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Ensinar História e cultura afro-brasileira através do entendimento da

morte no Candomblé

Juliana Borges Costa - Matrícula: 120051323

Resumo:
O entendimento da morte e consequentemente do viver nos
terreiros de candomblé trazem à luz valores éticos que são
muito importantes para a atualidade, levando em conta o
protagonismo negro exemplificado nas religiosidades afro-
brasileiras, a luta contra o racismo religioso e a
descolonização do currículo escolar.

Palavras-chave: Morte. Ética. Candomblé. Educação.


Descolonização. Currículo. Intolerância religiosa.

Abstract:
The understanding of death and consequently of living in the
Candomblé terreiros brings to light ethical values that are
very importants for today, taking into account the black
protagonism exemplified in Afro-Brazilian religions, the fight
against religious racism and the decolonization of the school
curriculum.

Keywords: Death. Ethic. Candomblé. Education.


Decolonization. Curriculum. Religious intolerance.

Introdução

Pretende-se neste trabalho preparar um arcabouço teórico dialogando com


diversos autores que pesquisam as relações étnico-raciais pretéritas e da atualidade,
colonização, decolonialidade e História afro-brasileira e africana na Educação para
assim pensar no suporte bibliográfico dado aos professores de Ensino Fundamental II

1
usado nas aulas que hoje exigem o ensino da História e cultura afro-brasileira, africana e
relações étnico-raciais, conforme a Lei 10.639/2003, além de analisar os valores ético-
comportamentais do candomblé como uma maneira de trazer novas perspectivas
relacionais para a melhora educacional, social e quiçá psicológica do discente através do
maior conhecimento da história negra1. Sendo assim, de forma geral, o trabalho criará
bases pedagógicas que estimulem o aprimoramento dos professores e dos alunos ao
lidar com o ensino da história para o entendimento de determinados valores, conceitos,
representações, imaginários e a inserção da interculturalidade nas práticas do ensino
público com o intuito de eliminar ou reduzir as manifestações de preconceito racial e
religioso2 não só no âmbito escolar, mas em toda a sociedade, entendendo a escola
como parte de uma comunidade3.
Através da proposta da interculturalidade, pensa-se em uma convivência
democrática entre diferentes culturas, buscando a integração entre elas sem anular suas
diversidades para fomentar o potencial criativo e vital resultante das relações entre
diferentes agentes e seus respectivos contextos. (CANCLINI, 2004, pp.: 15-20). Isto é,
trata-se de pensar a formação cultural-religiosa da sociedade afro-brasileira, sobretudo a
partir do séc. XIX, quando surge o 1º terreiro de candomblé, para demonstrar como se
construíram identificações e conhecimentos que se articularam para além da norma
eurocêntrica4, como o tratamento e entendimento em relação à morte, aos rituais
1
A perspectiva relacional mencionada se refere a um conjunto de conhecimentos que podem motivar e
orientar o discente para que este saiba estabelecer uma maior crítica sócio-histórica, possa ter uma
melhora de atitudes diante das adversidades e da baixa autoestima, através da valorização e/ou promoção
do seu ser e do Outro, partindo da (re)formulação na história e na cultura vigente do entendimento de
certas minorias sociais. Nesse sentido, pensar na autonomia do aluno e nas metodologias ativas de N.
Berbel também vão de encontro a tal perspectiva. Mais a diante serão tratadas as ideias de Berbel [Nota
do autor].

2
Conforme S. Nogueira, o preconceito, a discriminação e a intolerância cultural e religiosa perpassam o
racismo, se caracterizando pelas formas perversas de julgamentos que estigmatizaram um grupo e
exaltam e conferem hegemonia a outro, sustentados pela ignorância, moralismo, conservadorismo e pelo
poder político. Essa maneira de estigmatizar varia de acordo com os períodos históricos e a cultura,
normatizando certas classificações. (S. NOGUEIRA, 2020, pp.: 35-36).

3
Tendo em mente de fato a atuação da Lei 10.639/ 03 sobre Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o
Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Lei 11.645/08 para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática de História e cultura afro-brasileira e indígena,
além das discussões sobre a importância e aplicabilidade deste ensino nas escolas, sobretudo brasileiras.
(ABREU, MATTOS, 2008, pp.: 16-20; ALBERTI, 2012, pp.: 65-75; ARAÚJO, 2016, pp.: 57-100).

4
Em concordância com Quijano, para Gaudio e Piccinini, o eurocentrismo é fundamentado em uma
perspectiva de conhecimento que possui raízes muito antigas na Europa Ocidental, mas que a partir do
séc. XVII torna-se mundialmente hegemônica através da colonização europeia pelo mundo. (GAUDIO;
PICCININI, 2008, pp.: 104-105).

2
fúnebres e aos valores morais e ético-comportamentais no Candomblé ketu 5 que
perpassam o entendimento também do viver. A partir deste ponto, será pensada a
história do candomblé, sua relação com a colonização e com os grupos que o formaram
no Brasil, sua importância para as aulas de História e sua necessidade para a promoção
do jovem, principalmente negro (a) e pobre. Leva-se em conta aqui a maior quantidade
de adolescentes negros e pobres nas escolas públicas cariocas, contudo, a valorização
deste grupo e desta temática em especial vem acompanhada do pensamento antirracista,
anti-intolerante e até mesmo antimachista6, tornando assim essas aulas um campo de
maior empatia para diferentes grupos sociais nas escolas.
Primeiramente, é interessante saber a diferença entre moral e ética para adentrar
no campo religioso e de sociabilidade dos povos antigos e atuais das comunidades
candomblecistas. A moral abarca um conjunto de valores, normas e noções do que é
considerado certo e errado dentro de uma sociedade, logo é própria de um grupo e
período. Ela também mantém os laços de coesão e convivência social, organizando a
coletividade, assim, todos os povos têm concepções morais que os regem. Já a ética se
refere a pensar essa moral não como algo natural, estático e acrítico, e sim como um
referencial de análise. Isto é, investigar os princípios que motivam, distorcem,
disciplinam ou orientam o comportamento humano, pensando acerca da essência das
normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social para
então determinar o que é apropriado dentro da moral para cada povo ou situação 7. Desta
5
Foi delimitado o candomblé dessa nação, devido sua maior predominância no Rio de Janeiro, local da
pesquisa, posteriormente pretende-se expandir a pesquisa para o chamado Candomblé jêje e de Angola ou
Cabinda.

6
O presente trabalho apesar de não ser específico para levantar questões acerca das discussões de gênero,
supõe interligações nesse sentido quando percebe a intersecção do racismo, discriminação e exploração
entre vários grupos minoritários, como os negros, e observa-se aspectos das antigas sociedades africanas,
nas quais, ainda que muitas patriarcais, deixavam oportunidades para grandes atuações femininas nas
sociedades, tais como as comerciantes da Costa da mina, os governos islâmicos e matriarcais mandigas,
jalofos e barbacins, o respeito às matriarcas, o culto às mães ancestrais - Ìyìamis (exemplificadas nas
mães-de-santo e na Sociedade Gèlèdes) e os mitos de criação iorubás que veem a criação de homens e
mulheres em pé de igualdade, dando a deusa Oduduwà a responsabilidade de criar o mundo. (Disponível
em: <https://www.geledes.org.br/o-que-e-gelede/>. Acesso em: 31/7/2020; FARIA, pp.: 305-315, 2001;
AUGRAS, 2000).

7
Disponível em: < https://www.google.com/search?ei=mH7sX7LiKs3C5OUPhIWvoAY&q=
%C3%A9tica+&oq=
%C3%A9tica+&gs_lcp=CgZwc3ktYWIQAzIKCAAQsQMQRhD5ATICCAAyBAgAEEMyAggAMgIIA
DICCC4yAggAMgQIABBDMgIIADICCAA6BAgAEEdQ1h5Y1h5gwCJoAHACeACAAXmIAXmSA
QMwLjGYAQCgAQGqAQdnd3Mtd2l6yAEIwAEB&sclient=psyab&ved=0ahUKEwiyjtb15fXtAhVNIb
kGHYTCC2QQ4dUDCA0&uact=5>;<https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/o-que-e-sociologia/o-que-
e-etica.htm>. Acesso em: 30/12/20. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/o-que-
moral.htm>. Acesso em: 30/12/20.

3
forma, será observado a moral religiosa e comportamental dos povos de terreiro (mais
especialmente as prescrições ligadas à morte para a comunidade ketu) e suas origens
para então passar pelo filtro da ética, objetivando atuar hoje com esses valores, e logo,
garantir a melhor convivência social, seja na comunidade escolar ou em toda a
sociedade brasileira.
Assim, quando se pensa na morte no Brasil, e em muitas outros locais, o medo
referente a esta é algo presente e forte, ela é vista como algo inevitável, ligado ao
sofrimento, ao desconhecido e até mesmo ao que se deve esconder, tornou-se um tabu 8
em muitas situações. Ademais, observando a sociedade brasileira com altos índices de
violência e de homicídio esse temor é muito significante 9. No entanto, nem sempre foi
assim e nem todos hoje entendem a morte por esse viés, permanecem no mundo
sociedades e grupos que compreendem a morte de uma maneira totalmente diferente,
como os candomblecistas, os quais através de seus rituais fúnebres e seu próprio
entendimento da vida, encaram a morte com maior naturalidade, refletindo nada mais do
que um ciclo natural que engloba a vida terrena e o Além. Ademais, pensar na morte
dentro do candomblé é também pensar na vida, em como se viveu, para que no Além ou
na próxima reencarnação haja boa recepção. Para tal, certos comportamentos, dentro de
um conjunto moral, devem ser seguidos por seus adeptos candomblecistas como uma
forma de garantir o bom fluxo energético entre humanos e o plano espiritual e portanto,
trazendo bonanças à comunidade. Formas comportamentais e valores éticos agregados à
valorização do coletivo e da cultura afro-brasileira podem ser uma maneira de se ensinar
que descentraliza a visão do aluno de um currículo europeizante e engrandece o sujeito
negro10 ainda inviabilizado nos livros e escolas.
8
No passado não havia a separação radical que se tem hoje em relação à morte, nem no Ocidente e nem
no Oriente. A partir do séc. XVIII na Europa e finais do séc. XIX nas Américas é que a laicização da
morte, limpeza e logo o afastamento dos ritos fúnebres, dos cemitérios e do morto da sociedade ocorrem,
conforme o historiador Phillipe Ariès, mas não sem resistência. (REIS, pp.: 75-79, 1991).

9
A morte prematura de jovens de 15 a 29 anos por homicídio é um fenômeno que tem crescido no Brasil
desde a década de 1980. Em 2017, 35.783 jovens foram assassinados no Brasil. Esse número representa
uma taxa de 69,9 homicídios para cada 100 mil jovens no país, taxa recorde nos últimos dez anos.
Homicídios foram a causa de 51,8% dos óbitos de jovens de 15 a 19 anos. Em 2017, 75,5% das vítimas
de homicídios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos,
segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo SIM), sendo que a taxa de homicídios por 100
mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Os
maiores casos de homicídios encontram-se no Norte e no Nordeste. (Pp.: 25; 49. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2
019.pdf. Consultado em: 19/12/2020).

10
Sujeito negro se refere não exatamente só às pessoas negras na cor da pele, e sim à condição em que um
indivíduo se encontra em certa sociedade com histórico racista e discriminatório, a qual delimita aqueles
que terão maior poder aquisitivo e maiores oportunidades escolares, profissionais, relacionais do que

4
Pensar nesse sujeito também é compreender os discentes, é ensiná-los que assim
como muitos deles no Brasil, pobres, negros, indígenas e tantas outras minorias, foram
silenciados e/ou execrados dos manuais escolares e da própria sociedade. Tentar
entender alguns valores do candomblé em uma sala de aula é voltar às origens africanas,
analisar povos e culturas, perpassar o processo de escravidão e de controle sociocultural
para então se compreender como se constituiu o racismo, a intolerância religiosa e a
marginalização e invibilização da negritude tão presentes hoje em dia.

Origem do candomblé no Brasil

O Candomblé é uma das religiões de origem africana que se formou a partir da


vinda de escravizados africanos para o Brasil e o culto mais próximo que se tem hoje se
forma no século XIX. Esses escravizados ajustaram parte de sua cultura aos padrões
vigentes daquele período e juntamente com a interligação com as culturas indígenas e
brancas locais formaram algo completamente autêntico que dependendo da região onde
se desenvolveu constituíram mais de um tipo de religião de matriz africana nos países
que os receberam. Da mesma forma, o candomblé no Brasil também é múltiplo,
dependendo da região, tem mais influências católicas ou indígenas, com rituais e
narrativas diferentes.
Diz a tradição oral documentada principalmente por Pierre Verger que 3
princesas de Oyo e de Ketu fundaram a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte 11 na
Igreja da Barroquinha em 1820, em Salvador (BA), período em que existiam outras

aquelas consideradas sujeitos brancos. Tais termos são muito bem explicitados por FANON, F. em Peles
negras, máscaras brancas (2008) e por KILOMBA, G. em Memórias da plantação: episódios de racismo
cotidiano (2019). Essa relação se complica imensamente em um país como o Brasil, o qual possui uma
forma confusa de classificar as chamadas raças sociais, mantendo o critério hierarquizado de variados
tons de pele, nos quais os mais claros, juntamente com a classe social, e não a ascendência (como nos
EUA), estão mais propensos às oportunidades sociais.

11
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, desde sua criação teve, e continua tendo, como objetivo
principal, a devoção e o culto a Nossa Senhora, e ainda outros objetivos em segundo plano, tais como: a
prática de empréstimos e auxílios financeiros, doações e, principalmente, a compra de alforrias para os
escravizados; em casos de falecimento das associadas, a Irmandade se responsabilizava pelos
sepultamentos e missas. Das atividades arroladas, a única que não se aplica à contemporaneidade é a
compra de alforrias, no mais, elas continuam preservando, através dos seus rituais, a memória de seus
antepassados africanos. É possível encontrar laços comuns que remetem aos ritos de morte e vida, laços
que remetem às Iyabás do Candomblé ligadas à morte e à vida: Nanã e Iansã, Iemanjá e Oxum, que têm
um ponto semelhante à Morte e à Assunção de Nossa Senhora. (BAÊTA DA SILVA, Lívia. A irmandade
de Nossa Senhora da Boa Morte: uma perspectiva museológica e de gênero. Dep. Museologia da UFBA.
Disponível em: < http://www.cult.ufba.br/enecul2005/LiviaMariaBaetadaSilva.pdf>. Acesso em
19/6/2020.).

5
irmandades de homens brancos, mulatos e pretos12, mas nenhuma formada
exclusivamente por mulheres negras. Nesta confraria mencionada elas tinham total
liberdade para decidir, organizar e reinar nas festividades.
A partir da criação desta Irmandade foi criado o terreiro de Candomblé no
Brasil, Iyá Omi Axé Ayá Intilá, numa casa ao fundo da igreja. Após sofrer perseguições
por parte das autoridades e também devido o processo de urbanização que via certos
elementos como entrave para a civilização, fixou-se no bairro da Vasco da Gama e
depois para o Engenho Velho, com o nome de Ilê Iyá Nassô Okó, o terreiro jêje-ketu
(culto com divindades voduns e orixás13) na década de 1830. No entanto, pesquisas mais
recentes afirmam que já haviam terreiros no Brasil antes desta data (PARÉS, pp.: 113-
114, 2007). Da cisão entre as sucessoras deste terreiro, surgiram os terreiros: Iyamassé
(Terreiro do Gantois) e Afonjá, ambos ainda faziam parte da Irmandade da Boa Morte.
(VERGER, 2012, pp.: 15, 23; 1986.). Hoje em dia boa parte dos terreiros brasileiros se
dividem em “nações”14 próprias com rituais, significados, seres e deuses específicos,
mas com ligações que retornam à formação colonial e aos vários grupos africanos.
As mães-de-santo desses terreiros, assim como de tantos outros no Brasil (e
posteriormente os pais-de-santo), tinham o hábito de pelo menos uma vez na vida irem a
África para obterem mais conhecimentos sobre o seu sacerdócio com seus grupos de
origem. Dessa maneira, se manteve durante muito tempo na história do Brasil grandes
vínculos com os africanos, assim como certas permanências de costumes,
comportamentos e modos de pensar15. Assim, apesar da escravidão, da perseguição às
12
A instituição de confrarias religiosas, sob a égide da Igreja Católica, separava as etnias africanas. Os
pretos de Angola formavam a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do
Carmo, fundada na Igreja Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho. Os daomeanos (jêjes) reuniam-se sob
a devoção de Nosso Senhor Bom Jesus da Necessidade e Redenção dos Homens Pretos, na Capela do
Corpo Santo, na Cidade baixa. Os nagôs, cuja maioria pertencia à nação Ketu, formavam duas
irmandades: uma de mulheres, a de Nossa Senhora da Boa Morte; outra reservada aos homens, a de
Nosso Senhor dos Martírios. Essa separação por etnias completava o que já havia começado com os
batuques dos séculos precedentes e permitia aos escravos, libertos ou não, assim reagrupados, praticar
juntos novamente, em locais situados fora das igrejas, o culto de seus deuses africanos. (VERGER, p.:18,
1986).

13
Voduns são entidades ligadas aos cultos dos fon do antigo reino do Daomé e os orixás ligados ao culto
do sudoeste da Nigéria, ao que se pode falar em povos de língua iorubá. Podem se referir a divindades das
cidades desses grupos ou reis fundadores, associados às forças da natureza, destino e/ou atividades.
(VERGER, 2012, pp.: 35-37).

14
O terno “nação” não se delimita necessariamente a um território ou cultura como as nações e o conceito
de formação nacional europeu se entende. Refere-se nos terreiros de candomblé aos vários grupos que se
aglutinaram em torno de práticas religiosas, culturais e linguagem em comum, formando as “nações”.
15
Era comum os religiosos viajarem para a África para adquirir mais conhecimento esotérico e
recuperando tradições perdidas, aumentando seu prestígio social, legitimando sua autoridade religiosa e
garantindo a eficácia dos seus serviços espirituais ou mesmo para fugir de alguma perseguição, como no

6
religiões afro-brasileiras, invasões de terreiros, destruições, a tentativa de apagar a
história dos escravos africanos não foi efetivada de fato, os negros no Brasil conseguiram
manter muitos pontos de sua cultura viva.
Paralelamente a este movimento, a partir, sobretudo, do Iluminismo do séc.
XVIII, a morte, os ritos fúnebres/religiosos e o corpo do morto vão sendo afastados da
normalidade da sociedade civil16. As recomendações médicas que levavam o temor de
doenças relacionadas aos cemitérios e aos mortos tornam-se comuns, além da difusão de
ideias ditas científicas que condenavam qualquer tipo de “superstição” ao tratamento
deste tema. Esse processo de secularização também atingiu os terreiros e suas
cerimônias que hoje não lidam mais com o morto em si e sim com a representação dele
no terreiro ou já começam a fazer o rito no próprio cemitério, ainda mais após
epidemias e o risco de contaminação com o corpo do morto (como é o caso do Covid-
19).
No entanto, as crenças antigas na presença e na intervenção pública dos mortos
sobreviveu, principalmente nas tradições populares, quando ao mesmo tempo tem-se
uma separação mais clara entre corpo e alma. (ARIÈS, pp.:194-203, 2012). Conforme
Reis e Rodrigues a própria doença poderia ser vista tanto por católicos quanto por
grupos africanos não-cristãos ainda hoje como algo ligado ao espiritual, necessitando
em vida e na morte do apoio de sacerdotes/sacerdotisas. (C. RODRIGUES, pp.: 99, 122,
2005; REIS, p.:59, 1991). Obviamente deve-se ter em mente que são ideias que não
sumiram, coexistem nas sociedades, as crenças ligadas à morte e o afastamento desta.
Percebe-se nessa perspectiva, que não há como se ler o fenômeno das religiões e
cultura afro-brasileiras de forma unitária, já que se trata de vários povos num processo de
permanências e transformações ao longo dos anos. A construção dessa estrutura teórico-
prática engloba contradições e tensões que mostra o espaço de intervenção que os negros
tiveram no passado que mantiveram, ainda que recriados, os seus ritos religiosos. Isso
porque, houve um recorte histórico e uma classificação do que se poderia e se deveria
período após
Revolta dos malês (1835). (CASTILLO; PARÉS, 2007. FARIA, 2001).

16
Os modelos científicos, entre os séculos XVIII e XX, permitiram o entendimento das normas sanitárias
vinculadas à limpeza étnica ou à eliminação de elementos que confrontassem as regras sociais vigentes,
como criminosos, mendigos, prostitutas, homossexuais, trabalhadores informais (em geral negros e
negras). Estes eram vistos como contrários ao modelo de civilização, ao progresso e anti-higiênicos, por
isso passíveis de “contaminar” os comportamentos e corpos da população, segundo muitos jornais,
cientistas, médicos e outros eugenistas do período que claramente viam a chamada raça branca europeia
superior nesses aspectos. (MELLO, 2007, SCHWARCZ, 2007; REIS, pp.: 249, 263, 1991, RODRIGUES,
2015. Disponível em: <https://medium.com/@DouglasRodrigues/cientificismo-e-positivismo-l
%C3%B3gico-anota%C3%A7%C3%B5es-triviais-de-um-pensador-maldito-c0dba890c66f>).

7
manter, produzindo uma configuração múltipla que uniram devoções indígenas, católico-
europeias e sobretudo, de origem africana. A título de exemplo, dentro do candomblé
hoje (em muitos terreiros, mas não todos) existe a ideia de evolução moral própria do
espiritismo (kardecista17), a utilização dos termos “santos”, objetos, linguagens e ritos de
influência católica, assim como o uso de apetrechos e tradições dos índios brasileiros,
inclusive a incorporação de entidades ditas de origem indígena.
Desta forma, ocorreu uma coerência dentro das brechas do poder
institucionalizado colonial, mostrando o poderio do colonizador nessa condição e
também a força das identidades negras e indígenas subalternizadas 18, mas que se
mantiveram firmes até hoje.
Um dos valores mantidos pelos candomblecistas, conforme João Reis e Afonso
Soares, é o sentido de pertença a uma comunidade, a um núcleo familiar, formando as
confrarias, as irmandades e os terreiros, tidos como salvaguarda de suas utopias mais
legítimas. Eram espaços de solidariedade étnica, e no caso das irmandades eram
realizadas no âmbito das igrejas católicas, inicialmente com nações específicas
africanas, depois passaram a absorver diferentes grupos africanos e brasileiros. Em igual
medida, pode-se assinalar as “sociedades de diversão” aprovadas pelo Estado brasileiro
(clubes, reuniões literárias, sambas, etc.). (SOARES, p.:48, 2002). Segundo João Reis, o
próprio catolicismo e os ritos fúnebres no Brasil, já mesclados com outros ritos não-
cristãos, eram cheios de pompas, acompanhados de corais e orquestras, muito decorados

17
Doutrina reencarnacionista formulada por Allan Kardec (pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard
Rivail, escritor francês, 1804-1869), que pretende explicar, segundo uma perspectiva cristã, o movimento
cíclico pelo qual um espírito retorna à existência material após a morte do antigo corpo em que habitava.
O período intermediário em que se mantém desencarnado, o espírito passa pelo processo de evolução ou
regressão de caráter moral e intelectual que experimenta na continuidade deste reencarnar até o momento
em que não há mais essa necessidade devido a conquista da perfeição espiritual. Possui forte influência
moral cristã, podendo relacionar tal período intermediário ao Purgatório. Essa crença, a partir do séc.
XIX, passou a ficar muito famosa no Brasil e também se pretendia científica e universalizante. (Oxford
Languages Dicionário. Disponível em: < https://www.google.com/search?
biw=1366&bih=625&ei=wbUkX9HtHeq65OUPgd6owAY&q=kardecismo&oq=kardec&gs_lcp=CgZwc
3ktYWIQAxgCMgQIABBDMgUIABCxAzIECAAQQzIFCAAQsQMyBQgAELEDMgIIADICCC4yAg
gAMgIIADICCAA6BQguELEDOgQILhBDOggILhCxAxCDAVDGRlipXmC0c2gAcAB4AIAB0gKIAa
ULkgEHMC4yLjMuMZgBAKABAaoBB2d3cy13aXrAAQE&sclient=psy-ab>. Acesso em: 31/7/2020.)

18
O termo subalternizado ou subalterno é usado conforme a autora Gaytri Spivak, a qual afirma que estes
são as camadas mais baixas da sociedade, que não podem ser ouvidos, na maioria das vezes. São aqueles
excluídos dos mercados, da representação legal e política e que estão quase sempre impossibilitados de se
tornarem membros plenos do estrato social dominante. Eles possuem agenciamento, mas em geral não
são ouvidos. (SPIVAK, 2010, p.:12). Essa subalternização social, segundo Boaventura de Souza, se
desenvolve em um processo de tentativa de apagamento ou de descrédito de todas as formas intelectuais,
culturais e de existência de certas sociedades, grupos ou etnias.

8
e que eram acompanhados por várias pessoas, além das festas das confrarias 19 que se
seguiam com banquetes, músicas, mascaradas e danças. (REIS, p.: 49, 1991). Percebem-
se as influências mútuas entre o catolicismo europeu e os ritos dos povos afro-
brasileiros. Além de brancos que utilizavam os escapulários como amuletos, assim
como os africanos o faziam, participavam dos cortejos fúnebres e dos banquetes. Isto é,
uma constante apropriação e reapropriação de significados e valores religiosos de
diferentes tradições. Os laços familiares, mesmo não biológicos, entre escravos e
libertos, demonstram sua capacidade em formar essas alianças em momentos muitas
vezes da perda da família original com a escravidão. Era o caso da família de santo ou
os/as irmãos/irmãs de confraria. Famílias para comunhão, manter laços identitários e
ajuda mútua20.
Assim, Igreja e Estado são coniventes na criação da seguinte situação, mas
quando lhes convinha também os perseguiam. O tratamento dado aos negros e seus
descendentes era muitas vezes ambíguo, dependia muito do período e situação. Pois,
muitas vezes a Igreja Católica viu essas comemorações de cunho religioso como uma
vitória catequética, permitindo então outros elementos não-cristãos europeus em tais
manifestações, as quais incluíam as festas de escravos que se tornava uma catarse e
inversão simbólica da ordem social, como a encenação da posse de reis e rainhas
negros. Mas, até mesmo o próprio Catolicismo ainda mantinha resquícios pagãos em
suas comemorações, adaptando outros e se adaptando a esse outro nas Américas. Assim,
em manifestações pluriétnicas e pluriclassistas, a sociedade por um breve momento se
invertia ou se mesclava e não à toa diversas vezes o Estado tentou eliminar, restringir ou
“limpar” os elementos fora dos bons costumes elitistas, brancos, europeus e cristãos.
(REIS, pp.: 64-67, 1991).

19
As confrarias ou irmandades, segundo Reis, eram organizações com eleições e uma estrutura
hierárquica que faziam reuniões, festas, funerais, davam assistência médica e podiam ajudar
financeiramente um membro, incluindo a compra de alforrias. Exigiam o bom comportamento, a devoção
católica e o pagamento de anuidades. Elas controlavam a grande rede filantrópica de igrejas, hospitais,
recolhimento, cemitérios, asilos e orfanatos. Podiam conter a elite das cidades, como serem organizadas
por ex-escravos, servindo como canais de ascensão social. Assim, muitas se delimitavam conforme grupo
social, havendo então irmandades só de brancos, negros (que podiam ser divididos por “nações”
africanas), pardos, homens, mulheres. (REIS, pp.: 50-52, 1991).

20
Algumas dessas associações, como os cabildos e as irmandades, moldavam-se em instituições
preexistentes no mundo ibérico; outras, como as santerias, os candomblés e as juntas de alforria,
prendiam-se a expressões de caráter religioso ou a formas de organização comunitária baseadas em
elementos de origem africana. Não obstante, em ambos os modelos, foi usual que os membros de tais
organizações fundamentassem sua especificidade enquanto grupo no ideal de uma origem africana
comum que lhes emprestava sentido e lhes facilitava a coesão. (CÔRTES DE OLIVEIRA, p.: 177,
1995/96)

9
Nesse sentido, observa-se aberturas no tecido social que permitiram ações e
convicções de grupos como os negros (as) se mantendo ao longo do tempo, mesmo que
não idênticas ao passado. Sant´Ana também afirma que haviam vozes dissidentes no
cristianismo católico e evangélico e ao mesmo tempo uma má vontade ou omissão em
relação ao racismo e às práticas dos negras (as). (SANT´ANA, 2005, pp.: 45,48).
Assim, dentro desta omissão e dissidências as oportunidades do agir e do criar surgem,
além das resistências diretas dos grupos colonizados (revoltas).

Preceitos éticos e comportamentais: da África para o Brasil

As palavras, o antepassado, a morte e a vida nas sociedades de cultura oral,


como muitos povos africanos, assumem relevância e complexidade adentrando códigos
morais e religiosos para a manutenção dos clãs, dos grupos e das sociedades.
Obviamente essa importância em certos casos se perde ao longo dos anos com o
processo de colonização e/ou transformação da cultura oral, ainda assim, não são
hábitos que sumiram completamente. A cosmovisão de muitos povos africanos se
vincula a estabilidade do Universo mantido pelo mundo espiritual e terreno, através de
rituais e regras sociais do bem-viver:
Valores ligados ao conceito de “ventura-desventura” […], à
ideia de que o universo é caracterizado em seu estado normal pela
harmonia, o bem-estar e a saúde, e que o desequilíbrio, o infortúnio e
a doença são causados pela ação malévola de espíritos ou de pessoas,
frequentemente através da feitiçaria. Dentro dessa visão de mundo, a
manutenção de um estado de pureza ritual, normalmente centrado em
objetos ou preparações medicinais consagradas […] que medeiam a
relação entre os homens e os espíritos, é o que garante a realização das
metas culturais mais importantes. (SLENES, 1999, p.: 152)

Ademais, conforme Soares, por detrás do nome em muitas sociedades de


linhagem (como os grupos africanos que vieram escravizados para as Américas)
esconde-se a história do clã e da etnia, o seu código ético, a sua suma teológica. Ter um
filho, por exemplo, e dar-lhe um nome é um ato de culto21. O nome é frequentemente o
início de sentenças proverbiais - as quais são conclusões morais de uma determinada
narração. Assumir um nome é um compromisso ético e, para tanto, se requer um
processo iniciático até que o jovem receba seu nome definitivo, sinal/símbolo da

21
Lembrando que nas cerimônias de “fazer o santo”, quando o iniciado por fim se apresenta ao público,
após suas libações e rituais sagrados para fazer parte de fato de certo terreiro, é proferido seu novo nome,
um nome ritualístico, ligado à entidade deste e assim, se dá seu renascimento no culto.

10
maturidade atingida. Então, quando foram dados novos nomes cristãos/europeus para os
escravizados africanos, se apaga também boa parte da história dessas pessoas, só
retomados, em parte e posteriormente com o trabalho minucioso, sobretudo da
arqueologia e antropologia, sendo preciso adentrar também nos arquivos da oralidade e
da ancestralidade, ou seja, nos mitos, lendas, canções, danças, provérbios,
adivinhações, ritos22 (SOARES, p.: 55, 2002). Nesse sentido, a força da oralidade e
símbolos dentro dos terreiros, nas músicas, palavras, adivinhações, objetos e modos de
agir também permeiam esses valores comunitários e sagrados, o pertencimento e
solidariedade de um grupo. São ideias a serem expandidas para fora dos terreiros,
valorizar a história dos ancestrais, se identificar com alguém, ter empatia, proteção e
amparo em um grupo pode trazer um pertencimento e identificação aos alunos, de
maioria negra, dando maior sentido aos valores advindos da África, mas também à
própria relação entre professores, alunos e comunidade.
Em relação à morte, nas antigas comunidades africanas, e ainda hoje na Nigéria,
o ancestral faz parte dos espíritos dos mortos ilustres (reis, heróis, grandes sacerdotes,
fundadores de cidades e de linhagens e de um clã), são cultuados e se manifestam nos
festivais de egungun23 no corpo de sacerdotes mascarados, quando então transitam entre
os humanos, julgando suas faltas e resolvendo as contendas e pendências de interesse da
comunidade. Já entre os igbos nigerianos (no estado de Anambra), a morte também é
uma transição para o local de descanso final honroso à sua aldeia ancestral, mas os ritos
fúnebres se diferem. Numa cerimônia chamada ikwa ozu (“celebrar os mortos”) que
possui variações entre as comunidades, tem pontos em comum, os quais foram mantidos
em parte no Brasil colonial, aliados aos enterros católico-populares. Assim como os
22
O mito é uma narração fabulosa da atual condição humana, que se projeta nos tempos e espaços
primordiais com personagens sobre-humanas; ele possui uma função sociopolítica. A lenda é uma
narração maravilhosa, cujas personagens são heróis, pessoas excepcionais, iniciadores e fundadores de
algo de valor. O conto é uma narração com personagens e realizações humanas normais. É uma projeção
da sociedade assim como ela é vista: as virtudes, os vícios, ou como se comportar, etc. A fábula é uma
narração fictícia cujas personagens são animais e coisas personificadas, que escondem pessoas reais,
sentimentos a serem exaltados ou condenados. A canção é uma narração ajudada por ritmo e melodia. A
dança é pausa narrativa e integração do corpo na personalidade, bem como da pessoa na comunidade. O
provérbio ensina e exercita a memória. A adivinhação é um recurso para explorar intelectualmente o
corpo, o ambiente e o Deus criador. (SOARES, p.: 55, 2002).

23
O culto de Egungun é originário da região de Oyò (cidade nigeriana), na África. É um culto exclusivo
de homens, sendo Alápini o cargo mais elevado dentro do culto, tendo, como auxiliares, os Ojés. Todo
integrante do culto de egungun é chamado de Mariwó. Conforme os mitos na região, o orixá Xangô  é o
fundador do culto a egungun e somente ele tem o poder de controlá-los. Esse culto foi implantado no
Brasil no início do século XIX, tendo grande participação na ilha de Itaparica, Bahia, mas existem casas
em outros estados, como em Nova Iguaçu - RJ. (Disponível em: <
https://pt.wikipedia.org/wiki/Culto_aos_egunguns >. Acesso em: 31/7/2020; NOGUEIRA, 2017, p.:10).

11
antigos enterros perpetrados pelas irmandades brasileiras e em parte apoiados pela
Igreja e sociedades coloniais, os enterros igbos são muito luxuosos com o
entretenimento dos convidados, figuras encapuzadas e mascaradas as quais representam
o morto e ligados aos espíritos. Há danças, músicas, banquetes, comidas preferidas do
morto, banquetes, lamentações e auto-esfolamento das esposas, além de raspadas suas
cabeças e transporte do cadáver. Segundo a tradição igbo sem organizar um ikwa ozu24
para seus falecidos, os membros da família estão proibidos de receber certos títulos ou
ocupar cargos importantes na comunidade e ainda, acredita-se que o espírito do falecido
atormenta qualquer família recalcitrante, infligindo-lhes vários desastres, de doenças à
miséria. (<https://www.bbc.com/news/world-africa-22610497>, publicado em: 23/5/03.
Acesso em: 22/12/2020).
Conforme a literatura angolana25, em Luanda, há ainda traços do hibridismo 26
religioso advindos da colonização portuguesa-cristã com a comunidade local que
também podem ser pensados em similitude aos do Brasil. São literaturas do século XIX
e do XX que descrevem tal hibridização, nas quais os enterros ocorrem por vários dias
feitos por irmandades, missas católicas ou cerimônias mescladas com ritos locais e
cristãos, lamentos de mulheres, abundância de comida e bebida, batuques, danças e
acompanhamento do caixão até o sepultamento. Ademais, também há referências ao
cuidado com o morto, o qual não sendo cumprido poderia causar doenças e morte aos
descuidados causados pelo espírito do morto, aliás, práticas diversas que causam mal
seriam feitas por um tipo de feitiçaria. Ao mesmo tempo, revelam um crescente
menosprezo e mesmos repressão às culturas africanas no período mencionado dos
livros, entretanto, as divergências entre as práticas rituais locais e o ideal cristão ainda
conflitam muito na região, como no Brasil quando se tem hoje as incursões diretas ou
não, evangélicas, principalmente, contra os ritos candomblecistas. Da mesma forma, A.

24
Dependendo dos títulos tradicionais que o falecido teve durante sua vida, o ikwa ozu pode durar de dias
a semanas. Mas, quanto mais comprometida uma família com sua fé cristã, menos provável é que
embarquem nos ritos de passagem tradicionais. As igrejas também desaprovam o ikwa ozu, que
consideram pagão, no entanto, uma vez que os enterros são um assunto comunitário, muitos participantes
relutantes são frequentemente forçados a ficar parados e assistir enquanto os rituais são realizados.
(<https://www.bbc.com/news/world-africa-22610497>, publicado em: 23/5/03. Acesso em: 22/12/2020).

25
Refere-se mais especificamente ao português Alfredo Troni, residente em Angola, e sua novela Nga
Muturi (1882), o angolano Assis Junior e sua obra O segredo da morta (1935) e o angolano Óscar Ribas
com o livro Uanga (1951).

26
Conforme a hibridização é compreendida como resultado de relações de poder que levam a violências,
imposições, conflitos, trocas, escolhas, estratégias e empréstimos inconscientes (e conscientes).
(MARZANO, A., 2016, p.: 1).

12
Mendes traça os rituais de morte em Cabo Verde (ilha do Noroeste africano) com os
mesmos pontos em comuns relatados acima e se encontra relatos de jornais que reiteram
ou reapresentam muitas dessas atividades mortuárias mesmo hoje em dia em outros
países africanos. (MENDES, 2003; disponível em:
<https://www.msf.org.br/noticias/epidemia-de-marburg-em-angola-quando-salvar-
vidas-parece-ser-uma-atividade-cruel>. Acesso em: 25/12/20;
https://brasil.elpais.com/verne/2020-04-14/carregador-de-caixao-uma-profissao-
comum-em-gana-que-virou-meme-internacional.html. Acesso em 25/12/20).
Desta forma e seguindo Manzochi, a concepção de muitos povos africanos sobre
a morte tem determinados pontos que convergem e são de certa maneira mantidos por
seus descendentes, para os quais, a morte não significa a extinção total, mas uma
mudança de plano de existência e de status, para se chegar ao “estado ancestral”,
marcando a passagem do espírito do plano térreo ao espiritual para que a alma retorne
de onde veio e participe da criação de novos seres. (MANZOCHI, 1995, p.: 261). Sendo
assim, esse retorno é bastante importante para a manutenção da coletividade, através da
criação de novos seres. Esse ciclo de eterno renascimento dá sentido à vida individual e
comunitária, reforçando a identidade do grupo e valorizando o sujeito como atuante
nessa relação com o grupo. No Brasil, essa ideia foi reescrita na comunidade dos
terreiros.
Para os iorubás27 e outros grupos africanos que formaram a base cultural das
religiões afro-brasileiras acredita-se que a vida e a morte alternam-se em ciclos, de tal
modo que o morto volta ao mundo dos vivos, podendo reencarnar num novo membro da
própria família (no caso do culto dos Egunguns) ou reencarnar em outros (para o
Candomblé em geral). Os grupos iorubás foram os últimos a serem escravizados
segundo E. dos Santos, Faria e Parés, mantendo muitos dos seus aspectos culturais até
hoje, sobretudo na religião, além de terem vindo em um momento de crescimento
econômico das cidades, o que os permitiu em vários casos, sua ascensão e contato com

27
A antropóloga Juana Elbein dos Santos em Os nagô e a morte, trata dos chamados nagô da Bahia
(classificados assim por eles mesmos atualmente), mas também chamados pela etnologia de iorubás, o
que na verdade, conforme John Thornton, é um termo originado devido o iorubá ser uma língua franca
comercial entre muitos povos do litoral ocidental sudanês que vieram para as Américas e não uma língua
própria que reuniria uma nação delimitada, era mais usada a partir de Oyó e Ifé por seu crescimento
econômico e político, e no caso de Ifé por ser a cidade sagrada dessa região. Já nagô foi o termo
pejorativo usado pelos fon e adotado pelos franceses para chamar todos os falantes do iorubá daomeanos,
contudo também havia povos nessa região que se denominavam de ànágó. Já a origem da denominação
jêje é provável que se relacione com o grupo dos fon e adja do antigo reino do Daomé. (SANTOS, E.,
1986; THORNTON, 2004, pp.: 13- 16).

13
seu grupo de origem na África e daí a manutenção em alguma medida de suas
características culturais originais. A exemplo disto existem os terreiros, tanto sua
estrutura quanto as práticas e ideias que os permeiam demonstram essa aproximação
África-Brasil. A construção dos terreiros propõe a vida em comunidade, com habitações
permanentes ou temporárias, o egbé, para os iniciados e suas famílias-de-santo e o
barracão para as festividades públicas ao centro, lembrando os compounds (formato das
casas iorubás). (PRANDI, 2000, pp.: 56-61). No limite dessa estrutura fica o Ilé-Abo-
Aku, a casa onde são adorados os mortos e onde encontram-se seus assentos-lugares
consagrados.
O terreiro se organiza numa hierarquia, mas determinado como unidade, egbé.
Assim, a mais alta hierarquia é formada pelos mais velhos iniciados no terreiro,
evidenciando o valor da ancestralidade. A mãe-de-santo, iyalorixá 28, é aquela
responsável pelo culto e que transmite o conhecimento e o àse / axé, força mantida e
realimentada no terreiro. Mas, todo iniciado deve desenvolver também esse axé. Através
da conduta ritual e na possessão que esse axé é transmitido continuamente para todos os
seres e coisas inanimadas, como os objetos usados nos rituais. A partir dessa força
propulsora que é (re)construída a relação entre tudo o que existe no Àiyé/Aiê (mundo
terreno) e o Òrun/Orun (mundo espiritual). O axé permite que as coisas existam, que
tenham devir e se realizem, incluindo os orixás. Assim, o mundo histórico, mítico,
psicológico, étnico e cósmico são revividos e todo esse sistema é propulsionado pelo
axé. (ELBEIN DOS SANTOS, 1986, pp.:33 – 49). Esses valores do uno em cada ser do
terreiro mantendo o axé para garantir a coletividade através, sobretudo, de seus
comportamentos e a importância dada aos mais velhos, são atitudes que podem e devem
permear o ambiente escolar.
A escatologia africana variava de um povo/grupo a outro. Entre os povos de
língua iorubá, numerosos nas capitais brasileiras e importantes na formação dos
primeiros terreiros, a passagem para no Aiyê é temporária, e tem como propósito geral
de crescimento espiritual, resumindo-se na missão pessoal de cada indivíduo. Aquele
que tem medo da morte não entende a crença ou que a vida é um processo de
aprendizagem. Nessa cosmovisão, todos iriam para o plano espiritual (Òrun),
inexistindo as noções de espaços separados no Além de Céu, Inferno e Purgatório nos
moldes da tradição ocidental-cristã. Após a morte os espíritos retornam à vida no Aiê,

28
Não era comum até o séc. XX o cargo de pai-de-santo, babalorixá, esse cargo de chefe de terreiro era
próprio de mulheres no Brasil.

14
tão logo possam, pois, o ideal é o mundo dos vivos. O Além – Orun seria dividido em:
Orun-Rere, Orun Funfun e Orun Baba Eni (“Bom Orun”, “Orun Branco” e “Orun dos
Ancestrais”) e o Orun Buruku e Orun Apadi (“Orun ruim” e “Orun dos cacos de vasos
de barro”). A pessoa poderá assim regressar a seu verdadeiro local de origem e
constituir-se em um espírito protetor para seus seres queridos, penar em regiões
distantes da Terra ou reencarnar em pessoas e animais. Como cada forma no Ayie
possui seu duplo no Orun, o plano espiritual, à princípio, seria uma continuação da
Terra, onde se pudesse reaver ou reaprender os seus comportamentos bons ou ruins para
sua comunidade. Assim, a morte não é necessariamente vista como uma passagem para
uma vida melhor do que esta, pois dependendo do comportamento, com base nos
preceitos morais desses povos antigos, a alma do morto poderia ir para um desses
Oruns, podendo retornar ou não ao plano terreno. (THOMAS, 1981. Disponível em: <
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k3346905f/f141.item>. Acesso em 29/12/2020. Pp.: 123-
129).
Conforme Giroto, perder uma vida ainda é uma ameaça a manutenção da
comunidade, daí a manipulação no aspecto mágico-religioso dos rituais para que o
morto de certa forma continue a existir para aquela comunidade, mesmo que em outro
plano. Porém, aqueles que interrompem o fluxo de energia vital e produz uma desordem
no universo (feiticeiros, suicidas, os sem descendentes) e aqueles acometidos por
doenças, morte por afogamento, por raios, morte de mulheres grávidas, quedas,
leprosos, loucos e os que morrem longe da família, causam desordem nesse Universo
espiritual e comunitário e pode cair no esquecimento daquele grupo quando não passam
a fazer parte do grupo ancestral respeitável. O indivíduo é imortal enquanto é lembrado
através dos ancestrais, dos mitos e das lendas, assim, o problema maior não é a morte
em si e sim, em como se morreu. (GIROTO, 1999. pp.:137-142).
Entretanto, devido às influências cristãs, a ideia de um ancestral que retorna é
diluída, enquanto a visão do Além mesclada às ideias cristãs de Céu, Inferno e
Purgatório [e posteriormente à reencarnação evolucionista kardecista formaram parte do
candomblecismo atual no Brasil]29. (REIS, pp.:90-91, 1991).
Conforme Prandi, diferente da visão cristã de alma e corpo físico apenas, na
concepção iorubá, a qual os candomblecistas herdaram, existe o corpo material, ara, o
qual com a morte decompõe-se e é reintegrado à natureza, o sopro vital ou emi, a

29
O contato com os muçulmanos também trouxe essa separação do plano espiritual e a diferença entre
Terra e Céu, mas foi com o contato com os cristãos europeus que esta visão melhor se desenvolveu.

15
personalidade-destino ou ori, a identidade sobrenatural ou identidade de origem que liga
a pessoa à natureza, ou seja, o orixá pessoal e o espírito propriamente dito ou egum.
Cada parte destas precisa ser integrada no todo que forma a pessoa durante a vida, tendo
cada uma delas um destino diferente após a morte. O emi, sopro vital que vem de
Olodumaré/Olorum (Deus supremo), representado pela respiração, abandona o corpo na
hora da morte, sendo reincorporado à massa coletiva que contém o princípio genérico e
inesgotável da vida, força vital cósmica do deus-primordial Olorum. O emi nunca se
perde e é constantemente reutilizado. O ori que contém a individualidade e o destino,
desaparece com a morte, pois é único e pessoal, de modo que ninguém herda o destino
de outro. Cada vida será diferente, mesmo com a reencarnação. O orixá individual, que
define a origem mítica de cada pessoa, suas potencialidades e tabus particulares, retorna
com a morte ao orixá geral (deuses/forças da natureza). Finalmente, o egun, que é a
própria memória do vivo que representa a identidade, a ligação social, biográfica e
concreta com a comunidade, vai para o Orun, podendo daí reencarnar (PRANDI, 2000,
pp.: 176-182).
Entre os africanos e seus descendentes, a maior parte conforme os testamentos
do séc. XIX, escolhiam uma mortalha branca para serem enterrados, retomando
provavelmente a simbologia, pelo menos entre os iorubás, edos e africanos islamizados,
da cor branca ligada a espiritualidade. A preparação do corpo era muito importante,
assim cortava-se as unhas, cabelos, barbas, limpavam e vestiam o morto. Os nagôs
acreditavam que a falta dessa cerimônia impediria a alma do morto encontrar com os
seus ancestrais, tornando-se um espírito errante, isekú. Essa toalete do cadáver só
poderia ser feita por pessoas iniciadas com pena de morrer ou trazer algum mal para si.
(REIS, pp.: 114-126, 1991).
Desta forma, aqui no Brasil, quando alguém do terreiro morre, em geral, algum
pai ou mãe-de-santo, podem ser homenageados nas cerimônias fúnebres, mas o ritual é
feito somente pela alta hierarquia do terreiro. O ritual Axexê30 e outros ritos fúnebres
pretendem afastar a alma do morto da comunidade do terreiro para que ela encontre
30
O Axexê corruptela da palavra iorubá àjèjé que em terras iorubás (Noroeste africano), por ocasião da
morte de um caçador, era costume matar-se um animal de quatro pés para o rito fúnebre, uma parte servia
de banquete aos parentes e amigos do morto, em homenagem ao defunto, enquanto a outra parte era
levada ao mato e oferecida ao espírito do falecido caçador, juntamente com os instrumentos de caça do
morto.
Como as religiões de origem africana no Brasil são diversas, para cada uma há rituais fúnebres que se
aproximam do Axexê conforme a região do Brasil, as influências e as etnias que organizaram os ritos. O
Axexê/ Asèsè é próprio da nação ketu, o tambor de choro das nações mina-jêje e mina-nagô, sirrum /
sihun da nação jêje-mahim e o ntambi / itambi, matanga ou mukundu da nação angola. (PRANDI, 2000,
pp: 177-182).

16
facilmente o caminho do pós-morte. Há cantos, música com atabaques, os participantes
usam branco (a cor ligada a espiritualidade), amuletos contra eguns (outros possíveis
espíritos oportunistas), há a representação do morto com uma panela de barro cheia de
comida e moedas, a qual em volta ocorrem as danças, oferendas para o morto e seu orixá
e, ao fim, o despacho para longe do terreiro dos objetos sagrados “desfeitos” juntamente
com as oferendas e objetos usados no decorrer da cerimônia, como os instrumentos
musicais próprios para a ocasião, esteiras, etc. Assim, o espírito homenageado não faz
mais parte daquela casa e só futuramente poderá ser incorporado ao patrimônio dos
ancestrais ilustres, se for o caso, podendo então ser assentado e cultuado (ter um tipo de
altar). Podem haver missas fúnebres após 1 mês, 1 ano e depois 7 anos, o que demonstra
a influência católica nesse caso (BERKENBROCK, 2012). Nesses pontos, percebe-se as
similaridades entre as práticas religiosas mortuárias no candomblé brasileiro, sobretudo
das nações ketu, jêje e angola, e os ritos nos países africanos já mencionados. É
inevitável manter uma ponte cultural, mas não se deve generalizar todo o ritual e seus
significados, pois diversos grupos, lugares e períodos devem ser pensados antes.

Colonização e poder

O sistema globalizador ou colonialismo europeu trouxe ações de dominação e


exploração econômica, política e social ao continente americano, africano, asiático e
para a Oceania. Essa estrutura de dominação teve início a partir de 1492, quando
europeus invadiram os países do continente americano e instalaram medidas de
exploração das pessoas e dos recursos encontrados, apoderando-se também dos corpos e
das mentes dos sujeitos, além das terras e da natureza. Para os autores intitulados de
decoloniais, embora essas regiões terem conseguido suas independências políticas,
ainda permanecem num processo colonizatório, no qual há uma hierarquia de
construções de significados sociais que negam aos não-europeus sua humanidade
enquanto sujeitos pensantes e de condições dignas para viver. Por isso, é salutar pensar
em narrativas a partir também do olhar do colonizado para se falar da história mundial.
Tendo isso em vista, dentro deste estudo se pretende ao fim construir uma noção
de historiografia que permita dar atenção aos valores e histórias religiosas, diferente da
versão racionalista ou exclusivamente cristã de tradição europeia. Isto significa tentar ir
além da historiografia Ocidental e pensar como escrever uma história dos povos que não
possuem essa mesma noção de história. É assim uma tentativa de pluralizar a concepção

17
de razão e uma nova forma de representar e se relacionar com o passado, dando espaço
para outras epistemes dentro do currículo escolar e, sobretudo, aliando cultura escolar e
acadêmica.
O uso de teorias acerca das representações sociais é um atrativo para se entender
as trocas simbólicas e afetivas que estão inseridas no discurso e no comportamento
cultural e religioso ao longo da história. Conforme Roger Chartier, o mundo possui uma
luta de representações e, nesse caso, há diferentes concepções sobre a morte e logo não
há um universo simbólico universal e unificado (CARVALHO, 2005, p.: 148). A
temática cultural-religiosa tradicional católica por mais que seja comum ou bem visível
através dos seus rituais e dos discursos específicos, não apaga inteiramente outros temas,
os quais resistiram à colonização ibérica nas Américas. As formas de produção de
sentido, de vivência e de pensamento social são múltiplas e dinâmicas exemplificadas
tanto nos cultos aos santos e ritos católicos quanto no respeito aos antepassados e rituais
das tribos africanas no candomblé. Existe um hibridismo religioso e junções sociais ao
longo da história que trazem novos modos de captar a passagem da vida terrena para o
Além, incluindo diferentes significados de ver a vida. Essas outras produções de sentido
para a morte preenchem lacunas sociais, espirituais e até mesmo pessoais e do
psicológico coletivo que mostram uma possível insatisfação com apenas um tipo de
representação ou que não foi capaz de se limitar a homogeneidade pretendida pelo
Estado colonial e pela Igreja Católica Apostólica Romana que sempre esteve ligada a
formação cultural, religiosa e política, sobretudo, durante a colonização.

As representações são entendidas como classificações e


divisões que organizam a apreensão do mundo social como categorias
de percepção do real. As representações são variáveis segundo as
disposições dos grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade,
mas são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as
forjam. O poder e a dominação estão sempre presentes. As
representações não são discursos neutros: produzem estratégias e
práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a
legitimar escolhas. Ora, é certo que elas se colocam no campo da
concorrência e da luta. Nas lutas de representações tenta-se impor a
outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social: conflitos
que são tão importantes quanto as lutas econômicas; são tão decisivos
quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER, 1990, p.: 17).

18
As representações se entrelaçam entre o mundo individual e o mundo coletivo 31,
sendo produtos de grupos que constituem a sociedade, através dos processos de
influência, de resistência, de normalização e/ou de conformidade que podem ser
explorados dentro da dinâmica histórico-religiosa no brasil. Os símbolos e narrativas
cristãs foram usados como instrumento de dominação e convencimento. São vistos
enquanto dominação no momento em que a instituição religiosa, em conjunto com os
reinos ibéricos, apresentou essa temática como uma proposta universal e única verdade.
Por conseguinte, o imaginário é manipulado, mas só o é quando consegue ser elemento
de sentido para a comunidade a qual se dirige. A respeito disto, Patrícia Merlo demonstra
a preocupação da Igreja Católica em regular a vida cotidiana, matrimonial e até a morte
através dos enterros e significados dados a morte e ao Além.
A autora fala das leis, manuais e registros católicos que ao regular também se
adaptava as demandas brasileiras, como a permissão de casamentos mistos, os cortejos
mesclados pela cultura afro-brasileira e cristã e os próprios terreiros que possuem
elementos católicos, como a menção aos santos, missas, etc. Essa junção (nem sempre
pacífica e harmônica) nas famílias brasileiras, dos terreiros e da sociedade civil,
humanizava esses negros (as) que no processo de escravidão muitas vezes perderam seus
laços ancestrais. Eles passam a ter referencial de vida e historicidade, além de manterem
relações de solidariedade. (MERLO, 2011, pp.: 296-298). Isto é, cria-se signos oficiais
de conversão cristãos e ao mesmo tempo são criadas renovadas apropriações de sentidos
por seus fiéis, daí surgem novas percepções, inesperadas pelas regras católicas. Essas
apropriações se inserem num padrão de representações, as quais possuem símbolos e
imagens que interagem com a vida social. Nada mais são do que modos de sentir e de se
comportar dos crentes que integram a cultura de um local em uma época.
É interessante que os alunos percebam que existem lutas baseadas na força bruta
e as lutas simbólicas, sendo estas tão importantes quanto aquelas. Assim fazê-los
entender que o tempo todo a história lida com simbologias e discursos que movem as
práticas sociais, valorizando o aspecto subjetivo e complexo da disciplina e de suas
próprias vivências enquanto agentes discursivos. Percebe-se que apesar dos elementos
persuasivos das doutrinas cristãs, o contrassenso e a rebeldia, consciente ou não dos
indivíduos, são exemplificados nos cultos e na vida cotidiana em geral. Nessa
perspectiva, as metologias ativas de Neusi Berbel vão de encontro a estes ângulos. Para a
31
Deve-se levar em conta que não há uma separação clara entre o mundo dos indivíduos e o mundo do
coletivo, ambos se interpõem e se transformam na dinâmica social. Dessa forma, as representações
também não possuem composições bem definidas do que é do sujeito e do âmbito social.

19
autora, a escola pode atuar para promover o desenvolvimento humano, a conquista de
níveis complexos de pensamento e de comprometimento em suas ações. (BERBEL,
2011, pp.: 25-28). Entender as formas representativas do mundo e as lutas discursivas,
as quais, incluem sujeitos inviabilizados, é uma maneira de integrar os próprios alunos e
o seu “eu” numa visibilização, mostrando que assim como elementos do passado, eles
também podem agenciar e causarem mudanças desejadas.
Isto posto, os discentes podem observar a afirmação de renovados ritos e novas
formas de socializar e vivenciar as memórias do povo. A memória desses povos então
faz parte de uma disputa de discursos culturais e religiosos, na qual a lembrança da morte
dá sentido à vida individual e coletiva e demonstra o dinamismo histórico. Por isso,
pensa-se no passado transformado dando sentido ao presente, misturando conotações
estéticas e éticas, ou seja, o passado com diversas heranças e valores, assim como o
presente, é retomado pelos grupos sociais para terem uma coerência existencial,
utilizando a memória (individual e coletiva). (CATROGA, 2001, pp.: 20-21). Essa
memória, inúmeras vezes foi manipulada para que grupos hegemônicos afastassem
qualquer práticas e discursos perniciosos a ordem vigente, mantendo esses grupos no
lugar de poder. As próprias narrativas historiográficas, literárias e jornalísticas são
passíveis desses usos discursivos.
Conforme apresenta Flávio Gomes e Lilia Schwarcz, os modelos de civilização,
igualdade e cidadania não eram os mesmos para os considerados brancos e negros na
sociedade brasileira. Os intelectuais da República (a partir de 1889) na ânsia de redimir o
passado escravista e dito incivilizado tentam formar um discurso coeso sobre quem são
os novos cidadãos brasileiros e o novo Brasil republicano, mas o que se percebe, se olhar
atentamente, é que haviam várias falas tentando se ajustar entre as resistências e
conformações, pois dentre essas falas (e atitudes) estava a população negra, pobre,
indígena que não se mantinha coerente e inerte como os poderes vigentes imaginavam.
Daí o reforço entre muitos intelectuais e a elite do período em manter essa população no
seu lugar subalternizado e para isto o uso da historiografia, da mídia, da literatura, das
leis e da força que minimizam, controlam ou mesmo apagam essa gente e se faz ainda
presente. Os negros (as) e seus descendentes são colocados como marginais, incapazes e
ao mesmo tempo reafirma-se a figura do branco civilizador e salvador, como um
contínuo das ideias colonizadoras. Juntamente com o mito da democracia racial e da
passividade do povo brasileiro tenta-se formar “quase cidadãos” que não tem direitos
plenos na prática e são bombardeados por uma linguagem que esvazia de sentido toda a

20
história e cultura negra e maldiz qualquer aspecto da negritude. (GOMES, SCHWARCZ,
pp.: 7-25, 2007). Fanon também afirma essa ideia quando fala da constante manutenção
do negro (a) subserviente e do padrão ideal branco, levando a este negro ser então
escravo de sua inferioridade já que as forças, física e discursiva, desse pensamento
dominante, são inculcadas na subjetividade e identidade dos negros (as) e retomando
Silvio Almeida, é preciso lembrar que se uma sociedade é racista, todos que estão nela,
inclusive os negros, também serão.
O racismo é estrutural, nesse sentido, isto é, é um elemento que faz parte da
organização econômica e política, como algo que se normaliza na sociedade e se torna o
comum, fornecendo lógica e sentido para a desigualdade e a violência. (ALMEIDA,
2018, p.:5). Percebe-se assim, como esse racismo desenvolvido com e para a colonização
é retomado, mesmo após as independências dos países colonizados, dentro deste
conjunto comportamental, moral e da enunciação e logo, mantendo impedimentos,
segregações ou ignorando aquele Outro que está fora do protótipo branco, masculino,
heterossexual e cristão. Nesse ponto, refere-se a questão da interseccionalidade que trata
da sobreposição dos sistemas que oprimem, dominam ou discriminam, ou seja, “demarca
o paradigma teórico e metodológico da tradição feminista negra, promovendo
intervenções políticas e letramentos jurídicos sobre quais condições estruturais o
racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem, discriminam e criam encargos,
[sobretudo às mulheres negras].” (AKOTIRENE, C., 2018, p.: 54). Aqui não se
pretende falar da mulher negra em si, porém, é preciso saber como os meandros do
poder alcançam diferentes grupos e identidades sociais, tornando-os mais vulneráveis à
violência e à invisibilidade, quanto mais afastados do padrão mencionado.
Nessa lógica, tudo ligado ao popular deveria ser mantido sob vigia: religião,
educação, divertimento, comportamento. Conforme exemplifica Thompson, cada vez
mais o que era popular foi sendo afastado do que era considerado civilizado e instruído.
O medo da espontaneidade do povo fez com que este fosse dominado e moldado
intelectual e culturalmente em direção a objetivos predeterminados e seguros para a
manutenção dos poderes vigentes. (THOMPSON, 2002, p.: 31). Entretanto, esse controle
cultural nunca é total. A pura obediência por mais rigor ou violência que fossem usadas
nunca abarca a integralmente as consciências humanas.
Nenhuma ideologia é inteiramente absorvida por seus
partidários, na prática, ela multiplica-se de diversas maneiras, sob o

21
julgamento dos impulsos e das experiências. (THOMPSON, 2020b, p.:
278. In: MARTINS, 2014, p.: 311).
As experiências populares vistas arrogantemente por tais poderosos como
barbárie, superstição e falta de instrução resistiram ao longo da história, como foi o caso
no Brasil, nos quais as consagrações indígenas, católico-populares e candomblecistas se
perpetuam, mesmo que de forma subalternizada. Essas religiões, na atualidade, ainda são
apresentadas como atrasadas e demoníacas, mesmo que tenham formas híbridas,
permanecem dentro do discurso colonizatório como inferiores às religiões normativas
cristãs. Levando em conta essa disputa permanente, o colonialismo além de uma
dominação física e comportamental se manteve como parte de um predomínio
epistemológico. Isto é, partindo da ideia de que os saberes de povos não-europeus são
atrasados e seus conhecimentos seriam irrelevantes, os colonizadores tentaram suprimir
tais saberes e os relegaram a um espaço de subalternidade na tentativa de que sumissem,
contudo o que se verificou é que toda experiência social produz e reproduz
conhecimentos e a cultura desses povos não desapareceu, mas foi relegada ao limbo,
vista como inválida, por mais que se mantivesse atuante socialmente.
Não houve e não há na história um equilíbrio de valores entre os povos, há
aqueles considerados invisíveis e sem importância e outros dignos de se reproduzir o
conhecimento.
Como bem explica Nogueira, entre os séculos XV e XIX, diversos discursos
foram produzidos para explicar a América e principalmente a África e seus habitantes.
Tais discursos acabaram por construir, pouco a pouco, um imaginário negativo a
respeito destes continentes e de tudo o que vinha de lá. Entre os discursos que
auxiliaram na construção deste imaginário, temos principalmente o racial (que detinha
um status “científico”32) e o religioso, classificando a humanidade em: homem
selvagem, americano, europeu, asiático, africano e “monstro”, cada uma delas com
características físicas, mas também psicológicas, políticas e até comportamentais
inerentes. Os adjetivos mais negativos eram associados a África abaixo do Saara, onde
supostamente as qualidades físicas eram referentes aos negros mais fortes.

32
O discurso racial é constituído no século XVIII como uma aplicação do sistema classificatório que
tratava do reino vegetal à espécie humana. Tem como marco o livro Sistema Natural, de Charles Linné,
com sua primeira versão publicada em 1735, considerando o ser humano como um animal quadrúpede, no
mesmo nível do macaco. Sua teoria foi se aprimorando ao longo dos anos, até chegar à décima edição de
seu livro em 1758, com um sistema classificatório humano mais completo, no qual, quanto mais afastado
do padrão europeu, mais “selvagem”. (NOGUEIRA, 2017, p.: 39).

22
Tais ideias influenciaram vários autores posteriores, por exemplo Samuel T.
Soemmering e Christoph Meiners, que alegavam a superioridade da raça branca
europeia em contraposição à “degeneração” das outras raças, assim como sua
inferioridade física e mental. Mas, foi com Gobineau que a teoria racialista europeia
chegou a seu ápice em 1855 com o discurso da superioridade da raça branca, que
acabaria por influenciar grande parte do pensamento ocidental e justificar desde a
colonização e escravização até a ideia da superioridade ariana que fundamentaria o
Nazismo de Hitler posteriormente. Neste contexto, muitos filósofos e historiadores do
século XIX reiteraram essa visão. Na verdade, essas ideias já existiam muitos séculos
antes, de origem preconceituosa e cristã que viam outros não-cristianizados como
bárbaros e demoníacos, e reforçavam um ideal de inferioridade e condenação. Isto foi
muito exaltado pelos relatos dos viajantes e missionários que passaram pela África e
América (NOGUEIRA, 2017, pp.: 37-42).
Para Santos e Menezes, durante o processo colonizador, desde o séc. XV, até
nossos dias, ocorreu um epistemicídio em relação aos saberes dos colonizados, ou seja,
toda noção ou ideia sobre as condições do que é conhecimento válido, científico ou que
deve ser estudado, no caso dos ameríndios e africanos, foi riscado do mapa como útil.
Assim, criou-se uma fronteira física e subjetiva intransponível dos saberes e da falta de
entendimento entre os povos ditos incivilizados e os europeus (e hoje os estadunidenses
também). Então, pretendeu-se universalizar o conhecimento eurocêntrico, seus costumes,
religião, estética, valores, inculcando pela violência física e simbólica aos ditos “outros”.
Deste modo, para Grada Kilomba, existe um regime de conhecimento dominante
que regula o que é a verdadeira erudição, o que deve ser aprendido e que apenas a
descolonização das estruturas políticas e de conhecimento poderia mudar essa condição.
Para ela, essa base eurocêntrica e patriarcal se propõe universal e neutra, porém, nada
mais são do que reflexos de interesses políticos específicos que engloba uma complexa
dinâmica entre gênero, raça e poder. Assim como Spivak, Kilomba também trabalha com
o campo semântico, mostrando as posições hierárquicas que preservam a supremacia
branca e masculina, de origem colonial, no campo discursivo, e logo na produção e
distribuição do conhecimento. Isso remete não só a linguagem, mas a um entendimento
de mundo, o qual, posiciona e classifica o patamar de cada grupo social e como eles
serão compreendidos. Para ela, o racismo é interseccional, ou seja, ele interage com
outras ideólogas e estruturas de dominação, como o sexismo e o classismo. Kilomba
insiste então na posição social menor das “sujeitas negras” atravessadas por esse

23
conjunto exploratório com base colonizatória que as tentam calar, estigmatizar e difamar.
(KILOMBA, 2019, pp.: 47-59).
“No mundo conceitual branco, o sujeito[a] negro[a] é
identificado como objeto “ruim”, incorporando os aspectos que a
sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu, isto é,
agressividade e sexualidade (...) permitindo a branquitude olhar para si
como moralmente ideal, decente, civilizada, majestosamente generosa,
em controle total e livre da inquietude que sua história causa.”
(KILOMBA, 2019, p.:37).

Mantendo esse pensamento, Franz Fanon fala em como a criação de visões de


mundo, através dessa mesma epistemologia, infantiliza, sexualiza, exotiza e animaliza o
sujeito negro e o arquétipo de valores inferiores passa a ser representado pelos negros
(as) a partir do eurocentrismo. Portanto, ele demonstra que a partir da colonização o
padrão é a branquitude naturalizada ao longo do tempo com as estruturas políticas,
econômicas, culturais e principalmente psicológicas, tornando esse sujeito (Outro)
afetado em sua subjetividade de tal forma que se tornou um neurótico, “escravo” sua
inferioridade, buscando a todo custo se encaixar em tal ideal (embranquecer), o que
nunca ocorre, levando a mais auto-desprezo ou rivalidade entre aqueles que se encontram
com traços menos “negroides”. Segundo Fanon e vários autores nessa linha de
pensamento, como Aimé Cesáire (seu professor do colegial), o negro não alcançaria esse
padrão porque ele sequer é visto nessa perspectiva como ser humano, ele é aquele sem
história, sem estética positiva, sem cultura valorizada, sem referencial, é um não-ser.
Sendo assim, é permitido ao sujeito negro violentá-lo, explorá-lo, matá-lo, como
aconteceu no passado e ainda ocorre. (FANON, 2008; CÉSAIRE, 1978).
Curiosamente, apesar dessa pretensão ter desperdiçado as experiências sociais e
reduzido a diversidade epistemológica, não a suprimiu. Na atualidade, discussões no
mundo acadêmico sobre o decolonialismo retoma esses saberes marginalizados no
intuito de dialogar com estes no que Santos chama de ecologia dos saberes, a troca
através da interculturalidade, a qual se dispõe recíproca para o enriquecimento mútuo
entre várias culturas de um certo espaço cultural. (SANTOS; MENESES, 2010, pp.: 16-
19). Nessa sequência, a pesquisa sobre aspectos da cultura e das religiões de origem
africana podem retomar a busca por essa ecologia, mostrando para descendentes de
negros [e indígenas] que eles e suas identidades não sumiram da história, estão apenas
embaçadas. Esses grupos forjaram formas de culturas próprias ou recriadas de sua

24
bagagem intelectual e nesse sentido, contribuíram em relação às múltiplas formas
culturais de agir no Brasil. Então, essa produção simbólica contida nos ritos religiosos
revela mensagens socialmente significativas, como ideologias e disputas sociais que se
estendem à produção das representações sobre o pós-morte.
Segundo os decoloniais, os conhecimentos populares, leigos, indígenas, dos
africanos e de outros ficaram fora das formas de conhecer europeias, sequer estavam
dentro de uma classificação digna de ser chamada de falsa, era simplesmente ignorado,
em boa parte das vezes. Portanto, se a zona colonial não é reconhecida como real, os
sujeitos participantes dessa delimitação também não são considerados humanos. A lógica
colonizadora, que se perpetua nos países e regiões periféricas, é baseada na ideia que se
pode controlar, dominar e exterminar o outro, pois este não se classifica como indivíduo
e logo, não participa dos direitos comuns aos seres humanos. Ele estaria, segundo Santos,
do outro lado da linha abissal que separa civilização e barbárie, humanos e
natureza/animais. Interessante pensar que essa visão comumente usada e vivida pelos
antigos colonizadores e os atuais poderosos nas sociedades contemporâneas, não
conseguiu se desvincular totalmente dessas culturas diversas.
Quando se percebe a influência que os costumes africanos [e indígenas] tiveram
nas sociedades e na cultura europeia, vê-se fagulhas do que se resiste e não foi
esquecido. Obviamente que a transmissão e o aproveitamento dessas culturas
marginalizadas são precários em relação a continuidade do saber de origem europeu e
cristão. Essa é uma discussão que autores como Caterine Walsh se inscrevem. Para essa
autora, seguindo as premissas de Fanon e de Freire, é necessário uma desalienação
psicológica e conhecimento da realidade social pelos subalternizados. Isto significa
buscar o conhecimento, não só eurocêntrico, e popularizá-lo para que principalmente os
menos abastados e desvalorizados da sociedade alcancem sua autonomia intelectual,
econômica, política e consciência de seu papel na transformação do mundo. (WALSH,
pp.:585-590, 2015). É dessa forma que este estudo pretende tornar possível o
conhecimento de outras formas culturais que não sejam centradas só no padrão
europeu33, dentro das escolas e no âmbito acadêmico. Ademais, quando se observa sobre
o regresso colonial, a tentativa de ordenação do mundo definindo quem são os dignos de
humanidade e os que não o são, existe ainda um novo colonial abissal, por mais que seja
33
O padrão europeu se refere a produção científica, escolar, acadêmica, cultural, religiosa, estética e
jurídica que se constituiu predominantemente nas sociedades contemporâneas. A partir da colonização
europeia, alastrada por todo o mundo, foi o modelo de conhecimento que se firmou como o mais
influente. (SANTOS, 2008, pp.: 33-36; 2010, pp.: 38).

25
em bases econômico-políticas capitalistas34, ainda há uma linha de separação formada
pelo racismo, pela xenofobia, machismo, homofobia, característicos do período colonial
e que apenas se atualizaram na Contemporaneidade, tornando incompreensível ou difícil
o entendimento entre diferentes culturas, povos ou grupos. Daí a importância da
resistência epistemológica como uma forma política que se insere nas práticas sociais
para desenvolver a interação entre diversos grupos e valoriza outras formas de saberes.
Nesse mesmo sentido, percebe-se essa dificuldade na popularização do
conhecimento. Isso remete a falta de diálogo entre diferentes conhecimentos (da
academia, da escola e do senso comum), tão comum pela formação colonial nas
Américas, por exemplo. Essa dialética necessária pretendida por muitos historiadores
atuais também é uma forma de se agir na sala de aula, partindo da experiência do
discente, assim como de outros povos, para a interação e produção de novos
conhecimentos que podem fazer mais sentido e serem mais eficazes socialmente.

Conclusão

Pensar numa revitalização do conhecimento, da cultura e da própria vida de


milhões daqueles não-brancos, é criar ou refazer uma identificação, na qual, os sujeitos
assimilam os aspectos do outro e são transformados. Essa identificação é imprescindível
não só para o grupo mencionado, mas para toda a sociedade, perceber as experiências e
as histórias de outros agentes sociais é saber interagir com as diferenças, e não esquecê-
las. Não se pretende criar maiores separações entre sujeitos brancos e negros e sim
confrontá-los para que nesta dialética se construa algo novo, além das atuais
delimitações. É positivar subjetivamente as identidades, contudo, para tal missão
retomando Spivak e Fanon, é preciso que também haja estruturas objetivas, materiais e
epistemológicas que abram espaço de poder para esta heterogeneidade. Essas estruturas
podem ser alcançadas de diversas maneiras, uma delas é oportunizando um
conhecimento mais crítico, amplo e múltiplo para os jovens para que eles alcancem
outras visões de mundo e possam através da construção de uma ética, escolher melhores
atitudes para o mundo.

34
O capitalismo é um sistema social que visa o lucro e em que o capital (poder, dinheiro e bens) está em
mãos de empresas privadas ou indivíduos que contratam mão-de-obra em troca de salário. (Oxford
Language. Disponível em: < https://www.lexico.com/es/definition/capitalism>. Acesso em: 29/7/2020).

26
É nesse ponto que a interculturalidade se insere, entrelaçando o múltiplo e não
substituindo um pelo outro. Pois, não é da essência do ser negro, e de outras minorias,
ser inferior, essa pressuposição foi criada entre o contexto social e as relações da
(in)consciência ao longo de anos da antiga e contínua colonização e seus conceitos
etnocêntricos. Assim, retratar outras imagens no currículo escolar, cada vez mais
esmiuçadas é um primeiro passo. Mas, vai além, é estar atento à linguagem, aos planos
discursivos, às próprias atitudes cotidianas.
Portanto, apenas se conhecer a história de povos desprezados, não
necessariamente transformará o presente, é necessário também não se conformar com
todas as estruturas de dominação que interligam diferentes grupos sociais e confrontar
obstinadamente os paradigmas hegemônicos de poder, até porque como todo sistema,
eles não são eternos.

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