Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Meu cansaçoo
de volta para o escudo, aquele depois dos filhos, do dinheiro, corre para
O guarda-chuva transparente de simplesmente não querer mais nada.
382
ela quer que eu
diga, mas
palavra não sai da minha
boca, não agora
Sinto apenas o gosto de toalha molhada ra.
que há
território que vou lambendo
espalhado por todo a
pouco a pouco.
384
Melhor que me otereça a toda
diversa monotonia de uma manhä sem
a
clima definido. Topo com uma lâmpada acesa quando já é dia, híbrido
de artificio e natureza que sempre me dá aflição. Se já amanheceu,
apaguem logo as lämpadas. Aquele amarelo delas, encantador à noite,
fica patético de dia, um pouco como uma marca de batom, ou a dor de
cabeça, a lembrança do ridiculo, a boca seca do que se bebeu ontem
porque acreditávamos que a noite não ia acabar nunca. Então apaguem
logo a lâmpada. Mas há uma doçura única de manhäzinha, agora que
acordo cedo eu sei, uma doçura que nunca passa das sete, mas que
persiste atë as sete, bem nítida, associada ao silêncio sem trânsito da
cidade, ao frio dessa hora e principalmente à tonalidade intermediária,
noite acendida ou dia apagado, indecisa entre os dois reinados. Gosto de
encontrar os cachorros de ontem já despertos, como mendigos solitários
voltando para suas tocas. Há uma espécie de comunidade entre as pessoas
quando é assim cedo, como se o dia ainda não tivesse nos machucado
muito. E nessa hora que a manhâ mostra toda a malva afirmação da sua
claridade doce, atenta aos meios-tons, sem o exibicionismo escandaloso,
exageradamente contrastado das horas seguintes.
385
como um desânimo diante da imensidao do que se tem pela frent.
te.
da sucessão numérica de banalidades que vao constituir aquele dia
posso sentir as
patinhas da minha centopeia. Meu
çansaço, E quase
com conforto que volto a ele, como quem veste um sapato velho.
um
repasto bovino solitário que acabo
e naturalmente esquecendo,
escovo os dentes, vistoo meu filho menor, despejo o leite na xícara do do
meio. Então fico sozinho, ela ainda dorme, ela pode dormir sempre que
quiser porque está convalescendo, então fico sozinho, a primeira manh
ja passou, tenho apenas mais alguns minutos antes de entrar no palco
e dar bom-dia a uma dúzia de pessoas. E então que meu cansaço vai
subindo por minhas mãos, esponjosas por ele, desde o cheiro da tinta
do jornal ou do sabor agudo da laranja. Ele soletra: anda, alongando
o tempo dos meus passos, -respira, diminuindo meu fôlego. E quanao
me perguntam como vai eu respondo bem, mas na verdade sei que estou
ac
carrego a mercadoria secreta da minha tristeza, da minha vontade
desistir.
386
Mais do que tudo, no entanto, meu cansaço me afasta dela. Ela que
pode tudo (porque está convalescendo), só pode scr frcada pela minha
morte. Na ausencia disso, por uma doença minha mais séria do quc a
dela. Na ausència disso pela minha raiva ou mau-humor (agudos, mas
breves). Na auséncia disso pelo meu cansaço. Posso deixar que fale de
si mesma durante um mês inteiro, que quase tome o número necessario
de medicamentos para morrer, que corte a própria pele durante o
banho, tingndo a espuma de vermelho, que chore durante toda a tarde,
acompanhando a queda do sol, que durma 48 horas seguidas porque
estoucansado, estou muito cansado, há uma câmara de cortiça dentro
de mim onde toda essa contusão se aquieta.
EL
O curiosoé que ninguém sabe como estou cansado. Ela não sabe (eu sei).
Olha pra mim como me olhava antes, me pede coisas, e acho estranho
que me tome pelo que ainda consigo fazer. Não vê que é só minha
rcaça? Que vou cair fulminado antes de chegar à cozinha? Ninguém
387
ve, nem vou embora, nem me espatifo para sempre no chão. Para isto
que me movimente dentro dele. Essa soneca pastosa e suada não é nada
boa. Alivia o cansaço, meu cansaç0, mas perturba, com a possibilidade
de migrações mais distantes, aquele võo rasteiro que faz passar as horas
e ancora o dia. Alguma cOisa acontece nestes minutos, um descuido do
389
hábito (mas alguns conseguem até mesmo sonhar por
hábito). ciSinto e
aue acordo mais deprimido, como quem pisou sem
transpor a porta da
cadeia (dia, cadeia) e voltou para a cela.
390
o corpo dela de costas pra mim (cla dorme o tempo todo porque
próprio cansaço.
391
3. Meu mar
Estou em São
Paulo, a cem quilômetros do mar, tentando lembrar. Que
mar devo escolher?
Aquele que espatifa contra as pedras e arrasta alguns
turistas bbados? Aquele que vai espalhando uma onda baixinha e lenta
entre Itanhaém e Peruíbe, morno e lodoso, como se tivesse nascido
sujo? Ou aquele das praias côncavas e claras de Ubatuba, as sombras
bojudas dos cascos brancos refratadas no fundo? São poucos os mares
que conheço e nunca passei muito tempo perto do mar, mas agora me
lembro do mar, lanço meu grito para ele. Não para a praia, o futebo
na areia dura, não para os prédios bêbados, inclinados, de Santos, onac
passava as térias e tomava caldo de peixe, mas para o mar abstrato ond
possa dormir - onde possa ser algo diverso do meu cansaço sem soO
392
Tudo o que vivi deve afundar ali -
394
E assim, como se retornasse de uma longa viagem da qual já nao
alheio
lembro nada que me aproximo de voce, mar remoto mas íntimo,
setimento de que mereço vOce
mas meu. Tenho um agora
vocë
alcançar outra praia dentro de uma garrafa,
mas a
voce, tentando
a
no meio delas, em papel comum que
mesmo, lançada em tuas ondas,
tua espuma logo vai dissolver.
395
Copyright © 2007 by Nuno Ramos
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
Ramos, Nuno
CDD 869.94
07 -8386
sistemático:
indices para catálogo
1. Ensaios Literatura brasileira 869.94
para o Brasil
Direitos de edição em língua portuguesaS.A.
Editora Globo
adquiridos por
São Paulo sp
-
1485--05346-902