor- missão Estadual da Verdade/RS, que desiguram a cidadania.
na mais importante que a men- da qual iz parte, tinha como ob-
sagem, algo está equivocado no jeto de apuração as violações no IHU On-Line – Como avalia a
meio e na mensagem”. Ele ques- período de 1961 a 1985. No RS, por visita do papa Francisco a Igreja
tionou o modismo. Contudo, há exemplo, a repressão já se instalou evangélica e luterana em Roma?

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Oneide Bobsin – Só posso emi- da Igreja Católica porque é um de Cristo. Nos seus gestos pasto-
tir uma opinião pessoal, como papa muito atualizado. Seus ges- rais estão implícitos os valores do
os demais comentários acima: é tos simples, fransciscanos, denun- evangelho de Cristo. É uma tes-
um papa certo para um momen- ciam um modo de vida arrogante
temunha de seu tempo. Ora, não
to certo. Em outras palavras, é e consumista que ameaça o nosso
uma pessoa situada no tempo e planeta. Talvez tenha muitos con- é fácil ser contemporâneo de seu
nos grandes dramas da humanida- litos internos com a hierarquia, próprio tempo. Papa Francisco
de. Sabe se comunicar para além que teme atualizar a mensagem consegue.

LEIA MAIS...
— “A participação dos evangélicos na vida política desprivatiza as igrejas”. Entrevista com
Oneide Bobsin publicada nas Notícias do Dia, de 25-02-2015, no sítio do IHU, disponível em
http://bit.ly/1WtkFw2;
— Libertados pela graça de Deus. Dia 31 de outubro a festa da Reforma protestante. Repor-
tagem publicada nas Notícias do Dia, de 27-10-2015, no sítio do IHU, disponível em http://
bit.ly/1koIjbw;
— Protestantes alemães pedem perdão pela iconoclastia da Reforma. Reportagem publicada
nas Notícias do Dia, de 30-07-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LNQQy5;
— O tributo ao ecumenismo. Primeira vez que um Papa visita um templo valdense. Reporta-
gem publicada nas Notícias do Dia, de 22-06-2015, no sítio do IHU, disponível em http://
bit.ly/1Mejnyi;
— Novo presidente da Igreja Evangélica Alemã conirma unidade à frente dos 500 anos da
Reforma. Reportagem publicada nas Notícia do Dia, de 04-02-2015, disponível em http:// 91
bit.ly/1MuT7eN;
— O Papa poderá participar do jubileu da Reforma. Reportagem publicada nas Notícias do Dia,
de 22-01-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Pj6bJv;
— Reencarnação – entre o determinismo e a liberdade. Entrevista com Oneide Bobsin publica
nas Notícias do Dia, de 06-03-2007, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1NagwCV.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

#Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos

Contenção da Rússia, ontem e hoje


Por Diego Pautasso

“A desintegração da União Soviética e as fragilidades da Nova Rússia


governada por Boris Yeltsin (1991-1999) aparentaram o im da po-
lítica de contenção. Bastou surgir uma liderança como Vladimir
Putin (presidente da Rússia de 1999 a 2008, retornando ao Kremlin desde 2012)
disposto a recolocar a Rússia no centro da política internacional, desaiando ini-
ciativas e impondo resistências aos planos dos EUA e seus aliados, para que a polí-
tica de contenção ganhasse evidência novamente”, avalia Diego Pautasso.
Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política com ênfase em Relações
Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e gradu-
ado em Geograia pela UFRGS; atua como professor de Relações Internacionais da
Unisinos. E-mail: dgpautasso@gmail.com.
Eis o artigo.

92 O quadro histórico das relações da Rússia com o Oci- fora do domínio dos países membros (Balcãs), sem que
dente é repleto de contradições: a invasão napoleô- estes estivessem sendo ameaçados e, para completar,
nica, o apoio à contrarrevolução russa, o ‘cordão sa- ultrapassando o mandato da ONU. Paralelamente à ex-
nitário’ e a brutal agressão nazista. Durante a Guerra pansão da OTAN, tem ocorrido uma notável expansão
Fria, a política de contenção da URSS desencadeada da União Europeia (UE) em direção ao Leste Europeu,
pelos EUA inspirada em George Kennan redundou no de modo que em 2004 entraram Malta e Chipre e os
cerco militar (OTAN, CENTO e OTASE), dando substân- países do antigo campo socialista, como Estônia, Letô-
cia às formulações geopolíticas de Nycholas Spykman, nia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, Eslováquia,
segundo o qual quem controlasse o rimland controlaria Hungria e Eslovênia, aos quais se somaram em 2007
a Eurásia (heartland mackinderiano) e, com efeito, o Romênia e Bulgária e, em 2013, Croácia. E ainda es-
mundo. tão em processo de tramitação sobretudo os países da
antiga Iugoslávia (Sérvia, Bósnia, Macedônia), além de
A desintegração da União Soviética (URSS) e as fra-
Albânia, Islândia e Turquia. Não por acaso, a Ucrânia
gilidades da Nova Rússia governada por Boris Yeltsin
de Petro Poroshenko (atual presidente e oligarca cuja
(1991-1999) aparentaram o im da política de conten-
fortuna tem duvidosa origem) assinou um acordo de
ção. Bastou surgir uma liderança como Vladimir Pu-
associação com a União Europeia prevendo a liberali-
tin (presidente da Rússia em duas ocasiões, de 1999
zação comercial e a futura integração ao bloco.
a 2008 e retornando ao Kremlin desde 2012) disposto
a recolocar a Rússia no centro da política internacio- Além das expansões da OTAN e União Europeia, de-
nal, desaiando iniciativas e impondo resistências aos vemos destacar outras iniciativas ocidentais voltadas
planos dos EUA e seus aliados, para que a política de a limitar o espaço de atuação da Rússia na política
contenção ganhasse evidência novamente. Esta é a internacional. Primeiro, o governo norte-americano do
lógica da Organização do Tratado do Atlântico Norte recém-eleito George W. Bush retirou em 2001 o país
(OTAN, aliança militar do Ocidente) que mais do que do Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM) assinado em
dobrou o número de integrantes: em 1999, ingressa- 1972 com a URSS, objetivando levar adiante a ideia
ram Hungria, Polônia e República Checa; em 2004, de construção de um Sistema de Defesa Antimíssil na
foram incluídas Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia e na República Tcheca. Em 2008, os três paí-
Romênia, Eslováquia e Eslovênia; e em 2009, aderi- ses assinaram um acordo que prevê a instalação desse
ram Albânia e Croácia – inclusive com uma intervenção sistema com uma base de dez mísseis interceptores na

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DE CAPA IHU EM REVISTA

A vilanização da Rússia volta-se a evi-


tar a formação do heartland baseado no
eixo Berlim-Moscou-Pequim completa-
mente fora do controle de Washington

Polônia e um radar de detecção na República Tcheca, inimigos capazes de prover a coesão para a sua lide-
provocando fortes reações do presidente Dmitri Med- rança: o discurso do ‘im da história’ e a Guerra Global
vedev (sucessor de Putin e seu aliado, governando de ao Terror tinham limites espaciais e temporais. É assim
2008 a 2012) e o recuo do presidente Barack Obama. que se enquadra a lógica de criar atritos e ameaças na
fronteira russa e esperar respostas airmativas como
Destaque-se ainda que o intervencionismo e o unila-
forma de forjar uma espécie de russofobia no Ociden-
teralismo dos EUA no Pós-Guerra Fria têm provocado
insegurança. Note-se que tais demonstrações de for- te e isolar o gigante eurasiano. A vilanização da Rússia
ça concentram-se no entorno estratégico da Rússia, volta-se a evitar a formação de um heartland baseado
principalmente as intervenções no Balcãs, quando da num eixo Berlim-Moscou-Pequim completamente fora
desintegração da Iugoslávia, e no Afeganistão, com a do controle de Washington.
declaração da Guerra Global ao Terror. Paralelamente, A vilanização da Rússia, em oposição a uma suposta
os EUA aproveitaram a oportunidade para a ampliação Europa historicamente democrática e civilizada, é par-
de sua capacidade de projeção de força, com a cons- te da narrativa voltada a reforçar visões maniqueístas.
trução de base aérea uzbeque de Khanabad e o aero- Entretanto, há mais contradições que perpassam os
porto de Manas, na Quirguízia. A presença na região espaços europeu e russo nesses séculos. Dialeticamen-
foi confrontada pela Rússia e China através da OCX, te, as principais potências europeias foram também
o que resultou no fechamento dessas bases militares promotoras do imperialismo no século XIX; o epicentro 93
em 2005 e 2014, respectivamente. Ademais, muitas das duas sangrentas guerras mundiais; e, após isso e já
intervenções ocorreram ultrapassando o mandato con- concomitante com a integração europeia, os respon-
ferido pelas Nações Unidas, como as agressões ao Ira- sáveis por violentas guerras contra os movimentos de
que (2003) e à Líbia (2011). Sem exceção, da Somália libertação nacional. No Pós-Guerra Fria, as potências
(1993) à Líbia e Síria (2013-14), todas as intervenções ocidentais foram artíices da traumática desintegração
tiveram resultados trágicos, sob qualquer perspectiva. da Iugoslávia, da expansão da União Europeia no ex-
Some-se a isso o apoio aberto a grupos oposicionis- -espaço soviético, da desestabilização de regimes na
tas em países vizinhos da Rússia. As ‘revoluções colori- Geórgia (2003) e Ucrânia (2004 e 2014) em favor de
das’ são ilustrativas: a revolução das rosas na Geórgia regimes de peril fascista. Sem mencionar suas con-
(2003), a revolução laranja na Ucrânia (2004) e a re- tribuições na destruição política e territorial de paí-
volução das tulipas na Quirguízia (2005). Nitidamente ses objetos de intervenção, como Afeganistão (2001),
são os golpes do século XXI, com grande mobilização Iraque (2003) e Líbia (2011). A Rússia, ao contrário,
de inteligência, recursos inanceiros, atuação de or- foi palco da mais importante revolução do século XX,
ganizações não governamentais etc. O expansionismo central para a universalização de direitos sociais inclu-
dos EUA e a contenção da Rússia fazem parte da cons- sive na Europa do Estado de Bem Estar, e do combate
trução da narrativa da “Nova Guerra Fria”. Diante da à mais retrógrada força política do século, o nazifas-
desintegração da URSS, os EUA se viram desprovidos de cismo. ■

Expediente
Coordenadora: nome da professora, com a maior titulação
Editor: Bruno Lima Rocha, com a maior titulação
Autor: nome do autor com a maior titulação

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

PUBLICAÇÕES

Um olhar biopolítico sobre a


bioética
Cadernos IHU ideias, em sua 229ª edição, publica o artigo “Um olhar
biopolítico sobre a bioética”, de Anna Quintanas Feixas da Universidade
de Girona, Espanha.
Nos últimos anos temos defendido a necessidade de cruzar a bioética
com os estudos biopolíticos. A razão principal reside no fato de pensar que
a bioética corre o risco de converter-se na “cara amável da biopolítica”
se, de forma consciente ou não, seu quefazer contribuir para maquiar,
esconder ou esfumar as relações de poder e as questões políticas que se
produzem em torno do “bios”. Seguramente, este perigo tem causas que
estão além da própria bioética, posto que parece ser uma tendência do
nosso tempo abusar do ponto de vista ético-humanitário, de tal forma que
a perspectiva política ica relegada ou esquecida.
A versão digital está disponível em http://bit.ly/1RDWmoj
Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas
diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solicitadas pelo en-
dereço humanitas@unisinos.br.
Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8213.

Concílio Vaticano II:


o diálogo na Igreja e a
94

Igreja do Diálogo
Cadernos Teologia Pública, em sua 101ª edição, traz
o artigo Concílio Vaticano II: o diálogo na Igreja e a
Igreja do Diálogo, de Elias Wolff, PUCPR (Pontifícia
Universidade Católica do Paraná).
Reletir sobre o Concílio Vaticano II implica reletir
sobre o diálogo na Igreja e a Igreja do diálogo como
um dos elementos centrais para o aggiornamento ecle-
siológico proposto pelo ensino conciliar. O Concílio foi
em si mesmo uma fecunda experiência de diálogo e essa experiência passa a conigurar o modo de ser e de agir
da Igreja. A partir de então, a Igreja desenvolve essa experiência em três principais horizontes: com a sociedade
(diálogo sociocultural); com as outras Igrejas (diálogo ecumênico); com as religiões (diálogo inter-religioso). Isso
implica saber situar-se no contexto sociocultural e religioso atual, que se caracteriza pela pluralidade. Nesse
contexto, é preciso superar toda tendência ao exclusivismo, à apologética conlitiva, ao universalismo mono-
polizador. E airmar uma “Igreja em saída”, “não autorreferenciada”, que não teme percorrer os caminhos do
diálogo, da comunhão e da parceria. Somente assim é possível um real aggiornamento da Igreja em sua auto-
consciência, suas instituições, seus projetos de evangelização, sua espiritualidade, na perspectiva do encontro
com as diferentes tradições socioculturais, eclesiais e religiosas do nosso tempo que a enriquecem. Esse modus
essendi e modus operandi da Igreja precisa ser airmado nas comunidades católicas atuais como expressão da
idelidade destas à dialogicidade do ensino conciliar.
A versão digital está disponível em http://bit.ly/1WoUtNP
Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pública podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas
Unisinos – IHU ou solicitados pelo endereço humanitas@unisinos.br.
Informações pelo telefone (51) 3590 8467.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


DE CAPA IHU EM REVISTA

Retrovisor
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Canção: a palavra cantada


Edição 380 – Ano XI – 14.11.2011
Disponível em http://bit.ly/1kh01xJ
É ao som de Milton Nascimento e Fernando Brant que a IHU On-Line desta se-
mana traz como tema de capa a canção. A “palavra cantada” e a intensa relação
entre música, literatura, cultura e sociedade é o assunto desta edição feita em
parceria com Pedro Bustamante Teixeira, doutorando do Programa de Pós-Gradu-
ação em Letras: Estudos Literários e Representações Culturais da Universidade
Federal de Juiz de Fora – UFJF. Contribuem nesta edição Alexandre Faria, Car-
los Sandroni, Christopher Dunn, Luiz Augusto de Morais Tatit, Pedro Bustamante
Teixeira, Santuza Cambraia Naves, Walter Garcia da Silveira Junior e Júlio Cesar
Valladão Diniz.

Tropicalismo. O desejo de uma modernidade amorosa


para o Brasil
Edição 411 – Ano XII – 10.12.2012 95
Disponível em http://bit.ly/1Wm2F6K
Um modo de ser nos trópicos, uma postura de vida, uma antropofagia que
deglutiu a jovem guarda, a bossa nova e inluências além-mar e regurgitou uma
cultura nova e inquietante, embalada por guitarras elétricas e dissonâncias as
mais diversas. Tudo isso e mais um pouco ajuda a compreendermos o que foi o
movimento tropicalista, surgido em 1967 como expressão máxima de uma arte
que não podia e nem queria mais ser a mesma. Os tempos eram outros, urgia o
novo. Nem o peso das botas de um regime ditatorial poderia sufocá-la. Contudo,
nem todos os pesquisadores que participam do debate proposto pela IHU On-Line
desta semana concordam no caráter inovador e emblemático do tropicalismo.
Contribuem para o debate Gilberto Felisberto Vasconcellos, Eduardo Guerreiro
Brito Losso, André Monteiro, Celso Fernando Favaretto, Pedro Rogério, Pedro Bustamante Teixeira, Júlio Cesar
Valladão Diniz, Armando Almeida e Frederico Oliveira Coelho.

João Simões Lopes Neto: força de literatura brasileira e


latino-americana
Edição 73 – Ano III – 01.07.2003.
Disponível http://bit.ly/1NGceGd
O tema de capa deste primeiro número do mês de setembro é dedicado a João
Simões de Lopes Neto. Trata-se de um escritor gaúcho, que abriu caminho da
invenção de uma linguagem típica como o fariam depois João Guimarães Rosa e
o pernambucano João Cabral de Melo Neto, segundo preciosa observação de um
dos estudiosos entrevistados nesta IHU On-Line. A relação que a professora Márcia
Lopes Duarte estabelece entre J. Simões de Lopes Neto e Jorge Luis Borges é sim-
plesmente fascinante. João Simões Lopes Neto é patrimônio da cultura brasileira
e latino-americana.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476


Eventos

O ciclo tem o propósito


de realizar um processo de
formação em saúde e segu-
rança no trabalho, em vis-
ta da sua melhoria na vida
dos(as) trabalhadores(as),
no ambiente das empresas
e no contexto da região do
Vale do Rio do Sinos.

Inscrições e mais informa-


ções em
http://bit.ly/1M1fXvt.

Os ricos e a desigualdade
de renda no Brasil
O evento integra a programação do Ciclo de Estudos que
analisa e debate o livro O Capital do Século XXI de Thomas Pi-
ketty.
Conferencista: Prof. Dr. Marcelo Medeiros – UnB e Ipea
Data: 11-11-2015
Encontro com representantes de Movimentos sociais Horário: 17h30min às 19h
de resistência, às 17h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Compa- Local: A atividade será uma webconferência, transmitida
na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.
nheiros – IHU. Esta atividade integra o 2º Ciclo de Estudos
Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo.
Territórios, governamento da vida e o comum.
Conferencistas:
Guilherme Schroder - Ocupação Pandorga
Lorena Castillo - Coletivo Ateneu Libertário a Batalha
da Varzea
Darci Campos dos Santos - Vila Gaúcha - Porto Alegre
Orley Maria da Silveira - Vila União - Porto Alegre

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