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Concílio
Vaticano II.
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 401 - Ano XII - 03/09/2012- ISSN 1981-8769 50 anos depois

John O’Malley Massimo Faggioli Gilles Routhier


O Concílio do impulso Vaticano II. 50 anos depois, Vaticano II: bússola
para a reconciliação apenas o início de um longo confiável para conduzir
processo de recepção a Igreja rumo ao
terceiro milênio
E MAIS

Eduardo Guerreiro Losso: Carlos Brandão: Gustavo de Lima Pereira:


A mística e o enfrentamento A emergência do indivíduo Apátridas, refugiados e a
radical da miséria humana e as novas formas de viver ética da alteridade
a religião
Concílio Vaticano II.
Editorial

50 anos depois

H
á 50 anos começava o Con- sota, Estados Unidos; José Roque Jun- gos publicados nas Notícias do Dia do
cílio Vaticano II, 21º Con- ges, teólogo e professor na Unisinos, sítio do IHU.
cílio Ecumênico da Igreja Maria Benedetta Zorzi, monja bene-
Católica, que foi convoca- ditina e teóloga, Armando Matteo, Mais duas entrevistas e dois ar-
do no dia 25 de dezembro de 1961, padre e teólogo; João Batista Libânio, tigos completam a presente edição.
pelo Papa João XXIII e aberto por ele jesuíta, teólogo e professor na Facul- “Apátridas e refugiados: direitos hu-
próprio no dia 11 de outubro de 1962. dade Jesuíta de Filosofia e Teologia manos a partir da ética da alterida-
Considerado um dos mais importan- – FAJE; o historiador da Igreja, John de”, tema da conferência de Gustavo
tes eventos do século XX, ele inspira O’Malley, professor da Universida- Oliveira de Lima Pereira, da Funda-
dois eventos que acontecerão na Uni- de de Georgetown; a teóloga alemã ção Meridional – IMED, na próxima
sinos no próximo mês de outubro: o Margit Eckholt; a teóloga colombiana quinta-feira, no IHU, é o tema de sua
XIII Simpósio Internacional IHU Igre- Olga Consuelo Velez, professora da entrevista. Por sua vez, Eduardo Guer-
ja, Cultura e Sociedade. A semântica Pontifícia Universidade Javeriana de reiro B. Losso, professor da Universi-
do Mistério da Igreja no contexto das Bogotá; o padre, teólogo e coorde- dade Federal Rural do Rio de Janei-
novas gramáticas da civilização tecno- nador geral do Centro Ecumênico de ro – UFRRJ, fala sobre “A mística e
científica e o Congresso Continental Serviços à Evangelização e Educação o enfrentamento radical da miséria
de Teologia. Popular – Cesep, José Oscar Beozzo; humana”.
e a teóloga e filósofa Nancy Cardoso
A IHU On-Line desta semana de- Pereira, pastora da Igreja Metodista e “O saldo da transmissão olímpica
bate as possibilidades e os impasses recém-nomeada reitora da Universi- é de mais brigas para o futuro” é o tí-
do Vaticano II, 50 anos depois. dade Bíblica Latino-Americana – UBL, tulo do artigo de
na Costa Rica. Anderson David Gomes dos San-
Entrevistamos Andrea Grillo, O debate é completado com a tos, mestrando no Programa de Pós-
teólogo leigo, professor do Pontifí- publicação da resenha do livro Vatican -Graduação em Ciências da Comuni-
cio Ateneu S. Anselmo, de Roma, o II: the battle for meaning de Massimo cação da Universidade do Vale do Rio
teólogo canadense Gilles Routhier, o Faggioli, elaborada por Rodrigo Coppe dos Sinos – Unisinos e membro do
pesquisador belga Johan Verstraeten, Caldeira, professor da PUC Minas e Grupo de Pesquisa Cepos.
professor da Universidade Católica o artigo Hermenêuticas em tensão:
de Leuwen, Massimo Faggioli, doutor tempos sombrios para a teologia, de A todas e a todos uma ótima se-
em história da religião e professor na Faustino Teixeira, professor e pesqui- mana e uma excelente leitura!
University of St. Thomas, de Minne- sador da PPCR da UFJF. Ambos os arti-
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REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos André Langer e Darli Sampaio,
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2
Tema de Capa
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Cleusa Andreatta: Apontamentos sobre o Contexto Teológico do Vaticano II
6 Baú da IHU On-Line
7 John W. O’Malley: O Concílio do impulso para a reconciliação
10 João Batista Libânio: Vaticano II: o termo que se faz divisor de águas chama-se
hermenêutica
15 Massimo Faggioli: Vaticano II. 50 anos depois, apenas o início de um longo processo
de recepção
17 Gilles Routhier: Vaticano II: bússola confiável para conduzir a Igreja rumo ao terceiro
milênio
19 Johan Verstraeten: “O princípio social central do Vaticano II é a justiça”
22 Andrea Grillo: Um ato profético e um “evento linguístico”
25 José Roque Junges: O Concílio Vaticano II e a ética cristã na atualidade
30 Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo: “Estamos em um período de
encastelamento”
33 Margit Eckholt: As mulheres e a Igreja: “sinais dos tempos”
36 Olga Consuelo Velez: Um acontecimento de graça e de novidade
39 José Oscar Beozzo: O ecumenismo para a fulguração da unidade entre os cristãos
44 Nancy Cardoso Pereira: O melhor e o pior do Vaticano II no corpo e na vida de irmãs
companheiras
46 Rodrigo Coppe Caldeira: Vaticano II: a batalha pelo significado
51 Faustino Teixeira: Hermenêuticas em tensão: tempos sombrios para a teologia

DESTAQUES DA SEMANA
54 ENTREVISTA DA SEMANA: Carlos Brandão: A emergência do indivíduo e as novas
formas de viver a religião
59 LIVRO DA SEMANA: Eduardo Guerreiro Brito Losso: A mística e o enfrentamento
radical da miséria humana
66 COLUNA DO CEPOS: Anderson David Gomes dos Santos: O saldo da transmissão
olímpica é de mais brigas para o futuro
68 DESTAQUES ON-LINE

IHU EM REVISTA
70 Agenda da Semana
www.ihu.unisinos.br
71 Gustavo Oliveira de Lima Pereira: Apátridas e refugidados. Os direitos humanos a
partir da ética da alteridade
78 IHU Repórter: João Hilário Xavier

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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Tema de Capa
Apontamentos sobre o Contexto
Teológico do Vaticano II
Por Cleusa Andreatta

P
ublicamos a seguir um texto introdutó- (PUCRS), mestre em Teologia pela Faculdade
rio sobre o Concílio Vaticano II, que ser- Jesuíta de Filosofia e Teologia e doutora em
ve de subsídio para que os leitores e as Teologia pela Pontifícia Universidade Católi-
leitoras da IHU On-Line possam compreender ca do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente é
o que foi este importante momento da histó- professora da Universidade do Vale do Rio dos
ria da Igreja a partir de algumas questões con- Sinos (Unisinos) e coordenadora do Programa
textuais que antecederam o Concílio. O artigo de Teologia Pública do Instituto Humanitas
é de autoria de Cleusa Andreatta, graduada Unisinos – IHU.
em Filosofia e em Teologia pela Pontifícia Eis o artigo.
Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Preparado ao longo de três anos tada por uma série de movimentos a questão da participação ativa na li-
desde que João XIII anunciou a decisão teológicos, em curso nas décadas que turgia. Surgiram os estudos litúrgicos
de realizar um Concílio ecumênico1, o antecederam o Concílio. Frente às e a teologia litúrgica. Foram redesco-
Concílio Vaticano II, teve sua abertu- grandes transformações sociocultu- bertos textos litúrgicos do passado, os
ra efetiva em 11 de outubro de 19622 rais em andamento no período pré- Santos Padres e a Bíblia. O movimento
e estendeu-se até 8 de dezembro de -conciliar, foram movimentos que ca- litúrgico recebeu impulso oficial com
1965. Sob o impulso da convocação de racterizaram aquele período por uma a encíclica Mediator Dei (1947) de Pio
João XXIII a uma abertura da Igreja ao grande criatividade teológica e que XII.
mundo de então, os esforços e as con- foram colocando as bases para uma O Movimento Bíblico resultou do
trovérsias que se desdobraram ao lon- postura mais dialógica por parte da avanço dos estudos de exegese, com
go dos quatro períodos do Concílio3 Igreja. Destacam-se assim o Movimen- importante contribuição da ciência bí-
foram perpassados por sua proposta to Patrístico, o Movimento Litúrgico, o blica em âmbito protestante e apren-
de um aggiornamento eclesial. Nesta Movimento Bíblico, o Movimento Lei- dendo desta a aproveitar as contribui-
perspectiva, há amplo consenso entre go, o Movimento Teológico. ções de outras ciências (linguística e
os estudiosos do significado e alcan- Com a redescoberta dos Santos arqueologia, p.ex.). Abriu-se a possibi-
ce deste grande evento eclesial que Padres, o Movimento Patrístico mar- lidade de superar a rigidez de um sen-
o Concílio Vaticano II marcou a passa- cou uma verdadeira volta às fontes, tido literal e único dos textos bíblicos
gem da Igreja da Contra-Reforma e da que só se desenvolve com o rigor do e de avançar na compreensão da ins-
Cristandade para a modernidade, se- método nos séculos XIX e XX, renovan- piração e da interpretação dos textos.
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lando uma reconciliação da Igreja com do o saber teológico e a vida da Igreja Este movimento recebeu um grande
a modernidade, após uma história sig- desde as fontes patrísticas (ressour- impulso com a fundação da Escola Bí-
nificativa de conflitos e resistência. cement). O Movimento Patrístico vai blica de Jerusalém (1890) e da Revista
A mudança de postura da Igreja incidir nos demais movimentos acima Bíblica (1892), por Pe. J. M. Lagrange
frente à modernidade foi sendo ges- indicados, dado que toda a reflexão de (1855-1938).
fé dos padres da Igreja é fundamen- O Movimento Teológico que fi-
1 AAS 51 [1959] p. 68 (Nota da autora) talmente bíblica, litúrgica, cristológi- cou conhecido como a “Nova Teologia
2 Essa data foi intencionalmente escolhi- ca, eclesial, inculturada e, portanto, (Nouvelle Théologie), expressa o es-
da “pela memória do Concílio de Éfeso,
que tanta importância teve na história
plural. forço por uma renovação da teologia
da Igreja”. Carta Apostólica dada “Motu O Movimento Litúrgico iniciado em diálogo com ao pensamento mo-
Próprio” Consilium – Fixação da data de nos mosteiros beneditinos da França derno, esforço empreendido por dois
abertura do Concilio, 11 de fevereiro de
1962. (Nota da autora)
no século XIX, onde havia um grande centros teológicos: a Escola Le Saul-
3 1º período: 11/10 a 8/12/1962; 2º cultivo da liturgia, depois se expandiu choir, Tournai, cidade belga, próxima
período: 29/09 a 4/12/1963; 3º perí- na Bélgica, na Alemanha e na Holanda. à fronteira da França, na qual atuaram
odo:14/09 a 21/11/1964; 4º período:
14/09 a 8/12/1965. (Nota da autora)
O desejo de fazer bem à liturgia incluía teólogos como Marie-Dominique Che-

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 5


nu (1895-1990) e Yves Congar (1904– la pensée religieuse”7. Ao traçar este Nascido em meio às transformações
Tema de Capa
1995), e Escola dos jesuítas em Lyon, programa, Daniélou apresentou como e exigências socioculturais do período
França, que teve à sua frente os teólo- linhas diretrizes para a renovação “a) entreguerras, está na base da prepara-
gos Jean Daniélou (1905–1974), Henri a volta às fontes essenciais do pensa- ção do Concílio Vaticano II: “os leigos
de Lubac (1896-1991), Henri Bouillard mento cristão: a Bíblia, os padres da da Ação Católica levaram os colegiais
(1908-1981), Hans Urs von Balthasar Igreja, a liturgia; b) o contato com as (JEC, Juventude Estudantil Católica),
(1905-1988), entre outros4. correntes do pensamento contempo- os universitários (JUC, Juventude Uni-
Marie-Dominique Chenu esbo- râneo para ampliar a visão (...); c) o versitária Católica), os operários (JOC,
çou a história e o programa da Escola confronto com a vida”8. Nesta pers- Juventude Operária Católica; ACO,
Le Saulchoir no opúsculo intitulado5 pectiva em 1942 teve inicio a grande Ação Católica Operá­r i a ) , os jovens
“Le Saulchoir: Une école de la théolo- coleção “Sources Chrétiennes”, contri- do campo (JAC, Juventude Agrícola Ca-
gie”, onde apresenta como diretrizes buindo efetivamente para a “volta às tólica) e pessoas dos meios indepen-
para a renovação teológica a afirma- fontes”. dentes (JIC, Juventude Independente
ção do primado do dado revelado, Condenada por Pio XII por meio Católica) a inse­rirem-se nos seus am-
fonte viva da teologia; a assunção da da encíclica Humani Generis em 1950, bientes específicos a tal ponto que eles
crítica bíblica e histórica como instru- alguns desses teólogos foram depos- trouxeram para dentro da Igreja toda
mento apropriado da teologia, um tos de sua função de professores, a problemática e reflexão moderna de
tomismo declarado, aberto; interesse alguns livros foram proibidos, as con- seus meios. Essa atuação do laicato no
pelos problemas do próprio tempo, tribuições da nova teologia estiveram mundo, seu engajamento, assumindo
numa fé solidária com o tempo6. intensamente presente no Concílio a entrada da modernidade pela via do
A renovação teológica promovida pelo fato de que alguns de seus expo- movimento leigo teve um reforço na
pelos jesuítas teve sua apresentação entes estarão no Concílio como padres teologia do laicato que se impregna-
no artigo programático de Jean Da- conciliares ou como especialistas. ra de ideias da modernidade”9. Nessa
niélou “Les orientations présents de O Movimento Leigo teve uma perspectiva, Y. Congar elabora uma te-
contribuição peculiar para a aproxi- ologia do laicato (1953).
4 Cf. GIBELLIN, R. La teologia del XX se- mação eclesial com a modernidade.
colo, Queriniana: Brescia, 1995, pp. 173-
183 (Nota da autora)
5 Le Saulchoir: Une école de la théologie. 7 Les orientations présents de la pensée 9 Souza, Ney. Contexto e desenvolvimen-
Paris: Étiolles, 1937. (Nota da autora) religieuse Études 1946, pp. 5-21. (Nota to histórico do Concílio Vaticano II. In:
6 Gibellini, 1995, pp. 174-177. (Nota da da autora) Concílio Vaticano II. Análise e prospecti-
autora) 8 Gibellini, 1995, p. 179. (Nota da autora) vas. São Paulo: Pulinas: 2004, p. 20.

Baú da IHU On-Line:


>> Sobre o tema desta edição leia também:
www.ihu.unisinos.br

• IHU On-Line número 297, de 15-06-2009, intitulada “Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II”, disponível em http://bit.
ly/o2e8cX;

• IHU On-Line número 124, de 22-11-2004, intitulada “A Igreja. 40 Anos de Lumen Gentium”, disponível em http://bit.
ly/9lFZTk;

• Cadernos Teologia Pública número 25, intitulado “A historicidade da revelação e a sacramentalidade do mundo: o
legado do Vaticano II”, de Sinivaldo S. Tavares, disponível em http://bit.ly/NIGu0Z;

• Cadernos Teologia Pública número 16, intitulado “Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento”, de
autoria de João Batista Libânio, disponível em http://bit.ly/L6iSIp.

6 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Tema de Capa
O Concílio do impulso para a
reconciliação
Na visão de John O’Malley, há algo nada católico no fato de atualmente algumas
pessoas quererem fazer o Vaticano II “ir para trás”. “Só posso interpretar esse
movimento como resultado de medo e ignorância e como uma tentativa de certas
pessoas de formar uma igreja ‘à sua imagem e semelhança’”, afirma

Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Luís Marcos Sander

“O
Vaticano II foi um evento comple- vez, aprende dele. Esse documento é dirigido
xo, e não deveria ser reduzido a a todos os homens e mulheres de boa vonta-
um único tema geral”. A opinião de. Essa é a reconciliação mais global. A igreja
é do padre jesuíta e historiador da Igreja John quer abarcar e ajudar a humanidade toda”.
O’Malley, em entrevista concedida por e-mail Considerado um dos historiadores da
para a IHU On-Line. Segundo ele, a reconci- Igreja mais respeitado e reconhecido dos
liação apreende uma dinâmica essencial que Estados Unidos, John W. O’Malley é doutor
permeou o Concílio Vaticano II. Essa dinâmi- em História pela Universidade de Harvard.
ca, explica, se manifestou de várias formas. “O Atualmente é professor de Teologia da Ge-
Concílio foi, por exemplo, uma reconciliação orgetown University, de Washington (EUA). É
com as culturas não europeias; uma tentativa membro da Fundação Guggenheim, da Aca-
de reconciliar a igreja com outras igrejas cris- demia Norte-Americana de Artes e Ciências
tãs; uma tentativa de reconciliação com os ju- e da Sociedade Filosófica Norte-Americana.
deus; uma reconciliação com os muçulmanos; Especialista em Concílios, com especial
uma reconciliação com o ‘mundo moderno’, atenção ao Concílio de Trento e ao Concílio
que o oficialismo católico tinha odiado e temi- Vaticano II, é autor de What happened at
do desde a Revolução Francesa”. E continua: Vatican II [O que aconteceu no Vaticano II]
“o documento final do Concílio, ‘Sobre a igre- (Cambridge, MA: Harvard University Press/
ja no mundo moderno’, é a grande expressão Belknap. Press, 2008) e A history of the Po-
desse impulso. Entretanto, o documento faz pes [Uma história dos Papas] (Lanham, MD:
a afirmação balizadora de que, assim como a Sheed and Ward, 2006).
igreja ensina o mundo moderno, ela, por sua Confira a entrevista.

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IHU On-Line – A partir de uma mento de suas quatro sessões entre presentes na Basílica de São Pedro e o
análise histórica, em que medida o 1962 e 1965, ao passo que o Vaticano I resto da humanidade do lado de fora.
Concílio Vaticano II foi um marco re- teve cerca de 700 e o Concílio de Tren-
ferencial para a Igreja? to, que foi aberto com apenas 32, teve Cinco características do
John O’Malley – O Vaticano II foi apenas cerca de 200 em seu ponto Vaticano II
um marco na história do catolicismo. alto. Nenhum concílio antes do Vatica- Essas características do Concílio,
Nunca houve um concílio como ele an- no II jamais tentou fazer uma revisão ainda que importantes, não são tão
tes, e, até certo ponto, o Vaticano II foi tão completa da igreja, o que significa significativas quanto outras, das quais
o primeiro concílio realmente “ecumê- que nenhum concílio teve uma pauta mencionarei cinco.
nico” no sentido de que ecumênico se tão expansiva. Foi o primeiro concílio A primeira é: o Vaticano II foi o
refere ao mundo inteiro – no concílio a ocorrer após a invenção do telefo- primeiro concílio a levar em conta cul-
havia bispos de 116 países diferentes. ne, do rádio e da televisão, o que quer turas diferentes da europeia. Em seu
O Vaticano II foi singular já pelo núme- dizer que ele foi o primeiro concílio primeiro documento, “A sagrada litur-
ro de participantes – cerca de 2.200 em que houve verdadeiramente uma gia”, o concílio reafirmou que a Igreja
bispos participavam em algum mo- conversação entre os que estavam estava aberta para toda e qualquer

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 7


cultura e só excluía os aspectos que
“Nada poderia ser Comunhão, quando essa prática só se
Tema de Capa
poderiam ser supersticiosos. O docu- desenvolveu na Idade Média?
mento incentivou a inclusão de ele-
mentos tirados de culturas indígenas mais relevante Questões como essas não po-
diam ser honestamente evitadas em
na própria liturgia.
A Igreja Católica sempre se de- para nosso mundo meados do século XX. O concílio ten-
tou tratar delas de várias maneiras, in-
finiu como católica, isto é, universal,
mas na prática se identificava com de hoje do que a cluindo a ideia de “desenvolvimento”,
uma forma de evolução. De qualquer
a Europa. Houve exceções notáveis,
como o caso dos jesuítas no Japão e na necessidade de modo, o fato é que nenhum concílio
antes do Vaticano II jamais lidou seria-
China1, no século XVII, quando os mis-
sionários tentaram adotar e adaptar reconciliação” mente com esse problema, e nenhum
concílio terminou com uma concepção
línguas, símbolos e formas de pensa- mais dinâmica da Igreja. A mais óbvia
mento nativas. Mas esse experimento expressão desse dinamismo é o termo
não durou. Especialmente no século italiano aggiornamento, tantas vezes
XIX, os missionários se identificavam aplicado ao Vaticano II, que significa
estreitamente com os governos da jeitada por uma pequena minoria no uma atualização. Mais básico para o
França, da Bélgica e de outros países concílio, que continuou, de formas su- concílio, entretanto, foi o resgate de
que os patrocinavam, o que trouxe tis e não muito sutis, a solapá-la após tradições mais antigas – como a cole-
maus resultados quando as reações o concílio. gialidade, por exemplo – para ajustar
anticolonialistas ocorreram após a Se- O que a maioria das pessoas não e qualificar a situação no presente.
gunda Guerra Mundial. percebe é que a colegialidade não foi Esse também é um procedimento
A segunda característica se se- uma tentativa de “democratizar” a dinâmico.
gue quase como uma consequência igreja, como seus inimigos gostam de A quinta característica é: o Vati-
da primeira. O Concílio queria fomen- rotulá-la, e sim a recuperação de uma cano II queria responder à solicitação
tar a adaptação local e promover um tradição antiga segundo a qual o go- feita pelo papa João XXIII de que o
grau maior de autonomia em muitas verno normal da igreja era “sinodal”, Concílio mostrasse que a Igreja “é a
áreas da vida eclesiástica. Em outras isto é, realizado por sínodos ou concí- mãe amorosa de todos, benigna, pa-
palavras, a unidade na igreja não signi- lios. Concílios locais, dos quais houve ciente, cheia de bondade e misericór-
ficava uniformidade em todos os sen- centenas e centenas na longa história dia”, como ele disse no discurso com
tidos. A introdução de liturgias no ver- da igreja, tinham autoridade última que abriu o Concílio em 11 de outu-
náculo constitui um grande símbolo pela área que estava aos seus cuida- bro de 1962. O que de fato é mais
desse princípio, mas a autoridade que dos, e os “concílios ecumênicos”, dos notável em relação aos documentos
o concílio concedeu às conferências quais a Igreja Católica geralmente re- do Vaticano II é que eles adotam um
episcopais nacionais ou regionais foi conhece 21, eram o tribunal de ape- vocabulário para refletir o objetivo
de natureza mais prática. É claro que a lação último. Só quando a autoridade do papa, um vocabulário virtualmen-
última palavra era da Santa Sé, mas a papal começou a ficar mais forte no te desconhecido em concílios ante-
Santa Sé era o último recurso, e não o Ocidente na Idade Média é que sur- riores. Os concílios anteriores agiam
primeiro em muitos assuntos. giu uma contestação da primazia dos como órgãos legislativos, definindo
Mais profunda ainda foi a decisão concílios. penas para o descumprimento da
do concílio de ensinar a doutrina da A quarta característica é: o Vati- lei, e como tribunais para criminosos
colegialidade episcopal (terceira ca- cano II tentou levar em conta um dos eclesiásticos, impondo punições aos
racterística), isto é, a doutrina de que mais notáveis traços do mundo mo- culpados – o que, no notório caso de
os bispos como indivíduos e coletiva- derno – a consciência histórica, isto é, Jan Hus2 no século XV, significou mor-
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mente têm uma responsabilidade con- uma percepção aguda da discrepância te na fogueira.
tínua não só por suas próprias dioce- entre o passado e o presente. Essa
ses, mas também pela igreja de modo consciência se desenvolveu gradati- Menos culpa e mais parceria
geral. Eles são parceiros do papa nes- vamente ao longo dos séculos, mas O Vaticano II evitou o vocabulá-
se tocante, embora não possam atuar tornou-se dominante nos séculos XIX rio da punição e culpa, o vocabulário
legitimamente em oposição ao papa. e XX. Ela foi aplicada a assuntos sacros. dos anátemas, e o substituiu por um
Essa doutrina foi inflexivelmente re- A doutrina da Imaculada Conceição de vocabulário de amizade, parceria, re-
Maria, proclamada dogma pelo Papa
Pio IX em 1854, era desconhecida na
2 Jan Hus (1369-1415): pensador
1 Sobre o tema leia a IHU On-Line número Igreja até a Idade Média. Como expli- e reformador religioso. Iniciou um
347, de 18-10-2010, intitulada “Matteo car esse fato, numa igreja cuja função movimento religioso baseado nas ideias de
Ricci no Imperio do Meio. Sob o signo da John Wycliffe. Os seus seguidores ficaram
amizade”, disponível em http://bit.ly/
é passar adiante o ensino dos apósto- conhecidos como os hussitas. A Igreja
eEhwCq; e a edição número 196, de 18- los e nada além disso? Como explicar Católica não perdoou tais rebeliões e ele
09-2006, intitulada “A Globalização e os que a confissão dos pecados a um sa- foi excomungado em 1410. Condenado
Jesuítas”, disponível em http://bit.ly/ pelo Concílio de Constança, foi queimado
PUuvVw (Nota da IHU On-Line) cerdote é necessária antes da Sagrada vivo. (Nota da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


ciprocidade e interioridade. A mudan-
“O Vaticano II foi o te e está nos mais elevados lugares.

Tema de Capa
ça visava causar impacto no compor- Hoje em dia, às vezes se ouvem pes-
tamento da igreja e, assim, de cada
cristão, especialmente dos que têm primeiro concílio soas que se jactam de ser “bons cató-
licos” (talvez até se jactem de ser “os
autoridade. Ela queria mudar o estilo
em que a Igreja atuava – ou ao me- a levar em conta verdadeiros católicos”) dizer também
que não aceitam o Vaticano II. Abso-
nos como se percebia que ela atuava
– mais ou menos de acordo com o se- culturas diferentes lutamente não entendo como cató-
licos, bons ou maus, podem rejeitar
guinte padrão:
• da coerção para a consciência da europeia” um concílio ecumênico. Isso é inteira-
mente contrário à tradição da Igreja
• da hostilidade para a amizade desde o Concilio de Niceia3 no século
• da rivalidade para a parceria IV. O Vaticano II foi produto dos bis-
• da suspeita para a confiança rigido a todos os homens e mulheres pos do mundo todo, que se encontra-
• do domínio para o serviço de boa vontade. Essa é a reconciliação ram por um período de quatro anos,
• das ameaças para a persuasão. mais global. A Igreja quer abarcar e consultaram os melhores teólogos da
ajudar a humanidade toda. “Nada que época, e foi promulgado pelo Papa
Essa lista pode ser melhor enten-
seja genuinamente humano é estra- Paulo VI, vigário de Cristo. Há algo
dida e apreciada se levamos em conta
nho aos seguidores de Cristo”, diz o nada católico em relação a qualquer
o que considero o principal impulso
texto. pessoa atualmente que queira fazer
do concílio, que ajuda a explicar to-
o Vaticano II “ir para trás”. Só posso
das as suas principais decisões. Trata-
IHU On-Line – Em que medida interpretar esse movimento como re-
-se do impulso para a reconciliação. O
o Concílio Vaticano II pode ser ainda sultado de medo e ignorância e como
Vaticano II foi um evento complexo, e
atual? uma tentativa de certas pessoas de
não deveria ser reduzido a um único
John O’Malley – O Vaticano II ain- formar uma igreja “à sua imagem e
tema geral. Não obstante, creio que a
da é atual e relevante para nós hoje? semelhança”, e não de acordo com
reconciliação apreende uma dinâmi-
Creio que ele certamente o é, e de aquela da mais elevada autoridade
ca essencial que permeou o concílio.
muitas formas, que não tenho tempo na Igreja, um concílio ecumênico pre-
Essa dinâmica se manifestou de várias
nem espaço de aprofundar agora. Mas sidido por dois papas.
formas. O concílio foi, por exemplo,
certamente nada poderia ser mais re-
uma reconciliação com as culturas
levante para nosso mundo de hoje do
não europeias, como sugeri acima.
que a necessidade de reconciliação.
Ele foi uma tentativa de reconciliar a
Guerras, rumores de guerra, genocí-
Igreja com outras igrejas cristãs, como
no decreto sobre o ecumenismo. Foi
dios e outros atos de ódio e violência
parecem estar em toda parte. Dentro
Leia mais...
uma tentativa de reconciliação com os
da Igreja, há facções que travam en- >> John W. O’Malley já concedeu
judeus, especialmente depois do hor-
carniçadas guerras de propaganda.
ror do Holocausto, que aconteceu na outra entrevista à IHU On-Line.
A reconciliação não poderia ser mais
Alemanha, cuja população professava
contracultural e, assim, mais cristã. Confira:
ser cristã, mas cometeu as mais exe-
“Vim para reconciliar o mundo com
cráveis atrocidades. Foi uma reconci- • “Um outro concílio? Só se for em
o Pai”. A missão de reconciliação de
liação com os muçulmanos, não mais
Jesus é a missão que o concílio nos Manila ou no Rio, não em Roma”.
rotulados de “nosso inimigo ímpio e
impôs.
eterno”, como disse o Papa Paulo II no Entrevista publicada nas Notícias do
século XVI. Dia do sítio do IHU em 23-01-2010,
IHU On-Line – Como o senhor
www.ihu.unisinos.br
Ele foi uma reconciliação com o
interpreta as recentes decisões da disponível em http://bit.ly/TuQpLv
“mundo moderno”, que o oficialismo
cúria romana em retomar costumes
católico tinha odiado e temido desde
litúrgicos anteriores ao Vaticano II, ou
a Revolução Francesa. O documento
então reabilitar o movimento lefeb-
final do concílio, “Sobre a Igreja no
vriano? Por que esse recuo da Igreja?
mundo moderno”, é a grande expres- 3 Primeiro Concílio de Niceia: concílio
John O’Malley – Não há um mo- de bispos cristãos reunidos na cidade de
são desse impulso. Observe o título: a Niceia da Bitínia (atual İznik, Turquia),
vimento em marcha para reverter as
igreja no mundo moderno, não para o pelo imperador romano Constantino I
decisões do Vaticano II e minimizar
mundo moderno, nem contra o mun- em 325 d.C.. O concílio foi a primeira
sua importância? Não há dúvida de tentativa de obter um consenso da igreja
do moderno, mas simplesmente no através de uma assembleia representando
que esse movimento existe. Até mes-
mundo moderno. Entretanto, o do- toda a cristandade. O seu principal
mo no Concílio, um pequeno grupo feito foi o estabelecimento da questão
cumento faz a afirmação balizadora
de bispos nunca o aceitou, e em anos cristológica entre Jesus e Deus, o Pai; a
de que, assim como a Igreja ensina construção da primeira parte do Credo
recentes essa facção, que no passado
o mundo moderno, ela, por sua vez, Niceno; a fixação da data da Páscoa; e
era quase minúscula, ficou mais for- a promulgação da lei canônica. (Nota da
aprende dele. Esse documento é di-
IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 9


Tema de Capa
Vaticano II: o termo que se
faz divisor de águas chama-se
hermenêutica
Para João Batista Libânio, por meio do Concílio Vaticano II a Igreja católica lançou o
olhar para dentro de si e para o mundo moderno

Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa

E
m entrevista concedida por e-mail à tal caminhada com o famigerado relativismo,
IHU On-Line, João Batista Libânio ana- a ser, portanto, rejeitado. Entre relativismo a
lisa, da seguinte forma, a atualidade e pedir reafirmação da objetividade dos ensina-
as perspectivas do Concílio Vaticano II após 50 mentos e das práticas e a hermenêutica que
anos de sua realização: “a face maior da Igreja introduz a fluidez das contínuas novas posi-
modificou-se profundamente. Entrou espírito ções: eis o duelo maior do momento em ter-
de liberdade diante de imposições externas, mos teóricos. E o reflexo na prática chama-se
de leis extrínsecas. O fiel fez-se consciente e ortodoxia, fundamentalismo, conservadoris-
responsável no que diz respeito à Igreja ins- mo, de um lado, e, de outro, cisma branco,
titucional e deixou de ser simples súdito obe- cisma silencioso, prescindência, liberdade em
diente. A vida litúrgica prossegue, embora assumir os elementos doutrinais, morais e
mais lentamente, a caminhada de resposta às institucionais correspondentes à experiência
novas situações. A fé adquiriu maior clareza das pessoas”.
em face da Religião como instituição e expres- João Batista Libânio é padre jesuíta, es-
são crítica diante da pluralidade estonteante critor, filósofo e teólogo. É também mestre e
de práticas religiosas. No entanto, a perda de doutor em Teologia, pela Pontifícia Universi-
clareza das referências objetivas por causa dade Gregoriana – PUG, de Roma. Atualmen-
da irrupção no seio da Igreja do espírito de te leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia
criatividade, liberdade e autonomia das pes- e Teologia – FAJE e é membro do Comitê de
soas, tem produzido reações conservadoras Ética em Pesquisa da Universidade Federal de
em busca de segurança. Aí se trava um dos Minas Gerais – UFMG. É autor de diversos li-
combates duros do momento. Avançar com vros, dentre os quais destacamos Teologia da
os riscos ou fixar-se em parâmetros objetivos, revelação a partir da modernidade (Loyola,
www.ihu.unisinos.br

claros, mesmo que os tenha de buscar no pas- 2005) e Qual o futuro do cristianismo (Paulus,
sado. O termo que se faz divisor de águas cha- 2008). Com Comblin e outros, é autor de Va-
ma-se hermenêutica. Para uns, faz-se o único ticano II: 40 anos depois (Paulus, 2005). Seu
caminho possível diante da descoberta da au- livro mais recente é A escola da liberdade:
tonomia dos sujeitos e da rápida transforma- subsídios para meditar (Loyola, 2011).
ção social e cultural. Para outros, identifica-se Confira a entrevista.

IHU On-Line – No dia 11 de outu- João Batista Libânio – Por meio trina, moral e disciplina para submetê-
bro de 1962, o papa João XXIII abriu do Concílio Vaticano II, a Igreja cató- -la à profunda autocrítica. O Concílio
oficialmente os trabalhos do Concílio lica lançou o olhar para dentro de si e significou-lhe verdadeira reforma in-
Vaticano II. Para o senhor, qual é o para o mundo moderno. Para dentro terna desde a Cúria romana até a vida
significado desse evento para a cami- de si, repensou fundamentalmente a do simples fiel. No olhar para fora de
nhada da Igreja? própria estrutura em termos de dou- si, ela encarou a nova situação sob o

10 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


aspecto sociocultural e religioso. Duas
“O esforço de movimentos com reivindicações nes-

Tema de Capa
palavras resumem tal movimento: sa linha. Cito-lhes o nome somente:
aggiornamento e diálogo. Aggiorna-
mento, palavra preferida de João XXIII, interpretação para bíblico, litúrgico, ecumênico, da Nova
Teologia, dos leigos, querigmático,
carrega o anseio de a Igreja responder
aos desafios socioculturais da moder- a nova situação social sob diversos ângulos: doutri-
nal, experiência dos padres operá-
nidade já avançada na complexidade
de problemas que trazia. O diálogo cultural significou rios, diálogo com o marxismo teórico
e prático nos partidos comunistas.
traduz a saída da Igreja de seu gueto
espiritual para ir ao encontro das Igre- a gigantesca tarefa Borbulhavam no interior da Igreja
aspirações ainda contidas pelo hierá-
jas cristãs, do judaísmo, das outras
tradições religiosas, dos nãos crentes do Concílio” tico pontificado de Pio XII. Aliás, ele
mesmo já abrira algumas portas da
e da realidade social. Igreja, pelo menos para dois grandes
explodiam, no final da década de 1950 movimentos: bíblico e litúrgico. Ago-
IHU On-Line – Como o senhor e início de 1960, surtos libertários no ra, multiplicados, agitavam a Igreja
contextualiza histórica e eclesialmen- meio juvenil nos Estados Unidos que no interior do Concílio.
te o Concílio Vaticano II? eclodirão em Paris em maio 1968. A
João Batista Libânio – João XXIII secularização caminhava rapidamente IHU On-Line – Em seu discurso
inaugura o Concílio em 1962. Mo- afetando estruturas religiosas. A mo- João XXIII dizia que era preciso “abrir
mento atravessado por movimentos dernidade, que já vinha, fazia séculos, as janelas da Igreja para o mundo”.
contraditórios. Economicamente se corroendo as poderosas instituições Qual o significado dessa expressão e
firmava o milagre econômico euro- eclesiásticas, alcança um pique no como o Concílio levou adiante esse
peu na reconstrução da Europa com período com as teses fundamentais: desejo do papa?
substancial ajuda americana depois nova visão científica do mundo, a João Batista Libânio – A mo-
da terrível destruição da Segunda afirmação da autonomia absoluta do dernidade econômica explode com
Guerra Mundial. Euforia econômica. sujeito, a entrada relativizante da his- a revolução industrial da Inglaterra
Politicamente, a democracia se fir- tória, a práxis transformadora da reali- a fortalecer o capitalismo. A Revolu-
mava após a derrota do nazismo e do dade de traço marxista. ção Francesa lançou o tríplice grito
fascismo. O lado ocidental europeu Em termos eclesiais, analistas de igualdade, liberdade e fraterni-
contrastava com o regime comunista chamam esse período de fim da Cris- dade. A modernidade filosófica em-
do Leste, ao agitar a bandeira da li- tandade e da Contrarreforma, assi- barcou em tais valores. Várias dessas
berdade. Viviam-se ainda os anos da nalando, assim, o término do perío- bandeiras originam-se, em última
Guerra Fria, embora João XXIII tenha do apologético da Igreja Católica em análise, da própria tradição cristã.
mostrado abertura para o Leste, ao oposição à modernidade e aos recla- No entanto, paradoxalmente a Igreja
receber em audiência particular, de mos fundamentais da Reforma lute- católica institucional, sobretudo nos
maneira simpática e afetiva, a Rada rana: sola Scriptura2, sola fide3, sola últimos séculos, na chamada era pia-
Krutschev, filha do secretário do Par- gratia4. Já latejavam na Igreja vários na – dos papas Pio IX, X, XI e XII – re-
tido Comunista da União Soviética. agiu contra os valores da modernida-
O próprio Nikita Krutschev1 enviara de. Radicalizou, em vez da igualdade,
ao Papa telegrama de felicitações 2 Sola Scriptura: frase latina cujo a diferença e separação entre clero e
significado é “somente a Escritura”.
quando da comemoração de seus 80 Segundo a Reforma (século XVI) é o fiéis; em vez da liberdade, pediu obe-
anos. Portanto, no meio da tensão principio no qual a Bíblia tem primazia diência às autoridades eclesiásticas
ante a Tradição legada pelo magistério da
Leste/Oeste, havia pequenos sinais Igreja, quando os princípios doutrinários
nos três campos dos ensinamentos www.ihu.unisinos.br
de luz. entre esta e aquela forem conflitantes. doutrinais, morais e disciplinares;
Sola Scriptura é um dos cinco pontos em vez da solidariedade, defendeu
Impactos da secularização e da fundamentais do pensamento da Reforma
obras de caridade sem compromisso
Protestante, conhecidos como cinco
modernidade solas. (Nota da IHU On-Line) com as transformações sociais por
A revolução maior se processava 3 Sola fide (do latim: por fé somente): medo do comunismo. João XXIII terá
também conhecida como Doutrina da
no campo cultural. Telegraficamente justificação pela Fé, é a doutrina que sentido o ar carregado. Então, abre
distingue denominações Protestantes da as janelas. E entrou o Espírito maior
Igreja Católica Romana, Igreja Ortodoxa
1 Nikita Serguêievitch Khrushchov e outras. (Nota da IHU On-Line) a mexer com o espírito dos homens
(1894-1971): secretário-geral do Partido 4 Sola gratia: um dos cinco solas propostos de Igreja. E daí nasceram as inova-
Comunista da União Soviética – PCUS pelos reformadores para resumir as ções do Concílio.
entre 1953 e 1964 e líder político do crenças fundamentais do cristianismo.
mundo comunista até ser afastado do Esta expressão latina significa: “Graça
poder por sua perspectiva reformista somente”, a ênfase se dava em razão da IHU On-Line – Que teólogos ou
e substituído na direção da URSS pelo doutrina católica vigente de que as boas
político conservador Leonid Brejnev. obras ajudariam na salvação do homem. movimentos eclesiais e teológicos o
(Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 11


senhor destaca como importantes e ger, E. Schillebeeckx7, B. Häring; dos élou e outros mais. Eles representavam
Tema de Capa
que influenciaram o Concílio? francófonos estavam Y. Congar8, Che- a teologia que assumira os questiona-
João Batista Libânio – O grupo nu9, H. de Lubac10; R. Laurentin, J. Dani- mentos da modernidade, sobretudo da
de teólogos relevantes que marcaram hermenêutica. A doutrina já não conse-
o Concílio vieram da Europa central. Um escritório da Fundação de Ética Mundial guia impor-se pela rigidez das formula-
Entre os alemães e holandeses, recor- funciona dentro do Instituto Humanitas ções, mas se interpretava para dentro
Unisinos desde o segundo semestre do
demos K. Rahner5, H. Küng6, J. Ratzin- ano passado. Küng dedica-se, atualmente, do contexto atual. O esforço de inter-
ao estudo das grandes ‘religiões, sendo pretação para a nova situação cultural
autor de obras, como A Igreja Católica,
5 Karl Rahner (1904-2004): importante publicada pela editora Objetiva e Religiões
significou a gigantesca tarefa do Concí-
teólogo católico do século XX. Ingressou do Mundo: em Busca dos Pontos Comuns, lio. Dos movimentos que citei acima, o
na Companhia de Jesus em 1922. pela editora Verus. De 21 a 26 de outubro bíblico trouxe a riqueza dos progressos
Doutorou-se em Filosofia e em Teologia. de 2007 aconteceu o Ciclo de Conferências
Foi perito do Concílio Vaticano II e com Hans Küng - Ciência e fé – por uma científicos na interpretação da Escritu-
professor na Universidade de Münster. ética mundial, com a presença de Hans ra: gêneros literários, história da tradi-
A sua obra teológica compõe-se de Küng, realizado no campus da Unisinos e
mais de 4 mil títulos. Suas obras ção, história das formas, história da re-
da UFPR, bem como no Goethe-Institut
principias são: Geist in Welt (O Espírito Porto Alegre, na Universidade Católica de dação, descobertas arqueológicas, etc.
no mundo), 1939, Hörer des Wortes Brasília, na Universidade Cândido Mendes A adoção da postura exegética a partir
(Ouvinte da Palavra), 1941, Schrifften do Rio de Janeiro e na Universidade
zur Theologie (Escritos de Teologia). Federal de Juiz de Fora – UFMG. Um dos das contribuições das pesquisas dos
Em 2004, celebramos seu centenário objetivos do evento foi difundir no Brasil cientistas bíblicos não se fez tranquila-
de nascimento. A Unisinos dedicou à a proposta e atuais resultados do “Projeto
sua memória o Simpósio Internacional
mente. Exegetas da Universidade Late-
de ética mundial”. Confira no site do IHU,
O Lugar da Teologia na Universidade em http://migre.me/R0s7, a edição 240 ranense desencadearam acre polêmica
do século XXI, realizado de 24 a 27 de da revista IHU On-Line, de 22-10-2007, contra os professores do Instituto Bí-
maio daquele ano. A IHU On-Line n. 90, intitulada “Projeto de Ética Mundial. Um
de 1º-03-2004, publicou um artigo de debate”. Visite, também, a Fundação de blico que influenciavam fortemente os
Rosino Gibellini sobre Rahner, disponível Ética Mundial, no site do IHU: http:// trabalhos conciliares. Venceu a exegese
em http://migre.me/11DTa, e a edição migre.me/R0sQ. (Nota da IHU On-Line) científica moderna contra as reações
94, de 02-03-2004, publicou uma 7 Edward Schillebeeckx (1914): teólogo
entrevista de J. Moltmann, analisando o holandês, frei dominicano, é considerado tradicionalistas. O movimento litúrgico
pensamento de Rahner, disponível para um dos mais importantes peritos oficiais trouxe inovações. Em dado momento,
download em http://migre.me/11DTu. do Vaticano II e um dos mais importantes
No dia 28-04-2004, no evento Abrindo o teólogos do século XX. (Nota da IHU On- a polarização se centrou em torno do
Livro, Érico Hammes, teólogo e professor Line) latim e da mudança dos ritos da cele-
da PUCRS, apresentou o livro Curso 8 Yves Marie-Joseph Congar (1904:1995): bração da Eucaristia. Mais uma vez,
Fundamental da Fé, uma das principais teólogo dominicano francês, conhecido
obras de Karl Rahner. A entrevista com por sua participação no Concílio Vaticano as inovações litúrgicas impuseram-se.
o professor Érico Hammes pode ser II. Foi duramente perseguido pelo Quanto aos pontos estritamente teo-
conferida na IHU On-Line n. 98, de 26- Vaticano, antes do Concílio, por seu
04-2004, disponível para download em trabalho teológico. Sobre Congar a IHU lógico-sistemáticos, o impacto da nova
http://migre.me/11DTM. Ainda sobre On-Line publicou um artigo escrito por teologia se fez ainda maior na elabora-
Rahner, publicamos uma entrevista com Rosino Gibellini, originalmente no site da ção da Constituição Dei Verbum, Lumen
H. Vorgrimler no IHU On-Line n. 97, de Editora Queriniana, na editoria Memória
19-04-2004, sob o título Karl Rahner: da edição 150, de 08-08-2005, lembrando Gentium e dos diversos decretos de di-
teólogo do Concílio Vaticano nascido há os dez anos de sua morte, completados álogo ecumênico, inter-religioso, etc. A
100 anos, disponível em http://bit.ly/ em 22-06-1995. Também dedicamos a
mlSwUc. A edição número 102 da IHU On- editoria Memória da 102ª edição da IHU
perspectiva de visão positiva em rela-
Line, de 24-05-2004, dedicou a matéria On-Line, de 24-05- 2004, à comemoração ção ao mundo moderno se concretizou
de capa à memória do centenário de do centenário de nascimento de Congar. na Constituição Pastoral Gaudium et
nascimento de Karl Rahner, disponível (Nota da IHU On-Line)
para download em http://migre. 9 Marie-Dominique Chenu (1895 - 1990): Spes. Algo inédito até então na tradição
me/11DTW. Os Cadernos Teologia Pública Teólogo dominicano francês, foi professor conciliar.
publicaram o artigo Conceito e Missão da de teologia medieval (1920-1942) e
Teologia em Karl Rahner, de autoria do diretor (1932-1942) da Universidade de
professor Dr. Érico Hammes. Confira esse Le Saulchoir (Bélgica), cargo do qual IHU On-Line – Como o senhor
www.ihu.unisinos.br

material em http://migre.me/11DUa. A foi destituído por decisão do Santo analisa a participação da Igreja do
edição 297, de 15-06-2009, intitula-se Oficio, que incluiu no Índice sua obra Le
Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, Saulchoir, uma escola de teologia (1937). Brasil no Concílio?
disponível para download em http:// Em suas obras, A fé na inteligência e O João Batista Libânio – Sobre
migre.me/11DUj. (Nota da IHU On-Line) Evangelho na história (1964), defende esse ponto, remeto o leitor à exaus-
6 Hans Küng (1928): teólogo suíço, padre a liberdade na investigação teológica
católico desde 1954. Foi professor na e na ação missionária da Igreja.
Universidade de Tübingen, onde também Aplicou o método sociológico à análise
dirigiu o Instituto de Pesquisa Ecumênica. eclesiástica (A doutrina social da Igreja à Igreja que são as suas Méditations
Foi consultor teológico do Concílio Vaticano como ideologia, 1979). Seu pensamento sur l’Eglise. Foi convidado a participar
II. Destacou-se por ter questionado as influenciou no movimento de reforma do Concílio Vaticano II como perito e o
doutrinas tradicionais e a infabilidade que culminou no Concilio Vaticano II, em Papa João Paulo II o fez cardeal no ano
do Papa. O Vaticano proibiu-o de atuar cujas sessões participou como perito. de 1983. É considerado um dos teólogos
como teólogo em 1979. Nessa época, (Nota da IHU On-Line). católicos mais eminentes do século XX.
foi nomeado para a cadeira de Teologia 10 Henri de Lubac (1896-1991): teólogo Sua principal contribuição foi o modo de
Ecumênica. Atualmente, mantém boas jesuíta francês. Foi suspenso pelo entender o fim sobrenatural do homem
relações com a Igreja e é presidente da Papa Pio XII. No seu exílio intelectual, e sua relação com a graça. (Nota da IHU
Fundação de Ética Mundial, em Tübingen. escreveu um verdadeiro poema de amor On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


tiva obra de José Oscar Beozzo11, A conciliares dos países europeus. A Igreja Católica para o diálogo com as

Tema de Capa
Igreja do Brasil no Concílio Vaticano presença dos assessores se reduziu Igrejas ortodoxas e evangélicas, com o
II: 1959-1965 (São Paulo: Paulinas, a nove no universo de cerca de um judaísmo, com as tradições religiosas
2005). Restrinjo-me às informações milhar. Esteve presente com um só não cristãs e com os não crentes. E fi-
de Beozzo. A Igreja do Brasil no mo- leigo na categoria de auditor, Barto- nalmente, a Gaudium et Spes inaugura
mento da consulta feita por João lo Perez, na época presidente da JOC o capítulo conciliar de abertura positi-
XXIII por meio do Cardeal Tardini12 internacional. va para as realidades terrestres vistas
aos bispos e prelados, aos superiores A importância aconteceu sob na perspectiva da criação e no fluir da
maiores das ordens e congregações outros aspectos: numeroso, mostrou- história.
religiosas, às faculdades de teologia -se articulado por graça da experiên-
e universidades católicas e aos di- cia da CNBB, ao viver a dimensão de IHU On-Line – A seu ver, quais fo-
castérios romanos parecia dormir. colegialidade. As intervenções carre- ram as principais lacunas do Concílio?
Só dois bispos em função no Brasil gavam tonalidade colegial. Participou João Batista Libânio – Uma das
responderam, enviando os seus vota das diversas redes de articulação que principais consiste em que muitas
na fase antepreparatória do Concílio. se armaram no Concílio. Teve força de intuições não encontraram formas
Ao ser aberto o Concílio Vaticano II, a pressão e de influência sobre o anda- práticas e jurídicas para se concreti-
Igreja do Brasil contava com o tercei- mento do próprio Concílio. Nesse tipo zarem. Assim a colegialidade perma-
ro maior episcopado do mundo, logo de atividade, sobressaiu a personali- neceu antes espírito que realidade.
depois do italiano e norte-america- dade de Dom Hélder Câmara. O Sínodo não passa de papel consul-
no. Estavam presentes na Primeira tivo. A colegialidade não desceu aos
Sessão 173 dos 204 bispos brasilei- IHU On-Line – Quais foram as níveis do bispo com o clero e deste
ros. Na última, já eram 194 os que principais novidades geradas pelo Va- com os leigos. Nesse sentido, a parti-
participaram. ticano II? cipação do leigo e, de modo especial,
João Batista Libânio – Diante de da mulher no mundo da decisão, do
Espírito colegial dos bispos tantas e tantas novidades, não resta ministério, deixa muito a desejar. O
brasileiros senão escolher algumas. Difícil tare- ministério ordenado, ligado ao celiba-
Um primeiro grande fruto do fa, que arrisco. Antes de tudo, o Pri- to e unicamente masculino, constitui
Concílio para o episcopado brasilei- mado da Palavra de Deus impôs-se ponto de estrangulamento da pasto-
ro se visibilizou na oportunidade de em relação à elaboração da teologia, ral, sobretudo em face da explosão
estar junto tanto tempo em Roma ao ensinamento do magistério, à for- das igrejas pentecostais. No campo
quase em único espaço geográfico, mação do clero, à piedade dos fiéis. do ecumenismo, conquistaram-se
hospedado na Domus Mariae. Isso Deslocou o problema das duas fontes alguns pontos teológicos e clima de
facilitou aos bispos articularem-se e para assinalar a última origem de uma melhor entendimento, mas não se
configurarem espírito colegial na con- única Fonte da Revelação, a própria caminhou muito no nível institucio-
fecção do Plano Pastoral de Conjunto. automanifestação de Deus transmiti- nal da intercomunhão eucarística, do
Aconteceu espécie de curso intensivo da pela Escritura, sem negar o valor da governo colegial ecumênico, de novo
de colegialidade que os anos de CNBB Tradição. Assume mais uma vez a con- tipo de mobilidade interna entre as
não tinham produzido. No interior do tribuição das ciências exegéticas, his- igrejas cristãs, sem significar rotativi-
próprio Concílio, a atuação dos bispos tóricas, linguísticas na interpretação dade religiosa.
brasileiros mostrou-se modesta, sob da Escritura. Sobre a Igreja, saliento
vários pontos de vista: por exemplo, a sua abordagem inicial como misté- IHU On-Line – De modo geral,
total ausência nos principais órgãos rio e a genial introdução do capítulo como as decisões conciliares foram
de direção do Concílio; e número res- Povo de Deus, que frisa a igualdade levadas adiante pela Igreja? www.ihu.unisinos.br
trito como membros nas Comissões dos cristãos, antes de abordar a dis- João Batista Libânio – A refor-
Conciliares, eleitos pelos pares ou tinção entre estrutura hierárquica da ma litúrgica caminhou bastante, mal-
nomeados pelo Papa. Foram 10 num Igreja e leigos. A colegialidade deslo- grado alguns suspiros saudosistas.
universo de mais de três centenas. As ca o polo do Primado isolado, quase O espírito ecumênico se concretiza
intervenções na Aula Conciliar ou de- absoluto, para a corresponsabilidade em certos momentos de oração, de
positadas por escrito pareceram gota dos bispos no governo da Igreja. A vo- celebração, de campanhas de soli-
d’água no mar das feitas pelos padres cação à santidade de todo fiel rompe dariedade, de união em lutas sociais
com o isolamento da vida consagrada comuns. Introduziu-se ar de simpli-
e aproxima-o dos religiosos. A valori- cidade no modo de existir de parte
11 Confira uma entrevista com ele nesta
edição. (Nota da IHU On-Line) zação da participação do leigo na vida do mundo eclesiástico e da vida con-
12 Domenico Tardini (1888-1961): eclesial quebra com o clericalismo de sagrada. Valorizaram-se tradições
cardeal italiano da igreja católica e
membro proeminente da Cúria Romana
séculos. Para não estender-me de- religiosas afro-ameríndias e formas
do Vaticano. (Nota da IHU On-Line) masiado, recordo ainda a abertura da da religiosidade popular católica. A

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 13


experiência pessoal dos fiéis conta
“A face maior Leia mais...
Tema de Capa
mais na organização das pastorais e
movimentos no interior da Igreja. O
crescente desejo de participação ati- da Igreja >> João Batista Libânio já concedeu

outras entrevistas à IHU On-Line. O


va e criativa está a provocar constan-
tes transformações na face externa modificou-se material está disponível no sítio do IHU
da Igreja.
profundamente” (www.ihu.unisinos.br)

IHU On-Line – Como o Concílio • “Aparecida significou quase uma sur-


foi recepcionado pela Igreja latino- presa”. Entrevista publicada na edição
-americana e, de modo particular,
brasileira? número 224, de 20-06-2007, intitulada
João Batista Libânio – Nos pri- xou de ser simples súdito obediente. Os rumos da Igreja na América Latina
meiros anos pós-conciliares, organi- A vida litúrgica prossegue, embora a partir de Aparecida. Uma análise do
zaram-se por todo o país inúmeros mais lentamente, a caminhada de
cursos, congressos, encontros de resposta às novas situações. A fé Documento Final da V Conferência, dis-
estudo e assimilação do Concílio. adquiriu maior clareza em face da ponível em http://bit.ly/gwmkGX;
O Encontro dos Bispos da Améri- Religião como instituição e expres-
• “A Teologia não se dá mal com o dis-
ca Latina em Medellín13 significou são crítica diante da pluralidade es-
grande momento de recepção cria- tonteante de práticas religiosas. No curso não metafísico, por isso ela pode
tiva do Vaticano II. Basta sinalizar entanto, a perda de clareza das refe- falar muito bem na pós-modernidade”.
alguns pontos: opção pelos pobres rências objetivas por causa da irrup-
na perspectiva da libertação, comu- ção no seio da Igreja do espírito de Entrevista publicada no sítio do IHU, em
nidades eclesiais de base, educação criatividade, liberdade e autonomia 16-08-2008, disponível em http://bit.
conscientizadora e libertadora, vida das pessoas, tem produzido reações
ly/fXhkdg;
consagrada inserida no meio popu- conservadoras em busca de segu-
lar, pobreza na e da Igreja com maior rança. Aí se trava um dos combates • “A morte não deve ser o critério de
proximidade com os setores pobres, duros do momento. Avançar com leitura dos acontecimentos”. Entrevis-
presença da Igreja nas lutas popula- os riscos ou fixar-se em parâmetros
res e movimentos sociais, visão críti- ta publicada no sítio do IHU, em 10-
objetivos, claros, mesmo que os te-
ca da política hegemônica das clas- nha de buscar no passado. O termo 04-2009, disponível em http://bit.ly/
ses dominantes. que se faz divisor de águas chama-
hXYeHE;
-se hermenêutica. Para uns, faz-se
IHU On-Line – Após 50 anos, o único caminho possível diante da • “Rahner e a entrada da Igreja na moder-
como o senhor analisa a atualidade e descoberta da autonomia dos sujei- nidade”. Entrevista publicada na edição
as perspectivas do Concílio? tos e da rápida transformação social
número 297, de 15-06-2009, intitulada
João Batista Libânio – A face e cultural. Para outros, identifica-se
maior da Igreja modificou-se pro- tal caminhada com o famigerado re- Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II,
fundamente. Entrou espírito de li- lativismo, a ser, portanto, rejeitado. disponível em http://bit.ly/gYVr5V;
berdade diante de imposições exter- Entre relativismo a pedir reafirma-
nas, de leis extrínsecas. O fiel fez-se ção da objetividade dos ensinamen- • “A liberdade cristã: um dos núcleos da
consciente e responsável no que diz tos e das práticas e a hermenêutica teologia de José Comblin”. Entrevista
respeito à Igreja institucional e dei- que introduz a fluidez das contínuas
www.ihu.unisinos.br

publicada na edição número 356, de


novas posições: eis o duelo maior do
13 Documento de Medellín: Em 1968, momento em termos teóricos. E o re- 04-04-2011, disponível em http://bit.
na esteira do Concílio Vaticano II e da flexo na prática chama-se ortodoxia, ly/dNbj5I;
encíclica Populorum Progressio, realiza-
se, na cidade de Medellín, Colômbia, a II
fundamentalismo, conservadorismo,
de um lado, e, de outro, cisma bran- • “Acolhi a vida como dom”. Entrevista
Assembleia Geral do Episcopado Latino-
Americano que dá origem ao importante co, cisma silencioso, prescindência, publicada na edição número 394, de
documento que passou a ser chamado o
Documento de Medellín. Nele se expressa liberdade em assumir os elementos
28-05-2012, em sua homenagem, inti-
a clara opção pelos pobres da Igreja doutrinais, morais e institucionais
Latino-Americana. A conferência foi correspondentes à experiência das tulada J. B. Libânio. A trajetória de um
aberta pessoalmente pelo Papa Paulo VI.
Era a primeira vez que um papa visitava a pessoas. teólogo brasileiro. Testemunhos, dispo-
América Latina. Leia uma entrevista com
Silvia Scatena, publicada na IHU On-Line nível em http://bit.ly/JLvlNn.
e disponível em http://bit.ly/PUXvsa
(Nota da IHU On-Line).

14 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Vaticano II. 50 anos depois,

Tema de Capa
apenas o início de um longo
processo de recepção
Massimo Faggioli destaca que instâncias como as do papel dos leigos e das mulheres
não foram discutidas no Concílio Vaticano II, “mas hoje todos aqueles que pedem
para discuti-las se colocam claramente no rastro da herança do Concílio”, defende
Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Moisés Sbardelotto

“O
Concílio inaugurou uma nova for- últimos anos “tornaram-se mais fortes as vozes
ma de ser Igreja seguramente na que tendem a banalizar o Concílio ou a culpá-lo
medida em que a Igreja Católica pela secularização: por esse motivo, o 50º ani-
hoje não é mais uma Igreja de cultura apenas versário é uma ocasião necessária para lembrar
ocidental ou europeia. O Vaticano II, teologica- o que foi verdadeiramente o Concílio e como,
mente, deu legitimidade a outras culturas para graças a ele, a Igreja começou a se renovar”.
acolher o Evangelho e desenvolver uma com- Massimo Faggioli é doutor em História da
preensão própria da mensagem cristã, sem ter Religião e professor de História do Cristianis-
que depender de modo escravizante da herança mo no Departamento de Teologia da University
greco-romano-medieval”. A opinião é de Massi- of St. Thomas, de Minnesota, Estados Unidos.
mo Faggioli, doutor em história da religião e pro- Seus livros mais recentes são Vatican II: The
fessor na University of St. Thomas, de Minneso- Battle for Meaning1 (Paulist Press, 2012) e True
ta, Estados Unidos. Na entrevista que concedeu Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanc-
por e-mail para a IHU On-Line Faggioli destaca a tum Concilium (Liturgical Press, 2012).
importância do Vaticano II, lamentando que nos Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que significa ce- ambientes tradicionalistas, tornaram- ta, a chamada “Ostpolitik”3, na tentativa
lebrar os 50 anos de abertura do Con- -se mais fortes as vozes que tendem a de desvincular a Igreja de uma aliança
cílio Vaticano II?1 banalizar o Concílio ou a culpá-lo pela muito estreita com o mundo ocidental.
Massimo Faggioli – Celebrar os 50 secularização: por esse motivo, o 50º Mas foi decisiva, do ponto de vista teoló-
anos de abertura do Concílio Vaticano aniversário é uma ocasião necessária gico, a contribuição dos movimentos de
II significa lembrar aquele momento de para lembrar o que foi verdadeiramen- reforma do início do século XX – o Mo-
consulta da Igreja universal decidido te o Concílio e como, graças a ele, a vimento Bíblico e Litúrgico, a renovação
por João XXIII2: um momento que, para Igreja começou a se renovar. É preciso patrística, o Movimento Ecumênico. Do
toda a Igreja, foi de esperança de poder libertar a história do Concílio das “nar- ponto de vista cultural, foi a experiência
reformar algumas coisas dentro dela rativas” e das ideologias políticas que do pluralismo nas sociedades modernas www.ihu.unisinos.br
mesma, no sentido de ser capaz de foram criadas em torno dele.
mudar algumas coisas do mundo, gra-
3 Ostpolitik da Santa Sé: desenvolvida
ças a uma nova interpretação do Evan- IHU On-Line – Quais fatores so- durante os pontificados de João XXIII e
gelho no mundo contemporâneo. Nos ciais e eclesiais foram decisivos para Paulo VI, foi impulsionada pelo Cardeal
últimos anos, especialmente em certos a realização do Concílio? Agostino Casaroli. A ostpolitik do Vaticano
Massimo Faggioli – Do ponto de recebeu o seu grande impulso com a
publicação da encíclica Pacem in Terris,
1 Sobre o livro, leia o artigo “Vaticano II: vista social e político, foi importante o em 1963, pelo Papa João XXIII. Pela
a batalha pelo significado”, de autoria de processo de descolonização, que na épo- primeira vez, esta encíclica defende
Rodrigo Coppe Caldeira, publicado nesta ca do Concílio havia recém-começado, que a paz só pode ser alcançada através
edição. (Nota da IHU On-Line) e a consequente desocidentalização do da colaboração de todas as “pessoas de
2 Papa João XXIII (1881-1963): nascido boa vontade”, incluindo aquelas que
Angelo Giuseppe Roncalli. Foi Papa de catolicismo e do cristianismo mundial, defendem “ideologias erradas” (como
28-10-1958 até a data da sua morte. também em nível das elites dirigentes da o comunismo). Devido a este apelo à
Considerado um papa de transição, depois Igreja. Além disso, desempenhou um pa- colaboração e à solidariedade, ela acabou
do longo pontificado de Pio XII, convocou pel próprio a política de abertura diplo- por incitar a Igreja Católica a começar a
o Concílio Vaticano II. Conhecido como negociação com os governos comunistas,
o “Papa Bom”, João XXIII foi declarado mática da Santa Sé ao mundo comunis- para que estes possam garantir o bem-
beato por João Paulo II em 2000. (Nota da estar dos seus cidadãos e habitantes
IHU On-Line) católicos. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 15


que levou o Concílio a reconsiderar algu- pensamento da ideia de Igreja segundo Massimo Faggioli – Estamos em
Tema de Capa
mas doutrinas sociais dadas por óbvias e uma concepção menos jurídica e mais uma fase difícil, em que o pontificado
a repensá-las em uma ótica menos ligada bíblica e patrística; e a uma ideia de liber- de Bento XVI deixou os espíritos tra-
a uma única experiência nacional e mais dade religiosa que relativiza o papel das dicionalistas livres para tentar voltar
ligada ao Evangelho. Mas foram os bispos instituições com relação às exigências da atrás com relação aos ensinamentos
e os teólogos daquela geração que tive- consciência. Os maiores frutos ad extra do Concílio. Mas é uma tentativa fa-
ram a coragem de discutir e de votar es- dizem respeito ao compromisso ecumê- dada ao fracasso. A renovação inaugu-
ses documentos. nico da Igreja, ao diálogo inter-religioso e rada pelo Concílio é irreversível. Nos
a uma nova ideia de diálogo entre Igre- próximos meses e anos, deveremos
IHU On-Line – Na gênese do Va- ja e mundo. A partir desses frutos, será continuar testemunhando a riqueza
ticano II, qual a relevância da Ação impossível voltar atrás, senão à custa de do ensinamento do Concílio e, por
Católica? tornar a Igreja Católica um gueto. isso, serão anos difíceis. Mas, no lon-
Massimo Faggioli – A Ação Ca- go prazo, não tenho dúvidas de que o
tólica foi importante, sem dúvida, IHU On-Line – Qual o significado Concílio Vaticano II é a única chance
ao propor no início cautelosa e len- e o alcance do conceito Igreja Povo de da Igreja de testemunhar o Evangelho
tamente um novo modelo de laicato Deus? Como esse modelo de Igreja no mundo contemporâneo.
católico, obediente à hierarquia, mas surgiu no contexto do Concílio?
também capaz de olhar para a frente Massimo Faggioli – Ele tem um IHU On-Line – Tendo em conta
e de pensar a Igreja como um agente significado importante, porque liqui- os desafios da conjuntura mundial,
de mudança social. Além disso, a Ação da um conceito neotomista e, além em que medida o Vaticano II continua
Católica introduziu no Concílio frutos disso, contrarreformista de Igreja e atual?
que depois se reverteram em outras assume uma compreensão da teologia Massimo Faggioli – Permanece
correntes, tais como os “novos movi- como “história da salvação” e da Igreja muito atual, se levarmos em conta,
mentos católicos”. Mas, sem a Ação como “povo de Deus” a caminho nesta por exemplo, o valor da declaração
Católica, o protagonista atual do laica- história da salvação. “Povo de Deus” Nostra Aetate6 depois do 11 de setem-
to não teria sido possível. não tem imediatamente um sabor so- bro de 2001. Mas, em geral, eu diria
ciológico, mas sim bíblico e histórico. que a vitalidade da Igreja hoje se deve
IHU On-Line – Em que medida o Eliminar essa nota eclesiológica – a ao Vaticano II. Esse processo de reno-
Concílio inaugurou uma nova forma Igreja como povo de Deus – equivale vação há pouco começou: na história
de ser Igreja? a redimensionar todo o Vaticano II. dos concílios ecumênicos e da Igreja,
Massimo Faggioli – O Concílio Esse modelo de Igreja surgiu dentro 50 anos são apenas o início de um
inaugurou uma nova forma de ser de uma discussão eclesiológica que já longo processo de recepção da men-
Igreja seguramente na medida em que havia iniciado depois da publicação da sagem do Concílio.
a Igreja Católica, hoje, não é mais uma encíclica do Papa Pio XII4 Mystici Cor-
Igreja de cultura apenas ocidental ou poris (1943), mas que chegou à matu-
europeia. O Vaticano II, teologicamen-
te, deu legitimidade a outras culturas
ridade somente na fase preparatória
do Concílio, quando modelos eclesio-
Leia mais...
para acolher o Evangelho e desen- lógicos diferentes (Igreja como Corpo >> Confira alguns dos artigos de
volver uma compreensão própria da Místico, Igreja como povo de Deus, Massimo Faggioli publicados no sítio
mensagem cristã, sem ter que depen- Igreja como sacramento de salvação, do IHU:
der de modo escravizante da herança eclesiologia ecumênica) se fundiram • Alguma coisa importante aconteceu
greco-romano-medieval. Muitas ins- na constituição Lumen Gentium5. no Vaticano II. Artigo publicado em
tâncias, como a da colegialidade e a 13-03-2010 e disponível em http://
do governo da Igreja, foram discutidas IHU On-Line – À luz do Vaticano bit.ly/T2vPon
no Concílio e, no fim, redimensiona- II, entre o recuo e o avançar, como o • Recepção do Vaticano II em discus-
das em comparação com as expecta- senhor analisa o atual momento da são. Artigo publicado em 17-06-
tivas: redimensionadas tanto durante Igreja? 2011, disponível em http://bit.ly/
o Concílio como depois do Concílio
www.ihu.unisinos.br

O9bJoT
por Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. • Cúria, uma reforma pela metade.
Outras instâncias, como as do papel 4 Papa Pio XII (1876-1958): nascido
Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, Artigo publicado em 30-05-2012,
dos leigos e das mulheres, não foram foi eleito Papa em 2 de março de 1939. disponível em http://bit.ly/O18LXO
discutidas no Concílio, mas hoje todos Foi o primeiro Papa nascido na cidade de
aqueles que pedem para discuti-las se Roma desde 1724. (Nota da IHU On-Line) • Geografia de Deus. Artigo publicado
colocam claramente no rastro da he- 5 Lumen Gentium é um dos mais em 20-06-2012, disponível em ht-
importantes textos do Concílio Vaticano
rança do Concílio Vaticano II. II. O texto desta Constituição dogmática tp://bit.ly/Q7Ansl
foi demoradamente discutido durante a • O voto e a santidade. Artigo publi-
IHU On-Line – Em sua análise, segunda sessão do Concílio. O seu tema
cado em 22-06-2012, disponível em
quais foram os principais frutos do é a Igreja como instituição. Foi objeto de
muitas modificações e emendas, como, http://bit.ly/LLxwFx
Concílio? aliás, todos os documentos aprovados.
Massimo Faggioli – De um modo Inicialmente surgiram, para o texto base,
muito esquemático, eu diria que os cerca de 4.000 emendas. Sobre o tema,
maiores frutos ad intra se referem à re- confira os Cadernos Teologia Pública 6 Proclamada pelo Papa Paulo VI em 28
número 4, intitulado No quarentenário da de Outubro de 1965, a Declaração Nostra
forma litúrgica; ao papel das Escrituras Lumen Gentium, de autoria de Boaventura Aetate fala sobre a Igreja e as religiões
na teologia e na vida da Igreja; a um re- Kloppenburg. (Nota da IHU On-Line) não-cristãs. (Nota da IHU On-Line)

16 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Tema de Capa
Vaticano II: bússola confiável
para conduzir a Igreja rumo ao
terceiro milênio
“O Concílio Vaticano II conduziu uma reflexão aprofundada e forneceu ensinamentos
importantes. Em todas as áreas, os conceitos de diálogo, de colaboração e de
cooperação encontram-se no cerne desses ensinamentos”, destaca Gilles Routhier

Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Vanise Dresch

A
o destacar como foram acolhidas e reformas, com uma nostalgia de restauração.
postas em prática pela Igreja as novi- No entanto, no longo prazo é impossível vol-
dades do Concílio Vaticano II, o teólogo tar à figura pré-conciliar da Igreja”.
canadense Gilles Routhier afirma que “indu- Gilles Routhier, nascido em Quebec, no
bitavelmente a Igreja mudou, e a mudança se Canadá, é padre e teólogo católico. Obteve
deu em vários campos: na vida religiosa, na o título de doutor em Teologia pelo Instituto
formação dos padres, no exercício da função Católico de Paris e em História das Religiões
episcopal, no ecumenismo, no diálogo inter- e da Antropologia Religiosa pela Universidade
-religioso etc.” Na entrevista que concedeu Paris-Sorbonne. Especializado na recepção do
por e-mail à IHU On-Line, ele percebe que Concílio Vaticano II, foi professor de Teologia
“muitas coisas ainda precisam ser feitas e Prática e Eclesiologia no Instituto Católico de
aprofundadas. Mas a Igreja Católica não vive Paris e atualmente ensina na Université Laval,
mais, como no século XIX, numa situação de do Canadá.
fortaleza sitiada ou em gueto. Existem tentati- Confira a entrevista.
vas de retrocesso ou, às vezes, resistências às

IHU On-Line – Em 11 de outu- aprofundada e forneceu ensinamen- concilium1, principalmente em seus


bro de 1962, o Papa João XXIII abria tos importantes. Em todas as áreas, os capítulos sobre as artes e a música sa-
oficialmente os trabalhos do Concílio conceitos de diálogo, de colaboração e cra, mas também sobre a adaptação
www.ihu.unisinos.br
Vaticano II. Pode-se dizer que o Con- de cooperação encontram-se no cerne da liturgia e dos ritos às tradições e às
cílio inaugurou um novo modo de ser desses ensinamentos. regiões. Além disso, o Vaticano II foi o
Igreja? Por quê? primeiro Concílio a refletir ex professo
Gilles Routhier – O Concílio teve, IHU On-Line – Para além do
sem dúvida, uma influência duradoura contexto europeu, em que medida
1 Sacrosanctum Concilium: constituição
sobre o modo de viver na Igreja (entre se pode dizer que o Concílio foi um sobre a Sagrada Liturgia. Foi o primeiro
padres e leigos, entre bispos e padres, evento universal? documento aprovado pelo Concílio
entre os bispos e o papa, etc.) e sobre Gilles Routhier – Em primeiro Vaticano II. Não foi objeto de muita
controvérsia, pois a adaptação da
o modo como a Igreja católica passou lugar, pela participação de muitos bis- liturgia já era frequente em muitíssimas
a pensar suas relações com o mundo pos não ocidentais. Isso foi inédito. comunidades eclesiais. Esta constituição
(com a cultura, a sociedade e os Esta- Em segundo lugar, por considerar, ain- foi o primeiro fruto do Concílio, por já
estar, em boa parte, sendo posta em
dos) e com os outros (cristãos não ca- da que insuficientemente, tradições prática antes de ter sido discutida e
tólicos, crentes de outras religiões, não e culturas não ocidentais. Percebe-se aprovada. Foi promulgada pelo Papa
crentes e ateus). Nesse sentido, o Con- isso já no primeiro documento apro- Paulo VI no dia 4 de dezembro de 1963,
final da segunda sessão conciliar. (Nota da
cílio Vaticano II conduziu uma reflexão vado pelo Concílio, Sacrosanctum IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 17


sobre a questão da cultura e a obser-
“Eis então o
Tema de Capa
var que o Evangelho deve expressar-se IHU On-Line – Qual é a herme-
em diversas línguas e que esta é a lei
de toda evangelização. desafio que isso nêutica de Bento XVI em relação ao
Concílio e quais as decorrências para
a caminhada da Igreja?
IHU On-Line – De maneira geral, representa para a Gilles Routhier – O que ele apre-
olhando para a Igreja pós-conciliar, senta é uma hermenêutica da refor-
como foram acolhidas e postas em Igreja: como ela ma. Ao menos, é o que propôs em sua
prática as novidades do Concílio? alocução na Cúria, em 22 de dezembro
Gilles Routhier – Indubitavel- pode reformar de 2005. Não se trata simplesmente
mente a Igreja mudou, e a mudança se de uma hermenêutica da continuida-
deu em vários campos: na vida religio- suas práticas de, como alguns sugerem. Eis então
sa, na formação dos padres, no exercí- o desafio que isso representa para a
cio da função episcopal, no ecumenis- e sua vida na Igreja: como ela pode reformar suas
mo, no diálogo inter-religioso etc. Por práticas e sua vida na continuidade?
certo, muitas coisas ainda precisam
ser feitas e aprofundadas. Mas a Igreja
continuidade?” Refletiu-se pouco, desde Congar, so-
bre a reforma da Igreja e como pode
Católica não vive mais, como no sécu- haver reforma sem rompimento e res-
lo XIX, numa situação de fortaleza si- como a inserção do Evangelho em to- peitando a tradição.
tiada ou em gueto. Existem tentativas das as culturas do mundo. Nesse sen-
de retrocesso ou, às vezes, resistên- tido, as questões do Vaticano II conti- IHU On-Line – O senhor poderia
cias às reformas, com uma nostalgia nuam sendo as nossas e ele não está falar sobre a importância, como sur-
de restauração. No entanto, no longo ultrapassado. giu e os principais objetivos da pági-
prazo é impossível voltar à figura pré- na da web “Viva o Concílio” (http://
-conciliar da Igreja. IHU On-Line – Analisando o atu- www.vivailconcilio.it/), que tem
al contexto eclesial, como o senhor como um dos patrocinadores o Car-
IHU On-Line – E atualmente, de- interpreta a recente decisão do Papa deal Martini?
pois de 50 anos, como o Concílio Va- Bento XVI em reintegrar à Igreja o Gilles Routhier – Eu sou membro
ticano II pode continuar repercutindo movimento lefebvriano? do comitê de promoção desse site.
na caminhada da Igreja? Gilles Routhier – Essa preocu- Seu objetivo é divulgar o Concílio que
Gilles Routhier – O Concílio Va- pação não é nova para ele. Ele tam- é seguidamente ignorado, até mesmo
ticano II não parou de produzir seus bém se preocupou com isso quando por aqueles que o criticam ou o de-
frutos. Precisamos, pois, considerar era prefeito da Congregação para a nigrem. Existem tantos discursos an-
suas grandes intuições no momento Doutrina da Fé – CDF. Sua preocupa- ticonciliares na web que precisamos,
em que se fala da nova evangelização. ção com a unidade o honra, mas, ao hoje, encontrar meios de promover
Ele queria justamente, de acordo com mesmo tempo, há o risco de desen- honestamente o Concílio Vaticano II.
o desejo do Papa João XXIII, possibili- corajar vários cristãos que, diante de Uma Igreja não pode dar as costas a
tar uma nova forma de expressão da tal fato, se isso significasse um retorno um concílio ecumênico. Ele faz parte
doutrina cristã. Este é sempre o desa- ou uma revisão de certos ensinamen- da memória da Igreja e, como dizia o
fio da Igreja. Do mesmo modo, o en- tos do Vaticano II ou de sua aplicação, Papa João Paulo II, ele mesmo padre
contro com os não crentes ou com os deixariam tranquilamente a Igreja. Em conciliar, tem-se aí uma bússola con-
crentes de outras religiões está cada suma, o perigo é criar novas tensões fiável para conduzir a Igreja rumo ao
vez mais em pauta na Igreja. Assim em seu seio. terceiro milênio.
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18 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Tema de Capa
“O princípio social central do
Vaticano II é a justiça”
Johan Verstraeten afirma que a partir do Concílio Vaticano II e da Constituição
Pastoral Gaudium et Spes a Igreja não era mais um mundo à parte, e sim uma
comunidade inserida na história real do mundo e conectada com as alegrias e
esperanças, mas também com o sofrimento das pessoas

Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Luís Marcos Sander

“O
s aspectos realmente inovado- Católica que é alheia ao espírito do Vaticano
res do Vaticano II são negados II”, constata o professor de Ética teológica da
na perspectiva da ‘continuida- Universidade Católica de Leuven.
de’ com o passado. A eclesiologia integral e Johan Verstraeten, belga, ensina Theologi-
a teologia do povo de Deus e da communio cal Ethics na Faculty of Theology and Religious
se tornaram uma espécie de unidade doutri- Studies, da KU Leuven, e é membro do con-
nária e disciplinar rigorosa. A perspectiva da selho editorial da Business Ethics e do Journal
justiça voltou a ser de novo mais uma questão of Catholic Social Thought.
de caridade. Há uma reclericalização da Igreja Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor Helder Câmara2, arcebispo de Recife. Esse documento foi crucial em mais
analisa o Concílio Vaticano II após 50 de um sentido. Por um lado, ele rea-
anos de sua abertura, sob o ponto de 2 Dom Hélder Câmara (1909-1999): firmou a guinada personalista que já
vista da Doutrina Social da Igreja? arcebispo lembrado na história da Igreja estava presente na encíclica Mater
Johan Verstraeten – No início, o Católica no Brasil e no mundo como um et magistra (1961)3 e, por outro, en-
grande defensor da paz e da justiça.
foco estava nos assuntos internos da Foi ordenado sacerdote aos 22 anos dossou teologicamente o método dos
Igreja, como, por exemplo, a eclesio- de idade, em 1931. Aos 55 anos, foi trabalhadores cristãos (ver, julgar, agir,
nomeado arcebispo de Olinda e Recife.
logia integral (a igreja como povo de Assumiu a Arquidiocese em 12-03-1964,
já mencionado na Mater et Magistra),
Deus, Lumen Gentium), a relação en- permanecendo neste cargo durante 20 e o fez de uma forma extremamente
tre o papa e os bispos, a liturgia (Cons- anos. Na época em que tomou posse inspiradora: “perscrutar os sinais dos
como arcebispo em Pernambuco, o
titutio de sacra liturgia), a revelação tempos e interpretá-los à luz do evan-
www.ihu.unisinos.br
Brasil encontrava-se em pleno domínio
e interpretação das Escrituras (Dei da ditadura militar. Paralelamente às gelho”. Isso expressava uma nova ati-
atividades religiosas, criou projetos
Verbum1). Só mais tarde as questões e organizações pastorais destinadas a
tude para com o mundo: a igreja não
sociais e, particularmente, a pauta do atender às comunidades do Nordeste era mais um mundo à parte, e sim
chamado “Terceiro Mundo” tornou- que viviam em situação de miséria. uma comunidade inserida na história
Dedicamos a editoria Memória da IHU
-se o centro de interesse no que, por On-Line número 125, de 29-11-2005, a real do mundo e conectada com as
fim, resultou na Constituição Pastoral Dom Hélder Câmara, publicando o artigo alegrias e esperanças, mas também
Gaudium et Spes. Um dos mais in- Hélder Câmara: cartas do Concílio. Na com o sofrimento das pessoas. Gau-
edição 157, de 26-09-2005, publicamos
fluentes bispos nesse tocante foi D. a entrevista O Concílio, Dom Helder e a
Igreja no Brasil, realizada com Ernanne 3 Saiba mais sobre a encíclica Mater et
Pinheiro, que pode ser lida em http:// Magistra lendo a entrevista “O salto
migre.me/KtGO. Confira, ainda, a qualitativo de João XXIII: uma síntese
1 Dei Verbum: um dos grandes documentos editoria Filme da Semana da edição 227 da ética social”, com o frei dominicano
emanados do Concílio Vaticano II. Ele da IHU On-Line, 09-06-2007, que comenta Carlos Josaphat, jornalista, teólogo,
trata da revelação da Palavra de Deus. o documentário Dom Hélder Câmara – professor e escritor, publicada na edição
Foi promulgado pelo Papa Paulo VI em 18 o santo rebelde. O material pode ser número 360, de 09-05-2011, disponível
de novembro de 1965. (Nota da IHU On- acessado em http://migre.me/KtIb. http://bit.ly/kylGkb (Nota da IHU On-
Line) (Nota da IHU On-Line) Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 19


dium et Spes4 também reconheceu
“O Concílio social da igreja não é uma “terceira
Tema de Capa
que tudo o que fazemos para promo- via”, nem um modelo específico). Mas
ver a humanidade e a justiça é uma
contribuição para o reino de Deus que como tal não ele defendeu uma sociedade a servi-
ço da dignidade da pessoa humana. O
“já está presente em mistério”. Além
disso, Gaudium et Spes endossou uma argumentou a princípio social central do Vaticano II
é a justiça.
visão nova e mais espiritual do matri-
mônio, não como um contrato, mas favor ou contra o IHU On-Line – Qual foi o signifi-
como “íntima comunidade de vida e
amor”. Além disso, pela primeira vez capitalismo ou o cado de justiça social assumido pelo
Concílio e quais suas decorrências?
foram levadas a sério preocupações
concretas do “Terceiro Mundo”, como, comunismo, mas Johan Verstraeten – Para o
Vaticano II – como já foi o caso na
por exemplo, o problema da proprie-
dade da terra e de sua redistribuição a defendeu uma encíclica Quadragesimo anno8, de
1931 –, justiça social significa que
agricultores pobres.
visão personalista os pobres deveriam receber a parte
que lhes cabe nos bens da terra e no
IHU On-Line – Como o Concílio
repercutiu nas questões sociopolíti- da sociedade” crescimento econômico. O ensino
social da igreja sempre proclamou
co-econômicas e nas tensões entre os que um abismo grande demais em
modelos capitalista e comunista? termos de renda entre ricos e po-
priedade privada está subordinada
Johan Verstraeten – O Concílio bres é contra o bem comum. Com
à destinação comum dos bens, afir-
como tal não argumentou a favor ou efeito, ele trata de uma sociedade
mando que os latifúndios deveriam
contra o capitalismo ou o comunismo, participativa em que todas as pes-
ser distribuídos às pessoas, porque
mas defendeu uma visão personalista soas sejam capacitadas a se tornar
não é justo que a terra não seja usa-
da sociedade. Uma de suas principais participantes plenos na sociedade,
da para a produção de alimentos ou
contribuições foi tornar concreta a incluindo as pessoas marginalizadas
para a subsistência dos agricultores
visão de Pio XII – que era, com efei- e os indígenas, cujo interesse é mui-
e de suas famílias. (Este é um ponto
to, uma nova confirmação da visão tas vezes negligenciado.
de vista que, mais tarde, o Papa João
de Tomás de Aquino5 – de que a pro-
Paulo II estendeu à propriedade dos
IHU On-Line – Em que medida o
meios de produção em geral, incluin-
4 Gaudium et Spes: Igreja no mundo Concílio foi o ponto de partida para o
atual. Constituição pastoral, a 4ª das do a propriedade de ações de empre-
desenvovimento de uma nova cons-
Constituições do Concílio Vaticano II. Trata sas; é justo investir dinheiro quando
fundamentalmente das relações entre a ciência de ser Igreja, sobretudo para
ele leva não só ao lucro financeiro,
Igreja e o mundo onde ela está e atua. uma eclesiologia da libertação?
Trata-se de um documento importante, mas também ao lucro social, ou, mais
Johan Verstraeten – O Vaticano
pois significou e marcou uma virada da concretamente, à criação de “traba-
Igreja Católica “de dentro” (debruçada II como tal e, particularmente, a Gau-
lho útil”, no dizer de Centesimus an-
sobre si mesma) “para fora” (voltando-se dium et Spes ainda não propuseram
para as realidades econômicas, políticas nus6, capítulo 4.)
e sociais das pessoas no seu contexto). uma espécie de teologia da libertação.
Inicialmente, ela constituía o famoso Por outro lado, a abordagem segundo
“esquema 13”, assim chamado por ser IHU On-Line – Qual o modelo
a qual se deveriam “perscrutar os si-
esse o lugar que ocupava na lista dos social idealizado e assumido pelo
documentos estabelecida em 1964. nais dos tempos” e a atenção dada a
Concílio?
Sofreu várias redações e muitas emendas, ela por alguns bispos do (então) Tercei-
acabando por ser votada apenas na quarta Johan Verstraeten – Na verdade,
e última sessão do Concílio. O Papa
ro Mundo abriram caminho para uma
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o Concílio não propôs um modelo es-


Paulo VI, no dia 7 de dezembro de 1965, abordagem mais crítica em relação às
promulgou esta Constituição. Formada por pecífico de sociedade (como o Papa
injustiças da sociedade. Foi o espírito
duas partes, constitui um todo unitário. João Paulo II esclareceria mais tarde
A primeira parte é mais doutrinária, e a do Vaticano II e a nova colegialidade
em Sollicitudo rei socialis7: o ensino
segunda é fundamentalmente pastoral. entre os bispos que, também depois
Sobre a Gaudium et spes, confira o n. 124
da IHU On-Line, de 22-11-2004, sobre os
40 anos da Lumen Gentium, disponível Idade Média, na escolástica anterior.
em http://bit.ly/9lFZTk, intitulada A Em suas duas “Summae”, sistematizou
igreja: 40 anos de Lumen Gentium. (Nota o conhecimento teológico e filosófico de promulgada pelo Papa João Paulo II em 30
da IHU On-Line) sua época: são elas a Summa Theologiae, de dezembro de 1987, no 20º aniversário
5 São Tomás de Aquino (1225-1274): padre a Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU da Populorum Progressio. (Nota da IHU
dominicano, teólogo, distinto expoente On-Line) On-Line)
da escolástica, proclamado santo e 6 Centesimus Annus: encíclica escrita 8 Quadragesimo anno: carta encíclica
cognominado Doctor Communis ou Doctor pelo Papa João Paulo II em 1991, no 100º do Papa Pio XI sobre a restauração e
Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior aniversário da Rerum Novarum. É uma das aperfeiçoamento da ordem social em
mérito foi a síntese do cristianismo com a 14 encíclicas publicadas por João Paulo II. conformidade com a lei evangélica no
visão aristotélica do mundo, introduzindo (Nota da IHU On-Line) 40º aniversário da encíclica de Leão XIII,
o aristotelismo, sendo redescoberto na 7 Sollicitudo Rei Socialis: encíclica Rerum Novarum. (Nota da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


de Populorum Progressio9 (1967),
“O problema centes do Pontifício Conselho da Jus-

Tema de Capa
tornou possível uma conferência dos tiça e da Paz11 sobre a crise financeira
bispos latino-americanos como a de
Medellín em 1968 (opção pelos po- atualmente é internacional é um documento exce-
lente. De fato, o “pensamento social
bres, atenção às estruturas opressoras
e libertação). Foi também o espírito que nós temos os católico” sempre é mais amplo e mais
rico do que os documentos oficiais. Há
do Vaticano II que inspirou o Sínodo
Geral dos Bispos sobre a justiça (1971) textos do Vaticano sempre um diálogo em andamento,
mas ainda não se está dando atenção
a proclamar que a “ação pela justi-
ça e a participação na transformação II, mas o espírito suficiente à perspectiva e experiência
dos pobres.
do mundo aparecem-nos claramente
como uma dimensão constitutiva da de colegialidade IHU On-Line – Gostaria de desta-
pregação do evangelho”.
e de diálogo car mais algum aspecto?
Johan Verstraeten – Para mim,
IHU On-Line – Depois de 50 anos
de sua abertura, como o Concílio aberto quase a “doutrina” é menos importante do
que o compromisso cotidiano de mi-
pode continuar repercutindo na Igre-
ja, sobretudo tendo presente a atual desapareceu” lhões de cristãos em todas as partes
do mundo, desde os líderes de movi-
realidade social e cultural? mentos sociais e ecológicos radicais
Johan Verstraeten – O problema até pessoas que tentam realizar uma
nidades que mostre às pessoas em
atualmente é que nós temos os textos nova economia de comunhão, desde
todas as circunstâncias da vida que
do Vaticano II, mas o espírito de cole- pessoas que vivem em contato direto
Deus é um Deus de amor e justiça,
gialidade e de diálogo aberto quase com pobres e vulneráveis (como Jean
um Deus que quer curar e libertar
desapareceu. Os aspectos realmente Vanier, por exemplo) até aquelas que
todo ser humano cuja dignidade hu-
inovadores do Vaticano II são negados analisam as causas estruturais da in-
mana seja violada.
na perspectiva da “continuidade” com justiça, desde professores universitá-
o passado. A eclesiologia integral e a rios críticos até pessoas que constro-
IHU On-Line – Entre recuos e
teologia do povo de Deus e da com- em escolas e centros de atendimento
avanços, à luz do Vaticano II, como o
munio se tornaram uma espécie de em campos de refugiados e lixões de
senhor analisa as atuais diretrizes da
unidade doutrinária e disciplinar rigo- cidades grandes onde os mais pobres
Cúria Romana em relação à Doutrina
rosa. A perspectiva da justiça voltou dentre os pobres tentam sobreviver,
Social da Igreja?
a ser de novo mais uma questão de desde sindicalistas cristãos até líderes
Johan Verstraeten – Hoje em dia,
caridade. Há uma reclericalização da empresariais que tentam genuina-
não há uma única atitude da cúria.
Igreja Católica que é alheia ao espírito mente realizar um mundo dos negó-
Isso é claramente visível no “Compên-
do Vaticano II. cios mais humano, desde pessoas que
dio da doutrina social da igreja”10. Esse
defendem os direitos de migrantes e
documento é, por um lado, um resu-
IHU On-Line – Qual a missão da “sem-documentos” até os políticos
mo conservador de mais de 100 anos
Igreja no mundo de hoje? que tentam criar um sistema político
de ensino social, mas, por outro lado,
Johan Verstraeten – A missão mais justo, as pessoas que ajudam os
mostra uma preocupação real com o
da Igreja na atualidade não é, em pri- sem-teto, desde diplomatas cristãos
meio ambiente, defende a destinação
meiro lugar, oferecer uma doutrina cautelosos até cristãos realmente
universal dos bens, mais participação,
ao mundo, mas ser, seguindo as pe- “indignados”... Uma prática e teoria
etc. Alguns documentos dão a impres-
gadas de Jesus Cristo, um sacramento social autêntica sempre nasce na en- www.ihu.unisinos.br
são de subordinarem de novo a jus-
de salvação e libertação de tudo que cruzilhada do evangelho e da vida.
tiça à caridade, mas em documentos
impede os seres humanos de serem Enquanto a hierarquia der ouvidos
recentes há novamente um equilíbrio
plenamente humanos. Uma igreja au- à experiência das pessoas que estão
entre as duas. Um dos documentos re-
têntica e digna de crédito cuja prática na base e expressar as preocupações
corresponda ao seu discurso. Uma delas em seu ensino social oficial, o
igreja como comunidade de comu- 10 Doutrina Social da Igreja (DSI): catolicismo social será uma força de
conjunto dos ensinamentos contidos humanização e justiça no mundo.
na doutrina da Igreja Católica e
9 Populorum Progressio: encíclica no Magistério da Igreja Católica,
do Papa Paulo VI, intitulada O constante de numerosas encíclicas e 11 Sobre o Pontifício Conselho da Justiça
Desenvolvimento dos Povos, emitida na pronunciamentos dos Papas inseridos na e da Paz o sítio do IHU já publicou amplo
páscoa de 1967. Ela teve uma grande tradição multissecular, e que tem suas material, dentre o qual está o artigo “É
repercussão no mundo, especialmente origens nos primórdios do Cristianismo. preciso uma nova autoridade financeira
na América Latina. Leia mais sobre esta Tem por finalidade fixar princípios, mundial”. As propostas econômicas do
encíclica na edição número 360 da IHU critérios e diretrizes gerais a respeito da Vaticano, publicado em 25-10-2011 e
On-Line, disponível em http://bit.ly/ organização social e política dos povos e disponível em http://bit.ly/QJuxPS (Nota
kTYBUr (Nota da IHU On-Line) das nações. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 21


Tema de Capa
Um ato profético e um “evento
linguístico”
“O cerne da questão é: estamos ainda convencidos de que a “participação ativa” de
todos os batizados na única ação ritual é o ponto de virada para a consciência eclesial
do novo milênio?”, pergunta Andrea Grillo

Por Márcia Junges e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Moisés Sbardelotto

P
ara o teólogo Andrea Grillo, o Concílio de uma afirmação do historiador norte-ame-
Vaticano II é um “grande ato profético ricano O’Malley, ponderando que esse evento
com o qual a Igreja tentou retomar o foi, acima de tudo, um “evento linguístico”.
fio da sua melhor tradição, superando a crise Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano,
de identidade que os séculos XIX e XX haviam especialista em liturgia e pastoral. Doutor em
profundamente manifestado”. Na entrevista teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral de
concedida por e-mail à IHU On-Line, o estu- Pádua, é professor do Pontifício Ateneu S. An-
dioso argumenta que o Concílio buscava “res- selmo, de Roma, do Instituto Teológico Mar-
tituir à liturgia toda a riqueza que a tradição chigiano de Ancona e do Instituto de Litur-
havia experimentado nela”. Por isso, acentua, gia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de
“teve que pensar grande não apenas segundo Pádua. Desde 2007, leciona como professor
as lógicas do segundo milênio, mas também convidado na Faculdade Teológica de Luga-
segundo as do primeiro milênio. Por isso ele no, e, desde 2008, na Pontifícia Universidade
falou uma linguagem muito mais bíblica e pa- Gregoriana, em Roma. Também é membro da
trística do que sistemática; pensou mais em Associação Teológica Italiana e da Associação
termos de experiência comunitária do que dos Professores de Liturgia da Itália.
nos termos de ‘salvação da alma’”. E vale-se Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que análise o se- a consciência eclesial entrou em difi- culmen) em uma ação simbólico-ritual
nhor faz do Concílio Vaticano II, aber- culdades, perdeu a lucidez. Ao menos de comunhão com o seu Senhor Jesus.
to pelo Papa João XXIII em 11 de ou- nas suas cúpulas. O cerne da questão Restituir aos ritos a primeira e a última
tubro de 1962, a partir da perspectiva é: estamos ainda convencidos de que palavra: esse foi o grande propósito
litúrgica? a “participação ativa” de todos os ba- que a Reforma se prefixou e que, hoje,
Andrea Grillo – O Concílio Vati- tizados na única ação ritual é o ponto põe em jogo as boas (ou más) inten-
cano II, considerado 50 anos depois de virada para a consciência eclesial ções de todos aqueles que, no rito,
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sobre o plano do seu “magistério li- do novo milênio? devem se perder para se reencontrar,
túrgico”, aparece verdadeiramente devem “tomar a iniciativa de perder
como um grande ato profético com IHU On-Line – Qual é o sentido a iniciativa”, como escreveu o grande
o qual a Igreja tentou retomar o fio e a importância da reforma litúrgica filósofo Marion1. Nessa “espoliação de
da sua melhor tradição, superando que foi promovida pelo Concílio, para si”, a liturgia espera muito de clérigos
a crise de identidade que os séculos a caminhada da Igreja? e de leigos, de homens e de mulheres.
XIX e XX haviam profundamente ma- Andrea Grillo – Justamente para
nifestado. Obviamente, a 50 anos de a vida da Igreja de hoje e de amanhã
distância, permanece intacta – e talvez é importante, sobretudo, amadu-
ainda mais urgente – a necessidade recer uma consciência lúcida sobre
de compreender até o fim a intenção esse fato: a Reforma Litúrgica foi – e 1 Jean-Luc Marion: intelectual de renome,
reconhecido internacionalmente. Leia
“tradicional” do Concílio. Assegurar continua sendo – um ato de serviço à uma entrevista com ele, publicada no
a continuidade da tradição mediante possibilidade de que toda a Igreja, em sítio do IHU em 03-01-2011, intitulada
algumas abençoadas “descontinuida- todas as suas expressões, possa sem- “O Natal e o fracasso do pensamento”,
disponível em http://bit.ly/PG2MaU
des”. Acerca disso, nos últimos anos, pre recomeçar e se culminar (fons et (Nota da IHU On-Line)

22 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


IHU On-Line – A partir do Vati- do estilos, palavras e formas fechadas – em 1500 – favorecido a passagem

Tema de Capa
cano II, que perspectivas litúrgicas se demais, autorreferenciais demais e, “da comunidade ao indivíduo”, 400
abriram? muitas vezes, sem mais capacidade de anos depois, o Vaticano II demarcou
Andrea Grillo – No discurso com comunicação. a retomada do primado da comuni-
o qual Paulo VI inaugurou a segunda dade sobre o indivíduo. Isso significou
sessão do Concílio em setembro de IHU On-Line – Entre esses princí- um reequilíbrio profundo e complexo
1963 – a sessão da qual brotaria o pios, o senhor poderia aprofundar a entre vida espiritual, estruturas insti-
texto definitivo da SC [Sacrosanctum categoria de ‘mistério pascal’? Quais tucionais e ações rituais. Tal processo
Concilium] –, ele afirmava que a Igreja os desdobramentos desse conceito de calibragem ainda está em plena
com o Concílio devia dar a melhor ex- para a reflexão teológica e pastoral? elaboração e implica grandes sacrifí-
pressão ao que pensa de si mesma. A Andrea Grillo – As consequências cios, seja para os indivíduos, seja para
redescoberta de que, na ação litúrgica, dessa redescoberta são, ao mesmo as comunidades, mas também oportu-
“continua a obra da redenção”, con- tempo, institucionais e espirituais. Do nidades muito grandes.
tinua o “ofício sacerdotal de Cristo”, ponto de vista institucional, a recupe-
se institui uma experiência de comu- ração da centralidade da categoria de IHU On-Line – Para a vivência ce-
nhão, de louvor, de ação de graças, de “mistério pascal” recolocou no cen- lebrativa, qual o significado e o alcan-
bênção, que nela todos os batizados tro da experiência eclesial o dom da ce da Igreja ‘Povo de Deus’ e da Igreja
descobrem o “dom” de serem convi- graça recebido por todos, ao mesmo ‘Comunhão’?
dados e que toda a Igreja se desdobre tempo por clérigos e leigos. Ao redi- Andrea Grillo – A compreensão
marcada por esse ministério de anún- mensionamento das pretensões de da Igreja como “povo de Deus” e
cio do Evangelho: toda essa perspecti- uma societas perfecta, correspondeu como “comunhão” com o Pai median-
va de compreensão da liturgia parece a redescoberta da qualidade espiri- te o Filho no Espírito começou, lenta
ser capaz de renovar profundamente tual da vida laical, marcada também mas irreversivelmente, a modificar
não tanto a própria liturgia – que, con- por uma relação estrutural – batismal a perspectiva de toda celebração li-
tudo, tinha uma grande necessidade e eucarística – com o mistério pascal. túrgica, mudando profundamente o
disso –, mas sim a qualidade das re- Para favorecer esse desenvolvimento, modo de pensar e de experimentar
lações eclesiais, do estilo espiritual e no entanto, a Igreja apenas começou os dados mais basilares da celebra-
da vida testemunhal dos discípulos de a desenvolver novas formas de lingua- ção. Pense-se na tríade clássica com a
Cristo. gem e novas formas de relação. Aqui qual pensamos o sacramento: forma,
tem razão o historiador norte-ameri- matéria e ministro. Para a concepção
IHU On-Line – Dentre os objeti- cano O’Malley2: o Concílio foi acima clássica e também pós-tridentina,
vos relativos à liturgia (Sacrosanctum de tudo um “evento linguístico”. Ele havia sacramento válido quando o
Concilium), o Concílio propôs um modificou o modo de se expressar da ministro competente pronunciava
resgate de importantes princípios li- Igreja. E, contudo, como a linguagem a fórmula sobre a matéria. Agora,
túrgicos das primeiras comunidades não é só expressão, mas também, e tudo isso é muito parcial e unilate-
cristãs. Que princípios eram esses e sobretudo, experiência, ele modificou ral. A forma não é mais, sobretudo,
qual foi a importância de resgatá-los? a experiência da Igreja, contanto que fórmula, entendida como uma série
Andrea Grillo – Evidentemente, permaneçamos conscientes de poder limitada de palavras “sagradas”, mas
o Concílio, ao visar a restituir à litur- e ter que mudar de linguagem. é toda a sequência ritual. A matéria
gia toda a riqueza que a tradição havia não é mais um objeto quimicamente
experimentado nela, teve que pensar IHU On-Line – Qual a importân- definido, mas é um bem histórica e
grande não apenas segundo as lógicas cia da celebração comunitária, na simbolicamente determinado. O mi-
do segundo milênio, mas também se- perspectiva do Vaticano II? nistro não é um cargo singular, mas
gundo as do primeiro milênio. Por isso Andrea Grillo – O Concílio Vati- está articulado na relação complexa
ele falou uma linguagem muito mais cano II, retomando algumas intuições e rica entre presidência, ministérios
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bíblica e patrística do que sistemática; importantes elaboradas pelo Movi- e assembleia. Essa releitura, como
pensou mais em termos de experiên- mento Litúrgico ao longo dos séculos fica evidente até mesmo por essa
cia comunitária do que nos termos de XIX e XX, começou, com autoridade, breve referência, leva a uma expres-
“salvação da alma”; olhou positiva- a superar um “paradigma individua- são muito mais rica e articulada, que
mente para a riqueza das diferenças, lista” da relação com Cristo e com a determina – inevitavelmente, de ge-
em vez de negativamente para a alte- Igreja. Tal paradigma havia brotado do ração em geração – uma experiência
ração da verdade; escolheu a profecia impacto entre o modelo clássico e tra- litúrgica e eclesial diferente.
de “ventura” contra os profetas da dicional de vida cristã e o mundo mo-
desventura; fez prevalecer a redes- derno. Se o Concílio de Trento3 havia fundamentais na Igreja Católica. Foi
coberta do uso em lugar da denúncia convocado pelo Papa Paulo III para
do abuso. Desse ponto de vista, não assegurar a unidade da fé e a disciplina
2 Confira uma entrevista inédita com ele eclesiástica, no contexto da Reforma
há no Concílio nenhuma tendência publicada nesta edição. (Nota da IHU On- da Igreja Católica e a reação à divisão
“arqueológica”, mas sim um interesse Line) então vivida na Europa devido à
fundamental pelo enriquecimento de 3 Concílio de Trento: realizado de 1545 Reforma Protestante, razão pela qual
a 1563, foi o 19º concílio ecumênico. é denominado também de Concílio da
uma prática ritual que havia assumi- É considerado um dos três concílios Contra-Reforma. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 23


IHU On-Line – Numa análise povo, pode utilizar indiferentemente medo. Por medo, nos encastelamos
Tema de Capa
geral, como a Igreja pós-conciliar le- o rito ordinário ou o rito extraordi- em evidências que se tornaram não
vou a efeito as decisões do Concílio, nário, introduz-se sub-repticiamente evidentes nesse meio-tempo; por
particularmente ao que se refere à na Igreja ao mesmo tempo um prin- medo, nos consolamos com as pe-
liturgia? cípio de “anarquia do alto” – como quenas coisas de antigamente; por
Andrea Grillo – A “recepção” do chamou o grande vaticanista Zizola4 medo, não descontentamos ninguém
Concílio Vaticano II teve uma histó- – e se subverte o primado da “missa e acabamos descontentando a todos;
ria muito diferenciada, já na Europa com o povo”, trazendo novamente à por medo, assumimos mais facilmen-
e depois todo o restante dos conti- tona uma espécie de autonomia do te a atitude do julgamento em vez
nentes. Em geral, podemos consi- clero com relação à assembleia, o do da comunhão. Para remediar essa
derar que houve uma orientação que constituiria uma negação explí- arriscada situação de fechamento
de profunda convicção nas escolhas cita da reforma desejada pelo Vati- litúrgico e eclesial, devido essencial-
conciliares, que chegou até os últi- cano II. Nesse caso, poder-se-ia falar mente a um excesso de medo, pode
mos anos do papado de João Paulo de uma nova contestação dirigida ser útil começar a partir da docu-
II. Justamente nestes últimos anos ao Concílio, que minaria a própria mentação histórica: mostrando que a
(digamos, a partir do Jubileu do ano ideia da “necessidade” da Reforma Igreja chegou a identificar o seu pró-
2000), manifestaram-se alguns sinais Litúrgica, transformando-a em uma prio percurso de Reforma Litúrgica na
de menor convicção, sobretudo por espécie de “opcional” com relação base de uma crise ritual e sacramen-
parte da Cúria Romana, mas aqui e ao qual a tradição poderia tentar tal que ela experimentava já desde a
acolá, também na periferia. Além se imunizar completamente. Como primeira metade do século XIX. Mes-
disso, os últimos anos também vi- fica evidente, essa conclusão não mo um simples exercício da memória
ram manifestar um conflito de inter- estaria muito distante das posições como esse pode ser capaz de desligar
pretações bastante significativo que que os tradicionalistas sustentam há aqueles mecanismos de generaliza-
ainda não conseguiu pôr em questão 50 anos. Mas o acordo que eventu- ção e de falsificação que impedem de
os dados irreversíveis de uma “refor- almente se obteria constituiria, de captar a profecia conciliar pelo seu
ma” litúrgica que, em grande parte fato, uma negação do caminho per- lado justo e, ao contrário, tendem a
da Igreja, se tornou um fenômeno corrido comunitariamente nesses 50 confundir as causas com os efeitos,
capilar, irrefreável e fecundo, deter- anos. responsabilizando o Concílio Vatica-
minando uma mudança profunda no II por aquela crise que é ao me-
tanto das formas de vida como das IHU On-Line – Tendo presente o nos 100 anos mais velha do que ele,
experiências formativas dos cristãos atual contexto de Igreja e de mundo, esquecendo que os problemas litúr-
do terceiro milênio. ao celebrarmos os 50 anos de aber- gicos não começam com o Concílio,
tura do Concílio, o que é importan- mas, no mínimo, com o Concílio co-
IHU On-Line – Levando em con- te ser resgatado e que pode ajudar meçam a ser resolvidos.
ta as recentes decisões de Bento XVI, a própria Igreja a se abrir aos novos
dentre outras, em reintegrar os segui- desafios?
dores do bispo tradicionalista Marcel Andrea Grillo – No contexto ecle-
Lefebvre, em retomar ritos litúrgicos sial e civil contemporâneo, a retoma-
de tradição tridentina, como o senhor
analisa atual momento da Igreja?
da da “profecia conciliar” constitui um
desafio de muito valor para os cristãos
Leia mais...
Andrea Grillo – A resposta à de 50 anos depois. Profecia significa
pergunta anterior já se encaminhava acima de tudo “esperança”. E, como já >> Andrea Grillo já concedeu outra
para essa questão posterior. Como diziam os antigos, o contrário da espe-
entrevista à IHU On-Line. Confira:
fica evidente, esse desenvolvimen- rança é tanto o desespero como a pre-
to, motivado pela nobre intenção sunção. As tentações que hoje afligem • Por uma Ecclesia verdadeiramente
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de favorecer uma comunhão mais a Igreja mais facilmente – tanto na sua Universa. Edição 363 da revista IHU
ampla na Igreja, determina muitas cúpula como na sua base – é uma pe-
vezes um fenômeno diferente, quan- rigosa mistura desses dois “vícios”. De- On-Line, de 30-05-2011, disponível
do não oposto. Ou seja, não produz sesperar-se com a Igreja pós-conciliar em http://bit.ly/igwDN3
de fato mudanças significativas na e ter a presunção de encontrar no pré-
relação com o tradicionalismo, mas -Concílio as soluções já prontas para
concede renúncias no plano geral a nossa condição crítica é um pecado >> Ele também é autor dos Cadernos
em torno de princípios não dispo- que, hoje, está muito ao alcance das
níveis, introduzindo fatores de nova mãos, quase aconselhável! Teologia Pública número 56,
e generalizada dilaceração no corpo Por outro lado, o sentimento intitulado “Igreja Introvertida: Dossiê
universal da Igreja. Quero dar um mais perigoso da Igreja de hoje é o
exemplo. Se um documento de 2007 sobre o Motu Proprio”, publicado em
afirma, de modo geral, que todo pa- 2011 e disponível para download em
dre, sem necessidade de nenhuma 4 Sobre Giancarlo Zizola leia o seguinte
artigo publicado no sítio do IHU: http:// http://bit.ly/NBrEAJ
autorização, quando celebra sem bit.ly/QJx2BB (Nota da IHU On-Line)

24 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Tema de Capa
O Concílio Vaticano II e a ética
cristã na atualidade
Para José Roque Junges, o Concílio Vaticano II se caracterizou por um cunho pastoral
de compreensão sobre a presença da Igreja e dos cristãos católicos no mundo de
hoje. Este é o seu legado primordial

Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa

O
Concílio Vaticano II não foi um fenôme- faces com o mundo espiritual”, afirma José Ro-
no eclesial extemporâneo, mas respon- que Junges, em entrevista concedida por e-mail
deu a anseios internos da Igreja e re- à IHU On-Line. Segundo o teólogo, “se a Igreja
colheu os frutos teológicos e pastorais de uma quer ser ouvida em sua mensagem na socieda-
intensa movimentação intelectual e prática de de, ela não pode fazer uma bioética de sacris-
volta às origens do cristianismo e de abertura tia, mas participar dos fóruns públicos com uma
ao mundo moderno durante a primeira metade abertura de diálogo crítico, com a construção
do século XX. de argumentos contundentes dentro de uma
Na sociedade contemporânea, é exigida racionalidade lógica e comunicativa”.
“uma atitude de humildade e principalmente José Roque Junges possui graduação em Fi-
de testemunho por parte da Igreja no anúncio losofia pela Pontifícia Universidade Católica do
da mensagem cristã, numa cultura e sociedade Rio Grande do Sul, mestrado em Teologia pela
que já não é mais cristã em sua identidade, mas Pontificia Universidad Catolica de Chile e dou-
pós-cristã. Muitos ainda não se deram conta torado em Teologia Moral pela Pontificia Uni-
disso, criando ruídos e entraves para a pre- versità Gregoriana de Roma, Itália. Tem experi-
sença pública da fé cristã. A teologia pública é ência na área de Teologia, Filosofia e Ética, com
justamente aquela perspectiva de reflexão que ênfase em Bioética. Entre seus livros publicados
complementa, mas não se identifica com o en- citamos Bioética: perspectivas e desafios (São
foque eclesiástico, por não ter como objetivo Leopoldo: Unisinos, 1999); Ecologia e Criação:
precípuo animar os fiéis da comunidade ecle- resposta cristã à crise ambiental (São Paulo:
sial, mas tentar justificar e explicitar a fé cris- Loyola 2001); Ética ambiental (São Leopoldo:
tã no espaço público da sociedade para quem Unisinos, 2004); e Bioética: hermenêutica e ca-
professa uma cultura que já não é mais cristã, suística (São Paulo: Loyola, 2006).
mas que é aberta para o diálogo e para as inter- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor hermenêutica mais adequada da Sa- paradigmas teóricos. Esse movimento
www.ihu.unisinos.br
compreende o Concílio Vaticano II a grada Escritura; um Movimento Litúrgi- aconteceu também na teologia moral
partir do ponto de vista da teologia co que desembocou no novo modo de através da renovação trazida por teó-
moral? conceber e celebrar os sacramentos e logos da chamada Escola de Tübingen,
José Roque Junges – O Concílio especialmente a eucaristia; um Movi- que tentaram repensar a moral cristã
Vaticano II não foi um fenômeno ecle- mento Ecumênico de aproximação das a partir de uma antropologia persona-
sial extemporâneo, mas respondeu a outras expressões eclesiais da fé cristã, lista e de uma fundamentação bíblica
anseios internos da Igreja e recolheu superando antigos conflitos para uma que ponha o foco do agir do cristão nas
os frutos teológicos e pastorais de uma denominação de Igrejas irmãs; um mo- exigências do Reino de Deus e no se-
intensa movimentação intelectual e vimento de volta às fontes da fé cristã, guimento de Cristo, e não tanto na lei
prática de volta às origens do cristianis- principalmente pela redescoberta da natural. O teólogo moralista que soube
mo e de abertura ao mundo moderno patrística; e, por fim, um movimento sistematizar essa renovação da moral
durante a primeira metade do século de renovação teológica que superou o foi Bernhard Häring1 com o seu célebre
XX. Assim tivemos um Movimento Bí- imobilismo intelectual da Escolástica
blico que possibilitou uma nova com- moderna, tentando pensar o dado da 1 Bernhard Häring (1912-1998): teólogo
preensão da revelação divina e uma revelação a partir de novas lógicas e moralista alemão, pioneiro da renovação
eclesial. (Nota da IHU On-Line)

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livro A Lei de Cristo2 publicado em 1954 de agir da Igreja no mundo. O docu- IHU On-Line – Qual a concepção
Tema de Capa
no qual se formaram muitos bispos que mento expressa a concepção da Igreja de ser humano que emerge do Concí-
participaram do Concílio. Não é por sobre o ser humano (GS 12-22); sobre lio e quais as decorrências para a an-
nada que Häring foi um dos grandes o sentido da comunidade (GS 23-32) e tropologia e a ética cristã?
assessores teológicos do Concílio Va- da atividade humanas no mundo (GS José Roque Junges – Os núme-
ticano II. Essa nova compreensão está 33-39); e sobre a função da Igreja no ros 16 e 17 da Gaudium et Spes sobre
presente, por exemplo, no documento mundo de hoje (GS 40-45). Por fim, a consciência moral e a liberdade são
conciliar Optatam Totius que trata da são abordados alguns problemas ur- centrais para entender a concepção do
renovação da formação do clero, quan- gentes como a família e o matrimônio ser humano que emerge do concílio.
do afirma que “se consagre cuidado es- compreendidos a partir de uma visão Quanto à consciência moral, é afirma-
pecial ao aperfeiçoamento da Teologia renovada (GS 47-52), a promoção da do que o ser humano descobre uma lei
Moral cuja exposição científica mais cultura com critérios para que ela seja escrita por Deus no seu coração, e obe-
alimentada pela doutrina da Sagrada integral (53-62), a vida econômico- decer a ela é a sua própria dignidade.
Escritura evidencie a sublimidade da -social com princípios sobre o desen- Essa consciência é o núcleo secretíssi-
vocação dos fiéis em Cristo e sua obri- volvimento e a destinação dos bens mo e o sacrário do ser humano onde ele
gação de produzir frutos de caridade terrenos (GS 63-72), a comunidade está sozinho com Deus e onde ressoa
para a vida do mundo” (OT 16). É possí- política centrada numa compreensão sua voz. Pela consciência, descobre-se,
vel destacar três elementos importan- do bem comum (GS 73-76), a paz e a de modo admirável, aquela lei que se
tes dessa definição: inspirar-se mais na comunidade das nações com novas cumpre no amor de Deus e do próximo
Sagrada Escritura, evidenciar a vocação diretrizes sobre a ocorrência de guer- (GS 16). Essa visão revoluciona total-
dos fiéis em Cristo, trazer frutos de cari- ras (GS 77-90). O documento exprime mente a concepção sobre a consciên-
dade para o mundo, afirmações revolu- uma visão positiva do ser humano e cia moral presente na tradicional moral
cionárias para a renovação da teologia uma abertura e diálogo com o mundo, escolástica que a reduzia a uma pura
moral, pois não faziam parte do discur- superando uma perspectiva conde- instância de aplicação da norma, mas
so escolástico da moral. Esse novo espí- natória de anátemas que caracteriza- nunca como um lugar de discernimen-
rito da centralidade de Cristo, da visão va até esse momento a Igreja no seu to da vontade Deus. Portanto, a consci-
antropológica positiva do ser humano modo de encarar o mundo moderno. ência é o núcleo íntimo da pessoa que
e da abertura e diálogo com o mundo Por isso inicia dizendo que as alegrias deve ser respeitado onde ressoa a voz
perpassou todo o Concílio e aparece e as esperanças, as tristezas e as an- de Deus. Nela descobre-se por conatu-
em todos os seus documentos, trazen- gústias dos homens de hoje, sobretudo ralidade a única lei interpelante e impe-
do novos ares, renovação e jovialidade dos pobres e de todos os que sofrem, rativa que é o amor, da qual as outras
para a prática da fé cristã dos católicos. são também as alegrias e as esperan- normas são puras decorrências para
ças, as tristezas e as angústias dos dis- orientar no amor.
IHU On-Line – De forma mais cípulos de Cristo. A Igreja se deu conta
específica, qual foi relevância do do- de que para anunciar o Evangelho que A livre escolha pelo bem
cumento conciliar Gaudium et Spes e é uma Boa Nova, uma Boa Notícia, ela O número seguinte dá a verdadei-
como ele impulsionou o pensamento não podia ter uma atitude condenató- ra dimensão do que foi dito antes so-
ético na Igreja pós-conciliar? ria; se tem um anúncio de salvação a bre a consciência: O ser humano não
José Roque Junges – Um dos dar ela não deve condenar, mas saber pode, porém, voltar-se para o bem,
principais documentos conciliares acolher e convencer pelo testemunho. a não ser livremente (GS 17). O texto
em que aparece esse novo espírito João XXIII ao convocar o Concílio que- aponta para a grandeza da liberdade
é Gaudium et Spes sobre a Igreja no ria que fosse diferente dos anteriores, que tem a sua base na imagem de
mundo de hoje. Bernhard Häring teve que serviam mais para dar anátemas. Deus impressa no ser humano: A ver-
um papel fundamental na assessoria Por isso ele insistiu que o Vaticano II dadeira liberdade é um sinal eminente
e redação desse documento. Trata-se deveria ser mais de cunho pastoral da imagem de Deus no ser humano.
de uma constituição pastoral e não com uma abertura ao mundo como Pois Deus quis deixar ao ser humano
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dogmática como são, por exemplo, a esse se apresenta, sendo Gaudium et o poder de decidir, para que, assim,
constituição Lumen Gentium (Luz das Spes a máxima expressão dessa pers- procure espontaneamente o seu Cria-
nações) sobre a natureza da Igreja e pectiva. Esse novo modo de encarar o dor, a Ele adira livremente e chegue à
a constituição Dei Verbum (Palavra ser humano e de agir no mundo exi- perfeição plena e feliz (GS 17). Em con-
de Deus) sobre a revelação divina giu uma renovação da reflexão moral tinuação, o texto parece assumir uma
na história humana de salvação, que da Igreja, obrigando a repensar os tese típica da ética moderna kantiana,
abordam os próprios fundamentos parâmetros, às vezes estreitos, que isto é, a autonomia como fundamento
da Igreja. A Gaudium et Spes (Alegrias até esse momento regiam o agir dos da dignidade: Portanto, a dignidade
e esperanças) formula a visão e os cristãos católicos. Certamente não se do ser humano exige que possa agir
princípios que devem reger o modo soube ainda tirar as últimas consequ- de acordo com uma opção conscien-
ências para o comportamento moral, te e livre, isto é, movido e levado por
por exemplo, relativo à sexualidade, convicção pessoal, e não por força de
2 HÄRING, Bernhard C. S.S. R. A Lei de dessa nova concepção antropológica um impulso interno cego ou debaixo
Cristo: Teologia Moral para Sacerdotes e de mera coação externa (GS 17). Nes-
Leigos. Tomo I, Teologia Moral Geral. São
de cunho mais personalista.
Paulo: Herder, 1960. (Nota da IHU On- se texto, a dignidade humana significa,
Line) ao mesmo tempo, exigência e cumpri-

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mento, ou condição e vocação que se José Roque Junges – A Constitui- no, criatura nova, é chamado a viver o

Tema de Capa
realiza através da liberdade. Em outras ção pastoral Gaudium et Spes é o pri- amor salvífico experimentado em sua
palavras, a liberdade está intimamen- meiro documento oficial da Igreja com vida por obra e graça de Cristo. Daí a
te ligada à dignidade, sendo a indis- uma explicitação mais formal sobre importância do título de GS 22 “Cristo,
pensável condição de sua realização. a dignidade humana. Para a fé cristã, um Ser humano novo”, que termina o
Assim, a grandeza da liberdade tem todo ser humano é imagem de Deus e capítulo sobre dignidade com um fe-
um duplo conteúdo: como valor em si sua semelhança divina é o fundamento cho de ouro: Na realidade, o mistério
enquanto liberdade e, como dinâmica de sua dignidade. Isso está explicitado do ser humano só se torna verdadei-
de liberdade que visa à realização da quando a constituição afirma: As Sa- ramente claro no mistério do Verbo
dignidade humana. gradas Escrituras ensinam que o ser encarnado. Com efeito, Adão o primei-
Quem não conheceu a visão anti- humano criado ‘à imagem de Deus’ é ro ser humano era figura daquele que
ga pré-conciliar não consegue avaliar o capaz de conhecer e amar seu Criador, haveria de vir, isto é, de Cristo Senhor.
que essa reflexão sobre a consciência que o constituiu senhor de todas as coi- Novo Adão, na mesma revelação do
e a liberdade significa como mudança sas terrenas, para que, dominando-as mistério do Pai e de seu amor, Cristo
e virada copernicana na concepção para seu uso, glorifique a Deus... Deus manifesta plenamente o ser humano
antropológica da Igreja. Essa visão não criou o ser humano solitário. Desde ao próprio ser humano e lhe descobre
está na base de uma das declarações o início, ‘Deus os criou varão e mulher’ a sua altíssima vocação. Não é, por-
mais revolucionárias do concílio que (Gn 1,27). Esta união constituiu a pri- tanto, de se admirar que, em Cristo,
foi a Dignitatis Humanae3 sobre a li- meira forma de comunhão de pessoas. estas verdades encontrem sua fonte e
berdade religiosa. Significou aceitar O ser humano é, com efeito, por sua na- atinjam seu ápice (GS 22). Em Cristo, o
que toda pessoa deve ser respeitada tureza íntima, um ser social. Sem rela- ser humano é convidado a entrar em
em sua opção religiosa feita em sã ções com os outros, não pode nem viver comunhão de amor com Deus, sendo,
consciência, nunca se podendo impor nem desenvolver seus dotes (GS 12). pela graça, regenerado em sua digni-
a ninguém um credo religioso. Esse dade para viver como reconciliado.
posicionamento e a visão antropoló- Deus, o mundo e o outro
gica que o fundamenta foram o moti- A imagem divina no ser humano Glorificar a Deus no corpo:
vo, além de outras afirmações, da não é analisada sob três aspectos: capaci- exigência da própria dignidade
aceitação da totalidade do concílio dade de conhecer e amar a Deus, de A imagem de Deus no ser hu-
Vaticano II pelo movimento ultratra- ser senhor de todas as coisas e de viver mano e, portanto, sua vocação e sua
dicionalista do bispo Marcel Lefebvre4, em comunhão com os outros. Trata- dignidade realizam-se numa unidade
suspenso de suas funções episcopais -se de uma descrição do conteúdo do estrutural corpóreo-espiritual (GS 14).
por João Paulo II, mas cujo movimento conceito de imagem de acordo com A condição corporal e a vida interior
está em processo de reabilitação por os três referenciais da pessoa: Deus, o são as mediações para a realização da
Bento XVI, o que é preocupante por mundo e o outro. A imagem expressa vocação e a base para a efetivação da
suas possíveis consequências para a um projeto para o ser humano; não dignidade. O ser humano é imagem
recepção do concílio que ainda está um simples dado, mas um dinamis- de Deus e portador de dignidade, não
em curso ao interno da Igreja. mo de realização, que o abre para as somente no aspecto espiritual, mas
três relações. Nessas relações, efetiva igualmente no corporal como dimen-
IHU On-Line – Como o Concílio a sua vocação: entrar em comunhão sões de uma unidade pessoal. Não é,
entendeu a questão da dignidade da com Deus, com o outro e com o mun- portanto, lícito ao ser humano despre-
pessoa humana? do. A dignidade humana consiste nes- zar a vida corporal, mas, ao contrário,
sa efetivação. É importante salientar deve estimar o seu corpo, porque cria-
que na GS 12 o termo “dignidade” é do por Deus e destinado à ressurreição
3 Dignitatis humanæ (dignidade
humana): declaração sobre a liberdade
usado em estreita ligação com o ter- no último dia (GS 14). O corpo parti-
religiosa, aprovada pelo Concílio Vaticano mo “vocação”. O sentido preciso dessa cipa da redenção pela ressurreição e
II e promulgada por Paulo VI no dia 7 relação aparece no início da GS 19: A deve ser considerado como uma rea- www.ihu.unisinos.br
de dezembro de 1965. Esse documento, razão principal da dignidade humana lidade redimida, porque o Verbo assu-
aprovado na última sessão do Concílio,
versa sobre o direito da pessoa e das consiste na vocação do ser humano miu a carne humana. Tendo presente,
comunidades à liberdade social e civil para a comunhão com Deus. A imagem porém, a possibilidade da presença do
em matéria religiosa. Este documento faz se expressa nessa comunhão a que o pecado na realidade corporal, o texto
diversas referências às encíclicas Pacem
in terris e Mater et magistra, de João ser humano é chamado e que funda- lembra que o ser humano é convida-
XXIII. (Nota da IHU On-Line) menta a sua dignidade. A relação com do a glorificar a Deus no seu corpo,
4 Marcel Lefebvre: francês, foi arcebispo Deus, com o outro e com o mundo é como exigência da própria dignida-
na África e liderou, durante o Concílio
Vaticano II, juntamente com os bispos
o caminho de realização da vocação. de. Contudo, o ser humano supera a
brasileiros Geraldo Sigaud e Antonio de Nessa vocação, está a sua dignidade. condição corporal pela emergência da
Castro Mayer, o Coetus Internationalis A vocação, como termo de mediação interioridade: Com efeito, por sua vida
Patrum que reunia o grupo mais entre a imagem divina e a dignidade interior, o ser humano excede a univer-
conservador da Igreja. Marcel Lefebvre
nunca aceitou o Concílio Vaticano e humana, somente é compreensível na salidade das coisas. Ele penetra nesta
fundou a Fraternidade Pio X que rompeu dimensão cristológica, pois o conceito intimidade profunda, quando se volta
com a Igreja Católica. Tanto João Paulo de “imagem de Deus” é vazio e sem ao seu coração, onde o espera Deus,
II como Bento XVI negociam com a
Fraternidade o fim do cisma. (Nota da conteúdo sem a referência à reconci- que perscruta os corações, e onde ele
IHU On-Line) liação operada em Cristo. O ser huma-

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pessoalmente sob os olhares de Deus, mana e nos bens da natureza criados zado essencialmente por uma atitude
Tema de Capa
decide sua própria sorte (GS 14). por Deus. Essa imagem e semelhança de abertura colaborativa e dialogante,
O texto conciliar não apenas só adquirem conteúdo e expressão na embora possa e deva em muitos casos
trata da essência da dignidade, mas encarnação do Verbo, quando o Filho ser também questionadora e crítica,
descreve também sua condição histó- do Pai eterno se faz homem em Jesus mas nunca condenatória. Hoje faz par-
rica: o pecado (GS 13) e a morte (GS de Nazaré e se identifica com a huma- te da identidade cristã ser aberto ao
18). Essa preocupação pela situação nidade. Em Cristo como homem novo diálogo com as culturas e as religiões
histórica é compreensível quando se é que a dignidade humana recebe o numa atitude colaborativa em prol
entende a dignidade como vocação seu selo e sua garantia de realização, da justiça e da fraternidade entre os
ou como cumprimento, e não apenas porque na identificação com o Filho, povos e na construção de uma socie-
como exigência formal, como aconte- todo ser humano goza da liberdade dade democrática e emancipadora.
ce em Kant. O pecado e a morte são dos filhos de Deus, aceita os outros Esse legado do concílio continua ex-
um contínuo desafio para a efetiva- como irmãos na igualdade e participa tremamente atual, passados 50 anos,
ção da dignidade humana, regenera- da herança do Reino de Deus que são no sentido de saber se posicionar na
da em Cristo para a graça e a vida. A a base teológica dos direitos humanos. cultura contemporânea da segunda
reconciliação operada por Cristo no Jesus fazendo-se irmão e semelhante modernidade com atitude dialogante
batismo cria as condições, para que o a todo ser humano elevou a dignida- e postura inculturada e crítica.
ser humano possa dar uma resposta e de humana à condição de semelhança
vencer o pecado, como força desestru- divina. Cristo tornou-se humano para Autonomia e secularização
turadora, e a morte, como destruição que o ser humano possa tornar-se di- Outra característica do concílio
definitiva, que ferem e negam a reali- vino. Assim os direitos humanos são foi reconhecer a autonomia das rea-
zação da dignidade. Reconciliado com uma expressão dessa condição que é lidades sociais terrestres que não de-
Deus e agraciado pelo seu amor, o ser fruto da identificação do humano e do vem ser sacralizadas e depender da
humano já não peca nem morre, pois divino em Cristo. Assim o desrespeito autoridade da Igreja. Essa é a base do
venceu a potência do pecado e a mor- aos direitos humanos é uma ofensa di- assim chamado fenômeno da seculari-
te eterna pela força da graça de Cristo. reta a Deus, porque lesa a sua imagem zação, lamentado por tradicionalistas,
Nisso consiste a grandeza da dignida- no ser humano. mas que trouxe um grande bem e au-
de humana para o humanismo cristão. tonomia para o testemunho e a ação
IHU On-Line – Em sua opinião, da Igreja no mundo e na sociedade.
IHU On-Line – De maneira geral, depois de 50 anos da abertura, em Esse legado do concílio continua a ser
qual a relevância do Vaticano II para que medida o Concílio continua atu- muito importante. Ocupar um papel
a fundamentação teológica dos direi- al, levando em conta os novos desa- político de poder sempre foi desas-
tos humanos? fios implicados na chamada segunda troso para o Evangelho, pois nunca
José Roque Junges – Para W. modernidade? pode ser anunciado a partir de uma
Huber5, os direitos humanos se fun- José Roque Junges – Por vonta- posição de poder seja qual for e muito
damentam em três valores básicos de explícita de João XXIII, o Concílio menos imposto com argumentos de
que os constituem em sua doutrina: Vaticano II não teve um caráter apo- autoridade. Ele só pode ser acolhido
liberdade, igualdade e participação logético de condenações como os pelo convencimento interno e porque
que não devem ser separados, mas le- anteriores, mas se caracterizou es- é compreendido como uma boa no-
vados em consideração em sua condi- sencialmente por um cunho pastoral tícia de sentido e de salvação para a
cionalidade e correlação mútuas. Essa de compreensão sobre a presença da existência. Isso exige uma atitude de
afirmação institui uma regra herme- Igreja e dos cristãos católicos no mun- humildade e principalmente de teste-
nêutica para compreender os direitos do de hoje. Esse espírito e essa nova munho por parte da Igreja no anúncio
humanos, pois cada um deve ser ex- perspectiva são o legado primordial da mensagem cristã, numa cultura e
plicitado em relação aos três valores, do concílio, mais do que a pura letra sociedade que já não é mais cristã em
embora determinado direito esteja dos documentos. Essa é a verdadeira sua identidade, mas pós-cristã. Muitos
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mais próximo de um dos valores. Essa recepção do concílio, conceito teoló- ainda não se deram conta disso, crian-
doutrina dos valores inseparáveis da gico que expressa como documentos do ruídos e entraves para a presença
liberdade, da igualdade e da participa- oficiais são historicamente assimila- pública da fé cristã. A teologia pública
ção como base de interpretação para dos ao interno da Igreja. Todo concí- é justamente aquela perspectiva de
os direitos aparece também na Gau- lio lega determinado espírito e men- reflexão que complementa, mas não
dium et Spes ao explicitar o fundamen- talidade para a Igreja do seu tempo se identifica com o enfoque eclesiás-
to da dignidade humana na imagem e que está para além da letra dos do- tico, por não ter como objetivo pre-
semelhança divina que justifica o res- cumentos aprovados. O Concílio de cípuo animar os fiéis da comunidade
peito pela liberdade da consciência, a Trento no século XVI configurou uma eclesial, mas tentar justificar e expli-
consideração de todos seres humanos mentalidade muito própria na Igreja. citar a fé cristã no espaço público da
como iguais em dignidade e o direito à Nessa perspectiva, pode-se afirmar sociedade para quem professa uma
participação de todos na herança hu- com toda certeza que o Concílio Vati- cultura que já não é mais cristã, mas
cano II deixou como herança um novo que é aberta para o diálogo e para as
espírito e novo modo de posicionar-se interfaces com o mundo espiritual.
5 W. HUBER, Direitos humanos: um
conceito e sua história. Concilium n. 144. no mundo e na sociedade, caracteri-
1979, p. 7-17. (Nota do entrevistado)

28 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


IHU On-Line – A partir do atu- Roberto Esposito7 e outros que estão IHU On-Line – O senhor gostaria

Tema de Capa
al contexto de mundo, quais são as trazendo elementos importantes para de acrescentar algum aspecto que não
grandes questões éticas e morais que refletir, hoje, sobre as dinâmicas da foi abordado?
interpelam a Igreja por respostas? gestão da vida. Se a Igreja quer ser José Roque Junges – Alguns afir-
José Roque Junges – No atual contex- ouvida em sua mensagem na socie- mam, com certa razão, que o Concílio
to, a Igreja enfrenta dois grandes de- dade, ela não pode fazer uma bioética Vaticano II foi ingênuo em sua abertu-
safios éticos que a interpelam e para de sacristia, mas participar dos fóruns ra ao mundo moderno, faltando uma
os quais ela é convidada a contribuir públicos com uma abertura de diálo- visão mais crítica dos pressupostos da
com os tesouros simbólicos da fé cris- go crítico, com a construção de argu- modernidade, especialmente em seu
tã. O primeiro é a questão da vida mentos contundentes dentro de uma acento no indivíduo e no esvaziamento
para o qual ela está muito acordada racionalidade lógica e comunicativa. do senso comunitário, mas que só numa
e preocupada, mas é necessário com- época já pós-moderna foi possível dar-
preender o transfundo simbólico de Aquecimento global -se conta de suas consequências. Por
macroproblemas dos microproblemas Uma segunda questão ética que um lado, o surgimento da modernidade
morais como aborto, eutanásia, pro- aflige atualmente a humanidade e foi possibilitado pelos condicionamen-
criação assistida. A reflexão fica muitas para a qual a Igreja ainda está pouco tos criados pelo cristianismo, mas, por
vezes reduzida a essas microbatalhas desperta e poderia colaborar muito outro, as dinâmicas desenvolvidas pela
com seus argumentos às vezes limita- mais com iniciativas globais é o pro- mentalidade moderna podem esvaziar
dos, quando está em jogo uma batalha blema ambiental e, especificamente, uma experiência de fé que está baseada
muito mais ampla de gestão da vida, o aquecimento climático global (este unicamente nos reforços de um contex-
para a qual esses microproblemas ano tivemos, inclusive, o Encontro In- to cultural cristão. Ora, esse contexto
morais são apenas sintomas do que ternacional Rio+20). Assumindo essa está desaparecendo devido à pressão
se manifesta em todo mundo das bio- preocupação com ações concretas de cultural das dinâmicas da autonomia.
tecnologias que se configuram sempre colaboração global em favor de ini- Esse fato pode ser libertador para uma
mais como estruturas de biopoder ciativas em defesa do meio ambiente, evangelização que não está primaria-
que criam e disseminam dinâmicas ela ampliaria o seu posicionamento de mente baseada em práticas rituais, mas
biopolíticas. A mentalidade sobre o promoção da vida, ganharia em au- na construção de convicções interiores.
aborto e a eutanásia é movida por es- toridade moral para reivindicar uma Nesse sentido pode-se falar da neces-
sas dinâmicas e, por isso, elas devem atitude de proteção da vida em toda sidade de uma autonomia teologal que
ser o foco. É imperioso saber situar-se sua amplidão e de coerência ecológi- conjuga graça e liberdade na configura-
nesse contexto mais amplo de refle- ca diante de uma criação que geme e ção existencial da fé. Isso aponta para a
xão, sabendo, por exemplo, dialogar sofre dores de parto, esperando pela necessidade urgente de uma fé fundada
com autores como Giorgio Agamben6, libertação final escatológica. na experiência e vivência da graça e do
amor de Cristo. Como dizia o teólogo
Rahner, o cristão do século XXI ou será
6 Giorgio Agamben (1942): filósofo místico ou não será mais cristão.
italiano. É professor da Facolta di Design
e arti della IUAV (Veneza), onde ensina para download em http://migre.me/
Estética, e do College International uNme. A edição 81 da revista IHU On-
de Philosophie de Paris. Sua produção
centra-se nas relações entre filosofia,
Line, de 27-10-2003, tem como tema de
capa O Estado de exceção e a vida nua: Leia mais...
literatura, poesia e fundamentalmente, A lei política moderna, disponível em
política. Entre suas principais obras, http://migre.me/uNo5. Leia, ainda, as >> José Roque Junges já contribuiu
estão Homo Sacer: o poder soberano e a edições 344, de 21-09-2010, intitulada
vida nua I (Belo Horizonte: UFMG, 2002); Biopolítica, estado de exceção e vida outras vezes com a IHU On-Line.
A linguagem e a morte (Belo Horizonte: nua. Um debate, disponível em http:// Confira:
UFMG, 2005); Infância e história: migre.me/5WjQm e 343, de 13-09-2010, • “Se o aborto é um problema, a sua
destruição da experiência e origem da O (des) governo biopolítico da vida
história (Belo Horizonte: UFMG, 2006); humana, disponível em http://migre. solução não é o próprio aborto”. En- www.ihu.unisinos.br
Estado de exceção (São Paulo: Boitempo me/5WjSa, bem como o Cadernos IHU trevista publicada na edição núme-
Editorial, 2007); Estâncias – A palavra e número 10, intitulado “A sacralidade da
o fantasma na cultura ocidental (Belo vida na exceção soberana, a testemunha ro 219, de 14-05-2007, disponível
Horizonte: UFMG, 2007); e Profanações e sua linguagem. (Re) leituras biopolíticas em http://bit.ly/hQXETy
(São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em da obra de Giorgio Agamben”, de autoria
04-09-2007 o site do Instituto Humanitas de Cartor Bartolomé Ruiz, disponível em • Agenciamentos imunitários e biopo-
Unisinos – IHU publicou a entrevista http://bit.ly/T9Sxwy. (Nota da IHU On- líticos do direito à saúde. Entrevista
Estado de exceção e biopolítica segundo Line)
Giorgio Agamben, com o filósofo 7 Roberto Esposito: filósofo italiano, publicada na edição número 344, de
Jasson da Silva Martins, disponível para especialista em filosofia moral e política. 21-09-2010, disponível em http://
download em http://migre.me/uNk1. De sua vasta produção bibliográfica,
A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09- citamos Pensiero vivente. Origine e
bit.ly/Ln0ZX7
2007, publicou a entrevista Agamben attualità della filosofia italiana (2010), • Transformações recentes e prospec-
e Heidegger: o âmbito originário de Bios. Biopolitica e filosofia (2008), tivas de futuro para a ética teológi-
uma nova experiência, ética, política L’origine della politica. Hannah Arendt
e direito, com o filósofo Fabrício Carlos o Simone Weil? (1996). Leia também ca. Artigo publicado nos Cadernos
Zanin. Para conferir o material, acesse os artigos “Para onde vai a cultura Teologia Pública número 7, dispo-
http://migre.me/uNkY. Confira, também, europeia?”, disponível em http://bit.
a entrevista Compreender a atualidade ly/OyuzXf; e “Os valores dos símbolos”, nível para download em http://bit.
através de Agamben, realizada com o disponível em http://bit.ly/IH7P7D. ly/NlDmdr
filósofo Rossano Pecoraro, disponível (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 29


Tema de Capa
“Estamos em um período de
encastelamento”
Para Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo, todos os Concílios de grande
reviravolta, como o Vaticano II, levam anos para serem realmente digeridos.
“Hoje se acredita que a proposta de uma identidade forte, quase a ser
contraposta ao mundo e à cultura, é a escolha vencedora. Deixemos que a
história julgue”, concluem
Por Graziela Wolfart | Tradução de Moisés Sbardelotto

Q
ue o Concílio Vaticano II continua eco- isso implica. A Igreja Católica ainda parece ser
ando na vida da Igreja até hoje é algo o único baluarte em que um jovem ocidental
inquestionável. E um dos pontos de- pode continuar não pondo em discussão a
batidos aqui é a questão do espaço da mulher sua identidade masculina. Se pensarmos no
na Igreja. Esse é um dos assuntos debatidos que o padre deveria fazer na Igreja Católica,
na entrevistaa seguir, concedida por e-mail no modo em que esse papel é hoje apresenta-
pela irmã Benedetta Zorzi, monja beneditina do, não é de se admirar que esse papel atraia
e teóloga, e pelo padre e teólogo Armando pessoas com dificuldades identitárias”.
Matteo. Segundo eles, “há algumas décadas Nascida em Roma, em 1970, Maria Be-
estamos como que parados, acomodados: nedetta Zorzi, OSB vive há 20 anos em um
talvez não tivemos a coragem de continuar mosteiro em Fabriano, em Marche, na Itália.
trabalhando ao longo daquelas intuições e ir Estudou Teologia e fez doutorado em Filoso-
até o fim. Certamente, ainda não houve uma fia. Ela faz parte da Coordenação das Teólo-
passagem de bastão para as novas gerações, gas Italianas, da qual administra o site oficial
que agora já prospectam mentalidades e ho- (www.teologhe.org). Pertence à ordem de
rizontes muito diferentes daqueles de quem São Bento ou Ordem Beneditina (em latim
fez o pós-Concílio”. Sobre a divisão dos papéis Ordo Sancti Benedicti, sigla OSB). Trata-se
entre homens e mulheres na Igreja Católica, de uma ordem religiosa católica de clausura
Zorzi e Matteo são enfáticos: “diante de uma monástica que se baseia na observância dos
reflexão secular da mulher sobre a sua identi- preceitos destinados a regular a convivência
dade, sobre os seus papéis e sobre a mudança comunitária.
da sua autopercepção, não houve uma refle- Armando Matteo, teólogo e padre, é as-
www.ihu.unisinos.br

xão equivalente do homem sobre si mesmo, sistente nacional da Federação Universitária


sobre o seu papel, sobre quem ele deve ser Católica Italiana – FUCI. É autor de muitos
com respeito a essa mulher que mudou. Se, artigos e estudos sobre a pós-modernidade e
como diz o Magistério, a antropologia católica sobre a relação entre os jovens e a fé, alguns
é dual, então, se um polo muda, o outro tam- dos quais traduzidos no estrangeiro. Seu mais
bém deve mudar necessariamente. Cada vez recente livro intitula-se La fuga delle quaran-
mais temos homens jovens incapazes de fazer tenni. Il difficile rapporto delle donne con la
frente a uma relação com as jovens adultas de chiesa (Roma: Ed. Rubbettino, 2012) ((A fuga
hoje, capazes, afirmadas socialmente, livres, das mulheres de 40 anos. A difícil relação das
autodeterminadas, pessoal, física e projetu- mulheres com a Igreja).
almente... com todas as consequências que Confira a entrevista.

30 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Tema de Capa
IHU On-Line – Em que sentido as a água suja. Em certo ponto, portan- homem sobre si mesmo, sobre o seu
lacunas deixadas pelo Vaticano II con- to, sentiu-se a necessidade de parar, papel, sobre quem ele deve ser com
tribuem para o episódio da chamada talvez para refletir; mas muitos hoje, respeito a essa mulher que mudou.
fuga das “quarentonas” da fé?1 mais do que refletir juntos, parecem Se, como diz o Magistério, a antropo-
Maria Benedetta Zorzi e Arman- desesperadamente ocupados tentan- logia católica é dual, então, se um polo
do Matteo – Os liturgistas disseram do voltar ao “como se nada tivesse muda, o outro também deve mudar
que a Reforma Litúrgica foi necessária, acontecido”. Na realidade, o mundo necessariamente. Cada vez mais te-
mas não suficiente, porque a mudan- não para, e a Igreja, ao fazer isso, cor- mos homens jovens incapazes de fa-
ça dos ritos não levou à reforma da re o risco de perder o compromisso zer frente a uma relação com as jovens
própria estrutura da Igreja, da qual a com essa geração e com as posterio- adultas de hoje, capazes, afirmadas
liturgia é expressão. É hora, de fato, res. Também não pode ser silenciado socialmente, livres, autodetermina-
de passar para uma transformação “a o fato de que a maior e mais chocan- das, pessoal, física e projetualmente...
partir” dos ritos, isto é, a partir do que te revolução cultural do século XX – a com todas as consequências que isso
a sua reforma pôs em maior evidência: de 19682 – aconteceu com o Concílio implica. A Igreja Católica ainda parece
pense-se, particularmente, na centra- encerrado. Com relação às instâncias ser o único baluarte em que um jovem
lidade da palavra na vida dos fiéis, que ali vieram à luz (liberdade, singu- ocidental pode continuar não pondo
no sentido da participação de todos laridade, princípio de autenticidade e em discussão a sua identidade mascu-
na eucaristia, na assunção mais cons- de autodeterminação, sensibilidade lina. Se pensarmos no que o padre de-
ciente da categoria de povo de Deus profundamente democrática, corpo- veria fazer na Igreja Católica, no modo
à espera do Reino. Podemos encon- reidade, sexualidade, etc.), o cristia- em que esse papel é hoje apresenta-
trar isso em outros âmbitos eclesiais, nismo difundido custa muito a se dar do, não é de se admirar que esse papel
incluindo a vida religiosa. Tentamos conta da beleza de ser crente e viver atraia pessoas com dificuldades iden-
fazer mudanças que permaneceram hoje uma temporada muito fatigan- titárias. Também não devemos nos
em um primeiro nível ou talvez per- te, que encontra a sua demonstração admirar se o resultado desse conúbio
maneceram dentro do horizonte vis- mais eloquente exatamente na rela- emerja com consequências muitas ve-
lumbrado por aqueles que fizeram a ção cada vez mais difícil com as (jo- zes desagradáveis.
reforma no pós-Concílio. Porém, não vens) mulheres.
houve uma mudança propriamente IHU On-Line – Por que, apesar
dita de paradigma mental. Há algumas IHU On-Line – Quais as dificul- dos inúmeros textos eclesiais do Con-
décadas estamos como que parados, dades para se tentar construir uma cílio Vaticano II sobre a importância
acomodados: talvez não tivemos a Igreja “a duas vozes”, com homens das mulheres, ainda existe na Igreja
coragem de continuar trabalhando e mulheres participando da mesma uma forte tensão entre as declarações
ao longo daquelas intuições e ir até forma? de princípio e a prática em confiar a
o fim. Certamente, ainda não houve Maria Benedetta Zorzi e Arman- elas funções de responsabilidade?
uma passagem de bastão para as no- do Matteo – De um lado, certamente Maria Benedetta Zorzi e Arman-
vas gerações, que agora já prospec- há uma mentalidade segundo a qual do Matteo – Porque não se refletiu
tam mentalidades e horizontes muito o laicato e, portanto, obviamente, as o suficiente sobre o papel do padre,
diferentes daqueles de quem fez o mulheres – duas vezes leigas – são sobre as modalidades de gestão do
pós-Concílio. chamadas a participar plenamente da poder, das paróquias, porque não se
gestão da vida eclesial; de outro, as promove explicitamente e com força
IHU On-Line – Como entender a próprias mulheres não fazem o sufi- a formação teológica das mulheres,
distância entre os auspícios do Vatica- ciente para mudar essa mentalidade porque se conecta ainda muito estrei-
no II, com as suas aberturas ao mun- e muitas vezes, tendo introjetado va- tamente a liderança à ordenação mi-
do e à contribuição criativa das mu- lores femininos androcêntricos, são as nisterial. As aberturas da Igreja para www.ihu.unisinos.br
lheres, e uma cultura do poder ainda mais estrênuas defensoras de um sis- as mulheres de 50 anos atrás nos pa-
“machista” na Igreja hoje? tema que as penaliza. Outro elemento recem apenas tímidas hoje, mas eram
Maria Benedetta Zorzi e Arman- é a ignorância dos padres, sobretudo apropriadas para as mulheres e para o
do Matteo – O pós-Concílio teve que dos mais jovens, em nível histórico e mundo de 50 anos atrás. Hoje, depois
pagar preços que foram considerados teológico. Acrescente-se a isso a de- de um Magistério que falou de gênio
muito altos. Certamente, correu-se o sorientação identitária do homem jo- feminino, sim, mas tudo somado por
risco de jogar o bebê fora junto com vem ocidental. Diante de uma reflexão uma perspectiva marcada também ge-
secular da mulher sobre a sua identi- oculturalmente, seria preciso dar mais
1 Trata-se de um “progressivo afastamento dade, sobre os seus papéis e sobre a um passo para compreender a fundo
do catolicismo das novas gerações mudança da sua autopercepção, não as demandas do mundo das mulheres
femininas”, um “elemento de novidade houve uma reflexão equivalente do que está mudando rapidamente.
particularmente significativo e alarmante
em um país em que a transmissão da fé
sempre foi matrilinear”. O sítio do IHU 2 Sobre o tema, leia a IHU On-Line IHU On-Line – O que marca a re-
publicou, nas Notícias do Dia, amplo número 250, de 10-03-2008, intitulada lação das mulheres com a fé e com a
material sobre o tema. Saiba mais em Maio de 1968: 40 anos depois, disponível
http://bit.ly/PoJl6q (Nota da IHU On- em http://bit.ly/9vDKmb (Nota da IHU Igreja atualmente, em comparação
Line) On-Line) com o contexto social e religioso de

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 31


“Basta estudar
Tema de Capa 50 anos atrás, quando foi realizado o na Igreja Católica ainda não foi rece-
Concílio Vaticano II? bido e compreendido ou, melhor, às
Maria Benedetta Zorzi e Arman-
do Matteo – Ocorreram mudanças
a história para vezes parece ser culpavelmente mal
compreendido pela hierarquia. Talvez
verdadeiramente importantes tanto
na autopercepção das mulheres e do
constatar que a nem todas as irmãs norte-americanas
tenham problemas doutrinais, e nem
seu papel na sociedade, perante os
homens e perante os seus desejos,
Igreja sempre se todas são feministas radicais; por ou-
tro lado, é claro que os homens da
como no contexto cultural. Basta men-
cionar aqui um dado muito simples: encontrou em um Cúria não têm facilidade para agir
com destreza entre as várias teologias
há um número cada vez mais cres-
cente de mulheres jovens com alta contexto cultural feministas. Mas certamente a Igreja
Católica se encontra hoje com sérios
taxa de escolarização (na Itália segu-
ramente maior do que o dos seus co- com o qual soube problemas pastorais que as religiosas
bem identificaram. É justamente das
etâneos masculinos) e, portanto, com irmãs – como testemunha a sua glo-
expectativas, com respeito à sua for- dialogar” riosa história desde o século XIX – o
mação como crentes e ao exercício da carisma de compreender e de enfren-
fé, maiores do que no passado. Para tar as situações de maior mal-estar e
dizer de forma bem-humorada, não conceito que foi mediado pela cultura sofrimento presentes nos fatos huma-
podemos nos permitir certas homilias pagã. O Papa Bento XVI destacou que nos. Há um “estar ao lado” que vem
e liturgias improvisadas. a fidelidade à Tradição não é exercida antes de qualquer julgamento e que
nos conteúdos doutrinais como tais, nem por isso significa imediatamente
IHU On-Line – A senhora per- mas sim no caminho do sujeito único partilha do sentimento de vida com
cebe que continua ecoando o gesto que é a Igreja através da história. as pessoas que sofrem. Mas sem essa
do Concílio Vaticano II, de opção da compaixão, sem essa presença, toda
Igreja pelo caminho do diálogo com a IHU On-Line – Qual sua opinião verdade, todo princípio abandona o
sociedade contemporânea? sobre o processo de revisão doutri- tempo que encontra. Na presença das
Maria Benedetta Zorzi e Arman- nal publicado pela Congregação para irmãs, além disso, joga-se um jogo im-
do Matteo – Estamos em um período Doutrina da fé – CDF, intitulado “Ava- portante para o futuro da Igreja: o da
de encastelamento. Esperamos que liação Doutrinária da Conferência de oportunidade de oferecer uma con-
se trate de uma fase normal a ser lida Liderança das Mulheres Religiosas”, firmação verdadeiramente feminina
com os tempos de uma história muito nos Estados Unidos? (Leadershisp sobre o rosto público da comunidade
maior do que nós. Todos os Concílios Conference of Women Religious – eclesial. Esperamos, com ansiedade,
de grande reviravolta, como o de Ni- LCWR)?3 O que poderia fazer parte de pelos resultados dessa questão que
ceia, envolveram longuíssimos anos uma reforma no âmbito da Liderança temos certeza de que tem um porte
antes de serem realmente “digeri- da Conferência? muito maior do que parece: não é um
dos”. O mesmo vale para o Vaticano Maria Benedetta Zorzi e Arman- simples chamado à ordem doutrinal.
II. Hoje se acredita que a proposta do Matteo – Acompanhamos com Talvez seja mais fácil pensar que aqui
de uma identidade forte, quase a ser muita apreensão a questão, porque, dois polos se enfrentam: de um lado,
contraposta ao mundo e à cultura, é na Europa, deveremos de algum modo padres da cúria ocupados em escrever
a escolha vencedora. Deixemos que a sentir um contragolpe com relação ao as suas cartas a partir de escritórios
história julgue. que for acontecer nos EUA, mas tere- em Roma, muitas vezes não muito
mos menos capacidade de reação, ao versados em história (das mulheres) e
IHU On-Line – 50 anos depois da menos na Itália. A Europa tem uma não muito sensíveis às mudanças cul-
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realização do Concílio Vaticano II, o maior consciência das mudanças his- turais contemporâneas; e, de outro,
que, em sua opinião, não ficou bem tóricas de longo porte e, portanto, um exército de mulheres conscientes
resolvido? Quais as dificuldades de mais paciência, mas também mais len- de si mesmas, das mudanças rumo às
compreensão que as diferentes her- tidão. No entanto, não estamos no di- quais o mundo vai, e acima de tudo
menêuticas abertas pelo concílio co- reito de dar uma opinião, porque nos formadas naquela liberdade de cons-
locam para a caminhada da Igreja? escapam os detalhes desse longo pro- ciência evangélica (e pós-conciliar)
Maria Benedetta Zorzi e Arman- cesso, que não começou hoje e que, que as torna tão determinadas. Con-
do Matteo – Basta estudar a história da forma como nos foi apresentado fiamos que as coisas sejam mais arti-
para constatar que a Igreja sempre se pelos meios de comunicação, ultima- culadas do que essas polarizações fá-
encontrou em um contexto cultural mente parece ter sido instrumentali- ceis, porque já há homens e mulheres,
com o qual soube dialogar. A capa- zado para objetivos puramente políti- padres e religiosas, na Igreja Católica,
cidade de negociar os conceitos e as cos. O certo é que, a partir do que se que se encontram em sintonia e que
linguagens, mentalidades e demandas lê também na teologia, o feminismo têm o desejo de percorrer a estrada
no diálogo com a cultura foi a sua força juntos rumo a uma Igreja a duas vozes.
e determinou a sua sobrevivência às 3 Sobre o tema, leia mais em http://bit.
mudanças epocais. Até o logos era um ly/RP0BjQ (Nota da IHU On-Line)

32 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


As mulheres e a Igreja: “sinais

Tema de Capa
dos tempos”
Na visão de Margit Eckholt, o chamado aggiornamento do Concílio Vaticano II com os
temas do serviço ao Evangelho e a abertura frente ao moderno, justamente para as
mulheres, é o ponto de partida decisivo para o seu posicionamento na Igreja Católica
Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Regina Reinart

O
que a teóloga alemã Margit Eckholt tinua, o Concílio pode nos ensinar: “viver do
deseja atualmente é “um estudo pro- Espírito do ‘novo Pentecostes’, na profunda
fundo e diferenciado dos textos e dos ancoragem no movimento da encarnação do
impulsos seguintes ao Concílio Vaticano II, que Evangelho”.
contribuam para que as portas da Igreja per- Margit Eckholt é professora de Teologia Dog-
maneçam abertas a serviço do Evangelho e do mática e Fundamental na Universidade de Os-
ser humano”. Na entrevista que concedeu por nabrück, Alemanha. Estudou teologia católica,
e-mail à IHU On-Line ela argumenta que “em línguas românicas e filosofia na Universidade
uma sociedade mundial cada vez mais pola- de Tübingen. Ela estará na Unisinos no próximo
rizada e dividida, a Igreja é autêntica quando mês de outubro, participando como painelista
abre fronteiras, constrói pontes, oferece re- do Congresso Continental de Teologia, abordan-
conciliação, pratica hospitalidade, e quando do o tema “O Concílio Vaticano II e as mulhe-
ela permite a si mesma ser continuamente res”. Saiba mais em http://bit.ly/q7kwpT.
aberta pelo ‘estranho’”. Justamente isso, con- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Neste ano em Vaticano II, as mulheres foram se tor- do Concílio, tendo em conta os mo-
que celebramos o 50º aniversário nando mais e mais visíveis dentro da vimentos laicais oriundos da Ação
de abertura do Concílio Vaticano II, Igreja. Elas lutaram por novos lugares Católica?
como a senhora avalia esse importan- e espaços na instituição. Por um lado, Margit Eckholt – O Concílio Va-
te acontecimento da Igreja a partir da o aggiornamento do Concílio significa- ticano II não foi um concílio das mu-
ótica da mulher? va que a Igreja novamente deveria se lheres nem sobre mulheres, mas pela
Margit Eckholt – O Concílio Va- entender a partir de suas fontes, que primeira vez falou-se delas. Certamen-
ticano II é tido como um novo Pente- estivesse a serviço do Evangelho e da te isso se deu graças à visibilidade e
costes. Foi um “evento do Espírito”, transmissão da Palavra de Deus que dá presença delas no Concílio. Ainda na
especialmente da perspectiva das mu- vida; por outro lado, ele significou que fase de preparação, mulheres isola-
lheres. Devemos enfatizar isso junto a Igreja deve se posicionar de uma ma- das como a suíça Gertrud Heinzel-
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com João XXIII e os muitos intérpretes neira nova frente às questões do mun- mann, bem como associações e or-
do Concílio em relação a seu traço nos do moderno – a liberdade, os direitos ganizações, como as duas principais
tempos atuais de conflito da interpre- humanos, a democracia, o pluralismo. associações de mulheres católicas
tação do próprio evento. O Vaticano II No entanto, a questão da mulher na alemãs – a Associação Feminina Ca-
tem construído os pontos definidores Igreja e na sociedade está longe de tólica Alemã (Katholischer Deutscher
para o diálogo da Igreja com o mundo ser resolvida. Por isso este aggiorna- Frauenbund, KDFB) e a Comunidade
moderno, assim como tem posiciona- mento do Concílio com os dois temas Feminina Católica Alemã (Katholische
do a Igreja em um novo relacionamen- de referência mencionados, o serviço Frauengemeinschaft Deutschlands,
to com este. Ele tem articulado os si- ao Evangelho e a abertura frente ao KFD) – participaram da comissão de
nais dos tempos e, pela análise destes, mundo, justamente para mulheres, é preparação. Pela primeira vez num
a Igreja tem que determinar a sua for- o ponto de partida decisivo para o seu Concílio na era moderna participaram
ma social de uma nova maneira. Nesse posicionamento na Igreja Católica. mulheres como convidadas e audito-
sentido, a questão da mulher foi en- ras presentes. Paulo VI nominou no
tendida por João XXIII e pelo Concílio IHU On-Line – Qual foi a influ- dia 20 de setembro de 1964, para o
como um sinal dos tempos. Desde o ência das mulheres para o destino terceiro período das reuniões do Con-

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 33


cílio, oito religiosas e sete mulheres Constituição Pastoral sobre a Igreja no to descrevem verdadeiramente sob
Tema de Capa
presidentes de organizações católicas mundo de hoje. A maioria das mulhe- o pensamento de amor uma forma
– solteiras e viúvas – como audito- res assumiu tarefas de liderança nas parceira de lidar com o matrimônio. O
ras. No dia 25 de setembro de 1964, organizações da Ação Católica, em as- resultado dos textos conciliares para a
a francesa Marie Louise Monnet, irmã sociações católicas de mulheres e con- mulher, então, é a igualdade de direi-
do pensador e lutador francês pela gregações femininas; elas informaram tos com o homem no estado leigo, se
Europa, Jean Monnet1, e fundadora e intensivamente sobre os desenvolvi- queremos assim comentar”.
presidente do movimento internacio- mentos do Concílio nas suas terras de
nal para o apostolado em meios so- origem; as duas associações femininas Pouca percepção aos trabalhos
ciais independentes, participou como católicas alemãs mantiveram informes teológicos das mulheres
a primeira mulher em uma reunião regulares nas revistas das suas asso- Assustador é constatar quão
conciliar. Entre as religiosas participa- ciações sobre o Concílio. Mesmo que pouco percebidos foram os signi-
ram predominantemente superioras o verdadeiro impacto das mulheres no ficativos trabalhos teológicos que
e conselheiras gerais, como a Ir. Mary Vaticano II fosse baixo – neste sentido Elisabeth Goessmann, Elisabeth
Luke Tobin, a geral das Irmãs de Loreto certamente não foi um Concílio das Schuessler e com elas muitas outras
e presidente da Conferência das Insti- mulheres –, ele tem tido um grande mulheres, já antes e durante o perí-
tuições Religiosas dos Estados Unidos, significado para as católicas; elas mes- odo do Concílio, apresentaram. Nos
ou a irmã M. Juliana de Nosso Senhor mas fizeram dele nos seus muitos ca- documentos eclesiais e textos mais
Jesus Cristo, a superiora das Servido- minhos da sua recepção – no nível da recentes do Magistério – como a car-
ras Pobres e secretária geral da União pastoral, do trabalho da associação e ta de João Paulo II às mulheres (1995)
das Superioras da Alemanha. Durante da teologia – um “Concílio de mulhe- e a carta sobre a colaboração dos ho-
o terceiro período das reuniões se jun- res”, e podem contribuir assim, justa- mens e das mulheres na sociedade
taram mais três mulheres, entre elas mente hoje, pela releitura dos textos e na Igreja (2004) – continua sendo
Marie Vendrik, da Holanda, presidente conciliares. transmitida uma imagem tradicio-
da associação mundial católica de mu- nal da mulher. Além disso, falta uma
lheres jovens e meninas, e durante o IHU On-Line – Na constituição discussão diferenciada com os mais
quarto período de reuniões mais cinco conciliar Gaudium et Spes, o Concílio recentes desenvolvimentos nas ciên-
mulheres, entre elas uma religiosa da expressou apoio à luta das “mulheres cias sociais e humanas; “estudos de
Índia, uma segunda auditora alemã, que reivindicam igualdade de direitos gênero” científicos e qualificados não
a presidente da associação feminina com os homens onde ainda não a ob- estão sendo recebidos. Certamente
católica alemã, Dra. Gertrud Ehrle. tiveram”. Como a senhora interpreta se deve criticar a categoria de gêne-
Agora também uma mulher casada, essa mensagem? ro, quando ela – como em tentativas
a mexicana Luz-Marie Alvarez-Icaza, Margit Eckholt – A constituição individuais deconstrutivistas – leva
que junto com o seu esposo foi nomi- pastoral pertence aos textos mais a uma dissolução dos conceitos de
nada. Além disso, mais duas mulheres controversos durante e depois do sujeito e identidade; mas ela pode
latino-americanas foram convocadas Concílio. À sua missão da evangeliza- ser útil quando se trata de um ques-
como auditoras: a argentina Margarita ção, segundo Gaudium et Spes, pode tionamento crítico de atribuições aos
Moyano Llerena, e a uruguaia Gladys a Igreja apenas atender quando a papéis de gênero culturalmente de-
Parentelli. percebe com um olhar aos sinais dos finidos e associados com poder. Por
tempos. Durante o período conciliar isso o desafio mencionado no texto
Mulheres superativas no acon- e durante no tempo imediatamente Gaudium et Spes é importante ainda
tecimento do Concílio após o Concílio apareceram diversas hoje. Mostra-se claramente quando
Dos relatórios das mulheres se publicações na Alemanha em relação associações femininas católicas parti-
destaca que as auditoras foram trata- à imagem e posição da mulher na so- cipam no equal pay day e no processo
das como peritas e foram participan- ciedade e na Igreja. Nisso residiu uma atual de diálogo da Igreja Católica na
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tes superativas no acontecimento do revisão da antropologia teológica no Alemanha que coloca a “colaboração
Concílio. Elas se encontraram em gru- centro – saindo da tese da “não deri- de parceria de homem e mulher na
pos de trabalho, consultaram de ma- vação de ser-mulher do ser-homem” e Igreja” em primeiro lugar da pauta.
neira engajada com os bispos e parti- da “mesma imediatez de ser-humano
ciparam em subcomissões individuais, no homem como na mulher”, assim IHU On-Line – E a Igreja pós-
sobretudo nas consultas do decreto formulou a teóloga de Osnabrück, Eli- -concílio, que perspectivas se abriram
sobre o apostolado dos leigos e da sabeth Goessmann: “nenhuma discri- para as mulheres, em termos de efe-
minação da mulher frente ao homem, tiva participação na vida e missão da
seja na sua vida espiritual, seja nas Igreja? Depois de 50 anos da abertura
1 Jean Omer Marie Gabriel Monnet
(1888-1979): político francês, visto por novas funções descobertas no estado do Concílio, como a senhora compre-
muitos como o arquiteto da unidade leigo, seja no reconhecimento da sua ende o atual contexto de Igreja?
europeia (CEE). Nunca eleito para cargos Margit Eckholt – Na Igreja lo-
públicos, Monnet atuou nos bastidores de
eficácia na sociedade moderna e vida
governos europeus e americanos como pública. Os textos conciliares não fa- cal da Alemanha – como também na
um internacionalista pragmático bem lam em nenhum lugar de uma estrutu- maioria das outras Igrejas da Europa
relacionado. Foi o inspirador do Plano e dos Estados Unidos – as mulheres
Schuman (Nota da IHU On-Line).
ra hierárquica do matrimônio, portan-

34 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


podiam se estabelecer em novas pro- IHU On-Line – A senhora é signa- to de problemas” na Igreja do tempo

Tema de Capa
fissões como agentes comunitárias e tária do manifesto “Igreja 2011: uma presente, pelo qual as igrejas locais
pastorais, ou assumir responsabilida- virada necessária”2, que teve ampla de outros continentes também estão
des nas associações do catolicismo repercussão mundial. De modo geral, sendo atingidas.
leigo. A comunidade feminina cató- o que expressa o manifesto?
lica e a associação feminina católica Margit Eckholt – O manifesto IHU On-Line – Como o Vaticano II
alemã convocaram mulheres para “Igreja 2011: uma virada necessária” pode inspirar a Igreja, no contexto do
a posição de conselheira espiritual. foi publicado no dia 4 de fevereiro de século XXI, a buscar esse novo aggior-
Na Suíça, mulheres formadas como 2011. Um total de 144 professoras e namento indicado pelo manifesto?
teólogas podem tomar a frente na professores de teologia foram os pri- Margit Eckholt – A auditora con-
liderança das comunidades. Assim meiros assinantes e depois outros co- ciliar norte-americana, Ir. Mary Luke
também outras mulheres assumiram legas de países latino-americanos se Tobin, escreveu: “‘o Concílio foi uma
tarefas de liderança em agremiações juntaram a eles. O manifesto reagiu porta largamente aberta – larga de-
de nível diocesano. Elas podem atuar à crise na Igreja local da Alemanha, mais para ser fechada.’ Renovação
no tribunal eclesial e nos escritórios que, depois da descoberta dos abu- nunca para. Se é para continuar a dar
pastorais. Os estudos da teologia e sos em muitas dioceses e congrega- vida, deve seguir adiante”. Exatamen-
igualmente a carreira científica – o ções religiosas alemãs, chegou ao te isso é o que desejo para os nossos
doutorado catedrático – estão aber- seu cúmulo. Segundo o presidente tempos: um estudo profundo e dife-
tos às mulheres. Elas foram convo- da Conferência dos Bispos da Alema- renciado dos textos e dos impulsos
cadas às cadeiras teológicas dentro nha, o arcebispo Dr. Robert Zollitsch, seguintes ao Concílio Vaticano II, que
das faculdades, institutos e acade- em sua colocação inicial durante a contribuam para que as portas da
mias. Certamente, isso deveria ser assembleia geral dos bispos alemães Igreja permaneçam abertas a serviço
visto como algo positivo, precisa- (sob o título Futuro da Igreja – Igre- do Evangelho e do ser humano. Em
mente pensando no curto período ja para o futuro. Discurso por uma uma sociedade mundial cada vez mais
que resultou renovações. Portanto, Igreja peregrina, ouvinte e servidora), polarizada e dividida, a Igreja é autên-
com esta “história de sucesso” estão o manifesto é um apelo à vitalidade tica quando abre fronteiras, constrói
sendo associadas também muitas co- da Igreja, à sua “capacidade de con- pontes, oferece reconciliação, pratica
nhecidas – e ainda mais desconheci- versão, de uma nova virada e de uma hospitalidade, e quando ela permite
das – histórias de luta e sofrimento, nova evangelização”. A Igreja na sua a si mesma ser continuamente aber-
de rupturas e decepções profundas, e autenticidade como portadora da ta pelo “estranho”. Justamente isto
cada vez mais uma história de êxodo evangelização está sendo desafiada. o Concílio pode nos ensinar: viver
silencioso de, sobretudo, mulheres Teólogas e teólogos, como cientistas, do Espírito do novo Pentecostes, na
jovens saindo da Igreja. As imagens estão a serviço da transmissão da fé, profunda ancoragem no movimento
de mulheres fora – na sociedade e na de uma tradução contemporânea da da encarnação do Evangelho. A re-
cultura – e dentro da Igreja se distan- fala de Deus e da busca por formas novação da Igreja é um presente do
ciaram tanto que é muito difícil nos vivas de ser-Igreja, que levam os si- Espírito: quando caminhamos nos
países europeus motivá-las para uma nais dos tempos a sério. Assim, o caminhos do Bom Samaritano e nos
colaboração. A Igreja perdeu os seus manifesto olha para as comunidades convertemos novamente ao Deus da
trabalhadores durante o século XIX e eclesiais que são maiores, as formas Vida, o Deus-conosco, Jesus Cristo, e à
no início do século XX; no século XXI da participação e colaboração dos sa- terna e sanadora sabedoria de Deus,
ela corre o risco de perder as mulhe- cerdotes e leigos, dos homens e mu- quando pedimos novamente a bênção
res. Por isso a “questão das mulhe- lheres, a liberdade da consciência e a de Deus por nós, pelo mundo, pela
res” é hoje ainda, mais do que du- cultura da justiça, a busca das formas Igreja, então Deus, assim nós espera-
rante os tempos do Concílio, um dos de reconciliação frente à culpa e à mos, dá a força, que novos horizontes
mais decisivos sinais dos tempos. A falha, e então se inscreve nos ques- se abrem à Igreja, para que realmente
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Igreja deve abrir espaços justamente tionamentos do processo de diálogo possamos “ser Igreja em parceria”.
para mulheres jovens nos quais elas da Igreja alemã. Em uma das publi-
possam viver a sua fé segundo as cações dos iniciantes do manifesto,
suas próprias experiências. As formas estas questões referentes à teologia
vividas da fé, a linguagem da liturgia
e da confissão, devem reconquistar a
foram aprofundadas3. Certamente o
manifesto reagiu à situação concreta Leia mais...
fascinação de grande amor e amizade no contexto alemão eclesial, mas é
para as pessoas hoje a fim de que elas uma indicação de um “engarrafamen- >> Margit Eckholt já publicou um
deixem tudo e se coloquem no cami- artigo no sítio do IHU. Confira:
nho de Jesus de Nazaré. Mulheres em 2 Saiba mais sobre o documento em
• Ante o próximo Congresso de Teo-
papéis de liderança e coordenação na http://bit.ly/Ou3oNc (Nota da IHU On-
Line)
Igreja são uma prova de sua auten- 3 Cf. Marianne Heimbach-Steins/Gerhard
logia. Artigo publicado em 25-08-
ticidade para mulheres jovens, inde- Kruip/Saskia Wendel (Hg.), “Kirche 2011: 2012, disponível em http://bit.ly/
pendentemente se elas possam ima- ein notwendiger Aufbruch”. Argu­mente
zum Memorandum, Freiburg/Basel/Wien TaM6Vp
ginar um papel assim para si mesmas. 2011 (Nota da entrevistada).

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 35


Tema de Capa
Um acontecimento de graça e
de novidade
Para a teóloga colombiana Olga Consuelo Velez, o Concílio Vaticano II trouxe novos
ares à Igreja do continente, e, embora haja ventos de involução, o caminho percorrido
nesses 50 anos foi forte e será capaz de continuar dando frutos em
meio à perseguição que se possa viver hoje

Por Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Moisés Sbardelotto

“F
oi fruto do Concílio a teologia da além, no cumprimento da norma, no centra-
libertação, as comunidades ecle- lismo eclesial”. E constata: “não acredito que
siais de base e, especialmente, a o Vaticano tenha as respostas para este novo
consciência social que se despertou na Igreja momento, porque as mudanças que estamos
latino-americana, fazendo da opção prefe- vivendo são aceleradas e talvez nem alcance-
rencial pelos pobres uma opção central e um mos o seu ritmo, mas a partir desse dinamis-
compromisso verdadeiro. É normal que, em mo temos que enfrentar desafios tais como o
50 anos, esse horizonte tenha sofrido trans- pluralismo cultural e religioso, que tende a se
formações, e não podemos esperar que ele traduzir na pluralidade de teologias, de litur-
mantenha a vitalidade e o impulso dos iní- gias, de modelos eclesiais”.
cios”. A análise é da teóloga colombiana Olga Professora na Faculdade de Teologia da
Consuelo Velez, que concedeu a entrevista a Pontificia Universidad Javeriana – PUJ, da Co-
seguir por e-mail à IHU On-Line. Além disso, lômbia, Consuelo Velez é doutora em Teolo-
continua, “sabemos que, passadas as primei- gia pela Pontifícia Universidade Católica do
ras duas décadas, começou uma verdadeira Rio de Janeiro (PUC-Rio). É autora de, entre
perseguição contra a Igreja latino-americana outros, Reflexiones en torno al feminismo y
por alguns setores conservadores da Igreja. al género (Bogotá: Pontificia Universidad Ja-
Essa situação de confrontação desconcertou veriana, 2004); El método teológico. Funda-
alguns, desmotivou outros, encheu de medo mentos /especializaciones /enfoques (Bogotá:
e temor a outros setores eclesiais”. Para Con- Pontificia Universidad Javeriana, 2008). Ela
suelo Velez, é preciso “continuar denunciando estará na Unisinos no próximo mês de outu-
as ‘tentações’ que chegam de todas as partes bro participando como painelista do Congres-
a uma ‘involução’ eclesial que oferece segu- so Continental de Teologia, abordando o tema
rança, tranquilidade e, o que mais nos con- “Teologia e novos paradigmas”. Saiba mais
funde, atração de muitas pessoas, incluindo em http://bit.ly/q7kwpT.
os jovens, que parecem se sentir melhor com Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br

um tipo de ‘espiritualismo’ que os centra no

IHU On-Line – No ano em que o perseguição que se possa viver hoje. a vitalidade e o impulso dos inícios.
Concílio Vaticano II completa seu 50º Explico-me melhor: foi fruto do Con- Além disso, sabemos que, passadas
aniversário de abertura pelo Papa cílio a teologia da libertação, as co- as primeiras duas décadas, começou
João XXIII, qual sua leitura desse im- munidades eclesiais de base e, espe- uma verdadeira perseguição contra
portante acontecimento eclesial, a cialmente, a consciência social que se a Igreja latino-americana por alguns
partir da realidade latino-americana? despertou na Igreja latino-americana, setores conservadores. Essa situação
Olga Consuelo Velez – Para mim, fazendo da opção preferencial pe- de confrontação desconcertou alguns,
o Concílio trouxe novos ares à Igreja los pobres uma opção central e um desmotivou outros, encheu de medo e
do continente, e, embora haja ventos compromisso verdadeiro. É normal temor a outros setores eclesiais. Mas
de involução, o caminho percorrido que, em 50 anos, esse horizonte te- hoje continuamos constatando que o
nesses anos foi forte e será capaz de nha sofrido transformações, e não Espírito não deixa de estar presente
continuar dando frutos em meio à podemos esperar que ele mantenha nesse caminhar, e não só essa teolo-

36 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


gia não morreu (como alguns queriam
“Uma fé que não vê o essencial), e o que se viu foi esse

Tema de Capa
ou afirmam), mas também foi se en- “escândalo estrutural” do “enorme
riquecendo com teologias contextuais
que, inspiradas no horizonte liberta- se apropria de fosso entre ricos e pobres” e o imen-
so desafio que o evangelho tinha de
dor, foram se comprometendo com
realidades como a mulher, os povos forma científica da responder a esse grito. A opção pe-
los pobres foi uma resposta concreta
indígenas, os afrodescendentes, etc. e encarnada para essa realidade, e a
Por tudo isso, o Concílio, para mim, foi realidade nunca articulação da fé com a consciência so-
um acontecimento de graça e de no- cial traduziu a inspiração conciliar de
vidade que continua vivo e depende, poderá ser uma uma Igreja que deixa de olhar para si
em grande parte, da nossa fidelidade a mesma para olhar para a realidade e
esse espírito para que possa continuar fé encarnada que tentar responder a ela. A emergência
dando frutos. do rosto dos pobres como a urgência
leva a sério o seu de inculturar a fé, a liturgia, a teologia
IHU On-Line – Dentre os objeti- nessa realidade foi se perfilando nes-
vos do Concílio estava o diálogo da
Igreja com o mundo moderno. A par-
compromisso com sas conferências e, de alguma forma,
foi se tornando realidade.
tir da realidade latino-americana, o
que significava a modernidade?
o mundo” IHU On-Line – Em que medida a
Olga Consuelo Velez – Acredi- teologia da libertação repercutiu, no
to que a América Latina soube dar para essas preocupações. Não digo contexto latino-americano, as inova-
um giro contextual a esse desafio. O que tudo tenha sido perfeito, mas, ções promovidas pelo Concílio?
maior problema no continente não sem dúvida, o seu caminhar foi tão de- Olga Consuelo Velez – Se enten-
era a modernidade como tal, mas sim cidido e real que despertou inquieta- dermos a teologia como “uma refle-
a realidade de injustiça estrutural que ção no centro, e por isso a perseguição xão crítica à luz da fé da práxis históri-
se vive nessa realidade. E a América não se fez esperar. Mas nem tudo está ca dos cristãos”, estamos dizendo que,
Latina soube pôr em diálogo essa situ- superado. Precisamente uma realida- na América Latina, a teologia da liber-
ação com a vida eclesial e traduzir em de atual é a “volta ao centro”. Comu- tação foi capaz de articular a realidade
evangelho o que a dinâmica social de- nidades religiosas e o clero diocesano social com a fé e buscou responder a
mandava, dinâmica que não era alheia voltam a olhar para a Europa, para a ela de maneira criativa e comprome-
à modernidade com a sua fé posta no sua formação teológica, voltando ao tida. Bem conhecemos todo o agir das
progresso e na capacidade de resolver continente com modelos importados comunidades eclesiais de base com a
os problemas com as contribuições do do centro, trazendo sérios preconcei- sua renovação litúrgica, a sua centrali-
desenvolvimento científico. A América tos contra o caminhar latino-america- dade na palavra de Deus, o seu formar
Latina desenvolveu uma consciência no e campanhas evangelizadoras para comunidade e o seu compromisso so-
crítica sobre os modelos sociais e os recuperar a “espiritualidade” perdida cial. Não se negam as deficiências e as
questionou a partir de seus pilares. Ela por culpa da preocupação social. Tudo distorções que foram vividas nesses
tentou dar respostas e deixar que a fé isso é uma distorção da inculturação ambientes, mas nada disso nega o es-
se enriquecesse com as contribuições propiciada pelas Conferências Gerais pírito de Jesus que bateu asas e conti-
da sociologia para sair de uma fé in- do Episcopado na América Latina, nua batendo entre os pobres e o dina-
gênua. Tudo isso lhe provocou críticas mas revela que, precisamente porque mismo espiritual que despertaram não
de “sociologismo” e esquecimento da ocorreu um caminho para a descen- só na prática pastoral, mas também na
espiritualidade, críticas que sincera- tralização, hoje se quer frear e manter academia. De fato, a Faculdade de Te-
mente consideradas são injustificadas, o poder central. ologia da Universidad Javeriana – nos
porque uma fé que não se apropria tempos em que eu era estudante – foi
www.ihu.unisinos.br
de forma científica da realidade nun- IHU On-Line – De maneira geral, questionada por alguns personagens
ca poderá ser uma fé encarnada que como as conferências de Medellín e da hierarquia eclesial, e em certo sen-
leva a sério o seu compromisso com o Puebla traduziram o Vaticano II para tido esta perseguição não era infunda-
mundo. a realidade latino-americana? da: a teologia era comprometida, e as
Olga Consuelo Velez – A Cons- reflexões que fazíamos buscavam res-
IHU On-Line – Em que medida o tituição Pastoral Gaudium et Spes ponder à realidade social. Esse impul-
Vaticano II conseguiu superar o pro- pode ser considerada central no giro so se perdeu um pouco, mais do que
blema do eurocentrismo e responder dado pelo Vaticano II. Nesse sentido, no corpo professoral, em muitos estu-
aos desafios enfrentados pela Igre- o chamado que ela faz para olhar “as dantes que chegam para a faculdade
ja presente, sobretudo, nos países alegrias e as esperanças, as tristezas prevenidos contra essa teologia e/ou
empobrecidos? e as angústias” do mundo de hoje fez ignorando o caminhar latino-ameri-
Olga Consuelo Velez – Como dis- com que essas conferências olhassem cano, o que torna necessário buscar
se antes, a América Latina soube olhar para a realidade latino-americana e
para o que acontecia neste continente efetivamente a “vissem” (bem sabe-
e traduzir o novo momento eclesial mos que às vezes se olha, mas não se

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 37


meios para recuperar a “memória” e
“É urgente um
Tema de Capa
continuar impulsionando uma fé com-
prometida com a vida.
compromisso com Leia as
IHU On-Line – Após 50 anos de
abertura do Concílio, entre o recuo e um povo de Deus
o avanço, como a senhora analisa o
atual momento da Igreja, sobretudo que, na realidade,
tendo presente a realidade da Amé-
rica Latina? seja sujeito do
Olga Consuelo Velez – Acredito
que há motivos para continuar so- caminhar eclesial
nhando “outro mundo possível” e “ou-
tra Igreja possível” – como se cunhou e não mero entrevistas
nas edições do Fórum Social Mundial
–, porque o Espírito continua presen-
te, e a fidelidade ao evangelho não
destinatário”
pode ser derrotada. O Congresso Con-
tinental que será celebrado em outu- vivendo são aceleradas e talvez nem
bro deste ano1 é uma aposta na vita- alcancemos o seu ritmo, mas a partir
lidade de uma fé comprometida e em desse dinamismo temos que enfrentar
uma teologia encarnada que tenha no desafios tais como o pluralismo cultu-
centro da sua reflexão os mais pobres
deste tempo – com toda a pluralidade
ral e religioso, que tende a se traduzir
na pluralidade de teologias, de litur-
do dia no
de rostos e de situações das quais hoje gias, de modelos eclesiais, etc. Tam-
temos mais consciência. No entanto, bém é urgente um compromisso com
é preciso continuar denunciando as um povo de Deus que, na realidade,
“tentações” que chegam de todas as seja sujeito do caminhar eclesial e não
partes a uma “involução” eclesial que mero destinatário. Também é impor-
oferece segurança, tranquilidade e, tante continuar trabalhando pela in-
o que mais nos confunde, atração de clusão da mulher em todas as esferas
muitas pessoas, incluindo os jovens, eclesiais e por um papel mais decidido
que parecem se sentir melhor com um
tipo de “espiritualismo” que os centra
de renovar a Igreja à luz da teologia
atual, propiciando mais encontros do
sítio do IHU:
no além, no cumprimento da norma, que suspeitas. E o maior desafio é o
no centralismo eclesial. Para mim, de recuperar a capacidade profética
essas são tentações reais e fortes às que a Igreja deve ter, porque, antes de
quais é preciso estar muito atentos, uma estrutura de culto e religião, ela é
buscando revelá-las e não cair nelas. uma dinâmica de vida que busca tor-
nar presente o reinado de Deus nesta
IHU On-Line – Quais as perspec- história – reinado que é sempre graça
tivas e desafios que se apresentam e dom –, mas que precisa da nossa fi-
para a Igreja no contexto do século
XXI? Como responder a essa nova re-
delidade e compromisso para se tor-
nar efetivo. www.ihu.
alidade vigente à luz do Concílio Va-
www.ihu.unisinos.br

ticano II?
Olga Consuelo Velez – A Igreja
não pode renunciar ao retorno cons- Leia mais...
tante ao evangelho e a manter a vita-
lidade que o Espírito de Jesus, ao abrir >> Olga Consuelo Velez publicou um
novos horizontes, lhe comunica. Para
artigo nas Notícias do Dia do sítio do
mim, esse é o Espírito do Vaticano II,
e, na medida em que o mantenhamos,
estaremos em comunhão com ele.
IHU. Confira:

• Acompanhando nosso caminhar te-


unisinos.br
Não acredito que o Vaticano tenha
as respostas para este novo momen- ológico latino-americano. Artigo pu-
to, porque as mudanças que estamos
blicado em 21-08-2012, disponível

1 Saiba mais em http://bit.ly/q7kwpT em http://bit.ly/SOA3gq


(Nota da IHU On-Line)

38 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


O ecumenismo para a fulguração

Tema de Capa
da unidade entre os cristãos
José Oscar Beozzo faz uma retrospectiva do contexto histórico, social e eclesial, de
cinquenta anos atrás, que proporcionaram a convocação do Concílio Vaticano II por
João XXII
Por Cleusa Andreatta, Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa

O
s pontos nodais das discussões do lia da qual Deus é o Pai comum”.
Concílio Vaticano II em torno ao es- José Oscar Beozzo é padre, teólogo e co-
quema relativo à Igreja, na opinião de ordenador geral do Centro Ecumênico de
José Oscar Beozzo, foram quatro: “a definição Serviços à Evangelização e Educação Popular
da Igreja como povo de Deus, a afirmação de – Cesep. Tem mestrado em Sociologia da Re-
que esta se encontra a serviço do reino de ligião, pela Université Catholique de Louvain,
Deus, a doutrina da colegialidade episcopal e Bélgica, e doutorado em História Social, pela
de que junto com Pedro, o colégio episcopal Universidade de São Paulo – USP. Faz parte
detém o supremo poder sobre a Igreja. Final- do Centro de Estudos de História da Igreja
mente, o reconhecimento de que há uma úni- na América Latina – CEHILA/Brasil, filiado à
ca Igreja de Jesus Cristo que subsiste na Igreja Comissão de Estudos de História da Igreja na
católica, mas que se encontra presente nas América Latina e no Caribe – CEHILA. Também
outras Igrejas”. Na entrevista concedida por é sócio-fundador da Agência de Informação
e-mail à IHU On-Line Beozzo esclarece que Frei Tito para a América Latina – Adital. É au-
“define-se, portanto, o ecumenismo como tor de inúmeros livros, entre os quais A Igreja
tarefa imprescindível para que se restabeleça do Brasil (Petrópolis: Vozes, 1993) e A Igreja
e fulgure a unidade entre todos os cristãos, do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965
como semente da unidade entre todos os se- (São Paulo: Paulinas, 2005).
res humanos, que foram parte da única famí- Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que o senhor econômica, politica e militarmente, inspirou em parte a Gaudium et Spes
destaca como os principais aspectos Estados Unidos e União Soviética, na- (1965) e, de modo direto, a Populo-
do contexto histórico, social e ecle- ções líderes do campo capitalista e so- rum Progressio de Paulo VI, logo após
sial, de cinquenta anos atrás que pro- cialista. A Conferência de Bandung na o Concílio (1967). Bandung introduziu
porcionaram a convocação do Con- Indonésia (1955) reuniu países da Áfri- o conceito de Terceiro Mundo, situado
cílio Vaticano II por João XXII? Como ca e da Ásia, recém-descolonizados e entre o Primeiro mundo desenvolvi-
isso repercute na preparação e reali- desejosos de escapar do alinhamento do (Estados Unidos, Europa ocidental
zação do Concílio? automático com um dos blocos. Esses e Japão) e o Segundo Mundo (União
José Oscar Beozzo - João XXIII 29 países, 23 da Ásia e 06 da África se Soviética e países socialistas do leste
www.ihu.unisinos.br
assinalou três “sinais dos tempos” aos denominaram não alinhados e tenta- europeu e Ásia). A China participou de
quais o Concílio devia estar atento, ram criar sob a liderança de Nehru da Bandung e seguiu com um pé no mo-
respondendo a eles positivamente: India, de Sukarno da Indonésia e de vimento dos não-alinhados e outro no
–– o de dezenas de povos que acediam Nasser do Egito, um espaço de mano- campo socialista liderado pela URSS.
na África e Ásia à sua independên- bra mais autônomo, extraindo, quan- Os anos do Concílio estiveram in-
cia política, alguns deles depois de do possível, vantagens dos dois lados seridos no contexto das duas décadas
séculos do colonialismo europeu; em confronto. As propostas da confe- de espetaculares avanços técnicos e
–– o da ascensão das classes trabalha- rência levaram à criação do movimen- científicos e da acentuada prosperida-
doras como atores sociais e políti- to dos países não-alinhados (1961). Ao de econômica, que se seguiram à gran-
cos nas sociedades industrializadas; conflito entre ocidente e oriente, Ban- de depressão de 1929 e às ingentes
–– o da emancipação das mulheres dung acrescentou a percepção de um destruições de vidas e bens materiais
que faziam seu ingresso no traba- conflito de interesses e de visões entre da segunda guerra mundial (1939-
lho profissional e na vida pública. o norte e o sul do mundo, entre paí- 1945). Havia um clima de otimismo,
A guerra fria criou um mundo ses desenvolvidos e países subdesen- incapaz, porém, de ocultar que a frágil
bipolar, em que opunham ideológica, volvidos. A problemática ali delineada paz entre as superpotências repousa-

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 39


va sobre o medo e no assim chamado legou-nos a encíclica Mistici Corporis ção para oferecer abrigo e proteção
Tema de Capa
“equilíbrio do terror”, em que uma (1943), que ultrapassou a visão me- nos conventos e mesmo no Vaticano
ameaçava a outra com o holocausto ramente jurídica da Igreja; a Mediator a milhares de judeus perseguidos na
nuclear. Suas rivalidades foram trans- Dei (1947), que estimulou o movi- Itália e o ativo papel de núncios e de-
feridas para a periferia do mundo, mento litúrgico. Restabeleceu a Vigí- legados apostólicos, como Roncalli na
onde intermináveis e sanguinolentos lia Pascal (1951) e implantou a refor- Turquia, responsável pelo salvamento
conflitos por elas financiados e arma- ma litúrgica da Semana Santa (1954). de dezenas de milhares de crianças
dos opunham os dois sistemas nas Deu-nos a encíclica Divino Afflante judias retiradas dos países ocupados
guerras da Indochina (1946-1954), Co- Spiritu (1943), a carta magna dos es- pelos nazistas no leste europeu e en-
réia (1950-1953), Vietnã (1959-1975) tudos bíblicos no campo católico; es- caminhadas para o então Protetorado
e que se estendeu ao Laos, Camboja, timulou a Ação Católica, inclusive a britânico da Palestina.
no conflito árabe-israelense (1948 em especializada que floresceu entre os
diante) e do canal de Suez (1956), na jovens com a JOC (Juventude Operária IHU On-Line - Dada a situação
guerra da Argélia (1954-1962), nas Católica), JAC (Agrária), JEC (Estudan- eclesial naquele contexto histórico,
muitas insurreições pela independên- til), JUC (Universitária); convocou o 1º quais os principais desafios para por
cia dos países africanos e asiáticos ou Congresso Mundial do Apostolado dos em prática, no Concílio, o desejo de
na revolução cubana (1956-1959). Leigos (1951) e, ao término do XXXIV João XXIII de um aggiornamento
João XXIII, perante o aprofunda- Congresso Eucarístico Internacional eclesial e de uma abertura pastoral
mento das desigualdades e desiquilí- do Rio de Janeiro (1955), a primei- ao mundo contemporâneo?
brios entre o norte e o sul do mundo, ra Conferência geral do Episcopado José Oscar Beozzo - Havia desa-
e sensível ao clamor desses povos, Latino-americano da qual nasceu o fios de ordem interna e externa. Inter-
apontava como tarefa da Igreja às vés- Conselho Episcopal Latino-americano, namente, um longo percurso histórico
peras do Concílio: o CELAM (1955). Em 1957, fez o apelo havia levado a uma crescente centrali-
“Em face dos países subdesenvol- para os países da Europa e dos Esta- zação eclesiástica. Perdeu-se na Igreja
vidos, a Igreja apresenta-se – tal qual dos Unidos enviassem como missioná- latina, ao consumar-se a ruptura entre
é e quer ser – como a Igreja de todos e rios não só religiosos e religiosas, mas o oriente e ocidente cristãos (1054), o
particularmente a Igreja dos pobres”1. também padres diocesanos, às jovens contrapeso da tradição oriental de ca-
igrejas da África e América Latina. ráter mais sinodal e não monárquico.
Um trabalho missionário comum Por outro lado, Pio XII reprimiu a As reformas de Gregório VII
No campo religioso cristão, o Nouvelle Théologie (Encíclica Humani (1073-1084) desiquilibraram em favor
evento mais significativo foi a conflu- Generis, 1950), colocando no ostracis- dos clérigos e em detrimento dos lei-
ência de várias iniciativas em favor mo teólogos do porte de Yves Congar, gos a balança do poder na Igreja.
de um trabalho missionário comum Henri de Lubac ou pensadores reco- A contrarreforma católica no
(Conferência Missionária de Edinbur- nhecidos nos meios científicos, como Concílio de Trento (1545-1563) enrije-
gh – 1910); de um testemunho cristão Teilhard de Chardin. Proibiu igualmen- ceu a doutrina tanto do lado católico
vivo nos ambientes universitários se- te o movimento dos padres operários, quanto do protestante. Empobreceu
cularizados, do empenho em favor da deixando um grande trauma na Igreja de certo modo ambas as tradições. As
paz, do combate à fome, às doenças da França. Seus esforços pela paz fo- afirmações centrais da reforma (só a
e ao analfabetismo (Movimento Vida ram dificultados de um lado pela viru- escritura, só a graça, só a fé, só o Cris-
e Ação) e da superação das diferenças lenta perseguição religiosa nos países to e glória somente a Deus), todas elas
doutrinais e práticas (Movimento Fé comunistas e, de outro, pelo alinha- justas, salvo em sua ênfase exclusivis-
e Constituição), que desembocaram mento quase automático da Santa Sé ta, colocavam em cheque o papel da
na criação do Conselho Mundial de a um dos lados da guerra fria, o campo tradição, de outra autoridade que não
Igrejas em 1948, em Amsterdam, na ocidental. Ao não substituir o secretá- fosse a das Escrituras, do papel das
Holanda. Convidada, a Igreja Católica rio de estado, Cardeal Luigi Maglioni à obras como concretização na ordem
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deixou de participar ao mesmo tempo sua morte (1944); ao perder seu auxi- prática da fé e da graça, do papel da
em que o Santo Ofício emitia um Mo- liar mais direto, Mons. Giovanni Bap- comunidade eclesial de ser sinal na
nitum (1948), proibindo os católicos tista Montini, substituto da Secretaria palavra e nos sacramentos da presen-
de tomarem parte em iniciativas ecu- de Estado, nomeado arcebispo de Mi- ça viva do Cristo.
mênicas e contrastando com o convi- lão (1954), ao não criar novos carde- No plano eclesial, o Concílio Va-
te do episcopado holandês para que ais desde então e ao não substituir os ticano I havia levado a um exacerba-
todas as paróquias católicas orassem postos vacantes à frente dos dicasté- mento da autoridade pontifícia em
pelo êxito da Assembleia ecumênica rios romanos, os últimos anos de seu detrimento daquela própria do colé-
de Amsterdam. pontificado foram marcados por es- gio dos bispos e de cada pastor em sua
Pio XII foi um Papa que abriu o tagnação, intrigas e desânimo. A partir diocese; do centralismo romano em
diálogo com as ciências modernas; de 1961, com a peça de teatro, o Vigá- prejuízo da legítima autonomia das
rio, lançou-se uma sombra sobre sua igrejas particulares; a uma exaltação
1 JOÃO XXIII, Nuntius Radiophonicus (11 figura pelo alegado silêncio durante a da Igreja latina em desfavor das Igrejas
sept. 1962). ADP II/1, 348-354. Tradução II Guerra Mundial, frente ao Holocaus- católicas orientais, submetidas a cons-
portuguesa: KLOP II, 299-305, p. 301.
(Nota do entrevistado)
to, em que pesem sua decidida atua- tante pressão para se “latinizarem”.

40 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Na ordem externa, a Igreja esta período entre as duas guerras mun- A lacuna nesta visão e a percep-

Tema de Capa
confrontada com a modernidade. Re- diais, e ainda mais depois da segunda ção de que a modernidade e o sécu-
tomo as palavras do atual Papa, teó- guerra mundial, homens de Estado ca- lo das luzes na Europa produziram
logo no concilio e que assim descreve tólicos demonstraram que pode existir em outras partes do mundo um im-
esta problemática: um Estado laico moderno, que porém placável colonialismo que dizimou e
“No grande debate sobre o ho- não é neutro em relação aos valores, submeteu politicamente e explorou
mem, que distingue o tempo moder- mas vive haurindo das grandes fon- economicamente povos em todos os
no, o Concílio (segundo Paulo VI) devia tes éticas abertas pelo cristianismo. quadrantes do mundo, das Américas
dedicar-se de modo particular ao tema A doutrina social católica, pouco a à Ásia, passando pela África de onde
da antropologia. Devia interrogar-se pouco desenvolveu-se e tornou-se foram tirados e transportados para a
sobre a relação entre a Igreja e a sua um modelo importante entre o libe- América cerca de 12 milhões de escra-
fé, de um lado, e o homem e o mundo ralismo radical e a teoria marxista do vos. Esta face obscura da modernida-
de hoje, de outro (Discurso de encer- Estado. As ciências naturais, que sem de emergiu de maneira fragmentada
ramento do Concilio, pp. 1066ss.). A reserva professaram um método pró- e menor no Concilio, embora fosse
questão torna-se ainda mais clara, se prio no qual Deus não tinha acesso, resgatada no Grupo Igreja dos Pobres
em vez do termo genérico de “mundo percebiam cada vez mais claramente que conclui o Concílio com o célebre
de hoje” escolhêssemos outro mais que este método não compreendia a Pacto das Catacumbas. Parte da an-
exacto: o Concílio devia determinar de totalidade da realidade e abriam por- gústia e clamor desses povos aparece
modo novo a relação entre a Igreja e tanto novamente as portas a Deus, em alguns pontos da Gaudium et Spes
a era moderna. Esta relação tinha tido sabendo que a realidade é maior do e encontra-se no entro da encíclica Po-
um início muito problemático com o que o método naturalista e daquilo pulorum Progressio (1967) e nos docu-
processo a Galileu. Rompeu-se de- que ele possa abranger. Poder-se-ia mentos de Medellín (1968).
pois totalmente, quando Kant definiu dizer que se formaram três círculos de
a “religião no contexto da pura razão” perguntas, que agora no momento do IHU On-Line - Sabe-se que nas
e quando, na fase radical da revolução Vaticano II, esperavam uma resposta. 10 Comissões preparatórias dos tra-
francesa, se difundiu uma imagem do Antes de mais, era preciso definir de balhos do Concílio, mesmo havendo
Estado e do homem que para a Igreja modo novo a relação entre fé e ci-
presença internacional, a maioria dos
e para a fé praticamente não desejava ências modernas; isto dizia respeito,
participantes era europeia. Como isso
conceder qualquer espaço. O conflito finalmente, não apenas às ciências
incidiu no desenvolvimento do Concí-
da fé da Igreja com o liberalismo ra- naturais mas também à ciência histó-
lio e para a presença e atuação dos
dical e também com as ciências natu- rica pois numa determinada escola,
bispos provenientes do Terceiro Mun-
rais que pretendiam envolver com os o método histórico-crítico reclamava
do, em ascensão naquele momento?
seus conhecimentos toda a realidade para si a última palavra na interpreta-
José Oscar Beozzo - O grande feito
até aos seus extremos, propondo-se ção da Bíblia e, pretendendo a plena
de João XXIII foi determinar, ao contrá-
insistentemente de tornar supérflua exclusividade para a sua compreensão
rio do que sucedeu no Vaticano I, uma
a “hipótese de Deus”, tinha provoca- das Sagradas Escrituras, opunha-se
em pontos importantes da interpreta- ampla consulta para se estabelecer a
do no Século XIX, sob Pio IX, por parte
ção que a fé da Igreja tinha elaborado. agenda do Concílio. Envolveu a escuta
da Igreja ásperas e radicais condena-
Em segundo lugar, era preciso definir de todos os bispos, prelados ou prefei-
ções de tal espírito da era moderna.
de modo novo a relação entre a Igreja tos apostólicos com responsabilidade
Portanto, aparentemente não havia
mais qualquer espaço aberto para e o Estado moderno, que abria espaço sobre alguma circunscrição eclesiásti-
uma compreensão positiva e frutu- aos cidadãos de várias religiões e ide- ca; dos superiores maiores das ordens
osa, e eram igualmente drásticas as ologias, comportando-se em relação a e congregações religiosas mais impor-
rejeições por parte daqueles que se estas religiões de modo imparcial e as- tante; das faculdades de teologia e uni-
sentiam os representantes da era mo- sumindo simplesmente a responsabili- versidades católicas e de todos os orga-
dade por uma convivência ordenada e nismos da Cúria Romana. É sobre este
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derna. Enquanto isso, porém, também
a era moderna conheceu desdobra- tolerante entre os cidadãos e pela sua vastíssimo material, uma vez analisado
mentos. Percebia-se que a revolução liberdade de exercer a própria religião. e sistematizado, que se debruçaram as
americana tinha oferecido um modelo A isto, em terceiro lugar, estava ligado dez comissões nomeadas por João XXIII
de Estado moderno diferente daque- de modo geral o problema da tolerân- no dia 05 de junho de 1960:
le teorizado pelas tendências radicais cia religiosa uma questão que exigia • Comissão dos Bispos e governo das
originadas na segunda fase da revo- uma nova definição sobre a relação dioceses;
lução francesa. As ciências naturais entre a fé cristã e as religiões do mun- • Comissão para a disciplina do clero
começavam, de modo sempre mais do. Em particular, diante dos recentes e do povo cristão;
claro, a refletir sobre o próprio limite, crimes do regime nacional-socialista • Comissão dos Religiosos;
imposto pelo seu próprio método que, e, em geral, num olhar retrospectivo a
mesmo realizando coisas grandiosas, uma longa e difícil história, era preciso
todavia não era capaz de compreen- avaliar e definir de modo novo a rela-
der a globalidade da realidade. Assim ção entre a Igreja e a fé de Israel”2. AOS CARDEAIS, ARCEBISPOS E PRELADOS
ambas as partes começavam progres- DA CÚRIA ROMANA NA APRESENTAÇÃO DOS
VOTOS DE NATAL, Roma, 22 de Dezembro
sivamente a abrir-se uma à outra. No 2 Bento XVI, DISCURSO DO PAPA BENTO XVI de 2005, pp. 2 (Nota do entrevistado)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 41


• Comissão da disciplina dos foi nomeado sequer para o Apostola-
Tema de Capa REGIÃO NÚMEROS PERCENTUAL
Sacramentos; Europa 636 75,09% do dos Leigos, a comissão criada para
• Comissão da Sagrada Liturgia; Estados Unidos 52 + 22 = 74 8,77% discutir seu apostolado.6 Nem é pre-
• Comissão dos Estudos e dos e Canadá ciso dizer, nenhuma mulher, religiosa
Seminários; América Latina 52 6,13% ou leiga, prestou serviços em qualquer
• Comissão da Igreja Oriental; Ásia 52 6,13% uma das Comissões Preparatórias.7
• Comissão das Missões; África 21 2,48% Neste grande conjunto de 846
• Comissão do Apostolado dos leigos, Oceania 11 1,29% pessoas havia apenas dez brasileiros:
para todas as questões que dizem TOTAL 847 100,00% 4/466 como membros (0,85%) e 6/380
respeito à ação católica, religiosa e como consultores (1,57%). No conjun-
social.3 O quadro não deixa dúvida quan- to geral, a participação brasileira al-
to ao peso excepcional dos europeus cança pouco mais do que 1% (1,18%).
As comissões tinham à frente o no processo de preparação. Ocupam Damos abaixo a lista dos membros
Cardeal Prefeito do respectivo dicas- três quartos das posições, ficando os brasileiros:
tério romano encarregado ordinaria- 25% restantes para os demais conti-
mente daquela temática. Com isto, • Dom Jaime de Barros Câmara, car-
nentes. Dentro da Europa, a Cidade do
conseguiu o Papa que a Cúria se en- deal arcebispo do Rio de Janeiro, RJ,
Vaticano (319) e a Itália (72) somados
volvesse com a preparação conciliar. na Comissão Central e, dentro desta,
(391) perfazem 61% dos integrantes
Por outro lado, essa decisão condi- na Subcomissão do Regulamento;
das comissões. Certos países europeus
cionou todo o trabalho preparatório, • Dom Alfredo Vicente Scherer, arce-
ganharam uma representação impor-
que ficou quase que por inteiro sob o bispo de Porto Alegre, RS, na Co-
tante em relação aos países dos de-
controle da Cúria Romana. De modo missão Teológica;
mais continentes: França (62); Alema-
especial, a Comissão Teológica estava • Dom Antônio Maria Alves de Si-
nha (50); Espanha (33); Bélgica (18);
em mãos do Santo Ofício e era dirigida queira, arcebispo auxiliar de São
Grã-Bretanha (16), Holanda e Áustria,
pelo todo poderoso e temido Cardeal Paulo, SP, na Comissão da Disciplina
11 cada um. É minguada a represen-
Alfredo Ottaviani. dos Sacramentos;
tação latino-americana e muito mais
Outro problema que afetou as co- • Mons. Joaquim Nabuco, na Comis-
ainda a africana e a oceânica. A Ásia,
missões foi a sua composição. Em um são Litúrgica;
com quatro vezes menos o número de
primeiro relance, tem-se a impressão católicos em relação à América Latina,
de que o desejo de João XXIII de que o Consultores
igualava a sua representação. • Dom Helder Pessoa Camara, arce-
conjunto da Igreja — geográfica, cultu- Canonicamente, estavam as pes-
ral e teologicamente, na diversidade de bispo auxiliar do Rio de Janeiro, RJ,
soas assim distribuídas: na Comissão dos Bispos e do Gover-
suas escolas e tendências — estivesse
envolvido na preparação, fora cumpri- • 73 cardeais (dez dos quais religiosos); no das Dioceses;
do. Na realidade, porém, não foi o que • 5 patriarcas (dois dos quais religiosos); • Dom Geraldo Fernandes Bijos,
aconteceu de todo. Não se pode negar • 127 arcebispos, 85 como mem- bispo de Londrina, PR, na Comis-
a grande diversidade geográfica e ca- bros e 43 consultores (24 dos quais são dos Bispos e do Governo das
nônica dos 846 integrantes dos orga- religiosos); Dioceses;
nismos preparatórios, divididos entre • 135 bispos, 80 membros e 55 con- • Dom Alfonso M. Ungarelli, Prelado
membros (466) e consultores (380).4 sultores (31 dos quais religiosos); Nullius de Pinheiro, MA, na Comis-
Geograficamente, repartindo-se • 212 sacerdotes do clero secular, são da Disciplina dos Sacramentos;
estas pessoas por local de trabalho, o 102 membros e 110 consultores; • Frei Boaventura Kloppenburg OFM,
resultado é o seguinte: • 286 religiosos, 114 membros e 172 na Comissão Teológica;
consultores; • Pe. Estevão Bentia,8 na Comissão
Membros e consultores das co- • 8 leigos, 7 membros e 1 consultor.5 das Igrejas Orientais;
missões conciliares preparatórias • Dom José Vicente Távora, bispo de
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Outro elemento que salta à vista Aracaju, SE, no Secretariado da Im-


é o restritíssimo número de leigos. En- prensa e do Espetáculo.
tre estes não havia nenhuma mulher!
3 Superno Dei Nutu, n. 7; KLOP I, p. 56.
(Nota do entrevistado) Comenta Komonchak:
4 Indelicato assinala que o número real de Sete leigos serviam no secreta- 6 Muitas das associações nacionais e in-
membros era de 842, pois 4 deles encon- riado administrativo, mas em todas as ternacionais de leigos, porém, apresenta-
travam-se em duas comissões, perfazen- ram seus vota e foram representadas na
do o total de 846. Há, entretanto, uma Comissões Preparatórias que elabora- AL por sacerdotes há muito tempo asso-
discrepância entre este número à página ram textos para o Concílio havia ape- ciados a seu trabalho. TURBANTI, Giovan-
46 do seu estudo e os números exibidos nas um leigo, F. Vito, que servia na ST ni, “I laici nella chiesa e nel mondo”, in
na tabela da página 67, cujo total é de Verso Il Concilio Vaticano II, pp. 212-218.
847 pessoas. Não me foi possível localizar [Comissão de Estudos e Seminários]. (Nota do entrevistado)
o erro para corrigir uma das duas somas De fato, apesar dos esforços de seu 7 KOMONCHAK, J., “A Luta pelo Concílio
que discrepam de 1 pessoa. INDELICATO, presidente e secretário, nenhum leigo durante a preparação”, in ALBERIGO,
Antonino, “Formazione e composizione História, I, p. 181. (Nota do entrevistado)
delle commissioni preparatorie”, in ALBE- 8 Pe. Estevam Bentia era professor da
RIGO, Giuseppe, Verso il Concilio Vatica- Faculdade de Teologia N. S.da Assunção,
no II (1960-1962), Genova, Marietti, pp. 5 INDELICATO, art. cit., pp. 46-47. (Nota em São Paulo, na época da preparação do
43-69. (Nota do entrevistado) do entrevistado) Concílio. (Nota do entrevistado)

42 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


O espinhoso problema da fase pre- Secretariado para a União dos Cristãos Lumen Gentium como a recebemos

Tema de Capa
paratória só foi superado com a rejeição e encarnar o propósito ecumênico do no final do Concílio?
na primeira congregação geral ordinária Concílio, estar em contato pratica- José Oscar Beozzo - Os pontos no-
da proposta feita pelo Secretário geral mente diário com os observadores das dais foram quatro: a definição da Igre-
de que fossem eleitos para as comis- outras igrejas cristãs e por integrar as ja como POVO de DEUS, a afirmação
sões conciliares, boa parte daqueles que várias comissões mistas encarregadas de que esta se encontra a serviço do
haviam integrado as comissões prepa- de reelaborar esquemas cruciais como REINO DE DEUS, a doutrina da COLE-
ratórias. A proposta foi rejeitada e pro- os da Dei Verbum, Dignitatis Huma- GIALIDADE EPISCOPAL e de que junto
cedeu-se três dias depois a eleição de nae, Nostra Aetate e Gaudium et Spes. com Pedro, o colégio episcopal detém
34 listas elaboradas pelos episcopados. Num sentido oposto encontrava-se o o supremo poder sobre a Igreja. Final-
Nesse momento, o controle do Concílio Cardeal Ottaviani que presidia o San- mente, o reconhecimento de que há
deslocou-se da Cúria Romana para a as- to Ofício, a Comissão Teológica e era uma única Igreja de Jesus Cristo que
sembleia conciliar. O resultado prático visto como o principal representante subsiste na Igreja católica, mas que se
foi de que dos 72 esquemas preparató- e guardião da doutrina tradicional e encontra presente nas outras Igrejas.
rios, apenas um, o da Liturgia, sobrevi- opositor dos novos rumos tomados Define-se, portanto, o ecumenismo
veu. Todos os demais foram rejeitados pelo Concilio. Finalmente, havia figu- como tarefa imprescindível para que
pela assembleia conciliar como base ras representativas de articulações se restabeleça e fulgure a unidade en-
para os seus trabalhos. que se formaram ao longo do Concilio. tre todos os cristãos, como semente
Pela minoria conciliar, impôs-se figura da unidade entre todos os seres hu-
IHU On-Line - Entre os padres do ex-arcebispo de Dakar no Senegal manos, que foram parte da única fa-
conciliares que atuaram nos traba- e ex-superior geral dos padres espiri- mília da qual Deus é o Pai comum.
lhos do Concílio, quais foram figuras- tanos, Marcel Lefebvre, embora quem
-chave nos debates, encaminhamen- carregasse o peso do secretariado do
tos e tomadas de decisão? Por quê? Coetus Internationalis Patrum fosse Leia mais...
José Oscar Beozzo - Emergiram figuras o brasileiro, Dom Geraldo Proença Si-
chave, por conta do seu papel institu- gaud, arcebispo de Diamantina, MG e >> Confira outras entrevistas
cional, seja porque ocupavam a secre- o que mais intervenções fez em nome concedidas por José Oscar Beozzo à
taria geral, como Mons. Pericle Felici, do grupo fosse Dom Antonio de Castro IHU On-Line:
seja porque faziam parte do Conselho Mayer, bispo de Campos e Dom Carli, • “O Vaticano II é o elemento estru-
de Presidência, como os cardeais Tis- bispo de Segni na Itália. turante da teologia de João Batista
serant, seu presidente, ou os cardeais Dentre os brasileiros a figura Libânio”. Entrevista publicada na
Achille Lienart de Lille na França, o maior foi Dom Hélder Câmara por ocu- IHU On-Line número 394, de 28-05-
Cardeal alemão Frings de Colônia ou o par até 1964 a secretaria geral da CNBB 2012, disponível em http://bit.ly/
Cardeal Alfrink de Utrecht na Holanda. e a vice-presidência do CELAM, por JLJaeL
Outros ainda por integrarem, a partir haver tomado a iniciativa de organizar • “A Mater et Magistra deu vigoroso
do segundo período conciliar, o quar- um encontro semanal dos presidentes impulso à linha do compromisso
teto dos moderadores encarregados ou secretários das conferencias episco-
social”. Entrevista publicada na IHU
de presidir rotativamente as congrega- pais. Esse grupo converteu-se em refe-
On-Line número 360, de 09-05-
ções gerais: o Cardeal Agagianian dos rencia para todos os debates e decisões
2011, disponível em http://bit.ly/
armênios e membro da Cúria Romana, conciliares, tendo sido reconhecido
l6mvzk
o cardeal Giacomo Lercaro de Bolog- como o que mais influência exerceu so-
• “O retrato de um Brasil muito dife-
na, na Itália, o Cardeal Julius Dopfner bre a marcha do Concílio. Dom Hélder
de Munique na Alemanha e o Cardeal tornou-se rapidamente uma das figuras rente”. Entrevista publicada nas No-
Leo-Joseph Suenens de Malinas-Bru- mais solicitadas da mídia internacional, tícias do Dia em 29-07-2009, dispo-
xelas na Bélgica. Deve ser destacado tanto pelas rádios e televisões, como nível em http://bit.ly/aQxiu4
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o Cardeal Suenens, por sua personali- pelos jornais e revistas. • “Dom Helder, pastor da libertação
dade que se impunha, por contar com No plano latino-americano, o em terras de muita pobreza”. En-
um grupo de teólogos de primeira li- mais influente foi Dom Manuel Lar- trevista publicada nas Notícias do
nha vindos da Universidade de Lovai- rain, bispo de Talca no Chile, um dos Dia em 07-02-2009, disponível em
na, por seu fácil acesso ao Papa e por vice-presidentes e depois presidente http://migre.me/4sG26
estabelecer, via Dom Hélder Câmara, do CELAM que congregava os mais de • “A política tornou-se, o mais das
uma ponte com os episcopados do 600 bispos da América Latina e do Ca- vezes, um teatro”. Entrevista publi-
terceiro mundo e com as conferências ribe. Contava com o apoio irrestrito do cada nas Notícias do Dia em 20-06-
episcopais dos diferentes países. seu amigo Hélder Câmara e do cardeal 2008, disponível em http://migre.
Outros eram reconhecidos por de Santiago, Dom Silva Henriquez. me/4sG6N
sua competência ou autoridade mo- • “Giuseppe Alberigo”. Entrevista
ral e intelectual ou por representarem IHU On-Line - Quais foram os publicada na IHU On-Line, número
determinadas correntes teológicas ou pontos nodais das discussões em 225, de 25-06-2007, disponível em
pastorais. Cabe especial destaque ao torno ao esquema relativo à Igreja? http://migre.me/4sGbO
Cardeal Agostino Bea, por presidir o Como se chegou à estruturação da

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 43


O melhor e o pior do Vaticano
Tema de Capa

II no corpo e na vida de irmãs


companheiras
“Os ares de abertura do Vaticano II expressam novas relações de poder dentro da
igreja romana, mas também na sociedade de um modo geral”, aponta
Nancy Cardoso Pereira

Q
uestionada pela IHU On-Line sobre a companheiras não era o Concílio como ‘coisa’ na
percepção feminina do Concílio Vatica- história da Igreja, mas o espaço de conflito que
no II e sobre o papel e lugar da mulher o evento representou na vida de uma cristanda-
em seus documentos e decisões que ecoam até de que se queria una & santa & inquestionável”.
hoje na Igreja, a teóloga e filósofa Nancy Car- Teóloga e filósofa, Nancy Cardoso Pereira é
doso Pereira escreveu o artigo a seguir espe- mestre e doutora em Ciências da Religião pela
cialmente para a presente edição da revista. A Universidade Metodista de São Paulo – Umesp,
seu ver, “para alguns o Vaticano II era um ponto e pós-doutora em História Antiga pela Univer-
final no processo de concessões e abertura da sidade Estadual de Campinas – Unicamp. Ela é
Igreja com o mundo moderno, para outros e, pastora da Igreja Metodista. É membro do Pa-
em especial, para muitas, era o ponto de par- lestine Israel Ecumenical Forum – PIEF/World
tida para uma caminhada de reposicionamento Council of Churches – WCC e secretária de Pu-
da fé. Este conflito estava presente no Concílio blicações do Centro de Estudos Bíblicos – Cebi,
e se manteve (e se mantém) atual”. Ela explica além de assessora de Formação da Comissão
que foi justamente no corpo e na vida das irmãs, Pastoral da Terra – CPT. Nancy Cardoso Pereira
suas companheiras de luta, que viu o melhor do foi escolhida em agosto como reitora da Univer-
Concílio Vaticano II, mas também o “pior da ma- sidade Bíblica Latino-Americana – UBL. A sua
nutenção dos esquemas de centralização e cleri- gestão vai de 2013 a 2017.
calização”. E explica: “o que movia minhas irmãs Confira o artigo.

Não são as ideias que movem a lheres, dos subalternos e de suas lutas Estas dinâmicas tinham uma inter-
história e não são as ideias que cir- de libertação. ferência muito direta na vida das mulhe-
cularam no Concílio Vaticano II e nos A Igreja pré-conciliar se caracte- res, não só nas fiéis católico-romanas,
documentos que fizeram história. A rizava por: mas também na manutenção do status
força que empurra a história é a histó- 1. centralização de toda a institui- de minoridade das mulheres na cultura
ria mesma. Assim seria possível fazer ção católica; cristã-ocidental. Os ares de abertura do
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uma história das ideias do Vaticano II, 2. a clericalização que perpassava Vaticano II expressam novas relações
mas então nos manteríamos no nível essa organização eclesiástica; de poder dentro da Igreja Romana, mas
de idealização teológica e histórica 3. o fortalecimento da Igreja Ca- também na sociedade de um modo ge-
que nos aprisionaria aos cenários pré- tólica Romana, apresentada como ral. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II
-conciliares. É porque este momento uma instituição paralela aos estados não era um ponto de partida, mas um
da história teve importância nos pro- modernos (Azzi)1. ponto de articulação e interação entre
cessos de disputa de poder dentro do forças pastorais e políticas que ressoa-
cristianismo que criou as condições 1 Riolando Azzi: paulistano, formou- vam dentro da Igreja Romana.
objetivas e subjetivas da minha cami- se em Teologia pelo Pontifício Ateneu De acordo com Dussel2, as guerras
Salesiano e em História da Igreja pela
nhada de fé pastoral popular e femi- Pontifícia Universidade Gregoriana,
mundiais na Europa e suas resoluções
nista no Brasil e na América Latina. En- ambos em Roma. Mestre e doutor em
tretanto, estamos sempre ameaçadas, Filosofia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, onde também leciona, CEHILA (Nota da IHU On-Line).
de modo muito concreto, de que o é pesquisador do Instituto Brasileiro de 2 Enrique Dussel (1934): filósofo
ponto de vista dos vencedores domine Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro argentino radicado (exilado) desde
e suplante, de novo, a história das mu- e membro da Comissão de Estudos da 1975 no México. É um dos maiores
História da Igreja Latino-Americana – expoentes da Filosofia da Libertação e

44 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


por dentro do capitalismo levaram à mulheres, também no contexto lati- dos modos de poder em todos os ní-

Tema de Capa
consolidação de novas hegemonias no-americano. Entretanto, somente veis e relações. Com as irmãs inseridas
políticas que criaram as condições para as estruturas dentro do catolicismo e com as teólogas leigas e religiosas
que os cristãos, ou parte deles, assu- romano que abriram mão do poder fiz minha caminhada e foi justamente
missem decididamente o projeto bur- centralizado, clerical e estatal é que no corpo e na vida dessas irmãs com-
guês – e da pequena burguesia como puderam radicalizar as possibilidades panheiras que vi o melhor do Concílio
efeito de afirmação da democracia libe- de encarnação: as experiências de Vaticano II, mas também o pior da ma-
ral na Europa e na América. igreja popular, as teologias da liberta- nutenção dos esquemas de centraliza-
Do mesmo modo, o impacto e a ção, os novos modos de ser igreja, as ção e clericalização.
recepção do Concílio Vaticano II foi di- reinvenções litúrgicas e ministeriais. Mas o que movia minhas irmãs
ferenciada não só pelos contextos geo- Estas respostas (dimensionadas e pro- companheiras não era o Concílio como
gráficos, mas também e principalmen- jetadas na América Latina em Medel- “coisa” na história da Igreja, mas o es-
te por conta das oscilações e disputas lín e Puebla) criaram as condições de paço de conflito que o evento repre-
em torno desta nova hegemonia. sobrevivência das teologias feministas sentou na vida de uma cristandade que
Assim, para alguns o Vaticano e de práticas eclesiais inclusivas. se queria una & santa & inquestionável.
II era um ponto final no processo de O movimento feminista mudou O que movia e move as irmãs
concessões e abertura da Igreja com muito nos últimos 50 anos e recolocou companheiras feministas é esta visuali-
o mundo moderno, para outros e, em suas questões e suas práticas. E estas zação do caráter provisório e histórico
especial, para muitas, era o ponto de oscilações interpretativas e pastorais que o Vaticano II deixou ver na forma-
partida para uma caminhada de repo- continuam perpassando as teologias tação pesada do catolicismo e do cris-
sicionamento da fé. Este conflito esta- feministas, que passaram da reivindi- tianismo ocidental. Esta “abertura” não
va presente no Concílio e se manteve cação de igualdade entre homens e foi concedida do alto, nem forjada pelo
(e se mantém) atual. mulheres para uma reivindicação da poder mesmo, mas revelou as pressões
diferença entre elas e eles, e daí para do mundo e suas gentes, dos pobres
Posicionamento do movimento a de uma política das identidades, com e das mulheres para cima de todas as
feminista o acréscimo dos deslocamentos: “do estruturas de poder das elites e seus
Um dos pontos de questionamen- marco macrossociológico, de cunho clubes exclusivos de empresários, ban-
to a partir da década de 1950 e, em modernista, para os estudos locais; das queiros, bispos, maridos e patrões.
especial, na década de 1960 era o de análises transculturais do patriarcado à Nas palavras de Cecília Domezi, as
posicionamento do movimento femi- complexa e histórica interação de sexo, mulheres comeram embaixo da mesa
nista. Tanto na dimensão teórica como raça e classe; de noções de uma iden- do Vaticano II, assim com na história
nas práticas de luta por direitos, as mu- tidade feminina ou de interesses das de Jesus e da sírio-fenícia (Marcos 7).
lheres já tinham acúmulo significativo mulheres à instabilidade da identidade As mulheres, nestes 50 anos, tomaram
que interferiam nestes novos arranjos feminina, com as ativas criações e re- estas migalhas e convidaram Jesus para
de poder. Assim, o desejo de diálogo criações das mulheres a partir de reais debaixo da mesa, invertendo a lógica
do Vaticano II repercutiu de modo di- necessidades” (Cecília Domezi). de manutenção do poder clerical de
ferenciado em segmentos diferencia- As três dimensões (centralização, alguns homens poderosos. É essa lei-
dos de mulheres. A ausência efetiva clericalização e interferência como Es- tura que cria as condições para “virar a
das mulheres no processo conciliar já é tado) continuam operando de modo mesa” na afirmação da experiência do
problemático e compromete muito das hegemônico na Igreja Romana em Deus dos pobres – mulheres e homens.
resoluções e encaminhamentos, por- particular e nas igrejas cristãs em geral Estas práticas libertadoras de vi-
que não se colocam fora do esquema dificultando novas conversas em tor- ver a fé continuam insistindo na cole-
de centralização, clericalização e não no da agenda sempre atualizada das gialidade, na opção pelos pobres (mu-
superam a visão estatal do Vaticano. feministas. Assim, a questão dos mo- lheres e homens) e na superação no
Sem dúvida alguma, as novas delos interpretativos é fundamental modelo de cristandade na afirmação
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perspectivas teológicas do Concílio, nos processos de revisão da história. do Estado laico.
de participação do laicato no culto e Eu me considero uma teóloga
na ação social da Igreja, o reforço à que – mesmo protestante – recebeu
inspiração bíblica na reflexão teoló-
gica e a abertura ao diálogo ecumê-
um impacto importante do Concílio
Vaticano II. Minha formação teológica Leia mais...
nico criaram possibilidades de ação nos anos 1980 participou tanto dos
e participação mais significativas das >> Nancy Cardoso já concedeu outra
novos modos de ser esquerda como
dos novos modos do feminismo e de entrevista à IHU On-Line. Confira:
do pensamento latino-americano em
ser Igreja. Minha prática profunda- • Palestina e Israel: caminhos para
geral. Autor de uma grande quantidade mente ecumênica – de formação e
de obras, seu pensamento discorre sobre ação – me colocou em contato com uma paz justa. Entrevista publicada
temas como filosofia, política, ética e
teologia. Tem se colocado como crítico da
religiosas e leigas católicas impactadas na edição número 400, de 27-08-
pós-modernidade chamando por um novo pelo Vaticano II, mas principalmente 2012, disponível em http://bit.ly/
momento denominado transmodernidade. impactadas pela realidade comum,
É um crítico do pensamento eurocêntrico NZ9h4a
contemporâneo. (Nota da IHU On-Line)
pelas alternativas de transformação

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 45


Tema de Capa
Vaticano II: a batalha pelo
significado
Por Rodrigo Coppe Caldeira

P
ublicamos a seguir a resenha de Rodri- cílio Vaticano II e seus inúmeros desafios”.
go Coppe Caldeira, doutor em Ciências Massimo Faggioli é doutor em história da
da Religião e professor da PUC Minas, religião e professor de história do cristianismo
autor do livro Os baluartes da tradição: o con- da University of St. Thomas, em Minneapolis-
servadorismo católico brasileiro no Concílio -St. Paul, nos EUA.
Vaticano II (Curitiba: CRV, 2011), sobre o livro As citações em inglês, que estão nas no-
Vatican II: the battle for meaning [Vaticano II: tas publicadas no final do texto, foram tradu-
A batalha pelo significado], de Massimo Fag- zidas por Moisés Sbardelotto. Este texto foi
gioli. Para Coppe Caldeira, “a obra de Faggioli publicado originalmente nas Notícias do Dia
é uma oportunidade de adentramos, nesse 07-07-2012, no sítio do Instituto Humanitas
início da segunda década do novo milênio, Unisinos – IHU e está disponível em http://
nos meandros historiográficos, teológicos e bit.ly/RBovhH
hemenêuticos dos debates em torno do Con- Eis o artigo.

Nestes quase cinquenta anos de reconstruindo, mesmo que brevemen- vação patrística; 1965-80 (“Vatican II:
inicio do Concílio Vaticano II, cresce te, os principais momentos e desafios acknowledged received, refused”), no
e aprofunda-se a discussão em torno da recepção conciliar. Certamente, qual aponta para os debates que sur-
dos seus significados, transparecido refletir sobre o catolicismo atual sem gem sobre o concílio, e que tem entre
nos debates em torno da procura de referenciar a realidade do Vaticano II os seus principais comentadores Yves
adequada interpretação dos docu- seria incorrer em erro. Como Faggio- Congar, Henri de Lubac, Joseph Ratzin-
mentos promulgados. Neste início de li afirma, “a melhor forma de refletir ger, Edward Schillebeeckx; os sínodos
século, estes debates foram perpassa- sobre o estado do catolicismo no mun- nacionais (por exemplo, o de Medellín
dos por um novo vigor, especialmen- do global do século XXI é recuperar a em 1968); a fundação das revistas Con-
te pela elevação de Joseph Ratzinger posse do evento que moldou a Igreja cilium (Hans Küng, Yves Congar, Karl
ao sólio papal, deixando claro, desde de uma forma que só é comparável ao Rahner, Edward Schillebeeckx) e Com-
seus primeiros discursos, que a re- impacto do Concílio de Trento no cato- munio (Joseph Ratzinger, Hans Urs von
cepção do Vaticano II seria uma das licismo europeu” (p. 2)2. Balthasar, Henri de Lubac) sinalizando
preocupações centrais de seu papa- Dessa forma, a preocupação de para o fato de que as interpretações
do. De fato, está sendo, já que, além Faggioli é contextualizar o evento con- em torno do concílio não seriam unâ-
da presença do tema em inúmeros de ciliar a partir dos significados advindos nimes; 1980-90, marcado por cada vez
seus discursos, o seu movimento em de sua recepção, ou seja, desde seu menos contribuições da academia e
vista de finalizar o cisma pós-conciliar desenvolvimento entre o anúncio por mais influência da política doutrinária
de 1988, levado a cabo pela radicali- parte de João XXIII e, particularmente, da Santa Sé, especialmente com a re-
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zação de Marcel Lefebvre e Antônio as fases posteriores, que serão fun- codificação da lei canônica, o Sínodo
de Castro Mayer, pisa no terreno da damentais no processo dinâmico de dos Bispos de 1985, que oferecia as di-
hermenêutica do concílio. Alguns ana- sua receptio. Para tanto, o historia- retizes para se interpretar o Vaticano II,
listas vêem a situação atual como uma dor italiano divide este período entre além da publicação do livro-entrevista
verdadeira “batalha”. 1960-65 (“What Vatican II said about de grande impacto, publicado no Brasil
É o caso da obra publicada nos Vatican II”), apontando para a realida- com o título “A fé em crise? O cardeal
Estados Unidos por Massimo Faggioli de do Vaticano II como aquele primeiro Ratzinger se interroga”3; 1990-2000, no
intitulada Vatican II: the battle for mea- concílio realmente global, assinalado qual a preocupação com a historiciza-
ning1. Faggioli busca, em seis capítulos, por pendor ecumênico e pela reno- ção do concílio aparece no projeto de
apresentar o ponto em que nos encon- envergadura encabeçado por Giuseppe
tramos nesta “quaestio disputata”, ten- 2 No original: “The best way to reflect on
tando demonstrar as forças em jogo, the state of catholicism in the twenty-
first-century global world is to regain
possession of the event that shaped the 3 RATZINGER, Joseph e Messori, Vittorio.
1 Faggioli, Massimo. Vatican II: The Battle Church in a way that is comparable only A fé em crise?: o cardeal Ratzinger se
for Meaning (New York: Paulist Press, to the impact of the Council of Trent on interroga. (São Paulo: EPU. 1985) (Nota
2012). (Nota da IHU On-Line) European catholicism”. (Nota do autor) da IHU On-Line)

46 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Alberigo4, assinalado por uma perspec- las posições das mais importantes re- zinger. Importante afimar com o autor

Tema de Capa
tiva hermenêutica que afirma o concí- vistas teológicas do mundo, Concilium que “a biografia intelectual de muitos
lio como “evento”. e Communio. Segundo Faggioli, a divi- neoagostinianos críticos do Vaticano II
De 2000 até hoje, Faggioli per- são do que foi a “maioria conciliar” nos tem sido muito mais complexa do que
gunta: “Rumo a uma nova luta em tor- tempos da assembleia demonstrou as a defesa de uma agenda meramente
no do Vaticano II?”. A morte de João tensões que existiam no campo her- conservadora” (p. 69)9. Von Baltha-
Paulo II e a eleição de Bento XVI cons- menêutico: “O assunto polêmico era a sar, por exemplo, em seu Razing the
tituem dois elementos importantes no ideia da Communio sobre o Vaticano II Bastions, publicado dez anos antes
campo teológico e eclesiástico na pai- de validar o ressourcement como um do concílio, “expressou a necessidade
sagem dos debates sobre o Vaticano II método para favorecer o trabalho na de a Igreja não se ‘entrincheirar’ mais
nos últimos anos. Faggioli cita o docu- teologia versus a ideia da Concilium contra o mundo” (p. 69)10.
mento “Responses to Some Questions sobre o Vaticano II como o incipit de Depois do concílio, o teólogo
Regarding Certain Aspects of the Doc- uma reformatio, uma atualização mais compreenderá os vários aspectos da
trine on the Church” (29 de junho de abrangente da Igreja Católica em sua teologia pós-conciliar como o resul-
2007), que tratou de como deve ser teologia e estruturas” (p. 52)6. tado do casamento entre o deísmo
interpretado o “subsist in” (Lumen Faggioli, assim, vê duas tendên- inglês (Herbet of Cherbury), o histori-
Gentium, 8), o moto próprio Summo- cias no pós-concílio, que irão refletir, cismo alemão e o idealismo (Hegel) às
rum Pontificum (2007), que permitiu sem sombra de dúvida, nas linhas custas de Tomás de Aquino. Henri de
o uso da missa tridentina de forma interpretativas dos significados do Lubac, por seu turno, já deixa transpa-
ampla e, em 2009, o levantamento concílio: a primeira representada pe- recer no próprio Vaticano II, de acordo
das excomunhões dos quatro bispos los neo-agostinianos (filosoficamente com Faggioli, ao analisar seu diário do
ordenados por Marcel Lefebvre5 como próximos do platonismo); a segunda, concílio, seu ceticismo em relação à
momentos da última década que vão a dos neo-tomistas (filosoficamente antropologia do evento conciliar, e a
dar novo impulso aos debates em tor- próximos de Aristóteles). Gaudium et spes especialmente. Em
no da hermenêutica do concílio. Segundo o historiador, estas duas sua Augustinisme et théologie mo-
Faggioli levanta três posições linhas já estavam delineadas no pró- derne, de 1971, escreve: “Hoje somos
interpretativas no pós-concílio que prio concílio, não sendo assim resulta- testemunhas de um esforço que quer
partiam da ideia do Vaticano II como do da dinâmica pós-conciliar. A escola dissolver a Igreja no mundo... A maré
um concílio de reforma: a primeira em agostiniana, como afirma Ormond de imanentismo está crescendo irre-
torno da revista Concilium, que tinha Rush, citado por Faggioli, “está que- sistivelmente” (p. 71)11. Para o teólo-
como palavra de ordem a expressão rendo definir a Igreja e o mundo em go, “o equilíbrio teológico entre natu-
“beyond the council”, entendendo o uma situação de rivais; ela vê o mundo reza e graça foi interrompido em favor
concílio como um início e não simples- em uma luz negativa; o mal e o peca- de uma confiança ingênua na natureza
mente um fim; a segunda representa- do abundam de tal forma no mundo e no mundo contra a necessidade da
tada pela ideia de uma recepção re- que a igreja deve sempre suspeitar e graça e da fé, e contra a ideia de trans-
formista dos documentos conciliares; desconfiar dele. Qualquer abertura ao cendência” (p. 71)12.
e a terceira que marca a importância mundo seria um ‘otimismo ingênuo’”
dos documentos conciliares para que (p. 68-69)7. Esta tendência teria atraí-
sejam colocadas em andamento as do inúmeros teólogos, não só aqueles tura modernas, especialmente a franco-
-germana. Criou sua própria Teologia,
reformas, como aquela da Cúria Ro- ligados à orbe conservadora e/ou tra- síntese original do pensamento patrís-
mana, a litúrgica, a da colegialidade. dicionalista, mas também aqueles liga- tico e contemporâneo. Entre suas obras
Faggioli também aponta para os tra- dos à nouvelle theologie, como Henri destacam-se O cristianismo e a angústia
(1951), O mistério das origens (1957), O
dicionalistas, que rejeitam o concílio, de Lubac, Jean Daniélou, Hans Urs von problema de Deus no homem atual (1958)
entendido por eles como heresia, o Balthasar8, Louis Bouyer e Joseph Rat- e Teologia da história (1959). A edição 193
que leva ao cisma de 1988. da IHU On-Line, de 28-08-2006, Jorge Luis
Momento interessante da obra é Borges. A virtude da ironia na sala de es-
6 No original: “The divisive issue was pera do mistério publicou uma entrevista
aquela que traz a situação da teologia
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Communio’s idea of Vatican II as validating com Ignácio J. Navarro, intitulada Borges
no período pós-conciliar, marcada pe- ressourcement as a method for further e Von Balthasar. Uma leitura teológica,
work in theology versus Concilium’s idea disponível em http://migre.me/4Hkbv.
of Vatican II as the incipit of a reformatio, (Nota da IHU On-Line)
4 Giuseppe Alberigo (1926-2007): a more comprehensive updating of the 9 No original: “The intellectual biography
importante historiador da Igreja Católica. Catholic Church in its theology and of many neo-Augustinian critics of Vatican
Sua obra mais importante foi a direção structures”. (Nota do autor) II has been far more complex than the
da iniciativa editorial Storia del Concilio 7 No original: “Is wanting to set church advocacy of a merely conservative
Vaticano II. (Nota da IHU On-Line) and world in a situation of rivals; it agenda”. (Nota do autor)
5 Marcel Lefebvre: francês, foi arcebispo sees the world in a negative light; evil ���������������������������������������
No original: “Expressed the need for
na África e liderou, durante o Concílio Va- and sin so abound in the world that the the Church to no longer be ‘barricaded’
ticano II, juntamente com os bispos brasi- church should be always suspicious and against the world”. (Nota do autor)
leiros Geraldo Sigaud e Antonio de Castro distrustful of it. Any opennes to the world ���������������������������������������
No original: “Today we are witnesses
Mayer, o Coetus Internationalis Patrum would be ‘naïve optimism’”. (Nota do of an endeavour that wants to dissolve
que reunia o grupo mais conservador da autor) the Church in the world… The tide of
Igreja. Marcel Lefebvre nunca aceitou o 8 Hans Urs Von Balthasar (1905-1988): te- immanentism is growing irresistibly”.
Concílio Vaticano e fundou a Fraternidade ólogo católico suíço. Estudou Filosofia em (Nota do autor)
Pio X que rompeu com a Igreja Católica. Viena, Berlim e Zurique, onde doutorou- ����������������������������������������
No original: “The theological balance
Tanto João Paulo II quanto Bento XVI ne- -se em 1929, e em Teologia em Munique between nature and grace had been
gociam com a Fraternidade o fim do cis- e Lyon. Destacou-se como investigador disrupted in favor of a naïve confidence
ma. (Nota da IHU On-Line) dos santos padres e da Filosofia e Litera- in nature and the world against the need

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 47


Joseph Ratzinger, por seu turno, jetiva como “áspera” a opinião sobre ativo com relação ao mundo ao qual
Tema de Capa
concorda com a tese de fundo sobre o Vaticano II de Raztinger, que segun- ele se voltava”17.
a situação pós-conciliar de De Lubac, do o autor, está ligada à sua defesa do
e como prefeito para a Sagrada Con- agostinismo. Neo-escolasticismo
gregação para a Doutrina da Fé entre A segunda tendência funda- Em outro trecho afirma: “uma
1981 e 2005 – e como papa depois de mental de interpretação do concílio teologia ao serviço da Igreja pelas ne-
sua eleição em abril de 2005 – teve é a chamada pelo historiador como cessidades do seu tempo, de acordo
várias oportunidades de reforçar seus “‘progressistas’ neo-thomistas”. En- com a missão de São Tomás” (p. 79)18.
posicionamentos. Segundo Faggioli, o tre eles estariam Yves Congar, Marie- A aproximação com o tomismo se da-
agostinismo de Ratzinger data de seus -Dominique Chenu, Edwad Schillebe- ria na compreensão do papel históri-
anos na escola secundária, na Alema- eckx, Karl Rahner e Bernad Lonergan. co de Tomás de Aquino na Igreja, ao
nha nazista, quando a ideia da obra “Ci- Utilizando-se da análise de Gerald realizar a releitura de Aristóteles no
dade de Deus” era pensada como um McCool, Faggioli afirma que a partir século XIII, pois, sobre a tentativa da
antídoto para o totalitarismo. Porém, do tomismo estes teólogos defendiam Cúria Romana de reintroduzir certo
para o historiador, o seu trabalho pós- o lugar da história e do pluralismo na neo-escolasticismo como caminho nas
-doutoral sobre São Boaventura ajuda a teologia, olhando para eles como fato- escolas e universidades católicas, Con-
compreender a avaliação de Ratzinger res positivos. Chenu (1895-1990), por gar era bem crítico: “Seria como usar
da antropologia e eclesiologia do Vati- exemplo, “propôs uma historicização Tomás de Aquino contra ele mesmo”
cano II e sua evolução no pós-concílio. fundamental da teologia de Tomás (p. 79)19. Para o teólogo, “o Vaticano
O então Cardeal salientou desde o de Aquino - que a teologia católica do II alcançou algo semelhante ao que a
início deste período a importância de século XX deveria fazer com a filosofia revolução tomista alcançou no século
uma correta interpretação do concílio. moderna e as ciências sociais o que XIII”20. Faggioli também cita Karl Rah-
Sempre segundo Faggioli, Ratzin- Tomás havia feito com Aristóteles no ner (1904-1984) como um teólogo
ger dizia que as afirmações da Gau- século XIII” (p. 76)16. que se situaria nesse grupo, além de
dium et spes “’respiram um otimismo Para Chenu, a interpretação do Bernard Lonergan (1904-1984).
surpreendente’, resultando em nada Vaticano II deve estar ligada inextrin- Momento de central importância
mais do que ‘uma revisão do Sylla- cavelmente com a percepção do “fim no pós-concílio foram os debates no Sí-
bus de Pio IX, uma espécie de contra- da era constantiniana”, o fim do acor- nodo Episcopal de 1985, que teria como
-syllabus’, que se destinava a inverter do entre o Altar e o Trono, entre a Igre- objetivo, intentado por João Paulo II,
a posição negativa adotada por Pio IX ja e o Estado. Tal mudança, segundo o de demonstrar os limites da recepção
contra os ‘erros’ políticos e doutrinais teólogo, é um fenômeno que aponta do Vaticano II. O documento final do
da modernidade listados no Syllabus para as mudanças não só históricas Sínodo – que foi dado os créditos ao
de 1864” (p. 74)13. Para o historiador, e culturais do Ocidente cristão, mas cardeal Godfried Danneels e ao teólogo
o agostinismo de Ratzinger está na também requer uma mudança nas re- e secretário do Sínodo, Walter Kasper21
base de sua compreensão, não só da lações entre história e teologia. Yves – trouxe seis princípios para a interpre-
Gaudium et spes, mas também, por Congar (1905-1995), por seu turno, tação do concílio. Segundo Faggioli, “de
exemplo, da Teologia da Libertação14 o mais influente teólogo do concílio, um ponto de vista histórico, a leitura da
e das teologias de Jürgen Moltmann e focou inúmeras vezes a relevância da recepção do Vaticano II foi muito mais
de Johann Baptist Metz15. Faggioli ad- história para a teologia. Sobre a in- próxima do ‘otimismo’ do próprio con-
fluência de Tomás de Aquino em sua cílio do que do ‘ceticismo’ que muitos
of grace and faith, and against the idea of teologia, Faggioli cita trecho de seus bispos e teólogos católicos [...] apesar
transcendence”. (Nota do autor) diários: “O que eu vejo me faz enten- das visíveis ‘reversões’ impostas pelo Sí-
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No original: “Breathe an astonishing nodo dos Bispos de 1985 sobre como a
optimism’, resulting in nothing more
der por que São Tomás era tão atento
than ‘a revision of the Syllabus of Pius aos árabes e aos gentios. Eu imagino eclesiologia do Vaticano II já havia sido
IX, a kind of counter-syllabus’, wich was um São Tomás muito atento, aberto e recebida entre 1965 e 1985” (p. 85)22.
intended to reverse the negative stance
adopted by Pius IX against the political
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and doctrinal ‘erros’ of modernity listed teologia transcendental de Rahner, em ������������������������������������


No original: “What I see makes me
in the Syllabus of 1864”. (Nota do autor) troca de uma teologia fundamentada understand why St. Thomas was so
14 Teologia da Libertação: escola na prática. Metz está no centro de attentive to Arabs and gentiles. I imagine
importante na teologia da Igreja Católica, uma escola da teologia política que a St. Thomas very attentive, open and
desenvolvida depois do Concílio Vaticano influenciou fortemente a Teologia da active towards the world he was facind”.
II. Surge na América Latina, a partir da Libertação. É um dos teólogos alemães (Nota do autor)
opção pelos pobres, e se espalha por todo mais influentes no pós Concílio Vaticano ������������������������������������������
No original: “A theology at the service
o mundo. O teólogo peruano Gustavo II. Seus pensamentos giram ao redor of the Church for the needs of its time,
Gutiérrez é um dos primeiros que propõe de atenção fundamental ao sofrimento according to St. Thomas’s mission”.
esta teologia. A teologia da libertação de outros. As chaves de sua teologia é ��������������������������������������������
No original: “It would be just like using
tem um impacto decisivo em muitos memória, solidariedade, e narrativa. Dele Thomas Aquinas against himself”. (Nota
países do mundo. Sobre o tema confira publicamos uma entrevista na 13ª edição, do autor)
a edição 214 da IHU On-Line, de 02-04- de 15-04-2002, disponível em http:// ����������������������������������������
No original: “Vatican II had achieved
2007, intitulada Teologia da libertação, migre.me/2zn3s. (Nota da IHU On-Line) something similar to what the Thomist
disponível para download em http://bit. ���������������������������������������
No original: “Proposed a fundamental revolution had achieved in the thirteenth
ly/bsMG96. (Nota da IHU On-Line) historization of the theology of Thomas century”. (Nota do autor)
15 Johann Baptist Metz (1928): teólogo Aquinas – that twentieth-century 21 Walter Kasper (1933): cardeal alemão
católico alemão, professor de Teologia Catholic theology should do with modern e presidente-emérito do Pontifício
Fundamental, professor emérito na philosophy and social sciences what Conselho para a Promoção da Unidade dos
Universidade de Münster, Alemanha. Thomas had done with Aristotle in the Cristãos. (Nota da IHU On-Line)
Aluno de Karl Rahner, desfiliou-se da thirteen century”. (Nota do autor) ����������������������������������������
No original: “From a historical point

48 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Para o historiador, o Sínodo mar- que entende que momento crucial no Para o teólogo, o estudo das atas

Tema de Capa
cou uma virada, já que, segundo ele, Sìnodo foi “o início de um processo de conciliares e de documentos como
se deu a emergência da compreensão gradual, mas certa desqualificação de diários e cartas dos participantes do
da recepção conciliar a partir da chave algumas das interpretações do Vatica- concílio abriria uma nova fase de sua
neo-agostiniana. A Igreja do Sínodo se- no II e de uma redução das possíveis recepção. A pergunta que se fazia no
ria assinalada pela visão de João Paulo interpretações dos documentos conci- momento era sobre a possibilidade de
II e sua interpretação do concílio: “Um liares” (p. 88)27. um tratamento histórico rigoroso do
claro desenvolvimento na questão ad Para o historiador, o período pós- Vaticano II e seus significados. Faggioli
extra (ensino social, ecumenismo, diá- -sinodal será assinalado por um emba- afirma que uma nova fase da recepção
logo inter-religioso) e uma abordagem te de narrativas a respeito do concílio conciliar se abria com uma nova série
mais conservadora às questões ad in- e sua interpretação. Mesmo tendo de- de estudos dos significados históricos
tra” (p. 86)23. Tal complexidade tona- lineado as diretrizes para a recepção, do concílio, apontando para as inúme-
-se aparente no final de 1983, com o notou-se vibrante debate intelectual ras conferências internacionais que
Código de Direito Canônico, “que uniu sobre as descobertas dos significados se sucederam entre 1988 e 1999, em
com uma grande ‘ambiguidade’ dois do concílio. Mais estudos históricos Paris, Bologna, Leuven, Houston, Lyon,
elementos diferentes, ou seja, a ecle- e teológicos, todavia, não levaram a Würzburg, Moscou e Strasbourg. Es-
siologia principalmente tridentina e ju- um acordo sobre o papel da Igreja no tas conferências deram a substância
rídica da societas e a eclesiologia mais milênio que se iniciava. A questão era teórica para os fundamentos dos que
teológica da communio” (p. 86)24. sobre os significados do acontecimen- seriam os cinco volumes da História
Para Faggioli, é possível ver nos to. A tensão entre duas vertentes de do Concilio Vaticano II, organizada por
debates do Sínodo e em seu docu- compreensão já era visível no debate Giuseppe Alberigo e com participação
mento final, que algumas decisões te- teológico nos anos 1980: de um lado de uma comunidade internacional de
ológicas do concílio foram revisitadas havia o partido da descontinuidade, estudiosos.
e reinterpretadas por João Paulo II, de outro, o partido da continuidade. O
como, por exemplo, a noção de “povo primeiro defendendo que a Igreja do Interpretação modernista
de Deus”, a ideia de um “catecismo pré-Vaticano II era uma, e a Igreja do Segundo Faggioli, esta fase, aberta
universal”, “postas de lado pelo Con- pós-Vaticano II outra; o segundo afir- com o Sínodo de 1985, foi simbolica-
cílio, foram ressuscitadas graças à su- mando a continuidade entre os dois mente concluída em 2005, com o novo
gestão vinda de algumas conferências momentos. comentário dos documentos do concí-
episcopais” (p. 87). E o papel das Con- Cada partido com seus próprios lio editado por Hilberath e Hünermann
ferências episcopais foi “decisivamen- princípios hermenêuticos. Esta divisão e com a eleição de Joseph Ratzinger
te reduzido a um mero instrumento se tornou um convite para que histo- ao papado em abril de 2005. Para o
e privado de significado eclesiológico riadores e teólogos se engajassem em historiador, com a eleição de Ratzinger
real” (p.87)25. O texto final do Sínodo uma nova fase de pesquisa sobre o inaugurava-se “um novo tipo de relação
reflete, assim, algumas tensões que concílio. O teólogo alemão Hermann J. entre o ensino papal e os documentos
emergiram da recepção global do Va- Pottmeyer marcou o início dessa nova do Vaticano II, ao menos para o ponti-
ticano II depois de 1965, revelando fase de investigações. Assim escreveu ficado de Bento XVI” (p. 95)29. Interes-
também as divergentes tendências em 1987: “Duas abordagens interpre- sante notar que foi neste momento em
hermenêuticas no pós-concílio. Fag- tativas estão em conflito, especial- que apareceram mais fortemente as crí-
gioli concorda com Gilles Routhier26, mente na segunda fase da recepção: ticas à história do concílio de Alberigo,
uma olha exclusivamente para os no- acusado de realizar uma interpretação
vos começos produzidos pela maioria ideológica do evento conciliar, “uma in-
of view, the reading of the reception terpretação modernista do ‘espírito do
of Vatican II was much closer to the
conciliar, a outra olha exclusivamente
‘optimism’ of the council itself than to the para as declarações que foram assu- Vaticano II’” (p. 96). Os múltiplos aniver-
‘skepticism’ that many Catholic bishops midas dos esquemas preparatórios sários do Vaticano II – em 2003 a consti-
and theologians [...] Despite the visible por iniciativa da minoria e refletem a tuição litúrgica Sacrosanctum Concilium
‘reversals’ imposed by the 1985 Synod of fez quarenta anos; em 2005, os quaren-
teologia pré-conciliar” (p. 93)28.
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Bishops on how Vatican II ecclesiology had
already been received between 1965 and ta anos da conclusão do concílio; em
1985”. (Nota do autor) 2009 os cinquenta anos de seu anúncio
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No original: “A clear development e o aniversário de cinquenta anos de sua
in the issue ad extra (social teaching, nesta edição. (Nota da IHU On-Line)
ecumenism, interreligious dialogue) and a �������������������������������������������
No original: “The beginning of a process
abertura –, juntamente do lugar central
more conservative approach to the issues of gradual but sure disqualification do Vaticano II na biografia de Bento XVI
ad intra”. (Nota do autor) of some of the interpretations of como teólogo, deram impulso a um rico
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No original: “Which assembled with a Vatican II and of a reduction of the debate nos últimos anos.
great deal of ‘ambiguity’ two different possible interpretations of the conciliar
elements, that is, the mainly Tridentine documents”. (Nota do autor) Faggioli aponta para a eclesio-
and juridical ecclesiology of societas �����������������������������������
No original: “Two interpretative logia como a questão mais delicada e
and the more theological ecclesiology of approaches are in conflict, especially complexa do pós-Vaticano II, já que a
communio”. (Nota do autor) in the second phase of reception: one
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No original: “Set aside by the council, looks exclusively to the new beginnings
intepretação teológica da recepção do
was revived, thanks to the suggestion produced by the conciliar mojority, the
coming from some episcopal conferences other looks exclusively to statements that
[...] decisively reduced to a mere tool were taken over from the preparation �������������������������������������������
No original: “A new type of relationship
and deprived of real ecclesiological schemata at the instigation of the minority between papal teaching and Vatican II
meaning”. (Nota do autor) and reflect preconciliar theology”. (Nota documents, at least for Benedict XVI’s
26 Confira uma entrevista inédita com ele do autor) pontificate”.

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 49


concílio liga-se diretamente a ela. A pri- 1999. Além da questão eclesiológica, sobre a dinâmica dos textos concilia-
Tema de Capa
meira questão, e a mais delicada delas, aquelas envolvendo a liturgia também res e sua posição no que concerne ao
é o balanço de poder entre o papado foram alvo de debates, especialmente desenvolvimento da teologia católica;
e os bispos. O legado do final dos de- a partir do moto proprio Summorum a questão da mudança e da historici-
bates em torno da Lumen gentium e a Pontificum32 assinado por Bento XVI dade na Igreja e na teologia. No que
inesperada adição da Nota explicativa em 2007. A “reforma da reforma litúr- tange à primeira questão, o autor afir-
praevia – nota inserida por Paulo VI gica” teria presença considerável no ma que é “outra forma de descrever
em novembro de 1964 antes do texto papado de Ratzinger. a oposição entre a concepção do ca-
já aprovado pelos bispos, com o intuito Para Faggioli, nesse “clash of nar- tolicismo como um fenômeno domi-
de “clarificar” alguns aspectos da cole- ratives” [choque de narrativas] que nado por uma cultura (greco-romana,
gialidade episcopal – contribuiu para o marca a primeira década do milênio europeia, ocidental e assim por dian-
debate pós-conciliar, no qual os ecle- em torno dos feitos e significados do te) ou como uma comunhão guiada
siologistas marcaram alguns elementos concílio, é assinalado, incontestavel- pelo Espírito e capaz de transcender
substanciais para uma hermenêutica mente, pelo impulso da narrativa cató- e iluminar toda cultura particular” (p.
da eclesiologia do Vaticano II. lica conservadora, especialmente de- 124-125)35.
Duas eclesiologias apareciam vido à eleição de Joseph Ratzinger. De Sobre o segundo ponto, duas cor-
assim lado a lado: a eclesiologia de acordo com o historiador, por muitos rentes se abrem: a primeira advoga
comunhão, advinda do Vaticano II, anos o Vaticano foi expressão de uma um “theological axis” [eixo teológico]
e a eclesiologia jurídica, advinda do contradição entre duas conflituosas para a interpretação do corpus do Va-
concílio Vaticano I. O trabalho final de visões sobre o concílio: aquela funda- ticano II, tendo como seus principais
harmonizá-las não foi levado a cabo mentalmente positiva de João Paulo II representantes Christoph Theobald36.
pelo concílio do século XX. O histo- e a do cardeal Ratzinger, “agudamente A segunda corrente, tendo como prin-
riador observa que “os documentos pessimista” ao ler o pós-concílio. cipais representantes John O’Malley37,
do Vaticano II mantiveram o conceito O conclave de 2005 colocou um Gilles Routhier e Peter Hünermann,
de apostolado leigo próximo do ideal fim neste diálogo “entre os dois intér- focam o papel central dos documen-
da Ação Católica - levemente mais in- pretes mais importantes do Vaticano tos em sua constituição histórica, no
dependente da hierarquia eclesiásti- II nos primeiros 50 anos da sua recep- seu gênero literário e seu estilo.
ca, mas ainda na necessidade de um ção e abriu uma nova fase, em que a Concluindo: a obra de Faggioli é
‘mandato’ vindo dela” (p. 100)30. interpretação de Ratzinger não é mais uma oportunidade de adentramos,
Outra questão eclesiológica le- equilibrada pela de João Paulo II” (p. nesse início da segunda década do
vantada por Faggioli e que traz inúme- 106-107)33. Segundo o historiador, o novo milênio, nos meandros historio-
ros debates é aquele que versa sobre tom do debate mudou com a eleição gráficos, teológicos e hemenêuticos
o “subsist in”, Lumen gentium número de Bento XVI, que deu seu primeiro dos debates em torno do Concílio Vati-
8. Para o estudioso, as reinterpreta- passo no caminho de remodelar o cano II e seus inúmeros desafios. Vale
ções que passaram a surgir sobre este papel do concílio com seu discurso à a leitura!
trecho do documento, que marcava os Cúria Romana em dezembro de 2005.
intuitos ecumênicos do concílio, “ig- Afirmava: “Duas hermenêuticas con- ����������������������������������������
No original: “Another way to describe
nora a intenção do concílio sobre essa trárias se embateram e disputaram the opposition between the conception of
catholicism as a phenomenon dominated
mudança na linguagem da constitui- entre si. Uma causou confusão, a ou- by a culture (Greco-Roman, European,
ção eclesiológica” (p. 101)31. Algumas tra, silenciosamente mas de modo Western, and so on) or as a communion
delas vieram diretamente da Sagrada cada vez mais visível, produziu e pro- guided by the Spirit and able to transcend
Congregação para a Doutrina da Fé, duz frutos” (p. 109-110)34. and enlighten every particular culture”.
(Nota do autor)
como a declaração Dominus Iesus, As linhas mais visíveis que mar- 36 Christoph Theobald: teólogo jesuíta,
de 2000, e o documento de junho de cam o debate, como aponta Faggioli, professor da Faculdade de Teologia do
2007 sobre alguns aspectos da doutri- sobre o Vaticano II, são as seguintes: Centre-Sèvres em Paris e especialista
em questões de teologia fundamental
na sobre a Igreja. a compreensão do Vaticano II como o e de história da exegese. Em 16-09-
A interpretação oficial do “subsist fim ou o início da renovação; a visão
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2009 esteve na Unisinos participando do


in” foi a faísca para inúmeros debates X Simpósio Internacional IHU – Narrar
em torno da questão e do que chama Deus numa sociedade pós-metafísica.
32 Sobre o tema leia os Cadernos Possibilidades e Impossibilidades. Confira
de “crise do ecumenismo católico”, a entrevista que concedeu à edição 308
Teologia Pública número 56, intitulado
depois do sucesso da Declaração con- “Igreja Introvertida: Dossiê sobre o Motu da Revista IHU On-Line, de 14-09-2009,
junta sobre a Doutrina da Justificação, Proprio”, de autoria de Andrea Grillo, intitulada O cristianismo como estilo,
assinado por católicos e luteranos em publicado em 2011 e disponível para disponível para download em http://
download em http://bit.ly/NBrEAJ bit.ly/N8nezL. Theobald é uma das
�������������������������������������
No original: “Between the two most presenças confirmadas no XIII Simpósio
important interpreters of Vatican II in Internacional IHU – Igreja, cultura e
���������������������������������
No original: “The documents of the first fifty years of its reception and sociedade: A semântica do Mistério da
Vatican II maintained the concept of lay opened a new phase, in which Ratzinger’s Igreja no contexto das novas gramáticas
apostolate next to the ideal of Catholic interpretation is no longer balanced by da civilização tecnocientífica, promovido
Action – slightly more independent of the that of John Paul II”. (Nota do autor) pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU
ecclesiastical hierarchy but still in need ��������������������������������������
No original: “Two contrary opposite entre os dias 2 e 5 outubro de 2012. Saiba
of a ‘mandate’ coming from it”. hermeneutics came face to face and mais em http://bit.ly/KRlwl8 (Nota da
��������������������������������������
No original: “Ignores the intention quareled with each other. One caused IHU On-Line)
of the council about this change in confusion, the other, silently but more 37 Confira uma entrevista inédita com ele
the language of the ecclesiological and more visibly, bore and is bearing nesta edição. (Nota da IHU On-Line)
constitution”. fruit”. (Nota do autor)

50 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Tema de Capa
Hermenêuticas em tensão:
tempos sombrios para a teologia
Por Faustino Teixeira

“H
á apenas cinquenta anos, a teo- Juiz de Fora - UFJF e autor, entre muitos outros
logia católica era uma disciplina livros, de Teologia e Pluralismo Religioso (São
em grande parte fechada, ensina- Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012);
da por sacerdotes-professores em seminários Caminhos da Mística (São Paulo: Paulinas,
controlados por ordens religiosas masculinas 2012); e Buscadores do Diálogo: Itinerários
ou pelas dioceses. Os teólogos eram formados Interreligiosos (São Paulo: Paulinas, 2012). Se-
nas universidades pontifícias e faziam parte gundo ele, “é na linha dessa teologia de toque
das mesmas comunidades clericais dos seus e sensibilidade leigas que pode haver um futu-
bispos. Mas o Vaticano II abriu fileiras da teo- ro propício e renovador para a reflexão teológi-
logia aos leigos. As universidades começaram a ca em nosso tempo”.
ensinar a teologia como disciplina acadêmica, Faustino Teixeira é doutor e pós-doutor
os teólogos não buscaram mais o imprimatur pela Pontifícia Universidade Gregoriana de
para o seu trabalho, e um laicato cada vez mais Roma.
instruído tentou explorar as conceitualidades Este texto foi publicado originalmente nas
teológicas (que uma vez estavam bem além Notícias do Dia 07-07-2012, no sítio do Insti-
do seu alcance)”, constata Faustino Teixeira, tuto Humanitas Unisinos – IHU e está disponí-
professor no Programa de Pós-Graduação em vel em http://bit.ly/RBrWFe
Ciência da Religião da Universidade Federal de Eis o artigo.

“Não há dúvida de que por vezes É conhecido o caso das punições so- O Concílio abriu novos espaços
tem-se a impressão de que as fridas por Henri de Lubac e Marie- para a reflexão teólogica e dilatou os
nossas igrejinhas nos -Dominique Chenu. A clássica obra de “espaços da caridade”. Essa primavera,
escondem a Terra” Chenu, Une école de théologie (1937) infelizmente, durou pouco. Vinte anos
(Teilhard de Chardin) foi colocada no Index e ele mesmo foi depois o clima muda e o antigo núcleo
retirado de seu cargo de diretor em Le da “minoria” conciliar ganha terreno
Em recente editorial1 da revista Saulchoir, acusado publicamente dian- na igreja e também novos adeptos. O
internacional de teologia, Concilium te de sua comunidade. Na ocasião, o ano de 1981 é simbólico para essa mu-
(2/2012) os teólogos Susan Ross e Fe- cardeal Suhard confortou-lhe dizendo: dança, quando se registra a entrada de
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lix Wilfred falam das antigas e recen- “Caro Padre, não se perturbe, daqui Joseph Ratzinger na Congregação para
tes tensões que envolvem os teólogos a vinte anos o mundo inteiro falará a Doutrina da Fé (CDF), ex Santo Ofí-
com os bispos. O tema volta à tona em como você”. E vinte anos depois acon- cio. Vem substituir o antigo Prefeito,
razão de novos desencontros entre a teceu o Vaticano II... Os sofrimentos o cardeal Franjo Seper (1968-1981).
teologia e o magistério. Nas décadas com a repressão romana foram tam- Com Ratzinger na frente da CDF uma
que precederam o Concílio Vaticano II bém destacados por Yves Congar em
(1962) vários teólogos foram adverti- seu Diário de um Teólogo, publicado
entre os quais A Era dos Extremos (São
dos ou punidos pelo Santo Ofício em em 2000. Ali relata tudo o que passou Paulo: Companhia das Letras, 1995),
razão de sua pesquisa teológica. Po- entre os anos de 1952 e 1956. Em tom A Era do Capital (Rio de Janeiro: Paz e
dem ser citados os teólogos ligados à profético, nomeia o Santo Ofício como Terra, 1982), A Era das Revoluções (Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A Era dos
Nova Teologia Francesa, envolvendo uma espécie de “Gestapo eclesial”. Impérios (Rio de Janeiro: Paz e Terra,
também Pierre Teilhard de Chardin. Anos difíceis, diria Eric Hobsbawm2. 1988), Bandidos (Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1976) e sua autobiografia,
Tempos Interessantes: uma vida no século
1 Saiba mais em http://bit.ly/L5ZQNQ 2 Eric Hobsbawm: historiador marxista XX (São Paulo: Companhia das Letras,
(Nota da IHU On-Line) do século XX. Autor de inúmeros livros, 2002). (Nota da IHU On-Line).

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 51


nova dinâmica vem firmada na vida Rede (maio de 2012) –, chama a aten- conciliares, sobretudo na quantifica-
Tema de Capa
eclesial, e a busca de uma “nova disci- ção para uma novidade problemática: ção das citações.
plina”. A plataforma de mudança vem não se acusa mais somente os teólo- Diante desse “quadro sombrio”
lançada com o livro Rapporto sulla gos, mas também a “uma instituição de enquadramento eclesiástico, que
fede (1985). Ali estão os vivos traços que congrega e representa mais de tende a se aprofundar nos próximos
da restauração eclesial. A obra reforça 55.000 religiosas norte americanas”. anos, surge o grande desafio de afir-
a “hermenêutica de continuidade” na A Avaliação Doutrinal da Conferência mação de uma teologia pública, mais
leitura do Concílio, reagindo duramen- Nacional das Religiosas (Leadership comprometida com o reino de Deus
te contra as interpretações que falam Conference of Women Religious), pu- (J.Moltmann) e com a causa do Evan-
em ruptura eclesial. O cardeal Ratzin- blicada pela CDF em abril de 2012, gelho (Joseph Moingt). Uma teologia
ger reage contra a “abertura indiscri- abre um novo precedente. Embora menos eclesiástica e mais sintonizada
minada” realizada no pós-concílio e no mencionado livro-entrevista com com o mundo da academia (David
fala em “certa eufórica solidariedade o cardeal Ratzinger, de 1985, ele já Tracy) e dialogante com a sociedade
pós-conciliar”. Sublinha que a restau- assinalava sua dificuldade com as (I.Neutzling). Esse é o grande desafio
ração, entendida como “busca de um Conferências Episcopais, que a seu que se coloca para todos nós, sobre-
novo equilíbrio” está em curso na igre- ver não tinham “base teológica”, mas tudo para os teólogos leigos. Como
ja. Muitas das questões polêmicas que só uma “função prática”. Se é assim bem mostrou Inácio Neutzling em
marcarão os decênios seguintes estão com as Conferências de Bispos, o que sua reflexão sobre a ciência e a teo-
presentes nessa obra: as dificuldades diria das Conferências de Religiosos... logia na universidade do século XXI,
do magistério com a teologia moral Como indica Ivone Gebara, as reli- “a teologia, como discurso público,
(identificadas como polo principal das giosas “são acusadas de serem par- tem necessidade da liberdade institu-
tensões entre o magistério e os teólo- tidárias de um feminismo radical, de cional frente à igreja, assim como de
gos), com a teologia feminista e da li- desvios em relação à doutrina católi- um lugar no espaço público das ciên-
bertação, com as Conferências Episco- ca romana, de cumplicidade na apro- cias”. Muda-se o perfil da teologia, e
pais, com a teologia das religiões etc. vação das uniões homossexuais e também de suas tarefas nesse tempo
Passando os olhos na obra da outras acusações (...)”. São dificulda- das sociedades pós-tradicionais. As
Congregação para a Doutrina da Fé, des que aparecem igualmente na no- teólogas e teólogos são provocados
Documenta Inde a Concilio Vaticano tificação do livro da irmã Margareth a investimentos reflexivos mais ousa-
Secundo – Expleto Edita (1966-2005), Farley: problemas no âmbito da mo- dos e corajosos, buscando trabalhar
vislumbra-se uma clara desconfian- ral sexual, envolvendo a masturba- com criatividade os grandes desafios
ça face à chamada “hermenêutica da ção, os atos e uniões homossexuais, do século XXI à luz de suas experiên-
descontinuidade e da ruptura” e uma a indissolubilidade do matrimônio e cias de fé e de comunidade. Para en-
preocupação viva com a produção o divórcio e as segundas núpcias. As cerrar esse breve desabafo, cito uma
teológica realizada em certas áreas, argumentações da teóloga são rebati- passagem do editorial da Concilium:
envolvendo questões trinitárias e das e questionadas em razão de uma “Há apenas cinquenta anos, a teo-
cristológicas, questões eclesiológicas, alegada “contradição com a doutrina logia católica era uma disciplina em
de antropologia teológica, questões católica”. Como vem ocorrendo em grande parte fechada, ensinada por
morais, de teologia da libertação e te- todos os processos que antecedem sacerdotes-professores em seminá-
ologia das religiões (Praenotanda de tais notificações, as argumentações rios controlados por ordens religiosas
Angelo Amato). dos teólogos em questão são sempre masculinas ou pelas dioceses. Os te-
No período pós-conciliar mui- consideradas insuficientes ou não es- ólogos eram formados nas universi-
tos teólogos foram advertidos e pu- clarecedoras por parte da CDF. dades pontifícias e faziam parte das
nidos, começando por Hans Küng Tanto a Carta Apostólica Porta Fi- mesmas comunidades clericais dos
(1975 e 1979), Jacques Pohier (1979), dei (2011), de Bento XVI, como a Nota seus bispos. Mas o Vaticano II abriu
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Edward Schillebeeckx (1981 e 1984), com as Indicações pastorais para o ano fileiras da teologia aos leigos. As uni-
Leonardo Boff (1985), Tissa Balasu- da fé (CDF – 2012), falam na importân- versidades começaram a ensinar a
riya (1997), Antonii de Mello (1998), cia de uma “correta compreensão do teologia como disciplina acadêmica,
Jacques Dupuis (2001), Marciano Vi- Concílio”, e de uma “justa hermenêuti- os teólogos não buscaram mais o im-
dal (2001), Roger Haight (2004), Jon ca” que enquadre os textos conciliares primatur para o seu trabalho, e um
Sobrino (2006), Margareth Farley num âmbito de qualificação normati- laicato cada vez mais instruído tentou
(2012). Curioso verificar que o campo va, “no âmbito da Tradição da Igreja”. explorar as conceitualidades teológi-
de atuação desses teólogos está, em Fala-se nos textos do Concílio, não há cas (que uma vez estavam bem além
geral, relacionado aos temas de teo- dúvida, mas toda a ênfase recai no do seu alcance)”. Creio que é na linha
logia moral, teologia da libertação e Catecismo da Igreja Católica, que vem dessa teologia de toque e sensibilida-
teologia das religiões. considerado como “um dos frutos de leigas que pode haver um futuro
O artigo de Ivone Gebara, sobre mais importantes do Concílio Vaticano propício e renovador para a reflexão
A inquisição de hoje e as religiosas II”. O Catecismo ganha uma centralida- teológica em nosso tempo.
americanas – publicado no Boletim de ainda maior do que os documentos

52 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401 5


Tema
Tema
dede
Capa
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Destaques
Destaques
da da
Semana
Semana

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IHU
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emem
Revista
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53 EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00SÃO
DE LEOPOLDO,
XXX DE 000000
| EDIÇÃO
DE XXX DE
0000000 | EDIÇÃO 000 53
Entrevista da Semana
Destaques da Semana

A emergência do indivíduo e as
novas formas de viver a religião
Ao lado do que se pode pensar a respeito dos conteúdos do que está acontecendo,
e o Censo 2010 imperfeitamente revela, é preciso refletir sobre quais formas de se
crer, de se praticar e de se viver a religião estão sendo preservadas, transformadas ou
surgindo, avalia Carlos Brandão

Por Thamiris Magalhães

C
arlos Brandão, em resposta à entrevista como as descrições “duras” e quantitativas de
Pluralismo, transformação, emergência fenômenos sociais desenham com fidelidade
do indivíduo e de suas escolhas, conce- o seu “esqueleto”, mas deixam fora do dese-
dida por Pierre Sanchis à edição 400 da IHU nho “a carne e o sangue”. E, o que é pior... “o
On-Line (disponível em http://bit.ly/O6zTVo), espírito”.
reitera suas ideias e frisa que “em primeiro lu- Carlos Brandão é graduado em Psicologia
gar, sempre é preciso acreditar desconfiando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
das estatísticas”. E explica: “!Uma das minhas Janeiro – PUC-Rio. É mestre em Antropologia
razões é que, quando estudei estatística no pela Universidade de Brasília - UnB e doutor
meu curso de Psicologia, o próprio profes- em Ciências Sociais pela Universidade de São
sor disse que a melhor definição dela é esta: Paulo – USP com a tese Os deuses de Itapira.
‘estatística é a ciência segundo a qual você Atualmente, é professor na Universidade Es-
fica com dois, eu fico sem nenhum, e no fim tadual de Campinas - Unicamp.
das contas cada um ficou com um’”. A outra Confira a entrevista.
razão, para ele, é que, tanto as estatísticas

IHU On-Line – De que maneira estatística no curso de Psicologia, o “duras” e quantitativas de fenômenos
o senhor descreveria as principais próprio professor disse que a melhor sociais desenham com fidelidade o
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características do mapa religioso bra- definição dela é esta: “estatística é a seu “esqueleto”, mas deixam fora do
sileiro que emergem do Censo 2010? ciência segundo a qual você fica com desenho “a carne e o sangue”. E, o que
Carlos Brandão – Tendo a con- dois, eu fico sem nenhum, e no fim é pior... “o espírito”.
cordar com Pierre Sanchis. Não será a das contas cada um fica com um”. A
primeira vez, e espero que esteja lon- outra razão é que, para evocarmos as Novas formas de viver a religião
ge de ser a última. A diferença é que nunca esquecidas ideias de Bronislaw Assim, penso que, ao lado do que
talvez eu vá falar mais do que o mapa Malinovski1, logo no capítulo inicial do se pode pensar a respeito dos conteú-
do Censo esconde do que do que ele Argonautas do Pacífico Ocidental, tan- dos do que está acontecendo, e o cen-
revela (ou imagina que revela). to as estatísticas como as descrições so imperfeitamente revela, é preciso
refletir a fundo sobre quais formas de
Acreditar desconfiando se ser, de se crer, de se praticar e de se
1 Bronisław Kasper Malinowski (1884-
Em primeiro lugar – e imagino 1942): antropólogo polaco, considerado
viver a religião estão sendo preserva-
que várias outras pessoas terão já dito um dos fundadores da antropologia das; se elas estão se transformando ou
isso – sempre é preciso acreditar des- social. Fundou a escola funcionalista. estão surgindo.
Suas grandes influências incluem James
confiando das estatísticas. Uma das Frazer e Ernst Mach. (Nota da IHU On-
Por exemplo, mais a fundo do
minhas razões é que, quando estudei Line) que perguntar: “que tradições religio-

54 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


sas estão crescendo e quais outras es- fé religiosa, mas também aderir de confissões de religião aberta-agencia-

Destaques da Semana
tão diminuindo, talvez uma outra per- corpo e alma a sua unidade confes- da (como a umbanda e o espiritismo
gunta importante seja: dentro de cada sional de padrão sectário (no sentido kardecista), ou religiões fechadas de
religião, tradição, confissão religiosa Max Weber da palavra) e se tornar um tipo comunidade de salvação.
ou igreja confessional – e, sobretudo, crente absoluto de que “fora da minha
entre elas e entre elas e outros siste- religião não há salvação”; Várias alternativas de ser e crer
mas de sentido (como a logosogia, a d) você pode manter-se fiel a Hoje, o mais importante no cato-
antroposofia, as neoecologias cosmi- uma tradição religiosa “de origem”, licismo não é que nele se canta, dan-
cizantes, e assim por diante... infinita- separando-se de sua estrutura (como ça, fala em línguas e se recebe sem
mente), que formas, quais modalida- a da Igreja Católica segundo o Vati- cerimônias o Espírito Santo, como al-
des ou alternativas de crença e prática cano) e aderindo a regiões de com- gumas denominações pentecostais. O
‘em algo em nome de alguma coisa’ munitas desta própria religião (para importante é que, para realizar isso e
estão surgindo entre nós?” lembrar Victor Turner2). Eu acredito muito mais, a Igreja Católica se permi-
que de Pierre Sanchis a Leonardo Boff, te – entre as comunidades eclesiais de
Religião, mundo mutável passando por Marcos Arruda e Carlos base e as missas-espetáculo do padre
Não há dúvidas de que o mundo Brandão, uma pluralidade de atuais ex- Marcelo – abrir-se a todas as alterna-
da religião, mais do que o da acade- -religiosos e leigos militantes como eu, tivas possíveis e imagináveis do ser
mia ou o da política, talvez seja hoje da Ação Católica, vivem hoje de forma católico, e de se praticar sozinho, em
(se não foi sempre), o mais mutável, diferenciada esta mesma experiência pequenas comunidades de fé, ou em
o mais transformável entre todos. de cristãos pluricatólicos, exatamen- multidões de massa-espetáculo, uma
Assim, vejo que chegamos em nosso te porque podem agora viver sua fé dentre as muitas alternativas deste
tempo, aqui no Brasil e em inúmeras ampla, difusa e mutável em e entre ser e crer.
outras nações do planeta, não apenas pequenas comunidades de destino,
a uma aberta e interativa multiplu- como pessoas cristãs em diáspora; IHU On-Line – Em seu ponto de
ralidade de opções de conteúdos de e) você pode “do começo ao fim vista, por que a redução católica, que
sentido e/ou de fé (no que eu creio de de minha vida” manter-se um fiel ocorreu em todas as regiões do país,
fato e qual o sistema de sentido que crente, praticante e participante de teve queda mais expressiva registra-
me traz esta crença ou me leva a ela?), sua religião de origem, seja por con- da no Norte, de 71,3% para 60,6%?
mas igualmente a uma fecunda pluri- vicção pessoal, seja por reprodução Carlos Brandão – Concordo com
possibilidade de escolhas entre mo- costumeira a uma tradição de família, Pierre. É uma velha tradição teórico-
dos de ser, de crer e de viver o que eu aceitando-a como uma entre outras -empírica que vale tanto para as reli-
creio, e o em que creio para ser quem “agências sagradas da salvação”. giões como para artes e ciências, se-
sou. Essa relação de alternativas vai gundo a qual quanto mais uma nação,
Mais do que em outros tempos, longe ainda. Observemos que até uma região cultural ou mesmo uma
hoje pouco tempo, poucas religiões abriam pequena comunidade é ou se trans-
a) você pode – confidente ou pu- o seu leque de possibilidades de ade- forma em uma pluriaberta “terra de
blicamente – viver uma única “minha rência, de permanência e de diferen- ninguém”, tanto mais ela se abre para
crença” de forma absolutamente indi- ciada participação. A Igreja Católica, abrigar o novo e o diverso.
vidual e separada de todos os outros; seguindo tradições gregas e romanas, Não é preciso opor o Norte ao
b) você pode não apenas aderir muito mais do que judaicas, sempre Sul. Oponha Taguatinga, no Distrito
a uma crença única de forma indivi- foi o seu melhor exemplo. Federal, a Santa Maria, no Rio Grande
dualizada, mas também pode conec- Agora mesmo na minissérie Ga- do Sul. Quem “fica” permanece em
tar sistemas completos de crenças ou briela, as prostitutas de Ilhéus recla- sua fé. Quem “vai embora” precisa en-
fragmentos de algumas e realizar sua mam dos dignitários da Igreja Católica contrar outra. Ou outras.
própria bricolagem confessional. Não o seu direito a uma “ala” na solene
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é nada raro um estudante universitá- procissão. As “beatas” estão contra,
Jagunço Riobaldo
rio de hoje com este perfil: raízes ca- mas se Lampião (fervoroso rezador de Recomendo a exemplar leitura de
tólicas sem qualquer adesão à Igreja terços) e seu bando estivessem pre- um momento de confissão do jagun-
Católica + crença tangencial no taoís- sentes, não só apoiariam as prostitu- ço Riobaldo, logo no começo da obra
mo, mesclado de algo de zen budismo tas como reclamariam também o seu Grande sertão: veredas3. Ele confessa
+ uma abertura para uma fé no re- lugar na procissão.
encarnacionismo espírita kardecista, Durante muitos anos, o catolicis- 3 Grande Sertão: Veredas: uma das obras
sem qualquer adesão a esta religião + mo – religião da puta ao padre – com- mais importantes de Guimarães Rosa. Ela
uma crescente simpatia pelo anarquis- foi tema de um evento promovido pelo
petia no Brasil apenas com pequenas Instituto Humanitas Unisinos de 25 de
mo, associado a uma confissão de que abril a 25 de maio de 2006, por ocasião
dentre todos os possíveis: “Gandhi e dos 50 anos da obra. A revista IHU On-
Che Guevara são os meus gurus prefe- 2 Victor Witter Turner (1920-1983): Line dedicou seu tema de capa a este
antropólogo britânico, muito conhecido livro na edição de 02-05-2006, nº 178,
ridos” (pelo menos por agora); por seu trabalho com símbolos, rituais e intitulada Sertão é do tamanho do mundo.
c) em direção oposta, você pode ritos de passagem. Trabalhou com Clifford 50 anos da obra de João Guimarães Rosa,
não apenas crer na substância de uma Geertz e Richard Schechner. (Nota da IHU disponível em http://migre.me/qQX8.
On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 55


a quem silenciosamente o escuta, di- ria ser. Digo isso porque, a menos que to de seus escritos, cita um alguém,
Destaques da Semana
zendo que “reza é quem salva a gente um censo creia limitar a religião ao cujo nome não lembro agora, para di-
da loucura”. E por isso é que deseja re- religioso e o religioso ao confessional, zer o seguinte: “acreditamos em tudo
zas e poderes de todas as religiões ao ele precisaria rever conceitos, ampliar o que podemos, e acreditaríamos em
seu alcance. Grande parte de “todo o categorias e alargar muito o leque de tudo, se pudéssemos”. Creio que é isso
mundo” está hoje ficando mais ou me- suas próprias classificações. mesmo. Assim, penso que as pessoas
nos como ele. que “não acreditam em um deus” não
De resto, como estou dialogan- Rubem Alves, um “teólogo ateu” acreditam “nele” (e em tudo o que
do com Pierre Sanchis, quero lem- Rubem Alves7 vai me permitir es- religiões fazem dele derivar), para
brar uma das citações memoráveis de tas confidências, porque elas são pú- poderem “acreditar em alguma coisa
Charles de Gaulle4. Ele dizia mais ou blicas: um dia identificou-se em uma acreditável”.
menos isto: “a grande diferença en- entrevista de jornal de alta circulação, Acho que um Censo menos es-
tre os Estados Unidos da América do como um “teólogo-ateu”. Creio que tatístico e mais qualitativamente hu-
Norte e a França é que lá existem 360 em um de seus últimos livros ele reto- mano deveria conter uma pergunta
religiões e dois partidos políticos; en- ma esse tema polêmico (não fosse de assim: “em que ou no que você acre-
quanto na França há duas religiões e Rubem Alves). dita?” Exemplo: Todos nós sabemos
360 partidos políticos”. Creio que no Certa vez, quando entre só nós que Albert Einstein9 abandonou sua
Brasil estamos tendendo a associar o dois, eu abri o jogo com ele e disse fé judaico-teísta de origem para crer
número de religiões dos EUA com o algo assim: “Rubem, vamos deixar no que ele mesmo chamava de uma
número de partidos da França. Deus, Santíssima Trindade, Espíri- religião cósmica. Eu mesmo me sinto
to Santo de lado. Eu quero saber de hoje em dia entre D. Pedro Casaldá-
IHU On-Line – Como avalia o nú- você o seguinte: para onde é que você liga10 (um querido amigo e mestre) e
mero dos sem religião, de acordo com acha que vai quando morrer?” Ele me Einstein.
os dados divulgados no último censo? olhou sério e confidente, e com um
Carlos Brandão – Um dos livros gesto solene apontou para o chão en-
mais interessantes que há para ler tre os seus pés. E me respondeu: “eu
vou para o lugar de onde eu vim há 9 Albert Einstein (1879-1955): físico ale-
trata-se de uma longa entrevista com mão naturalizado americano. Premiado
Umberto Eco5 e com o Cardeal Mar- milhões de anos”. Mas Rubem, eu e com o Nobel de Física em 1921, é fa-
tini6. Um ateu e um crente católico. Pierre, e Frei Betto, e Marcos Arruda, moso por ser autor das teorias especial
e Osmar Fávero, e Luis Eduardo Wan- e geral da relatividade e por suas ideias
Creio que o título do livro é Em que sobre a natureza corpuscular da luz. É,
creem os que não creem (São Paulo: derley, e Lula, e Betinho e Paulo Freire, provavelmente, o físico mais conhecido
Record, 2000). Se não foi este, deve- e tantas e tantos outros, de formas di- do século XX. Sobre ele, confira a edição
versas e com intensidades diferentes, nº 135 da revista IHU On-Line, sob o tí-
tulo Einstein. 100 anos depois do Annus
nunca fomos ou somos capazes de nos Mirabilis, disponível em http://migre.
4 Charles de Gaulle (1890-1970): general identificar propriamente como ateus me/16Mto. A TV Unisinos produziu, a
e presidente da França de 1958 a 1969. (eu... longe disso!); sequer como ag- pedido do IHU, um vídeo de 15 minutos
(Nota da IHU On-Line) em função do Simpósio Terra Habitável,
5 Umberto Eco (1932): autor italiano nóstico (idem). ocorrido de 16 a 19-05-2005, em home-
mundialmente reputado por diversos Não acreditamos mais no que nagem ao cientista alemão, do qual o
ensaios universitários sobre semiótica, acreditávamos. Mas seguimos preci- professor Carlos Alberto dos Santos parti-
estética medieval, comunicação de mas- cipou, concedendo uma entrevista. Leia,
sa, linguística e filosofia, dentre os quais sando acreditar no que acreditamos ainda, a edição 130 da IHU On-Line, de
destacam-se Apocalípticos e Integrados, agora, para seguirmos vivendo uma 28-02-2005, intitulada Einstein: 100 anos
A estrutura ausente e Kant e o ornitorrin- vida... com algum sentido. depois do Annus Mirabilis. João Paulo II.
co. Tornou-se famoso pelos seus roman- Balanço e perspectivas, disponível em
ces, sobretudo O nome da rosa, adaptado Creio que algo semelhante acon- http://migre.me/16Mur e a edição 141,
para o cinema. A ilha do dia anterior; tece com praticamente todas as pes- de 16-05-2005, chamada Terra habitável:
Baudolino e A misteriosa chama da Rai- soas. Clifford Geertz8, em um momen- um desafio para a humanidade, disponí-
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nha Loana são outras de suas obras. (Nota vel em http://migre.me/16MuZ. (Nota da
da IHU On-Line) IHU On-Line)
6 Carlo Maria Martini (1927-2012): te- 7 Rubem Alves (1933): psicanalista, 10 D. Pedro Casaldáliga: bispo prelado de
ólogo jesuíta, profundo conhecedor da educador, teólogo e escritor brasileiro, São Félix, Mato Grosso. É poeta e escritor
Bíblia, cardeal italiano e arcebispo emé- autor de livros e artigos sobre temas de renome internacional. Quando assume
rito de Milão falecido dia 31 de agosto religiosos, educacionais e existenciais, a prelazia de São Felix, em pleno regime
de 2012. Confira a última entrevista que além de uma série de livros infantis. militar, denuncia veementemente o lati-
concedeu, disponível em http://bit.ly/ Com Carlos Rodrigues Brandão é autor fúndio e defende a reforma agrária e o
R8SdaX, sob o título ‘’A Igreja retrocedeu de Encantar o mundo pela palavra (São direito indígena à terra. Foi duramente
200 anos. Por que temos medo?’’. Confi- Paulo: Papirus, 2006). (Nota da IHU On- perseguido pelo regime militar. Pe. João
ra, ainda, a cobertura dada pelo site do Line) Bosco Penido Burnier, jesuíta, foi assassi-
IHU à morte de Martini: Morreu Martini, 8 Clifford James Geertz (1926-2006): nado ao lado dele, no dia 12 de outubro
o bispo do diálogo, em http://bit.ly/TI- antropólogo estadunidense, professor de 1976. A edição 137 da IHU On-Line,
gXZR; Martini, um homem de Deus. Ar- emérito da Universidade de Princeton, de 18 de abril de 2005, publicou uma
tigo de Vito Mancuso, em http://bit.ly/ em Nova Jérsei, nos Estados Unidos. Seu entrevista com Casaldáliga: O próximo
NKt6uv; ‘’A abertura de Martini aos não trabalho no “Institute for Advanced Stu- pontificado será um tempo de transição
crentes foi um ato de responsabilidade’’. dy” de Princeton se destacou pela análise significativo. A edição 89, de 12 de janei-
Entrevista com Massimo Cacciari, em da prática simbólica no fato antropológi- ro de 2004, trouxe entrevista com o re-
http://bit.ly/UkM4Np; A ‘’dura viela’’ da co. Foi considerado, por três décadas, o ligioso, falando sobre a homologação de
morte, segundo Martini, em http://bit. antropólogo mais influente nos Estados terra contínua para índios. (Nota da IHU
ly/TIhSJS. (Nota da IHU On-Line) Unidos. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

56 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Releitura não teísta e como você vive e age em nome dis- Em um momento de visita a uma fá-

Destaques da Semana
Quando converso com vários so?”, do que com “em que Deus você brica, ela teria ousado se aproximar
amigos que foram como eu cristãos crê para estar aqui ao meu lado fazen- de um velho operário, e com a ajuda
católicos engajados em algum movi- do o que eu faço?” (e não faria sem de um tradutor teria, em meio a uma
mento de igreja, vejo que uma soma você). breve conversa não protocolar, feito
considerável deles (eu incluído) está a ele esta pergunta: “diga, você é ca-
precisando agora realizar uma espécie IHU On-Line – Em entrevista an- tólico?” E ele teria respondido: “sou
de releitura não teísta em sua fé para terior11, o senhor falava da “larga ma- crente, senhora, mas não praticante”.
poder se manter ainda cristão, mesmo lha do catolicismo”. Ela aparece nos A seguir ela teria ousado esta outra
que já não mais restritamente... católi- dados do censo 2010? Como ela pode pergunta: “E comunista... você é?”
co. Muitos de nós precisamos crer que ser descrita? E sábia (e silenciosamente) ele teria
o próprio Jesus nunca foi o Cristo; nun- Carlos Brandão – Concordo com respondido: “sou praticante, senhora,
ca foi um “deus enviado a Terra para Pierre, e acho que acima falei algo so- mas não crente!” Guardadas das dife-
nos salvar de nosso próprio pecado bre isso. Uma das peculiaridades do renças de tempo e espaço, creio que
coletivo”, para acreditarmos não na catolicismo de herança grega (língua este diálogo serve para uma infinidade
mitologia, mas nas substâncias huma- em que ele foi originalmente difun- de pessoas em nós e entre nós.
na dos evangelhos. dido, quando ainda primitivamente
Não precisamos mais de um cristão), bem mais do que em sua fe- IHU On-Line – Como podemos
deus-homem milagreiro que “morreu chada herança judaica, é esta sua ain- definir o pluralismo religioso? De que
para nos salvar”, e depois ressuscitou da viva e presente capacidade de se maneira ele aparece nos dados do
para nos dizer que isso irá acontecer multifacetar. De não apenas abrir-se censo 2010? Quais são as suas prin-
com todos nós (pelo menos com o pe- a “salvos e a pecadores” (na verdade cipais características, possibilidades e
queno rol “dos salvos”). Precisamos de mais a pecadores do que a salvos, ao cenários futuros?
um homem-deus (justamente porque contrário de várias pequenas igrejas Carlos Brandão – De novo con-
humano) que, entre vários outros, nos evangélicas, ou de padrão mórmon cordo muito com Pierre. Apenas não
diga palavras de sentido e nos envolva ou testemunhas de Jeová), e de criar devemos esquecer que no sábio curso
de gestos de ternura... para que saiba- pluriespaços. Espaços de fé, crença e da história humana, nada é definitivo.
mos como viver e para onde ir, mesmo vida, que vão da mais solitária indivi- Tendência social e/ou cultural alguma
que não haja “um céu para os eleitos”. dualidade à mais explosiva multidão. se impõe para sempre. Não creio em
Entre meus alunos, entre ami- Cenários destinados a abrigar, a cada eterno retorno (nem em calendário
gos, e especialmente entre pessoas lugar de cultura e em cada momento maia), mas acredito que, assim como
do povo com quem convivo, nunca en- de sua trajetória na história, as mais uma era se define por uma tendência,
contrei alguém que diga: “eu não acre- diversas alternativas de: em uma outra logo depois pode seguir
dito em nada!” E creio mesmo que a) ser cristão-católico sem ser ca- uma direção oposta. Não esqueçamos
quando alguém diz isso, diz algo pro- tólico confessante (algo diferente do que não apenas Walter Benjamim12
visório. João Guimarães Rosa lamenta, “católico nominal”); (ele mesmo um suicida em desespero...
ainda no Grande sertão: veredas, que b) ser católico confessante (“eu por ser um judeu) lembra que “a bar-
“pra muita coisa falta nome”. No caso sou católico”) sem ser católico prati- bárie pode sempre retornar entre nós”.
da religião e do círculo mais amplo cante (“vivo minha religião à minha Se me perguntarem o que é “plu-
(do qual ela faz parte) dos sistemas de maneira e não preciso de papa nem ralismo” (dentro e fora da religião), o
sentido, penso que falta mais ainda. padre”); que são multialternativas de sentido e
c) ser católico praticante sem ser de projeto de vida; o que é biodiversi-
O ateu católico participante (“vou na missa, dade, multidiversidade cultural, etc.,
Na sua própria fórmula tradicio- comungo, observo as normas da igre- gosto de responder dizendo que nun-
nal, ateu é uma palavra que indica ja, mas não me chamem para fazer ca soube bem o que é tudo isso. Só sei
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um negativo: “em que você não crê”. coisa alguma em nome dela”); que, em direção oposta ao “admirável
No entanto, a maioria dos ateus que d) ser católico participante sem mundo novo”, tudo isso haverá de ser o
conheço acredita profundamente em ser católico praticante (“em nome de que salvará a vida da extinção e o que
algo, que não raro me parece ultrapas- minha fé vivo uma vida de testemunho salvará a humanidade da barbárie.
sar as fronteiras de minhas mutantes e junto ao povo, mas não me chamem
indecisas crenças. para missas, confissões e procissões”); IHU On-Line – O que o censo re-
E entre aqueles que hoje vejo e) (escolha você a sua alternativa vela em relação à postura dos jovens
envolvidos no que no passado cos- e preencha com ela este espaço). diante da religião? Qual é a tendên-
tumávamos chamar de obras cristãs, Contaram-me, há muito anos,
sobretudo as mais substantivamente que nos tempos da Cortina de Ferro a 12 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo
comprometidas com o povo e a sua Rainha da Inglaterra, depois de longas alemão crítico das técnicas de reprodução
em massa da obra de arte. Foi refugiado
história, vejo que ateus, agnósticos, negociações, fez uma visita à Polônia. judeu alemão e diante da perspectiva de
buscadores de fé e cristãos se mistu- ser capturado pelos nazistas, preferiu o
ram e interagem muito mais preocu- suicídio. Um dos principais pensadores
11 Disponível em http://migre.me/ da Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-
pados com “qual o sentido de sua vida a36SG. (Nota da IHU On-Line) Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 57


cia religiosa a ser seguida pelas novas verso nos coloniza a vida e destino o digam); um homem troca de tudo.
Destaques da Semana
gerações? em um mundo dominado pela re- Só não troque a vida inteira de time de
Carlos Brandão – Assino embaixo gência do capital, da ganância, do futebol”. Será mesmo?
do que disse Pierre. Mas pergunto a consumismo, do lucro, da competi-
vocês: “Por que é que vocês não per- ção, da espetacularização de tudo IHU On-Line – Gostaria de acres-
guntam isso aos jovens?” em um máximo de momentos. Tudo centar algo?
o que o “negócio” propõe e que a Carlos Brandão – Apenas dois
IHU On-Line – Qual a peculiarida- mídia impõe a nossas mentes e aos pontos também.
de dos evangélicos pentecostais em nosso corações. E dos nossos filhos e O primeiro – já esboçado em ou-
relação aos evangélicos de missão? O netos, mais ainda. tros momentos – é o valor de um cen-
que levou, de acordo com dados do Procure ver por que desapare- so mais qualitativo alargar o campo da
último censo, o primeiro a crescer e o cem das universidades particulares religião para compreender mais a fun-
segundo a decrescer? e mínguam entre as públicas cursos do o que, de fato, se passa na religião.
Carlos Brandão – Para pesarmos como filosofia e de pedagogia, e por- O segundo – agora que ando a ca-
isso é preciso alargar o olhar também. que proliferam os de administração minho da velhice e sem a mesma “sóli-
Olhar para além do mundo das religi- de negócios, de turismo, de hotelaria da crença católica dos velhos tempos”
ões, e até mesmo para além do mun- e de gastronomia. Passe por um ban- – é este: creio que em nós e entre nós
do mais amplo dos sistemas culturais ca de jornais e revistas e veja se algo precisamos desmistificar um pouco a
de sentido. Da camisinha à pasta de semelhante não acontece ali também. sacralidade individualizante de nossas
dente, dela ao xampu, dele à enorme Visite depois uma boa livraria e per- próprias vidas religiosas.
variedade de pizzas, de programas de gunte pelos best-sellers dos últimos Nós, professores e intelectuais de
entretenimento na TV, de redes so- meses. E depois procure compreender várias áreas, que em nossas diversas
ciais na internet, de alternativas de se é algo diverso ou se não é alguma rodas de conversa somos capazes de
cursos universitários e outros, a todo coisa muito semelhante com o que se passar longas e nem sempre fecundas
o momento surge e ressurge o novo, o passa no mundo complexo e imprevi- horas discutindo entre nós, seja o mo-
nunca visto, o “revolucionário”. E sem- sível da religião. mento político mundial ou... “futebol”
pre novas reais ou falsas modalidades Não sei se vocês já viram um fra- (com acaloradas tertúlias a partir da
de tudo o que há para ser, pensar, vi- seado corrente entre times de futebol, confissão aberta de “pra que time eu
ver ou comprar, estão competindo e, e algo que se encontra até mesmo im- torço”), temos uma imensa dificulda-
não raro, desbancando as alternativas presso em camiseta de torcedores. Em de de passar do falar da religião em
anteriores. síntese, ele repete a seguinte máxima: geral, ou da religião dos outros (espe-
“um homem troca de mulher, troca de cialmente a que eu pesquiso) para “a
Sociedade do capital país, troca de religião, troca de empre- religião (ou aquilo em que) eu creio!”
Vivemos uma sociedade mun- go, troca de pasta de dentes, troca de Por quê?
dial sequiosa de tudo o que de per- partido político (nossos políticos que

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58 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Livro da Semana

Destaques da Semana
TEIXEIRA, Faustino (Org.). Caminhos da mística.
São Paulo: Paulinas, 2012.

A mística e o enfrentamento
radical da miséria humana
Aspecto religioso e cultural constituinte das manifestações básicas do homem,
a mística não é escapismo do mundo, mas é caminho contra a “compulsão
à emissão”, cujo maior remédio é o silêncio meditativo, acentua
Eduardo Guerreiro B. Losso

Por Márcia Junges

F
enômeno existencial e experiencial hu- diocridade atual e apontam saídas valiosas
mano mal compreendido ao longo da para ela, desde que o conteúdo tradicional
história do pensamento, a mística foi mesmo não deixe de passar por um processo
abordada extensamente, mas também so- de secularização e transformação, o que im-
freu recalque “tanto por um investimento plica aceitar, a meu ver, os aspectos emanci-
institucional eclesiástico quanto acadêmico patórios da modernidade”.
laico”, afirma Eduardo Guerreiro B. Losso na Eduardo Guerreiro Brito Losso é mestre e
entrevista que concedeu por e-mail à IHU On- doutor em Letras pela Universidade Federal
-Line. Segundo ele, a mística foi um dos as- do Rio de Janeiro - UFRJ e Universität Leipzig,
suntos mais estudados no século XIX e, mais Alemanha, orientado por Christoph Türcke,
ainda, no século XX. “Insisto que a mística, com a tese Teologia negativa e Theodor Ador-
seja tradicional, seja moderna, não é escapis- no. A secularização da mística na arte mo-
mo, nem do mundo, nem do vazio existencial derna. Na Universidade do Estado do Rio de
do homem moderno, muito pelo contrário”, Janeiro - UERJ cursou pós-doutorado. Leciona
argumenta. E completa: “Os estados bem- na Universidade Federal Rural do Rio de Janei-
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-aventurados dos místicos não existem sem ro - UFRRJ e é um dos autores de O carnaval
enfrentamento radical da miséria humana. carioca de Mario de Andrade (Rio de Janeiro:
Como o mundo de hoje é escapista e ligeiro Azougue Editorial, 2011). Conheça seu site
por definição, a prática e a teoria da mística http://www.eduardoguerreirolosso.com/
são fatores essenciais para uma crítica da me- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o objetivo no Seminário de mística comparada, a consistência, insistência e avanço
da obra Caminhos da mística? Há um desde 2001, organizado por Fausti- constante no tratamento de questões
fio condutor que unifica os diferentes no Teixeira, que congrega diversos específicas e gerais do que podemos
artigos publicados? pesquisadores do Brasil dedicados considerar um verdadeiro movimen-
Eduardo Guerreiro B. Losso – O especialmente a esse assunto. Ele já to de teóricos da mística no Brasil. O
livro divulga os trabalhos realizados é o terceiro publicado e comprova esforço de Faustino e a constância de

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 59


todos os envolvidos no Seminário de- medieval, até a filosofia e poesia mo- tes formas de arroubo, observa-se o
Destaques da Semana
monstra que a mística não deve ser derna, mas também na reincidência embate de diferentes culturas que
tratada nem com o desprezo de quem de temas e questões comuns: ligação entraram em interação e formaram
não conhece sua profunda impor- entre vida contemplativa e ativa, ex- o Brasil. Os poetas arcádicos funda-
tância para o pensamento e cultura periência de iluminação, etapas do ram uma Arcádia Ultramarina, como
ocidental, bem como de todas as civi- caminho espiritual, riqueza simbólica descobriu Antonio Candido5, que as-
lizações, nem relegada a um papel se- da poética mística, estatuto do con- sumiu a função de ligar oficialmen-
cundário como fator de erudição dis- ceito de mística na discussão de uma te escritores brasileiros a uma ins-
tante de nossa realidade atual. Nesse modernidade e pós-modernidade crí- tituição europeia e promover uma
sentido, o livro é definitivo para apre- tica à metafísica. sociabilidade que, juntamente com
sentar o vigor da produção acadêmi- o debate e troca de ideias, consti-
ca brasileira no tratamento desse as- IHU On-Line – Como esse livro se tuiu também espécie de sociedade
sunto “estranho e essencial”, como o insere dentro do contexto brasileiro esotérica com características pecu-
definiu Michel de Certeau1, bem como e internacional sobre o debate dessa liares. Este mesmo arcadismo pro-
para enfrentar o desafio de pensar a temática? duziu toda uma poética do deserto
importância das tradições místicas e Eduardo Guerreiro B. Losso – O desolado, feito de “duras penhas”,
a atualidade de seu impulso transfor- papel de obras que poderemos cha- que remetiam ao deserto bíblico dos
mador e de sua experiência, individu- mar de místicas ou movimentos e profetas e dos ascetas.
al e coletiva, na contemporaneidade, práticas que estão ligadas à temática
dentro de um debate internacional e é determinante na cultura ocidental Ânsia ao inefável e do impreciso
nacional. e, mais ainda, em culturas orientais. O romantismo, por outro lado,
O fio condutor do livro me pa- A mística é um aspecto religioso e introduziu a mística propriamente tro-
rece estar não só numa sequência cultural constituinte das manifesta- pical da floresta, e o simbolismo de
que respeita a cronologia histórica ções básicas do homem. Estudos de Cruz e Souza e Alphonsus de Guima-
de Plotino2, mística oriental, mística mística despontam já no século XIX e raens deram grande expressão a uma
são surpreendentemente abundan- ânsia ao inefável e do impreciso que
tes na antropologia, teologia, estudos é emblemática de uma ascese poética
1 Michel de Certeau (1925-1986):
intelectual jesuíta francês. Foi ordenado literários, filosofia, sociologia e psico- solitária. No século XX, mesmo ateus
na Companhia de Jesus em 1956. Em logia. O estudioso, hoje, tem muita como Mario de Andrade6 viam nas ma-
1954 tornou-se um dos fundadores da
revista Christus, na qual esteve envolvido
dificuldade de traçar um panorama
durante boa parte de sua vida. Lecionou razóavel, ainda que Bernard Mcginn e 5 Antonio Candido de Mello e Souza
em várias universidades, entre as quais Certeau tenham feito tentativas nes- (1918): escritor, ensaísta e professor
Genebra, San Diego e Paris. Escreveu universitário, um dos principais críticos
diversas obras, dentre as quais La Fable
se sentido. literários brasileiros. É professor
mystique: XVIème et XVIIème siècle A questão da mística sempre emérito da USP e UNESP, e doutor
(Paris: Gallimard, 1982); Histoire et teve um papel considerável ao longo honoris causa da Unicamp. Foi crítico
psychanalyse entre science et fiction da revista Clima (1941-4) e dos jornais
(Paris: Gallimard, 1987); La prise de
do pensamento brasileiro. Alfredo Folha da Manhã (1943-5) e Diário de
parole. Et autres écrits politiques Bosi3 destacou o conteúdo místico São Paulo (1945-7). Na vida política,
(Paris: Seuil, 1994). Em português, jesuíta das obras poéticas de José participou de 1943 a 1945 na luta contra
citamos A escrita da história (Rio de a ditadura do Estado Novo no grupo
Janeiro: Forense Universitária, 1982) e A
de Anchieta4 e seu contraste com os clandestino Frente de Resistência.
invenção do cotidiano (3ª ed. Petrópolis: rituais tupi, onde, em suas diferen- Escreveu o clássico Parceiros do Rio
Vozes, 1998). Sobre Certeau, confira Bonito (1964). Sobre ele, conferir as
as entrevistas Michel de Certeau ou a entrevistas “A literatura é um direito
erotização da história, concedida por chamada Platonópolis, baseada nos do cidadão, um usufruto peculiar”,
Elisabeth Roudinesco, e As heterologias ensinamentos da República de Platão. concedida por Flávio Aguiar à IHU On-
de Michel de Certeau, concedida por Plotino dividia o universo em três Line nº 278, de 20-10-2008, intitulada
Dain Borges, ambas à edição 186 da hipóstases: o Uno, o Nous (ou mente) e a A financeirização do mundo e sua
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IHU On-Line, de 26-06-2006, disponíveis alma. (Nota da IHU On-Line) crise. Uma leitura a partir de Marx, e
para download em http://bit.ly/PUWt3r. 3 Alfredo Bosi (1936): professor “Antonio Candido e a crítica cultural
As mesmas entrevistas podem ser universitário, crítico e historiador de contemporânea”, concedida por Célia
conferidas na edição 14 dos Cadernos literatura brasileira. É um dos imortais da Pedrosa à IHU On-Line nº 283, de 24-
IHU em Formação, intitulado Jesuítas. Academia Brasileira de Letras. Escreveu, 11-2008, intitulada As Ciências Sociais,
Sua identidade e sua contribuição para entre outros, Bras Cubas em três versões hoje. Os 50 anos do curso de Ciências
o mundo moderno, disponível para (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, Sociais da Unisinos. (Nota da IHU On-
download em http://bit.ly/RDt60r. (Nota 2006) e História concisa da literatura Line)
da IHU On-Line) brasileira (44ª ed. São Paulo: Cultrix, 6 Mário Raul de Morais Andrade
2 Plotino (205-270): filósofo egípcio, 2007). (Nota da IHU On-Line) (1893-1945): poeta, romancista,
discípulo de Amônio Sacas e mestre de 4 Beato José de Anchieta (1534-1597): musicólogo, historiador, crítico de
Porfírio, que nos legou seus ensinamentos jesuíta espanhol, um dos fundadores de arte e fotógrafo brasileiro. Um dos
em seis livros de nove capítulos cada, São Paulo e declarado beato pelo papa fundadores do modernismo brasileiro,
chamados de As Enéadas. Acompanhou João Paulo II. É chamado de Apóstolo praticamente criou a poesia moderna
uma expedição à Pérsia, onde tomou do Brasil. Tendo o padre Manuel da brasileira com a publicação de seu
contato com a filosofia persa e indiana. Nóbrega, Provincial dos Jesuítas no livro Paulicéia Desvairada, em 1922.
Regressou à Alexandria e, aos 40 anos, Brasil, solicitado mais sacerdotes para a Exerceu uma influência enorme na
estabeleceu-se em Roma. Desenvolveu atividade de evangelização do Brasil, o literatura moderna brasileira e, como
as doutrinas aprendidas de Amônio numa Provincial da Ordem, Simão Rodrigues, ensaísta e estudioso (foi um pioneiro
escola de filosofia com seleto gupo de indicou, entre outros, José de Anchieta. do campo da etnomusicologia) sua
alunos. Pretendia fundar uma cidade (Nota da IHU On-Line) influência transcendeu as fronteiras do

60 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


nifestações mais ardentes da cultura como poetas como Murilo Mendes 10e de Lima Vaz12 e Leonardo Boff13. No

Destaques da Semana
brasileira, como o carnaval, a ocasião Jorge de Lima11, que aprofundaram as
de uma experiência extática. Mário perspectivas da questão. 12 Henrique Cláudio de Lima Vaz
diz que havia uma mulata no carna- Embora vários pesquisadores (1921 – 2002): filósofo e padre jesuíta,
val do Rio que “dançava com religião”, reconheçam a importância da místi- autor de importante obra filosófica. A
IHU On-Line número 19, de 27-05-2002,
como disse numa carta a Drummond7; ca tanto no plano filosófico como na disponível em http://migre.me/Dto9,
a “gente chamada baixa e ignorante” cultura brasileira, não apareceram dedicou sua matéria de capa à vida e à
continha para ele uma sabedoria de abordagens diretas a esse respeito obra de Lima Vaz, com o título Sábio,
humanista e cristão. Sobre ele também
conservar “espírito religioso da vida e senão entre teólogos como Henrique pode ser consultado na IHU On-Line nº
fazem tudo sublimemente num ritual 140, de 09-05-2005, um artigo em que
esclarecido de religião”, marcando aí comenta a obra de Teilhard de Chardin,
disponível em http://migre.me/Dtoo.
um acento na experiência coletiva e A revista Síntese. Revista de Filosofia,
não só pessoal. Isso sem contar com a n. 102, jan.-ab. 2005, p. 5-24, publica
mística muito explícita dos dois maio- o artigo Um Depoimento sobre o Padre
mineiro para o universalismo, oscilando Vaz, de Paulo Eduardo Arantes, professor
res escritores de nosso século, Clarice entre o realismo épico e o mágico, do Departamento de Filosofia da USP,
Lispector8 e Guimarães Rosa9, bem integrando o natural, o místico, o que merece ser lido e consultado com
fantástico e o infantil. Entre suas obras, atenção. Celebrando a memória do
citamos: Sagarana, Corpo de baile, Padre Vaz, a edição 142, de 23-05-2005,
Brasil. Andrade foi a figura central do Grande sertão: veredas, considerada publicou a editoria Memória, disponível
movimento de vanguarda de São Paulo uma das principais obras da literatura para download em http://migre.me/
por vinte anos. (Nota da IHU On-Line) brasileira, Primeiras estórias (1962), DtoL. Confira, ainda, os seguintes
7 Carlos Drummond de Andrade (1902- Tutaméia (1967). A edição 178 da IHU On- materiais, publicados pela IHU On-Line:
1987): poeta brasileiro, nascido em Minas Line, de 02-05-2006, dedicou ao autor a a Entrevista da Semana intitulada Vaz
Gerais. Além de poesia, produziu livros matéria de capa, sob o título “Sertão é e a filosofia da natureza, com Armando
infantis, contos e crônicas. Confira a do tamanho do mundo”. 50 anos da obra Lopes de Oliveira, na edição 187, de 03-
edição 232 da Revista IHU On-Line, de 20- de João Guimarães Rosa, disponível para 07-06, disponível em http://migre.me/
08-2007, intitulada Carlos Drummond de download em http://migre.me/qQX8. De DtoR; a entrevista Vaz: intérprete de
Andrade: o poeta e escritor que detinha 25 de abril a 25-05-2006 o IHU promoveu uma civilização arreligiosa, com Marcelo
o sentimento do mundo, disponível em o Seminário Guimarães Rosa: 50 anos de Fernandes de Aquino, na edição 186, de
http://migre.me/qR6O. (Nota da IHU Grande Sertão: Veredas. Confira, ainda, 26-06-06, disponível em http://migre.
On-Line) a edição 275 da Revista IHU On-Line, de me/Dtp2; os Artigos da Semana intitulados
8 Clarice Lispector (1920-1977): 29-09-2008, intitulada Machado de Assis O comunitarismo cristão e a refundação
escritora nascida na Ucrânia. De família e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil, de uma ética transcendental, na edição
judaica, emigrou para o Brasil quando disponível em http://bit.ly/mBZOCe. 185, de 19-06-06, disponível em http://
tinha apenas dois meses de idade. (Nota da IHU On-Line) migre.me/Dtpc, e Um diálogo cristão
Começou a escrever logo que aprendeu 10 Murilo Mendes (1901-1975): um dos com o marxismo crítico. A contribuição
a ler, na cidade de Recife. Em 1944 mais importantes poetas brasileiros, de Henrique de Lima Vaz, na edição
publicou seu primeiro romance, Perto do nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. 189, de 31-07-06, disponível em http://
coração selvagem. A literatura brasileira Publicou seu primeiro livro, Poemas, em migre.me/DtpD, ambos de autoria do
era nesta altura dominada por uma 1930, ano em que também estréia o poeta Prof. Dr. Juarez Guimarães. Inspirada no
tendência essencialmente regionalista, Carlos Drummond de Andrade. Recebeu, pensamento de Lima Vaz, a IHU On-Line
com personagens contando a difícil em 1972, o prêmio internacional de poesia edição 197, de 25-09-2006 trouxe como
realidade social do país na época. Etna-Taormina. Nesse ano veio ao Brasil tema de capa A política em tempos de
Lispector surpreendeu a crítica com pela última vez. Ao lado de seus livros, niilismo ético, disponível para download
seu romance, quer pela problemática Murilo Mendes também publicou muito na em http://migre.me/DtpM. Nessa edição,
de caráter existencial, completamente imprensa, em especial artigos sobre artes confira especialmente as entrevistas com
inovadora, quer pelo estilo solto plásticas, tendo ainda escrito muitos Juarez Guimarães, intitulada Crise de
elíptico, e fragmentário, reminiscente textos para catálogos de exposições de fundamentos éticos do espaço público, e
de James Joyce e Virginia Woolf, ainda arte. (Nota da IHU On-Line) a entrevista com Marcelo Perine, Padre
mais revolucionário. Seu romance mais 11 Jorge de Lima (1893-1953): Médico Vaz e o diálogo com a modernidade.
famoso embora menos característico quer e poeta, de Lima nasceu em Alagoas. Esse tema, em específico, foi abordado
temática quer estilísticamente, é A hora Estudou Medicina em Salvador, por Perine em uma conferência em 22-
da estrela, o último publicado antes de transferindo-se para o Rio de Janeiro, 05-2007, no Simpósio Internacional O
sua morte. Neste livro a vida de Macabéa, onde defendeu tese sobre os serviços futuro da Autonomia. Uma sociedade de www.ihu.unisinos.br
uma nordestina criada no estado Alagoas de higiene na capital federal. Ainda indivíduos? Na edição 186 da IHU On-
e vai morar no Rio de Janeiro, e vai morar estudante de Medicina, publicou seu Line, de 26-06-2006, o reitor da Unisinos,
em uma pensão, tendo sua vida descrita primeiro livro, XIV Alexandrinos (1914). Prof. Dr. Marcelo Aquino, SJ, concedeu
por um escritor fictício chamado Rodrigo Após ter se formado, retornou a Maceió. a entrevista Vaz, intérprete de uma
S.M. Sobre a autora, confira a edição Sem jamais ter abandonado a Medicina, civilização arreligiosa. Confira no link
228 da IHU On-Line, de 16-07-2008, lecionou na Escola Normal Estadual da http://migre.me/DtpU. Leia, também,
intitulada Clarice Lispector. Uma pomba cidade, chegando a ser diretor. Ocupou a edição especial da IHU On-Line sobre
na busca eterna pelo ninho, disponível outros cargos públicos estaduais, como o legado filosófico vaziano: edição 374,
para download em http://migre.me/ Diretor-Geral da Instrução Pública e Saúde de 26-09-2011, Henrique Cláudio de
qQHT. (Nota da IHU On-Line) e Deputado, além de manter constante Lima Vaz. Um sistema em resposta ao
9 João Guimarães Rosa (1908-1967): seu interesse pelas artes plásticas. Em niilismo ético, disponível em http://bit.
escritor, médico e diplomata brasileiro. 1930, transfere-se, definitivamente, para ly/qE7Dm8. (Nota da IHU On-Line)
Como escritor, criou uma técnica de o Rio de Janeiro, onde clinica e leciona 13 Leonardo Boff (1938-): teólogo
linguagem narrativa e descritiva pessoal. Literatura Brasileira, nas Universidades brasileiro, autor de mais de 60 livros
Sempre considerou as fontes vivas do do Brasil e do Distrito Federal. Em 1925 nas áreas de teologia, espiritualidade,
falar erudito ou sertanejo, mas, sem foi eleito vereador, ocupando, três anos filosofia, antropologia e mística. Boff
reproduzi-las num realismo documental, mais tarde, a presidência da Câmara, escreveu um depoimento sobre as razões
reutilizou suas estruturas e vocábulos, no Rio de Janeiro. Em 1945, entrou em que ainda lhe motivam a ser cristão,
estilizando-os e reinventando-os num contato com o Modernismo nacionalista publicado na edição especial de Natal
discurso musical e eficaz de grande beleza e, em 1935, converteu-se ao Catolicismo. da IHU On-Line, número 209, de 18-
plástica. Sua obra parte do regionalismo (Nota da IHU On-Line) 12-2006, disponível em http://bit.ly/

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 61


ramo dos estudos literários, destaco no até nossos dias, nas relações com tencial e experiencial integrante do
Destaques da Semana
o trabalho de Suzi Frankl Sperber, es- a filosofia e a poesia moderna? homem, mas foi, ao longo da história
pecificamente com Guimarães Rosa Eduardo Guerreiro B. Losso – do pensamento, mal compreendido
já no final dos anos 1960 e ao longo Para ser breve numa pergunta tão e, mesmo quando foi extensamente
dos anos 1970, para depois se dedicar abrangente, eu diria que a mística gre- abordado (isso ocorreu não poucas
à correlação entre literatura e sagrado ga, judaica, cristã, sufi, hindu e budista vezes), foi também curiosamente
em geral. Vejo nessa primeira geração são integrantes das grandes civiliza- recalcado tanto por um investimen-
uma preocupação teórica geral, no ções. O artigo de Carlos Frederico Bar- to institucional eclesiástico quanto
caso dos teólogos, ou como pensa- boza15 sobre Attar é um exemplo de acadêmico laico. Digo com toda se-
mento de seu traço marcante em de- mística árabe, mas o livro dá mais ên- gurança que a mística foi um dos as-
terminadas obras literárias, fundando fase na cristã, por ser a mais próxima. suntos mais estudados no século XIX
um primeiro olhar para os estudos O xamanismo das diferentes tradições e, mais ainda, no século XX. Dos anos
brasileiros. indígenas é também importante e faz 1920 aos 1940 houve um verdadeiro
Penso que Faustino Teixeira, Luiz parte de um lado do Brasil originário e boom de interesse sobre ela e, de-
Felipe Pondé14 e Maria Clara Bingue- sempre mal compreendido. pois, a produção não parou de cres-
mer, fundadores do Seminário, são Todas essas tradições tiveram cer, com várias polêmicas, rupturas
já de uma segunda geração, que tra- uma profunda influência na filosofia e e transformações. Contudo, ela con-
balha com a mística de forma mais literatura modernas, mas discernir em tinuou sendo marginal, pois quem
específica e abrangente ao mesmo termos históricos e textuais como isso não a conhece tende a desprezá-la e
tempo, dedicando-se a vários autores se deu em cada manifestação é uma alimentar um olhar preconceituoso
das místicas tradicionais – escritores, tarefa complexa e exige exames espe- que podemos chamar até de rústico,
filósofos e teólogos – de diferentes cíficos. Por isso é necessário, de um pois ele confunde o apelo mercado-
épocas e culturas. Eu e Marcus Reis lado, um trabalho de imersão num ob- lógico da mística com a consistência
Pinheiro, bem como os vários outros jeto estranho de outra época e cultu- de suas tradições e a consistência
ex-orientandos dos três, somos, nesse ra, respeitando sua singularidade; de das pesquisas sobre elas. Então,
caso, da terceira geração e esticamos outro, um trabalho de mística compa- se há preconceito rude e grosseiro
ainda mais o leque das manifestações, rada, que pense as similaridades e di- entre os acadêmicos ignorantes da
seja, no caso do Marcus, para a anti- ferenças entre as diferentes culturas e mística, nós, pesquisadores dela, po-
guidade grega, seja, no meu caso, para épocas, assim como entre as tradições demos responder a eles: nós somos
a mística na literatura moderna. e a cultura moderna e, finalmente, um mais modernos e avançados do que
trabalho de teorização que encontre a vocês.
IHU On-Line – Em linhas gerais, função dessas análises na reformula- Há, por isso mesmo, o outro
quais são as grandes correntes de ção da história da cultura e os concei- lado do problema: o apelo da mís-
compreensão da mística desde Ploti- tos das ciências humanas envolvidos. tica fomenta ilusão e subterfúgios e
É nesse último ponto que o meu artigo entra no círculo consumista do mer-
iBjvZq, e concedeu uma entrevista sobre
e o de José Carlos Michelazzo incidem. cado de autoajuda. A importância da
a Teologia da Libertação na IHU On-Line discussão acadêmica está, antes de
número 214, de 02-04-2007, disponível IHU On-Line – Qual é a importân- tudo, em formular uma crítica des-
em http://bit.ly/kaibZx. Na edição 238,
de 01-10-2007, intitulada Francisco. O
cia da discussão acadêmica acerca da se uso abusivo das tradições, que
santo, concedeu a entrevista A ecologia mística? em geral não se prestam a esse tipo
exterior e a ecologia interior. Francisco, Eduardo Guerreiro B. Losso – de deformação. Depois, para fazer
uma síntese feliz, disponível em http://
bit.ly/km44R2. (Nota da IHU On-Line)
Imensa. Como é um fenômeno exis- jus a sua grandeza, ela pensa com
14 Luiz Felipe Pondé: filósofo brasileiro, propriedade questões existenciais
leciona na Pontifícia Universidade de vasto alcance: a negatividade do
Católica de São Paulo – PUCSP e na 15 Carlos Frederico Barboza de Souza:
niilismo, embate com a morte, me-
www.ihu.unisinos.br

Universidade Federal de São Paulo doutor em Ciência da Religião pela


– UNIFESP, entre outras instituições. Universidade Federal de Juiz de Fora – lancolia, sofrimento humano; e a
Graduado em Medicina, pela Universidade UFJF, professor de Cultura Religiosa e positividade do êxtase, estado de
Federal da Bahia, e em Filosofia Pura, Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso
pela USP, é mestre em História da da Pontifícia Universidade Católica de
graça, silêncio meditativo, tranquili-
Filosofia Contemporânea e em Filosofia Minas Gerais – PUC Minas e coordenador dade da alma, leveza, alegria. Logo,
Contemporânea, respectivamente pela do Anima PUC Minas, Sistema Avançado não há aqui lugar para escapismo. Os
USP e pela Université de Paris VIII, de Formação. Também é autor do livro
França. Doutor em Filosofia Moderna A mística do coração (Edições Paulinas,
estados bem-aventurados dos místi-
pela USP e pós-doutor pela Universidade 2010) e da coleção de Ensino Religioso cos não existem sem enfrentamento
de Tel Aviv, Israel, escreveu O homem Construindo a vida (Editora Fumarc). radical da miséria humana.
insuficiente (São Paulo: Edusp, 2001); Confira as entrevistas que concedeu à IHU
Crítica e profecia. Filosofia da religião On-Line: Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa
Como o mundo de hoje é esca-
em Dostoievski (São Paulo: Editora 34, de Jesus: a busca do Amado de forma pista e ligeiro por definição, a prática
2003); Conhecimento na desgraça. Ensaio intensa e gratuita, disponível em http:// e a teoria da mística são fatores essen-
de epistemologia pascaliana (São Paulo: bit.ly/ufZa1z; Sufismo: uma mística que
Edusp, 2004), entre outros. A entrevista busca o equilíbrio, disponível em http://
ciais para uma crítica da mediocridade
mais recente que concedeu à IHU On-Line bit.ly/dXDqVG; A mística de Rûmî e o atual e apontam saídas valiosas para
é “Perdão tem que ser graça”, na edição ser humano autônomo contemporâneo, ela, desde que o conteúdo tradicional
388, de 09-04-2012, disponível em http:// disponível em http://bit.ly/uEC61n.
bit.ly/HskR3E. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)
mesmo não deixe de passar por um

62 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


processo de secularização e transfor- já diziam que na debilidade do ins- a mais que se situa fora dele. Para

Destaques da Semana
mação, o que implica aceitar, a meu tante está contida a eternidade divi- mim, essa experiência do “fora” não
ver, os aspectos emancipatórios da na. No meu artigo, procuro demons- tem como não ser poética e, nesse
modernidade. trar que, quando Murilo Mendes caso, poesia e mística não se diferen-
escreve que “Cada instante assume ciam. Somente a experiência mística
IHU On-Line – Como se pode per- um século”, que “Assisto crescerem proporciona um destaque do mundo
ceber a dimensão mística na poesia os cabelos dos minutos / No instan- no mundo, uma ruptura com a in-
moderna? te da eternidade”, encontramos uma justiça do sistema e a monotonia do
Eduardo Guerreiro B. Losso – operação de secularização da mística cotidiano que serve de fundamento
Baudelaire16, primeiro poeta moder- tradicional na retomada do motivo da ontológico e prático para a esperan-
no e primeiro teórico da literatura eternidade do instante. Esse motivo é ça, que, por sua vez, move a ativida-
moderna, define modernidade com tão intrínseco ao conceito de moder- de crítica.
a reunião “do transitório, efêmero e nidade que eu termino com a consta-
contingente” com o “eterno e imutá- tação de que, para ser absolutamente IHU On-Line – Por que a mística é
vel”. Por isso seus esforços estavam moderno, é preciso ser minimamente compreendida por alguns como “fuga
em descrever o choque da vida pa- místico. do mundo”? Qual é o seu verdadeiro
risiense e contrastar com as “corres- significado e o que ela tem a desvelar
pondências” da experiência com a IHU On-Line – De que forma crí- para as pessoas do nosso tempo?
natureza. Logo, no despontar da po- tica e mística podem estabelecer um Eduardo Guerreiro B. Losso – A
esia moderna e de sua teorização, há diálogo em nosso tempo? Qual seria mística é compreendida assim por-
o desafio de imprimir na vida urbana a importância desse encontro? que grande parte (mas não todas)
a chispa extática. Os exercícios poéti- Eduardo Guerreiro B. Losso – de suas manifestações tradicionais
cos na vida cosmopolita darão moti- Segundo Adorno18, o mundo existen- exigia a recusa da integração do ho-
vos para o poeta se sentir fracassado te (principalmente no Brasil, acres- mem na sociedade. No cristianismo,
ou, por vezes, vitorioso nesse intento. cento, que como sexta economia isso ocorreu com os ascetas do deser-
Por sua vez, místicos como Eckhart17 do mundo continua reproduzindo o to e eles são um capítulo decisivo na
sistema mais desigual) não leva a ou- história da mística ocidental. No livro,
16 Charles-Pierre Baudelaire (1821- tra sensação senão a de desespero. Faustino Teixeira e Maria Clara acen-
1867): poeta e teórico da arte francês. Para ver algo de fora dele, é neces- tuam que pessoas como Teilhard de
É considerado um dos precursores
do Simbolismo e reconhecido
sário o ponto de vista de redenção Chardin19, Simone Weil20 ou mesmo
internacionalmente como o fundador da (Erlösung). A base da crítica, portan-
tradição moderna em poesia, juntamente to, está numa negação do existente
com Walt Whitman, embora tenha 19 Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955):
se relacionado com diversas escolas
a partir de uma experiência de algo paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta,
artísticas. Sua obra teórica também que rompeu fronteiras entre a ciência
influenciou profundamente as artes e a fé com sua teoria evolucionista.
plásticas do século XIX. Em 1857 lança interioridade da fé e à união divina como O cinquentenário de sua morte foi
As flores do mal, contendo 100 poemas. uma rebelião implícita à exterioridade lembrado no Simpósio Internacional
O livro é acusado de ultrajar a moral “farisáica” de uma hierarquia e de um Terra Habitável: um desafio para a
pública. (Nota da IHU On-Line) clero moralmente decadente (parece humanidade, promovido pelo Instituto
17 Maitre Eckhart (1260-1327): nasceu que a coisa nunca mudou muito mesmo). Humanitas Unisinos de 16 a 19-05-2005.
em Hochheim, na Turíngia. Ingressando Sua herança influenciou, entre outros, Sobre Chardin, confira o artigo de Carlos
no convento dos dominicanos de significativamente, a Martinho Lutero. Heitor Cony, publicado nas Notícias
Erfurt, estudou em Estrasburgo e em Sobre o tema místicas, conferir tema de Diárias do site do IHU, www.unisinos.br/
Colônia. Tornou-se mestre em Teologia capa do IHU On-Line, edição 133. (Nota ihu, de 16-06-2006, Teilhard: o fenômeno
e ensinou em Paris. Em sua obra, está da IHU On-Line) humano. O jesuíta foi precursor do que
muito presente a unidade entre Deus 18 Theodor Wiesengrund Adorno (1903- foi chamado de evolucionismo cristão.
e o homem, entre o que consideramos 1969): sociólogo, filósofo, musicólogo e A edição 140 da IHU On-Line, de 09-05-
sobrenatural e o que achamos ser compositor, definiu o perfil do pensamento 2005, dedicou-lhe o tema de capa sob www.ihu.unisinos.br
natural. É um pensamento holístico, alemão das últimas décadas. Adorno ficou o título Teilhard de Chardin: cientista
pois. Para Eckhart Devemos reconhecer conhecido no mundo intelectual, em e místico, disponível em http://migre.
Deus em nós, mas este caminho não é todos os países, em especial pelo seu me/11DQX. A edição 304 da IHU On-Line,
fácil. O homem deve se “exercitar nas clássico Dialética do Iluminismo, escrito de 17-08-2009, intitula-se O futuro que
obras, que são seus frutos”, mas, ao junto com Max Horkheimer, primeiro advém. A evolução e a fé cristã segundo
mesmo tempo, “deve aprender a ser livre diretor do Instituto de Pesquisa Social, Teilhard de Chardin. Confira, ainda, as
mesmo em meio às nossas obras”. Eckhart que deu origem ao movimento de ideias entrevistas Chardin revela a cumplicidade
morreu em 1327. Em 27 de março de em filosofia e sociologia que conhecemos entre o espírito e a matéria, http://
1329, foi dado ao público a bula In agro hoje como Escola de Frankfurt. Sobre migre.me/11DRm, publicada na edição
dominico, através da qual o Papa João Adorno, confira a entrevista concedida 135, de 05-05-2005 e Teilhard de Chardin,
XXII condenou vinte e oito proposições pelo filósofo Bruno Pucci à edição 386 Saint-Exupéry, publicada na edição
do Mestre Eckhart. Das vinte e oito, da Revista IHU On-Line, intitulada “Ser 142, de 23-05-2005, em http://migre.
dezessete foram consideradas heréticas autônomo não é apenas saber dominar me/11DRu, ambas com Waldecy Tenório.
e onze, escabrosas e temerárias. Entre bem as tecnologias”, disponível para Na edição 143, de 30-05-2005, George
estas, estava a de que nos transformamos download em http://bit.ly/GCSKj1. A Coyne concedeu a entrevista Teilhard
em Deus. Mas esta condenação papal conversda foi motivada pelo palestra e a teoria da evolução, disponível para
justifica-se, na medida que as idéias Theodor Adorno e a frieza burguesa em download em http://migre.me/11DRM.
de Eckhart tinham uma dimensão tempos de tecnologias digitais, proferida (Nota da IHU On-Line)
revolucionária. Elas foram acolhidas por Pucci dentro da programação do Ciclo 20 Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã
pelas camadas populares e burguesas, Filosofias da Intersubjetividade. (Nota francesa. Centrou seus pensamentos sobre
que interpretavam o apelo eckhartiano à da IHU On-Line) um aspecto que preocupa a sociedade até

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 63


um trapista como Thomas Merton21 tica mais ascética de necessidade de especialmente seu livro Silêncio de
foram místicos do século XX comple- recolhimento e silêncio contém, hoje, Deus, silêncio dos homens e seus tra-
tamente envolvidos com questões um potencial “redentor” inesperado. balhos mais recentes sobre religião
políticas e sociais, incorporando a No livro Sociedade excitada (Campinas: e cibercultura. Cito o grupo de estu-
dinâmica das questões modernas em Unicamp, 2010), Türcke afirma que, dos de mística Apophatiké, do Rio de
seu itinerário espiritual. Insisto que a sem uma certa capacidade ascética, o Janeiro, cujos membros são Marcus
mística, seja tradicional, seja moder- sujeito hoje não será capaz de ter ex- Reis, Marcia Clara Binguemer, Edson
na, não é escapismo, nem do mundo, periências próprias e não será mais Fernando de Almeida, Cleide Maria
nem do vazio existencial do homem do que joguete das novas tecnologias. Canchumani, eu,entre outros. A in-
moderno, muito pelo contrário. Contra o vício de ser bombardeado por teressante tese de Jimmy Sudário
Contudo, estamos num momen- imagens e bombardear os outros, con- Cabral sobre o trágico em Dostoié-
to histórico em que há uma convoca- tra essa “compulsão à emissão”, não vski25 é fruto das discussões do gru-
ção ininterrupta de interação virtual, pode haver outro remédio senão o si- po e digna de ser mencionada.
de modo que os jovens estão cada lêncio meditativo. Minha pesquisa tem
vez comunicando-se superficialmen- sido de retomar o potencial emancipa-
te, vendo TV, postando no Facebook, tório não só da mística, mas também
multiplicando diversas atividades ao
mesmo tempo. Por isso é comum um
das mensagens na garrafa esquecidas
dos textos dos ascetas do deserto, que Leia as
déficit de atenção generalizado, como passaram a ter um significado precioso
assinala o grande filósofo da contem-
poraneidade, com quem fiz várias en-
para nós hoje.
Portanto, do meu ponto de vis-
entrevistas
trevistas e organizei conferências em
suas passagens pelo Brasil, Christoph
ta, mesmo a mística mais misantró-
pica tem muito a nos dizer. Artigos do dia no
Türcke22. Acho que a mensagem da mís- como o de Sibelius Cefas sobre Tho-

sítio do IHU:
mas Merton, Adriana Andrade sobre
Eckhart, Marcus Reis sobre Plotino,
os dias de hoje: o tormento da injustiça.
Vítima da tuberculose, recusou-se
Maria do Amaral sobre Mechthild von
a se alimentar, para compartilhar o Magdeburg e de Ceci Mariani sobre
sofrimento de seus irmãos franceses que
haviam permanecido na França e viviam
os dissabores da Segunda Guerra Mundial.
Marguerite Porete23 são, neste ponto,
instrutivos. www.ihu.
Sobre Weil, confira as edições 84, de
IHU On-Line – Gostaria de
unisinos.br
17-11-2003, Simone Weil Palavra Viva,
disponível em http://bit.ly/tZSCDr; 168,
de 12-12-2005, Hannah Arendt, Simone
acrescentar algum aspecto não
Weil e Edith Stein. Três mulheres que questionado?
marcaram o século XX, disponível em Eduardo Guerreiro B. Losso –
http://bit.ly/v0aMxT; 313, de 03-11-
2009, Filosofia, mística e espiritualidade.
Acrescento que, nessa linha de uma Flusser e o pós-humanismo. Concedeu
Simone Weil, cem anos, disponível em mística da literatura e da cultura as seguintes entrevistas à IHU On-Line:
http://bit.ly/w374lt. (Nota da IHU On- moderna, o trabalho de Erick Fe- Um teórico barroco?, disponível em
Line) http://bit.ly/SJYrjc; A era da memória
21 Thomas Merton (1915-1968): monge
linto24 tem sido muito significativo, total e do esquecimento contínuo,
católico cisterciense trapista, pioneiro no disponível em http://bit.ly/mGxCcU;
ecumenismo no diálogo com o budismo e Um futuro complexo, híbrido, incerto e
tradições do Oriente. O livro Merton na ed., 2001); e Rückblick aufs Kommende: heterogêneo, disponível em http://bit.
intimidade - Sua Vida em Seus Diários (Rio Altlasten der neuen Weltordnung. (Nota ly/orp7tJ. (Nota da IHU On-Line)
de Janeiro: Fisus, 2001), é uma seleção da IHU On-Line) 25 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski
extraída dos vários volumes do diário de 23 Marguerite Porete: mística francesa, (1821-1881): um dos maiores escritores
Thomas Merton, autor de livros famosos queimada pela Inquisição em Paris, em russos e tido como um dos fundadores
como A Montanha dos Sete Patamares (São 1310, após se recursar a retirar seu livro do existencialismo. De sua vasta obra,
Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas sementes de circulação. (Nota da IHU On-Line) destacamos Crime e castigo, O Idiota,
de contemplação (Rio de Janeiro: Fisus, 24 Erick Felinto de Oliveira: doutor em Os Demônios e Os Irmãos Karamázov. A
1999). O livro foi editado por Patrick Hart, Literatura Comparada pela Universidade esse autor a IHU On-Line edição 195, de
também monge e colaborador de Merton. Estadual do Rio de Janeiro – UERJ/UCLA 11-9-2006. dedicou a matéria de capa,
Na matéria de capa da edição 133 da IHU e tem pós-doutorado em Comunicação intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos
On-Line, de 21-03-2005, publicamos um pela Universität der Künste, Berlim. É do ser humano, disponível em http://
artigo de Ernesto Cardenal, discípulo de pesquisador do CNPq e professor adjunto bit.ly/g98im2. Confira, também, as
Merton, que fala sobre sua relação com o na UERJ, instituição em que realiza seguintes entrevistas sobre o autor russo:
monge. (Nota da IHU On-Line) pesquisas sobre cinema e cibercultura. É Dostoiévski e Tolstoi: exacerbação e
22 Christoph Türcke: filósofo alemão, autor dos livros A religião das máquinas: estranhamento, com Aurora Bernardini,
professor de filosofia na Hochschule für ensaios sobre o imaginário da cibercultura na edição 384, de 12-12-2011, disponível
Grafik und Buchkunst em Leipzig. Dentre (Porto Alegre: Sulina, 2005); Avatar: o em http://bit.ly/upBvgN; Polifonia
suas principais publicações, destacam- futuro do cinema e a ecologia das imagens atual: 130 anos de Os Irmãos Karamazov,
se: Der tolle Mensch. Nietzsche und der digitais (com Ivana Bentes. Porto Alegre: de Dostoievski, entrevista com Chico
Wahnsinn der Vernunft (4a ed., 2000), Sulina, 2010); e A imagem espectral: Lopes, edição nº 288, de 06-04-2009,
livro que foi traduzido para a língua cinema e fantasmagoria tecnológica disponível em http://bit.ly/sSjCfy;
portuguesa com o seguinte título: O (São Paulo, Ateliê Editorial, 2008). Ainda Dostoiévski chorou com Hegel, entrevista
louco: Nietzsche e a mania da razão (Rio este ano lançará pela editora Paulus, em com Lázló Földényi, edição nº 226, de
de Janeiro: Vozes, 1993); Sexus und Geist: parceria com a professora Lucia Santaella, 02-07-2007, disponível em http://bit.ly/
Philosophie im Geschlechterkampf (3a o livro Explorador de abismos – Vilém uhTy9x. (Nota da IHU On-Line)

64 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Confira as publicações do

Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica

www.ihu.unisinos.br

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 65


C

O saldo da transmissão olímpica


é de mais brigas para o futuro

Record gastou uma grande chance de mudar o


oligopólio midiático com as Olimpíadas de Londres

Por Anderson David Gomes dos Santos*

Quando a Rede Record de Televisão cidades a edição anterior, o Rio de Janeiro. A


anunciou em 2007 que adquiriu os direitos transmissão da Record foi alvo de várias crí-
de transmissão na TV aberta das competi- ticas. De um lado, as barreiras de produção
ções olímpicas até 2014, imaginava-se que de eventos esportivos, quase todos eles sob
os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, comando da líder. Por outro, a repetição do
marcariam a mudança de um paradigma que se mais criticava na adversária, a opção
no oligopólio midiático nacional, com uma por manter programas como “Melhor do
aproximação maior em termos de audiência Brasil” (sábado) e “Programa do Gugu” (do-
com a Rede Globo. Ledo engano. mingo) em detrimento de mostrar ao vivo as
A emissora da Barra Funda surpreendeu competições.
e foi surpreendida com a transmissão dos Jo- Do final de 2011 até o dia 27 de julho
gos Olímpicos de Inverno 2010, em Vancou- de 2012, quando foi aberta oficialmente a
ver. Praticamente sem tradição de acompa- 30ª edição dos Jogos Olímpicos de Verão,
nhamento deste evento num país quase sem em Londres, a própria situação do mercado
neve, a Record conseguiu bons resultados de era outra. Em vez do crescimento dos cinco
audiência. Porém, como não havia “experi- anos anteriores, período que marca a ten-
ência” anterior, não havia também barreiras tativa de disputa mais forte contra a Globo,
tecnoestéticas a serem enfrentadas. uma queda constante, a ponto de o SBT re-
No ano seguinte, houve os Jogos Pan- tomar a vice-liderança na média diária de
-Americanos de Guadalajara, evento que o audiência.
público brasileiro não só estava mais acostu- A emissora de Silvio Santos passou a
mado como também o viu em uma de suas mudar a sua grade de programação com

___________________________
* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – Unisinos (bolsista Capes RH-TVD) e membro do Grupo de Pesquisa Cepos (apoiado pela
Ford Foundation). E-mail: <andderson.santos@gmail.com>.

66 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Coordenação: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha
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uma frequência bem menor do que bo – que deixava de transmitir uma bom sucesso, para uma experiência na
nos anos anteriores e, além disso, con- Olímpiada após 40 anos –, e a concor- internet, os Jogos Olímpicos de Inver-
ta com fenômenos atemporais de au- rência da SporTV na televisão fechada, no e de Verão mais recentes e o Pan-
diência, casos do seriado Chaves, das com direito ao empréstimo de Galvão -Americano de Guadalajara, apresen-
telenovelas mexicanas e do Programa Bueno ao canal. tando-se como uma alternativa à TV,
Silvio Santos. Porém, este novo gran- Ainda assim, a Record conseguiu mantendo a gratuidade e com novas
de momento parece ser oriundo do alguns momentos de liderança, com possibilidades de recepção.
sucesso do remake nacional da novela destaque para o dia 11 de agosto, pe- Enquanto isso, já se desenha uma
infantil Carrossel. núltimo dia da Olimpíada, em que fi- nova disputa. Para as Olimpíadas de
A “crise de identidade” passou cou na primeira posição por mais tem- 2020, o valor inicial pedido pelo Comi-
para os lados da Record, que vive mu- po em sua história, das 7h às 18h18. tê Olímpico Internacional seria de 250
dando seus horários, com problemas Era dia de finais: do futebol masculino, milhões de dólares. Para se ter ideia, o
em programas como “Hoje em Dia” em que teve audiência de 17 pontos, Clube dos 13 propôs um valor próximo
e no horário nobre, em que o seu re- com picos de 20, quase o triplo de au- a isso por uma temporada do Campe-
make de um sucesso mexicano, Rebel- diência da Globo; do vôlei feminino, onato Brasileiro de Futebol, que dura
de, não vem dando certo. com 12 pontos; e da categoria até 75 sete meses.
Com esse novo contexto, a emis- kg do boxe masculino, quando perdeu Vale a pena seguir acompanhan-
sora emitiu um comunicado cauteloso por uma diferença pequena, 12 a 11. do os passos dessa briga, principal-
ao público e aos anunciantes antes dos Ainda assim, muito pouco para mente porque as barreiras político-
Jogos Olímpicos de Londres. A “Carta quem vem gerando uma inflação nos -institucionais não contam, e sim
Olímpica Record” tranquilizava os seus valores dos direitos de transmissão quem pode pagar mais. Ao contrário
parceiros, afirmando que suas marcas esportivos. Só para o caso das Olimpí- do futebol em que, por exemplo, a
seriam exibidas, e também o público, adas, se para 2008 a Globo gastou 15 Rede Globo adquiriu os direitos de
que iria ver os principais momentos milhões de dólares, para 2012 a Re- transmissão das edições 2018 e 2022
ao vivo, mesmo que os horários das cord pagou quatro vezes mais. Como da Copa do Mundo de Futebol de for-
atrações rotineiras fossem ajustados. os próximos jogos de verão serão no ma automática. Além disso, é tempo
O evento serviria mais para conseguir Brasil, Globo, Record e Bandeirantes mais que suficiente para que as em-
um novo fôlego, inclusive para reto- dividirão a transmissão, tendo pago, presas que produzem audiovisual na
mar a vice-liderança, do que para con- em conjunto, 200 milhões de dólares. internet e que possuem o aporte fi-
correr pelo primeiro posto. Nesta briga entre Globo e Record, nanceiro de grandes grupos transna-
A transmissão foi melhor do que alguns outros grupos empresariais cionais, caso do Terra, adquiram mais
no Pan-Americano, com gafes aqui e acabaram tendo vantagens. Além do experiência nesse tipo de transmissão
acolá, mas sempre a enfrentar a me- SBT na TV aberta, um grupo transna- e incomodem ainda mais a TV aberta
mória de um público acostumado às cional também vem crescendo. O por- já a curto prazo.
transmissões esportivas da Rede Glo- tal Terra (Telefonica) transmitiu com

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 67


Destaques On-Line
Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 28-08-2012 a 03-09-2012, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Flexibilização das unidades de Reforma do Código Penal: “‘Há vícios de


conservação: um risco ambiental e origem”
social
Entrevista especial com Jacinto Coutinho
Entrevista especial com Adalberto Veríssimo, (advogado, professor da UFPR) e Edward Rocha
agrônomo, pesquisador sênior e cofundador de Carvalho (advogado, membro da Comissão da
do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Advocacia Criminal da OAB/PR)
Amazônia – Imazon Confira nas Notícias do Dia de 30-08-2012
Confira nas Notícias do Dia de 28-08-2012 Acesse no link http://bit.ly/OLigqN
Acesse no link http://bit.ly/NTH7fh
Anteprojeto de reforma do Código Penal adota
“O governo tem dado sinais dúbios do que quer fazer “infelizmente o critério da máxima punição,
com as unidades de conservação da região amazônica respondendo aos anseios de um Direito penal
em relação aos limites originários. Esse é o principal punitivo expansivo”, apontam.
fator que tem contribuído para o aumento no
desmatamento na região da BR-163”, informa.

Redução de APPs compromete rios e


biomas brasileiros
O Leviathan brasileiro e o espetáculo de
playground do governo Entrevista especial com Elvio Sérgio Medeiros,
biólogo, professor na Universidade Estadual da
Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves, Paraíba
economista, professor na UFRJ Confira nas Notícias do Dia de 31-08-2012
Confira nas Notícias do Dia de 29-08-2012 Acesse no link http://bit.ly/Rtf5lU
Acesse no link http://bit.ly/NwAQGg
“As mudanças aprovadas no novo Código Florestal
O pacote de concessões anunciado pela presidente atacam dois dos biomas brasileiros mais degradados
Dilma é uma forma de privatização que expressa a pelo homem: a Caatinga e o Cerrado”, aponta.
combinação de três fatores: “o fracasso do Estado
brasileiro; a evolução do modelo liberal periférico; e o
desenvolvimento às avessas”.
www.ihu.unisinos.br

A desindustrialização precoce: Brasil perdeu o bonde


do desenvolvimento?
Entrevista especial com André Nassif, economista, professor na
Universidade Federal Fluminense
Confira nas Notícias do Dia de 03-09-2012
Acesse no link http://bit.ly/Rtf5lU

“Quando a China já não for uma demandante relativamente alta de


commodities, se nada for feito para reverter a situação do Brasil, o país irá
se deparar com um déficit em conta corrente que não irá ser sustentável no
longo prazo e será dependente do financiamento de capital externo”, alerta.

68 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana

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IHU em
Revista
EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000 69
IHU em Revista
Agenda da
Semana
Eventos do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
programados para a semana de 03-09-2012 a 10-09-2012

Tema: Apátridas e refugiados: direitos humanos a partir da ética da alteridade


Palestrante: Prof. MS Gustavo Oliveira de Lima Pereira - Fundação Meridional – IMED
Evento: IHU ideias
Data: 06-09-2012
Local: Sala Ignacio Ellacuría e companheiros – IHU
Horário: Das 17h30min às 19h
Mais informações: http://bit.ly/Pg66Yz

Evento: IHU ideias

Data: 06-09-2012

Palestra: Apátridas e refugiados: direitos hu-


manos a partir da ética da alteridade

Palestrantes: Prof. MS Gustavo Oliveira de


Lima Pereira – Fundação Meridional - IMED
www.ihu.unisinos.br

Horário: 17h30min às 19h

Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros,


no IHU

Mais informações: http://migre.me/asQuU

70 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Entrevista de Eventos

IHU em Revista
Apátridas e refugidados. Os
direitos humanos a partir da
ética da alteridade
Como podemos suportar que os direitos humanos estejam sustentados a partir
da ideia de nacionalidade, questiona Gustavo Oliveira de Lima Pereira. Filosofia de
Lévinas precisa de uma outra compreensão

Por Graziela Wolfart e Márcia Junges

“O
apátrida e o refugiado não são crítica de si mesmos, e a alerternativa estaria
bem vindos, pois abalam a zona “no desenvolvimento de uma racionalidade
de conforto da racionalidade apátrida, uma racionalidade para além da
solitária que tão somente interage com seus ideia de cidadania, para bem além da ideia de
iguais. A ideia da recepção da alteridade se cidadão do mundo, pois essa ideia ainda está
dá na possibilidade de transformar o trauma contaminada pela noção de soberania”.
da diferença em encontro ético”. A reflexão é Gustavo Oliveira de Lima Pereira estará no
de Gustavo Pereira, na entrevista que conce- IHU nesta quinta-feira, 06-09-2012, falando
deu, por e-mail, à IHU On-Line. E acrescenta: sobre o tema desta entrevista, no IHU Ideias.
“A absoluta diferença cultural do apátrida A atividade inicia às 17h30min, na Sala Ignacio
ou refugiado, na sua condição de estrangei- Ellacuría e Companheiros e vai até as 19h. A
ro que pede acolhimento, é apreendida pelo entrada é franca. Graduado em Ciências Jurídi-
olhar indiferente e violento da racionalidade cas e Sociais pela Pontifícia Universidade Cató-
totalizante”. Ele questiona se a ideia de “tole- lica do Rio Grande do Sul – PUCRS, é mestre em
rância” seria “o ponto máximo de sustentação Direito pela Unisinos com a dissertação Hos-
filosófica para dar conta da crise de sentido pitalidade e reconhecimento da diferença na
em que vivemos na ordem política contem- transnacionalização dos Direitos Humanos. A www.ihu.unisinos.br
porânea?”, e conclui que não. “A ideia de to- crise da Alteridade na questão dos apátridas e
lerância é insuportável para a ideia de hospi- refugiados e doutorando na PUCRS com a tese
talidade - para a lei da hospitalidade – para Da Tolerância à Hospitalidade na Democracia
a ética da alteridade”. E conclui: “Alteridade por vir. Um ensaio a partir do pensamento de
não é “colocar-se no lugar do outro” como Jacques Derrida. Leciona na Fundação Meri-
muitas vezes é compreendido. É exatamente dional – IMED e é autor de A pátria dos sem
o oposto. A total impossibilidade de reduzir o pátria: direitos humanos & alteridade (Porto
outro ao poder conceituante do mesmo”. Os Alegre: Editora Uniritter, 2011).
direitos humanos deveriam promover uma Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como você define Gustavo Pereira - No plano do sem pátria. Essa circunstância exis-
e caracteriza os apátridas e os refu- direito internacional dos direitos hu- tencial repercute de inúmeras formas
giados? Quem são essas pessoas em manos, há uma diferenciação entre na vida do ser humano desprovido de
nossa sociedade? Ou como a socieda- a figura do apátrida e do refugiado. nacionalidade. Dificuldades de acesso
de as percebe e as enxerga? Apátridas são pessoas consideradas à saúde pública, impossibilidades imi-

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 71


gratórias e exclusão de determinados ma concreto vivenciado por apátridas Esta característica marcante da
IHU em Revista
atos da vida civil. O fenômeno da apa- e refugiados torna a diferenciação em- racionalidade ocidental deságua no
tridia ocorre ou em virtude da política baraçada e desnecessária. âmbito das relações humanas. A sedu-
interna de países que retiram a cida- ção pela vontade conceituante sugere
dania de determinados seres huma- IHU On-Line - De que modo a que o rosto de outrem seja também
nos por critérios discricionários (como crise de sentido que atravessa as re- passível de uma conceituação tranqui-
foi o caso ocorrido na Segunda Guerra lações humanas na modernidade re- la daquele que o observa. Uma apre-
Mundial, onde o primeiro ato dos na- cente aparece no problema dos apá- ensão daquele que observa a partir de
zistas contra os judeus foi o de retirar tridas e refugiados de guerra? si. Com os seus anseios, as suas proje-
a cidadania alemã destes) ou pelos Gustavo Pereira - Penso que a ções, a sua cultura, sem levar em con-
critérios de distribuição da nacionali- crise de sentido que atravessa a ra- ta que a figura conceitual deste outro,
dade de cada país. Os critérios são ou cionalidade ocidental, amparado pelo realizada pelo intelecto do mesmo, é
do solo ou do sangue. Em países que pensamento do filósofo Emmanuel apenas uma representação deste ou-
só admitem cidadania de filhos de Levinas2, é ancestral. A racionalida- tro, e não a sua expressão plena.
seus nacionais, a territorialidade não de ocidental, desde a sua gênese, é A absoluta diferença cultural do
confere nacionalidade. Por exemplo: repercutida pela vontade violenta de apátrida ou refugiado, na sua condição
se um casal de brasileiros gerar filho exorcizar a realidade e retirar dela de estrangeiro que pede acolhimento,
na Suécia, a criança não contemplará castelos conceituais bem organizados, é apreendida pelo olhar indiferente e
nacionalidade sueca, em virtude do como afirma o filósofo Ricardo Timm violento da racionalidade totalizante.
critério estabelecido neste país ser o de Souza3. Um dos desafios do pensamento con-
critério do sangue. Quando um casal temporâneo é o de abalar essa dimen-
oriundo de país que adota o específico Hannah Arendt, Simone Weil e Edith são apropriativa no encontro com a
critério do solo para conferir naciona- Stein. Três mulheres que marcaram o diferença.
século XX, disponível para download em
lidade a seus nacionais gera filho em http://bit.ly/qMjoc9 e a edição 206, de
país que adota o critério específico 27-11-2006, intitulada O mundo moderno IHU On-Line - Como as políticas
do sangue, surge a figura do apátri- é o mundo sem política. Hannah Arendt públicas na área de direitos huma-
1906-1975, disponível para download
da, onde a criança não é contemplada em http://bit.ly/rt6KMg. Nas Notícias
nos contemplam os apátridas e os
por nenhum critério de nacionalidade. Diárias de 01-12-2006 você confere refugiados?
O Brasil adota ambos os sistemas de a entrevista Um pensamento e uma Gustavo Pereira - O órgão da
presença provocativos, concedida com
contemplação da nacionalidade. exclusividade por Michelle-Irène Brudny
ONU responsável pela proteção inter-
Já o refugiado, segundo a Con- em 01-12-2006, disponível para download nacional dos refugiados e apátridas é
venção dos Refugiados de 1951, é o em http://bit.ly/o0pntA. (Nota da IHU o Alto Comissariado das Nações Uni-
On-Line)
nacional de um país que precisa fugir 2 Emmanuel Lévinas (1906-1995):
das para Refugiados - ACNUR. É um
de seu Estado-nação e buscar prote- filósofo lituano, nascido na cidade de importante órgão que atua no âmbito
ção internacional em outro território Kaunas (ou Kovno), de descendência da proteção internacional dos direitos
judaica e naturalizado francês, bastante
soberano em virtude de bem fundado influenciado pela fenomenologia de
humanos desde os anos 1950. A con-
temor de perseguição por motivos de Edmund Husserl, de quem foi tradutor, templação da proteção já passou por
cor, religião, nacionalidade, perten- assim como pelas obras de Martin inúmeros aperfeiçoamentos, amplian-
Heidegger. Seu pensamento parte da
cimento a algum grupo social ou opi- idéia de que a ética, e não a ontologia,
do a proteção também para desloca-
nião política. Há diferenças entre as é a Filosofia primeira. É no face-a-face dos internos. As principais medidas
circunstâncias, mas sob o ponto de humano que se irrompe todo sentido. humanitárias em defesa dos direitos
Diante do rosto do Outro, o sujeito
vista prático, segundo Hannah Aren- se descobre responsável e lhe vem à
dos apátridas e refugiados estão no
dt1, em inúmeras situações o proble- idéia o Infinito. Sobre Lévinas, confira a plano da: 1) integração local; 2) repa-
entrevista concedida em 30-08-2007, por triação voluntária; 3) reassentamento.
Rafael Haddock-Lobo, com exclusividade
www.ihu.unisinos.br

1 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa ao site do Instituto Humanitas Unisinos


e socióloga alemã, de origem judaica. – IHU, intitulada Lévinas: justiça à sua
Foi influenciada por Husserl, Heidegger filosofia e a relação com Heidegger,
e Karl Jaspers. Em consequência das Husserl e Derrida. Leia, também, a eles, Sujeito, Ética e História – Lévinas,
perseguições nazistas, em 1941, partiu edição 277 da revista IHU On-Line, de 13- o traumatismo infinito e a crítica
para os EUA, onde escreveu grande parte 10-2008, intitulada Lévinas e a majestade da filosofia ocidental (Porto Alegre:
das suas obras. Lecionou nas principais do Outro. (Nota da IHU On-Line) EDIPUCRS, 1999), A condição humana no
universidades deste país. Sua filosofia 3 Ricardo Timm de Souza: graduado em pensamento filosófico contemporâneo
assenta numa crítica à sociedade de Instrumentos, pela Universidade Federal (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004) e Em torno
massas e à sua tendência para atomizar do Rio Grande do Sul – UFRGS, e em à diferença – Aventuras da alteridade na
os indivíduos. Preconiza um regresso Estudos Sociais e Filosofia, pela Pontifícia complexidade da cultura contemporânea
a uma concepção política separada da Universidade Católica do Rio Grande do (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007).
esfera econômica, tendo como modelo Sul – PUCRS. Também cursou o mestrado É também um dos organizadores de
de inspiração a antiga cidade grega. em Filosofia, pela mesma universidade, e Alteridade e Ética – Obra comemorativa
Entre suas obras, citamos: Eichmann doutorado em Filosofia, pela Universität dos 100 anos do nascimento de Emmanuel
em Jerusalém - Uma reportagem sobre Freiburg (Albert-Ludwigs) com a tese Lévinas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008).
a banalidade do mal (Lisboa: Tenacitas. Wenn das Unendliche in die Welt des Confira a entrevista mais recente que
2004) e O Sistema Totalitário (Lisboa: Subjekts und der Geschichte einfällt – Ein concedeu à IHU On-Line: Rosenzweig
Publicações Dom Quixote.1978). Sobre metaphänomenologischer Versuch über e uma nova compreensão da ideia de
Arendt, confira as edições 168 da IHU das ethische Unendliche bei Emmanuel sujeito, disponível em http://bit.ly/
On-Line, de 12-12- 2005, sob o título Lévinas. Escreveu inúmeros livros, entre GCaglu. (Nota da IHU On-Line)

72 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


A integração local diz respeito à falava anteriormente. É o espaço da na um empecilho ao ideal de hospita-

IHU em Revista
tentativa de proporcionar mecanis- sensibilidade e a rendição a uma res- lidade cosmopolita?
mos para que o refugiado se adapte ponsabilidade perante um rosto que Gustavo Pereira - Penso que, na
a sociedade na qual requer o refúgio, interpela. A transformação da liber- modernidade recente, o problema se
contando com a atuação de institutos dade solitária em liberdade investida. agrava muito também em virtude de
governamentais e não-governamen- É presenciar o trauma da diferença e estar a cultura ocidental, de uma ma-
tais para a sua concretização. A repa- quebrar o espelho da própria auto- neira geral, mergulhada nos templos
triação voluntária consiste no regresso -reflexividade. “Alteridade” remete a do hiperconsumo, onde os espaços
do refugiado ao seu país de origem, ideia de “alter”: “outro”, ou seja, con- para se repensar a ideia de liberdade
após o término das circunstâncias que dição do outro em relação a mim. Não e de responsabilidade pelo outro per-
o obrigaram a requerer o refúgio. Já o existe possibilidade de se determinar dem espaço em nome do anseio pelo
reassentamento deve ser entendido o que o outro é como tal, ou seja, não hiperdesempenho. Talvez esta seja
como a situação na qual o refugiado posso explicá-lo, e sim apenas relacio- uma das características mais marcan-
não conseguiu ou não pôde permane- nar-me com ele. Algo, de algum modo, tes do legado devastador do indivi-
cer no Estado que reconheceu seu sta- tão fácil de se pensar, porém dificulto- dualismo ocidental. Mas não gostaria
tus de refugiado, por não conseguir se so de se por em prática. de aprofundar aqui essa questão do
adaptar aos costumes do país ou ou- Tentando expressar em outras pa- individualismo. Pensar, ainda que bre-
tras conjunturas que tornam arriscado lavras: eu apenas apreendo do outro a vemente, o contraste entre a ideia de
sua permanência nele. sua representação e não a sua pleni- tolerância e hospitalidade será mais
O ACNUR é amparado com fi- tude, apesar dos anseios da racionali- produtivo nessas curtas linhas.
nanciamento originário de doações dade de determinar o indeterminável. A concepção de acordo, de “tole-
de inúmeros países do mundo e ainda Há uma absoluta separação entre eu rância”; de tolerar o outro, de estabe-
conta a ajuda humanitária das Cáritas e o Outro, e pensar esta exterioridade lecer um contrato de boa conivência
Arquidiocesanas, que são organiza- absoluta; - esta separação absoluta; é com o outro, significa sem dúvida uma
ções humanitárias desenvolvidas pela o que possibilita o encontro, por mais conquista da humanidade, pois com-
Igreja Católica para atender pessoas paradoxal que essa ideia possa pare- preende um novo aspecto de relação,
com problemas que envolvam direitos cer. Pois ao perceber-me como abso- a partir de uma ideia de reciprocida-
humanos. lutamente diferente e infinitamente de. Mas este é o exato ponto que nos
Apesar de todo o esforço da distante, reduzo esta distância infinita permite refletir. Será a ideia de “tole-
ONU, existem atualmente cerca de 12 e permito a relativização de meu arca- rância” o ponto máximo de sustenta-
milhões de apátridas espalhados pelo bouço de verdades pré-estabelecidas. ção filosófica para dar conta da crise
mundo. O ACNUR presta assistência Percebo-me como estranho e esquisi- de sentido em que vivemos na ordem
humanitária a 34 milhões de refugia- to, algo que antes era tributado ao Ou- política contemporânea? Penso que
dos, apátridas e deslocados internos tro. Sou capaz de me relacionar com não. Como ponto de partida, com-
no mundo, mas o número de refugia- uma cultura diferente, algo que antes preendo que o desenvolvimento da
dos não contemplados pela proteção soava-me ameaçador. ideia de “tolerância”, primordialmente
internacional é ainda extremamente No que toca a questão dos apá- construído nas disposições filosóficas
elevado, segundo dados do próprio tridas e refugiados, o reforço da iden- que questionavam os antagonismos e
Alto Comissariado. Os números não tidade e do patriotismo desenvolvido inquietações religiosas da modernida-
são precisos exatamente pelos países pelo ideal de Estado-nação na moder- de, deteve uma importante influência
muitas vezes não divulgarem dados nidade, gera empecilhos para o con- sobre as perspectivas de liberdade de
sobre suas políticas de imigração, bem tato entre diferentes culturas, para o credo e, posteriormente, foi e ainda
como pelo fato de que todo conflito acolhimento entre diferentes horizon- vem sendo utilizada como ideia de
internacional envolvendo violência tes de sentido de realidade. Pois essa ordem e a reposta principal para os
gera um fluxo constante e ininterrupto diferença originária foge da possibili- entraves culturais que envolvem os
www.ihu.unisinos.br
de refugiados e deslocados internos. dade da conceituação. É traumática, conflitos políticos atuais. Com isso, po-
usando uma terminologia levinasiana. demos afirmar que, através do desen-
IHU On-Line - Qual a importância Assim, o apátrida e o refugiado não volvimento da ideia de tolerância, os
do conceito de alteridade e do reco- são bem vindos, pois abalam a zona de dias atuais recepcionam um certo pa-
nhecimento da diferença para se dis- conforto da racionalidade solitária que tamar de liberdade de expressão, na
cutir a problemática dos os apátridas tão somente interage com seus iguais. maioria dos casos impensável por ou-
e refugiados? A ideia da recepção da alteridade se tros momentos da história ocidental.
Gustavo Pereira - A alteridade dá na possibilidade de transformar No entanto, por mais que a concepção
não é propriamente um conceito, não o trauma da diferença em encontro de “tolerância” seja uma significativa
é uma teoria, não é um método, ou ético. conquista ocidental, isto não significa
um novo imperativo. Em uma tentati- que ela se constitua em produto ra-
va tímida de torná-la assimilável, tento IHU On-Line - Em que sentido o cional de tal forma acabado que não
expressá-la como a mera reconstrução individualismo humano atual e a falta se ponha a desconstrução, pois ainda
de uma forma de olhar avessa ao po- de tolerância entre as pessoas se tor- permanece o desejo por um funda-
der sedutor das representações, como

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 73


mento para além do sonho relacional- situações de violência pelas quais se (ao menos dentro do Direito). Estes
IHU em Revista
-contratual, originário do Iluminismo. submetem os apátridas e refugiados. estudos facilitadores tornaram o tema
Dito sem rodeios: é do ininter- um tanto quanto fatigante, moraliza-
Tolerância como panaceia rupto e disseminador dizer da lei da dor e mecânico. De antemão gostaria
A construção filosófica iluminista hospitalidade incondicional, de sua de aproveitar o momento para, em
da ideia de “tolerância” é atualmente prática imperfeita, de seu desejo sem- nome deste pensamento difícil, rom-
o conceito-limite no plano da teoria pre a desejar, de uma economia da per com a facilitação que se sugere
política ocidental. A ideia de tolerância violência – que germinará uma maior deste estudo. Muitos compreendem
não pode ser vista como a panaceia ou abrangência e sensibilidade às leis da o reconhecimento da alteridade como
o fundamento decisivo para o prisma hospitalidade. É pelo além do jurídi- um “pensar no outro”, “colocar-se no
de violência, luta e guerra, que ainda co e para além do político que tateia lugar do outro”, ou seja, bordões que
se insurge no mundo. Como nos alerta a promessa da democracia por vir. O representam exatamente o que não é
Ricardo Timm de Souza, só toleramos porvir da democracia por vir. o pensamento proposto pelo autor.
aquilo que, em sede inicial, não tole- É no perpétuo e inacabável de- Alteridade não é “colocar-se no
raríamos. Assim, quando tolero ainda senvolvimento de uma hospitalidade lugar do outro” como muitas vezes é
tenho a última palavra e decido se sou sem dogmas, sem lei, sem requisitar compreendido. É exatamente o opos-
clemente com a diferença que me traz do outro nem ao menos seu nome, - to. A total impossibilidade de reduzir o
desconforto. Sou um juiz no tribunal uma relação desprocedimentalizada e outro ao poder conceituante do mes-
da relação. Ao tolerar o outro, assumo desformalizada – é que será possível mo. O que talvez seja preocupante, ao
um patamar de hierarquia. Ainda sou a ampliação dos níveis de reconheci- menos do ponto de vista acadêmico, é
senhor da razão e modelo o outro à mento da singularidade, no âmbito o uso da categoria da alteridade como
minha orientação cognitiva. Impeço-o procedimental e formal. Em outras pa- um “bordão”, reproduzido como uma
daquilo que primordialmente configu- lavras: a ampliação do sentimento de senha ou um emblema, sem levar às
ra a possibilidade do Encontro: impe- cosmopolitismo é insuficiente pela via últimas consequências o que a radi-
ço-o de ser outro. Em outras palavras: dos Tratados internacionais, das cons- calidade deste pensamento reivindi-
a ideia de tolerância é insuportável tituições, da tolerância entre os povos ca. A trivialização da inovação trazida
para a ideia de hospitalidade - para a ou de espaços de fala consensuais. pela recepção da alteridade, pensada
lei da hospitalidade – para a ética da O reconhecimento da lei sem lei na aventura do encontro, é algo que
alteridade. poderá respingar nas leis. Para evitar precisa ser sempre denunciada. Há
Derrida traduz a lei da hospita- mal-entendidos, deixo claro aqui que um dever de vigília dos intelectuais
lidade como uma lei incondicional e a democracia por vir, pensada por Der- sérios, pois é a categoria da alterida-
ilimitada, como o oferecimento do lar rida, não significa fazer terra arrasada de inúmeras vezes confundida com a
a quem chega de fora, ao estrangeiro com o modelo de democracia liberal já espancada ideia principiológica da
da subjetividade. Mais que isso; a lei em que vivemos. Mas significa sim dignidade humana. Além disso, mui-
da hospitalidade oferece a si própria, ousar discordar, desconstruir e assom- tos juristas sugerem, equivocadamen-
o seu próprio si, sem pedir a ele nem brar esse modelo. Tal assombração te, por ignorarem o peso arqueológico
seu nome, nem contrapartida, nem só é possível em um espaço mínimo e o estatuir-se extraordinariamente
preencher qualquer condição. A lei da de democracia. Só há desconstrução complexo de qualquer categoria filo-
hospitalidade está em contraponto às onde há democracia. Só há espaço sófica digna desse nome, que a Cons-
leis da hospitalidade, que se dirigem para o questionamento incondicional tituição Federal já traduz a percepção
a direitos e deveres sempre condicio- e a reivindicação pelo por vir de uma da alteridade em seu bojo legislativo,
nados e condicionais, como tratam os “democracia real” na imperfeição das como se fosse possível reduzir essa ca-
Tratados e Convenções Internacionais. democracias de aqui e agora. tegoria moral a uma categoria jurídica.
Como se fosse possível reduzir a incal-
Cosmopolitismo reinventado IHU On-Line - Em que medida a culabilidade da justiça à calculabilida-
www.ihu.unisinos.br

Já a lei da hospitalidade se con- alteridade pode ser apontada como de do direito, como afirma Derrida.
centra em pensar o político para além filosofia alternativa à crise de senti-
do político, a partir de uma nova inter- do que envolve a razão instrumental? A democracia como inimigo
nacionalidade; a partir de um cosmo- Nesse sentido, qual o papel do direi- Penso que o papel do direito deva
politismo reinventado. Um cosmopo- to, enquanto regulador social? ser radicalmente crítico. Abandonar
litismo para além do cosmopolitismo Gustavo Pereira - Atualmente, de uma vez por todas a ideia de que
político pensado pelo ideário iluminis- o tema da “alteridade” e do respeito aquilo que está formalizado está resol-
ta, pois este cosmopolitismo está con- ao outro vem sendo banalizado; tan- vido. Afirmo em meu livro que não há
dicionando pela soberania do Estado. to por uma leitura apreçada e adoci- nada de crítico em reivindicar um “ne-
Está estruturado pelos limites jurídico- cada do reconhecido “filósofo do ou- oconstitucionalismo”, pois qualquer
-políticos. E este cosmopolitismo jurí- tro” Emmanuel Levinas, quanto pelas ideia de constitucionalismo, por maior
dico, guiado pelas leis da hospitalida- simplificações que a ética da alteri- que seja sua boa vontade, ainda está
de condicional, revelou-se e revela-se dade vem sofrendo já em anos, pela contaminada pelos anseios tolerantes
incapaz de responder às inúmeras ausência de estudos que realmente do modelo de democracia liberal em
aprofundem as investigações do autor que estamos circunscritos.

74 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


Ouso afirmar, ao lado de Slavoj
“Só há quando afirmam que para a tradição

IHU em Revista
Žižek4, que o inimigo hoje não é mais dos oprimidos a exceção é a regra, o
o capitalismo, mas sim a democracia;
- “a ilusão da democracia”, cuja prin- desconstrução Estado possa determinar qual vida é
digna de ser vivida e qual vida é abso-
cipal perversidade está no fato de so-
mente admitir soluções às suas crises onde há lutamente matável, tornando as nor-
mas constitucionais e internacionais,
a partir de sua própria dinâmica estru- em muitos casos, mera “vigência sem
turante, sem permitir uma transfor- democracia. Só significado”.
mação radical na sua carcaça interna.
A democracia liberal só admite respos- há espaço para o Racionalidade apátrida
tas à sua crise de sentido a partir da Os direitos humanos, a meu ver,
aplicação dos já velhos e empoeira- questionamento precisam da crítica de si. Da crítica de
seus pressupostos. Muitos intelec-
dos mecanismos democráticos. Evoca
sempre o recorrente procedimentalis- incondicional e a tuais dos direitos humanos em geral
buscam respostas concretas para os
mo-constitucionalista, apostando to-
das as fichas na formalização da vida.
O papel, a meu ver, dos direitos
reivindicação pelo problemas dos direitos humanos e
entendem que o problema do seu fun-
humanos é de desconstrução da vi-
são tradicional de direitos humanos,
por vir de uma damento é secundário. Eu parto do
princípio de que a fragilidade da eficá-
ainda envolta em uma padronização
universalizante que não compreende
“democracia real” cia dos direitos humanos está no total
abandono da sua reflexão sobre suas
o problema em sua concretude. Os
Tratados Internacionais de proteção
na imperfeição das bases de fundamento. Abandono de
sua crítica radical. O renascimento dos
dos direitos humanos para apátridas e
refugiados são de extrema importân-
democracias de direitos humanos parte de sua robusta
desconstrução, por óbvio, levando em
conta o mérito da ordem institucional
cia, porém o problema não se dá tão
somente em nível de concretização aqui e agora” em pró da proteção internacional.
dos direitos humanos. Ouso afirmar Para mim, a pesquisa em torno
que um dos graves problemas dos da questão dos apátridas e refugiados
direitos humanos está no abandono não está tão somente nas possibilida-
do direito é a regra para estes restos
de investigar o fundamento dos direi- des jurídicas de se pensar mecanis-
da história.
tos humanos. Há a tese hegemônica mos de proteção internacional para
De forma muito simplificada, esta
de que onde falta direito, basta levá- este grupo de pessoas. Está em pensar
é a ideia de estado de exceção perma-
-lo até lá. Meu pressuposto é outro. ou identificar como opera a violência
nente, proposto por Walter Benjamim
Onde falta direito; - no cerne da vida da racionalidade ocidental que torna
e reproblematizado por Giorgio Agam-
concreta de todos aqueles que Walter possível suportar a ideia de existir um
ben5. Talvez ambos tenham razão,
Benjamin chamou de “restos da histó- ser humano estar absolutamente a
ria”, há uma construção teórica muito margem da proteção jurídica por não
5 Giorgio Agamben (1942): filósofo ter uma nacionalidade, aquilo que
sofisticada por trás (e muito antiga) italiano. É professor da Facolta di Design
que legitima esta falta, dando aparên- e arti della IUAV (Veneza), onde ensina chamo em meu livro de “a ficção da
cia de que todos estão contemplados Estética, e do College International nacionalidade”.
de Philosophie de Paris. Sua produção Como é possível os direitos huma-
pelo sistema. Em outras palavras, se centra-se nas relações entre filosofia,
há uma Norma Constitucional ou um literatura, poesia e fundamentalmente, nos estarem absolutamente sustenta-
Tratado Internacional que garante di- política. Entre suas principais obras, dos a partir da ideia de nacionalidade?
estão Homo Sacer: o poder soberano e Como é possível suportarmos isso? O
reitos ou proteção internacional a um
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a vida nua I (Belo Horizonte: Ed. UFMG,
determinado grupo de pessoas e esta 2002); A linguagem e a morte (Belo
norma não é aplicada, significa que Horizonte: Ed. UFMG, 2005); Infância com o filósofo Fabrício Carlos Zanin.
e história: destruição da experiência Para conferir o material, acesse http://
há uma outra norma, mais forte que e origem da história (Belo Horizonte: migre.me/uNkY. Confira, também, a
a norma instituída, que tem vigência. Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção entrevista Compreender a atualidade
Esta norma que sustenta a suspensão (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007); através de Agamben, realizada com o
Estâncias – A palavra e o fantasma na filósofo Rossano Pecoraro, disponível
cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. para download em http://migre.me/
UFMG, 2007); e Profanações (São Paulo: uNme. A edição 81 da Revista IHU On-
4 Slavoj Žižek (1949): filósofo e teórico Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007 Line, de 27-10-2003, tem como tema de
crítico esloveno. É professor da European o site do Instituto Humanitas Unisinos capa O Estado de exceção e a vida nua:
Graduate School e pesquisador senior no – IHU publicou a entrevista Estado de A lei política moderna, disponível em
Instituto de Sociologia da Universidade de exceção e biopolítica segundo Giorgio http://migre.me/uNo5. Leia, ainda, as
Liubliana. É também professor visitante Agamben, com o filósofo Jasson da Silva edições 344, de 21-09-2010, intitulada
em várias universidades estadunidenses, Martins, disponível para download em Biopolitica, estado de excecao e vida
entre as quais estão a Universidade de http://migre.me/uNk1. A edição 236 da nua. Um debate, disponível em http://
Columbia, Princeton, a New School for IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou migre.me/5WjQm e 343, de 13-09-2010 O
Social Research, de Nova Iorque, e a a entrevista Agamben e Heidegger: (des) governo biopolitico da vida humana,
Universidade de Michigan. (Nota da IHU o âmbito originário de uma nova disponível em http://migre.me/5WjSa.
On-Line) experiência, ética, política e direito, (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 75


artigo XV da Declaração Universal dos
“Como é possível Abstração comum
IHU em Revista
Direitos Humanos diz que todos os se- No mesmo sentido, no que tan-
res humanos tem direito a nacionali-
dade. A meu ver, isso reforça a fixação os direitos ge ao argumento da dignidade da
pessoa humana, o fôlego é perdido
pela ficção da nacionalidade, que gera
uma vinculação com o Estado-nação humanos estarem exatamente também em virtude de
sua protuberante abstração. Como
que levadas as últimas consequências
leva a pensamentos nazi-facistas, regi- absolutamente afirmou Hannah Arendt, ninguém viu
nada de sagrado quando o apátrida,
mes políticos xenofóbicos e o precon-
ceito com culturas diversas. sustentados a perambulante pela Europa, se viu en-
volto tão somente por sua humanida-
Em meu livro concluo uma po- de. Um apátrida na Europa, em tem-
sição radicalmente oposta. Uma al- partir da ideia de pos de Segunda Guerra, não tinha sua
ternativa estaria no desenvolvimento dignidade negada, porém isso nada
de uma racionalidade apátrida, uma nacionalidade? repercutiu concretamente para sua
racionalidade para além da ideia de sobrevivência. Precisava ele cometer
cidadania, para bem além da ideia
de cidadão do mundo, pois essa ideia
Como é possível pequenos crimes para, quando preso,
ter direito a alimentação, direito a um
ainda está contaminada pela noção de
soberania. Uma racionalidade onde o
suportarmos advogado e direito a uma cama para
dormir. Precisava ser um fora da lei
outro seja reconhecido pela concre-
tude de sua singularidade, e não pela
isso?” para estar na lei. Sua mera dignidade
não foi suficiente para contemplar-lhe
ideia de cidadania, pois no momento direitos. Neste sentido, argumentar
em que inventamos a ideia de “cida- em pró da dignidade humana pode su-
dão” imediatamente inventamos tam- gerir o maior de todos os quietismos,
bém a figura do “não-cidadão”. Pen- É como se eu, na tranquilidade se permanecermos pensando-a em
sando dessa forma podemos ver que de meu existir, imerso em meu mun- abstrato.
o conceito de cidadania é excludente. do, dirigindo meu carro pela estrada Não estou aqui querendo neu-
Desconstruir a ideia de nacionalidade em direção a minha casa, após um tralizar as fundamentações que se
significa, em larga medida, descons- leve fim de semana no litoral, ao per- baseiam na ideia de dignidade hu-
truir a ideia de cidadania. ceber uma motocicleta no meio da mana nem questionar a sua imensa
pista e uma pessoa imóvel, caída nas contribuição na construção da cultura
IHU On-Line - Pode-se perceber suas proximidades, parasse o carro e ocidental, mas sim demonstrar a sua
atualmente a fragilidade do argu- prestasse socorro a ela por força do infertilidade e até a sua indecência
mento da dignidade humana no re- “princípio da dignidade da pessoa hu- no panorama de rediscussão da fun-
conhecimento da diferença em escala mana”, fazendo valer os preceitos do damentação dos direitos humanos
mundial? O que isso sinaliza sobre ordenamento jurídico ou para escapar que entendo ser de suma importân-
nossa sociedade? de uma possível acusação criminal, cia. Pois, na maioria dos casos, como
Gustavo Pereira - Esta talvez seja envolvendo omissão de socorro. afirmou Agamben, é indecente falar
a questão mais difícil de percorrer aqui É como se nesse instante de de- em “dignidade” e “decência” aos pro-
em poucas palavras. Dediquei longas cisão, minha atitude se deva a uma tagonistas que formam os “restos da
páginas do meu livro à desconstrução ordem normativa formalizada por um história”.
do argumento principiológico da dig- princípio norteador ou ao medo das Deve-se reestruturar este funda-
nidade da pessoa humana. Tentarei consequências legais e não em virtude mento para que se possa voltar a falar
sintetizar. de se assumir uma loucura em nome em dignidade de forma consistente, ou
Em primeiro lugar, vejo o consa- da justiça, expressada por quem não seja, uma dignidade humana ancora-
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grado amuleto do principiologismo sou, mas que nesse momento pre- da na ideia de paz, que adentre de fato
como (tal qual o constitucionalismo cisa de mim. Por quem toma-me a na crise de sentido que a humanidade
contemporâneo), uma pretensa pro- liberdade. atravessa, pois só adentrando na crise
posta de grande ruptura ao modelo O horizonte jurídico médio sugere é que se pode sair dela e transformá-la
dogmático de se pensar o direito, o que as principais situações envolvendo em crítica, remontando as palavras de
mundo e a vida, mas que em ver- dimensões éticas, em seu instante de Ricardo Timm de Souza. Uma dignida-
dade legitima a manutenção deste decisão, se dão pelo cumprimento ou de que comporte o não-ser, o nada, o
mesmo modelo formal, sem adentrar descumprimento dos princípios pré- impuro, o sem pátria... o diferente - e
as situações concretas das relações -determinados pelas normas jurídicas. um pensamento dos direitos humanos
mundanas. Em outras palavras, todo O principiologismo, em toda sua ca- que tenha como ponto de partida a
principiologismo representa um es- pacidade esquematizante, representa concretude da alteridade; antes mes-
quematismo que, a meu ver, hoje é talvez a principal bengala que sustenta mo da abstração comum atribuída a
insuficiente para se repensar o papel as teorias constitucionais e boa parte ideia de dignidade humana.
crítico dos direitos humanos. das teorias do direito da atualidade.

76 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


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EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 77


IHU Repórter
IHU em Revista

João Hilário Xavier


Por Thamiris Magalhães

“O
bom atendimento é a nos- seu trabalho. “O aluno desenha, a gen-
sa meta”, frisa João Hilário te corta e ajuda o discente a montar,
Xavier, que trabalha há 16 quando dá tempo”. Para ele, o segredo
anos na Unisinos e há oito na maqueta- na maquetaria é saber conversar com o
ria, onde atende e ajuda os estudantes acadêmico, ouvir o que ele pede e aten-
de diversos cursos, principalmente os dê-lo bem. Além disso, Hilário já foi ho-
de Arquitetura, a montar uma maquete. menageado três vezes pelos alunos em
Em entrevista concedida pessoalmente formaturas. Conheça um pouco mais sua
à IHU On-Line, João conta como é feito história de vida.

Origem – Nasci no dia 14-01- mente entrei para a manutenção civil. fez, de fato, eu aprender a trabalhar
1955, em Santa Cruz do Sul-RS. Meu Quando o setor foi terceirizado, tinha na maquetaria.
pai mora sozinho em Venâncio Aires- certa estabilidade. Então, fui para a
-RS e tem 88 anos. Sou o quinto de antiga sede trabalhar na manutenção, Papel relevante – Todos os alu-
12 filhos, sendo que a mais velha é onde trabalhei por dois anos, isso em nos da Arquitetura, antes de se for-
falecida. Os irmãos estão todos espa- 2002. Depois, retornei para o cam- mar, passam por aqui. Salvo engano,
lhados pelo estado e fora dele. Hoje, pus principal, onde estou novamente há apenas um semestre em que os
moro em Sapucaia do Sul-RS, sou desde 2004, desta vez trabalhando na estudantes desse curso não precisam
casado com a Erondina e tenho dois maquetaria. passar por aqui. No restante, é obriga-
filhos, o Elessandro, 34 anos e a So- tória a presença deles na maquetaria.
lange, 31 anos. Tenho a quinta série Maquetaria – Na maquetaria Aqui é um laboratório. Os alunos, nes-
do primário. atendemos e auxiliamos o aluno que se sentido, são obrigados a passar por
vem fazer maquete. Ele desenha, a aqui de qualquer jeito. Ou seja, temos
Autodefinição – Sou tranquilo, gente corta e ajuda o discente a mon- um papel muito importante na forma-
competente, por isso estou até hoje tar, quando dá tempo. Todos os cur- ção destes estudantes, porque aqui é
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na Unisinos. Respeito e honestidade sos vêm aqui, pelo menos uma vez no a prática deles: o outro lado da teoria
são duas palavras que trago de berço ano, menos Administração e Direito, que eles têm na sala de aula.
e que coloco para dentro do trabalho. mas a maior frequência são alunos
do curso de Arquitetura. O segredo Gratificação – E o legal é isto:
Trajetória profissional – Traba- na maquetaria é saber conversar com poder ajudar o aluno. Sinto-me feliz
lhei em empresas de construção como o acadêmico, ouvir o que ele pede e e realizado. E eles também. Além dis-
pedreiro. Acidentei-me e saí da cons- atendê-lo bem. O bom atendimento so, criamos uma amizade grande com
trução. Nessa ocasião é que fui para é a nossa meta. Hoje, para trabalhar eles. Outra coisa que acho muito legal
a indústria, na área de produção de aqui, exige-se que seja um marcenei- é o reconhecimento dos alunos fora
lã, onde trabalhei oito anos. Depois, ro. Na minha época isso não era exigi- da Universidade. Outro dia, estava
vim para a Unisinos. Estou aqui desde do. Mas quando vim para cá tive que em Porto Alegre e ouvi um grito: “seu
1996, ou seja, há 16 anos. Primeira- fazer um teste. O dia a dia foi o que João!” Quando olhei para trás, vi que

78 SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 401


IHU em Revista
era um aluno. Então, onde vamos en- Lembrança – Guardo várias lem-
contramos alguém que nos reconhe- Unisinos – A Unisinos é como se branças de antigos alunos. Mas uma
ce. E isso é muito legal. Trabalhar com fosse minha casa. É de onde tiro meu que me marcou foi de um ex-aluno,
os alunos é gratificante. sustento. cadeirante, que queria cancelar o cur-
so, e não o fez porque o coordenador
Lazer – Nesses últimos tempos, Homenagens – Fui homenage- do curso de Arquitetura, professor
gosto muito de ficar em casa, princi- ado três vezes pelos alunos em for- Adalberto Heck Vilmar Mayer, deu for-
palmente porque acabei de fazer uma maturas, como um funcionário que ça para ele. E, para minha surpresa, no
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cirurgia. Então, gosto de chegar à mi- foi importante para eles em suas jor- dia da formatura, ele estava lá, com a
nha casa e descansar. nadas acadêmicas, que os ajudaram mãezinha dele. Aquilo para mim foi
Livro – Tem um que estou lendo em algum momento de sua vida nes- emocionante e minha maior surpresa.
pela segunda vez: é O livro de Mórmon ta Universidade. Geralmente são alu- Ele contar sua história junto do pro-
– outro testemunho de Jesus Cristo. nos do curso de Arquitetura. É feita fessor Adalberto, de Arquitetura, que
uma votação entre os funcionários, e foi o coordenador homenageado e a
Religião – Católica. o mais votado é o escolhido. No dia pessoa que muito o apoiou. Aquilo me
da formatura, sento-me à mesa junto marcou muito.
Filme – Os de ação. com o Reitor e professores homena-
geados. E é bem legal. Esse é o nos-
Sonho – Hoje, meu sonho é vir so prêmio. Além disso, vários alunos
minha aposentadoria para ficar mais que se formam retornam aqui, e isso
tranquilo. é gratificante.

EDIÇÃO 401 | SÃO LEOPOLDO, 3 DE SETEMBRO DE 2012 79


Contracapa
IHU em Revista
George Coyne no XIII Simpósio Internacional IHU Igreja,
Cultura e Sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no
contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica
“Implica- dia 3 de outubro de 2012, das 9h às 10h30min, no
ções da evo- auditório central da Unisinos. Na noite deste dia, ele
lução cientí- participará do debate com Marcelo Gleiser, professor
fica para as de física teórica no Dartmouth College, em Hanover
semânticas da (EUA). As atividades fazem parte do XIII Simpósio
fé cristã”. Este Internacional do IHU, Igreja, Cultura e Sociedade. A
é o tema da semântica do Mistério da Igreja no contexto das no-
Conferência vas gramáticas da civilização tecnocientífica. Maiores
que será proferida pelo Prof. Dr. George Coyne, do informações: http://migre.me/awnh1.
Vatican Observatory, da University of Arizona/EUA, no

Educação para a paz segundo Hobbes


O Cadernos IHU ideias, em sua 175ª edição, de 29 A versão completa desta
de agosto de 2012, apresenta “Um caminho de educa- edição estará disponível no sí-
ção para a paz segundo Hobbes” de Lucas Mateus Dal- tio do IHU (www.ihu.unisinos.
sotto e Everaldo Cescon. br) a partir de 28 de setembro
de 2012 para download em for-
O texto de Lucas Mateus Dalsotto, mestrando em mato PDF.
Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, e de
Everaldo Cescon, professor do Programa de Pós-Grad- Os Cadernos IHU ide-
uação em Filosofia (Mestrado em Ética) na Universidade ias podem ser adquiridos na
de Caxias do Sul – UCS, apresenta, segundo palavras Livraria Cultural, no campus
dos autores, “a contribuição do filósofo Thomas Hobbes da Unisinos ou pelo endereço
(1588/1679) no que tange aos elementos constitutivos de livrariaculturalsle@terra.com.
uma educação para a paz”. br. Informações pelo fone (51)
3590 4888.

Apátridas e refugiados
Apátridas e re- Sobre ele, o palestrante concedeu uma entrevista,
fugiados: direitos publicada na presente edição.
humanos a partir da
ética da alteridade, O evento será realizado no dia 06 de setembro,
com o Prof. MS Gus- das 17h30min às 19h, na sala Ignacio Ellacuría e Com-
tavo Oliveira de Lima panheiros, no IHU. Maiores informações: http://migre.
Pereira, da Funda- me/awnt3.
ção Meridional –
IMED, é tema do
próximo IHU Ideias.

twitter.com/ihu bit.ly/ihufacebook

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