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A fabricação da cultura popular no campo museal de Sergipe: a musealização do teatro


de bonecos em Aracaju

Clovis Carvalho Britto1


Jean Costa Souza2

Resumo: O artigo apresenta o projeto de pesquisa cujo objetivo é analisar as estratégias de


fabricação e promoção do folclore e da cultura popular nordestina (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2013) tendo como foco a imaginação museal (CHAGAS, 2005) relacionada ao
teatro de bonecos em Sergipe. A partir de diferentes aspectos da musealização dos saberes em
torno do Mamulengo de Cheiroso, grupo de teatro de bonecos sergipano atuante desde 1978,
problematiza o modo como a arte e a cultura popular são representadas por meio dos
processos museológicos na exposição de curta duração 'Mamulengo de Cheiroso: a magia do
teatro de bonecos', no Museu da Gente Sergipana, e na exposição de longa duração na 'Sala de
Cultura Popular', do Centro Cultural de Aracaju. Os pressupostos que orientaram a proposta
dialogam com os apresentados por Suely Kofes (2001) quando projetou fazer da intenção
biográfica um exercício etnográfico. Soma-se a esse fato, o reconhecimento de que a memória
se pauta em um jogo entre lembranças e esquecimentos e, no âmbito individual, na disputa
entre o que deve ser lembrado, narrado, fabricado. Questões que desembocam em embates de
uma política da memória que permeia a constituição das narrativas. O intuito é identificar as
estratégias de produção da crença (BOURDIEU, 2002) na arte e na cultura popular, acionadas
por meio dos diferentes discursos sobre o teatro de bonecos no campo museal de Sergipe
manifestos nas expografias.
Palavras-chave: Cultura Popular; Musealização; Mamulengo do Cheiroso.

Introdução

O grupo de teatro de bonecos sergipano Mamulengo de Cheiroso possui trinta e seis


anos de história, consistindo em um dos principais grupos culturais que divulgam os saberes e
fazeres relacionados à cultura popular. Essa trajetória, conforme explicitado no catálogo da
exposição comemorativa empreendida pelo Museu da Gente Sergipana, em Aracaju, “permite
desvendar aspectos tão imprescindíveis de nossa cultura, perpassando pela oralidade, folclore,
música, vestuário, tipologias fisionômicas, gestos, personalidades, roteiros de vidas” (DEDA,
2015, p. 7).

1
Pós-Doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Sociologia pela
Universidade de Brasília. Professor na Universidade Federal de Sergipe. E-mail: clovisbritto5@hotmail.com
Apoio: CNPq.
2
Graduando em Museologia pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista de Iniciação Cientifica PIBIC-
CNPq. E-mail: jheansouza97@gmail.com
2

Esse fato se torna importante na medida em que reconhecemos que o Mamulengo de


Cheiroso se tornou síntese da cultura popular nordestina e sergipana. Os saberes relacionados
ao teatro de bonecos do Nordeste contribuíram para, inclusive, seu registro enquanto
patrimônio imaterial nacional. No caso sergipano, mais especificamente de Aracaju, nossa
hipótese é que o teatro de bonecos também consiste em metáfora e metonímia do folclore e da
cultura popular, nos moldes problematizados por Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(2013):

Sempre que se fala em cultura nordestina, esta é remetida para um conjunto


de manifestações culturais que foram objeto de apropriação e nomeação por
parte de um importante grupo de folcloristas que atuaram nesta área do país
entre final do século XIX e meados do século XX. Eles, através de suas
pesquisas, de seus escritos, de suas ações institucionais e de suas práticas,
foram definindo e instituindo o que deveria ser visto e dito como sendo a
cultura desta região, aquilo que seria típico, particular, singular, autêntico
deste espaço e que manifestaria, portanto, sua própria essência, sua própria
identidade (p. 21).

No caso sergipano essa configuração adquire centralidade na medida em que uma das
principais responsáveis pela “escrita do folclore”, a professora Aglaé Fontes, é uma das
fundadoras e das principais estimuladores do grupo de teatro de bonecos. Imprime ações no
intuito de fabricar a imortalidade desse símbolo do “folclore sergipano”, inclusive
empreendendo exposições museológicas: “perenizando a forma do povo narrar suas histórias,
por todo o sempre” (FONTES, 2015, p. 25).
De acordo com Fernando Santos (1979), o teatro de bonecos é uma forma de expressão
de alguns estados nordestinos praticada por “artistas do povo”. Essa forma denominada
mamulengo seria um teatro com características “inteiramente populares”, revelando de modo
próprio “a rica expressividade do dia-a-dia do povo da região” (p. 11). Em suas análises, a
partir do mamulengo é possível recuperar aspectos da história do teatro de bonecos no Brasil,
áreas de sobrevivência, as distinções no meio rural e urbano, ciclo de apresentação, locais e
eventos motivadores, o público, a estrutura funcional do brinquedo, os mamulengueiros, o
espetáculo, os bonecos. No mesmo aspecto, Hermílo Borba Filho (1966) afirma que o
mamulengo consiste em uma das mais autênticas manifestações do nordeste e de teatro
popular “forma de espetáculo total onde o boneco é o personagem integral e público um
elemento atuante” (p. 15), conforme podemos observar em nosso estudo de caso:
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Assim é o Mamulengo de Cheiroso, um empreendimento familiar


comandado por Mestre Augusto e Seu Cheiroso, o boneco-protagonista que
se funde com o seu criador-manipulador-intérprete. A simbiose entre esses
dois se encaixa perfeitamente na relação escrita por Hermilo Borba Filho em
‘Fisionomia e Espírito Mamulengo’, que ressalta como a união da matéria do
homem à matéria do boneco faz gerar uma nova figura artística: ‘a alma do
homem da ao boneco também uma alma e, nesta pureza, realizam um ato
poético’ (RANGEL, 2015, p. 15).

O mergulho nessas discussões se torna um modo de explicitar vinculações


hierarquizantes entre a trajetória dos agentes responsáveis pela fabricação/consagração do
folclore e da cultura popular nordestina e sergipana, nos moldes apresentados por Regina
Abreu (1996), e os registros produzidos, estratégias de demarcação e ocultamento. Os objetos
e documentos, versões e construções acerca de acontecimentos reais, podem se transformar
em “fonte poderosa de legitimação, com todas as incongruências aí subjacentes, que
envolvem desde os silenciamentos, ofuscamentos e distorções, até a supervalorização dos que
detêm maior capital social” (FANINI, 2009, p. 6), daí porque investigar as presenças consiste,
ao mesmo tempo, em um estudo das ausências. Isso ganha relevância quando reconhecemos
as tensões em torno da própria noção de cultura popular:

Antes, porém, é bom deixar claro que não entendo cultura popular como um
conceito que possa ser definido a priori, como uma fórmula imutável e
limitante. Talvez possa ser visto como uma perspectiva, no sentido de ser
mais um ponto (de vista) para se observar a sociedade e sua produção
cultural. O fundamental, no meu modo de ver, é considerar cultura popular
como um instrumento que serve para nos auxiliar, não no sentido de
resolver, mas no de colocar problemas, evidenciar diferenças e ajudar a
pensar a realidade social e cultural, sempre multifacetada, seja ela a da sala
de aula, a do nosso cotidiano, ou a das fontes históricas. Não se deve perder
de vista, entretanto, como já ouvi certa vez, que muito mais fácil do que
definir cultura popular é localizá-la em países como o Brasil, onde o acesso à
chamada modernidade não eliminou práticas e tradições ditas pré-modernas
(se bem que todo cuidado é pouco para identificar estas práticas e tradições
como populares) (ABREU, 2003, p. 3).

Visto sob esse entendimento, a ideia de folclore e cultura popular e de práticas a eles
relacionadas, a exemplo do teatro de bonecos, consiste em uma estratégia de produção da
crença no campo de produção simbólico (BOURDIEU, 2002). Nesse sentido, poderíamos
pensar em culturas populares, no plural, e reconhecer os museus como uma das instituições
responsáveis pela consolidação dessas versões, produzindo e difundindo crenças a respeito de
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agentes, grupos e práticas consideradas representativas. Talvez por essa razão, seja oportuno
sublinhar as orientações de Mário Chagas (1990; 1994) quando reconheceu a Museologia e os
museus como um determinado modo de olhar, interpretar e captar a realidade. Desse modo, o
campo de estudo estaria delimitado pelo chamado “Ternário matricial da Museologia”: o
sujeito, o objeto/bem cultural e o espaço/cenário.
É nas interfaces desses elementos que devemos considerar a musealização e a imagem
do museu, inserindo, assim, o componente social e a contemporaneidade como significativos
à compreensão do campo museal, aquilo que alguns autores designam de Museologia Social,
uma museologia centrada nas pessoas e não apenas nos objetos. E é nesse contexto que se
torna fundamental reconhecermos as exposições museológicas como importante recurso para
compreensão dessa configuração.
Os museus e suas expografias consistem em ações de “vigilância comemorativa” e de
“explosões discursivas”. Discursos que contribuem para o que designamos de
monumentalização de agentes, no nosso caso de temas, práticas e personagens, a partir de um
saber fazer relativo ao teatro de bonecos. Nesse caso específico, do Grupo Mamulengo de
Cheiroso. As exposições, nesse aspecto, instaurariam o processo de invenção da imortalidade,
quando uma pessoa ou grupo passa a integrar o patrimônio de uma nação ou região, tornando-
se homem ou mulher-monumento (Cf. ABREU, 1994). Por outro lado, esses mesmos espaços
consistem em locais de fabricação de silêncios, do fortalecimento de versões oficiais, de
combate a versões concorrentes, apresentando certas representações do Nordeste e do Sergipe
por meio da valorização dos textos e contextos apresentados pelas narrativas do grupo de
teatro de bonecos.
Nosso intuito será inventariar tais estratégias de fabricação da imortalidade do folclore e
da cultura popular tendo como estudo de caso a musealização do Mamulengo de Cheiroso por
meio dos processos museológicos na exposição de curta duração “Mamulengo de Cheiroso: a
magia do teatro de bonecos”, no Museu da Gente Sergipana3, e na exposição de longa duração
na “Sala de Cultura Popular”, do Centro Cultural de Aracaju4. Por meio dessa análise,

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O Museu da Gente Sergipana é uma instituição sem fins lucrativos que tem como objetivo a promover a
“cultura sergipana”. Criado no ano de 2011, o museu nasce de uma parceria entre o Governo do Estado e o
Banco do Estado- BANESE (Instituto Banese).
4
O Centro Cultural de Aracaju faz parte das políticas públicas desenvolvidas pela Fundação Cultural de Aracaju
- FUNCAJU, para estimular e disseminar as atividades culturais, de educação e arte possibilitando o lazer e
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apresentaremos algumas estratégias/repertórios que desembocaram em uma “imaginação


museal” (Cf. CHAGAS, 2005). Trata-se de visualizar como as exposições museológicas
podem contribuir para a fabricação de imortalidades e perpetuação de legados
monumentalizadores de discursos sobre as culturas populares e, ao mesmo tempo, ao forjarem
narrativas ocasionam um silenciamento de determinados aspectos de uma trajetória ou, em
outras palavras, o esquecimento.
Desse modo, os pressupostos que orientaram a elaboração da pesquisa dialogam com os
apresentados por Suely Kofes (2001) quando projetou fazer da intenção biográfica um
exercício etnográfico. Para tanto, a autora destaca que não narrar alguém ou algo é um
mecanismo eficaz de instituí-los como “mortos” metaforicamente, de conferir uma identidade
a partir da não identificação. Soma-se a esse fato, o reconhecimento de que a memória se
pauta em um jogo entre lembranças e esquecimentos e, no âmbito individual, na disputa entre
o que deve ser lembrado, narrado, fabricado. Questões que desembocam em embates de uma
política da memória que permeia a constituição das narrativas.
O estudo das intenções e gestos dos profissionais de museus responsáveis pelas
exposições museológicas se tornará fundamental. A partir dos bastidores e das cenas da
expografia visualizaremos a tessitura de narrativas e de silêncios visando, assim, compreender
as memórias manipuladas e a crença produzida pelo processo de musealização (BOURDIEU,
2002) ou, em outras palavras, trazer algumas contribuições para refletir sobre as concepções
expográficas e o modo como instituem uma memória espacializada. Ações ainda pouco
explicitadas na fortuna crítica sobre museus e exposições, especialmente no caso brasileiro.
Vistos sob esse ângulo, os museus e suas exposições se tornam instrumentos de poder
onde a manipulação de linguagens empreende uma “batalha de memórias” através da
produção de crenças que ora imortalizam, ora silenciam determinados temas e sujeitos. No
mesmo viés, torna-se necessário compreender de que modo tais crenças impactam a
comunidade em que os museus estão inseridos, tornando-se trunfo significativo no campo de
produção simbólico. Aqui definimos expografia de acordo com a orientação de Marília Xavier
Cury (2005) como parte da museografia, “a forma da exposição de acordo com os princípios
expológicos e abrange os aspectos de planejamento, metodológicos e técnicos para o

atividades gratuitas abertas à população. Disponível em: http://aracajufest.com.br/centro-cultural-de-aracaju


Acesso em: 20 ago. 2016.
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desenvolvimento da concepção e materialização da forma” (p. 27). Seriam, para dialogarmos


com a definição de Ulpiano T. Bezerra de Meneses (1994), as múltiplas malhas de mediações
internas e externas que envolvem os artefatos no museu, “os processos, sistemas e motivos de
seleção (na coleta, nas diversificadas utilizações), passando pelas classificações, arranjos,
combinações e disposições que tecem a exposição” (p. 20).
Nesse aspecto, seja pela importância de reconhecer os museus e suas expografias como
espaços de poesia e de poder, seja pela escassez de trabalhos relacionados ao lugar da cultura
popular nos museus brasileiros e à tessitura das exposições, a pesquisa evidenciará a
fabricação do folclore e da cultura popular tendo como recorte a musealização do teatro de
bonecos em Sergipe. No mesmo sentido, problematizará como as exposições, ao selecionarem
narrativas por intermédio das coisas, produzem a crença no Mamulengo de Cheiroso e
formatam determinados projetos de “imaginação museal”.
A seleção de intenções e de gestualidades para a produção de determinadas crenças a
partir da manipulação de repertórios expográficos nos museus, compreendidos enquanto
espaços de produção, arquivamento e circulação de memórias, dialoga com a expressão
“imaginação museal” cunhada por Mário Chagas (2005):

Um museu, seja ele qual for, só pode ser produzido e reconhecido como tal,
quando está inserido numa codificação social compartilhada, quando faz
parte de uma experiência comum. Sobretudo nas sociedades complexas e
contemporâneas essa experiência que denomino de participação museal é um
dado concreto. Na raiz dessa experiência está aquilo que se denomina de
imaginação museal. É com base nessa imaginação que os museus são
produzidos, reconhecidos, lidos, inventados e reinventados. A minha
sugestão é que a imaginação museal seja compreendida como a capacidade
humana de trabalhar com a linguagem dos objetos, das imagens, das formas
e das coisas. A imaginação museal é aquilo que propicia a experiência de
organização no espaço - seja ele um território ou um desterritório - de uma
narrativa que lança mão de imagens, formas e objetos, transformando-os em
suportes de discursos, de memórias, de valores, de esquecimentos, de
poderes etc., transformando-os em dispositivos mediadores de tempo e
pessoas diferentes (p. 57).

Para tanto, reconstruiremos a trajetória do teatro de bonecos Mamulengo de Cheiroso e


das exposições no Museu da Gente Sergipana e na ‘Sala de Cultura Popular’, do Centro
Cultural de Aracaju. O intuito é perceber o modo como fabricam a partir de seus acervos
determinadas narrativas sobre o lugar dos saberes, grupos e personagens relativos ao folclore
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e às culturas populares. Para tanto, além de entrevistas com os curadores das exposições e
integrantes do teatro de bonecos, serão consultados catálogos, folders, matérias de jornais e
sites, além de revisão bibliográfica sobre o teatro de bonecos no Nordeste e especialmente em
Sergipe, visando compreender as escolhas utilizadas para a fabricação de determinadas
crenças sobre essas práticas e sobre determinada “imaginação museal”.

Musealizando a cultura popular

A história do teatro de boneco segundo Hemilio Borba Filho (1966) representa “uma
tradição e uma história tão antiga quanto o homem” percebida pelas referências culturais
carregam através das encenações do teatro de boneco e seus elementos cênicos, narrativas
proferidas nas falas dos personagens, tornando o Mamulengo de Cheiroso um dos elementos
dinâmicos frente às referências culturais locais.
Pensar a musealização dos bens categorizados materiais e imateriais, é constituir uma
nova linguagem para o objeto, é ressignificá-lo dentro de um universo museal sendo este
pensado e classificado a cada etapa do processo museológico frente uma coleção. Sendo
assim o objeto que antes pertencia ao espaço comum de uso passa se tornar substrato
representativo de um repertório ou de uma narrativa museal.
Segundo Waldisa Rússio (1984), a musealização é umas das ferramentas de preservação
que visa a partir da transferência de um objeto do seu contexto original para o espaço
museológico, classificá-lo como documento/testemunho de uma realidade. Ou seja, o
processo de separação, classificação e ressignificação desse artefato instaura uma nova
configuração para objeto, tornando-o suporte de informação que passa a ser reconhecido
como objeto museológico.
Para Desvallés e Mairesse, (2013) a musealização é vista como uma ação que perpassa a
noção de preservação do objeto no espaço museal. Segundo eles há uma transferência de
conceitos, significados, onde as ações práticas de musealização do objeto o coloca em graus
de especialidade:

Um objeto de museu não é somente um objeto em um museu. Por meio da


mudança de contexto e do processo de ‘thesaurização’ e de apresentação,
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opera-se uma mudança no estudo do objeto. Seja este um objeto de culto, um


objeto utilitário ou de deleite, animal ou vegetal, ou mesmo algo que não
seja claramente concebido como o objeto, uma vez dentro do museu, assume
papel de evidencia material do homem e do meio, e uma fonte de estudo e de
exibição, adquirindo, assim, uma realidade cultural especifica
(DESVALLES, MAIRESSE, 2013, p. 57).

Assim, há uma cessão de significado onde o objeto passa a ser objeto museal, perdendo
a sua utilidade primordial e adquirindo novo sentido, uma vez que retirado do seu contexto
inicial “perde informações primitivas” e torna-se “substituto dessa realidade que deve
testemunhar” através da comunicação museal.
Nesse sentido, entende-se a musealização como um conjunto de ações técnicas que
relacionadas ao processo de classificação, preservação, e comunicação do objeto, confere a
sociedade a fabricação de novos signos, reconhecendo os espaços museológicos como
“espaços de poder legitimadores de narrativas, promotores de discursos” (BRITTO, 2016, p.
52).
Dessa forma a preservação da memória acionada através da musealização dos bens
culturais que se torna elemento representativo do ser humano com o seu meio, neste caso o
teatro de boneco, contribui para a elaboração de uma linguagem expografica onde
apresentação de narrativas sobre o Mamulengo do Cheiroso no Museu da Gente Sergipana e
no Centro Cultural Aracaju resumiria o que tem de mais “genuíno” nos fazeres e saberes na
cultura “povo sergipano”. De acordo com Fernando Santos (1979):
O mamulengo é um fenômeno vivo, dinâmico, em constante processo de
mutação, de transformação. Sendo de natureza dramática, possui
possibilidades consideravelmente mais amplas de incorporar fatos culturais
do cotidiano, e de absorver inclusive, como veremos, outros folguedos
através de seu processo de representação centrado na teatralização do mundo
que o cerca, levando a cena os brinquedos, as contradições, costumes e
tradições da comunidade onde subsiste. Dessa forma em continua transição o
brinquedo vem apresentando processo de transformação que atestam seu
caráter dinâmico, como a passagem do presépio para o mamulengo, ou do
presépio de fala para o teatro de bonecos mecanizados, as casas de farinha
ou ainda a mudança de roteiros tradicionais para roteiros mais renovadores,
englobando assuntos de interesse atual do público a que se destina, uma
constante renovação e transformação de determinados aspectos do brinquedo
(SANTOS, 1979, p. 34).

No caso da exposição da curta duração “Mamulengo de Cheiroso: a magia do teatro de


bonecos”, no Museu da Gente Sergipana tem como configuração expografica a presença de
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bonecos de luva, boneco de manipulação direta, boneco marionete, boneco de gatilho,


exibição de um vídeo sobre a criação do mamulengo no Brasil e em Sergipe; uma interação
mímica que ao refletir sombras em um expositor gera formas e conota as primeiras aparições
do teatro de boneco. Conta com murais informativos de apresentação do grupo durante seus
36 anos de história, como também a presença de uma réplica do próprio cheiroso - chamariz
do grupo. Também representa um grupo de reisado, denominado “Baile Estrelas” feitos de
bonecos mecanizados, tendo ao lado uma estante com objetos que fazem parte da encenação
do grupo.
O discurso que propagado configura-se em uma linha cronológica baseado no estudo de
Hemilio Borba Filho (1966). Ou seja, seguido uma linha do tempo de apreciação, a exposição
se resume a uma visão contemplativa, que por meios de recursos tecnológicos e expositores
com vitrines, exprimem segundo Clovis Britto (2016) “na medida em que contribuem para
fabricar e projetar versões especifica sobre fatos, personagens e objetos eles impõem a sua
própria narrativa” (p. 51).
Diferente da exposição no Museu da Gente Sergipana, a “Sala de Cultura Popular”
presente no Centro Cultural Aracaju apresenta uma configuração mais lúdica, com a presença
de vários brinquedos que remetem o cotidiano do povo sergipano e mamulengos que
evidenciam a representação do grupo na cena artística do grupo Mamulengo de Cheiroso.

Impactos Esperados

Pretendemos analisar quais imagens sobre o folclore e a cultura popular nordestina e


sergipana são produzidas e consolidadas nas exposições museológicas relacionadas ao teatro
de bonecos em Aracaju. O estudo das estratégias de produção da crença e da manipulação dos
repertórios expográficos nos museus cuja temática privilegia as experiências da “cultura
popular”, constitui um caminho aberto. Ainda poucas são as pesquisas articulando museus e
essas temáticas, mais escassas ainda as que se enveredam por tais problematizações nos
museus sergipanos.
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A questão é reconhecer o modo como os agentes utilizaram para a concepção e


montagem das exposições, visualizando essa atuação como um mecanismo seletivo que
ilumina percursos, nomes e legados e que, por sua vez, também contribui para a invenção do
anonimato, a fabricação da desimportância, a instituição de vazios. Por isso Michele Asmar
Fanini (2009) reconhece que investigar presenças consiste em um estudo das ausências, fruto
de uma engenhosa operação.
Dessa forma, os silêncios podem sinalizar “não sua inexistência de fato, mas sua
presença como parte do ‘inenarrável’, estando situadas, por constrições várias, ‘fora do
acontecimento’” (p. 16). Interditos que em nosso itinerário também serão reconhecidos como
rastros, indícios que possibilitarão ler os testemunhos a contrapelo, problematizando,
inclusive, as intenções de quem os construiu. Situações mais evidentes no caso da trajetória
do Mamulengo de Cheiroso, devido a sua longa duração, agregando personagens responsáveis
pela “escrita do folclore” em Sergipe.
Na verdade, operar análises aprofundadas nos e sobre as exposições museológicas
contribuirá para a compreensão das cenas e bastidores que propiciaram a construção e
transmissão da crença em determinadas versões da história e o modo como a cultura popular
têm sobrevivido na “batalha das memórias”. Tal reconstrução será pautada na documentação
existente em seus acervos, centrada especialmente na pesquisa de campo nos espaços museais
e com os responsáveis pela expografia e pelo grupo de teatro de bonecos. Ao considerar as
estratégias de manipulação da memória e os lucros simbólicos e materiais decorrentes dessa
manipulação, visualizará em que medida a cultura popular integra os museus tendo como
recurso a análise dos jogos de poder em torno desses repertórios expográficos.

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