Você está na página 1de 2

Revelando os mundos contidos no mundo:

uma análise sensível do recital do violonista Lucas Chagas.


“Há um outro mundo, e ele está nesse mundo.”
Paul Éluard

Quando se diz ordinário se refere ao que é comum, habitual, que se repete com regularidade.
A vida é ordinária. Pelo menos para a maioria de nós, pessoas comuns que vivem atrelados a
um mundo já construído que nos limita de diversas formas. Reduz-nos principalmente pela
linguagem: basicamente gesto, fala e pensamento. Assim, repetimos dia a dia os mesmos
gestos, pensamos sempre muito restritamente nas mesmas coisas, falamos com as mesmas
palavras decodificadas há muitos e muitos anos (na verdade, falamos até com menos palavras
do que antes). Da mesma forma que expandimos, historicamente, pela linguagem, passamos
agora por uma estagnação devida, também, a linguagem. Muitos foram os que tentaram,
extrapolando a linguagem já construída e posta, libertar a si e os outros. Libertar-nos como
seres além humanos. Ou então como seres de fato humano, com toda a potencialidade que
ser humano contém.

É que olhando para a realidade como ela é, fazendo os gestos necessários no dia-dia,
pensando o que é justo para cumprir as tarefas, falando somente para comunicar o já sabido,
vamos fortalecendo um mundo. Um único mundo que já existe e que está aí, construído. Um
mundo que foi feito para servir a si próprio, descartando nossas reais necessidades de
libertação, expansão e transcendência. Nesse mundo, há um outro mundo. Ou outros
mundos? Realidades por trás da realidade?

Há momentos em que, por motivos diversos, outras realidades são instauradas. Um outro
mundo de revela, naquele mesmo mundo de sempre. Do que não se imagina que possa extrair
nada, o invisível se faz visto. Ou sentido. Ou vivido. Momentos como esses estão cada vez mais
incomuns e é preciso muita atenção, muita astúcia e muita sutileza para se alcançar lugares
assim. Pontos discretos de transcendência. Momentos de realização do indizível. Atos de
transcendência da linguagem.

Esses pontos/momentos/atos podem acontecer na arte. Um desses aconteceu numa sala


aparentemente comum, com cadeiras espalhadas em frente a um pequeno palco. Lá em cima
estava Lucas Chagas. Na verdade a coisa começa a acontecer antes, quando vindo de algum
lugar misterioso ouve-se o som das cordas do violão sendo provocadas. O som chegou manso,
brincalhão, vindo como num jogo de esconde-esconde até nossos ouvidos, nos instigando a já
começar sentir além. Em seguida veio ele, o causador do som, entrada discreta e tranqüila,
com um sorriso maroto de quem sabe o que está por vir. Ele senta na cadeira, arruma com
calma cada detalhe: o apoiador de pés, o tripé que segura o livreto de partituras, a página
certa do próprio livreto, os tapetinhos que amortecem o apoio do violão nas pernas, um
equipamento que se gruda no violão para ajudar nesse apoio, enfim, todos os detalhes que um
violinista clássico precisa (ou fingi precisar) para fazer sua mágica. E a canção/poção logo
começa.

Carulli, Carcassi, Sor, Giuliani, Coste, Aguado, Bach, Mozart, Powell, Paulinho da Viola. Entre
eles o Chagas, com suas pausas únicas, sua respiração concentrada, os dedos dançantes, o
olhar que acompanha cada variação rítmica. Um jeito todo particular. Uma performance
especial. O que mais tocante em um recital assim é poder - além de ouvir a música em seu
estado mais puro, saída direto do instrumento que lhe dá vida – ver os detalhes de cada gesto
do músico, cada pequeno movimento de sobrancelhas, dedos, ombro, pé. É ver a arte saindo
da vida, do corpo-alma do artista em estado de pulsão.

Quanto ao público restava abrir-se para a sensibilidade que lhe era possível e ver surgir, diante
de si, os outros mundos escondidos naquele mundo. Através das notas que se organizavam no
tempo e espaço os mundos iam se construindo sem limitações, sem barreiras, sem
constrangimentos. Mundos que nos fazem ir além da linguagem, ir além do pensamento
habitual, da fala habitual, do gesto habitual. Mundos que nos fazem perceber o que
normalmente está escondido. Nos perceber. Mundos de transcendência.

Você também pode gostar