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ANDRÉ BONOTTO

DOCUMENTÁRIO E CINEMA DA ASSERÇÃO PRESSUPOSTA


SEGUNDO NOËL CARROLL

CAMPINAS
2014

i
ii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES

ANDRÉ BONOTTO

DOCUMENTÁRIO E CINEMA DA ASSERÇÃO PRESSUPOSTA


SEGUNDO NOËL CARROLL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título
de Doutor em Multimeios.

Orientador: FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA

Este exemplar corresponde à versão final da


Tese defendida pelo aluno André Bonotto e
orientada pelo Prof. Dr. Francisco Elinaldo
Teixeira.

________________________________

CAMPINAS
2014

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v
vi
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior (CAPES), cujo financiamento, através de bolsa de
pesquisa, tornou possível a realização deste trabalho.
À Universidade Estadual de Campinas, pelo rico acervo de
conhecimento disponibilizado através de suas bibliotecas físicas e através dos
portais virtuais de periódicos.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Multimeios, pelo
aprendizado durante os vários anos de estudos de pós-graduação.
Aos professores membros de nossa banca de defesa, tanto titulares
como suplentes, pela solicitude e paciência.
Ao Prof. Dr. Francisco Elinaldo Teixeira, nosso orientador, que nestes
sete anos de convivência, desde o início do Mestrado até o final deste percurso no
Doutorado, sempre ofereceu autonomia, compreensão e encorajamento.
Á minha família, pelo apoio durante o período de escrita do trabalho.
E, finalmente, à Aline, não apenas por seu auxílio na confecção das
figuras e filmografia deste trabalho, mas também por tudo de bom que pudemos
compartilhar em nossa jornada conjunta.

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viii
“Considering the impact of movies on our
consciousness, it is philosophically
irresponsible not to attend to these works
seriously.”
- Dan Shaw1

“Images, images - details and aspects of


things that lift a word of fact to beauty and
bravery - no doubt half a hundred passed
under my nose, and I did not see them.”
- John Grierson2

“(...) essencial à filosofia analítica é o valor


do processo em vez da durabilidade do
resultado.”
- Hans-Johann Glock3

1
“Film and Philosophy: Taking Movies Seriously”. Disponível em: <http://www.aesthetics-
online.org/teaching>. Acesso em: 13 abr. 2014.
2
"Drifters". In: HARDY, Forsyth (Ed.). Grierson on Documentary. London: Faber and Faber, 1966,
p.137.
3
O que é filosofia analítica. Porto Alegre: Penso, 2011, p.130.

ix
x
RESUMO

Este trabalho analisa o pensamento do filósofo analítico Noël Carroll a


respeito do cinema documentário. Sua discussão sobre o documentário envolve os
temas da objetividade, de intenções autorais, da indexação das obras e da
dimensão do traço histórico das imagens. O ponto principal deste pensamento
localiza-se em sua teoria do cinema da asserção pressuposta, o que constitui sua
definição conceitual para este gênero fílmico. Apresentamos, de início, a formação
filosófica e cinematográfica deste autor, ressaltando a posição que ele ocupa no
campo dos estudos de cinema e as características do método da filosofia analítica,
que ele adota. Examinamos, a seguir, os textos onde Carroll apresenta seu
pensamento sobre o documentário, discutindo detalhadamente os elementos
presentes em sua teorização. Após isso, problematizamos alguns pontos de sua
teoria, como o conceito de asserção, a relação entre as posturas mentais ficcional
versus assertiva, e o papel do significado. Apontamos, por fim, relações entre o
projeto teórico de Noël Carroll e outras abordagens no campo de estudos do
cinema documentário.

Palavras-chave: Noël Carroll 1947-, Documentário (Cinema), Filosofia, Gêneros


cinematográficos.

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xii
ABSTRACT

This thesis analyzes the thought of the analytic philosopher Noël Carroll
on documentary film. His discussion of documentary involves issues of objectivity,
authorial intentions, indexing works, and of the historical trace of images. The core
of this author's thought lies in the theory of films of presumptive assertion, that
which constitutes his conceptual definition for this filmic genre. We present, at first,
the philosophical and filmic training of this author, with consideration towards the
position he occupies in the field of film studies, and towards the method of analytic
philosophy he adopts. Works where Carroll presents his thoughts on documentary
are, then, examined, with detailed discussion on the elements that compose his
theorizing. After that, some points of his theory are problematized, as the concept
of assertion, the relation between fictive and assertoric stances, and the role of
meaning. Finally, some comments are made about Noël Carroll's theoretical
enterprise in relation to the broader field of documentary film theory.

Key words: Noël Carroll 1947-, Documentary films, Philosophy, Film genres.

xiii
xiv
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Diferença extensional entre o uso griersoniano e o uso corrente


de “documentário” ....................................................................... 83
Figura 2 Inconsistência extensional entre vários usos de “documentário”. 84
Figura 3 Referências diversas do termo “filme de não-ficção” .................. 87
Figura 4 Diferença extensional entre os conceitos “documentário”, “filme
da asserção pressuposta”, e “filme de não-ficção” ..................... 89
Figura 5 Argumento da indiferenciação formal entre ficção e não-ficção . 93
Figura 6 Atitudes mentais opostas adotáveis pelo público de uma obra
artístico-comunicativa .................................................................. 99
Figura 7 Passagem de uma caracterização negativa da não-ficção, para
uma caracterização positiva do filme de asserção pressuposta
..................................................................................................... 105
Figura 8 Elementos e relações existentes na definição do filme de
asserção pressuposta ................................................................. 110
Figura 9 Elementos e relações existentes na definição do filme de
asserção pressuposta, incluindo a indexação ............................ 123

xv
xvi
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AH - Artigo “Address to the Heathen” (CARROLL, 1982)


ASA - American Society for Aesthetics
BIBLIO-NC - Página com listagem da bibliografia de Carroll até 1999
CAP - Texto “Ficção, não-ficção e o cinema da asserção pressuposta:
uma análise conceitual” (CARROLL, 2005)
CAP-EN - Texto “Fiction, Non-fiction and the Film of Presumptive
Assertion: A Conceptual Analysis” (CARROLL, 1997)
CUNY-NC - Página de Noël Carroll no website da City University of New
York
Dir. - Dirigido por
FRTR - Texto “From Real to Reel: Entangled in Nonfiction Film”
(CARROLL, 1996a)
LIA - Texto “Living in an Artworld”, de Nöel Carroll
MFJ - Periódico “Millennium Film Journal”
MM - Livro Mistifying Movies: Fads and Fallacies in Contemporary
Film Theory
PMS - Texto “Nonfiction Film and Postmodernist Skepticism”
(CARROLL, 2003b)
PN - Artigo “Le Père Noël” (HEATH, 1983)
Prod. - Produzido por
PT1 - “Parte 1”. A sigla representa o modelo de divisão que criamos
das partes de um texto não-paginado (PRIVETT, 2001)
PTD - Texto “Photographic Traces and Documentary Films:
Comments for Gregory Currie” (CARROLL, 2003c)
QC - Livro “Questions of Cinema”, de Stephen Heath
RH - Artigo “A Reply to Heath” (CARROLL, 1983)
RBW - Texto “Reply to Carol Browson and Jack C. Wolf” (CARROLL,

xvii
1996d)
WIK - Website em inglês da enciclopédia online Wikipedia
<http://en.wikipedia.org>
WIK-NC - Página do verbete “Noël Carroll” em →IK
WIK-PT - Website em português da enciclopédia Wikipedia
<http://pt.wikipedia.org>

xviii
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................... 1
2. NOËL CARROLL: FILOSOFIA E CINEMA .............................................. 9
2.1. Cinema e filosofia: biografia e trajetória acadêmica ..................... 9
2.2. Repercussão nos estudos de cinema ............................................. 17
2.3. Metodologia e estilo: filosofia analítica .......................................... 28
2.3.1. FILOSOFIA ANALÍTICA ............................................................. 28
2.3.2. FORMALIZAÇÃO ....................................................................... 34
2.3.3. DEDUÇÃO ................................................................................. 38
2.3.4. ESTILO ...................................................................................... 40
3. DO DOCUMENTÁRIO AO CINEMA DA ASSERÇÃO PRESSUPOSTA . 45
3.1. Emaranhado no cinema não-ficcional ............................................ 46
3.1.1. PARADIGMA DO CINEMA DIRETO ......................................... 48
3.1.2. IMPOSSIBILIDADE DE OBJETIVIDADE ................................... 52
3.1.3. (IN)DISTINÇÃO ENTRE FICÇÃO E NÃO-FICÇÃO ................... 57
3.1.4. CONSIDERAÇÕES ................................................................... 59
3.2. Ceticismo pós-moderno ................................................................... 60
3.2.1. MICHAEL RENOV ..................................................................... 62
3.2.2. BILL NICHOLS ........................................................................... 64
3.2.3. BRIAN WINSTON ...................................................................... 66
3.2.4. CONSIDERAÇÕES ................................................................... 67
3.3. Traços fotográficos ........................................................................... 70
3.3.1. TRAÇOS VISÍVEIS .................................................................... 71
3.3.2. AVALIAÇÃO DE CARROLL ...................................................... 72
3.3.3. CONSIDERAÇÕES ................................................................... 75
3.4. Cinema da asserção pressuposta ................................................... 77
3.4.1. O PROBLEMA ........................................................................... 79
3.4.2. A SOLUÇÃO .............................................................................. 86
3.4.3. FICÇÃO E NÃO-FICÇÃO .......................................................... 89

xix
3.4.3.1. (In-)Distinção entre ficção e não-ficção ........................... 91
3.4.3.2. Intenções autorais ........................................................... 95
3.4.3.3. Fórmulas definidoras ....................................................... 99
3.4.4. FILMES DE ASSERÇÃO PRESSUPOSTA ............................... 104
3.4.5. FILMES DE TRAÇO PRESSUPOSTO ...................................... 111
3.4.6. CONSIDERAÇÕES ................................................................... 118
3.4.6.1. Indexação ........................................................................ 121
3.4.6.2. Objeções ......................................................................... 124
3.5. Do documentário ao cinema da asserção pressuposta ................ 133
3.5.1. A TRADIÇÃO DO DOCUMENTÁRIO ........................................ 134
3.5.2. O CONCEITO DE DOCUMENTÁRIO ........................................ 139
4. PROBLEMATIZAÇÕES ............................................................................ 145
4.1. Asserção ........................................................................................... 145
4.2. Significado ......................................................................................... 153
4.3. Ficção ................................................................................................. 161
4.4. Considerações finais ........................................................................ 165
5. REFERÊNCIAS ......................................................................................... 169
6. FILMOGRAFIA .......................................................................................... 177

xx
1. INTRODUÇÃO

A presente tese de doutorado aborda um determinado universo


temático dentro do pensamento do filósofo analítico norte-americano Noël Carroll.
Este universo é o do cinema documentário.
Um importante texto deste autor (CARROLL, 2005), em que ele
apresenta sua teoria do documentário como “cinema da asserção pressuposta”,
encontra-se, já há alguns anos, traduzido para o português, numa coletânea de
grande interesse (RAMOS, 2005b), o que o torna acessível a este campo de
estudos em nosso país.
Apesar disso, sentimos, por um lado, que inexiste uma discussão
aprofundada desta sua teoria e, por outro, que as linhas de força mais gerais de
sua produção intelectual são amplamente desconhecidas por esta comunidade
acadêmica.
Talvez esse estado de coisas se dê em função de a abordagem teórica
da filosofia analítica ainda não ter muito espaço em nossa área dos Estudos de
Cinema. Reconhece-se que, desde a década de 60, esta área de estudos, em
nosso país, têm recebido sua principal influência, primeiramente, da semiologia de
Christian Metz e, depois, do “pós-estruturalismo” francês de Jacques Lacan
Jacques Derrida, Gilles Deleuze e outros (Cf. RAMOS, 2010: p.163). Em suma, a
filosofia francesa contemporânea parece predominar como referencial teórico
mobilizado por essa comunidade.
A filosofia analítica parece ainda não ter encontrado repercussão por
aqui – situação bem diferente do que ocorre no cenário internacional
contemporâneo dos estudos de cinema (Cf. SMITH, 2010), onde a contribuição da
filosofia analítica é bastante prolífica, e sua presença já está bem consolidada
desde as últimas décadas – mesmo que, para certa corrente de pesquisadores,
ela exista apenas na qualidade de um “concorrente inconveniente”.

1
Essa ausência da filosofia analítica em nossos estudos de cinema
parece ser também compartilhada pela área de Estética4 e, de uma forma mais
geral, temos a impressão que a filosofia analítica parece ter uma presença bem
tímida na academia brasileira5.
Nosso trabalho tem por objetivo, portanto, em primeiro lugar, oferecer
subsídios para preencher esta lacuna nos estudos de cinema do país, através da
colocada em relevo do pensamento de Noël Carroll. Além de apresentar
adequadamente este autor e sua abordagem, acreditamos que poderemos
contribuir para fomentar o interesse pelos mesmos.
Ademais, mesmo que alguns de seus textos sejam conhecidos,
percebemos que existe uma dificuldade de compreensão dos mesmos, em função
de este autor mobilizar uma série de referenciais pertencentes à área da filosofia,
que são desconhecidos pelo leitor oriundo do campo do cinema.
Buscamos, assim, além de evidenciar a contribuição deste autor para a
área, promover um esclarecimento da parte de seu pensamento que
circunscrevemos (aquela referente ao cinema documentário).
É costume associar o termo “crítica” à atividade de julgar, identificar
problemas, evidenciar erros e denunciar embustes, e este tipo de atividade é
garantidamente valorizada dentro da academia. É interessante notar que, por
outro lado, ao termo “esclarecer”, não se costuma dar tanto crédito, sendo,
provavelmente, considerado como denotando uma atividade intelectual “menor”.
À medida que aprofundávamos nossos estudos sobre a filosofia
analítica, contudo, nos apercebemos da importância que a atividade de
esclarecimento pode ter, já que esta se constitui como um dos métodos de análise
praticados por essa disciplina, com resultados bastante produtivos. Análise,

4
Veja-se, por exemplo, a ausência de qualquer trabalho relacionado à Estética, na coletânea A
Filosofia Analítica no Brasil (CARVALHO, 2010).
5
Para se ter idéia, a Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica (SBFA) foi fundada apenas muito
recentemente, em Outubro de 2008, (Cf. <http://www.sbpha.org.br/sbfa/membros-fundadores>),
enquanto que sua contraparte argentina, por exemplo, existe desde 1972, (Cf.
<http://www.sbpha.org.br/sbfa/sbfa/>). Acesso em: 10 jun. 2014. Além disso,

2
síntese, comparação, identificação de semelhanças ou contraste das diferenças,
inferência - são diversas as competências cognitivas envolvidas no processo de
esclarecimento. No final das contas, nos parece que pode haver tanto trabalho de
pensamento num “esclarecimento” quanto numa “crítica”.
Inspirados pelo referencial da filosofia analítica, e persuadidos de que
esta é uma atividade relevante para a investigação acadêmica, inclinamo-nos,
assim, em sua direção, e percebemos que tal procedimento nos permitiu iluminar
diversos aspectos mais fugidios do pensamento de Noël Carroll, o que nos
possibilitou uma compreensão aprofundada do mesmo.
Apesar de nossa inclinação maior em efetuar um esclarecimento do
pensamento deste autor, isso não deve levar o leitor a pensar que deixamos de
adotar uma “postura crítica” em relação ao mesmo. Após os devidos
esclarecimentos e contextualizações, lançaremos mão, de modo mais explícito, de
problematizações sobre sua teoria do documentário organizada em torno do
conceito de “cinema da asserção pressuposta”.
Apesar de termos estudado e nos inspirado na filosofia analítica, não
pensamos que este trabalho possa ser considerado uma “obra de filosofia”.
Primeiramente, nossa formação, em nível de graduação e pós-graduação, advém
inteiramente da área de cinema. Os conhecimentos que pudermos vir a ter
especialmente sobre a filosofia analítica, os obtivemos exclusivamente de forma
autônoma, ao longo do processo de pesquisa que resultou neste trabalho. Eles
têm, portanto, certo limite. Além disso, nosso trabalho foi escrito pressupondo que
nosso leitor possui formação/atuação na área de cinema.
Isso não significa que contraindicamos este trabalho aos pesquisadores
e estudiosos de filosofia (ou de alguma outra área); apenas que é necessário que
estes estejam advertidos de que possivelmente encontrarão caracterizações
filosóficas que poderão carecer de maior profundidade.
Portanto, deve-se ter em mente que o referencial filosófico mobilizado
em nosso trabalho estará circunscrito aos métodos, estilos, temas, argumentos e
conceitos utilizados pelo autor em questão (Carroll), e apenas na medida em que

3
os considerarmos úteis a uma boa compreensão das discussões que
levantaremos, por parte do leitor que pressupusemos.
Esforçamo-nos por manter, ao longo do trabalho, uma clareza de
escrita e de raciocínio, embora reconheçamos que nem sempre tal pôde ser
atingido.
Para evitar repetições, quando remetermos a assuntos discutidos em
outros pontos do trabalho, informaremos a numeração do item citado, para que
seja mais prático o deslocamento do leitor pelo trabalho.
Consideramos ser interessante compartilharmos um pouco do percurso
envolvido na realização do trabalho.
Nosso plano inicial era discutirmos a teoria de Noël Carroll recorrendo
principalmente à análise fílmica. Em termos esquemáticos, havíamos percebido
existirem filmes que são identificados como “documentários” (ou que ao menos
figuram no conjunto de filmes pelos quais os acadêmicos desta área se
interessam), mas que aparentemente não eram compatíveis com a definição
presente na teoria do “cinema da asserção pressuposta”.
A idéia era, então, de examinar tais filmes, apontando quais
características eram incompatíveis com a teoria da Carroll, explicar as razões para
tal, e concluir pela invalidade da teoria, visto a mesma não ser capaz de oferecer
um modelo explicativo para todos os fenômenos encontrados no escopo de sua
competência.
Este projeto, narrado de forma simplista, apresenta ao menos uma
característica discutível: é que nele se pressupõe, a priori, a inadequação de uma
dada teoria, e se busca, a partir disso, colecionar evidências (casos particulares)
que supostamente nos levariam à confirmação dessa inadequação. Haveria aí,
assim, um certo enviesamento e circularidade, não desejáveis num trabalho de
investigação.
No entanto, no decorrer da pesquisa, deparamo-nos com uma
dificuldade em delimitar um corpus preciso de filmes a serem analisados. Os
títulos cogitados não pareciam ser totalmente adequados, ou pareciam ser um

4
tanto “estereotípicos”, por representarem as obras mais conhecidas da história do
documentário. De qualquer modo, não estávamos satisfeitos com as opções que
havíamos levantado.
E além disso, posteriormente encontraríamos, inclusive, certo sentido
para a maneira um tanto peculiar com a qual Carroll lida com a tradição
documentária, se referindo, freqüentemente, a obras de “menor relevo” para a
história deste gênero (viz. item 3.5.1).
Somou-se a esta dificuldade relativa à delimitação de um corpus fílmico,
uma advertência que recebemos em nosso exame de qualificação, sobre o
trabalho estar, naquele ponto, tomando uma forma um pouco discutível de
“aplicação de teorias sobre filmes” – operação contra a qual o próprio Noël Carroll
nos chama a atenção (Cf. PRIVETT, 2001: PT4).
Talvez em função disso, à medida que nos aprofundávamos na
pesquisa sobre o pensamento de Noël Carroll e sua abordagem analítica, mais
nosso centro de interesse se deslocava da análise de obras particulares para a
discussão teórica. Quanto mais percebíamos o quanto ainda havia por se explorar
em meio às interessantes contribuições deste autor, mais nosso propósito se
inclinava a seu esclarecimento, conforme mencionamos há pouco.
Essa mudança de foco, portanto, é responsável, ao menos
parcialmente, de um lado pelos tópicos específicos que elegemos discutir, e de
outro pela forma de exposição dos mesmos ao longo do trabalho.
Após esta introdução, no capítulo 2 apresentaremos o “pano de fundo”
da produção de Noël Carroll, isto é, comentaremos sua formação paralela tanto
em Filosofia como em Cinema, pontuando algumas atividades de crítica de
arte/cinema com que ele se envolveu. Desde cedo, veremos, seu interesse estará
voltado ao cinema. Procuraremos situar, também a posição que Carroll ocupa no
campo dos estudos de cinema, o que, como se verá, estará relacionado a diversas
polêmicas. A repercussão de sua produção e interação com os pares da área às
vezes darão a impressão de que este autor se encontra um tanto “segregado” (o
que será retomado, particularmente no que concerne o caso do campo do

5
documentário, no item 3.5.1), contudo, estaremos inclinados a mostrar que esta
sua forma de atuação, que pode se nos aparentar dissonante, fará parte de uma
perspectiva mais ampla de atuação analítica, coerente com um “ânimo dialético”.
Contextualizaremos, então, as características principais de seu método ou estilo
de trabalho, derivado da filosofia analítica, o que nos familiarizará com o tipo de
linguagem, terminologia ou argumentação com a qual lidaremos ao longo do
trabalho.
O capítulo 3, por sua vez, constitui o centro do trabalho. É nele que se
situará o esclarecimento e análise do pensamento de Carroll sobre o
documentário, o que será feito através do exame de seus textos dedicados ao
gênero. No que concerne a cada um destes textos, procuraremos destacar os
conceitos, argumentos e preocupações centrais deste autor (e.g., o debate acerca
da objetividade no documentário, a possibilidade de distinção entre ficção e não-
ficção, o conceito de traço fotográfico, etc.), dando maior ênfase para aquele texto
em que Carroll expõe sua teoria do cinema da asserção pressuposta, que constitui
sua proposta de definição para este gênero audiovisual. Após isso, cotejaremos
estes textos no conjunto e, como se perceberá, haverá uma série de recorrências
entre estes textos, em paralelo a um progressivo refinamento conceitual.
No capítulo 4, por fim, levantaremos problematizações sobre a teoria do
cinema da asserção pressuposta e desenvolveremos nossas considerações finais.
Concentraremos nossas observações em torno de três eixos que pensamos
requisitarem um debate mais aprofundado: sobre a asserção (a origem deste
conceito na teoria dos atos de fala de John Searle, e o modo como este é
integrado à teoria de Carroll); sobre o significado (um componente importante da
teoria do cinema da asserção pressuposta, mas que parece ser inconsistente com
a maneira como é originalmente explicada a sua presença, na linguagem, por
John Searle); e sobre a ficção (conceito que serve de ponto de partida para Carroll
“derivar” os conceitos de “não-ficção” e “filme de asserção pressuposta”, mas cuja
derivação não nos parece ser realizada de forma logicamente consistente).

6
Se, ao final da leitura do trabalho, o leitor considerar que apresentamos
de forma coerente e fidedigna o método, estilo, e pensamento de Noël Carroll
sobre o documentário; se se considerar que seus argumentos e conceitos estão
suficientemente esclarecidos; e se se considerar que nossas análises e
problematizações são relevantes; então nos daremos por satisfeitos, pois, teremos
atingido nossos propósitos.
Algumas últimas observações sobre o trabalho são ainda necessárias.
O leitor deve assumir que todas as citações de obras estrangeiras que
realizarmos foram traduzidas por nossa conta. Omitiremos essa informação no
decorrer do texto, por motivos de economia.
Também, por motivos de economia, no decorrer do trabalho,
utilizaremos algumas siglas ou abreviações, em substituição a alguns termos ou
expressões que seriam citados diversas vezes, “truncando” a leitura. Na primeira
vez em que utilizarmos cada uma destas siglas/abreviações, indicaremos por
extenso as expressões ou nomes a que se referem, e remeteremos também a
suas fontes. Ainda assim, oferecemos uma Lista de Abreviaturas e Siglas usadas
no trabalho, como parte dos elementos pré-textuais, que funcionará como uma
compilação centralizada, para consulta rápida dos termos.
Em certos trechos do trabalho faremos uso de algumas figuras, que
colocarão em evidência alguns termos da discussão bem como suas relações. O
recurso a estas figuras, em nossa opinião, nos auxiliará a tornar mais claras
algumas questões. Estas figuras estarão numeradas, e para facilitar sua
localização, disponibilizamos, ainda nos elementos pré-textuais, a Lista de Figuras
utilizadas no trabalho.
No decorrer do trabalho, ocasionalmente citaremos filmes ou programas
televisivos, tanto em razão de alguns deles se incluírem nos argumentos
avançados por Noël Carroll, como em função de outros deles servirem de
exemplificação, por nossa conta, sobre algum dos tópicos em discussão. Quando
os citarmos, no texto, indicaremos apenas o ano de seu lançamento, todavia, ao

7
final do trabalho (item 6), oferecemos uma Filmografia que conterá a listagem de
todas as obras audiovisuais citadas e sua ficha técnica resumida.
Enfim, sem haver nada mais a acrescentar, esperamos apenas que a
leitura deste trabalho seja proveitosa.

8
2. NOËL CARROLL: FILOSOFIA E CINEMA

Por constituir o autor cujo pensamento sobre o documentário


analisaremos neste trabalho, será importante fornecer ao leitor uma apresentação
de Noël Carroll, de sua produção, e de como eles se situam em nossa área de
estudos.

2.1. Cinema e filosofia: biografia e trajetória acadêmica

Nascido em 1947 em Nova Iorque, onde leciona atualmente, Noël


Carroll é um dos mais proeminentes filósofos norte-americanos contemporâneos,
tendo sido presidente da Sociedade Americana de Estética (American Society for
Aesthetics - ASA)6, e atuando principalmente nas áreas de filosofia do cinema,
teoria das mídias, filosofia da arte e filosofia da história (Cf. WIK-NC) 7.

6
Essa informação consta em WIK-NC (viz. nota seguinte). Na biografia de apresentação do autor
presente no início de Philosophy of art: A contemporary introduction (CARROLL, 1999), consta que
no ano de publicação do livro Carroll era o presidente da ASA. Na introdução de uma entrevista
realizada com Carroll (PRIVETT, 2001), é dado a entender que em 2001 ele ainda seria o
presidente da ASA. Contudo, no website que indicaremos imediatamente a seguir, que divulga
uma exibição de vídeo-dança ocorrida em 2002, na qual Carroll teria participado como debatedor,
é informado que ele teria sido o presidente da ASA no “período imediatamente anterior” àquele
ano, ou seja, em 2002, Carroll já não mais presidiria a entidade. Fonte:
<www.dvpg.net/videodance/carrollbio.html>. Acesso: 25 mar. 2014. Recorremos a estas fontes
secundárias, pois não encontramos no website da própria ASA a especificação do período em que
Carroll presidiu a entidade. Cf. <www.aesthetics-online.org>. Acesso: 25 mar. 2014.
7
Informações biográficas e bibliográficas deste autor estão disponíveis no verbete “Noël Carroll”,
da enciclopédia eletrônica Wikipedia (versão em idioma inglês). Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/No%C3%ABl_Carroll>. Acesso: 23 mar. 2014. Daqui em diante,
indicaremos esta fonte sob a sigla “→IK-NC”. Há a confirmação de algumas destas informações na
curta biografia presente na página pessoal do autor, no site do Programa de Filosofia (Philosophy
Program), do Centro de Pós-Graduação (Graduate Center) da City University of New York (CUNY),
onde ele leciona atualmente. Disponível em: <http://www.gc.cuny.edu/Page-Elements/Academics-
Research-Centers-Initiatives/Doctoral-Programs/Philosophy/Faculty-Bios/Noel-Carroll>. Acesso
em: 23 mar. 2014. Indicaremos esta segunda fonte, de agora em diante, pela sigla “CUN↔-NC”.

9
Desde o início de sua produção acadêmica, em 1973, até os anos mais
recentes, seus trabalhos publicados somam mais de 17 livros e 129 artigos8 (Cf.
BIBLIO-NC), produção esta que atesta sua relevância na comunidade acadêmica.
O interesse de Carroll pelos filmes o levara, desde cedo, a “passar
muito tempo freqüentando sessões de cinema” (PRIVETT, 2001: PT19), e a
trabalhar, no início de sua carreira, como crítico em jornais10.
Sua atuação como crítico de cinema, teatro e arte, já se iniciara de
alguma forma quando de seu envolvimento com o cineclubismo e sua contribuição

8
O ano de 1973 aparece como sendo o de publicação de seu primeiro artigo, no levantamento de
sua bibliografia presente no site <http://lubbe.tripod.com/bibs.html>. Acesso em: 21 mar. 2014. O
site é mantido por Ludvig Hertzberg, pesquisador/crítico de cinema sueco, e apresenta algumas
listas de bibliografias de “pessoas que ele acha especialmente iluminadoras e inspiradoras em seu
interesse pela filosofia da fruição de filmes” como, por exemplo, Noël Carroll, Richard Allen, Carl
Plantinga, William Rothman, Murray Smith, etc. Outras remissões a esta fonte utilizarão a sigla
“BIBLIO-NC”. A bibliografia de Carroll presente lá está, contudo, bastante incompleta, pois a última
atualização da página foi em Setembro de 1999, não apresentando, portanto, as produções do
autor da última década e meia. No caso da quantidade de artigos publicados, contabilizamos
aqueles disponíveis no site até aquela data (103), e os somamos a outros artigos publicados
posteriormente (26), e que são localizáveis através da base de periódicos online Jstor
<www.jstor.org>. Acesso: 23 mar. 2014. No caso dos livros, comparamos a pequena amostra de
títulos listados em BIBLIO-NC (9) com as outras obras do autor disponíveis em uma grande livraria
online (8), como a Amazon.com. Incluímos nesta soma os livros organizados por Carroll. O site
WIK-NC, por outro lado, lista 19 títulos de livros publicados por Carroll (incluindo os de sua
organização), e indica outros 4 títulos no prelo. Advertimos que, apesar de nosso cuidado, a
quantidade total de artigos/livros publicados por Carroll até o momento da escrita de nossa tese
pode ser diferente dos valores que estamos oferecendo como referência.
9
Remeteremos diversas vezes à entrevista concedida por Noël Carroll a Ray Privett e James Kreul
(PRIVETT, 2001). Esta entrevista encontra-se disponível em um periódico online australiano
dedicado à crítica de cinema que, infelizmente, não apresenta paginação na formatação de seus
textos. Contudo, para auxiliar o leitor na consulta a esta interessante fonte, criamos uma
numeração “artificial” em nossas remissões a esta fonte, que corresponde à divisão das várias
partes deste texto. A numeração proposta é a seguinte: PT1: corresponde à introdução inicial do
texto, sem título de seção; PT2: seção de título "Early Years: Catholic Schools and Film Societies";
PT3: "Entering Film Studies"; PT4: "Millenium Film Journal: Film Criticism and Film Theory"; PT5:
"Documentary, Politics, and Truth"; PT6: "The Philosophy of Horror"; PT7: "Defining Cinema -
Medium Specificity, Ontology, and the Artworld"; PT8: "Annotated Bibliography of Principle Works
by Carroll Discussed in the Interview".
10
Carroll inicialmente publicara textos em periódicos de abordagem mais “jornalística”, realizando
neles a crítica de obras artísticas (principalmente cinematográficas), como por exemplo em:
Artforum; The Drama Review; Millennium Film Journal; Soho Weekly News (Cf. PRIVETT, 2001;
Cf. BIBLIO-NC). Posteriormente, conforme sua carreira na academia avança, ele passa a publicar
textos em periódicos estritamente “mais acadêmicos”, como Film Reader; Film Culture; Wide
Angle; Film Quarterly; History and Theory; Journal of Aesthetics and Art Criticism; Mind; dentre
outros (Cf. BIBLIO-NC).

10
ao jornal universitário The Hofstra Chronicle, nos tempos em que ainda cursava a
graduação em Filosofia na Hofstra University (PRIVETT, 2001: PT2), concluída em
1969 (Cf. WIK-NC).
Carroll (Apud PRIVETT, 2001: PT2) relata, com um toque de humor,
que ao ingressar no Mestrado em Filosofia da University of Pittsburgh, ele teria
repetido a mesma experiência cineclubista que havia tido na graduação, onde,
além de se dedicar à crítica de filmes, uma vez mais “fazia parte do corpo diretivo”
da entidade, com seu professor sendo o presidente, e ele o vice-presidente - o que
na realidade significava que era Carroll “quem carregava o projetor”.
Durante este período, Carroll atuou de forma intensa na atividade de
crítica artística, escrevendo principalmente para a revista Artforum11, que no início
da década de 1970 estava “expandindo sua cobertura para além das galerias de
arte para incluir domínios como filme, fotografia e vídeo” (LIA).
Um ponto determinante em sua carreira ocorreu logo após a obtenção
do título de Mestre em Filosofia, em 1970, e que acabou levando-o a se
comprometer mais a fundo com a área dos Estudos de Cinema. Carroll (Apud
PRIVETT, 2001: PT2) narra o caso da seguinte forma:

Obtive o Mestrado em Filosofia na Universidade de Pittsburgh em 1970.


Aquele foi um péssimo ano para empregos em Filosofia. O baby boom
estava acabando, e oportunidades foram se fechando. Percebi que, já
que a Filosofia tinha um mercado tão limitado na época, eu teria uma
chance muito melhor de obter uma posição acadêmica na área de
Cinema, algo em que eu já tinha interesse, e que era um mercado de
trabalho em expansão. Além disso, por ser 1970, eu pensava que se
você estivesse interessado em filosofia e em cinema, você poderia fazê-
los juntos. Esses eram os anos de Godard - quem, dizia-se, fazia sua
filosofia no filme. Acabei aprendendo que isso era praticamente
impossível. Quanto mais eu me envolvia com os Estudos de Cinema,
mais eu percebia que eu não era Godard. (...)

11
Cf. Noël Carroll, “Living in an Artworld”, texto presente na seção Teaching Resources –
Aesthetics Textbooks: From the Author’s Perspective, do website da ASA. Disponível em:
<www.aesthetics-online.org/teaching/>. Acesso: 27 mar. 2014. Esta fonte será referida como “LIA”,
de agora em diante. O texto constitui-se de uma apresentação, escrita pelo próprio autor, de seu
livro homônimo publicado pela Evanston Publishing em 2012, que reproduz várias das críticas de
arte escritas pelo autor no início de sua carreira.

11
De acordo com esta passagem, a entrada de Noël Carroll no campo
dos Estudos de Cinema pode ser vista como tendo sido motivada por dois fatores.
O primeiro deles diz respeito ao aspecto profissional “prático”, isto é,
refere-se à maior viabilidade de se ingressar na carreira acadêmica através do
campo do Cinema em detrimento do campo da própria Filosofia, que apesar de
ser sua área de formação acadêmica primeira, se encontrava aparentemente
saturada na época em questão.
E o segundo fator diz respeito ao aspecto profissional “agradante”, isto
é, a intenção de Carroll de relacionar seu antigo interesse e formação cultural
cinematográficos com seu novo interesse e formação acadêmica filosóficos,
proposta esta inspirada na figura de Jean-Luc Godard, adotado (por um curto
período de tempo) como modelo.
A partir daquele ano, Noël Carroll cursou o Mestrado em Estudos de
Cinema, na New York University (PRIVETT, 2001: PT3), o qual conclui em 1974.
Lá, ele fora estudante de Annette Michelson, com quem praticou, junto dos outros
estudantes, uma espécie de crítica fílmica a que se referiam como “crítica
descritiva, que era supostamente aliada à fenomenologia”12, embora Carroll revele
que nunca fora muito interessado naquele tipo de projeto, pois preferira sempre
um estilo de “crítica interpretativa” (CARROLL Apud PRIVETT, 2001: PT3, grifos
nossos).
Além do Mestrado em Estudos de Cinema, Carroll também cursa um
Mestrado em Filosofia na University of Illinois, o qual finaliza em 1976.
Sua formação acadêmica se complementa com um Doutorado (Ph.D.)
em Estudos de Cinema pela New York University, o qual finaliza também em
1976, com a tese “An In-Depth Analysis of Buster Keaton’s The General”13. E, por

12
Carroll (Apud PRIVETT, 2001: PT3) complementa o comentário observando que, “(...) contudo,
era um tipo muito livre de fenomenologia. Você não leria um livro de Merleau-Ponty e chegaria no
que fazíamos automaticamente. A idéia central era de que o que era importante era a experiência
do filme em si. Diante disso, tentava-se descobrir as características da obra que deram origem
àquela experiência. (...)”.
13
Parte do conteúdo de sua tese foi apresentado no artigo “Buster Keaton, The General, and
Visible Intelligibility”, publicado pela primeira vez em 1990 como capítulo de livro (in: Peter Lehman

12
último, Carroll obtém também um Doutorado em Filosofia, pela University of
Illinois, em 1983 (Cf. WIK-NC).
Concomitante à sua formação em nível de pós-graduação, Noël Carroll
tivera a oportunidade de começar a lecionar já em 1976, como Professor
Assistente, na New York University (PRIVETT, 2001: PT4).
Nesta época, Carroll assume também a posição de editor da revista
Millennium Film Journal (MFJ)14, periódico fundado naquele mesmo ano e
dedicado a divulgar o universo dos “filmes de vanguarda”. Sua entrada no corpo
editorial ocorre devido à saída de um dos três editores originais 15, e Carroll conta
que, enquanto esteve lá, se inspirou no “precedente aberto por Annette Michelson
na revista Artforum”, para tentar fazer algo semelhante no MFJ: disponibilizar um
espaço para que seus alunos pudessem publicar textos a respeito de temas do
universo fílmico de vanguarda (CARROLL Apud PRIVETT, 2001: PT4).
No entanto, apesar do espaço disponibilizado para tal fim, a “falta de
quórum” dificultou que o projeto seguisse adiante16 - aparentemente os

(Ed.), Close viewings: An anthology of new film criticism, Tallahassee: Florida State University
Press), e republicado posteriormente em Interpreting the Moving Image, New York: Cambridge
University Press, 1998. Mais recentemente, Carroll voltou sua atenção novamente a Keaton e ao
gênero do humor, publicando uma versão editada de sua tese de doutorado na forma do seguinte
livro: Comedy incarnate: Buster Keaton, physical humor, and bodily coping, Malden, MA: Wiley-
Blackwell, 2007. Na introdução desta obra (p.1-2), Carroll confessa ter tentado algumas vezes
publicar uma versão da mesma em tempos anteriores, a qual teria sido rejeitada por editores sob a
alegação de que ela não seria “suficientemente teórica”. Esta posição Carroll atribui às “guerras
teóricas” estarem em forte evidência em tais momentos, o que no caso influenciava fortemente a
(in)visibilidade que se quereria dar a posições teóricas/metodológicas “adversárias”.
14
O periódico foi/é mantido pelo Millennium Film Workshop (Cf. PRIVETT, 2001: PT4), uma
entidade que visa oferecer aos realizadores audiovisuais “não-comerciais” o acesso a
equipamentos e infra-estrutura necessários à realização de seus projetos. O periódico está ainda
em circulação e tem seu website: Millennium Film Journal <www.mfj-online.org>. Acesso: 21 mar.
2014.
15
Carroll assume o lugar de Alistair Standerson. Os outros dois editores, que permaneceram na
revista, foram Vicki Petereson e David Shapiro (Cf. PRIVETT, 2001: PT4).
16
Inicialmente o MFJ possuía periodicidade trimestral, e Carroll tinha esperança de que houvesse
muitos estudantes interessados em aproveitar o espaço da revista para publicar seus textos. Isso
aparentemente não ocorre, e a revista se depara com alguma dificuldade financeira para manter
sua periodicidade inicial (Cf. CARROLL Apud PRIVETT, 2001: PT4). A partir de 1978 a revista tem
sua periodicidade reduzida à semestralidade. Cf. Millennium Film Journal <www.mfj-online.org>.
Acesso: 21 mar. 2014.

13
“estudantes pós-graduandos ambiciosos” eram muito mais atraídos a escrever
trabalhos sobre o “Pós-estruturalismo, feminismo, psicanálise Lacaniana,
aplicados a filmes populares” (abordagens dominantes no campo dos estudos
fílmicos), do que a respeito da vanguarda (Cf. CARROLL Apud PRIVETT, 2001:
PT4). E, dada a linha editorial do MFJ e a finalidade da entidade a que ela estava
associada, simplesmente não era possível que os estudantes publicassem
naquela revista seus textos a respeito desses outros interesses17.
Além desta formação e experiência crítica/textual, Noël Carroll também
realizou algumas experiências artísticas, na função de roteirização (screen
writing), participando da criação das seguintes obras audiovisuais18:

 Film as collage (1982)


 Dancing with the camera (1982)
 Sexual poetics: New films by women (1983)
 Film as play (1983)
 The last conversation: Eisenstein’s Carmen Ballet (1998)

Todas estas obras (com exceção da última, que teria sido exibida em
festivais e centros de pesquisa de arte) teriam sido exibidas televisivamente (Cf.
WIK-NC).
Conforme avança em sua carreira de professor e pesquisador, sua
produção posterior de natureza teórica poderia ser vista como “estando
intimamente entrelaçada com questões com que ele se deparou” ao longo destas
experiências anteriores [cineclubismo, crítica de obras, etc.], tais como: “Pode um

17
Carroll (Apud PRIVETT, 2001: PT4) diz que os pós-graduandos preferiam submeter seus textos,
que optavam pelas orientações teóricas mencionadas àcima, a revistas tais como Screen e
Camera Obscura.
18
Ray Privett (2001: PT1) menciona, apenas de passagem, que Carroll atuou como roteirista de
documentário, mas esse tópico não é explorado na entrevista, e tampouco nenhuma de suas obras
é lá nomeada. A lista aqui oferecida foi retirada de WIK-NC. Não nos foi possível, entretanto,
acessar qualquer uma destas obras.

14
documentário ser objetivo? (...) O que os filmes de horror têm em comum? Porque
as pessoas respondem emocionalmente a filmes que elas sabem serem
ficcionais? Há um modo de se realizar filmes que seja inerentemente ‘cinemático’?
(...)” (PRIVETT, 2001: PT1).
Além de ter lecionado na New York University (cursos de cinema,
aparentemenet) no início de sua trajetória acadêmica, Carroll também o fez, como
professor de filosofia, na University of Winsconsin-Madison19, na década de 1990,
e professor de humanidades na Temple University (Cf. WIK-NC). Atualmente Noël
Carroll é professor de filosofia no Centro de Pós-Graduação da City University of
New York, onde ministra desde 2008 cursos sobre interpretação e significado,
filosofia do cinema, filosofia da arte, e filosofia da história (Cf. CUNY-NC)20.
A esta altura, o leitor pode estar se perguntando sobre a relevância,
para nosso trabalho, das informações apresentadas até aqui. Endereçando esta
questão, adiantamos que o propósito de apresentar estas informações vai além de
simplesmente atender a uma curiosidade a respeito de um determinado autor.
Em primeiro lugar, reconhece-se que Noël Carroll é um autor que
“necessita de alguma introdução” (Cf. PRIVETT, 2001: PT1). Ao primeiro contato
com seus textos, o interessado em cinema - que no geral não possui formação
filosófica – provavelmente sentirá algum nível de desconforto com sua
complexidade, seja pela estrutura de raciocínio; seja pelas referências de outro
campo utilizadas, que no geral são desconhecidas pelo leitor; ou seja ainda pelo
estilo de escrita. Num primeiro nível, portanto, a parte inicial deste trabalho visa
oferecer ao leitor uma contextualização do autor, para que aquele esteja

19
Ao apresentar a obra Post-Theory: Reconstructing Film Studies, David Bordwell menciona, em
seu website pessoal, que Carroll teria ingressado no Departamento de Filosofia desta universidade
no ano de 1991, Cf. <www.davidbordwell.net/books>. Acesso: 13 abr. 2014. Nos anos de 1996 e
1999 Carroll ainda lecionava lá, segundo as informações que constam, respectivamente, na folha
de rosto de Theorizing the moving image (CARROLL, 1996b), e na primeira página após a capa de
Philosophy of art: A contemporary introduction (CARROLL, 1999).
20
Através do website indicado, pode-se acessar outra página do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia daquela universidade, que exibe os cursos ministrados lá em cada período letivo, a partir
do Outono de 2000. Cf. <www.gc.cuny.edu/Page-Elements/Academics-Research-Centers-
Initiatives/Doctoral-Programs/Philosophy/Courses/Fall-2014>. Acesso: 15 abr. 2014.

15
minimamente familiarizado com o topos discursivo deste. Tal contextualização
será especialmente útil, pensamos, ao passarmos para o capítulo seguinte, no
qual examinaremos o pensamento do autor sobre o cinema documentário, onde
estaremos situados em seu topos e caminharemos de acordo com os movimentos
de sua argumentação.
Em segundo lugar, essas páginas iniciais que apresentam as
experiências e conhecimentos de Noël Carroll têm por objetivo fornecer
informações capazes de aplacar certo tipo de objeção (de níveis variados de
velamento) que se levanta a alguns pesquisadores “de fora” que intentam
investigar um outro campo de estudos – no caso, o do cinema:

- Quem é este que ousa adentrar “nosso” campo? “O que faz um filósofo
no território do cinema”? “Terá visto tantos filmes”? Saberá ele o
suficiente sobre o tema? “Como ousa tais proposições”?! (Cf. TEIXEIRA,
21
2003: p.58) .

Esperamos que, com a leitura desta parte de nosso trabalho, tal tipo de
resistência, caso previamente presente, seja posta, por fim, de lado.
Para os leitores que, por ventura, já possuam algum conhecimento
prévio sobre o autor, há ainda dois outros pontos importantes que pensamos
merecerem algum comentário. O primeiro deles diz respeito à repercussão que os
trabalhos de Carroll tiveram no campo dos Estudos de Cinema (viz. 2.2). E o
segundo diz respeito ao estilo e metodologia utilizados por este autor (viz. 2.3).

21
O texto a que remetemos (TEIXEIRA, 2003) menciona esta espécie de resistência de estudiosos
de cinema com relação às intervenções, em “seu” campo, de Gilles Deleuze, um filósofo de uma
linha bastante diferente daquela seguida por Noël Carroll. Contudo essa diferença é irrelevante ao
ponto em questão. Trata-se, aqui, da existência de um desconforto de se engajar/enfrentar um
pensamento que provém de um lugar distinto, com pressupostos, métodos e estilos diferentes, mas
que tenciona projetar-se sobre áreas e objetos que supuséramos “dominados”. Daí surgir o
embaraço, quando não a rejeição ou afronta.

16
2.2. Repercussão nos Estudos de Cinema

Havíamos iniciado nossa apresentação do autor Noël Carroll


ressaltando quantitativamente sua produção intelectual e indicando os temas
diversificados em que ele teria expertise, chamando assim a atenção para sua
relevância acadêmica. No entanto, sua produção intelectual nem sempre foi
apreciada de maneira receptiva pelos estudiosos de cinema – e vice versa. Em
verdade, Carroll “passou grande parte de sua carreira profissional guerreando
abertamente contra os movimentos reinantes na Teoria do Cinema” (PRIVETT,
2001: PT1). Não é por acaso, pois, que o título da entrevista de Ray Privett (2001)
se refere a Carroll como sendo um “controverso” e “estranho caso” de filósofo de
cinema.
Parece-nos que uma das primeiras e mais contundentes polêmicas
envolvendo Noël Carroll teve início com o artigo Address to the Heathen (AH)
(CARROLL, 1982), publicado no famoso periódico October, e que consistia num
review, feito por Carroll, do livro Questions of Cinema22 (QC), de Stephen Heath23.
Na resenha, Carroll (1982: p.89) identifica Heath como sendo um
“representante proeminente” da abordagem apelidada nos Estudos de Cinema de
“a Teoria”, ou “a Grande Teoria”, que consistia na metodologia dominante na área,
desde o final dos anos 1960 a meados dos anos 1980, influenciada
marcadamente pelo Marxismo, psicanálise e semiologia. Para sermos um pouco
mais precisos, Carroll (p.89) se refere a esta abordagem, em certo tom
reducionista-pejorativo, como sendo “um amálgama da psicanálise Lacaniana,
Marxismo Althusseriano e da análise textual de Roland Barthes, com um
compromisso com o feminismo”.

22
Stephen Heath, Questions of Cinema, Bloomington: Indiana University Press / London:
Macmillan, 1981, 257 p.
23
Ao utilizar a palavra “Heathen”, no título do artigo, Carroll faz um trocadilho do sobrenome do
autor a quem se dirige (Heath), com o substantivo anglófono “heathen”, que significa: bárbaro, não-
civilizado, ignorante, pagão, etc.; em suma, alguém desprovido de cultura ou princípios morais.
Indica-se, desta forma, como Carroll avaliaria Heath, sua obra, e/ou aqueles que a admitem.

17
Este livro de Heath pretenderia se constituir como “uma tentativa de
criar uma teoria do cinema psicanaliticamente informada que explicará a maneira
pela qual as práticas do cinema narrativo comercial implementam a produção e a
recepção de ideologia” (CARROLL, 1982: p.90, grifo nosso).
Carroll (p.91), no entanto, imputa a seu autor a falta de, tal “como a
maioria dos teóricos do cinema clássico”, não fornecer “a seus leitores as
justificações argumentativas para as pressuposições filosóficas básicas em seu
livro”, pressupondo “leitores que são familiares com, compreendem, e concordam
com os princípios básicos da posição Lacaniana-Althusseriana”.
Após ter demarcado vividamente a posição de Heath, Carroll segue
adiante em sua resenha criticando de forma argumentada e estendida diversos
pontos da obra, os quais ele mais tarde resumiria (CARROLL, 1983: p.81) como
sendo os seguintes:

(...) que a teoria da sutura [defendida centralmente por Heath] é,


estritamente falando, vazia; que sua mobilização da psicanálise não está
adequadamente restringida pela consideração de hipóteses cognitivo-
psicológicas em disputa; que sua análise das várias mecânicas de
posicionamento do sujeito baseia-se em equívocos; que suas metáforas
são inutilmente obscuras; que sua noção de unidade é ilegítima; que seu
conceito do apparatus cinematográfico desafia os requisitos pragmáticos
para a construção de teorias.

A conclusão de Carroll (1982: p.163) é de que a teoria de Heath “é não-


informativa”, seus “princípios explicativos centrais são esfarrapados”, e que sua
teoria “nunca se mantém em um nível de generalidade produtivo”. Em resumo, na
visão de Carroll, Heath “nos dá muito pouco, e nos pede muito” (p.163).
Os comentários amargos de Carroll não passaram incólumes. No ano
seguinte, Stephen Heath publica sua réplica a Carroll, também em October, com o
título provocativo de Le Père Noël (PN) (HEATH, 1983)24.

24
Tradução do título: “O Papai Noël”. Esse jogo de palavras, que tem intenção de imbuir Carroll e
seus comentários no mesmo plano fantasioso/ficcional a que se remete o personagem homônimo,
é justificado por Heath através de uma irônica atribuição a Carroll da figura de um “Sábio” paternal
que viria condescendentemente nos “esclarecer” (HEATH, 1983: p.63-64), pois o artigo anterior de

18
Stephen Heath (1983: p.4) inicia este artigo observando que “(...) nas
setenta páginas [da resenha de Carroll sobre seu livro] não há nada que emerja e
que poderia concebivelmente ensinar a alguém qualquer coisa que se relacione
com o campo em que [o periódico] October está situado (...)”. Isto é, não haveria
absolutamente nada de útil na crítica de Carroll.
Revidando as “delicadezas” que havia recebido, Heath chega a compor
uma metáfora com as touradas, associando seu livro QC ao “pano vermelho”
usado pelos toureiros e, Carroll, - como seria de se esperar, - ao touro. Diz ele,
que tal como ocorre “(...) com os touros e os panos, o objetivo [da crítica de
Carroll] não é realmente focar com alguma precisão num objeto particular, mas
simplesmente em investir” desgovernadamente, e o resultado dessa investida
seria apenas: “bastante ar quente, algum dano aleatório, e uma grande dose de
auto-satisfação” (p.64-65).
Em seguida, Heath defende-se, por um lado, situando seu livro de
acordo com a produção dos anos 1970, que desejava relacionar o cinema a
questões culturais e políticas mais amplas, e assim admitindo que “aqueles artigos
têm seus erros e fraquezas, limitações e contradições” (p.66). E, por outro lado,
Heath desenvolve sua réplica através de uma longa resposta “itemizada” – isto é,
elencando uma série de itens, apresentados através de expressões e termos de
efeito impactante25 utilizados por Carroll em AH para criticar a obra de Heath, e
aos quais este agora revida. A réplica manteve o mesmo tom irônico usado por
Carroll, e oferecia esclarecimentos e contra-argumentos, mas a assunto ainda não
estava encerrado.

Carroll se referia à posição de Heath como sendo “ignorante”, e também pela menção de que esta
edição de October, em que o texto seria publicado, seria lançada “em tempo para o Natal” daquele
ano (p.115).
25
Por exemplo, Heath (1982) inicia cada um de seus ítens da réplica com expressões de efeito tais
como: “despedaçado com erros” (p.66), “sem argumento nas redondezas” (p.68), “alucinações”
(p.70), “algumas afirmações instáveis extremas” (p.70), “não apenas desleixado e preguiçoso”
(p.73), etc., extraídas da resenha feita por Carroll. Heath, desta forma, enfatiza os ataques
pessoais sofridos antes de responder aos próprios argumentos apresentados por Carroll.

19
Naquele mesmo ano, Carroll dá continuidade à “troca intelectual” entre
ambos, ainda em October, com sua tréplica: A Reply to Heath (RH) (CARROLL,
1983). Nela, Carroll (p.81) afirma que Heath “responde às objeções
epistemológicas” propostas em sua resenha anterior “choramingando que ele não
irá sucumbir a tais preocupações de ordem profissional”26, e afirma também que
“Heath nunca lida com as objeções centrais” de AH.
Ao invés disso, diz Carroll, “Heath ergue uma cortina de fumaça para
disfarçar o fato de ele não confrontar as questões levantadas”, e “desperdiça um
tempo enorme ‘itemizando’ minhas supostas representações equivocadas” de QC.
E, “surpreendentemente, quase metade de suas reclamações (...) são extraídas
de comentários secundários feitos em minhas notas de rodapé, que são
periféricos aos pontos centrais, ainda incontestados”, levantados em AH (p.81).
Carroll prossegue avaliando a obra de Heath e sua réplica:

A freqüente falta de conectivos lógicos e gramaticais em QC e seu uso


constrito da linguagem fazem, diversas vezes, com que seja difícil
determinar o que de fato está sendo dito. (...) Retrospectivamente, parece
que o estilo túrgido de QC é uma tática de evasão. A ambigüidade das
formulações de QC permite que elas sejam aplicadas sob uma
interpretação, mas, quando contestadas, elas podem ser defendidas sob
uma outra interpretação diferente, que é capaz de transformar uma
27
hipótese radical em um truísmo . (...) Em PN Heath empreendeu uma
releitura de QC que representa esta obra como sendo uma cadeia de
verdades auto-evidentes cuja rejeição implicaria em perversão.

Por fim, Carroll (1983: p.102, grifo nosso) esclarece que não se opõe a
análises ideológicas por si mesmas, mas que apenas discorda da obra de Heath,
QC, em “sua insistência em explicar todos os fenômenos em pauta em termos de
ideologia e psicanálise”.

26
Pelo contexto, entende-se que o adjetivo “profissional” é usado por Carroll para se referir ao tipo
de treinamento filosófico formal que ele teria (a nível de Graduação e Pós-Graduação), o qual teria
sido mobilizado na discussão, e que por sua vez faltaria a Heath em alguma medida, o que estaria
relacionado à causa dos “problemas” apontados por Carroll na obra de Heath.
27
Truísmo: “Uma verdade evidente mas óbvia, portanto pouco importante ou pouco útil”.
(ABBAGNANO, 2007: p.976).

20
Posteriormente, a suspeição ou animosidade de Carroll com relação a
estes tópicos o leva a expandir seu horizonte de embate teórico através da
publicação, logo após obra apontando problemas na teoria clássica do cinema28,
de um livro onde desenvolve de maneira mais ostensiva suas críticas com relação
à teoria do cinema praticada na academia anglo-americana nas décadas de 1970
e 1980, – contemporânea, portanto, e - que tinha certo apreço pelos dois
referenciais acima citados29.
Trata-se de Mistifying Movies: Fads and Fallacies in Contemporary Film
Theory30 (CARROLL, 1988). Este é tido, inclusive, como “o livro mais polêmico e
controverso” escrito por Carroll (PRIVETT, 2001: PT8).
A atuação polêmica de Carroll no campo dos estudos de cinema,
observada até aqui, e que continua em Mistifying Movies (MM) e além, não é,
contudo, fortuita.
Podemos observar, no relato do autor (CARROLL Apud PRIVETT,
2001: PT4, grifos nossos) contido na longa passagem a seguir31, algumas das
preocupações que ele entretivera no momento em que travara contato com o
campo dos estudos de cinema, e que o levariam posteriormente a adotar e
sustentar tal posicionamento:

Quando estava na Universidade de Pittsburgh para fazer o Mestrado em


Filosofia, eu pensava que viria a ser um filósofo da ciência. Eu possuía,
assim, certas concepções sobre o que eram as teorias, e o que era a

28
Noël Carroll, Philosophical Problems of Classical Film Theory, Princeton, NJ: Princeton University
Press, 1988, 268 p.
29
Segundo Carroll (1996b: p.37), este campo era dominado por um amálgama de elementos
extraídos do pensamento de: Lacan, Althusser, Barthes, Foucault, Derrida, Deleuze, etc., embora
geralmente “filtrados” por “exegetas” anglófonos tais como nosso conhecido Stephen Heath.
30
Livre-tradução do título: Mistificando os Filmes: Manias e Falácias na Teoria Contemporânea do
Cinema.
31
A passagem apresenta, de forma aparentemente seqüencial, comentários que Carroll emitiu, no
decorrer da entrevista, em ordem diversa. Não obstante, visto que os comentários partilham de um
mesmo tema, e o fazem de forma complementar, optamos por reproduzi-los desta maneira. A
ausência de paginação do texto que nos serve de fonte impede que sejamos mais precisos quanto
à edição que efetuamos nesta passagem.

21
ciência. Então, a noção de que [, por exemplo,] os filmes de vanguarda
faziam teoria [, noção esta recorrente no meio especializado,] me
aborrecia. Minha sensibilidade filosófica, é claro, também se inquietou
quando a semiótica entrou em cena - e o fez ainda mais com a entrada
do pós-estruturalismo. Suponho que meus artigos, que debatiam sobre
se os filmes de vanguarda ou outras obras fazem ou não teorias, fossem
em parte motivados pelo meu treinamento filosófico. Tenho a constante
preocupação (...) de que nem a crítica nem a própria obra devem ser
simples ilustrações de teorias. (...)
Minha suspeita sobre o recurso à teoria que se faz ao se explicar obras
artísticas provavelmente provém de minha bagagem em filosofia da
ciência. Quando um filósofo ouve uma generalização (general claim), a
primeira coisa que faz é examiná-la. Quando um cientista ouve uma
generalização, a primeira coisa que faz é testá-la. Contudo, quando os
estudiosos de cinema introduzem referenciais filosóficos amplos (general
philosophical frameworks) em sua crítica, há uma diferença. Estudiosos
de cinema, assim como os estudiosos de literatura, costumam se utilizar
desses referenciais amplos como premissas para interpretações. Eles
deixam que a generalização permaneça como algo dado, e então vão ver
que trabalho ela pode fazer. Depois, raciocinam desta forma: Essa
generalização é verdadeira, e aqui está a obra que temos, e sua estrutura
32
se relaciona com a teoria; portanto, - eles dizem - a teoria é verdadeira .
Meu comprometimento com a atividade de teorização é tal que, creio
que, uma vez que você observe as premissas gerais criticamente, é bem
mais provável que você tenha problemas com essas próprias premissas
do que com descrições concretas. Entretanto, estudiosos de cinema
raramente escrutinizam as proposições teóricas gerais de seu trabalho,
de forma parecida com o que os filósofos ou cientistas fazem. (...)

Neste relato, Carroll esclarece que um dos principais pontos que o


desagradava no campo dos estudos de cinema era a concepção de teoria que lá
se fazia33, e a maneira como esta concepção delineava as atividades da área - o
que, ele ressalta, contrastava bastante com o modus operandi mais rigoroso de
outras áreas acadêmicas melhor estabelecidas, como a filosofia -, área em que ele
possui treinamento formal, - e a ciência. Podemos, pois, supor que seu
desentendimento com Stephen Heath fora motivado por questões relacionadas.
Ou seja, é plausível de se cogitar que Carroll teria discordado, em
primeiro lugar, do referencial teórico escolhido por Heath para tratar de suas

32
De certo modo, essa forma de raciocínio descrita por Carroll incorreria no tipo de falácia lógica
conhecida como petição de princípio, que “consiste em pressupor, na demonstração, um
equivalente ou sinônimo do que se quer demonstrar.” (ABBAGNANO, 2007: p.763).
33
Conceito este de central importância, visto que desde então só se está a aumentar o conjunto
dos que têm interesse em “Teoria do Cinema”.

22
“Questões de Cinema” (“minha sensibilidade filosófica" "se inquietou quando a
semiótica entrou em cena - e o fez ainda mais com a entrada do pós-
estruturalismo”). Em segundo lugar, Carroll discordaria da maneira pela qual
Heath conceberia o que é uma teoria, ou o que é uma teoria de cinema
(“estudiosos do cinema" "costumam se utilizar desses referenciais amplos como
premissas para interpretações"; "deixam que a generalização permaneça como
algo dado”; "raramente escrutinizam as proposições teóricas gerais de seu
trabalho"). E, em terceiro lugar, Carroll discordaria ainda da maneira pela qual
Heath teria empregado suas teorias para tratar de seus objetos ("nem a crítica
nem a própria obra devem ser simples ilustrações de teorias").
Apesar da boa dose de sarcasmo e “afrontas pessoais” que
observamos anteriormente, seria prudente pensarmos que Stephen Heath teria
representado para Carroll não muito mais do que um adversário emblemático no
que tange a posição do filósofo com relação à abordagem dominante na “Teoria
do Cinema” das academias anglo-americanas. Portanto, o impacto daqueles
“ataques” – com os quais provavelmente não estamos habituados no campo dos
estudos de cinema das universidades brasileiras - deveria, pensamos, ser
avaliado “com um grão de sal”, em função das motivações discutidas.
Adicionalmente, as posições do debate também se alternaram, com
Carroll, a seu turno, tendo seu trabalho avaliado abertamente por estudiosos de
cinema. O próprio MM, a título de exemplo, foi resenhado diversas vezes por
olhares críticos.
Carole Zucker (1990: p.160), por exemplo, percebe que esta obra
dedica uma atenção especial a Stephen Heath, e que ela se constitui, em certa
medida, na “re-elaboração do papel de Carroll nos debates Heath/Carroll ocorridos
em October, em 1982-83”, que discutimos anteriormente. Zucker (p.162) nota
também que “a escrita de Carroll é árida”, e que “quando se atinge a segunda
metade do texto, as idéias se tornam repetitivas” 34, característica relacionada com

34
Tivemos a mesma impressão quando da leitura de uma outra obra de Carroll: A Filosofia do
Horror ou Paradoxos do Coração (CARROLL, 1999).

23
o fato da “escrita teórica” ser, “provavelmente, em virtude de sua própria natureza,
uma inimiga da facilidade”.
Mary Deveraux (1991: p.140), por sua vez, afirma que MM “sugere que
teorias do cinema são parecidas com teorias científicas (ou como costumávamos
crer que as teorias científicas fossem, isto é, uma busca pela ‘verdade do
assunto’)”, comparação esta que, para ela, não seria correta. Além disso,
Deveraux afirma que este livro de Carroll terminaria por desapontar aqueles que
tinham a expectativa de uma proposta nova de teoria do cinema, pois, após ter
“feito um bom trabalho inicial de curar as manias e falácias da teoria
contemporânea do cinema”, Carroll infelizmente encerra o assunto
prematuramente, “deixando-nos com uma teoria do cinema pré - e não pós –
contemporânea” (DEVERAU↓, 1991: p.140).
Essa opinião é partilhada por Kenneth Harris (1991: p.131, trad. nossa),
que observa que, “com a teoria clássica do cinema tendo sido a vítima de seu livro
anterior”, e após Carroll ter, em MM, “descartado completamente a teoria do
cinema contemporânea”, “muito pouco sobra”. A saída seria provavelmente
alguma proposta de nova teoria do cinema feita “nas bases da própria teorização
de Carroll”, o que não teria se efetivado em MM. Harris (Cf. 1991: p.137) ainda
lamenta o fato de que o modo de proceder de Carroll, de dirigir seus esforços à
confrontação “no atacado” da vertente dominante da teoria do cinema, acaba
fazendo com que o trabalho perca muito de seu potencial, deixando-nos com uma
“pseudo-competição entre ‘as belas-letras contemporâneas’ e ‘a razão científica e
filosófica” (a posição de Carroll).
Outras obras de Carroll de maior projeção internacional, como A
Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração (CARROLL, 1999), ou Theorizing
the Moving Image (CARROLL, 1996c), também foram submetidas a avaliações
semelhantes (Cf. ORTEGA-RODRIGUEZ, 200335, para a primeira; e
WARTENBERG, 201036, para a segunda).

35
Pablo Ortega-Rodriguez (Cf. 2003, artigo sem paginação), professor da Universidad de Costa
Rica (San Jose, Costa Rica), ao examinar A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração

24
Enfim, após a apresentação das discussões ocorridas com/em torno de
Noël Carroll e suas obras, há algumas constatações que devem ser feitas, antes
de explorarmos um outro tópico relacionado.
Em primeiro lugar, devemos ter em mente que, em detrimento de uma
possível “má impressão” causada pelas críticas e objeções a seus trabalhos, ou
pelas discussões acaloradas que entreteve, a contribuição de Nöel Carroll para o
campo dos estudos de cinema é, de fato, inegavelmente reconhecida (Cf.
BRANCO; BRANCO; VIEGAS, 2010: p.7). Diz-se, por exemplo, que ele “desafiou
diretamente a legitimidade da teoria do cinema”, “de uma maneira que tornou
difícil para os teóricos do cinema ignorarem” (PLANTINGA, 2002: p.17). Outros
notam que a sólida formação de Carroll tanto em filosofia quanto em cinema
fazem com que ele tenha plenas condições de lidar com as questões a que se
propõe (Cf. ZUCKER, 1990: p.156; HARRIS, 1991: p.131).
Em segundo lugar, os debates ou polêmicas mencionados, envolvendo
Carroll, devem ser vistos, pensamos, como estando relacionados ao “projeto” mais

(CARROLL, 1999), deixa entender que a teoria de Carroll lá exposta seria falha por não estar apta
a abarcar diversos casos que geram a emoção do horror - como, por exemplo, o horror que “casas
mal-assombradas” causariam; ou os “sustos súbitos” que vivenciamos ao escutarmos ruídos
bruscos aos quais não temos tempo de ou não conseguimos atribuir uma fonte. No entanto,
discordamos desta avaliação, pois em local algum d‘A Filosofia do Horror Carroll afirma que
pretenderia oferecer uma teoria explicativa para toda a emoção do horror (o que ele chama de
“horror natural”) possível de ser experienciada. Pelo contrário, Carroll deixa bem claro (p.27, et
passim) que sua teoria proposta visa fornecer explicações apenas para a espécie de emoção que
ele chamou de “horror artístico”, isto é, ao “‘horror’ que serve de nome a um gênero que atravessa
várias formas artísticas e vários tipos de mídia, cuja existência já é reconhecida na linguagem
ordinária” (p.27).
36
Thomas →artenberg (2010) foca seu exame no ensaio “Defining the Moving Image”, presente em
Theorizing the Moving Image (CARROLL, 1996c). Em síntese, a posição de Wartenberg (p.79) é a
de que a definição lá proposta por Carroll do conceito de imagem em movimento não teria se
afastado tanto das “definições essencialistas”, e pecaria por estar ainda rigidamente ligada à idéia
de que o trabalho de teorização consistiria apenas em lidar com “condições necessárias e
suficientes”, demonstrando assim não ter “assimilado de forma satisfatória a lição sobre a natureza
dos conceitos presente nas Investigações Filosóficas de →ittgenstein”. Para →artenberg (p.79), um
conceito como o de imagem em movimento seria “historicamente contingente”, pois recairia na
classe descrita por →ittgenstein como “conceitos abertos”, ou seja, do tipo que não se poderia
definir (“fechar”) categoricamente, devido a possibilidade de sempre surgirem novos candidatos a
membros desta classe, o que forçaria que as condições que definem a classe fossem
constantemente revistas e re-estipuladas, para assim admitir os novos candidatos. Perguntamo-
nos se uma análise análoga não seria válida para o conceito de “documentário”. Infelizmente, não
nos é possível dar prosseguimento à investigação desta questão no presente trabalho.

25
amplo, de Carroll e outros pesquisadores ligados à corrente cognitivista ou
filosófica analítica, de tornar o campo dos estudos de cinema “mais dialético”.
Expliquemos melhor essa caracterização.
A insatisfação de Carroll com relação ao estado de coisas em que se
encontrava o campo dos estudos de cinema, na virada da década de 1980 para
meados de 1990, era partilhada também por outros pesquisadores. Destaca-se
aqui David Bordwell, quem, junto de Carroll, organizou a antologia Post-Theory:
Reconstructing Film Studies37 (BORDWELL; CARROLL, 1996).
Bordwell e Carroll (p.xiii, grifos nossos) explicam que o tema desta obra
seria não a promoção do “fim da teoria do cinema” mas, ao invés disso, do “fim da
Teoria”38, e a sugestão do que “pode e deve vir após ela”. No caso, os editores
visam defender a utilização de referenciais e abordagens teóricos plurais, e uma
atividade positiva de teorização, que consistiria em definir mais precisamente “um
problema dentro do domínio do cinema” e buscar “solucioná-lo através da reflexão
lógica, pesquisa empírica, ou uma combinação de ambos” (BORD→ELL;
CARROLL, 1996: p.xiv). Essa nova atividade de teorização, diferente do que, para
Carroll e Bordwell, estava sendo feito, representaria (p.xiv):

um compromisso em usar os melhores critérios de inferência e evidência


disponíveis para responder às questões levantadas. Os padrões devem
ser aqueles do mais rigoroso raciocínio filosófico, argumento histórico, e
análise sociológica, econômica e crítica que pudermos encontrar, nos
estudos de cinema ou em outros lugares (inclusive nas ciências).

Em função deste novo estado de coisas reivindicado para os estudos


de cinema, e que Post-Theory deseja auxiliar a promover, seus organizadores
(p.xiv, grifos nossos) adiantam que a obra contém artigos “altamente

37
Livre-tradução: Pós-Teoria: Reconstruindo os Estudos de Cinema.
38
Trata-se da vertente dominante da teoria do cinema, anteriormente referida também como “A
Grande Teoria”, que possuía um referencial teórico fixo previamente determinado (“pós-
estruturalista”), através do qual examinava as mais diversas questões e fenômenos relacionados a
filmes e ao cinema.

26
argumentativos”, o que provém de sua convicção de que “a investigação é
dialética, e de que a crítica é um ingrediente fundamental da pesquisa”. E, por fim,
Bordwell e Carroll (p.xiv, grifos nossos) informam que o “tom crítico” de grande
parte daquela obra é mobilizado “na esperança de encorajar o campo dos estudos
de cinema a se tornar mais dialético” do que ele era39.
Ora, temos aqui indicado o sentido de “dialética” que estava imbuído
em nossa afirmação logo atrás. Isto é, trata-se de um sentido um tanto genérico
do termo, que remete etimologicamente ao diálogo40, a uma atividade
argumentativa: um processo contínuo de trocas intelectuais críticas.
E é com esse “ânimo dialético” como pano de fundo que pensamos que
os debates e polêmicas apresentados anteriormente devem ser avaliados – isto é,
eles seriam parte constituinte de um modo de se proceder dentro da comunidade
acadêmica que teria apreço pelo debate argumentativo.
Este modo de proceder seria praticado especialmente pelos adeptos de
certa vertente filosófica, da qual Noël Carroll faria parte, e a qual caracterizaremos
melhor na seção seguinte.

39
Uma preocupação semelhante, com relação à abordagem dominante nos estudos de cinema,
suas limitações e ambigüidades, e o que poderia ser melhorado, é levantada por Murray Smith
(2010), que busca extrair, para este campo, algumas lições do famigerado “caso Sokal”. Maiores
informações sobre este caso podem ser obtidas na avaliação do mesmo feita por Hans-Johann
Glock (2011: p.192 et seq.), professor de filosofia da Universidade de Zurique.
40
Apesar de esclarecer que dialética é um termo que na história da filosofia não foi empregado
“com significado unívoco”, e que haveria pelo menos quatro significados principais do termo, cada
qual relacionado a uma renomada doutrina filosófica (platonismo, aristotelismo, estoicismo e
Hegelianismo), Nicola Abbagnano (2007: p.269) diz ser possível “chegar a uma caracterização
bastante genérica” do termo que, de certo modo, resume todas as outras. Por exemplo, poder-se-
ia dizer que dialética “é o processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser
refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito; ou então que é um
processo resultante do conflito ou da oposição entre dois princípios, dois momentos, ou duas
atividades quaisquer” (p.269). Cremos que seja esse sentido genérico do termo que está em jogo
no contexto que examinamos.

27
2.3. Método e estilo: Filosofia analítica

2.3.1. FILOSOFIA ANALÍTICA

Havíamos mencionado anteriormente (item 2.1) - e esperamos que


agora seja mais perceptível, - que algumas das eventuais dificuldades
encontradas pelo leitor proveniente do campo dos estudos de cinema e não
habituado aos trabalhos de Noël Carroll poderiam decorrer da estrutura de seu
raciocínio ou estilo de escrita, ou ainda do referencial teórico que mobiliza. Pois
bem, estes pontos estão relacionados de forma mais geral com o “ânimo
dialético”, o qual discutimos, presente nos debates e polêmicas envolvendo o
autor, como também estão relacionados de forma mais específica com a corrente
da Filosofia Analítica.
Notemos, primeiramente, que o próprio Carroll reconhece sua prática
filosófica/acadêmica como pertencendo a esta vertente. Por exemplo, afirma ele,
no início de A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração (CARROLL, 1999:
p.22, grifo nosso), que o “estilo de filosofia usado neste livro é o que muitas vezes
é chamado de filosofia anglo-americana ou analítica”41. Ou, de forma quase
idêntica, diz ele também, no início de Filosofia da Arte (CARROLL, 2010: p.15,
grifo do autor), que o “tipo de filosofia que iremos explorar neste livro costuma
chamar-se filosofia analítica”. E, embora Carroll não o explicite, acrescentemos
que após uma rápida consulta e comparação, se pode perceber que este modus
operandi da filosofia analítica, que ele identifica nestas duas últimas obras citadas,
é o mesmo empregado por Carroll em seus outros trabalhos sobre temas diversos
(e.g., CARROLL, 1996b; 2005).

41
Para especificar melhor sua metodologia quando da escrita desta obra, Carroll (1999: p.22,
grifos nossos) complementa essa afirmação observando que, no entanto, seu “método não
pertence exclusivamente ao que às vezes é chamado de análise conceitual”, pois, assim como
outros filósofos, Carroll desconfia “da divisão estrita entre análise conceitual e descobrimentos
empíricos”, afirmando ainda que fará uso de ambos em sua investigação sobre o gênero de horror.

28
Portanto, será importante levantarmos algumas características dessa
vertente de filosofia, para que possamos fazer uma idéia mais precisa de quais
são os atributos do método ou estilo empregados por Noël Carroll em seus
trabalhos, e a que tipo de projetos/autores podemos associá-lo.
Iniciemos observando a maneira como Noël Carroll ele mesmo
descreve a vertente a qual pertence. Uma “escola filosófica” é como Carroll se
refere inicialmente a ela (CARROLL, 2010: p.15). Tomando aqui “filosofia” no
sentido de disciplina acadêmica (em detrimento do sentido da linguagem corrente
de “opinião”, “crença”, “princípio”, etc.), Carroll nos lembra que cada uma das
“escolas” possibilita “abordar a filosofia de diferentes modos”, cada um deles tendo
“propósitos e ênfases diferentes” (p.15).
Contextualizando a escola da filosofia analítica, Carroll informa que ela
é “seguida sobretudo no mundo anglo-saxônico”, e por isso muitas vezes é
“apelidada de filosofia anglo-americana, embora esse seja um rótulo enganador”
pois, apesar de possivelmente ser a “principal escola filosófica de língua inglesa”,
ela não é, de forma alguma, a única escola anglófona (p.15, grifo do autor), assim
como também não é praticada apenas por anglófonos 42.
Deixando de lado a definição geolinguística, que tem suas limitações,
reconhece-se que, num sentido bem abrangente, a filosofia analítica consiste em
“uma maneira de se fazer filosofia recorrendo-se ao método analítico para o
tratamento das questões filosóficas” (MARCONDES, 2004: p.7).

42
Hans-Johann Glock (Cf. 2011: p.61-81) realiza um exame pormenorizado da tentativa de, dentre
outras opções, definir-se a filosofia analítica pelo viés geolinguístico, que também é formulado
através da cisão “analítico versus continental". Em síntese, o autor conclui que “qualquer
concepção geolinguística entra em confronto tanto com fatos históricos quanto com o status quo”
(p.61, grifo do autor). Isso porque, de um lado, nas origens da filosofia analítica, contribuições
essenciais foram fornecidas por pensadores germanófonos (por exemplo, Gottlob Frege e Ludwig
Wittgenstein). E, por outro lado, sabe-se que atualmente, em muitos países de língua não-inglesa,
a filosofia analítica é uma escola próspera, como por exemplo, na Alemanha, Áustria e Suíça, além
de vir se espalhando mais lentamente por outros países da Europa central e do leste (Cf. p.76).
Recomendamos a consulta a esta fonte (GLOCK, 2011) para maiores informações sobre o tema.

29
E esta maneira supostamente nova43 de se fazer filosofia teria surgido
num processo de virada para um “terceiro período filosófico” (após a ontologia e a
epistemologia), entre o final do séc.XIX e início do séc.XX (MARCONDES, 2004:
p.7), tendo exercido grande influência ao longo deste último século (CARROLL,
2010: p.15).
A novidade ocorrida neste contexto foi a introdução da “questão lógico-
linguística”, isto é, a idéia de que “o conhecimento não pode ser entendido
independentemente de sua formulação e expressão em uma linguagem (...)”
44
(DUMMET Apud MARCONDES, 2004: p.9-10, grifo do autor). Dá-se, portanto, a
partir daí, um grande relevo para a linguagem, sua natureza, capacidades e
limitações, e o modo como isso tudo se relaciona com problemas filosóficos.
No entanto, não há, nesta escola da filosofia analítica, consenso no
modo de entendimento sobre em que exatamente deve consistir o “método
analítico” (Cf. p.7), nem sobre qual deve ser o papel da linguagem no mesmo.
O ponto pacífico parece ser de que, de forma geral, “o objecto45 de
análise da filosofia analítica são os conceitos” (CARROLL, 2010: p.15, grifos
nossos), especialmente aqueles “conceitos fundamentais às práticas e às
atividades humanas” (p.16). Por exemplo, para o campo da Arte, conceitos tais
como expressão, representação ou mesmo o próprio conceito de arte seriam

43
Apesar de a filosofia analítica ser circunscrita historicamente como um movimento filosófico
surgido e desenvolvido ao longo do séc.XX, admite-se que este movimento possui características
semelhantes - a operação da análise - com procedimentos filosóficos mais distantes
temporalmente, tais como aqueles utilizados por Aristóteles, por exemplo em seu texto “Da
Interpretação”, no Órganon; ou ainda Platão, por exemplo, no diálogo “Sofista” (Cf. MARCONDES,
2004: p.10). Costuma-se enxergar essa alegada ancestralidade como uma espécie de “pré-
história” da filosofia analítica (Cf. GLOCK, 2011: p.31).
44
Talvez este tenha sido o bojo fecundo para o desenvolvimento da visão estruturalista que
enfatiza a determinação do sujeito pela linguagem, manifesta no mote de que “somos falados pela
língua”.
45
A obra de Carroll (2010) Filosofia da Arte, a qual nos reportamos diversas vezes, teve sua
tradução em português publicada em Portugal. Portanto, algumas pequenas diferenças de
vocabulário são perceptíveis ao leitor brasileiro. Optamos por manter as citações nas grafias
exatas em que se encontram na obra consultada, por julgarmos que as pequenas diferenças de
vocabulário não comprometem o entendimento.

30
fundamentais (Cf. p.18) - e por isso, numa obra a respeito da Filosofia da Arte,
Carroll (2010) se dedica a sua análise.
O objetivo da análise de conceitos (ou análise conceitual), atividade
essencial da filosofia analítica, é a “tentativa de solução de um problema
filosófico”, o que, de acordo com essa escola, dependeria da “determinação da
definição” do conceito (ou expressão) relevante “da forma mais clara e precisa
possível” (MARCONDES, 2004: p.9).
Como exemplo hipotético, poderíamos dizer que, para se abordar um
problema filosófico do tipo “O cinema é ou não arte?”, um filósofo analítico iniciaria
primeiro por determinar o que se entende por cada um dos conceitos de partida,
“cinema” e “arte”, decompondo-os em seus componentes constitutivos, através do
que ele poderia parafrasear o problema original numa nova forma, e assim
comparar se e como os novos termos de chegada se assemelham ou diferem.
Parece haver duas vertentes principais de desenvolvimento da filosofia
analítica (Cf. MARCONDES, 2004: p.44; Cf. PINTO, 2002: p.127; Cf. SPANIOL,
2002: p.149), cada qual possuindo sua concepção ou encaminhamento particular
sobre a atividade da análise conceitual.
Uma delas é a da “semântica clássica”, de Gottlob Frege, Bertrand
Russell e do “primeiro” →ittgenstein, também chamada de “escola analítica de
Cambridge”, e que concebe a análise como “elucidação, [isto é, um] procedimento
de clarificação capaz de desfazer equívocos, mal-entendidos e ilusões (...)” (p.44).
Esta linha faz uso de um procedimento que pode parecer um tanto
trivial, mas que aqui é usado de maneira bastante produtiva - a “decomposição de
um complexo em seus elementos constituintes simples” (MARCONDES, 2004:
p.44, grifos nossos) – tal como teria ocorrido em nosso exemplo hipotético
anterior. Um trabalho representativo desta linha é a teoria das descrições
definidas, apresentada no artigo Da Denotação, de Bertrand Russell (1905).
A linha da semântica clássica é a que teve maior interesse pela lógica
formal (Cf. MARCONDES, 2004: p.14), devido a este sistema de linguagem
artificial ser capaz de auxiliar a formular e responder a questões filosóficas de uma

31
maneira que se evitaria imprecisões, ambiguidades e obscuridades presentes na
linguagem natural (Cf. MORTARI, 2001: p.33 et passim)46.
Por isso, “análise” foi entendida nesta vertente, em grande parte, como
uma forma “de tradução de uma linguagem para outra” – da linguagem natural,
para a da lógica simbólica (MARCONDES, 2004: p.44). Considera-se que, através
dessa tradução, poder-se-ia revelar como a estrutura lógica profunda do
conceito/expressão de chegada (analysans) é, em verdade, diferente da estrutura
lógica superficial de seu correlato, o conceito/expressão de partida (analysandum)
(Cf. PINTO, 2002: p.127) e, através da apresentação da questão sob sua nova
forma, poderia haver algum progresso na compreensão de um problema
filosófico47.
A segunda vertente da filosofia analítica, por outro lado, apresenta uma
posição um pouco diferente sobre alguns pontos.

46
De acordo com Cezar Mortari (2001: p.33 et passim), Professor de Lógica do curso de Filosofia
da Universidade Federal de Santa Catarina, é prerrogativa de uma linguagem artificial, como a da
lógica simbólica, sempre se poder determinar se uma expressão “é gramatical ou não”, ou seja, se
é “bem formada” de acordo com a gramática e sintaxe desta linguagem e, portanto, se ela “tem
sentido” determinável - o que não ocorre em muitos casos na linguagem natural. Além disso, como
“a lógica faz abstração de conteúdos, e preocupa-se apenas com as formas dos argumentos”,
torna-se mais fácil analisar a forma dos argumentos ao se substituir as palavras por símbolos.
47
Por exemplo, no famoso trabalho de Bertrand Russell citado, Da Denotação (On Denoting)
(RUSSELL, 1905), o filósofo apresenta sua proposta de tradução de expressões denotativas
(“descrições definidas”) da linguagem natural para a linguagem simbólica, através do que se
poderia evitar alguns paradoxos ou equívocos envolvendo o uso deste tipo de expressão. Estes
problemas ocorreriam em razão de tais expressões denotativas poderem, na linguagem ordinária:
ou não denotar nada; ou denotar um objeto específico e distinto, ou ainda denotar ambiguamente
(Cf p.479); possibilidades estas que costumavam estar “obscurecidas” no uso corrente da
linguagem, e que, portanto tornavam problemáticas a afirmação ou negação de proposições que
faziam uso destas expressões. Russell ilustra o caso com a análise da proposição “O atual rei da
França é careca”, para a qual a atribuição de um valor de verdade qualquer (“verdadeiro” ou
“falso”) parece implicar no reconhecimento da existência da entidade denotada (“o atual rei da
França”). Através do método de tradução proposto por Russell, uma tal proposição de partida,
após figurar na linguagem simbólica, revelaria na verdade possuir a seguinte estrutura lógica
interna: a) existe uma entidade x; b) essa entidade x é atualmente rei da França; c) e não há
nenhuma outra entidade y que seja atualmente rei da França e que seja diferente de x; d) e esta
entidade x é careca. A utilidade deste método de Russell é de se poder examinar mais
adequadamente proposições envolvendo expressões denotativas, podendo-se, por exemplo, negar
precisamente a parte relevante da proposição (no caso, a existência da entidade x, e não a sua
“carequice”) ou, em termos gerais, promover a “redução de todas as proposições nas quais
expressões denotativas ocorram a formas em que elas não mais ocorram” (RUSSELL, 1905:
p.482), evitando assim certas confusões.

32
Trata-se da linha da “filosofia da linguagem ordinária”, desenvolvida a
partir dos trabalhos de George Edward Moore, Gilbert Ryle, John Langshaw
Austin, o “segundo” →ittgenstein, e John Searle, e é também chamada de “escola
de Oxford”. Esta linha muito contribuiu para a área da Pragmática da linguagem.
Aqui, embora a análise também seja entendida como um “procedimento
de elucidação, de esclarecimento, de clarificação (...)”, por outro lado, este
esclarecimento se concentra no “uso da linguagem, das condições que tornam
determinados usos possíveis, das regras que os constituem e validam”
(MARCONDES, 2004: p.46-47, grifos do autor).
Esta vertente já não tem a intenção de efetuar a tradução da linguagem
ordinária para uma linguagem lógica formal, que supostamente seria capaz de
solucionar de forma superior, mais precisa, os problemas filosóficos (Cf. p.46).
Pelo contrário, aqui o método de análise busca “decompor a sentença de partida
com base nos recursos oferecidos pela própria linguagem natural”, substituindo-a
pela expressão de chegada, que também pertence à linguagem natural (PINTO,
2002: p.128).
As investigações desta vertente centram-se sobre aspectos ou
ocorrências do funcionamento da linguagem natural (ou “ordinária”). Um trabalho
representativo desta linha é A Plea for Excuses, de Austin (1961)48. E uma das
contribuições mais importantes nesta área é a Teoria dos Atos de Fala, de Austin
e Searle (Cf. AUSTIN, 1990; SEARLE, 1971; 1981; 2002). Como veremos nos
próximos capítulos, o conceito de asserção, parte da teoria dos atos de fala, será
um componente essencial da teoria do cinema de asserção pressuposta, de Noël
Carroll.
A nosso ver, no que se refere à posição de Carroll com relação a essas
duas linhas principais da filosofia analítica, e seus métodos ou concepções de

48
Neste trabalho, Austin (1961) procura analisar o conceito de “desculpa” (excuse), através da
observação das circunstâncias em que alguém desculpa a conduta de outrem, ou ainda nas quais
desculpas são proferidas (Cf. p.123). Trata-se, assim, da análise de um conceito, mas no que
concerne ao uso deste conceito na linguagem ordinária, isto é, refere-se à dimensão pragmática da
linguagem.

33
análise, Carroll aparenta lançar mão de recursos de ambas as vertentes, conforme
o projeto em questão. Será importante, contudo, contextualizarmos alguns dos
expedientes específicos utilizados pelo autor, que parecem se originar da primeira
dentre estas vertentes, e que podem se nos aparentar menos familiares.

2.3.2. FORMALIZAÇÃO

Carroll afirma (CARROLL, 2010: p.24), a propósito de seu método de


análise, que um objetivo visado é “clarificar as categorias classificatórias”
pertinentes ao assunto.
O modo pelo qual Carroll realiza estes esclarecimentos apresenta
semelhanças com a linha lógico-semântica da filosofia analítica. Isto, pois, para a
discussão de questões e conceitos filosóficos, Carroll recorre à formulação precisa
dos argumentos e proposições, geralmente através da elencação das condições
necessárias e suficientes dos mesmos, para então poder defendê-los ou refutá-
los.
Esta “formulação” não é, no método de trabalho de Carroll, apenas um
sinônimo de “estruturação”, mas possui também a conotação de formalização.
Carroll chega, diversas vezes, a lidar com verdadeiras fórmulas argumentativas. A
diferença de suas fórmulas para aquelas com que lidaria uma linha mais “pura”
lógico-semântica, é que Carroll não se utiliza integralmente da notação simbólica
para construí-las. Ele não faz uso dos símbolos de operadores lógicos e demais
caracteres da lógica formal para encadear os argumentos e proposições. Para
melhor compreensão, especifiquemos de que se trata.
Os operadores lógicos (ou “conectivos lógicos”) da lógica clássica são
os seguintes processos, usados na estruturação de proposições e argumentos (Cf.
MORTARI, 2001: p.69; et passim): “não”, “e”, “ou”, “se... então”, e “se e somente
se”. Eles recebem, respectivamente, a seguinte simbolização: “¬”, “ ”, “ ”, “ ” e

34
“ ”. A estes operadores também se acrescem, no alfabeto da lógica clássica, os
seguintes elementos (Cf. p.69-73; p.289-293; p.301-305; et passim):

 constantes individuais (as letras do alfabeto, em minúsculas, de “a” a “t”),


que “têm a função de designar indivíduos”;
 variáveis individuais (as letras do alfabeto, em minúsculas, de “u” a “z”), que
também designam indivíduos, mas de forma indeterminada (não-
especificada) em relação ao universo considerado;
 constantes proposicionais (as letras do alfabeto, de “A” a “Z”, em
maiúsculas), que têm a função de representar propriedades atribuídas a
indivíduos;
 quantificadores “existencial” (“∃”) e “universal” (“∀”), que indicam o grau de
generalidade (particular ou universal) de (partes de) uma proposição em
que aparecem;
 símbolos complementares, como os parênteses, “(“ e “)”, que organizam as
fórmulas e determinam a prioridade de leitura/cálculo de cada parte da
mesma; e os numerais arábicos positivos, de “0” a “9”, usados como
subscritos das constantes individuais ou proposicionais, para permitir que
haja uma gama de indivíduos e propriedades infinitos, possíveis de serem
usados em um fórmula qualquer (“a1”, “a2”, “a3”, ..., “a100”, etc.);
 indicador de identidade entre termos (“=” e, por combinação, “¬=”, que é
abreviado como “≠”); e símbolos funcionais ( “f(x)” ), que representam
funções ou operações;49

A título ilustrativo, podemos exemplificar como seria o aspecto de uma


proposição integralmente formulada em notação simbólica utilizando o caso
anteriormente mencionado da proposição analisada por Russell (1905), em Da
Denotação: “o atual rei da França é careca”. Após formalizada, a proposição teria
uma aparência tal como a seguinte:

49
Os indicadores de identidade e os símbolos funcionais, em verdade, não fazem parte do alfabeto
básico do cálculo de predicados de primeira ordem (ou “CQC”, cálculo quantificacional clássico).
=
Eles representam uma extensão a este alfabeto (que passa a ser denotado, com isso, por CQC f ),
extensão esta que possibilita formalizar e analisar uma maior variedade de tipos de proposição (Cf.
MORTARI, 2001: p.63; p.69; p.291; p.301; et passim).

35
 x(Rx y((y ≠ x Ry) Cx))

Aqui, a constante proposicional “R” atribui a uma entidade


(indeterminada) a propriedade de “ser atualmente rei da França”, e “C” atribui a
uma entidade (no caso, a mesma entidade indeterminada) a propriedade de “ser
careca”. Um modo de “leitura” desta fórmula seria o seguinte:

1. existe uma entidade x tal que este x é atualmente rei da França; e


2. não existe uma entidade y tal que ela seja diferente de x e seja também
atualmente rei da França; e
3. x é careca;

Em outras palavras, “existe um e apenas um atual Rei da França, e ele


é careca”.
A razão de nos desviarmos um pouco pelos meandros da lógica -
recurso bastante utilizado pela primeira vertente da filosofia analítica que
mencionamos -, e tomarmos algum tempo apresentando seu alfabeto simbólico, é
para ressaltar que, apesar de certamente o conhecer50, Noël Carroll opta por não
fazer uso integral deste alfabeto e gramática simbólica na análise conceitual e
argumentativa que efetua em seus trabalhos.
Ele limita-se a, ao invés disso, recorrer apenas e ocasionalmente a
letras (“a”, “p”, “x”, “y”, etc., indicadores de constantes e variáveis individuais) para
representar os termos (sujeitos, objetos, categorias) envolvidos numa definição.
Para maior esclarecimento, apresentemos um exemplo de definição
conceitual proposta por Carroll em que figuram letras representando os termos
envolvidos. Tomemos uma definição que ele oferece de seu conceito de “filme de
asserção pressuposta” (CARROLL, 2005: p.90-91):

50
Justificamos esta afirmação indutiva pelo motivo de Noël Carroll possuir, como vimos no início
deste capítulo, formação acadêmica em nível de Graduação, Mestrado e Doutorado em Filosofia.

36
“x” é um filme de asserção pressuposta se e somente se o cineasta “s”
apresenta “x” a um público “a” com a intenção de que: 1) que “a”
reconheça que “x” é intencionado por “s” para significar “p” (determinado
conteúdo proposicional); 2) que “a” reconheça que “s” intenciona então
que “a” entretenha “p” como um pensamento assertivo (ou como um
conjunto de pensamentos assertivos); 3) que “a” entretenha “p” como um
pensamento assertivo; e 4) que 2 seja uma razão para 3.

A definição contida neste trecho tem aspecto semelhante a outras que


podem ser encontradas em Filosofia da Arte (CARROLL, 2010: p.59 et passim) ou
em outros de seus escritos (e.g., CARROLL, 1996: p.70 et passim). Aqui, Carroll
utiliza letras em substituição aos seguintes termos envolvidos na definição: “filme”
(“x”), “cineasta” (“s”), “público” (“a”) ou “conteúdo proposicional” (“p”).
Ora, conforme indicáramos em nota anterior, na linguagem simbólica
utilizada pela lógica, ao se substituir palavras por símbolos, intenta-se dar maior
ênfase à forma da proposição ou argumento em exame (Cf. MORTARI, 2001:
p.33), de modo que se possa analisar sua consistência interna.
Podemos presumir, portanto, que ao fazer uso de alguns símbolos na
definição, evitando, no exemplo, repetições constantes e desnecessárias dos
termos “filme”, “público”, etc., que poderiam embaraçar a leitura, Carroll teria em
vista facilitar a compreensão da estrutura de sua definição. Trata-se, assim, de
uma opção estilística que concerne à transparência ou clareza (de ao menos
algum aspecto) do raciocínio – embora se sabe haverem leitores, das
humanidades, para quem o mero contato com letras representando constantes e
variáveis, ou qualquer outro tipo de procedimento que possa remeter ao distante
campo das exatas, é suficiente para fazê-los abandonar a leitura e abominar o
autor.
A estes leitores deve ser lembrado que a filosofia analítica, escola
filosófica praticada por Noël Carroll, procura distinguir “entre a obscuridade e a
tecnicidade”, rejeitando a primeira, mas recorrendo a segunda conforme a
necessidade (WILLIAMS Apud GLOCK, 2011: p.144). Neste sentido, o recurso a
símbolos para representar termos de uma definição constituiria um procedimento

37
que prezaria pela “precisão técnica”, e isto apesar da dificuldade que alguns
leitores podem sentir ao travar-lhe contato51.
Ademais, aconselhamos a estes leitores um pouco de paciência e
persistência na leitura, visto que os próprios símbolos selecionados para
representar os termos da definição costumam ser contextualmente motivadas (os
caracteres mantém certa relação com os termos que representam), de modo a
facilitar a memorização dos mesmos. Por exemplo, no caso da definição acima, o
uso de “a” para representar o termo “público” explica-se por seu correlato em
inglês, “audience”, usada na versão original do texto (CARROLL, 1997: p.188). O
uso de “s” para representar “cineasta” é, por sua vez, provavelmente derivado da
palavra “sender” (emissor), costumeiramente usada em esquemas que
representam processos comunicativos - com os quais esta definição apresenta
alguma semelhança.
Nosso ponto é que, mesmo que se tenha alguma dificuldade, esta pode
ser minimizada ao se fazer uma leitura mais atenta deste tipo de definição,
facilitando assim a compreensão da estrutura do raciocínio.
Passemos agora a outro tipo de procedimento utilizado por Carroll.

2.3.3. DEDUÇÃO

Além de recorrer a letras para representar termos de uma definição,


Noël Carroll também se utiliza de outro recurso oriundo de procedimentos
pertencentes à lógica formal.

51
Num outro extremo, admite-se haver filósofos analíticos que parecem fazer todo o possível para
“salpicar seus artigos com símbolos lógicos” diversos, provavelmente calcados na idéia
(inconsciente?) de que “a natureza indigesta de seus escritos é uma necessidade, e um sinal de
proficiência técnica”. Contudo, há casos em que essas “tecnicidades” “não servem a nenhum
propósito”, sendo “abreviações decorativas em vez de elementos em derivações filosóficas”.
Somos exortados, com isso, a examinar criticamente as definições e não sermos enganados pelo
rigor aparente de algumas delas (Cf. GLOCK, 2011: p.144).

38
Trata-se do uso de uma estrutura de apresentação de alguns
argumentos que se assemelha ao método de dedução natural, uma das formas de
que dispõe a disciplina da Lógica para testar a validade de argumentos (Cf.
MORTARI, 2001: p.235-262; et seq.). Este procedimento consiste essencialmente
em se “aplicar um conjunto de regras de inferência ao conjunto de premissas,
gerando conclusões intermediárias às quais aplicam-se novamente as regras, até
atingir-se a conclusão final desejada” (p.236, grifo do autor).
Um exemplo simples disso pode ser encontrado em A Filosofia do
Horror, em que Carroll (1999: p.128) analisa o que ele chama de “paradoxo da
ficção”, cuja estrutura é indicada através de três proposições que, tomadas
isoladamente, parecem verdadeiras, mas quando combinadas entre si, produzem
uma contradição:

1. “Somos autenticamente tocados por ficções.”


2. “Sabemos que aquilo que é retratado nas ficções não é real.”
3. “Somos tocados autenticamente apenas pelo que acreditamos ser real.”

Ora, pelo que se pode ver, não é o caso que 1, 2 e 3 possam ser
simultaneamente verdadeiras. Com base nisso, Carroll (1999: p.128) explica que
haveria “três opções para acabar com a contradição”.
A primeira destas opções (chamada de teoria do fingimento) opta por
negar a primeira proposição, afirmando que “as emoções que comunicamos ao
acompanhar as ficções não são emoções genuínas ou autênticas, mas, sim,
emoções de faz-de-conta” (p.128, grifos nossos).
A segunda opção (chamada de teoria da ilusão) “nega a segunda
proposição sustentando que, no transcurso da ficção, não sabemos que o que é
retratado na ficção não é real” (p.128, grifos nossos).
E a terceira opção, que concerne a teoria proposta pelo próprio Carroll,
(chamada de teoria do pensamento), consiste em negar “a terceira proposição da

39
tríade precedente”, sustentando que “uma resposta emocional não exige a crença
de que a coisa que nos comove seja real”, ou seja, que “podemos ser tocados
pelo conteúdo de pensamentos que entretemos” (p.128, grifos nossos).
Dissemos que este é um exemplo simples devido a, por um lado, o
argumento conter apenas três premissas de partida, expostas de forma
simplificada por Carroll (após discussão sobre elas em outros pontos do texto) e,
por outro lado, devido ao processo de inferência (ou “dedução”) ser razoavelmente
linear em seu desenvolvimento52. Neste caso, Carroll não efetua toda a
dedução/argumentação utilizando a estrutura tabular. Ele apenas apresenta, nesta
forma, as três premissas de partida, e desenvolve sua análise através de texto
corrido.
Novamente há, portanto, o recurso de Carroll a um procedimento da
filosofia analítica, mas cuja aplicação se dá apenas parcialmente, evitando o
abuso das tecnicidades lógicas, que poderiam obstruir a leitura dos “não-
iniciados”.

2.3.4. ESTILO

Além da operação de análise conceitual, que costuma recorrer aos dois


tipos de procedimentos discutidos, a filosofia analítica também costuma ser
reconhecida caracteristicamente por “um estilo mais geral de pensar e escrever”
(GLOCK, 2011: p.138, grifo nosso), o qual podemos identificar também nos
trabalhos de Noël Carroll.
Este estilo concerne, em partes, a “procedimentos metodológicos” que
podem parecer um tanto incomuns, como o “uso de casos enigmáticos e

52
A dedução, neste exemplo, teria ocorrido através do acréscimo, às três premissas de partida,
das seguintes proposições: 4) Não é o caso que 1, 2 e 3 sejam simultaneamente verdadeiras; 5)
Logo, ou 1, ou 2, ou 3 é falsa; 6) Suponha-se que x seja verdadeira; 7) Então, etc., onde x
representa uma das três premissas, e as consequências de sua suposição como verdadeira seriam
exploradas ao longo do texto, por Carroll (1999), através da comparação de seus méritos e pontos-
fracos contra os das outras teorias.

40
experimentos de pensamento”, que têm o “intuito de explorar a extensão precisa
de aplicação” de termos ou conceitos em disputa (p.138).
Um exemplo disso pode ser encontrado em A Filosofia do Horror
(CARROLL, 1999), onde, ao propor sua teoria do pensamento (thought theory)
como explicação ao fato de sermos tocados emocionalmente por ficções, Carroll
ilustra o caso com a evocação da emoção de medo que sentimos quando estamos
em algum local de grande altura (p.118-119, grifos do autor):

À beira de um precipício, (...) podemos entreter fugazmente o


pensamento de cair da borda. Normalmente, isso pode ser acompanhado
por um súbito calafrio ou tremor, que é causado, sugiro eu, não pela
crença de que estamos a ponto de cair no precipício, mas, sim, por nosso
pensamento de cair, que, é claro, consideramos uma perspectiva
particularmente desagradável. Não é preciso que seja uma perspectiva
que creiamos provável; nossos pés estão firmes, não há ninguém por
perto para nos empurrar e não temos nenhuma intenção de pular. (...)
[N]ão ficamos assustados pelo acontecimento de nosso pensamento de
cair, mas, sim, pelo conteúdo de nosso pensamento de cair – talvez a
imagem mental de despencar no espaço.

Esta evocação consiste em um exercício mental ou de rememoração


executável pelo leitor. Seu objetivo seria demonstrar que a teoria proposta por
Carroll, além de possuir consistência interna, conforma-se com vivências
interpessoais comuns53 e, assim sendo, ela teria maior força explicativa que as
outras teorias concorrentes, que não o fazem.
Ainda na mesma obra, Carroll (1999: p.115) recorre a um outro caso
enigmático/experiência de pensamento, quando nos pede para imaginar que
estamos participando de “uma experiência psicológica na qual o que está sendo
testado são nossas respostas emocionais” a algumas situações narradas.
Nesta experiência, ser-nos-iam contadas histórias e, sem nos ser dito
se elas seriam verdadeiras ou inventadas, ser-nos-ia perguntado como estaríamos

53
Noël Carroll (1999: p.123) afirma que esta e outras “experiências de pensamento” que
concernem à relação de nossas emoções com obras de ficção são “fatos confirmáveis
interpessoalmente”.

41
nos sentindo após ouvi-las. Esta experiência de pensamento, segundo Carroll
(1999: p.115), se propõe a revelar, novamente, que não é necessário haver uma
“crença de existência” para sermos emocionados por ficções. Isto, pois, o
responsável pela experiência revelaria a veracidade ou não da história contada
somente após termos indicado a emoção que sentíramos ao escutá-la. E, após
isso, dificilmente iríamos querer “alterar a resposta” que demos em função de
agora conhecermos o estatuto da história. Em outras palavras, esta experiência de
pensamento demonstraria que uma história, mesmo inventada (isto é, cujos fatos
não cremos como sendo reais), seria perfeitamente capaz de tocar
emocionalmente seu leitor/ouvinte.
Além das experiências de pensamento e casos enigmáticos, outra
característica que concerne ao estilo mais geral da filosofia analítica, e que
pensamos ser reconhecível nos escritos de Noël Carroll, é a clareza, a qual
enfatizamos mais de uma vez.
É admitido pelos seus membros, que “a filosofia analítica aspira a uma
clareza maior do que o fazem suas rivais” (GLOCK, 2011: p.142), o que pode
significar tanto uma clareza de escrita, como uma “clareza de pensamento”, “que
envolve distinções conceituais e, em última análise, tem em vista a transparência
de argumentos” (p.146, grifo do autor).
Esperamos que a esta altura já tenhamos oferecido indícios suficientes
para o reconhecimento desta característica no autor Noël Carroll, o que pode ser
visto, quando, por exemplo, Carroll assume o esclarecimento como um objetivo da
análise conceitual, ou quando opta por evitar repetições desnecessárias em suas
definições (ambos cf. item 2.3.2), propondo-se a apresentar de maneira simples e
direta as premissas e proposições principais dos argumentos que examina (Cf.
item 2.3.3).
Por fim, conforme o que pudemos ver neste capítulo, em toda a
trajetória e produção de Noël Carroll, parece ter havido sempre um diálogo entre a
filosofia e o cinema, atravessado por vetores metodológicos ou estilísticos, e que

42
por vezes foi carregado de tensão, como em algumas trocas intelectuais que
observamos.
A tensão se explicaria, ao menos parcialmente, pela diferença de
formação existente entre Carroll e seus interlocutores do campo de estudos de
cinema. Muitos deles provavelmente não possuem formação filosófica, ou então
desconhecem as especificidades da filosofia analítica.
E, o próprio Carroll adverte que, ao “primeiro contacto do leitor com a
filosofia analítica, algumas das suas técnicas, modelos de raciocínio e modos de
argumentação podem parecer-lhe estranhos”, sobretudo “se a sua formação de
base pertencer às ciências empíricas” (CARROLL, 2010: p.24).
Daí os graus variados de dificuldade de assimilação, confrontação ou
relegação ao oblívio que acometem seus escritos.
De nossa parte, esperamos que este capítulo tenha sido
suficientemente informativo, visto que aqui adiantamos e contextualizamos o
método ou estilo de escrita e pensamento com o qual lidaremos daqui para a
frente.
Ademais, contamos com que este capítulo sirva de preparo para que
futuramente o leitor possa se engajar ele mesmo, com menor embaraço, com
textos de Noël Carroll ou de outros filósofos analíticos.
No capítulo seguinte veremos como este método/estilo filosófico
analítico de Noël Carroll orienta sua incursão no domínio do cinema documentário.

43
44
3. DO DOCUMENTÁRIO AO CINEMA DA ASSERÇÃO PRESSUPOSTA

Neste capítulo apresentaremos o pensamento do filósofo Noël Carroll


sobre o cinema documentário, procurando evidenciar quais são os principais
conceitos e argumentos que o autor mobiliza em sua reflexão sobre este gênero
audiovisual. Isso será feito através da exploração de seus textos, inicialmente de
forma individual, mas, ao final, procuraremos cotejá-los no conjunto.
Perceberemos, ao fim, que existem elementos recorrentes entre os mesmos.
Existem quatro textos principais em que Carroll desenvolve uma
reflexão direta sobre o documentário. Listamo-los a seguir, acompanhados das
datas de sua publicação original:

1983 - From Real to Reel: Entangled in Nonfiction Film54

1996 - Nonfiction Film and Postmodernist Skepticism55

- Fiction, Non-fiction and the Film of Presumptive Assertion: A Conceptual


1997
Analysis56

- Photographic Traces and Documentary Films: Comments for Gregory


2000
Currie57

Dedicaremos uma seção deste capítulo a discussão de cada um destes


textos. Notar-se-á que as três primeiras seções se desenvolvem de forma breve,
enquanto a quarta seção, dedicada ao exame do texto Fiction, Non-fiction...
ocupará a maior parte do capítulo.

54
In: Philosophical Exchange, 14, 1983, p.5-46.
55
In: BORDWELL, David; CARROLL; Noël (Ed.), Post-Theory: Reconstructing Film Studies,
Madison, Wisconsin: The University of Winsconsin Press: 1996, p.283-306.
56
In: ALLEN, Richard; SMITH, Murray (Ed.), Film Theory and Philosophy, New York: Clarendon
Press/Oxford: 1997, p.173-202.
57
In: The Journal of Aesthetics and Art Criticism, v. 58, n.3, Summer 2000, p.303-306.

45
A razão disso é que, enquanto que nos textos anteriores Carroll discutia
algumas questões mais gerais que circundam o gênero do cinema documentário,
é em Fiction, Non-fiction... que Carroll apresentará sua teoria do “cinema da
asserção pressuposta”, que constitui uma proposta positiva e sistemática de
definição deste gênero.
Carroll, aqui, endereça diretamente o “coração” do tema. Logo, este
texto apresenta maior interesse de análise. Além disso, o fato de este ser o único
texto sobre documentário deste autor que foi traduzido ao português, constitui uma
razão a mais para lhe dar maior proeminência, pois há bem mais interesse na
discussão do mesmo por parte da comunidade acadêmica nacional.
Note-se, ademais, que embora cronologicamente anterior à Photograpic
Traces..., ordenamos Fiction, Non-fiction... como o último dos quatro textos. Isto se
dá, pois, como realizaremos um exame mais minucioso deste texto, concluímos
que este modo de ordenação será mais conveniente ao ritmo de leitura e à
apresentação do trabalho. Além disso, o fato de Photographic Traces..., o texto
cronologicamente mais recente, ter sido escrito de forma a não pressupor o
conhecimento, pelo leitor, da teoria anteriormente desenvolvida do cinema da
asserção pressuposta, facilita essa forma de exposição.

3.1. Emaranhado no cinema não-ficcional

From Real to Reel: Entangled in Nonfiction Film58 (CARROLL, 1983) foi


o primeiro texto em que Carroll (1983) abordou diretamente o tema do cinema
documentário. No texto, Carroll pretende analisar certos conceitos e argumentos
que estão presentes na discussão e teorização sobre o gênero, também chamado
aqui de “cinema de não ficção” (nonfiction film). Em razão de estes conceitos e
argumentos serem problemáticos, Carroll avalia que o gênero do cinema não-

58
Uma tradução do título seria: “Do Real ao Rolo: Emaranhado no Cinema Não-Ficcional”. Por
economia, de agora em diante adotaremos a sigla “FRTR" para se referir a este texto.

46
ficcional representa “uma das mais confusas áreas da teoria do cinema”, estando,
inclusive, sua própria natureza constantemente questionada (FRTR: p.224). Por
isso, o objetivo de Carroll será, aqui, examinar esses conceitos e argumentos
problemáticos, esclarecendo a natureza dos equívocos neles contidos e, assim,
preservando o cinema documentário/não-ficcional contra uma investida comum de
falsos problemas teóricos.
De modo geral, parece-nos que os argumentos e conceitos analisados
por Carroll em FRTR organizam-se em torno de dois eixos principais:

1. Impossibilidade de objetividade
2. Indistinção entre ficção e não-ficção

Um exemplo do primeiro caso seria um argumento que estabelece que


no cinema não-ficcional a “objetividade é impossível” de ser atingida, pois o uso da
própria mídia audiovisual implica necessariamente em seletividade, manifesta, por
exemplo, na utilização do enquadramento, foco, e edição (Cf. FRTR: p.224).
No segundo caso, a “distinção entre ficção e não-ficção” é questionada
por razões diversas, tais como (Cf. p.224):

a) O cinema não-ficcional partilha “procedimentos narrativos, dramáticos e


estéticos” com o cinema ficcional;
b) Cineastas estão “aprisionados em ideologia”, que se revela tanto na forma
como no conteúdo por eles produzido;
c) Já que todo fenômeno cultural é “estruturado”, seu registro audiovisual
meramente “captura as ‘ficções’ ideológicas” de uma dada época/contexto;
d) Todos os filmes são ficcionais em razão de serem representações;

Carroll notará que há diversos pontos em comum entre esses dois eixos
de discussão, e que, freqüentemente seus usos se indiscernem. Contudo, as

47
ambigüidades e equívocos presentes neles necessitam, segundo o autor, ser
identificadas e desfeitas.

3.1.1. PARADIGMA DO CINEMA DIRETO

Antes, contudo, de endereçar os conceitos/argumentos eles mesmos,


Noël Carroll avalia a maneira pela qual a discussão sobre o filme não-ficcional
atingiu, historicamente, o estado em que se encontra no momento da escrita do
texto.
Muitos destes conceitos/argumentos teriam se desenvolvido entre as
décadas de 1960 a 1980, período em que o gênero do cinema documentário teria
adquirido grande proeminência59 (Cf. FRTR: p.224).
Segundo Carroll, o movimento cinematográfico conhecido como cinema
direto é a “influência mais importante” na maneira como o cinema não-ficcional é
costumeiramente concebido em meio a estas discussões (p.224), por ter lhes
emprestado seu “referencial retórico” (p.226), incluindo principalmente o debate
acerca das possibilidades de conhecimento e interpretação oferecidas pelo
cinema não-ficcional, e as discussões sobre a objetividade.
As primeiras experiências deste movimento cinematográfico “surgem
com a revolução tecnológica do final dos anos 1950, provocada pelo aparecimento
de novos aparelhos portáteis de gravação de som e imagem” (Cf. RAMOS, 2008:
p. 269; Cf. FRTR: p.225).
Os praticantes do cinema direto “propuseram um novo estilo de
realização documentária” que era radicalmente diverso dos estilos anteriores,

59
O fenômeno se manifestou não só na parte da produção audiovisual, mas também no campo
dos estudos de cinema, com o surgimento de vários trabalhos que examinavam o documentário
dedicadamente (Cf. DA-RIN, 2006: p.133), como, por exemplo, as histórias do gênero
documentário/não-ficcional escritas por Richard Barsam (1973) ou Erik Barnow (1993), cujas
primeiras publicações datam, respectivamente, de 1973 e 1974.

48
evitando o “uso de roteiros, narração no estilo voz-de-Deus, reencenações de
acontecimentos, e qualquer espécie de encenação dirigida” (FRTR: p.224-225).
O objetivo almejado pelos cineastas através da mobilização destes
recursos/procedimentos era de “se imergirem nos acontecimentos”; de “observar
ao invés de influenciar” (p.225). Tratava-se de uma “ética da não-intervenção” do
cineasta nas circunstâncias da tomada (Cf. DA-RIN, 2006: p.138; Cf. RAMOS,
2008)60.
O tipo de obra fílmica obtida através da mobilização destes
procedimentos61 parecia oferecer uma nova espécie de “realismo
cinematográfico”, uma “nova liberdade” ao espectador, que era agora cativado a
“desenvolver sua própria interpretação do que era significativo nas imagens, ao
invés de ter o cineasta interpretando-lhas” (FRTR: p.225).
Em função das possibilidades fílmicas e expectativas espectatoriais
levantadas pelo cinema direto, grande parte da tradição do cinema documentário
fora rejeitada, por ser considerada demasiadamente restritiva ou “interpretativa”, e
portanto, estar agora em conflito com o que neste momento (virada da déc.50 para
a déc.60) se desejava do cinema não-ficcional62.
O cinema direto e seu estilo obtido pela minimização de controle do
cineasta passam a ser considerados como paradigmas do cinema não-ficcional, e
esse tipo de liberdade de interpretação oferecida ao espectador passa a ser
considerada como modelo de objetividade63 almejada (Cf. p.225). Formas diversas

60
As referências aqui aos trabalhos de Fernão Ramos (2008) e Silvio Da-Rin (2006) pretendem
fornecer suporte às alegações de Carroll sobre o movimento cinematográfico do cinema direto. A
nosso ver, esta avaliação de Carroll é coerente com a de especialistas no assunto.
61
Alguns exemplos famosos de obras pertencentes ao estilo do cinema direto são: Primary (1960),
Crisis (1963), Titicut Follies (1967) e Salesman (1968). Um exemplo nacional e mais recente deste
estilo é o filme Justiça (2004).
62
Fernão Ramos (2008: p.33-39) analisa esse tipo de transformação na história do cinema
documentário como sendo a passagem de uma configuração ética aceita em um determinado
contexto histórico-social, para uma outra diversa. No caso, trata-se da passagem de uma “ética
educativa” do documentário clássico, para uma “ética da imparcialidade” do cinema direto.
63
Na próxima seção, veremos que existe um sentido de “objetividade” entendida como a
apresentação de um tema “sem possuir um ponto de vista” (FRTR: p.230-231), ao qual o estilo do
cinema direto parece ser associado.

49
de documentário, que se utilizam ainda de uma narração em voz over explicativa
(“voz-de-Deus”)64, por sua vez, passam a ser consideradas como desprovidas
deste valor de objetividade.
Este seria, de acordo com Carroll, um “primeiro abalo” que o paradigma
do cinema direto teria causado nas concepções/discussões sobre o gênero
documentário/não-ficcional. O cinema direto teria, com suas novas técnicas e
formas cinematográficas, moldado novos valores de realização e recepção
cinematográfica não-ficcional, que derrocaram formas e valores anteriores.
Notam-se, inclusive, ainda hoje, especialmente por parte de público
não-especializado, discursos em que está implícita uma concepção de
documentário baseada na “ética da não-intervenção”, por exemplo, quando se
questiona a utilização de estúdios ou re-encenações em filmes e programas
televisivos documentários.
Este paradigma do cinema direto, contudo, incorreu ainda em um
segundo abalo nas concepções e discussões sobre o gênero, através do embate
com sua contra-parte francesa, o cinema verdade (cinéma verité).
O movimento do cinema verdade, embora também tirando proveito das
mesmas possibilidades tecnológicas de gravação de imagem e som sincrônicos
que o cinema direto; mobilizava-os, por sua vez, segundo orientações e objetivos
bem diversos.
Uma diferença marcante entre ambos os estilos é perceptível já no filme
reconhecido como iniciador do cinema verdade, Crônica de um Verão (1960).
Nele, vemos que seus realizadores, Jean Rouch e Edgar Morin, se auto-incluíram
na obra (Cf. FRTR p.225).
Esse resultado fílmico65 foi efeito do reconhecimento, tanto por parte de
Rouch como dos outros adeptos desse estilo, de que “o próprio ato de filmar

64
Alguns exemplos deste estilo fílmico conhecido como “documentário clássico” são: Nanook do
Norte (1922), Night Mail (1936), a série Why We Fight (1942-5), e Aruanda (1960). Deve-se notar
que no caso de Nanook, embora este seja um filme silencioso, o comentário explicativo ainda
existe, na forma das cartelas de intertítulos.

50
alterava ou muito provavelmente influenciaria no resultado dos eventos
registrados” (FRTR: p.225). Ora, se “a neutralidade da câmera e do gravador era
uma falácia, para que tentar dissimulá-los? Por que não utilizá-los como
instrumentos de produção dos próprios eventos, como meio de provocar situações
reveladoras?” (DA-RIN, 2006: p.149).
A radical diferença de postura entre os praticantes do cinema direto e
os do cinema verdade explica-se pela adoção de uma “ética da imparcialidade”, no
primeiro caso, versus uma “ética interativa”, no segundo (Cf. RAMOS, 2008: p.37).
Carroll utiliza uma frase de efeito para designar esse conflito de
posicionamento: “O cinema direto abriu uma lata de vermes, e foi devorado por
eles” (FRTR: p.225).
Ou seja, os questionamentos e acusações levantados pelo cinema
direto, em relação a (falta de) liberdade interpretativa e “objetividade” do
documentário tradicional (com sua excessiva unilateralidade
explicativa/informativa), voltaram-se contra si mesmos. O cinema direto sempre
esteve, inegavelmente, envolvido na interpretação e seletividade de seus materiais
(p.225) – seja através da escolha dos temas e sujeitos a serem filmados, seja pela
escolha do posicionamento da câmera nas tomadas, angulação, duração e
movimentos de câmera, seja ainda pelo modo de edição do material, etc.
Portanto, o lugar de discussão do cinema não-ficcional tornou-se
bastante incômodo.

Primeiro, o cinema direto repudiou uma grande parte da tradição do


cinema não-ficcional por ser [excessivamente] interpretativa. Depois,
como um bumerangue, a dialética rebateu: o cinema direto, foi dito,
também era interpretativo (...) e subjetivo ao invés de objetivo (FRTR:
p.225)

65
Outros exemplos desse movimento cinematográfico podem ser identificados em outros filmes de
Jean Rouch, como Jaguar (1954/67) e Eu, um Negro (1958). O exemplo nacional mais famoso
provavelmente é o documentário inaugural de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado Para Morrer
(1984).

51
A força combinada desses dois abalos ocasionados pelo “paradigma do
cinema direto” acarretou em um certo “estigma com relação a todo o cinema não-
ficcional”, que passou a ser encarado como irremediavelmente “subjetivo” (Cf.
FRTR: p.225). Era como se este gênero fílmico havia “perdido seu valor” para uma
boa parcela dos estudiosos da área.

3.1.2. IMPOSSIBILIDADE DE OBJETIVIDADE

Como vimos, Carroll crê que o cinema direto teria sido o principal
responsável pelo modo como a reflexão sobre o cinema não-ficcional teria se
encaminhado nas décadas 1960-1980. Este movimento teria motivado boa parte
das discussões sobre a possibilidade de objetividade neste gênero - debate cujo
saldo resultou na descrença, redobrada, nesta possibilidade.
Um problema notado por Noël Carroll nesta discussão, contudo, é que
muitos dos argumentos utilizados para estipular a impossibilidade de objetividade
do cinema não-ficcional são bem mais “devastadores em seu escopo” (p.226).
Eles não apenas negam a possibilidade de objetividade nesta modalidade fílmica,
mas implicam em sua impossibilidade também em outras formas de discurso,
como o histórico e o científico (Cf. p.226).
O motivo disso é que a objetividade de filmes não-ficcionais é
questionada por estes filmes fazerem uso de procedimentos tais como “seleção,
ênfase, manipulação de materiais, interpretação e pontos de vista” (Cf. 226).
Contudo, o recurso a este tipo de procedimento não é exclusivo aos realizadores
de filmes não-ficcionais. Historiadores e cientistas também recorrem a
interpretações, seleção de evidências (e exclusão de outras), e a apresentação de
pontos de vista sobre fenômenos do passado ou do presente que pretendem ser
explicados. Portanto, se a possibilidade de objetividade no cinema não-ficcional é
negada em função destes procedimentos, ela também deve ser negada em
relação a estas outras espécies de discurso e investigação.

52
Deve-se, por resultado, estar preparado para abraçar um ceticismo
generalizado “sobre as possibilidades da objetividade em geral” (FRTR: p.226),
pois esta é uma implicação lógica deste argumento.
O problema é que Carroll não crê que esta posição cética generalizada
seja realmente pretendida pelos críticos que negam a possibilidade da
objetividade no cinema não-ficcional com base no argumento da seletividade.
Afinal, eles sabem que existem “critérios intersubjetivos para avaliar as seleções e
interpretações” efetuadas nestas outras áreas do conhecimento, de forma a
validar suas alegações (Cf. p.229). E, no entanto, a descrença na objetividade de
todas as áreas do conhecimento é implicada pelo argumento da seletividade.
Além disso, essa posição nos deixa, ao mesmo tempo, com o problema
não solucionado de não ser possível distinguir adequadamente entre diferentes
tipos de empreendimentos fílmicos, mesmo que eles todos sejam de alguma forma
vistos como “subjetivos” (Cf. p.226). Seria útil distinguir, por exemplo, um filme
como Titicut Follies (1967) de um filme como Um Estranho no Ninho (1975)66.
Portanto, Carroll conclui que essa variedade do argumento da
impossibilidade de objetividade em razão da presença de seletividade é
inconsistente teórica e pragmaticamente, passando, então, ao exame de uma
segunda variedade do argumento.
Alguns descrentes da possibilidade de objetividade no cinema não-
ficcional argumentam, por outro lado, que “há algo de especial” numa obra fílmica
que “a torna inevitavelmente subjetiva, de uma maneira que a história e a ciência
não o são”. E a razão disso é que todo plano em um filme não-ficcional implica
num ponto-de-vista67, quer o cineasta esteja ou não ciente disto (Cf. p.227).

66
Carroll antecipa que alguns opositores poderiam tentar estabelecer a distinção entre esses
diferentes tipos de projetos fílmicos adotando categorias tais como “subjetivo-objetivo”, para o
primeiro filme, e “subjetivo-subjetivo” para o segundo. No entanto, esse tipo de construção
categorial representaria uma bagagem teórica/lingüística excessiva e desnecessária, que não
informa nada além do que já seria informado sem a utilização da expressão composta. Ela é,
assim, uma opção inútil (Cf. FRTR: p.227).
67
Embora não seja especificado por Carroll, compreende-se que esse argumento refere-se
tecnicamente apenas aos planos que são resultados de tomadas, i.e., que foram registrados por

53
Ou seja, a impossibilidade de objetividade no cinema não-ficcional não
incorreria simplesmente do fato de haver seletividade neste tipo de atividade/meio,
pois isso seria partilhado com outras atividades/meios. Em verdade, a
impossibilidade de objetividade do cinema não-ficcional incorreria do fato de seus
componentes mínimos, os planos, estarem imbuídos inextricavelmente por uma
carga subjetiva. Assim, haveria algo na natureza do cinema que o tornaria
essencialmente “subjetivo”.
Carroll observa, entretanto, que este argumento do plano como ponto
de vista está também equivocado. Pode-se perceber, de início, que a idéia de
“ponto de vista no filme” não é uma idéia única, mas sim uma “mistura de idéias”,
as quais, freqüentemente, não mantêm relação entre si (FRTR: p.227).
Trata-se, para usar uma expressão do domínio da lógica informal, de
um caso de “falácia de equivocação”68 (Cf. p.228). A expressão “ponto de vista no
filme” pode ter qualquer um dos seguintes sentidos (Cf. p.227):

1. Posição física da câmera;


2. Tipo de procedimento de edição69;
3. Perspectiva do autor, narrador ou personagem sobre algum elemento da
história70;
4. Visão de mundo do autor;

uma câmera. Maiores considerações sobre a questão da tomada serão realizadas posteriormente
(viz. 3.4.5).
68
Na falácia de equivocação, um mesmo termo/expressão aparece, em dado contexto, portando
significados diferentes, o que invalidaria as proposições ou inferências que se baseiam neste uso
cruzado. Um exemplo simples deste tipo de falácia pode ser observado no raciocínio a seguir: 1)
Todos as estrelas são corpos celestes; 2) Buster Keaton é uma estrela; 3) Logo, Buster Keaton é
um corpo celeste.
69
Também chamado de “raccord de olhar”, isto é, uma sucessão entre dois planos em que se cria
uma relação de “causa e conseqüência” entre eles, indicando que: a) alguém olha; e b) algo é
visto.
70
Este sentido é próximo ao que se chama, em literatura, de “foco narrativo”.

54
Cada uma destas noções de “ponto de vista no filme” representa um
conceito diferente, “discreto”. No primeiro caso, que podemos reconhecer como
representando o sentido literal da expressão, trata-se simplesmente da
constatação de um fato físico e necessário ao objeto/atividade cinematográfico: a
câmera, obviamente, deve sempre “ser colocada em algum lugar” (Cf. FRTR:
p.228).
No entanto, os outros sentidos da expressão não possuem esse mesmo
sentido literal. Seu sentido é metafórico, atribuído por extensão de sentido: usa-se
“a linguagem do posicionamento físico para caracterizar os valores e sentimentos”
do cineasta com relação ao que é representado (p.228).
E, apesar desta diferença de sentido, o que geralmente ocorre na
discussão sobre a impossibilidade de objetividade no cinema não-ficcional, é que
se passa do sentido literal de “ponto de vista” para algum de seus outros sentidos
metafóricos, como se o primeiro (posicionamento físico) necessariamente
implicasse os demais (“posicionamento” interpretativo, moral, etc.). No entanto, “os
dois fenômenos, embora empreguem o mesmo nome, são distintos” (p.228).
Há quem possa insistir na implicação necessária entre estes dois
fenômenos, postulando que o ponto de vista pessoal sempre determina um ponto
de vista da câmera. Entretanto, mesmo essa alegação é refutada por Carroll (Cf.
p.228), que lhe oferece diversos contra-exemplos71:

a) Câmeras que são ligadas acidentalmente, e gravam eventos sem que lhes
houvesse intenção prévia - e.g., planos aproveitados por Agnès Varda em
seu filme Os Catadores e Eu (2000);

b) Gravação de acontecimentos inesperados - e.g., a tomada da queda do


avião nas Torres Gêmeas, gravada pelos realizadores de 11/9 (2002)

71
Carroll na verdade só nomeia os tipos de situação em que não há ponto de vista pessoal
determinando o ponto de vista da câmera. Os filmes aqui indicados, onde estas situações podem
ser encontradas, são exemplos oferecidos por nossa conta.

55
enquanto estavam, em verdade, realizando um documentário sobre os
bombeiros de Nova Iorque;

c) Restrição da posição de câmera em função das circunstâncias – e.g., em


diversas cenas nas ruas de A Batalha do Chile (1975-9), não era possível
para o operador de câmera escolher “o melhor ângulo de filmagem”, visto
que o mesmo corria sério risco de vida durante os confrontos armados;

Todos esses casos representam tipos diversos de situações em que


não havia um “ponto de vista pessoal” determinando o “ponto de vista da câmera”.
A alegação de que todo ponto de vista da câmera é determinada por um ponto de
vista pessoal é, portanto, falsa.
O que não implica, contudo, que não possa haver casos em que haja,
de fato, um “ponto de vista pessoal” guiando a escolha do ponto de vista físico da
câmera. A única coisa que está sendo negada por Carroll é a implicação
necessária entre os dois fenômenos, que é o que é defendido pelos proponentes
do argumento do “filme como ponto de vista”; e não a sua vinculação eventual.
Neste debate sobre a impossibilidade de objetividade no cinema não-
ficcional, Carroll observa que o próprio conceito de “objetividade” também incorre
na falácia de equivocação (Cf. FRTR: p.230). São detectados pelos menos “três
conceitos diferentes de objetividade” (p.230):

1. Verdadeiro;
2. Representativo de todos (ou dos principais) pontos de vista sobre o assunto;
3. Ausência de ponto de vista;

Essas três noções de “objetividade” não são sempre compatíveis (a


segunda e a terceira são contraditórias), e Carroll nota que alguns críticos podem

56
efetuar a (confusa e sob-reptícia) alternância entre um e outro destes sentidos, no
curso de um mesmo debate.
O segundo sentido de “objetividade” soa mais como um “princípio de
tolerância político” do que “epistemológico”. Em muitas situações, a “conjunção de
todas as perspectivas sobre um dado assunto” resulta apenas em “contradição” e
“cacofonia”, ao invés de atingir uma suposta “verdade” (Cf. FRTR: p.231).
Por sua vez, o terceiro sentido também não parece totalmente coerente,
visto que “é impossível de se conceber um assunto totalmente desprovido de
algum referencial conceitual” (p.230).
Já o primeiro dos sentidos de “objetividade” parece ser mais
interessante. “Objetividade não é equivalente a verdade”, diz Carroll, apesar disso,
ambos estão relacionados de maneira importante (p.231). Em qualquer área de
pesquisa ou discurso haverá padrões de evidência e argumentação partilhados
pelos praticantes, que são reconhecidos como sendo “objetivos”, e cujo
cumprimento pretende indicar o “melhor método para se atingir a verdade” (p.231).
Um trabalho, assim, seja apresentado de forma escrita ou audiovisual,
seria “objetivo” em função de ele poder “ser avaliado intersubjetivamente” pelos
padrões estabelecidos na área de atividade em que ele se insere (Cf. p.231).
Enfim, Noël Carroll conclui que os argumentos que estipulam uma
impossibilidade, a priori, de o cinema não-ficcional ser objetivo, estão
equivocados.

3.1.3. (IN)DISTINÇÃO ENTRE FICÇÃO E NÃO-FICÇÃO

O segundo eixo de argumentação examinado por Carroll em FRTR trata


da questão da distinção entre o cinema de ficção e de não-ficção. Alguns dos
argumentos aqui levantados se assemelham aos argumentos sobre a
impossibilidade de objetividade nesta última categoria fílmica e, assim,
“manifestam as mesmas fraquezas” (Cf. FRTR: p.236).

57
Por exemplo, um conjunto de procedimentos bastante frouxo, incluindo
“manipulação, escolha, estrutura”, etc. é “implicitamente assumido ou
explicitamente empregado para se definir a ficção”, de uma maneira que “é difícil
imaginar algo que não o seja” (p.236) – “ficção” como “construção”.
Carroll exemplifica essa linha de raciocínio com uma passagem de
Jean-Louis Comolli caracterizando o processo de realização fílmica como sendo
efetuado através sucessivas seleções e interpretações de material, que
ulteriormente “constituem uma manipulação do documento fílmico” (p.236-237).
De aspecto parecido, Carroll evoca a posição de Christian Metz, para
quem “todos os filmes são ficcionais porque eles representam algo que realmente
não está ocorrendo na sala de exibição” – “ficção” como “representação”. Esse
argumento, contudo, não se sustenta, pois ele levaria a uma ficcionalização
generalizada de toda a forma de discurso (filmes, livros, palestras, etc.), pois que
nelas há sempre alguma forma de representação do assunto concernido. A
representação é uma operação necessária pela qual o mundo ou a realidade
possam fazer parte da linguagem (qualquer que o seja).
A “representação” não é, assim, condição suficiente para a “ficção” (Cf.
FRTR: p.237).
Há ainda o argumento de que os filmes não-ficcionais “são na realidade
ficcionais”, em razão de “empregarem os mesmos procedimentos narrativos” que
estes últimos. Novamente, essa alegação não se sustenta, pois a “narração é
comum tanto à ficção como à não-ficção”, não sendo suficiente para identificar
uma categoria ou outra (p.237). Esse tipo de alegação relegaria grande parte da
escrita histórica à categoria ficcional por fazer uso, por exemplo, de “flash backs”,
necessários ao correlacionamento de eventos passados (Cf. p.237).
No final, Carroll conclui que estas estratégias de distinção entre ficção e
não-ficção (ou antes, da estipulação de sua “indistinção”) através de
características formais das obras não são bem-sucedidas.
Segundo Carroll, em verdade a distinção entre estas duas categorias
ocorre através da indexação (indexing) das obras por parte de seus realizadores e

58
distribuidores, o que nos faz responder a cada uma delas de acordo com a
identificação que nos foi indicada (Cf. p.232; p.237-238). Ao se indexar um filme
como não-ficcional, portanto, seu realizador nos convida a interpretá-lo como se
referindo ao mundo real, e a recorrer a padrões objetivos de evidência e
argumentação para avaliar suas alegações de conhecimento (Cf. p.237-238).

3.1.4. CONSIDERAÇÕES

Em FRTR, como vimos, Noël Carroll examinou uma série de


argumentos relacionados ao cinema documentário, aqui também chamado de
cinema não-ficcional. Estes argumentos se desenvolvem em torno de dois eixos: a
suposta impossibilidade de objetividade nesta modalidade fílmica; e a distinção
entre ficção e não-ficção. Os dois eixos temáticos são analisados, de forma
bastante detalhada, através de versões diversas de sua aparição.
A posição de Carroll é de que muitos dos conceitos e raciocínios
empregados nestes argumentos (e.g., objetividade, subjetividade, ponto de vista,
ficção, documento) “são carregados de ambigüidades e equívocos” (Cf. FRTR:
p.224). O objetivo do autor, portanto, foi de esclarecer as ambigüidades, identificar
os equívocos, e demonstrar, assim, que tais argumentos “desconstrucionistas” não
se sustentam - objetivo que, ao final, parece ter sido atingido.
Contudo, uma impressão causada por FRTR é que, embora versando
sobre um tema de claro interesse para o campo dos estudos de cinema, este texto
foi escrito tendo como leitor presumido um estudioso de filosofia. A razão desta
impressão é que, em primeiro lugar, o próprio artigo fora publicado originalmente
em um periódico da área de filosofia, e não de cinema: Philosophical Exchange.
Apenas posteriormente é que este texto teria tido projeção mais relevante no
campo cinematográfico, quando de sua republicação em Theorizing the Moving
Image (CARROLL, 1996e).

59
Além disso, Carroll utiliza em FRTR uma vasta terminologia técnica,
recorrente, oriunda da área da filosofia, que assume a já familiaridade do leitor
com a mesma. Encontramos a menção a “falácias de equivocação” (Cf. FRTR:
p.228) e “de composição” (p.229), a expressões latinas como “tu quoque” (p.225),
“pari passu” (p.237) etc.; enfim, recorre-se a uma gama variada de terminologia
específica do campo filosófico, usada sem a devida contextualização ao “leitor não
iniciado”.
O resultado é que, ao menos para o leitor do campo do cinema, o texto
apresenta trechos de difícil compreensão e uma linha de raciocínio que se perde
de vista, já que Carroll se engaja na discussão de uma quantidade muito grande
de conceitos e argumentos, incluindo suas variações e sub-variações.
Isso sem mencionar ainda os problemas encontrados pelo leitor
estrangeiro, no que se refere a compreensão e tradução de passagens tais como
aquela em que Carroll procura estabelecer a diferença nos “modos de
representação do filme”, através de noções como “nominal” e “physical portrayal”,
e “depiction” (FRTR: p.240-242), noções que não possuem tradução precisa (ao
menos em português), e que representam ainda mais uma adição ao extenso
repertório teórico/terminológico mobilizado.
No fim, o emaranhamento dos conceitos e argumentos examinados
relativos ao cinema não-ficcional (Entangled in Nonfiction Film) parece produzir
uma espécie de emaranhamento no próprio texto.

3.2. Ceticismo pós-moderno

Em Nonfiction Film and Postmodernist Skepticism72 (2003b), Noël


Carroll analisa as abordagens de alguns teóricos de grande relevo no campo dos

72
Uma tradução do título seria: “Cinema Não-Ficcional e Ceticismo Pós-Moderno". Por economia,
de agora em diante adotaremos a sigla “PMS" para se referir a este texto.

60
estudos de cinema documentário: Michael Renov (Cf. PMS: p.168 et seq), Bill
Nichols (Cf. p.175 et seq) e Brian Winston (Cf. p.185 et seq).
Estes autores seriam representantes do que Carroll está a reconhecer
como uma “abordagem cética pós-moderna” em relação ao cinema documentário
(também chamado de “cinema não-ficcional”).
Segundo Noël Carroll, a área do cinema que mais rapidamente “invoca
a filosofia” talvez seja a área do cinema não-ficcional. Isto porque este tipo de
filme pretende “veicular informações sobre o mundo” e, assim, os teóricos de
cinema imediatamente “buscam suas convicções epistemológicas favoritas” para
avaliar e, mais freqüentemente, “questionar as alegações de conhecimento
realizadas por filmes não-ficcionais” (PMS: p.165). Muito do referencial adotado
nestas discussões perpassa pelo campo filosófico e, em alguma medida, seriam
mobilizados pelos autores mencionados acima.
De modo geral, a posição cética teria bastante proeminência na área
dos estudos de cinema e, por isso, ela necessita ser cuidadosamente discutida. O
objetivo de Carroll em PMS será, portanto, “examinar alguns dos principais
argumentos pós-modernos (...) concernindo o cinema não-ficcional”, que negam a
possibilidade de se “realizar filmes que estejam genuinamente a serviço do
conhecimento”73 (p.168).
Carroll nota que nesta posição há duas idéias principais operando (Cf.
p.165-166):

1. Há algo inerente à natureza do cinema não-ficcional que o torna incapaz de


atingir a objetividade.
2. Seletividade implica em enviesamento.

73
Há várias formas com que Carroll enuncia essa posição cética pós-moderna. Uma das primeiras
no texto alega que: “any claims to objective knowledge on behalf of a documentary filmmaker are
foreclosed a priori” (PMS: p.165). Sua tradução seria: “qualquer alegação de conhecimento objetivo
por parte do realizador de um filme documentário está a priori impedida”.

61
Essas duas idéias são então conectadas através de um pensamento
“essencialista”, que afirma que a mídia audiovisual é “por sua própria natureza
seletiva” e, assim, ela é por sua natureza enviesada (“incapaz de objetividade”)
(PMS: p.166).
Essas duas idéias principais são mobilizadas de formas variadas pelos
três autores mencionados e os referenciais teóricos em que eles se baseiam, e
Carroll buscará demonstrar os equívocos presentes nos mesmos.

3.2.1 MICHAEL RENOV

Michael Renov74, por exemplo, afirma que o filme documentário


“emprega muitos dos métodos e dispositivos de sua contraparte ficcional”, e que
“todas as formas discursivas – incluindo o filme documentário” constituem os
objetivos que pretendem apenas “descrever realisticamente” e “analisar
objetivamente” (Cf. p.168).
Renov pretenderia, segundo Carroll, “desconstruir a distinção entre não-
ficção e ficção”. Essa operação poderia ter por causa o fato de o campo do
documentário ter sido sempre “eclipsado” pelo da ficção; logo, uma tentativa de
estipular uma “paridade” do primeiro com o segundo expressaria um “desejo de
combater o filme de ficção ao juntar-se a ele” (p.168).
Uma conseqüência da posição de Renov seria a suposta negação das
alegações de conhecimento realizadas através do documentário. O pensamento
parece ser de que se não há diferença entre o filme não-ficcional e o ficcional,
então “as alegações do filme não-ficcional à objetividade ou à verdade não são
melhores do que aquelas do filme ficcional” (Cf. p.169).
Apesar da constatação de Renov sobre o compartilhamento
formal/estilístico existente entre o documentário e a ficção estar correta, Carroll
nos chama a atenção para o fato de que a conclusão tirada por Renov não o está.

74
Viz. Michael Renov (Ed.), Theorizing Documentary, New York: Routledge, 1993.

62
Pois, a “distinção entre não-ficção e ficção” não se baseia em diferenças
formas/estilísticas, então “não se pode desconstruir a distinção” apenas por essa
via (Cf. PMS: p.169).
Quando assistimos a um filme, este já nos vêm identificado, ou
“indexado” (indexed), como ficcional ou não-ficcional. Se ele é indexado como
“não-ficcional”, isto nos diz que ele “está comprometido com certos padrões de
precisão científica a atende a protocolos de objetividade”. E é nisso que nos
baseamos para avaliar tal filme (Cf. p.169).
Portanto, Carroll conclui que a tentativa de Michael Renov de
desconstruir a distinção entre ficção e documentário é falha.
Quanto à segunda alegação de Renov, de que os discursos/narrativas
constroem seu objeto de discurso75, e assim, o “falsificam” ou “ficcionalizam”,
Carroll mostra que ela “não é plausível” (p.172). Pois, um componente principal
dos discursos/narrativas é a “causalidade” (causation), e a causalidade, além de
fazer parte da realidade discursiva, “possui realidade histórica” (p.172).
Assim, apesar de discursos e narrativas apresentarem uma forma ou
“fechamento” que não está presente no mundo histórico, as “relações causais” que
existem no primeiro corresponderiam a relações causais existentes no segundo 76,
e é isso o que importa. Com base nisso podem ser realizadas alegações de
conhecimento perfeitamente aceitáveis por filmes não-ficcionais (da mesma forma
com que o fazem a escrita histórica), que serão então avaliadas pelo público, de
acordo com os padrões de evidência e argumentação apropriados ao assunto em
questão.

75
Ou, em outros termos, “os eventos-estruturas do mundo” a que os documentários pretendem
“fazer referência objetiva” não são, na realidade, “ontologicamente independentes” da instância
discursiva (Cf. PMS: p.171), de modo que essa instância, na realidade, “se referiria a nada” (Cf.
p.172).
76
Ou, antes, o público avaliará se os fatos e relações enunciados pelo autor correspondem,
realmente, a fatos e relações existentes no mundo histórico.

63
3.2.2 BILL NICHOLS

Um segundo teórico representante do ceticismo pós-moderno, Bill


77
Nichols , por sua vez, não recorre às mesmas “desconstruções superficiais” da
fronteira entre ficção e não-ficção (PMS: p.175).
Nichols alega que a “objetividade é impossível no documentário” por ela
ser “uma forma de representar o mundo que nega seu próprio processo de
construção”, e que “qualquer padrão de objetividade” possui “pressuposições
políticas implícitas” (Cf. p.175).
Carroll concorda que muitos documentários empregam pouco ou
nenhum tempo “revelando seu processo de construção para seus espectadores”.
Contudo, “não chamar a atenção” para estes processos não significa negá-los
(p.176, grifo do autor). Negar é, por sua vez, “um tipo específico de ato de fala”.
Além disso, Carroll se pergunta qual seria a importância da revelação ou negação,
pelo filme, de seu processo de construção (Cf. p.176-177). Porque é que “Nichols
atribui uma ênfase tão grande à reflexividade, e o que essa ênfase na
reflexividade tem a ver com a objetividade?” (p.177).
A hipótese de Carroll para essa valoração é que os estudiosos de
cinema se interessam principalmente por documentários de um tipo específico –
os “documentários de arte” (art documentary). Estes filmes demonstram possuir
uma “preocupação com os temas da reflexividade e subjetividade autoral”, com os
quais já estamos familiarizados através da “arte modernista e pós-modernista” (Cf.
p.177). Portanto, a reflexividade e subjetividade autoral, valoradas grandemente
por Nichols (e outros pesquisadores), seriam “gestos artisticamente significativos”,
e certamente muito interessantes, mas que são erroneamente tomados como
“requisitos para a objetividade” (p.177). A revelação ou não do processo de
criação de uma obra não constitui um requisito ou impedimento para sua
objetividade.

77
Viz. Bill Nichols, Representing Reality, Bloomington: Indiana University Press, 1991.

64
A alegação de Nichols sobre padrões de objetividade possuírem
sempre “pressuposições políticas” também é examinada por Carroll. Em primeiro
lugar, o que Nichols entende por “pressuposições políticas” parece ser um tanto
amplo: que “fatos são auto-evidentes”; que “persuasão retórica é apropriada”; e
que documentários pretendem que o público aceite que o que eles representam é
verdadeiro (Cf. PMS: p.176).
À alegação generalizada de Nichols, Carroll oferece um contra-
exemplo, através do filme City of Coral (1983), que é um documentário televisivo
sobre vida animal78, como tantos outros existentes. Este filme apresenta
informações sobre como funciona a fauna e flora dos recifes de corais.
Para Carroll, é difícil de acreditar que um documentário como este, do
tipo informativo, teria “pressuposições políticas” no sentido em que
costumariamente o entendemos, isto é, como possuindo uma agenda
política/ideológica velada (Cf. p.177). Este filme também não parece querer
persuadir o público sobre nada específico, com exceção talvez de que “o recife de
coral de St. Croix é interessante” (p.178). Tampouco o filme parece “assumir que
os fatos são auto-evidentes”, pois ele está constantemente preocupado em
“explicar tudo aquilo a que estamos vendo” (p.178)79.
A acusação de Nichols de que todos os documentários possuem
pressuposições políticas implícitas parece, para Carroll, derivar de uma confusão.
Diz-se que a “ideologia procede tomando falsidades politicamente motivadas como
se fossem verdades auto-evidentes” (p.179). Como resultado, passa-se a
desconfiar de “alegações de verdades auto-evidentes” no geral, especialmente
relacionadas a questões políticas. No entanto, é um erro inferir que todas as

78
Fernão Ramos (2008: p.24 et passim) chama esse tipo de filme de “documentário cabo”, que
representa o que é produzido como “documentário clássico contemporâneo”.
79
Talvez Nichols queria dizer que o que é colocado como um “fato auto-evidente” seja não o que
figura na imagem, mas as próprias asserções feitas pelo filme. Mas Carroll discorda ainda disso,
pois em vários momentos o narrador do filme indica que algumas de suas explicações são apenas
hipóteses, e.g., quando é dito que o corpo fino de um certo tipo de peixe talvez seja desta forma
para permitir que o peixe confunda seus predadores, ao se virar rapidamente, e dar a impressão
de ter desaparecido (Cf. PMS: p.178).

65
alegações de verdade auto-evidentes têm motivações políticas suspeitas, com
base no fato de que algumas destas alegações são falsidades motivadas
politicamente (Cf. PMS: p.179).
Há filmes documentários que “não assumem que existem fatos auto-
evidentes”, assim como há filmes que o fazem, mas que não contém uma
“pressuposição política” nos termos em que Nichols a caracteriza (Cf. p.179).
Portanto, o “tipo de paranóia metodológica praticada por Nichols”, manifesta nas
alegações da impossibilidade de objetividade no documentário, não se revelam
consistentes (Cf. PMS: p.183).

3.2.3 BRIAN WINSTON

Brian Winston80 é o terceiro teórico de relevo para o campo do cinema


documentário discutido por Noël Carroll. Winston propagandeia ostensivamente a
“tendência pós-moderna81 de desconfiança do cinema não-ficcional” com base
num “ceticismo global sobre as possibilidades de conhecimento e racionalidade”
(p.185).
O argumento de Winston é de que o cinema não-ficcional não pode
sustentar “alegações de objetividade”, pois o “ceticismo pós-moderno”, tomado
como sendo a posição epistemológica correta, nega a possibilidade de “padrões
objetivos de racionalidade em geral”, mantendo que a “racionalidade é
historicamente e contextualmente específica” (p.186).
No entanto, Carroll mostrará que o argumento de Winston é auto-
refutador. Mesmo que de forma “esquemática” (e através de um desenvolvimento
“obscuro”), →inston pretende “avançar razões” (da posição cética generalizada)
para suportar o que ele toma como “fatos” (da impossibilidade de objetividade no

80
Viz. Brian →inston, “The Documentary Film as Scientific Inscription”, in: Michael Renov (Ed.),
Theorizing Documentary.
81
Cuja adoção é caracterizada por Carroll como “pastiche pós-moderno”, pois se faz sem
argumentação sensata, mas apenas através de “uma série de citações” (Cf. PMS: p.185).

66
cinema não-ficcional). E, com isso, Winston espera que suas razões sejam, de
modo geral, convincentes aos seus interlocutores (Cf. PMS: p.186). Portanto, para
sustentar suas alegações de impossibilidade de objetividade/ausência de padrões
de racionalidade, →inston ele mesmo “está presumindo que há padrões objetivos
de racionalidade” (p.186).
Como a alegação de Winston não pode negar um fato que é pré-
condição de sua própria realização, Carroll conclui que a “posição de →inston”
sobre a impossibilidade de objetividade e de padrões objetivos de racionalidade é
“certamente paradoxal” (p.187).
Diante, portanto, das perspectivas de: alguns filmes documentários
poderem ser objetivos (e outros poderem não o ser); ou de não haver “nenhum
padrão de objetividade em qualquer aspecto de nossas vidas”; parece bem mais
razoável optar-se pela primeira delas, com o ônus da prova cabendo a Winston e
outros céticos pós-modernos (Cf. p.187).

3.2.4 CONSIDERAÇÕES

Ao longo de PMS, Noël Carroll examina as idéias de três teóricos de


relevo na área dos estudos de cinema documentário (Michael Renov, Bill Nichols e
Brian Winston). Estes teóricos representariam o que Carroll está a identificar como
sendo uma posição cética pós-moderna sobre o cinema documentário/não-
ficcional, posição esta que teria uma dominância neste campo.
Ao longo de PMS, apesar de serem examinadas idéias desenvolvidas
por caminhos e referenciais teóricos diversos, é possível encontrar um certo
padrão entre elas. Podemos identificar uma “versão fraca” do argumento cético,
que trata de um “ceticismo local sobre o documentário” (Cf. PMS: p.185),
delineada da seguinte forma:

1. O cinema documentário faz uso de meios audiovisuais.

67
2. Se são usados meios audiovisuais, então são efetuadas operações de
seletividade.
3. Se há seletividade, então há enviesamento.
4. Se há enviesamento, então não pode haver objetividade.
5. Logo, no documentário não pode haver objetividade.

Esse tipo de raciocínio, no entanto, está equivocado. Noël Carroll


demonstra, primeiramente, que operações de seletividade não são exclusivas aos
meios audiovisuais. Outras áreas de investigação (e.g., a história, as ciências)
também recorrem à seletividade. E, na medida em que o fazem, sua seletividade
não impede que consideremos (algumas de) suas descobertas e alegações como
objetivas ou epistemologicamente válidas. Logo, não há razão para considerar que
a seletividade do cinema não-ficcional necessariamente invalide suas alegações
de conhecimento, pois se pode haver seletividade e ainda assim haver
objetividade em outras áreas do conhecimento, também o poderia haver no campo
do cinema documentário. Ou seja, “se há seletividade, então há enviesamento” é
uma proposição falsa.
Haveria ainda uma “versão forte” do ceticismo pós-moderno, um
“ceticismo global quanto às possibilidades de conhecimento e racionalidade” (Cf.
PMS: p.185). Este ceticismo generalizado pretende combater o contra-argumento
anterior, sustentando que a seletividade presente nas outras áreas de
investigação e discurso é ideologicamente motivada, e que não existem padrões
de racionalidade objetivos que possibilitem que se façam alegações de
conhecimento. Assim, a objetividade estaria necessariamente ausente, tanto no
cinema documentário, como também nas outras áreas.
Carroll, contudo, mostra que esse argumento cético generalizado é
auto-refutável:

1. Suponha-se que não há padrões objetivos de racionalidade.

68
2. Para uma alegação de conhecimento ser sustentada, ela deve ser suportada
por padrões objetivos de racionalidade.
3. 1 é uma alegação de conhecimento.
4. Logo, 1 deve ser suportada por padrões objetivos de racionalidade.
5. Se 1 é verdadeira, então não há padrões objetivos de racionalidade.
6. Logo, se 1 é verdadeira, então não pode ser que 1 seja verdadeira82.
7. Logo, não é o caso que 1 seja verdadeira.

A refutação de Carroll opera através da “redução ao absurdo” da


posição cética generalizada: se, como é defendido, não há realmente nenhum
padrão objetivo de racionalidade; então não haveria nada que garanta que não há
nenhum padrão objetivo de racionalidade; logo a primeira afirmação não pode ser
sustentada, e essa posição cética é desmantelada.
Embora tendo retomado em PMS argumentos da impossibilidade de
objetividade já discutidos em FRTR, Carroll parece ter aqui “refinado” sua
discussão, apresentando-os de maneira mais clara, e dialogando efetivamente
com outros estudiosos do campo.
Portanto, este texto, ao contrário de FRTR, parece pretender se dirigir
de maneira direta aos estudiosos de cinema. Um fato que corrobora esta
impressão é que PMS foi publicado originalmente não num periódico de filosofia
(como FRTR o fora), mas numa coletânea especificamente dedicada à revisão do
campo da teoria do cinema: Post-Theory: Reconstructing Film Studies
(BORDWELL; CARROLL, 1996).
É interessante notar algo mais a respeito dessa dialética entre cinema e
filosofia. Carroll iniciara PMS notando que a área do cinema não-ficcional tem o
costume de recorrer à filosofia em suas discussões, provavelmente por seus
filmes lidarem com alegações de conhecimento (Cf. PMS: p.187). No entanto,

82
A forma lógica deste tipo de proposição seria “A & ~A”, o que contradiria uma das leis básicas da
lógica clássica, a lei da não-contradição, que determina que uma proposição não pode ser
verdadeira e falsa ao mesmo tempo (Cf. MORTARI, 2001).

69
após analisar a posição de três teóricos de relevo para essa área de estudos,
Carroll lamenta que “a filosofia que atrai os estudiosos do cinema não-ficcional
seja rasa ou superficialmente compreendida” (PMS: p.188).
Para Carroll, a filosofia mobilizada por estes estudiosos muito
freqüentemente “é aceita acriticamente como uma premissa geral para
desacreditar argumentos” (p.188). Parece haver também, assim, no campo do
cinema documentário, um mesmo problema que Carroll observara de maneira
mais ampla no campo do cinema, que é a obtenção, pelos estudiosos, de “suas
premissas filosóficas preferidas de fontes secundárias”, sem “submeter essas
premissas à crítica”, mas tratando-as como “axiomas infalíveis” que serão “usados
dedutivamente na crítica e teoria do cinema” (p.188).
A solução para este mal, Carroll considera, seria os “teóricos de cinema
se tornarem filósofos eles mesmos” e aprenderem a escrutinizar as alegações
desconstrucionistas que sustentam, com a mesma energia que utilizam para
enunciá-las. Só assim para este campo se desenvolver para além de seu presente
estado de “arrogante sloganização” (arrogant sloganeering) (Cf. PMS: p.188-189).
Em outros termos, Noël Carroll exorta os teóricos de cinema a realmente
estudarem filosofia antes de procurar mobilizá-la de forma irresponsável ou
ingênua.

3.3. Traços fotográficos

Diferente do que ocorrera em Nonfiction Film and Postmodernist


Skepticism, onde Noël Carroll analisava uma posição mais geral existente nos
estudos de cinema documentário, em Photographic Traces and Documentary
Film83 (CARROLL, 2003c) Carroll se põe a examinar uma teoria particular do

83
Sua tradução seria “Traços Fotográficos e Cinema Documentário”. Por economia, adotaremos a
sigla “PTD” para se referir a este texto.

70
documentário. Trata-se da teoria do “documentário como traço”, proposta por
Gregory Currie (1999). Vejamos, em linhas gerais, o que Currie propõe.

3.3.1 TRAÇOS VISÍVEIS

Em Visible Traces: Documentary and the Contents of Photographs84,


Currie Gregory (1999) percebera que as definições de “documentário” encontradas
tanto em dicionários, quanto em John Grierson, quem inaugurou seu uso na língua
inglesa (viz. 3..4.1), seriam insuficientes para definir este campo atualmente (Cf.
CURRIE, 1999: p.285). O autor propõe, assim, em Visible Traces, sua própria
definição para esta modalidade cinematográfica.
Para tanto, Currie recorre à distinção entre “traço” (trace) e
“testemunho” (testimony), que seriam dois tipos diversos de representação85. O
testemunho faz parte de uma categoria representacional que é “mediada pelas
intenções de seu produtor” (Cf. p.287), o que não ocorre com o traço. A noção de
traço (viz. 3.4.5) remete ao processo de base fotográfica para criação de imagens:
“uma fotografia é um traço de seu objeto”, tendo sido “deixada no mundo” por ele
mesmo (Cf.p.286).
Segundo Currie, “um documentário deve possuir traços de seu tema, e
não apenas testemunho dele” (Cf. p.286). As imagens de base
fotográfica/cinematográfica constituem um tipo único e importante de “fonte de
informação” (Cf. p.288). Portanto, “possuir traços” seria condição necessária para
uma obra ser um documentário. Mas não é condição suficiente (Cf. p.289).
“Narrativas” também são “elementos constituintes de documentários”.
Para Currie, narrativas fílmicas são documentárias se elas tiverem seu “sentido”
advindo dos traços visuais que as constituem (Cf. 290).

84
Sua tradução seria: “Traços Visíveis: Documentários e os Conteúdos de Fotografias”.
85
Currie reconhece ainda a existência de outras categorias representacionais, como as simulações
(simulations), embora estas não sejam relevantes, para ele, para tratar do cinema documentário
(Cf. CURRIE, 1999: p.287).

71
Assim, uma definição sintetizada de “documentário” oferecida por Currie
determina que “documentários são narrativas fílmicas cujas imagens suportam a
narrativa (principalmente) em razão de serem representações fotográficas”, isto é,
traços (Cf. CURRIE, 1999: p.296; p.291).
Currie apresenta ainda outras versões de definição através de três
fórmulas conceituais (Cf. p.293), contudo, a essência de sua abordagem está já
indicada nesta definição preliminar. As fórmulas posteriores, um tanto mais
complexas que aquelas usadas por Carroll (viz. 3.4.3.3), causam a impressão de
um desnecessário “floreio” terminológico, e comprometem grandemente seu
entendimento por estudiosos de cinema que não possuem formação filosófica.

3.3.2 AVALIAÇÃO DE CARROLL

Noël Carroll considera Visible Traces, assim como outras obras de


Currie, um texto “estimulante e cuidadosamente construído” (PTD: p.225). Apesar
disso, Carroll não deixa de notar alguns problemas na teoria lá proposta.
Primeiramente, apesar de se tratar de uma teoria de um autor
particular, Carroll percebe que a essência desta abordagem “não é incomum à
teoria do cinema” (PTD: p.226). Há noções de “documentário” que remontam à
primeiras décadas do cinema, que baseiam-se na “capacidade da fotografia de
produzir um documento”, cuja “proveniência causal lhe dá uma autoridade
evidenciativa não compartilhada por pinturas e testemunhos” (p.226, grifo do
autor). Além deste “uso positivo” da noção de “traço fotográfico”, esta perspectiva
também foi utilizada por teóricos com o propósito contrário – demonstrar que
“muitas das imagens em filmes documentários não funcionam como documentos
literais do que representam”, e que, portanto, tais filmes não seriam “objetivos”
(p.226). Quanto a isso, Carroll confessa estar satisfeito por não ter sido esta a
direção seguida por Currie em sua teorização (Cf. p.226), já que este é um tema
constantemente debatido por Carroll.

72
Pela definição existente na teoria de Currie, onde há uma grande e
essencial valoração do traço fotográfico, Noël Carroll depreende que, para aquele
autor, “o documentário ideal” (conceitualmente falando) seriam as imagens
capturadas por câmeras de vigilância86. Isso porque tal “documentário” seria “um
registro causalmente produzido e não-intencionalmente mediado dos eventos
transcorridos ante a câmera” (Cf. PTD: p.226). Esse modelo, contudo, não condiz
com nosso uso ordinário do conceito de “documentário”.
Uma inconsistência presente na teoria do documentário como traço é
que, como sabemos, “muitos documentários usam livremente imagens de
arquivo”. Por exemplo: “tomadas de Hitler falando, produzidas em uma ocasião,
podem ser usadas para representar Hitler falando em outro momento de sua
carreira” (p.227). E a teoria de Currie, entretanto, não prevê esse tipo de
procedimento fílmico, pois, para ela, o tipo de representação que as imagens
possuem em um documentário é apenas uma representação literal e específica do
que estava presente diante da câmera. O conceito de “documentário” de Currie
não permite que haja uma representação visual do tipo “simbólica”87.
Carroll conclui que a teoria de Currie é inconsistente com este
procedimento formal bastante comum ao gênero. Portanto, conter uma
“preponderância de imagens que são representações-traço literais” do que elas
representam não pode ser uma “condição necessária para a aplicação” do
conceito de documentário (Cf. p.227).

86
De nossa parte, não concordamos com essa alegação de Carroll. Visible Traces não nos parece
permitir que se depreenda que o documentário ideal, na visão de Gregory Currie, seriam as
tomadas registradas por câmeras de vigilância, pois que a esse registro visual faltaria narrativa,
que é uma condição necessária, segundo Currie, para um documentário. Esse ponto em disputa é
evidenciado pelo próprio Currie, na réplica que faz em Preserving the Traces: An Answer to Noël
Carroll (CURRIE, 2000: p.306). Carroll está ciente de que a presença de uma narrativa é, para
Currie, uma condição necessária de um documentário, mas ele ainda assim sustenta que “nem
todos os documentários são narrativos” (Cf. PTD: p.229). Pensamos que talvez o problema aqui
seja que cada um destes autores está a se apoiar implicitamente em um conceito diferente de
“narrativa”.
87
Por exemplo, na teoria de Currie, uma tomada visual x presente em um filme documentário não
poderia significar “carros modernos”, mas sim teria de significar unicamente os “carros a, b, e c”
que nela figuram.

73
Além de a teoria de Currie impossibilitar que consideremos como
“documentários” filmes que trabalham com imagens de arquivo 88, ela também
impede que hajam “documentários sobre o futuro” (Cf. p.28), sobre o passado, ou
sobre qualquer local de acesso interdito (e.g., profundezas oceânicas, outros
planetas, etc.), em razão de não ser possível a existência de traços fotográficos
destas situações. Ora, mas a programação documentária televisiva (e.g., History
Channel, Discovery Channel, National Geographic) ocasionalmente nos oferece
casos de “documentários” contendo estas situações.
Logo, uma vez mais a teoria do documentário como traço não parece
estar coerente com as evidências empíricas disponíveis. Ser constituído
preponderantemente por traços visuais dos fenômenos representados não pode
ser uma condição necessária para um filme ser um documentário.
E, para Carroll, esta condição tampouco pode ser uma condição
suficiente para se definir um filme como documentário. Ela não é capaz de
distinguir “verdadeiros documentários” de outros filmes que também são
constituídos preponderantemente de imagens-traço, como muitos filmes das
vanguardas históricas o fizeram (Cf. p.228). Ballet Mécanique (1924), por
exemplo, é composto preponderantemente por imagens-traço de objetos em
movimento, mas não é classificado como um documentário (Cf. p.228). Outro
exemplo, Serene Velocity (1970), é composto inteiramente por planos que são
imagens-traço de um corredor de uma instituição, mas este filme também não é
um documentário (Cf. p.228).
Apesar de todos estes pontos de discordância, Carroll reconhece que
Currie realiza “muitas observações valiosas” em Visible Traces, como a explicação
do apelo existente nas imagens-traço; a pertinência dessa propriedade para
teóricos do cinema anteriores, como André Bazin; e seu debate geral bastante útil
sobre o traço (Cf. PTD: p.230).

88
Para sermos mais precisos, tratam-se dos filmes que usam as imagens de arquivo desta forma
mais “livre”, como se fossem “imagens genéricas” dentro do tema mais geral abordado. O
jornalismo televisivo utiliza esse tipo de imagem cotidianamente, e essa parece ser a principal
função atendida pelos bancos de imagem virtuais (stock images).

74
Contudo, num aspecto mais crítico, Carroll conclui que a teoria do
documentário como traço, de Currie, efetua uma “redefinição estipulativa” ou
“revisionista” do documentário, que não se adéqua a nosso uso ordinário do
conceito (PTD: p.230). Se essa maneira de “traçar a fronteira entre o
documentário e o não-documentário” teria realmente, como afirma Currie,
interesse para certos propósitos, fica ainda a cargo de Currie definir “que
propósitos seriam estes” (Cf. p.230), pois que, na avaliação realizada até o
momento, a mesma não se mostra coerente com o que comumente concebemos
como documentário.

3.3.3 CONSIDERAÇÕES

Apesar dos pontos discutidos por Noël Carroll, parece-nos que sua
análise da teoria do documentário como traços, de Gregory Currie, foi bastante
leniente - talvez por Currie fazer parte da mesma “comunidade discursiva
acadêmica” que Carroll? 89
Há diversas passagens, expressões ou conceitos ambíguos e obscuros
em Visible Traces, e nem todos eles são postos à luz por Carroll. Por exemplo,
não é claro o que Currie pretende significar com a proposição de que existem
“partes documentárias” em um filme documentário, e de que ambos devem ser
definidos simultaneamente para que não se caia em um “círculo hermenêutico”
(Cf. CURRIE, 1999: p.286). Como também não é claro a necessidade do recurso à
noção de “independência de crença” para as imagens fotográficas (Cf. p.286),
além de outros conceitos por ele invocados, que parecem trazer mais obstáculos
do que facilidade à compreensão de sua teoria.
Perguntamo-nos também porque é que Currie não recorre aos
conceitos/terminologia da semiótica Peircena, já que o autor parece se esforçar

89
Ambos compartilham referenciais teóricos cognitivo-analíticos, além de publicarem artigos nos
mesmos periódicos (e.g., The Jounal of Aesthethics and Art Criticism) ou coletâneas (e.g., Film
Theory and Philosophy).

75
em tentar definir por sua própria conta os tipos de relação que as imagens podem
ter com os objetos (Cf. p.287 et passim), quando tal referencial teórico já oferece
ferramentas para isso (e.g., os conceitos de ícone, índice e símbolo).
A teoria de Currie parece tentar preservar algum potencial
epistemológico (“objetividade”?) para o cinema documentário, mas o faz de uma
maneira questionável. Ao tornar essencial para o gênero o “traço”, ao invés do
“testemunho”, Currie tenta se precaver contra possíveis “inferências equivocadas”
que podem se originar deste último método representacional (Cf. CURRIE, 1999:
p.288), e que supostamente não se originaria do primeiro.
Contudo, isso parece levar Currie a cometer o equívoco da “falácia de
composição”, ou seja, ele assume que propriedades pertencentes às imagens-
traço (os planos do filme obtidos por uma câmera) seriam comutativa e
instantaneamente partilhas pelo filme como um todo.
Currie parece assumir que os planos são autônomos e se esquece de
que sempre há acréscimo/alteração de sentido dos mesmos, decorrente da
montagem, comentários, títulos, etc. De forma que, ao tornar os traços essenciais
ao gênero documentário, Currie não está garantindo sua “objetividade”, visto que
“inferências errôneas” podem ser realizadas não apenas pelo público, à partir das
imagens, mas também no próprio filme, através dos procedimentos mencionados
(Cf. p.288 et passim).
Uma propriedade do traço fotográfico, que parece ser grandemente
valorizada por Currie, em detrimento dos outros procedimentos de representação,
é seu “potencial de entropia”, se é que assim o podemos designar; ou seja, o
potencial de uma imagem em “registrar” informações/acontecimentos à revelia da
intenção de seu criador (a tal “independência de crença” mencionada pelo autor).
Ora, mas será que isso, ao final, não indicaria que a teoria de Currie
constitui um modo de classificação comendatório? Currie não estaria valorando os
traços formais/estilísticos de sua predileção, e tentando transformá-los em
condições necessárias ao pertencimento à categoria do cinema documentário,
expediente de pensamento comum na história da arte?

76
Embora Currie inicie Visible Traces afirmando que sua “maneira de
dividir o território [cinematográfico] é legítima” e “interessante” para “certos
propósitos” (CURRIE, 1999: p.285), ao final, a impressão que fica é que sua
abordagem está a sobre-teorizar o apelo fenomenológico que este autor aprecia
nas imagens de base fotográfica, enquanto sua excessiva evocação
terminológica/conceitual dificulta que avaliemos adequadamente as proposições
que sustenta.

3.4. Cinema da asserção pressuposta

As idéias de Noël Carroll sobre o conceito que propõe, de cinema da


asserção pressuposta (films of presumptive assertion), são desenvolvidas no texto
intitulado “Fiction, Non-Fiction, and the Film of Presumptive Assertion: A
Conceptual Analysis” (CARROLL, 1997)90.
Este texto foi publicado originalmente em 1997 como capítulo da
antologia Film Theory and Philosophy, organizada por Richard Allen e Murray
Smith, dois pesquisadores ligados a abordagens cognitivo-analíticas do cinema91,
às quais eles pretendiam justamente dar maior visibilidade através desta
coletânea. O texto de Carroll, portanto, exemplifica este tipo de abordagem,
aplicada ao objeto “cinema documentário”.
A mesma versão de CAP-EN foi, alguns anos depois, re-publicada por
Carroll em Engaging the Moving Image (CARROLL, 2003a), um de seus livros que
apresenta coletâneas de artigos seus - tal como Theorizing the Moving Image
(CARROLL, 1996e) também o faz.

90
Por economia, de agora em diante adotaremos a sigla “CAP-EN" para se referir a esta versão
original e em inglês do texto.
91
Em oposição, por exemplo, a abordagens ideológicas, psicanalíticas ou semiológicas que, como
vimos anteriormente, são assumidas como posições de trabalho antagônicas.

77
Posteriormente, a tradução para português de CAP-EN foi realizada por
Fernando Mascarello92. O texto traduzido, “Ficção, não-ficção e o cinema da
asserção pressuposta: uma análise conceitual” (CARROLL, 2005)93, foi publicado
no segundo volume (Documentário e Narratividade Ficcional) da importante
coletânea organizada por Fernão Ramos (2005b), Teoria Contemporânea do
Cinema, que disponibiliza aos leitores brasileiros textos de diversos pesquisadores
afins aos tipos de abordagem mencionados acima94, como é o caso de David
Bordwell, Kendall Walton, Richard Allen, Murray Smith, Gregory Currie – além do
próprio Noël Carroll.
Visto não termos encontrado versão mais recente deste texto,
assumiremos, assim, que CAP apresenta a versão atual do pensamento do autor
a respeito do documentário, no que concerne à definição deste gênero. Remeter-
nos-emos, portanto, nesta seção do trabalho, continuamente à esta versão
traduzida do texto, assumida como padrão.
Contudo, visto que estaremos nos debruçando sobre o texto de forma
minuciosa, pode haver casos em que percebamos alguma variação de sentido ou
conotação, mesmo que sutil, entre trechos ou expressões do texto original, e seus
correspondentes na versão traduzida. Se, ao notarmos alguma destas variações,
recearmos que ela possa implicar em algum inconveniente para nossa análise,
optaremos, neste caso, por remeter ao texto original (CAP-EN).
Ressaltemos que este tipo de flutuação semântica não deve intervir na
fruição do texto pela grande maioria dos leitores e, certamente, não constitui
nenhum demérito da tradução.

92
Fernando Mascarello é professor de disciplinas do curso de Cinema da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (UNISINOS) e membro ativo da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e
Audiovisual (SOCINE). Dedica-se, dentre outros temas, ao estudo da Recepção e Crítica
Cinematográfica, e Teoria e História do Cinema.
93
Por economia, de agora em diante adotaremos a sigla “CAP" para se referir a esta versão
traduzida do texto.
94
A coletânea (RAMOS, 2005b) também reserva espaço para apresentar textos de pesquisadores
que representam abordagens diferentes destas, para que os leitores possam ter uma imagem mais
enriquecida do campo internacional atual dos Estudos de Cinema.

78
3.4.1. O PROBLEMA

Há quem diga, em se tratando de filosofia, que “todo conceito remete a


um problema, a problemas sem os quais não teria sentido (...)”95.
Pois bem, talvez seja o caso, já que estamos a tratar da produção de
um filósofo, que uma maneira eficiente de se obter uma compreensão clara do
conceito que nos concernirá, de cinema da asserção pressuposta, assim como do
texto em geral em que ele é proposto, seja o entendimento do problema que fora
detectado, bem como, em função dele, do objetivo proposto pelo autor. E, para
nossa conveniência, ambos são identificáveis na introdução de CAP (p.69-72).
Noël Carroll inicia seu artigo “Ficção, não-ficção, e o cinema da
asserção pressuposta: uma análise conceitual” com uma constatação: de que,
tanto no campo dos estudos de cinema, por um lado, como na cultura, de modo
mais amplo, encontra-se uma área de atividade que costuma ser denominada, na
maior parte das vezes, como “documentário” - ou ainda, em certas ocasiões, como
“filme de não-ficção” (CAP: p.69).
Essa constatação do uso de um termo comum, “documentário”, por
diferentes comunidades discursivas, atesta a importância do termo e, assim, a
relevância do empreendimento a que o autor se dedica, ao mesmo tempo em que
serve de pretexto para ele circunscrever o problema que o empreendimento
pretenderá solucionar.
Explica Carroll que, embora este tipo de denominação possa ser útil
96
“para fins práticos” , ela, contudo, não é suficientemente precisa “do ponto de

95
Cf. Gilles Deleuze; Félix Guattari, “O que é um Conceito?” em “O que é a Filosofia?”, 2a. ed.,
São Paulo: Ed. 34, 1997, p.27.
96
Como, por exemplo, para se separar, numa vídeo-locadora, uma estante que conterá filmes do
tipo denominado, de outra estante que não conterá filmes que recebam esta denominação; ou,
ainda, para um realizador, que pretende inscrever seu filme em um festival, selecionar a categoria
que recebe esta denominação, ao invés de uma outra categoria, que não a receba. Ambos
exemplos revelariam o “bom uso” da denominação para a solução de “problemas práticos”.

79
vista teórico”97 (CAP: p.69). E, para melhor avaliar a imprecisão detectada, Carroll
recorre a um procedimento comum à vertente filosófica da filosofia da linguagem
ordinária, qual seja, o exame do uso do conceito em pauta.
Contextualizando a origem deste uso98, Carroll nota que o “uso corrente
do termo ‘documentário’”, com a intenção de designar o campo fílmico que
costumamos razoavelmente identificar através dele, teria derivado do cineasta
inglês John Grierson (1898-1972), que adotara o termo “documentário” para se
referir a prática fílmica que inaugurou e difundiu (CAP: p.70)99.
Contudo, ao introduzir o termo “documentário”, Grierson tinha em mente
algo bem específico, segundo o que podemos perceber pela definição por ele
oferecida: “o tratamento criativo das “‘atualidades’”100 (p.70).

97
Como, por exemplo, quando em um seminário acadêmico, após a exibição de um filme, um
debatedor comenta: “- Mas isso que vimos não é um documentário”; enquanto um outro responde:
“- Pelo contrário, é sim!”; o que geraria uma situação inconveniente, onde cada uma das partes
possui uma avaliação categorial diferente, sem, contudo, terem clareza quanto a incongruência de
propriedades que tacitamente atribuem à categoria. Este exemplo revelaria um “mau uso” da
denominação, que se poderia reconhecer como um caso de falácia de equivocação (viz. nota 68).
Casos como esse, embora não tão simplistas e diretos, são também encontrados em eventos de
especialistas da área. Rememoramos um exemplo ocorrido na 14ª edição do festival de
documentários “É Tudo Verdade”, em 2009. Numa das mesas de debate, o documentarista
convidado Avi Mograbi realizou comentários questionando a legitimidade da aceitação e exibição
do filme Moscou (Eduardo Coutinho, 2009) pelo festival, devido a ele, supostamente, não estar
contemplado na categoria fílmica “documentária”. Cf.
<www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0502200928.htm>. Cf.
<http://cinema.uol.com.br/ultnot/2009/03/30/ult4332u1045.jhtm>. Acesso em: 19 mai. 2014.
98
Para sermos mais precisos, devemos especificar aqui que se trata dos primeiros usos do termo
na língua inglesa (documentary), visto haverem evidências (Cf. GRIERSON, 1966: p.145) de que o
termo já teria sido utilizado antes, na França (documentaire), nos anos de 1920 (CARROLL, 2005:
p.70, nota 2). Contudo, visto que foi o uso do termo dentro do vocabulário e prática ingleses que o
consagrou, a consideração de John Grierson como marco inicial constitui uma escolha com
praticidade de circunscrição e coerência com o projeto em pauta.
99
Forsyth Hardy (1966: p.13), compilador de textos de Grierson sobre o documentário, afirma que
a primeira ocorrência do termo em inglês, “documentary”, teria se dado numa resenha escrita por
Grierson em Nova Iorque, em 1926, sobre o recém-lançado filme de Robert Flaherty, Moana
(1926). A abordagem metodológica e produção fílmica de Flaherty foram algumas das principais
inspirações do projeto documentário de Grierson.
100
Carroll credita a fonte desta definição a Paul Rotha, Documentary Film, 2a. ed., London: Faber,
1952 (publicado originalmente em 1935). Encontramos a mesma definição (“the creative treatment
of actuality”) atribuída a Grierson por Forsyth Hardy (1966: p.13), em Grierson on Documentary,
cuja publicação original se deu em 1946.

80
Esta definição pode ser dividida entre um nome próprio 101
(“as atualidades”) e uma qualificação (“o tratamento criativo de”). Esclareçamos
primeiro o nome próprio utilizado.
“Atualidade” é um termo atribuído a um tipo (às vezes variado e) muito
comum de “filme” dos primeiros anos do cinema(tógrafo), na virada da déc. 1890 e
início da déc. 1900. Tratava-se de um “amálgama indistinto” que incluía tanto
registros (tomadas “puras”; “vistas”) como reconstituições de fatos do cotidiano
(Cf. DA-RIN, 2006: p.31-33).
A qualificação (“tratamento criativo de”) presente na definição de
Grierson, por sua vez, modifica o modo como o nome próprio (“atualidades”) é
apresentado, possuindo “uma função bastante particular” de “distinguir o
documentário griersoniano de objetos como as actualités de Lumière e os
cinejornais” (CAP: p.70, grifo nosso).
Ou seja, curiosamente, na definição de “documentário” proposta por
Grierson, opera-se, num nível, uma referência à prática fílmica das “atualidades”
para, simultaneamente, e em outro nível, assinalar um afastamento em relação a
esta mesma prática.
Essa diferenciação pautava-se, para Grierson, no reconhecimento
(atribuição?) de uma propriedade que sua prática fílmica documentária possuiria,
enquanto que aquela outra prática, das atualidades, não – a propriedade de
possuir uma “dimensão criativa” (CAP: p.70, grifo nosso). Esta propriedade seria,
por sua vez, um indicativo de uma importante intenção de Grierson para com seu
projeto fílmico documentário: a de ser “concebido para ser artístico” (CAP-EN:
p.173).
Na falta de maior especificação, e dado o contexto, podemos supor
que, ao utilizar o termo “artístico” para se referir as intenções do projeto de
Grierson, Noël Carroll tem em mente características tais como a “mobilização

101
Utilizamos aqui a expressão “nome próprio” como um tipo de designação ampla, incluindo
nomes próprios estritamente falando, pronomes demonstrativos, descrições definidas, etc., de
forma parecida com a qual Gottlob Frege, por exemplo, usa o termo em “Sobre o Sentido e a
Referência (1892)” (Cf. FREGE, 2009: p.131, nota 11).

81
consciente das matérias-primas disponíveis”, o “investimento de
pensamento/planejamento” no trabalho em mãos, a “dotação de estrutura
inteligível” ao mesmo, etc. Em suma, o adjetivo parece relacionar-se, aqui, com a
mobilização de formas sensíveis de maneira a construir padrões e combinações
que revelem ser fruto de uma atividade inteligente e decifrável – demonstrando
haver “trabalho de pensamento”.
Esse âmbito de significação parece ser confirmado por Carroll, quando
nos lembra que as “ambições de Grierson” estavam próximas das de “outros
cineastas e teóricos da época do cinema mudo e início do sonoro”, que se
esforçavam para combater o “preconceito de que o cinema serviria tão-somente
para reprodução mecânica e submissa do que fosse posicionado em frente da
câmera”. Para eles, o cinema teria um potencial/destino muito maior, pois era
capaz de “moldar a realidade criativamente” (CAP-EN: p.174-5; CAP: p.70; grifo
nosso).
Em outras palavras, essa primeira onda de teóricos/entusiastas do
cinema tinha por projeto “provar que o cinema era ‘Arte’”, projeto esse muito
semelhante ao de Grierson - “provar que se pode criar ‘Arte’ utilizando registros e
reconstituições de fatos do cotidiano”.
Portanto, o tipo de atividade fílmica proposta por Grierson e designada
por “documentário”, isto é, o universo de referência do conceito griersoniano de
documentário parece ser entendido como:

uma obra fílmica (ou conjunto de) que: 1) se utiliza de registros e


reconstituições de fatos do cotidiano; e que 2) mobiliza estes materiais
através de padrões e combinações que revelem ser fruto de uma
102
atividade inteligente e decifrável.

102
Não temos a pretensão de que esta formulação constitua uma tradução precisa, e de aceitação
generalizada, do conceito griersoniano de “documentário”, para o expediente analítico das
“condições necessárias e suficientes”. Esta formulação visa, apenas, a atender as necessidades
imediatas de nossa discussão.

82
Pelas últimas considerações, percebe-se que as próprias atualidades
(e.g., L’ARRIVÉ du train en gare de La Ciotat, 1895) não estavam contidas no
universo de referência do conceito griersoniano de documentário.
Entretanto, se nos atentarmos ao uso do conceito realizado
correntemente ou pela comunidade discursiva daqueles envolvidos com a
produção artístico-cultural (técnicos, artistas, cineastas, críticos) ou pela dos
estudiosos de cinema (professores e pesquisadores acadêmicos), perceberemos
que filmes como as atualidades acabam figurando dentre os objetos fílmicos que
se pretendem designar pelo termo “documentário”103.
Começamos a perceber, então, qual o problema que Noël Carroll
pretende solucionar: o termo escolhido por John Grierson para designar sua
prática, definido anteriormente de uma forma específica, passou a ser estendido
para se referir a um universo (conjunto de obras e/ou procedimentos) maior do
que aquele anteriormente previsto quando de seu estabelecimento (CAP: p.70).
A questão pode ser mais bem percebida através do esquema a seguir:

Termo Contexto Referência


“documentário” no uso de Grierson A
no uso corrente A+B

Figura 1 – Diferença extensional entre o uso griersoniano e o uso corrente de “documentário”

Adotamos, aqui, “A” para representar o conjunto de filmes pretendido


por Grierson para constituir o universo de referência de seu uso do termo
“documentário” (conforme inferimos em nossa formulação anterior); e “B” para

103
Por exemplo, Erik Barnouw (1993: p.5, grifo do autor) afirma que, “em alguma medida, [Thomas]
Edison partilhava do entusiasmo documentário dos primeiros experimentadores”, mas que “no final
foi Louis Lumière quem tornou o filme documentário uma realidade”, posteriormente ainda
referindo-se a algumas das “vistas” realizadas por Lumière. Ambos realizadores pioneiros citados
neste caso produziam “atualidades”, salvas as suas diferenças.

83
representar um outro conjunto de filmes, constituído pelas atualidades Lumière ou
“vídeos na linha de Rodney King”104 (Cf. CAP: p.70).
Este esquema, portanto, permite observar a existência de uma
incompatibilidade extensional entre o uso griersoniano e o uso corrente do
conceito “documentário”.
Poder-se-ia objetar que a constatação dessa incompatibilidade entre os
dois usos do termo “documentário” não constituiria um real problema, e que, para
contorná-lo, bastaria aos usuários atuais do termo estarem conscientes desta
incompatibilidade (Cf. CAP: p.71) – por exemplo, especificando se, ao dizerem
“documentário”, estariam se referindo ao “sentido griersoniano” ou ao “sentido
corrente” do termo.
Mas a situação é um pouco mais complexa. Além desta opção ser
contraproducente em termos de economia lingüística, Carroll adianta-se para
explicar que ela não daria conta do que efetivamente se constitui como o
problema, pois, em verdade, “seja o que for que nós queiramos dizer com
‘documentário’, [isso] é obscuro e possivelmente equívoco” (p.71).
Isto porque não há apenas um uso corrente do termo, mas sim vários,
muitos dos quais não partilham a mesma referência. Vejamos um segundo
esquema a seguir, que apresenta uma versão corrigida do anterior:

Termo Contexto Referência


no uso de Grierson A
no uso corrente 1 A+B
“documentário” no uso corrente 2 A+B+C
no uso corrente 3 A+B+C+D

104
Rodney King foi um taxista afro-americano que foi detido e severamente espancado pela polícia
de Los Angeles, em 03 mar. 1991. Este fato foi registrado em vídeo por um cinegrafista amador,
que tornou público o material, dando repercussão internacional ao incidente. A posterior absolvição
dos policiais responsáveis pelo crime incitou violentas revoltas populares no estado da Califórnia,
no ano seguinte (Cf. verbete “Rodney King” em →IK-PT). O vídeo do incidente pode ser visto em:
<www.youtube.com/watch?v=4OauOPTwbqk>. Acesso a ambos em: 23 mai. 2014.

84
Figura 2 – Inconsistência extensional entre vários usos de “documentário”

Mantendo os dois primeiros símbolos da Figura 1, acrescentamos agora


“C” para se referir a um conjunto de filmes contendo exemplares do chamado
cinema direto, tais como Titicut Follies (1967) e Salesman (1968); e “D” para se
referir a um outro conjunto de filmes, contendo exemplares tais como Jogo de
Cena (2007) e Pan-Cinema Permanente (2008).
A situação, assim, certamente se apresenta como mais complexa do
que parecia. Alguns falantes que se utilizam, por exemplo, do segundo uso
corrente de “documentário”, representado na Figura 2, podem negar
enfaticamente a inclusão, no universo referencial do termo, de filmes
representados pelo conjunto D. Numa situação em que se tentasse haver um
diálogo entre diferentes falantes, cada qual adotando um destes usos diferentes
do termo, o entendimento mútuo seria extremamente difícil.
Vemos, agora, que não se trata apenas da existência de uma disjunção
exclusiva entre duas extensões diferentes para o termo “documentário”, uma
sendo a “de Grierson”, e a outra a “corrente” - dificuldade esta que ainda se
poderia tentar contornar através da especificação do sentido desejado.
O que temos, em efeito, são várias extensões diversas para o termo
“documentário”, usadas sem indicações claras de sua referência. Eis aí, portanto,
o problema que Noël Carroll pretendia revelar, e o qual se dispõe a solucionar em
CAP: a existência de uma verdadeira inconsistência extensional entre os vários
usos do conceito “documentário”.
Sendo assim, Carroll conclui que o termo “documentário” não é,
portanto, apropriado “para demarcar a área de estudos que hoje, com freqüência,
recebe este nome” (CAP: p.70).

85
3.4.2. A SOLUÇÃO

Tendo discernido o problema, o autor se colocar a explorar suas


possíveis soluções.
Devemos, de acordo com Carroll, solucionar o problema da
inconsistência extensional presente nos usos do conceito “documentário”, de um
lado, concedendo que o termo lançado por Grierson mantenha a referência (mais
limitada) ao tipo de filmes pretendido originalmente pelo autor, evitando assim
maior confusão (Cf. CAP: p.71). E, de outro lado, devemos buscar um outro termo
que seja capaz de cumprir satisfatoriamente o seu papel referencial (Cf. p.71). A
alternativa mais simples seria observar se há algum outro termo já existente e que
seja adequado para a tarefa.
Neste momento torna-se útil retomar a constatação efetuada por Carroll
no início de seu texto, ou seja, de que certa área de atividade, denominada
costumeiramente de “documentário” pelos estudiosos de cinema ou no campo
cultural mais amplo, recebe também (embora, talvez, em menor freqüência) a
denominação de “cinema não-ficcional” (p.69).
Temos já aí, pois, um candidato a tomar o lugar do termo
“documentário” (p.71) e solucionar o problema de sua inconsistência extensional.
Afinal, ao contrário do uso griersoniano do termo “documentário”, o termo “não-
ficcional” parece aceitar sem inconvenientes o papel de referir-se a atualidades e
cine-jornais, algo que geralmente queremos incluir em nosso uso do termo, mas
que Grierson, por sua vez, pretendia excluir. Logo, o novo termo já demonstra, de
forma promissora, ter uma extensão maior do que a de seu antecessor.
Vejamos, contudo, um outro tipo de exemplo citado por Carroll, de estilo
bem diferente - Serene Velocity (Ernie Gehr, 1970) (Cf. p.71). Este filme, por sua
vez, não deixa claro o modo como devemos interpretar suas imagens. Devemos
pensar que efetivamente existe o corredor que nelas figura? Ou devemos tomá-lo
como um corredor imaginário? (Cf. p.87). Poderíamos indagar uma questão
semelhante a respeito de La Région Centrale (1971) – Como nos posicionarmos
86
diante daquela paisagem englobante registrada por aquela câmera irrequieta?
Que postura epistemológica devemos, enfim, adotar diante deste tipo de filme?
Carroll nos responde – “para os propósitos do filme, isso não faz diferença” (p.87).
Uma coisa, para Carroll, é certa: estes filmes “não são ficções”105. Eles
“não contam uma história imaginada”106. Ora, por oposição, eles seriam, portanto,
“filmes não-ficcionais” (CAP: p.71, grifo nosso) e, desta forma, estariam inclusos,
por direito, no universo de referência do conceito “filme de não-ficção”.
Isso, no entanto, apresenta um inconveniente, pois filmes como estes
“não aparecem incluídos em histórias nem em aulas sobre o documentário”, que é
o contexto discursivo concernido (p.71). Estes filmes, em suma, não
correspondem ao que pretendemos nos referir quando fazemos uso do termo.

Termo Referência
A
A+B
“filme de não-ficção” A+B+C
A+B+C+D
E

Figura 3 – Referências diversas do termo “filme de não-ficção”

105
Estes exemplos costumam ser designados pela denominação de “filmes experimentais”, “de
vanguarda”, ou “filmes de arte”. Entendido de modo amplo, o termo “filme experimental” faz
referência a “todo filme que experimenta, que faz uma experiência em uma área qualquer:
narrativa, figurativa, sonora, visual etc”. Porém, entendido de forma mais restrita, esse termo
costuma ser usado atualmente para designar filmes que atendem aos seguintes critérios ou a parte
deles: “não é realizado no sistema industrial”; “não é distribuído nos circuitos comerciais”; “não visa
à distração, nem, necessariamente, à rentabilidade”; “é majoritariamente não-narrativo”; e “trabalha
questionando, desconstruindo ou evitando a figuração” (AUMONT; MARIE, 2003: p.111).
106
Posteriormente Carroll tornará claro o conceito de imaginação de que está fazendo uso (Cf.
CAP: p.83-86). Quando utilizo o termo “postura epistemológica”, aqui, pretendo significar algo
próximo do que está contido em uma afirmação posterior de Carroll, que estipula que “podemos
entreter pensamentos ou conteúdos proposicionais (...) como assertivos ou não-assertivos” (CAP:
p.85).

87
Mantivemos, neste terceiro esquema, os símbolos usados
anteriormente, aos quais acrescentamos “E” para representar um conjunto
contendo filmes tais como Serene Velocity e La Région Centrale.
Vê-se como o conjunto E está contido na extensão de “filme de não-
ficção”. Mas quando Richard Barsam (1973: p.3), por exemplo, afirma que “o
realizador de filmes não-ficcionais foca sua visão pessoal e sua câmera em
situações reais”, ele certamente não pretende se referir a filmes tais como os do
conjunto E. Percebemos, assim, que “a categoria de não-ficção é excessivamente
ampla para os nossos objetivos” (CAP: p.71).
Estamos, portanto, diante da seguinte situação: por um lado, temos o
conceito de “documentário” griersoniano, que é demasiado estreito para atender a
nosso uso; por outro lado, temos a noção de “filme de não-ficção”, que “é
excessivamente ampla” (p.71).
Podemos constatar, nesse ponto, que “as denominações e conceitos
hoje operantes não são adequados a nossos propósitos” (p.71, grifo nosso). E,
visto que a tentativa mais simples de solucionar o caso, através da recorrência a
um termo já existente, não foi eficaz, a próxima opção para resolver este impasse
parece ser a criação de “uma nova denominação, que se faça acompanhar de
uma rigorosa definição” (Cf. p.71-72).
Eis, pois, o objetivo a que Noël Carroll se propõe atingir em CAP: diante
do problema da inconsistência extensional dos termos presentemente disponíveis,
Carroll propõe a criação de um novo conceito, de “cinema da asserção
pressuposta” (films of presumptive assertion).
Esse novo conceito, segundo Carroll, viria a cumprir melhor o papel
referencial por nós almejado, isto é, a “tarefa de estabelecer o conjunto de obras
que é objeto dos que, hoje, identificam o seu domínio por intermédio do jargão do
documentário ou do cinema não-ficcional” (p.72).

88
3.4.3. FICÇÃO E NÃO-FICÇÃO

Pois bem, dados o problema existente (inadequação extensional dos


termos atualmente disponíveis) e a solução que pretende implantar (a criação de
um novo conceito definido precisamente, para cobrir a extensão desejada), Noël
Carroll nos informa que o modo como pretende levar a cabo o projeto, será “por
etapas”107 – primeiro traçando “uma distinção entre ficção e não-ficção” e, com
base nisso, em seguida, promovendo “uma análise do conceito de cinema de
asserção pressuposta”, ao final do que serão examinadas algumas objeções que
se podem antecipar (Cf. CAP: p.72)
Ora, mas, qual seria a razão de iniciar o empreendimento pela distinção
entre os conceitos de “ficção” e de “não-ficção”? O motivo é que, no entendimento
de Carroll, o conceito de “filme de asserção pressuposta” “constitui uma
subcategoria” do conceito de “filme não-ficcional” (Cf. p.72; p.73).

documentário
filme da asserção
pressuposta

filme de não-ficção

Figura 4 – Diferença extensional entre os conceitos “documentário”, “filme da asserção


pressuposta”, e “filme de não-ficção”

107
Observemos que este seria um bom exemplo da prática filosofia analítica deste autor, que lida
com seus objetos através de uma abordagem “passo a passo” ou “fragmentária”, em conformidade
com o que é considerado o estilo/metodologia mais geral desta vertente filosófica (Cf. GLOCK,
2001: p.139).

89
Assim, para se poder efetivamente definir o conceito de “filme da
asserção pressuposta”, dever-se-ia antes, segundo Carroll (Cf. CAP: p.73) definir
a categoria conceitual que lhe precede e circunvê, já que esta seria um
pressuposto lógico daquele.
Carroll tentará, então, demonstrar a distinção entre ficção e não-ficção.
Sendo assim, sua posição deve assumir, pois, como premissa, a existência da
distinção entre os dois campos/conceitos (Cf. p.79).
Para ele, tal premissa se justifica em função de uma persuasiva
constatação empírica – a de que essa distinção se encontra, de fato,
“profundamente arraigada em nossas práticas cotidianas”108, de forma que a
distinção entre esses campos possui “um papel central em nosso esquema
conceitual” (p.79), isto é, ela interfere em como nos relacionamos com objetos
culturais e comunicacionais tais como filmes, livros, discursos, etc.
Todavia, “muitos teóricos do cinema” há que assumem uma premissa
contrária, i.e., de que não existe uma distinção entre ficção e não-ficção (Cf.
p.73)109. Então, assim como ocorrera em outras situações (e.g., item 2.2), o
posicionamento de Carroll, neste caso, acaba sendo contrário ao adotado por uma
parcela (dominante?) de especialistas da área, e, assim sendo, ele se encontra na
posição de, antes de poder apresentar sua proposta teórica, dever refutar as
objeções previamente existentes (e solidificadas), contrárias a este tipo de projeto.
Carroll, portanto, dedicará um razoável espaço de seu texto (p.73-79)110
para refutar o argumento da indistinção entre ficção e não-ficção. Apresentaremos
a síntese desta discussão.

108
Relembremos dos exemplos iniciais da vídeo-locadora e do cineasta que se inscreve em um
festival de cinema. Exemplos análogos podem ser rememorados a respeito de outros campos da
cultura, onde as categorias “ficção” e “não-ficção” estão também operantes.
109
Esta seria, por exemplo, a posição que Carroll, em Nonfiction Film and Postmodernist
Skepticism (Cf. CARROLL, 2003b: p.169-169; et passim), atribui a Michael Renov.
110
Identifico de maneira geral o trecho em que Carroll lida com essas objeções como estando
localizado a partir da citação de Christian Metz sobre Sarah Bernhardt (CAP: p.73), e encerrando
no ponto em que Carroll afirma concordar com o fato de que ficções e não-ficções não sejam
diferenciáveis “em termos estilísticos” (p.79).

90
3.4.3.1. (In-)Distinção entre ficção e não-ficção

O argumento da indistinção entre ficção e não-ficção será examinado


por Noël Carroll através de, essencialmente, três versões, às quais podemos nos
referir através das seguintes designações:

1. Argumento da equivalência de “ficção” a “representação”;


2. Argumento da indiferenciação formal entre ficção e não-ficção; e
3. Argumento da desorientação categorial do espectador;

O primeiro destes argumentos (CAP: p.73; 74; et passim) tem um forte


representante em Christian Metz e, baseado na observação de que o cinema, por
sua natureza, nos (re-)apresenta imagens (e sons) de entidades necessariamente
ausentes111, conclui que o cinema, por isso, nos oferece apenas “ficções”,
sustentando que, então, “todo filme é um filme de ficção” (METZ Apud CAP: p.73).
Carroll refuta este argumento, esclarecendo que ele está equivocado ao
ignorar “a diferença entre representação e ficção” (p.74), o que está em desacordo
com nossa experiência empírica.
Caso partilhássemos a avaliação metziana de que as representações
são ficções (assumindo o valor de “construção imaginária” que aqui lhe
acompanha), não poderíamos utilizar o variado conjunto de representações
visuais (fotografias, mapas, radiografias, etc.) nas diversas atividades para as
quais as empregamos em nosso cotidiano (comprovação de identidade,
localização de rotas e destinos, identificações de fraturas ósseas, etc.), pois seu
valor epistêmico seria altamente questionável.

111
Isto é, que não compartilham o mesmo espaço físico do espectador. Há sempre a mediação da
“tela” e de todo um “aparato cinematográfico” – mesmo que se considere o caso de transmissões
em tempo real.

91
“As representações, por definição, não são o que representam”, lembra-
nos Carroll (p.75, grifo nosso). O que está reconhecido na avaliação de Metz como
“ausência”, nada mais é do que “uma característica essencial das representações”
(p.76), e esta é uma das razões pelas quais elas nos são úteis – i.e., por
permitirem que nos refiramos a entidades ausentes. O argumento metziano da
equivalência de “ficção” a “representação” contradiz a própria “lógica da
representação” (CAP: p.75), da qual nos valemos cotidianamente.
Quanto ao segundo argumento, da indiferenciação formal entre ficção e
não-ficção (p.73 et passim), ele parte primeiro de uma constatação empírica, para
então inferir sua conclusão. O fato constatado é que “os filmes de ficção e de não-
ficção compartilham uma série de estruturas” e recursos estilísticos (p.73, grifos
nossos).
Alguns destes seriam oriundos do campo ficcional, como “o flashback, a
montagem paralela, o campo-contracampo, o plano-ponto-de-vista, etc.”, mas
teriam acabado também sendo adotados por filmes não-ficcionais (p.73). Outros
destes recursos eram antes comumente encontrados em filmes não-ficcionais,
como “a fotografia granulada e a instabilidade da câmera”, mas foram, por sua
vez, “assimilados pelos filmes de ficção” (p.73).
Já que, deste modo, “no campo da diferença formal” não é possível
distinguir decisivamente os filmes de ficção dos de não-ficção (p.73), os adeptos
deste argumento concluem que, então, “todos os filmes são ficcionais” (p.76).
Carroll, apesar de concordar com a constatação inicial, da existência de
“sobreposições estilísticas entre o cinema ficcional e o não-ficcional”, nota que os
proponentes deste argumento cometem um erro de caráter lógico, non sequitur112
(Cf. CAP: p.78), pelo qual a inferência a que se chega não é conseqüência lógica
das premissas que se toma como base.

112
Cuja tradução seria “não se segue”, e que podemos entender como indicando haver falta de
vínculo de implicação lógica (entailment) entre as proposições que integram o argumento (Cf.
AUSTIN, 1990: p.53, nota do trad.; p.54).

92
Logo, a conclusão deste argumento não é válida. Visualizemos seu
desenvolvimento:

Não há diferença formal entre filmes ficcionais e não-ficcionais.


(P1)

Logo, podem haver diferenças não Logo, podem não haver diferenças entre
formais entre filmes ficcionais e não- filmes ficcionais e não-ficcionais.
ficcionais. (C1) (C2 / P2)

Logo, todos os filmes são não-ficcionais. Logo, todos os filmes são ficcionais.
(C2.1) (C2.2)

Figura 5 – Argumento da indiferenciação formal entre ficção e não-ficção

A premissa 1 (P1) possibilita que se chegue tanto à conclusão 1 (C1),


de que podem haver diferenças de outro tipo entre filmes ficcionais e não-
ficcionais; como a C2, que estabelece que podem não haver diferenças entre
ambos.
Como, para avançar o raciocínio, deve-se passar por esta disjunção
exclusiva113, só se poderia tomar C2 como verdadeira após a eliminação de C1, o
que não é feito pelos adeptos do argumento da indiferenciação formal. Eles, ao
contrário “pulam direto” para a conclusão C2.
Mas este não é o único erro de inferência cometido no raciocínio. Há
um segundo. Ao assumirem C2 como sua nova premissa (agora P2), os adeptos
deste argumento ignoram que, novamente, há duas consequências lógicas
possíveis para P2: a conclusão de que todos os filmes são não-ficcionais (C2.1);
ou a conclusão de que todos os filmes são ficcionais (C2.2). Os adeptos do
argumento da indiferenciação formal apressam-se por adotar a conclusão que
113
Ao contrário da disjunção inclusiva, que pode aceitar que ambas as alternativas consideradas
sejam verdadeiras, a disjunção exclusiva “representa uma alternação legítima: ou uma coisa, ou a
outra, mas não as duas” (Cf. MORTARI, 2001: p.135).

93
mais lhes interessa (C2.2) sem que, antes, tenham eliminado a outra alternativa
existente na disjunção exclusiva (Cf. CAP: p.78, nota 10).
Neste ponto da discussão, Carroll aproveitará o ensejo da revelação
das lacunas lógicas deste argumento para introduzir os elementos de sua
proposta de estabelecimento da distinção entre ficção e não-ficção (Cf. p.79), que
se apoiará em propriedades não-formais das obras (no esquema anterior, Carroll
estaria atuando no contexto de C1). Porém, antes de avaliarmos sua proposta,
comentemos rapidamente sobre o terceiro argumento que nega a distinção entre
ficção e não-ficção.
Este terceiro argumento, que designamos por “desorientação categorial
do espectador” (p.74 et passim), parece ser mais um reforço do argumento
precedente, do que um argumento propriamente autônomo. Ele apóia-se na
constatação da indistinção formal entre filmes ficcionais e não-ficcionais, para nos
propor que consideremos um caso-limite, onde um “espectador informado”114 seja
apresentado a um filme, e, assistindo-o, não seja capaz de identificar se se trata
de um filme ficcional ou não-ficcional (Cf. p.74). Este parece um caso logicamente
possível de ser concebido. E, já que é possível haver casos em que um
espectador não consiga identificar se um filme que está a ver seja ficcional ou não
ficcional, a conclusão que este argumento atinge é, então, que não há distinção
entre filmes de ficção e de não-ficção.
Embora essa experiência de pensamento nos ofereça um caso possível
(“de direito”), o mesmo, no entanto, é incompatível com fatos empíricos. “Não é
isso que fazem as platéias” (Cf. CAP: p.78). Trata-se de um “caso-limite”, pois, de
fato, “raramente” se se depara com uma obra sem que se saiba se esta é
categorizada como ficcional ou não-ficcional (Cf. p.77)115. Os espectadores de
cinema geralmente “sabem se o filme a que irão assistir foi etiquetado de uma ou

114
Isto é, um espectador que tenha “sólido conhecimento das técnicas cinematográficas e sua
história” (CAP: p.74).
115
Carroll desenvolve este ponto através de um raciocínio por analogia, considerando o caso do
campo da literatura, que também adota as categorias de ficção e não-ficção (CAP: p.76 et seq.),
para então extrair conclusões semelhantes para ambos os casos (p.78).

94
de outra maneira”, pois “essa informação circula no mundo cinematográfico”116
(p.78).
Além disso, a inferência realizada a partir do caso imaginado da
“desorientação categorial do espectador” incorre novamente num erro lógico
semelhante ao analisado anteriormente (viz., Figura 5). Desta situação-limite, não
se deve concluir que “não existe distinção entre obras ficcionais e não-ficcionais”,
mas apenas que, em última instância, “a ficcionalidade de um texto não é
constituída ou determinada por suas propriedades textuais manifestas”117 (p.77).

3.4.3.2. Intenções autorais

Enfim, após refutar, com sucesso, as três versões apresentadas do


argumento da indistinção entre ficção e não-ficção, desembaraçando-se, desta
forma, da posição teórica lhe que obstruiria o avanço, Carroll apresentará sua
proposta para o estabelecimento da distinção entre ambos os campos/conceitos.
Sua proposta a favor da distinção se baseará em “determinadas
propriedades relacionais, não-manifestas118, das obras” – “mais especificamente”,
“em certas intenções autorais” (p.79, grifo nosso).
Carroll utilizará o que ele chama de “modelo comunicativo de intenção-
resposta”, inspirado no filósofo da linguagem Paul Grice. Este modelo constitui
uma “abordagem social”, no sentido de que se baseia em certas relações
interpessoais que se estabelecem “em nossas práticas comunicativas”, “entre
emissores e receptores de signos com sentido”119 (Cf. p.80, grifo nosso).

116
Por exemplo, através de “material para a imprensa, publicidade, críticas, boca a boca, etc”
(p.78).
117
Nesta passagem, o termo “texto” equivale a qualquer “obra” em geral, visto que Carroll está
raciocinando por analogia, comparando casos de literatura com casos de cinema.
118
Isto é, que não são perceptíveis materialmente, sensorialmente, nas obras.
119
Por se utilizar do raciocínio por analogia, comparando com freqüência o cinema à literatura,
Carroll freqüentemente menciona obras e características textuais. Contudo, em momentos-chave
da discussão, o autor parece querer evitar que se interpretem certas conclusões como estando

95
Essa abordagem, ao ser mobilizada para definir o conceito de “ficção”,
sustenta que:

120
uma estrutura de signos com sentido é uma ficção apenas se [ela for]
apresentada por um emissor com a intenção ficcional de que o público
responda a ela adotando uma postura ficcional, com base no
reconhecimento de que é essa a intenção ficcional do emissor (CAP:
p.80-81, grifos nossos).

Poderíamos tentar desdobrar os componentes desta abordagem da


intenção-resposta, de forma a torná-la mais clara. Assim, teríamos que, uma obra
é ficcional, se:

1. O autor da obra possui uma intenção ficcional.


2. O público reconhece essa intenção.
3. O público assume uma postura ficcional.

Ou seja, para que uma obra seja apropriadamente categorizada como


ficcional, de acordo com esse modelo conceitual da intenção-resposta, deve
haver, por parte de seu autor, a intenção (intenção ficcional) de que seu público a
interprete enquanto ficção (postura ficcional), o que deve ocorrer em função do
reconhecimento, pelo público, de que era essa a intenção do autor.
Deixaremos para considerar posteriormente como ocorre esse
processo, isto é, o que possibilita a ocorrência do fato descrito pela proposição 2
(viz., 3.4.6.1).

restritas ao âmbito da linguagem verbal, e para isso adota termos e expressões que extrapolam a
este universo como, por exemplo, “signos com sentido”, em oposição a “palavras”, “sentenças”, ou
“signos verbais”.
120
O emprego desta expressão relaciona-se com nossa observação contida na nota anterior.
Dedicaremos um espaço para examinarmos com mais atenção essa questão no capítulo seguinte
(viz. 4.2). Observemos, por hora, que Carroll esclarece que está a entender a expressão “estrutura
de signos com sentido” como não estando limitada “às frases de linguagens naturais ou formais”
(CAP: p.83, nota 15), mas que podem se tratar também de imagens ou “outra coisa qualquer”
(p.83).

96
Por hora, notemos algo a respeito de sua fundamentação.
Este modelo de intenção-resposta estaria pautado em certos fatos
empíricos constatáveis interpessoalmente. Podemos levantar exemplos cotidianos
de situações em que adotamos determinados comportamentos ou nos
manifestamos linguisticamente de determinada forma, em razão de possuirmos
uma suposição tácita de que este seria o tipo de comportamento ou manifestação
esperado de nós121.
Por exemplo, numa sala de aula, enquanto o professor está discorrendo
sobre algum assunto, caso um aluno possua uma dúvida sobre algum ponto,
espera-se que ele levante sua mão (para sinalizar que deseja se manifestar), e
espera-se que ele aguarde o professor finalizar seu discurso e o interpelar, antes
de tomar a iniciativa de se manifestar.
Ou, ainda, durante a projeção de um filme, numa sala de cinema, ao
assistir a uma cena que o recorde uma anedota, espera-se que o espectador
aguarde a finalização do filme, para então relatar a anedota a seu colega – ou, ao
menos, que lhe sussurre a anedota aos ouvidos, minimizando o incômodo ao
restante do público.
Estes são exemplos de comportamentos para os quais há uma
expectativa social de serem atendidos, e aos quais atendemos justamente por
reconhecermos essa expectativa, e reconhecermos que, de acordo com ela, estes
comportamentos são considerados adequados – no caso, como sinal de “boa
educação”122.

121
John Searle possivelmente explicaria estes casos pela existência dos chamados fatos
institucionais, que “pressupõe a existência de certas instituições humanas” que, conforme a idéia
dos contratos sociais, regulam as ações de indivíduos que fazem parte de certos conjuntos de
amplitude e legitimidade social variável – as “instituições” . Os exemplos dados em seguida a esta
nota poderiam ser explicados pela existência da instituição da etiqueta. Num exemplo de ordem
diversa, a instituição da moeda seria o que garante que aquele pedaço de papel amarelo em nossa
carteira tenha o valor de troca de “vinte reais” (Cf. SEARLE, 1981: p.68-72). Searle notará que
diversas ocorrências de manifestações lingüísticas, chamadas atos de fala, terão (parte de) a
explicação de seu funcionamento atribuída a fatos institucionais (Cf. p.72).
122
Carroll nos lembra, neste contexto, da distinção entre prescrição e predição, observando que
“prescrever determinado comportamento não significa predizer um comportamento” (CAP: p.82).
Existe a expectativa (prescrição) de que os comportamentos exemplificados ocorram, mas isso não

97
Agimos, portanto, no cotidiano, em parte, em função de expectativas
que se supõe que os outros tenham com relação a nós, o que poderíamos
considerar como ocorrências relacionadas ao princípio de “intenção-resposta”.
Logo, por estarmos habituados a este tipo de direcionamento de comportamento,
não seria de se estranhar que, no que concerne ao universo artístico-cultural,
também pautássemos alguma(s) de nossas condutas, com base nesse princípio
de intenção-resposta.
No caso, a conduta que o autor de uma obra, categorizada como
ficcional, espera de nós, é que adotemos a mencionada “postura ficcional” diante
desta obra. E esta postura, em outros termos, consiste numa atitude mental de
imaginação123 do conteúdo da obra (Cf. CAP: p.81).
O conceito de “imaginação” aqui empregado, e que é “pertinente para a
análise da ficção” (p.85), Carroll especifica, é o de imaginação supositiva124 (p.84),
que nos possibilita apreciar “um dado pensamento” “sem nos comprometer com
ele sob a forma de uma crença”125 (p.85). É através dessa operação mental que
nós podemos entreter um pensamento “em nossas mentes como, digamos, uma
hipótese, e não uma asserção” (p.85, grifo nosso).
Carroll está a reconhecer, neste ponto, duas atitudes mentais distintas,
possíveis de serem adotadas pelo público de uma obra, as quais ele relaciona
através de uma estrutura em oposição:

significa que eles necessariamente ocorrerão (predição) – como, aliás, podemos constatar em
nossas vivências cotidianas.
123
Em oposição à atitude mental de crença no conteúdo da obra (Cf. CAP: p.81).
124
Em contraste, por exemplo, com uma abordagem da imaginação que a concebe como “a
capacidade para a construção de imagens mentais” (CAP: p.84); ou, também diferindo de uma
outra concepção, de imaginação construtiva (p.84), que a concebe como “a faculdade que unifica
as percepções” (Cf. p.83).
125
Esta seria a operação mental atuante quando, por exemplo, iniciamos “uma demonstração
matemática dizendo, ‘suponha x’”, ou ainda quando, em uma discussão, concordamos em supor,
com nosso interlocutor, que algum ponto por ele levantado seja correto, apenas para analisar, na
seqüência, suas possíveis consequências, e avançar a discussão (Cf. CAP: p.85).

98
hipotética = imaginativa = não-assertiva

vs.

crível = não-imaginativa = assertiva

Figura 6 - Atitudes mentais opostas adotáveis pelo público de uma obra artístico-comunicativa

Pelo jogo de oposições, a postura mental “imaginativa” equivaleria, para


o autor, à “não-assertiva” (p.85) e, de forma análoga, a postura mental “assertiva”
equivaleria à “não-imaginativa” (Cf. CAP: p.86). Mas como estamos a tratar,
primeiramente, da definição do conceito de ficção, retomemos a linha de
raciocínio.

3.4.3.3. Fórmulas definidoras

Compreendemos anteriormente como devemos conceber o conceito de


imaginação126 empregado por Carroll. Este conceito é utilizado na definição da
postura ficcional espectatorial. E esta postura, por sua vez, é um componente
presente na definição de “ficção”.
Podemos, por fim, acompanhar Noël Carroll em seu movimento de
retomada de sua definição anterior mais simples deste conceito, para no-la
apresentar, agora, numa versão formulaica e mais completa:

uma estrutura x de signos com sentido, produzida pelo emissor s, é


ficcional apenas se s apresentar x ao público a com a intenção de que a

126
Assim como faz o autor, após o esclarecimento conceitual anterior (nota 124), passaremos a
remeter à expressão “imaginação supositiva” simplesmente como “imaginação”, por motivos de
economia.

99
imagine supositivamente o conteúdo proposicional de x, por reconhecer
127
que essa é a intenção de s (p.86, grifo nosso )

Para Carroll, a definição presente nesta fórmula apresenta as condições


necessárias para se determinar a ficcionalidade de uma obra, sendo este “o cerne”
(core) de sua proposta de definição do conceito de ficção (CAP: p.86). Entretanto,
necessitaremos interromper o exame desta definição e efetuar, aqui, uma
pequena digressão.
O leitor oriundo do campo dos estudos de cinema, e que considera o
“documentário” como um de seus objetos de estudo (mais ou menos) tradicionais,
provavelmente motivou-se a ler o texto CAP devido a sua temática envolver a
definição deste objeto bem familiar. Este perfil de leitor, contudo, provavelmente
não esperava deparar-se com diversos aparatos argumentativos e discursivos
extemporâneos, pertencentes ao expediente da filosofia analítica. Estes podem vir
a se constituir como empecilhos para uma compreensão aprofundada da
argumentação do autor ou, vir até a, como advertimos no início do trabalho,
desencorajá-lo a dar continuidade à leitura, já que sua utilização é feita
diretamente, sem maiores contextualizações, pressupondo, portanto, que o leitor
do texto esteja já os conheça. Será útil, assim, comentar sobre a utilização, em
CAP, de alguns destes recursos.

127
Na versão traduzida do texto (CAP), os caracteres que representam os termos existentes nas
fórmulas definidoras aparecem entre aspas (e.g., “x”). Contudo, no texto original (CAP-EN), estes
caracteres não são apresentados entre aspas. Isto porque na filosofia analítica, a utilização das
aspas está propositadamente associada à distinção entre o uso e a menção de um
termo/sentença, figurando apenas neste segundo caso – isto é, quando desejamos “falar das
próprias palavras ou de seu sentido”, conforme o que ocorreria no “discurso indireto” (Cf. FREGE,
2009: p.133-134). Nas fórmulas de Carroll os símbolos que representam os termos são usados no
“modo costumeiro” de utilização do discurso (na oposição acima, trata-se do “uso”), como no
“discurso direto”, ou seja, de modo que o que importe seja a “referência” destes símbolos para com
os termos por eles representados (Cf. op. cit.). Por isso, optamos por reproduzir estas fórmulas a
partir do texto traduzido, mas eliminando as aspas, cuja presença, a nosso ver, estaria aqui
tecnicamente equivocada. Note-se, contudo, que utilizaremos as aspas em torno destes termos,
em outros momentos do texto, quando o que estiver em jogo for a citação de (“menção” a) os
mesmos.

100
Acabamos de mencionar, por exemplo, a existência de “condições
necessárias” na definição acima, expressão esta utilizada pelo próprio Carroll para
designar uma característica dos elementos de sua definição (e.g., CAP: p.86; 87).
Lidar com definições conceituais que envolvem condições necessárias
ou condições suficientes é um expediente bastante rotineiro na área da filosofia
analítica128, mas o mesmo não pode ser assumido ao se tratar do campo dos
estudos cinematográficos, que possui referenciais teórico-metodológicos bastante
diversos. Embora, neste exemplo, a expressão “condições necessárias” não seja
exatamente obstrutiva à leitura de CAP, ela, no entanto, possui implicações que
passarão, provavelmente, despercebidas para o estudioso de cinema. Para não
prejudicar o andamento da leitura, digamos apenas que as “condições
necessárias” são aquelas sem as quais um dado fenômeno não pode existir (sine
qua non); e, por sua vez, as “condições suficientes” são aqueles cujo atendimento
garante o fenômeno/efeito. Para se obter definições conceituais precisas, na
filosofia analítica, costuma-se especificar a conjunção tanto das condições
necessárias, quanto das suficientes de um dado fenômeno129.
Já outro recurso mobilizado por Carroll, neste trecho de CAP, e que
pode, efetivamente, oferecer alguma dificuldade de compreensão para o leitor
não-filosoficamente treinado, é a apresentação da definição do conceito em pauta
(“ficção”) através de uma fórmula definidora.
Contextualizamos no capítulo anterior (viz. item 2.3.2) a utilização
desse tipo de recurso, particularmente por Carroll e, de forma mais geral, pela
filosofia analítica. Apesar de este recurso visar a obtenção de um rigor conceitual
que, em tese, proporcionaria clareza teórica (por sua suposta não-ambigüidade),

128
Há aqueles que concebem que a tarefa a que os filósofos analíticos deveriam se dedicar é a
análise conceitual efetuada especificamente através de condições necessárias e suficientes,
contudo, mais recentemente, este não tem sido mais considerado “o único ou mesmo como o
objetivo primário da análise conceitual” (Cf. GLOCK, 2011: p.134).
129
Essa conjunção de condições é denotada pela utilização, em uma definição, da expressão “se e
somente se”, ou sua contração, “sse”. Por exemplo: “x é um filme de asserção pressuposta se e
somente se...”.

101
por outro lado devem-se reconhecer as dificuldades de compreensão que a
utilização deste tipo de recurso tem o potencial de oferecer.
Na fórmula definidora em questão, a utilização, por parte de Carroll, dos
símbolos “a” e “s”, é motivada, conforme dito em nossa exemplificação no capítulo
anterior, pelos termos “audience” (público) e “sender” (emissor), enquanto “x” é
usada para representar uma obra qualquer130 que seja candidata ao
pertencimento à categoria “ficção”.
Quanto à estrutura desta fórmula, visto que ela será semelhante à
estrutura da fórmula que veremos mais à frente, definidora do cinema da asserção
pressuposta, deixaremos para examiná-la melhor na sub-seção seguinte.
Retornemos, enfim, à argumentação de Carroll.
Carroll acabara de nos oferecer uma fórmula contendo sua definição
para o conceito de ficção. De acordo com princípios lógico-analíticos que
subsidiam sua abordagem, ao obter a fórmula anterior, definidora da ficção, Carroll
propõe que poderemos encontrar a definição de “não-ficção”, que seria seu
“contraditório lógico” (Cf. p.88), através de uma simples operação de negação da
fórmula anterior, ou seja, “negando o aspecto central definidor da ficção” (p.86).
Temos o resultado desta operação na seguinte definição:

uma estrutura de signos com sentido x é não-ficcional apenas se o


emissor s apresentá-la ao público a com a intenção de que a não imagine
supositivamente x, como resultado de seu reconhecimento da intenção
de s (p.86, grifos nossos)

Com relação à definição anterior de “ficção”, a operação de negação


mencionada ocorre, na definição do novo conceito, sobre a o elemento “intenção
autoral” - o “aspecto central” que distingue ambos os gêneros.

130
Ou, mais precisamente, Carroll utiliza aqui o símbolo “x” para se referir à “estrutura de signos
com sentido” existente no interior da obra. No entanto, para os propósitos da discussão presente, a
versão simplificada que apresentamos servirá. Maiores considerações sobre esse tema serão
estabelecidas no item 4.2.

102
Assim sendo, se observarmos essa fórmula da não-ficção, e
compararmo-la com o sistema de equivalências e oposições presentes no
esquema anterior (e.g., imaginativo = não-assertivo, cf. Figura 6), que ilustrava as
atitudes mentais atribuíveis ao espectador, temos que a condição de que:

1. O público não interprete x de modo [ imaginativo ].

... presente na definição de não-ficção, pode ser traduzida (Cf. CAP: 86-87) para:

2. O público não interprete x de modo [ não-assertivo ].

Sendo assim, a conclusão de Carroll é que, com base nessa definição


da não-ficção, “qualquer filme cujo autor não prescreva aos espectadores que
entretenham seu conteúdo (...) como não-assertivo enquadra-se nesta categoria”
(p.87, grifo nosso), incluindo nisto os filmes que, segundo Carroll, “se posicionam
fora do jogo da asserção” (p.87), isto é, aqueles filmes que “se abstém” de indicar
a seu público como este deve interpretar seu conteúdo.
Para exemplificar a categorização, Carroll recorre novamente aos filmes
experimentais citados anteriormente, Arnulf Rainer (1960) e Serene Velocity
(1970). No caso deste último, Carroll afirma que, “para seu realizador, é neutro ou
indiferente o modo como venhamos a entreter as imagens do corredor” (p.87) que
figura no mesmo. Este filme, então, pertenceria à categoria da “não-ficção”, isto é,
ele “não é uma ficção” (p.87, grifo do autor), pois ele “não nos determina a
imaginar que o corredor existe”, e tampouco nos determina a assumir a atitude
contrária, ou seja, a crer que o corredor existe (p.87, grifo nosso). Não há
nenhuma indicação sobre qual postura mental deveria ser adotada pelo público.
Tendo, no decorrer de seu texto, atingindo o ponto em que é capaz de
nos fornecer sua definição para o conceito “não-ficção”, e tendo oferecido também

103
exemplos de sua utilização para a categorização de filmes, Carroll nos lembra,
contudo, que este ainda não é o destino final de seu empreendimento.
A noção de “não-ficção” é útil, mas, se nos lembrarmos da discussão
existente no início de CAP, não é esta a noção que atenderá às nossas
necessidades.
E isso porque, embora ela possa ser usada para se referir a um
conjunto grande de filmes, por outro lado, certos tipos de filmes que também
entram no escopo de sua referência, como é o caso de Serene Velocity (1970),
não constituem “a espécie de filme com que se preocupam os interessados pelo
campo documentário” (CAP: p.87), que é a comunidade discursiva que nos
compete.
Então, visto que o conceito de “não-ficção” é extensionalmente mais
amplo do que o desejado, Carroll nos lembra que nosso objetivo é buscar um
“conceito mais refinado” para “apreender esse conjunto mais delimitado de filmes”
(Cf. p.87). E é o que ocorrerá logo em seguida.

3.4.4. FILMES DE ASSERÇÃO PRESSUPOSTA

No estágio anterior da reflexão, “caracterizamos a não-ficção como o


contraditório lógico da ficção”, de forma a entendê-la como envolvendo a não-
imaginação do conteúdo de uma obra (Cf. p.88)
O que buscamos, contudo, é “estabelecer uma categoria [conceitual]
adequada aos objetivos dos estudos de cinema”, que, para atender nossas
necessidades, deve ser “uma subcategoria do conceito anterior de não-ficção”
(p.88), para assim delimitar o escopo de sua referência à extensão desejada.
Devemos, assim, passar de uma “caracterização negativa” para uma
“caracterização positiva” da intenção autoral que estará presente nesta
modalidade fílmica (Cf. p.88).

104
não-ficção: caracterização negativa = O público não deve [imaginar] o
(o que público não deve fazer) conteúdo.

filme de asserção caracterização positiva = O público [ não ] deve [adotar


pressuposta: (o que o público deve fazer) uma outra postura mental] em
relação ao conteúdo.
Figura 7 – Passagem de uma caracterização negativa da não-ficção, para uma caracterização
positiva do filme de asserção pressuposta

E a postura mental, agora caracterizada positivamente, que deve ser


adotada pelo público deste tipo de filme, Carroll informa, é que ele deve entreter
“como assertivo o conteúdo” do filme “em seu pensamento” (Cf. CAP: p.88-89).
Utilizando como base o modelo de intenção-resposta, Carroll apresenta
uma primeira versão de sua caracterização do conceito de “filme de asserção
pressuposta”, de estrutura semelhante àquela sua primeira definição (p.80-81) do
conceito de “ficção”:

o emissor desse tipo de estrutura de signos com sentido tem uma


intenção assertiva que prescreve que o público adote uma postura
assertiva com relação ao conteúdo proposicional do texto, com base em
seu reconhecimento de que é isso que o emissor intenciona que ele faça
(p.89)

Tal como fizéramos em ocasião anterior (viz., 3.4.3.2), consideramos


que será útil desdobrarmos essa definição oferecida por Carroll em um
equivalente simplificado. O resultado seria que, um filme é um filme de asserção
pressuposta se:

1. O autor da obra possui uma intenção assertiva.


2. O público reconhece esta intenção.
3. O público assume uma postura assertiva.

105
Já vimos anteriormente o que constitui uma postura assertiva. Trata-se
de uma atitude mental de crença no conteúdo da obra – em oposição a uma
atitude mental imaginativa (Cf. p.88). Mas qual a razão da existência da
qualificação “pressuposta” existente na denominação desta categoria fílmica?
Carroll explica que essa qualificação se justifica pelo fato de, ao se
deparar com esse tipo de filme, o publico presumir qual deve ser a atitude mental
com a qual deve encarar a obra (postura assertiva) (Cf. CAP: p.89). Ou, de outro
ponto de vista, o autor desse tipo de filme pressupõe que público adotará a
postura assertiva. A atitude mental assertiva é, assim, pressuposta (esperada que
ocorra) por ambas as partes envolvidas neste processo comunicativo.
De forma análoga, poderíamos, é claro, estender o raciocínio de Carroll
e denominar o filme ficcional de “filme da imaginação pressuposta”. Isto, no
entanto, não parece oferecer qualquer vantagem, visto já existir um termo
(“ficção”) de uso estabelecido, destinado a cumprir este papel, e visto este termo
existente ser já mais econômico.
De outro modo, no caso da denominação desta categoria fílmica que
está sendo proposta por Carroll (filme de asserção pressuposta), o conceito que a
designa está justamente a ser criado por este autor, de modo que não haveria um
uso já estabelecido do mesmo contra o qual a nova denominação deveria entrar
em disputa131.
Prosseguindo, Carroll explica que um segundo motivo para o uso do
qualificativo “pressuposta”, na designação da postura mental (assertiva) que deve
ser adotada perante esta categoria fílmica, é o fato de que estes filmes também
131
De certo modo poderíamos considerar que a expressão “filme de asserção pressuposta” estaria
sendo confeccionada por Carroll para entrar em disputa com o termo “documentário”. No entanto,
além de Carroll deixar claro que não visará promover uma substituição lingüística (Cf. CAP: p.104),
a relação que existe entre esses dois termos não é de mesmo tipo daquela existente entre os
termos “ficção” e “filme de imaginação pressuposta”. No primeiro caso, os dois termos
(“documentário” vs. “filme da asserção pressuposta”) não possuem a mesma extensão, portanto,
não se referem às mesmas coisas. No segundo caso, ambos os termos possuiriam a mesma
extensão, diferindo apenas na praticidade de uso e, para usar uma expressão da filosofia analítica,
no “modo de apresentação de seu objeto” (Cf. FREGE, 2009).

106
poderiam “mentir” (Cf. CAP: p.89; 90). Isto é, existe a possibilidade de que o autor
deste tipo de filme não esteja “comprometido com a verdade” (ou “plausibilidade”)
“das proposições expressas pelo filme”, ou de que estas não obedeçam a “os
padrões de evidência e argumentação apropriados às alegações de verdade”
contidas na obra (p.89).
O “comprometimento com a verdade” (ou, com a crença de que tal seja
o que a constitua, cf. CAP: p.89) seria, de acordo com Carroll, uma das
“condições-padrão” para a realização de uma “asserção não-defectiva”. Caso não
haja esse comprometimento, a “asserção” é falha (defectiva), isto é, ela não
ocorre com sucesso.
Para contextualizar estas considerações, deve-se ressaltar que,
segundo a teoria de Carroll, um “filme de asserção pressuposta” é uma espécie
de filme que realiza asserções (a grosso modo, “afirmações” ou “alegações”).
Carroll menciona que está a operar aqui com a noção de “asserção” encontrada
em John Searle, importante autor da filosofia da linguagem (Cf. p.89, nota 23) 132.
Um “documentário” (filme de asserção pressuposta) realiza, pois,
asserções. Sendo assim, para Carroll, é logicamente possível que (algumas de)
estas asserções “falhem”. O que significa, pelo que podemos inferir a partir de
Carroll (Cf. p.89), que as asserções podem não corresponder aos fatos – ou, em
outras palavras, o conteúdo que o autor veicularia através do filme pode não ser
verdadeiro. Se este conteúdo não for verdadeiro, ele é então falso. Assim é que
devemos entender a afirmação de que estes “filmes podem mentir” – i.e., os tais
filmes enunciaram fatos ou relações que são diferentes dos que realmente
ocorrem no mundo.
Uma outra maneira de abordar este ponto seria dizer que o qualificativo
“pressuposto”, encontrado na denominação, não determina apenas a postura
(assertiva), mas também o conteúdo veiculado (os fatos e suas relações). Logo,
ao mesmo tempo que uma certa postura cognitiva é pressuposta, também o são

132
Apresentaremos, posteriormente, maiores considerações sobre a origem e uso do conceito de
asserção na filosofia da linguagem de John Searle (viz. item 4.1).

107
os fatos – trata-se, para usar uma outra expressão de Carroll, de um “cinema do
fato pressuposto”133 (p.89) ou de “filmes sobre fatos supostos”134 (p.94).
Estas expressões parecem ser usadas de forma intercambiável, por
Carroll, para designar a mesma categoria fílmica, os “filmes de asserção
pressuposta” – expressão criada por Carroll, como vimos, para se referir, de
forma mais apropriada, ao conjunto de filmes que costumamos identificar como
“documentários”.
Temos, assim, contextualizado brevemente o que Carroll está a
entender através do termo “asserção”135, realizada pelos filmes, como também
através de sua qualificação “pressuposta”.
Contudo, Carroll nos informa que, apesar de ter, até o momento,
discutido os “ingredientes centrais do cinema de asserção pressuposta”, “ainda
um elemento é exigido para uma definição plena” deste conceito. E este elemento
é o sentido (Cf. p.90).
Levar em consideração o sentido é importante para se estabelecer uma
definição completa do conceito de “filme de asserção pressuposta”, Carroll revela.
Isto porque, em sua relação com este tipo de filme, “o público não deve apenas
discernir e responder às intenções assertivas do cineasta; ele deve também
compreender os sentidos comunicados pelo filme” (CAP: p.90, grifos nossos).
Existem, portanto, duas espécies de intenção por parte do realizador
deste tipo de filme – uma delas é a “intenção assertiva”, e a outra é a “intenção de
sentido” (p.90).

133
A expressão original é: “film of presumptive fact” (Cf. CAP-EN: p.187).
134
A expressão original é “film of putative fact” (Cf. CAP-EN: p.191). Carroll já utilizara essa
expressão anteriormente, em Reply to Carol Browson and Jack C. Wolf (Cf. CAROLL,
1996d:p.253). Neste mesmo local, Carroll também usara uma outra expressão semelhante, “films
of purpoted fact ”(loc. cit.).
135
Carroll não oferece definição/esclarecimento preciso sobre seu uso do conceito de “asserção”.
Ele apenas remete ao livro de Searle, “Expressão e Significado” (SEARLE, 2002), caso queiramos
acessar “uma discussão da asserção” (CAP: p.89, nota 23). Deste modo, a contextualização que
efetuamos foi essencialmente uma inferência que realizamos sobre passagens de CAP que
revelariam indiretamente aspectos envolvidos na concepção de Carroll sobre a asserção.

108
Assim, Carroll revisita sua definição anterior, mais simples, da categoria
fílmica do “cinema da asserção pressuposta”, e a apresenta agora de modo mais
rigoroso:

x é um filme de asserção pressuposta se e somente se o cineasta s


apresenta x a um público a com a intenção de que: 1) que a reconheça
que x é intencionado por s para significar p (determinado conteúdo
proposicional); 2) que a reconheça que s intenciona então que a
entretenha p como um pensamento assertivo (ou como um conjunto de
pensamentos assertivos); 3) que a entretenha p como um pensamento
assertivo; e 4) que 2 seja uma razão para 3 (CAP: p.90-91)

Esta fórmula apresenta a definição completa de Carroll para o conceito


de “cinema da asserção pressuposta”. Diferente de fórmulas anteriores 136, nela
está discriminado o papel que desempenha a compreensão de sentido.
Novamente, podemos desdobrar os componentes essenciais desta
definição, de modo a torná-la mais clara (Cf. p.91). Assim, um filme é um filme de
asserção pressuposta se e somente se:

1. O autor da obra possui uma intenção de sentido.


2. O público reconhece esta intenção.
3. O público nela se baseia para compreender os sentidos do filme.
4. O autor da obra possui uma intenção assertiva.
5. O público reconhece esta intenção.
6. O público adota uma postura assertiva com relação aos sentidos por ele
compreendidos.
7. O reconhecimento da intenção assertiva (5) é um dos motivos para a
adoção da postura assertiva (6).

136
As fórmulas anteriores apenas apresentavam as “condições necessárias” dos fenômenos em
questão, enquanto que esta fórmula apresenta tanto as “condições necessárias” quanto as
“condições suficientes”. Isso é perceptível através da presença da expressão “se e somente se” no
início desta definição.

109
Nessa transposição, pode-se notar que a condição 1 enunciada na
fórmula definidora de Carroll, na realidade, aglutina as três primeiras proposições
que enunciamos acima: a existência da intenção de sentido; seu reconhecimento;
e sua utilização pelo público. Quanto à condição 4 da definição de Carroll (7, na
nossa), Carroll a justifica pelo fato de poderem existir também outras razões para
incitar a adoção da postura assertiva por parte do público, por exemplo, “a
verossimilhança da imagem” (Cf. CAP: p.91, nota 25).
Uma forma de facilitar a apreensão das relações envolvidas na
caracterização deste processo relacional (autor-público) que define o “cinema da
asserção pressuposta” é através de um esquema visual, tal como o esboçado a
seguir:

Figura 8 – Elementos e relações existentes na definição do filme de asserção pressuposta

110
Os elementos envolvidos na definição, e aqui representados, são: o
cineasta (“s”), seu público (“a”), sua obra (“x”), o conteúdo proposicional desta
(“p”), e as duas intenções (assertiva, e de sentido).
É possível observar aqui as relações que se estabelecem entre esses
elementos: a intenção de sentido do cineasta é veiculada, através da obra, para o
espectador. Este, reconhecendo a intenção de sentido, efetua uma interpretação
do “conteúdo proposicional” presente na obra. Simultaneamente, o espectador
reconhece a intenção assertiva do cineasta e, com base nela, adota uma postura
assertiva (crença) em relação ao “conteúdo proposicional” identificado na obra.

3.4.5. FILMES DE TRAÇO PRESSUPOSTO

Após a apresentação de sua definição, na fórmula que acabamos de


observar, do conceito de cinema de asserção pressuposta, proposto por Carroll
para definir o gênero que conhecemos como “documentário”, o autor utiliza
algumas páginas de CAP (p.91-94) para avaliar heuristicamente a teoria que
acaba de desenvolver.
Isto será feito através da colocação à prova deste conceito em
contraste com um outro conceito em disputa – o conceito de “cinema do traço
pressuposto” (p.91). Este segundo conceito, Carroll informa, representaria “uma
teoria alternativa do modo como poderíamos caracterizar o chamado cinema
‘documentário’” (p.91).
Ou seja, ambos os conceitos em questão – aquele criado por Carroll, e
este conceito adversário que ele nos apresentará - buscam oferecer uma definição
para a mesma classe de objetos: o gênero fílmico que conhecemos como
“documentário”. E seguindo, portanto, o “procedimento dialético” que já vimos
Carroll adotar antes, este autor promoverá aqui uma análise através da qual
procurará comparar as vantagens de cada teoria/explicação competidora. Ao final,

111
Carroll dará seu suporte à teoria que for considerada mais vantajosa, isto é,
àquela que conseguir explicar melhor o fenômeno (este gênero fílmico).
Vejamos, primeiramente, como Carroll caracteriza este conceito
competidor, o “cinema do traço pressuposto”:

[No cinema do traço pressuposto,] a estrutura de signos com sentido em


questão é tal que o cineasta pretende que o público considere as
imagens do filme como traços históricos, em conseqüência de seu
reconhecimento de que é isso que o cineasta espera que ele faça.
Considerar as imagens como traços históricos, por sua vez, envolve
entreter no pensamento, como sendo uma asserção, que as imagens do
filme originaram-se, fotograficamente, exatamente da fonte de onde o
filme alega ou implica que se originaram (CAP: p.91).

Podemos, uma vez mais, parafrasear a definição oferecida por Carroll,


de modo a distinguir melhor os elementos atuantes na mesma:

1. O cineasta tem uma intenção de traço histórico.


2. O público reconhece esta intenção.
3. O público adota uma postura de traço histórico com relação às imagens do
filme (i.e., ele crê que essas imagens tiveram a origem fotográfica137 que o
filme leva a crer que tiveram).
4. O reconhecimento da intenção de traço histórico (2) é um dos motivos para
a adoção da postura de traço histórico (3).

Carroll exemplifica o funcionamento deste conceito de “cinema do traço


pressuposto” com um caso bem ordinário. Ele nos lembra que, ao assistirmos um
“filme de traço pressuposto” (a grosso modo, um “documentário”), quando vemos
a “imagem de uma árvore”, e o filme nos diz algo sobre “árvores na floresta
amazônica” (CAP-EN: p.189), nós “entretemos como uma asserção (...) que a

137
A expressão “origem fotográfica”, aqui, envolveria todo tipo de imagem obtida através de uma
câmera.

112
imagem da árvore que vemos é o traço fotográfico de alguma árvore da floresta
amazônica”138 – e não de uma árvore de um outro lugar qualquer (CAP: p.91).
Ou seja, de acordo com esta teoria alternativa, nós adotamos uma
“postura de traço histórico” com relação às imagens do filme, mesmo que o filme
não assira explicitamente a origem destas (“a fonte de onde o filme alega...”).
Nestes casos, contudo, o contexto do filme oferece alguns indícios implícitos para
a adoção desta postura (“... alega ou implica”).
Note-se que, embora Carroll utilize, para descrever o objeto desta
teoria, a expressão “as imagens do filme”, a mencionada “postura de traço
histórico” vale também para (certos tipos de) sons. Isso, pois, o que está em jogo
na teoria do cinema do traço pressuposto, é uma concepção de documentário
elaborada em função do “valor ontológico do traço”, valor este existente em
qualquer material audiovisual obtido através de tomadas139, seja ela a tomada
visual ou a tomada sonora.
Queremos nos referir, ao usar a expressão “valor ontológico do traço”,
àquela característica considerada como “única”, “essencial”, e “determinante de
sua natureza”, que teriam as imagens e sons gerados através de dispositivos
mecânicos de registro (câmeras, gravadores, etc.), e que, inversamente, estariam
ausentes de suas contrapartes geradas sem o recurso a estes dispositivos
(pintura, desenho, etc.).

138
Carroll oferece ainda outra opção de formulação do que ocorre no cinema do traço pressuposto:
“Na verdade, reconhecemos que o cineasta pretende que consideremos como assertiva a
proposição de que aquela imagem de árvore foi produzida fotograficamente por alguma árvore de
fato existente que cresce ou crescia na floresta amazônica” (p.92, grifos nossos). Ou seja, segundo
esta teoria, o que ocorreria precisamente seria que, simultaneamente ao filme nos apresentar suas
imagens (e sons), ele estaria também nos apresentando “proposições implícitas” (?), associadas
aos mesmos, da forma “A tomada imagética (ou sonora) de x é um traço histórico de x”. E essa
proposição implícita, por sua vez, estaria sempre acompanhada de uma “intenção assertiva” do
cineasta para consigo (i.e., intenção de que o público creia nesta proposição).
139
Em contraposição à simulação computacional, à animação visual ou à sintetização sonora, por
exemplo. Sobre o tema da tomada, recomendamos a consulta a uma obra recente, A imagem-
câmera (RAMOS, 2012), que apresenta uma reflexão extensa sobre as imagens elementares do
cinema, ou seja, imagens obtidas através de câmeras - “imagens-câmera” -, seguindo uma linha
teórica fenomenológica trilhada por André Bazin e Maurice Merleau-Ponty.

113
Este “valor de traço”140 equivale à propriedade reconhecida nas
imagens por um texto já clássico na área dos estudos de cinema – o famoso
Ontologia da Imagem Fotográfica, de André Bazin (1991).
Bazin procurava ali caracterizar a singularidade que havia percebido
haver nas imagens geradas através de uma câmera141. No caso destas imagens
trata-se, diz ele, de “uma reprodução mecânica da qual o homem se acha(...)
excluído” (BAZIN, 1991: p.21). E isso, para ele, garantiria uma tal unicidade a
estas imagens, não devido a algo encontrado “no resultado, mas na gênese” das
mesmas (p.21), que é uma “gênese automática” (p.22). Bazin arremata: “A
existência do objeto fotografado participa (...) da existência do modelo como uma
impressão digital” (p.24). A imagem obtida por uma câmera, pois, “se beneficia de
uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução” (p.22, grifo
nosso).
Ou seja, o que é único no caso deste tipo de imagem é seu vínculo
causal com o objeto que nela figura, vínculo este que ofereceria “garantias” de um
certo automatismo (“incorruptível”?) do processo: não existe figuração possível
sem ter existido previamente o objeto figurado; ou, a existência do objeto é
condição necessária à existência da imagem. As imagens-câmera são, sob esta
perspectiva, tidas como espécies de “provas fatuais” do que quer que tenha
estado na frente da câmera.
Ora, eis aí uma caracterização bem conhecida na área, do que estamos
a denominar, acompanhando Noël Carroll, de “valor de traço” ou “valor ontológico
do traço” dos signos audiovisuais. Para que não reste dúvidas, vejamos mais esta
breve caracterização: “A noção de cinema do traço pressuposto compreende a
140
Na terminologia da Semiótica de Charles Sanders Peirce, esse “valor de traço” equivale à
propriedade que tem a categoria dos signos indiciais, isto é, àqueles signos cuja existência está
necessária e causalmente ligada à existência de sua fonte. O exemplo típico é oferecido por uma
pegada deixada na areia (i.e., sem a existência prévia de um pé exercendo pressão sobre o solo,
não seria possível existir a marca deixada pelo mesmo).
141
Bazin (1991), no início, fala apenas sobre a imagem fotográfica. No decorrer do texto, contudo,
ele expande as considerações para envolver também a imagem cinematográfica. Compreendendo-
se o ponto, é possível estender as considerações também para a imagem videográfica, tanto
analógica como digital (Cf. GODOY, 2001).

114
dimensão ‘documental’ que muitos associam ao chamado cinema documentário.”
(CAP: p.92). Este conceito, pois, aqui definido de forma precisa por Noël Carroll,
corresponde provavelmente ao que se entende, de forma ordinária e não
elaborada, por “documentário”.
Ainda um último ponto necessita ser comentado sobre esta definição
conceitual oferecida por Carroll, e é a utilização, aqui, novamente, da qualificação
“pressuposto”.
Carroll a justifica pelo fato de que o cineasta poderia estar, aqui
também, “dissimulando”. No caso do cinema do traço pressuposto, o cineasta
poderia dissimular a real origem das imagens de seu filme. Retomando um
exemplo anterior, ao invés de as árvores presentes na imagem se encontrarem na
floresta amazônica, como o filme hipotético daria a entender, elas poderiam na
realidade se encontrar em um jardim botânico de alguma metrópole (CAP: Cf.
p.91). Portanto, se houvesse essa diferença entre a origem real do objeto figurado,
e sua origem implicada pelo filme (explícita ou implicitamente), haveria aí o logro,
dissimulação, ou fraude – possibilidade esta prevista (embora indesejada) pelo
conceito que define esta categoria fílmica.
Esclarecido o sentido do “traço histórico”, componente presente, nesta
definição conceitual, tanto na intenção autoral, como na postura espectatorial,
assim como o motivo da qualificação “pressuposto”, Carroll passa a examinar o
caso de um “documentário” típico de ser exibido em canais televisivos dedicados
ao gênero: Nautilus, do History Channel (CAP: p.92-94) - um filme sobre
submarinos.
Sobre este filme, Carroll observa que “nem todas as suas imagens são
traços históricos, [e] tampouco há a intenção de que sejam tomadas como tais”
(p.92). Mais especificamente, o filme é descrito (p.92-94) como fazendo uso
intenso de mapas, desenhos, animações e tomadas recentes/reencenações142.

142
Estas tomadas recentes são em cores (CAP: p.93) e, portanto, impossíveis de serem
confundidas (pelo público que possui conhecimentos históricos mínimos) com “traços históricos” do
período em questão.

115
Isso leva Carroll a considerar que, ao assistir o filme, o “público sabe que estas
imagens são meras ilustrações” (p.93), que não se pretende que seja adotada
uma “postura de traço histórico” perante elas.
Ora, encontrarmos aí uma grande incompatibilidade entre este dado
empírico (o filme Nautilus) e uma das teorias que propõe lhe explicar (a teoria do
cinema do traço pressuposto).
“Nautilus é claramente o que os teóricos e distribuidores de cinema
costumam denominar ‘documentário’” (CAP: p.93), afirma Carroll. Isto é, ele “se
enquadra na categoria que todos os interessados no campo do chamado
documentário pretendem discutir” (p.93). Contudo, a teoria do cinema do traço
pressuposto não está apta a acomodar um exemplo ordinário como este143. A
razão disso é que esta teoria tem por requisito que o espectador adote uma
postura de traço histórico com relação às imagens do filme, mas no exemplo deste
filme sobre submarinos, “seus realizadores não têm a intenção de que as imagens
referidas sejam encaradas como traços históricos daqueles acontecimentos
navais” (CAP: p.93). A condição para aplicação do conceito do cinema do traço
pressuposto é, assim, restrita demais para poder acomodar mesmo casos comuns
como este.
Por outro lado, veja-se como a teoria alternativa proposta por Carroll se
comporta em relação a este exemplo. A teoria do cinema da asserção pressuposta
é indiferente aos materiais audiovisuais mobilizados pelo filme. Ela, de fato,
“permite que tais filmes utilizem-se da reencenação, da animação, do uso de
materiais de arquivo”, e de quaisquer outros tipos de imagens e sons que se
deseje utilizar, independente de seu processo de criação (p.94). E isto porque o
conceito de cinema da asserção pressuposta exige unicamente que “a estrutura
de signos com sentido seja apresentada com a intenção assertiva autoral de que

143
Este filme é considerado aqui como um “exemplo ordinário” em função de que os recursos
audiovisuais empregados no mesmo são bastante corriqueiros “no chamado cinema documentário”
(Cf. CAP: p.94).

116
entretenhamos seu conteúdo proposicional sob a forma de pensamento assertivo”
(p.94).
Este conceito não apresenta nenhuma condição ou restrição para
mobilização dos materiais audiovisuais desejados, pois, como vimos, a
fundamentação desta teoria proposta por Carroll baseia-se não em “propriedades
formais manifestas” no filme, mas sim em “propriedades relacionais” existentes
entre autor, obra, e espectador. Logo, o conceito de cinema da asserção
pressuposta é capaz de acomodar perfeitamente filmes como Nautilus – assim
como quaisquer outros filmes (chamados de) “documentários” que façam uso de
materiais de composição audiovisuais144 tão diversificados como os presentes
neste caso.
Comparando, assim, os dois conceitos em disputa (cinema do traço
pressuposto vs. cinema da asserção pressuposta), percebe-se que o conceito de
cinema da asserção pressuposta “possui maior abrangência” (CAP: p.94), isto é,
ele tem maior extensão do que seu adversário.
Estamos diante, pois, de dois conceitos formulados teoricamente de
maneira igualmente consistente, mas que possuem extensão diferente. “Qual
deles devemos escolher?” Para responder a esta questão, Carroll esclarece, é
necessário “considerar o uso a que pretendemos destinar o conceito” (p.92).

“Se desejarmos definir o fenômeno da actualité, a noção de cinema do


traço pressuposto é mais eficiente. Porém, se desejarmos contemplar o
que os teóricos de cinema, geralmente, têm em mente quando se
referem a documentários ou cinema não-ficcional, creio que a noção de
cinema da asserção pressuposta é superior. Isso porque os teóricos do
documentário costumam referir-se a filmes nos quais não se pretende
que o público veja cada plano como o traço histórico de seu conteúdo”
(p.92).

144
Sobre o tema, cabe notar que um recurso bastante útil à percepção e análise da variedade de
materiais audiovisuais presentes em filmes documentários é o método de análise proposto em A
propósito da análise de narrativas documentais (TEIXEIRA, 2005).

117
Retornamos, assim, ao problema da extensão conceitual, que havia
sido identificada como ponto de partida do texto. Contudo, ao re-colocarmos o
problema, neste ponto, dispomos já de dois candidatos à sua solução. Um deles é
o conceito de cinema do traço pressuposto, e o outro, o conceito de cinema da
asserção pressuposta.
O primeiro deles, aparentemente coerente com nossas intuições
cotidianas, revela-se, após exame, possuir uma condição de aplicação bastante
restritiva (a intenção/postura de traço histórico face a todas as imagens do filme),
proporcionando-lhe, desta forma, uma extensão por demais limitada – assim como
ocorre com o conceito comum de que já dispomos - “documentário”.
Já o segundo deles, “cinema da asserção pressuposta”, por sua vez,
não possuindo restrições, para sua aplicação, decorrentes de propriedades
formais da obra, revelou-se possuidor de uma extensão mais ampla e compatível
com o uso a que se pretendia (servir aos estudiosos, praticantes e demais
interessados nessa comunidade do chamado “cinema documentário”).
A escolha, portanto, parece clara: o conceito de cinema da asserção
pressuposta soluciona nosso problema da inconsistência extensional de maneira
mais eficiente que seu concorrente (que, em verdade, poderia ser visto como uma
versão, formulada de forma conceitualmente precisa, da noção popular de
“documentário”). A teoria de Carroll, portanto, prevalece.

3.4.6. CONSIDERAÇÕES

Ao longo desta seção 3.2 de nosso trabalho, buscamos percorrer de


forma minuciosa o processo de argumentação desenvolvido por Noël Carroll
através de CAP, texto em que este autor apresenta sua teoria definidora do
cinema documentário. Nossa abordagem possui a vantagem de colocar em
evidência os componentes mínimos mobilizados pelo pensamento do autor, bem

118
como seu modo de articulação. Existe nela, contudo, o risco de ser mais fácil de
se perder de vista a totalidade do movimento de pensamento examinado.
Tendo isso em vista, consideramos, portanto, bastante útil,
rememorarmos esquematicamente o processo de pensamento utilizado por Carroll
na construção da teoria examinada. Esta trajetória de pensamento, a nosso ver,
pode ser sintetizada da seguinte maneira:

1. John Grierson foi criador/pioneiro na utilização do termo “documentário”.


2. Grierson usa originalmente “documentário” para se referir a filmes do tipo x.
3. Usos correntes de “documentário” referem-se a filmes dos tipos x + y.
4. Logo, usos correntes do termo “documentário” referem-se a um conjunto
mais amplo de objetos do que o uso original pretendia.
5. Logo, há uma incoerência extensional entre os usos diferentes do mesmo
termo “documentário”.
6. Uma solução ao problema é usar um termo diferente de “documentário”
para se referir ao conjunto de filmes a que se pretende referir atualmente.
7. O termo “filme não-ficcional” é um candidato já existente a servir de
solução.
8. O termo “filme não-ficcional”, contudo, é excessivamente amplo para se
referir ao conjunto de filmes a que se pretende referir atualmente.
9. Logo, outro termo deve ser buscado.
10. Na ausência de termos existentes apropriados, pode-se criar um novo
termo/expressão.
11. Noël Carroll cria a expressão “cinema da asserção pressuposta” e a propõe
como candidata a substituir o termo “documentário”.
12. “Cinema da asserção pressuposta” é um subconjunto de “filme de não-
ficção”.
13. “Filme de não-ficção” é o contrário de “filme de ficção”.
14. A intenção/postura imaginativa é o que define o filme de ficção.

119
15. Logo, a intenção/postura não-imaginativa é o que define o filme de não-
ficção.
16. A intenção/postura assertiva é um subconjunto da intenção/postura não-
imaginativa.
17. Logo, a intenção/postura assertiva é o que define o cinema da asserção
pressuposta.
18. Para validar a teoria do cinema da asserção pressuposta, deve-se
compará-la com outro candidato concorrente.
19. Um outro candidato concorrente a substituir o termo “documentário” é o
“cinema do traço pressuposto”.
20. A intenção/postura de traço histórico é o que define o cinema do traço
pressuposto.
21. O conceito de cinema do traço pressuposto, contudo, não acomoda o caso
comum de um “documentário” televisivo que utiliza materiais audiovisuais
diversos além daqueles criados através de tomadas.
22. Logo, o conceito de cinema do traço pressuposto é restrito demais para a
extensão almejada.
23. O conceito de cinema da asserção pressuposta acomoda eficientemente o
caso do filme em questão, assim como de todos que utilizem esses
materiais audiovisuais.
24. Logo, o conceito de cinema da asserção pressuposta parece ter a extensão
correta almejada.
25. Logo, o termo “cinema da asserção pressuposta” é o melhor candidato a
substituir o termo “documentário”.

Parece-nos que o conjunto de proposições organizadas


esquematicamente acima representa a essência do percurso de pensamento da
teoria do cinema da asserção pressuposta.
Há alguns pontos importantes de CAP, entretanto, que não estão
indicados acima, e os quais não tivemos a oportunidade de discutir até o
120
momento. São eles: o conceito de indexação utilizado por Carroll; as objeções que
ele antecipa à sua teoria; e sua caracterização das condições necessárias e
suficientes de aplicação da mesma.
Consideramos que a discussão destes pontos proporcionará uma
melhor compreensão da teoria sobre o cinema documentário avançada por Noël
Carroll. Ofereceremos, assim, um espaço para tanto a seguir.

3.4.6.1. Indexação

Noël Carroll, como vimos (viz. 3.2.3.2), recorre a um modelo


comunicativo da intenção-resposta (Cf. CAP: p.80) para servir como critério
diferenciador entre os campos da ficção e o da não-ficção.
Ao mobilizar essa abordagem, Carroll explica que ela possibilita
efetuarmos a distinção entre diferentes intenções autorais, intenções estas que
determinariam diferentes modos de o público se relacionar com uma obra
(diferentes posturas espectatoriais). O que distinguiria a ficção da não-ficção, de
acordo com esta abordagem, seria portanto a adoção, por parte do público, de
uma postura ficcional (imaginativa), ou de uma postura não-ficcional (não-
imaginativa) perante uma obra. Trata-se, assim, de um “modo de leitura” da obra,
mas que deve se efetuar baseando-se necessariamente no reconhecimento da
intenção autoral existente e prescrita.
Naquele momento da discussão, contudo, Carroll não podia se deter
mais demoradamente sobre uma fundamental questão pragmática deste
processo, ou seja, em como, afinal, é possível que o público reconheça essas
intenções autorais? De que modo essas intenções são transmitidas por um autor,
e de que modo elas são reconhecidas por um espectador?
Uma resposta satisfatória a esta questão avançaria um grande passo
na aceitabilidade da teoria de Carroll. Uma resposta insatisfatória, contudo,

121
constituiria um obstáculo à aceitação da mesma. Ao final de CAP (p.98), Carroll
revela, por fim, a resposta à questão.
E a “resposta a essa questão”, afirma Carroll, “é tão óbvia que somente
um teórico de cinema seria capaz de não percebê-la”. Ela reside no conceito de
indexação. Ou seja, os “filmes [já] vêm rotulados ou indexados quanto ao tipo de
filme que são, e, na medida em que esses rótulos classificam os filmes” ora como
ficcionais, ora como não-ficcionais/documentários, o público tem, assim, “acesso a
informações sobre as intenções” do realizador (p.98, grifos nossos).
É perfeitamente possível, pois, para o público, acessar as intenções do
realizador “por diversos meios: matérias na imprensa, peças publicitárias,
entrevistas televisivas, listagens de programação nos cinemas e na televisão,
críticas e o boca-a-boca”, além de informações presentes “nos créditos” do próprio
filme. Tudo isso é “inteiramente público” e “não há nada de oculto ou obscuro a
seu respeito” (CAP: p.98).
A noção de “indexação”, portanto, levantada por Carroll como suporte à
sua teoria, representa a forma de manifestação da intenção categorial
(classificatória) do autor, que passa a ser inteligível ao público através desse vasto
conjunto de meta-informações sobre o filme. A obra audiovisual, constituindo-se
de objeto que atravessa as esferas da arte, cultura, economia, etc.145, é parte de
uma ampla rede de trocas simbólico-comunicativas, fazendo-se, assim, sempre
acompanhar por uma série de discursos ou signos que lhe gravitam o entorno. Um
destes é a indexação.
Portanto, através de “canais redundantes de comunicação” (p.99),
circulam as intenções classificatórias dos autores, manifestas na indexação de
suas obras 146. É o que ocorre, por exemplo, quando se diz, de um filme, que ele é

145
Relações estas, entre cinema e sociedade, manifestas na idéia de “instituição cinematográfica”
(Cf. CASETTI, 2005: p.134-137).
146
Segundo Noël Carroll, as condições necessárias para a classificação de um filme como sendo
um “filme de asserção pressuposta” são válidas, também, tanto para a categorização de outros
tipos de obras artísticas, como também para qualquer outra produção discursiva para a qual essa
distinção categorial tenha utilidade. Carroll até sugere, para designar essa abertura, o uso de

122
“um dos mais memoráveis documentários produzido por um cineasta nos últimos
anos”147 (grifo nosso).
Assim, Carroll conclui, “ao escolhermos um filme, geralmente já
sabemos, com antecedência, que ele é o que se costuma chamar ‘documentário’,
porque assim foi indexado e com essa classificação vem circulando. E, sabendo
disso, o espectador sabe que o cineasta pretende que ele adote (...) [uma]
‘postura assertiva’” (p.99).
Tendo isso em vista, para finalizar este ponto, seria interessante
retomarmos aqui um esquema anterior (Figura 8), que ilustrava as relações
existentes entre autor, obra, e público, de acordo com o modelo comunicacional
da intenção-resposta (viz. 3.4.3.2), e nele realizar uma pequena modificação:

expressões tais como “textos da asserção pressuposta”, ou “estruturas de signos com sentido de
asserção pressuposta” (Cf. CAP: p.88. nota 22).
147
Esta afirmação teria sido feita por J. Hoberman no jornal The New York Times, e aparece na
capa da edição especial do DVD, distribuído nacionalmente, do filme O Homem Urso (2005).

123
Figura 9 – Elementos e relações existentes na definição do filme de asserção pressuposta,
incluindo a indexação

Esta versão do esquema que representa as condições para o


pertencimento à categoria do cinema de asserção pressuposta foi complementada
de forma a, agora, evidenciar o papel que possui a indexação no reconhecimento
das intenções autorais. De modo que o que ocorre é que:

1. O autor do filme possui uma intenção de sentido.


2. O público reconhece esta intenção.
3. O público nela se baseia para compreender os sentidos do filme.
4. O autor do filme possui uma intenção assertiva.
5. O público reconhece esta intenção através da indexação do filme.
6. O público adota uma postura assertiva com relação aos sentidos por ele
compreendidos.
7. O reconhecimento da intenção assertiva (5) é um dos motivos para a adoção
da postura assertiva (6).

Consideramos, com isso, que atingimos um grau de maior clareza na


apresentação do conceito de cinema da asserção pressuposta, em relação à
apresentação feita unicamente através da descrição textual linear, realizada por
Carroll, de suas condições de aplicação.

3.4.6.2. Objeções

Um segundo ponto digno de consideração são as objeções


endereçadas por Carroll. Após a apresentação de sua teoria do cinema da
asserção pressuposta, e de sua comparação com uma teoria competidora, Carroll

124
reserva um considerável espaço ao final de CAP (p.94-103) para refutar duas
objeções que ele antecipa à sua teoria.
Chamemos a primeira destas objeções de “argumento contra a intenção
autoral”, e a segunda de “argumento contra a objetividade”. O segundo argumento
não nos constitui uma novidade, visto o mesmo já ter sido, de uma forma ou de
outra, abordado nos textos de Carroll anteriormente discutidos (viz. 3.1.2 e 3.2).
O argumento contra a intenção autoral pretende problematizar o modelo
comunicativo da intenção-resposta, que fundamenta a teoria de Carroll do cinema
da asserção pressuposta. Este modelo comunicativo, como vimos, estipulava que:
1) existe uma intenção autoral acompanhando uma obra; e que 2) seu
reconhecimento determina a postura mental que o público adotará perante a obra.
O argumento contra a intenção autoral nega, pois, este segundo ponto, do
reconhecimento de intenções autorais.
Carroll afirma existirem "muitos teóricos de cinema" que "não crêem
que possamos ter acesso às intenções autorais", posição esta que seria partilhada
com "outros departamentos das humanidades" (Cf. CAP: p.95).
Supondo, desta forma, que não seja possível reconhecerem-se
intenções autorais, o modelo da intenção-resposta seria falho, inutilizando
completamente a teoria proposta por Carroll. O raciocínio procederia mais ou
menos da seguinte forma:

1. O que define o cinema da asserção pressuposta é a manifestação de uma


certa resposta pelo público, com base no reconhecimento de uma certa
intenção autoral. A resposta é a adoção de uma postura mental assertiva
perante a obra. E a intenção autoral é de que seja essa a postura a ser
adotada.
2. Suponhamos que não seja possível haver reconhecimento da intenção
autoral.
3. Se não há reconhecimento de intenções, então não há resposta espectatorial.

125
4. Se não há resposta espectatorial, então não há a adoção de uma postura
assertiva perante a obra.
5. Se não há a adoção de uma postura assertiva, então não há cinema da
asserção pressuposta.
6. Logo, se não há reconhecimento da intenção autoral, não há cinema da
asserção pressuposta.

Carroll inicia sua resposta a esta objeção notando, primeiramente, que


ela "não tem razão de ser"148, pois a teoria que ele propôs é uma "teoria ontológica
- uma explicação da natureza de certa categoria de filmes - e não uma teoria
epistemológica sobre como identificá-los" (CAP: p.95, grifos nossos).
Esta é apenas a resposta preliminar de Carroll ao argumento contra a
intenção autoral. Antes, contudo, de prosseguirmos na apresentação de sua
defesa, cabe realizarmos aqui alguns comentários. Nesta primeira parte da
resposta de Carroll, não está suficientemente claro o que ele pretende afirmar
através desta contraposição entre “teoria ontológica” vs. “teoria epistemológica”.
Quando ele afirma que sua teoria “não é uma teoria epistemológica”, o que isso
significa, precisamente?
Que no escopo de sua teoria não existe um “componente
epistemológico” (identificação de um tipo de filme)? Fosse isso, a afirmação de
Carroll seria falsa.
Claro está que em sua teoria é essencial o papel desempenhado pela
indexação. Só há resposta espectatorial (postura assertiva) caso haja
reconhecimento da intenção autoral (intenção assertiva). E o modo pelo qual
ocorre este reconhecimento intencional é através da indexação, isto é, da
identificação, em alguma instância, de qual tipo de filme presumidamente está
sendo oferecido ao espectador, para que ele lhe adote a postura mental
adequada.

148
A expressão usada no original é “it misses the point” (CAP-EN: p.191).

126
Ou seja, em alguma instância do “tecido social” (Cf. CAP: p.96) ocorreu
efetivamente a identificação do filme como sendo um filme de determinado tipo
(e.g., um “documentário”). A questão é que, no caso, não é necessariamente o
espectador quem realiza essa identificação categorial; ele apenas a reconheceria
e nela se basearia para adotar a postura mental adequada. Na explicação do
fenômeno, contudo, alguém teve de recorrer a um “componente epistemológico”
(identificação de um filme como pertencendo a uma dada categoria), de modo que
este componente faz, de fato, parte da teoria de Carroll, em alguma medida.
Por outro lado, ao afirmar que “sua teoria não é uma teoria
epistemológica”, talvez Carroll queira dizer que o objetivo principal de sua teoria
não é explicar “como alguém deve proceder para identificar esta categoria de
filmes”, mas sim “explicar a natureza desta categoria”.
Essa interpretação parece ser mais coerente com o texto do autor, mas
ainda assim ela não parece ser totalmente convincente. Embora seu objetivo
primário seja “ontológico” (explicar a natureza de uma categoria fílmica em
questão), devemos lembrar que a maneira pela qual Carroll pretende atingir esse
objetivo envolve a identificação categorial (o reconhecimento de determinada
indexação por parte do público). Assim, embora a “questão epistemológica” não
constitua seu objetivo primário, ela é parte do método utilizado para atingi-lo.
Portanto, mesmo seguindo esta segunda interpretação para sua
colocação, não nos parece que ela constitua uma verdadeira contra-argumentação
ao “argumento contra a intenção autoral”.
A seqüência de sua resposta, por outro lado, nos parece bem mais
consistente e persuasiva. Carroll procurará demonstrar que a alegação da “não-
operacionalidade” de sua teoria “é equivocada” (CAP: p.95) através do recurso, de
um lado, a alguns dados empíricos, e de outro, à identificação de uma
confusão/ambigüidade nesta alegação.
Lembremos que a alegação que Carroll buscará refutar é a da
“impossibilidade de reconhecimento de intenções autorais”. Em outras palavras,
seu opositor hipotético sustentaria a proposição de que “nenhuma intenção autoral

127
é possível de ser reconhecida”149. Para refutar este tipo de proposição, Carroll
levantará contra-exemplos particulares (e cotidianos), que pretendem estabelecer
um precedente para contradizer a generalidade da declaração. O autor nos
lembra, por exemplo, que:

Se alguém mantém aberta uma porta à minha frente, entendo-o como


uma demonstração da intenção de que eu entre, e geralmente não estou
equivocado. Quando alguém, à mesa, me passa um prato de batatas,
depreendo a sua intenção de que eu me sirva de batatas, e, novamente,
em geral minha conclusão está correta. Do mesmo modo, ao receber a
conta de luz, reconheço a intenção da companhia de que eu a quite. E
sempre que o faço, percebo que a minha conclusão estava certa (CAP:
p.95)

Estes exemplos permitem que Carroll afirme que, no cotidiano,


constantemente “atribuímos intenções a outras pessoas com um notável grau de
sucesso”, e que “se não fôssemos capazes de reconhecer as intenções das outras
pessoas”, “a vida social não teria condições de se desenvolver”. A razão disso é
que, sem um reconhecimento razoavelmente bem-sucedido de intenções, “não
teríamos como entender o comportamento, as palavras e atitudes dos demais”150
(CAP: p.95).
Os exemplos estabelecem que “é possível reconhecerem-se intenções
de outras pessoas”. Ora, se conseguimos fazê-lo com relação a algumas
experiências/pessoas de nosso cotidiano, então porque não haveríamos de
conseguí-lo em relação a obras/autores? O que haveria de essencialmente
especial a respeito de autores, que não nos permitira acessar suas intenções?

149
Nos termos da lógica clássica (silogismo) essa declaração é identificada como sendo do tipo
“declaração categórica universal negativa”, cuja forma geral é: “Nenhum A é B”. Para contradizer
este tipo de declaração, é logicamente válido demonstrar tanto que “Todo A é B”, como também,
simplesmente, que “Algum A é B”.
150
Noël Carroll deixa claro que não está a propor que “sempre conseguimos atribuir intenções aos
outros de forma bem-sucedida”. A proposição que defende é apenas de que é perfeitamente
possível (e até comum) de fazermo-lo (Cf. CAP: 95).

128
Não parece haver “nenhum fundamento para pensar que, por princípio, as
intenções dos outros sejam inescrutáveis” 151 (p.96).
O caso é que há, Carroll informa, “argumentos poderosos, com nomes
como ‘falácia intencional’ ou ‘morte do autor’”, defendidos por “estudiosos do
cinema e das humanidades”, que sustentam que “as intenções autorais são
inacessíveis, ou que assim deveriam ser consideradas” (p.96).
Suponhamos que estes argumentos sejam verdadeiros152, e que,
portanto, não seja possível acessar as intenções autorais relativas a obras
artísticas/comunicativas. Esse resultado se aplicaria também às intenções autorais
assertivas presentes na teoria do cinema da asserção pressuposta?
A primeira vista, pareceria ser este o caso, mas Carroll explicará que
não (CAP: p.96-98). Pois, o que ocorre aí, é um caso de falácia de equivocação,
onde um mesmo termo é usado com dois sentidos diferentes. O que Carroll quer
dizer com “intenções autorais” em sua teoria do cinema da asserção pressuposta
é diferente do que estes argumentos querem dizer com “intenções autorais”. No
primeiro caso, as intenções assertivas são “intenções categoriais” (p.97), enquanto
no segundo, trata-se da “interpretação do sentido” das obras (p.96, grifo nosso).
Embora nos dois casos seja usada a expressão “intenção autoral”, ela tem, em
cada um deles, natureza diferente153.
Carroll nos lembra que “uma coisa é interpretar um poema com base
em uma hipótese sobre o que o seu autor procurou significar, e outra é identificar
um poema com base na hipótese de que a categoria em que o autor pretendeu
escrevê-lo è a poesia” (p.97, grifos nossos). Portanto, “as razões para o ceticismo

151
Carroll nos lembra, inclusive, de que nosso reconhecimento de intenções “não se limita aos
vivos”, pois os “historiadores investigam as palavras e ações dos mortos com o objetivo de
determinar-lhes as intenções”. E.g., por acaso “os historiadores estão equivocados ao formular a
hipótese de que, no início de 1941, Hitler tinha a intenção de invadir a União Soviética [?]” (CAP:
p.96).
152
Carroll enfatiza que não crê que eles o sejam, pois “vários autores”, incluindo ele mesmo, têm
procurado demonstrar que estão equivocados (CAP: p.96).
153
Posteriormente retomaremos essa resposta de Carroll ao argumento contra as intenções
autorais (viz. 4.2).

129
com respeito à atribuição de intenções de sentido não se aplicam a (...) intenções
categoriais” (p.97).
Como vimos anteriormente, existe uma explicação perfeitamente
razoável, através do conceito de “indexação”, para a maneira como intenções
autorais categoriais são reconhecidas pelo espectador.
Portanto, estando demonstrado que as intenções autorais existentes na
teoria de Carroll são diferentes daquelas previstas no “argumento contra a
intenção autoral”, e estando explicado também como as intenções categoriais
assertivas, da teoria de Carroll, são reconhecidas por espectadores, conclui-se
que Carroll teve sucesso em refutar o argumento contra as intenções autorais.
A segunda objeção endereçada por Noël Carroll concerne a
objetividade. Segundo Carroll, ao assistirmos a um “documentário” (filme de
asserção pressuposta), nós “reconhecemos a intenção assertiva do cineasta de
que entretenhamos o conteúdo proposicional do filme como pensamento
assertivo” (CAP: p.101). Ou seja, ao assistirmos a este tipo de filme, nós
interpretamos as “proposições” (afirmações) que o filme realiza “como
pensamento assertivo”, isto é, como se o autor do filme acredita “que tais
informações são verdadeiras, e que, além disso, estão comprometidos com sua
probidade, conforme os padrões de evidência e argumentação apropriados ao
assunto em pauta”154 (p.101).
Portanto, por estarem relacionados com “padrões interpessoais de
evidência e argumentação”, os filmes de asserção pressuposta teriam um
“compromisso com a objetividade” (p.101). E aí é que reside o conflito, pois há
estudiosos de cinema que crêem “já ter sido conclusivamente demonstrado que a
objetividade é inalcançável nesse tipo de filme” (p.102):

154
Estas características fazem parte do próprio conceito de “asserção”, como veremos mais à
frente (viz. 4.1).

130
1. O que define o cinema da asserção pressuposta é a manifestação de uma
certa resposta pelo público, com base no reconhecimento de uma certa
intenção autoral. A resposta é a adoção de uma postura mental assertiva
perante a obra. E a intenção autoral é de que seja essa a postura a ser
adotada.
2. Se os filmes de asserção pressuposta requerem a adoção de uma postura
mental assertiva, então eles estão comprometidos com a objetividade.
3. Os filmes de asserção pressuposta requerem a adoção de uma postura
mental assertiva.
4. Logo, os filmes de asserção pressuposta estão comprometidos com a
objetividade.
5. A objetividade é inalcançável neste tipo de filme.
6. Logo, os filmes de asserção pressuposta estão comprometidos com algo
inalcançável.
7. Logo, a teoria do cinema da asserção pressuposta é inconsistente.

O resultado deste raciocínio supostamente indicaria a inutilidade da


teoria desenvolvida por Carroll. Contudo, a validade do raciocínio depende da
veracidade da quinta proposição (“a objetividade é inalcançável”). Os “céticos pós-
modernos” adotam-na como um “pressuposto” a priori verdadeiro (Cf. CAP: p.102-
103), mas essa posição não representa um consenso dos estudiosos da área, e o
próprio Carroll já a contestara anteriormente155 (viz. 3.1.2 e 3.2). Vejamos, de
forma breve, a defesa de Carroll.
A proposição de que “a objetividade é inalcançável neste tipo de filme”
é obtida através da constatação de que: 1) estes filmes são seletivos; 2)
seletividade implica em enviesamento; 3) enviesamento implica em ausência de
objetividade.

155
O autor remete aqui a seus dois textos anteriormente examinados, FRTR e PMS (Cf. CAP:
p.102, nota 33).

131
Contudo, Carroll nos lembrará, não é verdade que a presença de
seletividade implica necessariamente em ausência de objetividade. Pois, a
“seletividade é um aspecto essencial” das mais diversas áreas de investigação, e
“se a seletividade não representa um problema para a objetividade” delas, ela
também não deve ser “um problema a priori para os realizadores de filmes de
asserção pressuposta” (Cf. p.102-103).
Poder-se-ia ainda tentar estender o argumento, advogando-se que a
objetividade é “inalcançável em qualquer tipo de discurso ou investigação”, mas
esta seria uma posição que “refuta-se a si própria”. Seus proponentes “agem
como se estivessem apresentando razões objetivas” para sustentar esta posição,
no entanto, isso não seria logicamente possível, visto que “a própria noção de
razão objetiva” está sendo colocada em questão neste argumento (Cf. p.103).
Portanto, o argumento contra a objetividade também não é bem-
sucedido em fazer frente à teoria proposta por Carroll.
Os “argumentos mais prováveis para a rejeição” de sua teoria, Carroll
diz, são estes dois argumentos examinados: contra a intenção autoral, e contra a
objetividade. Tendo ambos sido refutados, Carroll conclui, sua “teoria do cinema
da asserção pressuposta é provisoriamente aceitável e o ônus da prova passa aos
céticos, para que demonstrem o contrário” (CAP: p.103).
Enfim, o percurso de pensamento desenvolvido em CAP, para a
apresentação da teoria do cinema da asserção pressuposta, é, sem dúvida, muito
interessante e bem desenvolvido. Contudo, se levamos em conta o argumento
contra a distinção entre ficção e não-ficção (p.73-80), o argumento contra a
intenção autoral (p.94-101), e o argumento contra a objetividade (p.101-103),
parece-nos que um espaço de texto bem grande é dedicado a refutação de
objeções e opositores. De fato, parece que um espaço excessivo è dedicado à
disputa teórica, o que torna a leitura do texto um pouco cansativa.
Talvez esse não seja, no fim, um inconveniente particular da teoria do
cinema da asserção pressuposta, mas sim daquele já citado “ânimo dialético”

132
presente no método filosófico analítico, que é colocado em prática por Noël Carroll
continuadamente.

3.5. Do documentário ao cinema da asserção pressuposta

Como indicáramos anteriormente, talvez o texto mais importante de


Noël Carroll sobre o cinema documentário seja Ficção, Não-Ficção e o Cinema da
Asserção Pressuposta (CAP). Isso porque, além de ter sido escrito originalmente
para uma antologia que investiga as relações entre teoria do cinema e filosofia
(interseção temática de notável importância), e de ser um dos textos mais
recentes do autor sobre o tema156, é neste texto que Carroll apresenta sua teoria
que pretende definir claramente este gênero fílmico, o que proviria a comunidade
acadêmica com aquele tipo de produção intelectual que se considera de
“aplicabilidade mais manejável”157 (embora, como vimos, esta teoria está longe de
ser simples). Acrescente-se a isso o fato de ser este o único texto de Carroll sobre
o tema que foi traduzido para o português, o que o torna o texto mais importante
ao menos para nós, falantes deste idioma.
Contudo, apesar deste relevo de CAP, devemos lembrar que os quatro
textos de Carroll discutidos, que abordam o cinema documentário, foram escritos
em um intervalo temporal de aproximadamente vinte anos: 1983 – 2000. Assim,
embora se possa considerar CAP como o estado da arte do pensamento de
Carroll sobre o documentário, será útil considerar-mo-lo em perspectiva desta
trajetória mais ampla do pensamento do autor. Para tanto, comentaremos alguns
pontos que se nos evidenciaram neste percurso de investigação.
156
Apenas Photographic Traces and Documentary Films (CARROLL, 2000) lhe é posterior.
157
Definições conceituais costumam ser evocadas como referência para diversos
empreendimentos investigativos, mesmo quando se opta por omitir a eventual complexidade de
seu processo de construção/argumentação e apresentar apenas a síntese de seu “resultado”. Ou,
em termos já discutidos por Carroll, definições conceituais (viz. CAP) são tratadas como premissas
verdadeiras a priori, às quais são, no universo acadêmico, muito mais “produtivas”, através de sua
“aplicação” sobre um “objeto” para obtenção de algum “resultado”; do que, por exemplo, uma
contra-argumentação a respeito da inconsistência de uma dada posição epistemológica (viz. PMS).

133
3.5.1. A TRADIÇÃO DO DOCUMENTÁRIO

Primeiramente, com a leitura de CAP, percebe-se que Noël Carroll está


a oferecer uma teoria do cinema documentário (ou, do “cinema da asserção
pressuposta”) aparentemente consistente e bastante persuasiva. Entretanto, é
difícil não se colocar certo tipo de indagação sobre o empreendimento deste autor:
Por que é que na teoria exposta em CAP, Noël Carroll não faz referência aos
filmes considerados mais importantes neste gênero cinematográfico? Porque em
CAP são citados apenas exemplos “menores”? Por que Carroll lá não menciona
os principais teóricos da área? Será que Carroll os desconhece a todos? Qual a
causa destas aparentes lacunas em sua teorização?
Se se toma CAP como única “amostragem” do pensamento do autor
sobre o documentário, CAP provoca a impressão de certa incompletude ou
“autocentramento” de Carroll perante o campo do documentário. No entanto, ao
longo de nosso itinerário pelo pensamento do autor, deve já estar clara ao menos
uma resposta a estas indagações: - Não, Carroll não os desconhece. Noël Carroll
não ignora a “tradição” da produção fílmica ou da reflexão do cinema
documentário. Tentemos então esboçar algumas razões para esta aparente
“ausência”.
Vejamos primeiro a questão da filmografia central a este campo. Em
CAP, enquanto desenvolve sua teoria, a maioria 158 dos filmes indexados como
“documentários” que são mencionados pelo autor, são documentários cabo159, por
exemplo: Florestas Tropicais, do National Geographic Society Special; Nautilus, do
History Channel; ou Reptiles and Amphibians (1968). Essa amostragem de obras
que representaria a categoria “documentário” parece pequena e desinteressante.
Estaria limitado a isto o conhecimento de Carroll sobre o gênero?
Certamente que não, pois bem antes, em FRTR, Carroll já demonstrara
conhecer um conjunto bem maior e diversificado de documentários, tendo citado
158
As exceções são: Hoop Dreams (1994) e Roger e Eu (1989).
159
Documentários televisivos contemporâneos, do estilo clássico.

134
em suas discussões: Nanook do Norte (1922), The Fall of the Romanov Dinasty
(1927), O Homem da Câmera (1929), Turksib (1929), Three Songs of Lenin
(1934), The Song of Ceylon (1934), Triunfo da Vontade (1935), Night Mail (1936),
The Plow that Broke the Plains (1936), Crônica de um Verão (1960), e A Batalha
do Chile (1975-79).
Além destas obras, Carroll também cita em FRTR diversos outros
cineastas realizadores de documentários: John Grierson, Fernando Solanas e
Octavio Getino, Robert Drew, Frederick Wiseman, Chris Marker, e Jean Rouch.
Ora, através deste conjunto de filmes e diretores, pode-se perceber que
Carroll possui claro conhecimento da história do documentário clássico e do
moderno160 (cinema direto e cinema verdade). Então como explicar a ausência
deles em sua teoria exposta em CAP?
Nossa hipótese explicativa se baseia numa passagem de PMS. Carroll
lá nos revela sua constatação de que os “estudiosos de cinema estão
primariamente interessados em um tipo de filme documentário”, que é o
“documentário de arte” (art-documentary) (PMS: p.177).
Alguns exemplos oferecidos por Carroll de “documentários de arte”
seriam O Homem da Câmera (1929), Terra Sem Pão (1933), Crônica de um Verão
(1960) e A Tênue Linha da Morte (1988) (p.177).
Estes documentários de arte seriam filmes que:

“demonstram uma preocupação com os temas da reflexividade e


subjetividade autoral”, “chamando a atenção reflexivamente para a
natureza do filme, para os dispositivos cinematográficos, para a história
do cinema, para a retórica do cinema, para estereótipos fílmicos, para a
construção, enquanto ocorre, do filme exibido, para o cineasta ele
mesmo” e etc (PMS: p.177).

160
Poder-se-ia questionar a ausência, em FRTR, de exemplos do “documentário contemporâneo”,
como os “documentários performáticos” (Cf. NICHOLS, 2005) ou “documentários de busca” (Cf.
BERNARDET, 2005), mas é preciso ter em mente que FRTR foi escrito no início da déc. 80,
quando ainda não haviam se consolidado essas tendências do documentário contemporâneo.

135
Ou seja, os estudiosos do cinema documentário preocupam-se
(aparentemente de forma exclusiva) com filmes que se poderiam considerar
“obras-primas”, os casos mais estilisticamente elaborados e instigantes, que
partilham muitos procedimentos e preocupações com a arte modernista e pós-
modernista (Cf. p.177).
O problema é que, pelo que Carroll nota, este tipo de filme “é
provavelmente menos significante estatisticamente” do que documentários que
são exibidos nos circuitos de cinema comercial (documentary motion pictures) ou
“filmes informativos” (PMS: p.177, grifo nosso).
Assim, ao se tomar estes documentários de arte como os únicos (ou
principais) exemplos de filmes considerados em suas teorias e discussões, os
estudiosos do cinema documentário poderiam ser acusados de representar
equivocada ou tendenciosamente (misrepresent) este gênero fílmico.
Este seria, pensamos, o problema que Noël Carroll procuraria evitar, ao
não mencionar, na sua teoria desenvolvida em CAP, estes casos mais exemplares
da história do documentário. Carroll estaria tentando desenvolver uma teoria do
documentário que fosse coerentemente explicativa dos casos mais
estatisticamente relevantes do gênero documentário. Trata-se de tentar explicar o
centro do fenômeno (este gênero fílmico), e não seus “casos periféricos” de
destaque. O que não significa, como demonstramos, que o autor desconheça
estes casos mais notáveis.
Passemos à segunda questão, sobre os teóricos mais relevantes para o
campo do documentário. Em CAP, enquanto Carroll desenvolve sua teoria,
novamente sente-se esse tipo d “lacuna”. Dos principais teóricos desta área, há
apenas uma menção muito rápida, e em notas de rodapé, de Brian Winston161 e
Michael Renov162. E são mencionados brevemente, nas mesmas condições, Carl

161
Brian Winston, Claiming the Real, London: British Film Institute, 1995. Caroll cita esta obra como
fonte de informação sobre o sentido da noção de documentário como “tratamento criativo das
atualidades”, que tinha John Grierson (Cf. CAP: p.70, nota 4).
162
Michael Renov (Ed.), Theorizing Documentary, New York: Routledge, 1993. Carroll cita a
introdução desta coletânea, escrita por Renov, como exemplo do argumento da indistinção entre

136
Plantinga163 e Trevor Ponech164, estes dois últimos de projeção bem mais restrita
aos interessados nas abordagens cognitivista-analíticas, que se intersecionam
com a filosofia. Será que Carroll ignora o que de maior repercussão se tem
produzido nos estudos de cinema documentário?
Ora, após examinarmos esse percurso de pensamento do autor,
concluímos certamente que não. Pois, no próprio PMS, Carroll se dedicara a
realizar essa atividade da interpelação direta com o núcleo de maior repercussão
nos estudos de cinema documentário165: Bill Nichols e seu Representing Reality,
Michael Renov e seu Theorizing Documentary e Brian Winston.
Como vimos, Carroll conseguiu reconhecer, lá, certos padrões de
argumentação e pontos em comum entre todos estes estudiosos, o que foi
agrupado sob a designação de uma “abordagem cética pós-moderna” do
documentário, e que foi analisada por Carroll tanto em seu âmbito geral, como em
aspectos detalhados das reflexões de cada um destes pesquisadores.
E isso sem mencionar ainda a produção intelectual dos próprios
cineastas, como John Grierson e Dziga Vertov, que também é referenciada por
Carroll em PMS.
Fica claro, portanto, que Noël Carroll também possui conhecimento da
tradição de reflexão sobre o cinema documentário. Então porque é que este amplo
conhecimento não é mobilizado de forma explícita em CAP?

ficção e não-ficcão, feito com base no reconhecimento do compartilhamento de procedimentos


formais entre ambos (Cf. CAP: p.73, nota 8).
163
Carl Plantinga, Rhetoric and Representation in Non-Fiction Film, New York: Cambridge
University Press, 1997. Carroll cita Plantinga como tendo desenvolvido uma análise do
documentário que partilha pontos com a sua própria, através do “modelo comunicativo de intenção-
resposta” (Cf. CAP: p.91: p.26).
164
Trevor Ponech, “→hat is Non-Fiction Cinema?”, in: Richard Allen; Murray Smith (Ed.), Film
Theory and Philosophy, New York: Clarendon Press / Oxford, 1997, p.203-220. Carroll cita Ponech
como um autor que partilha a idéia de que seja possível distinguir a ficção da não-ficção através de
intenções autorais (Cf. CAP: p.79, nota 11).
165
PMS foi publicado originalmente em 1996, então o diálogo de Carroll, lá, com o que se produziu
na teoria do documentário, está limitado até esse ano.

137
A resposta curta seria: - Pois tal não é necessário. Nossa hipótese de
explicação mais longa remete à uma inclinação de Carroll, revelada em uma
passagem de sua entrevista com Ray Privett (2001: PT4). Carroll lá afirmou:

Eu sempre pensei que se deve manter seus comprometimentos gerais


restritos, e tentar fazer suas observações de maneira que elas sejam
compatíveis com muitos referenciais teóricos diferentes. [Por exemplo,]
Não se comprometa com a explicação de como processos mentais
variados funcionam. Isso pode não ser relevante para o caso em
questão. Apenas tente trabalhar num nível [de generalidade] em que (...)
suas descobertas serão compatíveis (...) com as teorias que vierem a se
provar as melhores. [Por exemplo,] Porque é que os estudiosos de
cinema tem que se comprometer com a metafísica e a natureza da
identidade? De todas as alegações que eles têm de avaliar, essas são as
que eles estão menos aptos a fazê-lo.

Nesta passagem, Carroll revela inclinar-se a um princípio de economia


epistemológica (e/ou ontológica?), segundo o que não se deveria se comprometer
teoricamente com explicações que não são logicamente necessárias ao trabalho
em questão, e que transcendem seu âmbito. A idéia assemelha-se à da “navalha
de Ockham”166. Isso garantiria que uma dada teoria tivesse maior aproveitamento
(“vida útil”), caso posteriormente sejam negadas ou comprovadas outras teorias
que são implicadas logicamente por esta primeira.
Pois bem, como vimos, no caso da teoria do cinema da asserção
pressuposta, exposta por Carroll em CAP, para sua explicação não é necessária a
referência e interpelação de outros teóricos de relevo no campo do documentário -
o que lá é necessário é, por exemplo, explicar como a ficção se distingue da não-
ficção, ou o que ocorre quando se assiste a um filme de asserção pressuposta.
Isso para não mencionar, como vimos em PMS, que Carroll discorda da posição
da maioria destes teóricos contemporâneos do documentário. Logo, não teria o

166
A Navalha de Ockham (ou Occam), também conhecida atualmente como “Lei da Parcimônia
Científica”, é um “princípio lógico” que determina que “a explicação para qualquer fenômeno deve
assumir apenas as premissas estritamente necessárias à explicação deste e eliminar todas as que
não causariam nenhuma diferença aparente nas predições da hipótese ou teoria”. Cf. →illard
Quine, De um Ponto de Vista Lógico, São Paulo: Editora Unesp, 2011, p.12, nota 1.

138
mínimo sentido “cobrar”, em CAP, a interpelação direta de Carroll com a tradição
da reflexão sobre o documentário.

3.5.2. O CONCEITO DE DOCUMENTÁRIO

Além destes dois pontos iniciais que concernem a relação de Carroll


com a tradição da produção e reflexão do documentário, é interessante também
considerarmos a transformação que ocorre no próprio conceito de “documentário”,
ao longo da trajetória do pensamento deste autor analisada.
Tomemos FRTR como ponto de partida. Neste primeiro texto do autor
percebe-se que Noël Carroll está a usar tanto os conceitos de “documentário”
como de “filme de não-ficção” de modo equivalente (Cf. FRTR: p.224; 225 et
passim). Carroll fala, por exemplo, no mesmo contexto, que “dizer ao público o
que pensar violava sua [do cinema direto] concepção do que era ser um
documentário”, e que certa discussão relacionada ao cinema direto “estigmatizou
o cinema não-ficcional” (Cf. FRTR: p.225). Neste trecho, como em tantos outros
de FRTR, fica bem claro que Carroll alterna a utilização destes dois termos, sem,
contudo, alterar a referência pretendida.
Mas, pelo que pudemos ver até agora, a utilização destes dois
conceitos como equivalentes não parece estar correta. E isso, deve-se ressaltar,
fora já notado (embora não exatamente com estes termos) em uma resenha feita
por uma das primeiras leitoras de FRTR, Carol Browson 167, que foi publicada
também em 1983, no mesmo número do periódico Philosophical Exchange, nas
páginas seguintes ao próprio FRTR168.
Como resposta, Noël Carroll publica, no mesmo número de
Philosophical Exchange, sua réplica à resenha recebida, através do breve texto

167
Carol Browson, “Objectivity and Nonfiction”, in: Philosophical Exchange, 14, 1983, p.47-54.
168
Além da resenha de Carol Browson, FRTR também recebeu, na mesma publicação, uma
resenha por parte de Jack C. Wolf: “Carroll’s ‘From Real to Reel’”, in: Philosophical Exchange, 14,
1983, p.55-58.

139
Reply to Carol Browson and Jack C. Wolf169 (CARROLL, 1996d). Carroll aí
responde à chamada de atenção sobre o uso que faz do conceito de “filme de
não-ficção”, reconhecendo que os apontamentos de Carol Browson estão
corretos. Ele admite que, em FRTR, fala “como se o cinema de não-ficção fosse
uma classe essencialmente unificada” de objetos, “quando não o é” (Cf. RBW:
p.253).
Carroll explica que, na verdade, “tinha em mente usar ‘[filme de] não-
ficção’ como uma identificação para todo o tipo de filmes de fato pressuposto [films
of purpoted fact] – filmes históricos, filmes antropológicos, filmes de eventos
atuais, etc.” (Cf. RBW: p.253). Mas Carroll percebe que, embora não o tenha
pretendido, alguns poderiam pensar que ele estivesse a sustentar que “tudo o que
não é ficção [nonfiction] tem algum padrão epistêmico de avaliação”170 (Cf. p.253).
Mas este não era o argumento que Carroll pretendia defender171, e sim apenas
que documentários - ou, para usar a expressão que Carroll cunha para tentar ser
mais preciso, “filmes de fato pressuposto” – “podem ser objetivos” (p.253).
Carroll também concorda com Browson que ele “deveria evitar definir a
não-ficção172 pela razão de que ela não é uma classe homogênea de coisas, mas
sim um amontoado de coisas agrupadas apenas por não serem ficções” (p.253).
Ou, pelo menos, é isso o que Carroll fará neste primeiro momento, ainda em 1983.

169
Reply to Carol Browson and Jack C. Wolf foi publicado originalmente em: Philosphical
Exchange, 14, 1983, p.59-64. Posteriormente, o texto foi republicado na coletânea Theorizing the
Moving Image (1996e). Utilizamos esta última versão como referência (CARROLL, 1996d). Por
economia, adotaremos a sigla “RB→” para se referir a este texto.
170
É bem plausível, e até previsível, que se chegue a esse tipo de interpretação, pois em algumas
passagens de FRTR Carroll caracteriza o “filme de não-ficção” da seguinte forma: “Filmes de não-
ficção são aqueles que avaliamos com base em suas alegações de conhecimento estarem ou não
de acordo com os padrões objetivos apropriados a seu tema. Produtores, escritores, diretores,
distribuidores e exibidores indexam seus filmes como não-ficção, através do que nos solicitam a
colocar em jogo os padrões de evidência e argumentação” (FRTR: p.237).
171
Pois, se o fosse, Carroll teria atribuído a realização de alegações de conhecimento a um
conjunto bem mais amplo de filmes, que incluiria filmes de vanguarda (e.g., Serene Velocity, 1970).
Para esclarecer esse ponto veja-se, por exemplo, como Carroll tratará posteriormente, em CAP, a
questão da não-ficção e da postura mental que esta requisitaria ao espectador (Cf. item 3.4.3.2).
172
De nosso ponto de vista, Carroll chega sim a tentar definir esse conceito, algumas vezes, em
FRTR. Pensamos que Carroll esteja então, em RB→, “se retratando” quanto a essas definições
esboçadas de forma equivocada.

140
Percebemos, assim, que em FRTR, há este uso “emaranhado” dos
conceitos de “documentário” e de “filme de não-ficção”. Este uso é notado por um
crítico, que observa que Carroll acaba, inadvertidamente, atribuindo propriedades
(e.g., alegações de conhecimento, ou referência ao mundo real) a todo o conjunto
mais amplo do cinema não-ficcional, quando, em verdade, o que Carroll pretendia,
era atribuí-las apenas ao conjunto mais restrito do cinema documentário (“filmes
de fato pressuposto”).
Este uso inconsistente é então esclarecido por Carroll em RBW, sem,
contudo, que ele se coloque a definir conceitualmente, e de forma precisa, cada
um destes conceitos. Carroll apenas reconhece ali a diferença extensional entre
ambos, e esclarece a qual das extensões seu uso recorrente de “filme de não-
ficção” pretendia se referir – que era apenas ao sub-conjunto dos ”filmes de fato
pressuposto”.
Ora, essa última noção evocada muito rapidamente em RBW, parece já
constituir uma forma “embrionária” da idéia que Carroll tem sobre o conceito de
“documentário” e que conseguirá, posteriormente, definir de maneira
conceitualmente precisa em CAP – “cinema da asserção pressuposta”.
Mas antes disso, temos PMS. Ali, pode-se perceber que, embora ainda
não tendo definido conceitualmente cada um destes dois termos-chave
(“documentário” e “filme de não-ficção”), Carroll mantém em mente a diferença
extensional existente entre ambos, e contextualiza seu uso do primeiro.
Veja-se, por exemplo, o primeiro parágrafo de PMS, em que Carroll, ao
mencionar a invocação freqüente que se faz da filosofia na área do cinema não-
ficcional, afirma que “um grande número de filmes não-ficcionais pretendem
transmitir informações sobre o mundo” (PMS: p.165).
Carroll oferece uma nota explicativa (p.189, nota 1) sobre esta breve
caracterização. Na nota, ele diz:

Nem todos os filmes não-ficcionais estão envolvidos em fazer alegações


de conhecimento, por isso limitei minha observação apenas a “um grande
número de filmes não-ficcionais”. É por isso, também, que filmes de não-

141
ficção não podem ser caracterizados [no conjunto] em termos de um
compromisso em oferecer informação objetiva sobre o mundo.

Ao final dessa nota explicativa, Carroll remete à RBW para “maiores


informações” (PMS: p.189, nota 1). Ora, e o que isso quer dizer?
Em primeiro lugar, Carroll ainda continua, em PMS, a utilizar os termos
“documentário” e “filme de não-ficção” de maneira intercambiável. Ainda na
primeira página, por exemplo, ele afirma que teóricos de cinema invocam a
filosofia para “questionar as alegações de conhecimento realizadas por filmes não-
ficcionais”, e, no mesmo contexto, que existe a idéia de que “qualquer alegação de
conhecimento objetivo feita por um documentarista está impedida a priori” (PMS:
p.165, grifos nossos).
Em segundo lugar, contudo, apesar de ainda haver esse uso
intercambiável entre “documentário” e “filme de não-ficção”, Carroll tem em mente
a diferença extensional existente entre ambos, e especifica ao leitor que sua
utilização do termo “filme de não-ficção” estará restrita a este subconjunto
daqueles filmes que realizam alegações de conhecimento sobre o mundo - ou,
para usarmos os termos que agora sabemos serem mais apropriados, Carroll
especifica que seu uso e caracterizações do termo “filme de não-ficção” estarão
restritos ao subconjunto dos documentários, ou filmes de fato pressuposto.
Assim, embora ambas as noções não tenham sido conceitualmente
definidas e distinguidas, de forma clara, em PMS, ao realizarmos esse
cotejamento em perspectiva, percebemos que o texto de Carroll já denota haver
um movimento de pensamento do autor nesta direção.
Posteriormente, quando chegamos a CAP173, temos, por fim, a
aguardada e bastante útil definição conceitual realizada de maneira clara e precisa

173
Não comentamos aqui o conceito de documentário que Carroll manifesta em PTD pois, como
explicamos, PTD é cronologicamente posterior à CAP, e lá, Carroll mantém o mesmo conceito de
documentário (filme de asserção pressuposta) que desenvolveu em CAP. Por exemplo, no
apêndice final presente na versão de PTD publicada em Engaging the Moving Image, Carroll
refere-se a sua “teoria do documentário, ou,” como ele prefere “designar a categoria, imagens em
movimento de asserção pressuposta” (PTD: p.233).

142
destes dois conceitos, de “filme de não-ficção” e de “documentário” (viz. 3.4.3.3 e
3.4.4). Como vimos anteriormente, Carroll explicita, em CAP, a diferença
extensional existente entre os dois termos, alega que o segundo seria um
subconjunto do primeiro, e se propõe a criar um novo termo, “cinema da asserção
pressuposta”, de extensão intermediária entre os dois anteriores, que visa
solucionar essa incompatibilidade extensional.
De forma que temos agora, no conceito de cinema da asserção
pressuposta, desenvolvido em CAP, a definição precisa daquela primeira noção
de “filme de fato pressuposto”, apenas intuída em FRTR/RBW.
Enfim, pensamos que a designação “do documentário ao cinema da
asserção pressuposta”, que nomeia tanto este capítulo todo, como esta subseção
específica, pode se referir ao refinamento conceitual que parece ter ocorrido ao
longo do pensamento de Noël Carroll sobre este gênero cinematográfico, onde se
possuía (ou pelo menos se utilizava) inicialmente um conceito mais rudimentar ou
indistinto de “documentário” como sinônimo de “filme não-ficcional”, mas que se
nos mostrou progressivamente refinado até sua definição conceitualmente precisa
do “cinema da asserção pressuposta”.
Isso significa que pensamos que a teoria de Noël Carroll do cinema da
asserção pressuposta seja absolutamente inequívoca, uma premissa
automaticamente verdadeira a partir da qual se deve, obrigatoriamente, pensar o
cinema documentário? Na verdade não. Esta teoria representa, sim, em nossa
opinião, o estado do pensamento deste autor sobre o cinema documentário, e
também se apresenta, para os estudiosos deste campo, como uma reflexão
extremamente bem desenvolvida e coerente sobre o tema, um recurso que
certamente merece ser bem explorado.
Contudo, apesar de todos seus méritos, pensamos que ainda há alguns
pontos da mesma que merecem maior debate, os quais evidenciaremos no
capítulo seguinte.

143
144
4. PROBLEMATIZAÇÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizamos nosso exame do pensamento de Noël Carroll sobre o


documentário, no capítulo anterior, observando que o estágio final deste
pensamento, manifesto na teoria do cinema da asserção pressuposta, se constitui
em uma reflexão bem desenvolvida sobre o tema, e certamente bastante valiosa
para esta campo de estudos, mas que, a nosso ver, contém alguns pontos que
necessitam ser melhor examinados.
Para tanto, era necessário disponibilizar um espaço dedicado, o que
será feito no presente capítulo. Cada um de seus itens considerará de forma mais
detalhada um ponto diferente da teoria do cinema da asserção pressuposta.

4.1. Asserção

Recapitulemos brevemente o aspecto geral da teoria do documentário


de Noël Carroll. Na teoria exposta em CAP, Carroll demonstra, como vimos (viz.
3.4.1 e 3.4.2), que o termo “documentário” é inadequado para se referir ao
conjunto de filmes que os estudiosos da área pretendem se referir ao utilizá-lo. A
razão disto é que o termo “documentário”, em várias de suas utilizações, refere-se
a uma extensão diferente de obras fílmicas. Para solucionar esse problema,
Carroll propõe a utilização de um novo termo que ele cria e define
conceitualmente, o “cinema da asserção pressuposta” ou “filme da asserção
pressuposta”174. E como se caracteriza este tipo de filme?
Quando lidamos com este tipo de filme, Carroll explica, nós
“presumimos que envolvam asserções”, de modo que eles “são avaliados em
termos das condições-padrão para a asserção não-defectiva” (CAP: p.89, grifo

174
A utilização alternada de “cinema” ou “filme” para se referir a esta categoria, que está presente
na versão traduzida do texto de Carroll (Cf. CAP), pretende refletir a referência alternada ora a todo
o conjunto deste gênero, ora a uma obra em particular (ou seu funcionamento). No texto original
(Cf. CAP-EN), essa diferença se dá pela utilização alternada de “films” ou “film”.

145
nosso). No núcleo da teoria do documentário de Carroll, encontra-se, portanto, o
conceito de asserção. Mas o que são exatamente “asserções”?
Na linguagem ordinária, é comum entender-se “asserção” como
sinônimo de “afirmação” ou “alegação”. Em CAP, Carroll não define precisa e
explicitamente este conceito, mas pelo contexto, pode-se deduzir que “asserções”
são tomadas como “alegações de verdade” (Cf. CAP: p.89) ou de conhecimento
(Cf. a discussão em PMS), que solicitam de seus receptores um estado mental de
crença em seu conteúdo (Cf. CAP: p.81; p.88).
Carroll sugere a consulta a John Searle, para “uma discussão da
asserção” (Cf. CAP: p.89, nota 23). Sigamos seu conselho.
Searle, na realidade, foi aluno e continuador da filosofia pragmática da
linguagem desenvolvida pelo britânico John Langshaw Austin (1911-1960).
Em uma série de conferências realizadas em Harvard em 1955 175, que
foram depois transcritas e publicadas na obra How to Do Things With Words176,
Austin apresenta os subsídios para uma teoria da linguagem com ênfase nos
proferimentos lingüísticos, isto é, na linguagem enquanto ação (pragmática).
A intuição básica desta perspectiva de trabalho, posteriormente
explicada por Searle (Cf. 1981: p.26)177, é que : “toda a comunicação lingüística
envolve actos lingüísticos”, e a “unidade da comunicação lingüística não é, como
se tem geralmente suposto, o símbolo, a palavra, ou a frase”. Ao se considerar
uma “ocorrência” lingüística “como uma mensagem”, se está lhe considerando
como tendo sido “produzida ou emitida” “sob certas condições”. A ocorrência
desta emissão é “um acto de fala”. E são “os actos de fala (...) a unidade básica
ou mínima da comunicação lingüística” (SEARLE, 1981: p.26).

175
Tratam-se das “Conferências →illiam James”, nas quais Austin se utilizou de notas e reflexões
que ele já estaria desenvolvendo em seus cursos, desde alguns anos antes (Cf. AUSTIN, 1990:
p.18).
176
Sua tradução em português foi nomeada Quando Dizer é Fazer: Palavras e Ação (AUSTIN:
1990).
177
Os Actos de Fala: Um Ensaio de Filosofia da Linguagem (SEARLE, 1981) foi traduzido e
publicado em Portugal. Manteremos as citações na forma exata com que elas se encontram nesta
versão traduzida, por considerar que não haverá problemas de compreensão.

146
Por essa centralidade conferida ao ato de fala, esta abordagem teórica
foi denominada de Teoria dos Atos de Fala. Ela parte do princípio geral de que
“falar é uma forma de comportamento regida por regras” (p.27), ou que “falar é
executar actos de acordo com certas regras” (p.33), e sugere que, ao se analisar
essas regras, pode-se identificar uma série de semelhanças e diferenças entre
emissões lingüísticas, o que permite lhes agrupar de acordo com uma tipologia.
Austin inicialmente havia identificado uma tipologia muito geral, dividida
entre atos de fala constativos e performativos.
O primeiro conjunto agruparia o tipo de sentença mais familiar à filosofia
e à lógica, que são as sentenças declarativas178 ou indicativas, cuja função é
“descrever um certo estado de coisas ou acontecimentos”, “informar acerca disso”
ou “relatar o que se passou” (Cf. AUSTIN: 1990: p.59). Estariam aqui localizadas
as asserções.
Quanto ao segundo tipo, dos atos performativos, Austin diz que ele “não
descreve, nem informa, mas é usado para fazer algo ou ao fazer algo” (p.59,
grifos nossos) (e.g., uma promessa, ou um pedido). Haveria, assim, uma
diferença na função geral de cada um desses tipos de ato de fala.
Contudo, no decorrer de sua investigação, Austin revê essa divisão, e
percebe que há muitas situações onde se enfraquece essa “distinção entre
proferimentos constativos e performativos” (Cf. p.58). Austin nota, por exemplo,
que os atos constativos não se constituem apenas de sentenças que se podem
avaliar como verdadeiras ou falsas, mas que há outras regras envolvidas em seu
proferimento. Uma “asserção [, por exemplo,] implica a crença no asserido” (Cf.
p.53, nota de rodapé). E a existência de certa postura mental, em relação ao
conteúdo do ato de fala realizado, é algo compartilhado também pelos outros
tipos.

178
A lógica lida com este tipo de sentenças, pois são possíveis de ser analisadas através da
atribuição de um “valor de verdade” verdadeiro ou falso. Austin diz que há uma “velha idéia de que
o proferimento constativo é verdadeiro ou falso” (Cf. AUSTIN, 1990: p.58).

147
John Searle (Cf. 1981; 2002), posteriormente, tomará as intuições,
categorias, e condições, relacionadas aos atos de fala, tal como foram percebidos
e desenvolvidos por Austin, e os reorganizará de acordo com seu próprio sistema
de classificação, que se pode considerar como sendo mais refinado.
Primeiramente, Searle identifica os “atos de fala completos”, também
chamados de “atos ilocucionais”179. São atos tais como: afirmar/asserir, pedir,
perguntar, prometer, aprovar, etc. (Cf. SEARLE, 1981: p.35).
Em segundo lugar, Searle mostra que o ato de fala ilocucional é, por
sua vez, composto por outras espécies de sub-atos de fala que lhe são internos.
Assim, quando um falante realiza um ato de fala ilocucional, ele está na realidade
executando todos os seguintes atos (Cf. p.35):

a) atos de enunciação: “enunciar palavras (morfemas, frases);


b) atos proposicionais: “referir e predicar” (identificar uma entidade, dentre as
demais; e atribuir-lhe propriedades ou relações com outras entidades);
c) atos ilocucionais: “afirmar, perguntar, ordenar, prometer, etc.” (formas de
ação no mundo através do uso da linguagem);

Ter consciência dessas distinções é importante, segundo Searle, para


se dar conta de que atos ilocucionais diferentes podem ser realizados através do
recurso aos mesmos atos enunciativos ou proposicionais. Por exemplo180:

1. Eduardo Coutinho é um documentarista famoso.


2. Eduardo Coutinho é um documentarista famoso?
3. Eduardo Coutinho é um documentarista bastante conhecido pelo público.

179
Searle mantém esse termo, que era usado por Austin, apesar de confessar não concordar com
ele completamente (Cf. SEARLE, 1981: p.35, nota 1).
180
Estes exemplos foram construídos à partir do exemplo de Searle (Cf. 1981: p.34), que usa a
sentença de base “João fuma muito” para apresentar pontos semelhantes.

148
As sentenças 1 e 2 efetuam o mesmo ato enunciativo, já que usam as
mesmas palavras (“Eduardo Coutuinho”, “é”, “um”, “documentarista”, “famoso”).
Ambas efetuam também o mesmo ato proposicional, pois tanto uma como a outra
se referem à mesma entidade (“Eduardo Coutinho”), e dela predicam a mesma
propriedade (“ser um documentarista famoso”). No entanto, cada uma destas duas
primeiras sentenças constitui um ato ilocucional diferente – uma asserção, no
primeiro caso; e uma pergunta, no segundo.
Por outro lado, se compararmos as sentenças 1 e 3, notaremos que
ambas realizam os mesmos atos ilocucional (asserção) e proposicional (mesma
entidade e mesma predicação181) e, no entanto, elas realizam atos enunciativos
diferentes (elas não contém as mesmas palavras).
Searle salienta a importante distinção entre o ato de fala da asserção,
por um lado, e a proposição que ele expressa, por outro. “Afirmar e assertar são
actos, mas uma proposição não é um acto. Uma proposição é o que é assertado
no acto de asserção (...)” (SEARLE: 1981: p.42-43).
De modo mais simples, entende-se, por essa perspectiva, que uma
proposição é o conteúdo de pensamento expresso através de uma emissão
lingüística. E o ato ilocucionário é o que lhe dá uma forma ou “força” particular -
seu “marcador de força ilocucional” (Cf. p.43).
Utilizamos, agora há pouco, a asserção como exemplo, mas essa
distinção entre “conteúdo proposicional” e “força ilocucionária” é válida para todas
as espécies de atos de fala ilocucionários. Searle representa essa distinção entre
o conteúdo proposicional de um ato e sua força ilocucionária, através da fórmula
esquemática: “F (p)”182 (Cf. SEARLE, 1981: p. 45; 2002: p.2).
Sendo assim, diferentes atos de fala ilocucionários, embora possam ter
o mesmo conteúdo proposicional, terão uma “força ilocucionária” diferente. E, com

181
Tecnicamente, para nossa afirmação estar correta, deve-se supor que exista uma “proposição
implícita”, que determina que “ser famoso” = “ser bastante conhecido pelo público”.
182
No caso, o símbolo que representa a força ilocucionária de uma asserção é “├”, e uma fórmula
representativa de uma asserção seria: “├ (p)” (Cf. SEARLE, 1981: p.45). A letra “p”, neste contexto,
representará qualquer conteúdo proposicional que se queira.

149
base nessa diferença de força ilocucionária, Searle propõe uma forma de
classificação das diferentes espécies de atos de fala183 (Cf. SEARLE, 1981: p.86-
95; 2002: p.1-46).
Essa classificação leva em conta características diversas dos atos de
fala, como seu “propósito ilocucionário”, sua “direção de ajuste”, o “estado
psicológico” que expressa, a gradação de sua “força” ou “compromisso”, etc. (Cf.
SEARLE, 2002: p.3-11). Ou, em outras palavras, “pode-se dizer que a noção de
força ilocucionária é a resultante de vários elementos” (p.4)
Com base nesses diferentes elementos/forças ilocucionários, Searle
(Cf. p.19-31) reconhece as seguintes classes de atos de fala:

1. Assertivos (e.g., afirmações, relatos, descrições, conclusões, etc.)


2. Diretivos (e.g., perguntas, pedidos, convites, ordens, súplicas, etc.)
3. Compromissivos (e.g., promessas)
4. Expressivos (e.g., desculpar-se, congratular, dar boas vindas, etc.)
5. Declarações184 (e.g., excomungar, batizar, casar, doar e legar bens,
declarar guerra, etc.)

No caso que nos interessa, dos atos assertivos, Searle diz que seu
propósito ilocucionário185 é de “comprometer o falante (em diferentes graus) com o

183
Por economia, de agora em diante, abreviaremos a expressão “atos de fala ilocucionários”
simplesmente para “atos de fala”. Caso queiramos, por outro lado, nos referirmos aos atos
enunciativos ou proposicionais, isso será especificado em cada caso.
184
Essa classe de atos ilocucionários, talvez mais do que as outras, depende, aponta Searle
(2002: p.28) de uma “instituição extralingüística, e tanto o falante como o ouvinte devem ocupar
lugares especiais no interior dessa instituição”. Exemplos dessas instituições seriam “a igreja, o
direito, a propriedade privada, o estado”. A classe das declarações representa bem o tipo de ato de
fala que Austin considerava como performativo.
185
Em oposição a um “propósito perlocucionário”, que implica na intenção de criar transformações
efetivas nas “ações, pensamentos, ou crenças, dos ouvintes” (e.g., persuadir, assustar, levar
alguém a fazer algo, etc.) (Cf. SEARLE, 2002: p.37).

150
fato de algo ser o caso186, com a verdade da proposição expressa”. Eles são
avaliáveis como “verdadeiros” ou “falsos” SEARLE, 2002: p.19).
Quem assere que p, “expressa a crença de que p” (p.19), pois “ao
realizar qualquer ato ilocucionário com um conteúdo proposicional, o falante
expressa uma atitude, um estado [mental], etc. com respeito a esse conteúdo
proposicional” (SEARLE, 2002: p.6).
Outra característica dos atos assertivos é que eles têm uma “direção de
ajuste” no sentido “palavra-mundo” (p.19), ou seja, há a intenção de “fazer as
palavras (mais precisamente, seu conteúdo proposicional) corresponder ao
mundo” (Cf. p.4;19) – fazer que p represente adequadamente um estado de
coisas.
Searle (2002: p.19) utiliza a seguinte fórmula para simbolizar a classe
dos atos assertivos:

 ├ B (p)

Aqui, o primeiro símbolo (“├”) indica o propósito ilocucionário


(compromisso com a verdade de p); o segundo símbolo (“ ”) indica sua direção de
ajuste (palavra-mundo; isto é, pretende-se que p represente como as coisas
efetivamente são); a letra “B”187 indica o estado psicológico expresso (crença em
p); e a letra “p” representa algum conteúdo proposicional que se queira.
Bem, todo este panorama dos atos de fala e da definição de “asserção”
segundo Searle, pretendem nos possibilitar uma melhor compreensão da teoria de
Noël Carroll. Já que o conceito de “asserção” é central a sua teoria do cinema da
asserção pressuposta e, no entanto, Carroll não nos proporciona uma definição

186
Em outros termos, Searle (2002: p.3) diz que o propósito deste tipo de ato é “ser uma
representação (verdadeira ou falsa, precisa ou imprecisa) de como alguma coisa é”.
187
A razão do uso de “B” para simbolizar o estado de “crença” é que, no original em inglês, trata-se
da palavra “belief”.

151
desse conceito, era necessário que recorrêssemos à sua fonte - a teoria de John
Searle - para poder compreendê-lo adequadamente.
Sabemos agora, assim, que ao se pronunciar certas palavras ou ao se
escrever alguma coisa, se está realizando atos de fala (Cf. SEARLE, 1981: p.59).
Tais atos de fala se dividem em níveis diferentes, que ocorrem simultaneamente,
incluindo o ato enunciativo (emissão das palavras), o ato propositivo (referir e
predicar) e, por fim, o ato de fala em sua totalidade, que consiste no ato
ilocucionário (asserir, pedir, prometer, perguntar, etc.).
A asserção, pois, consiste em apenas um dos diversos tipos de atos de
fala ilocucionários. E, ao se realizar uma asserção, sabemos agora que se está
pretendendo descrever um estado de coisas; se está se comprometendo com o
fato de essa descrição ser verdadeira; e se está expressando a crença de que as
coisas são realmente desta forma.
Compreender estas características do ato de fala da asserção nos
permite entender porque, afinal de contas, Noël Carroll confere tanta importância
às questões de “objetividade”, “verdade” e “alegações de conhecimento”, a ponto
de debater esses temas repetida e detalhadamente, no curso de seus artigos
sobre o cinema documentário (Cf. FRTR; PMS; CAP).
O compromisso do emissor com a verdade do conteúdo proposicional
expresso pelo que ele asseriu é uma condição para a realização de uma asserção
bem-sucedida (“não-defectiva”). E a abordagem do documentário através do
conceito de asserção faz com que esse tipo de comprometimento seja também
uma condição para que um filme seja considerado um documentário (filme de
asserção pressuposta). Carroll afirma, em CAP (p.89), que “tais filmes são
avaliados em termos das condições-padrão para a asserção não-defectiva”, o que
inclui “que o cineasta esteja comprometido com a verdade (...) das proposições
expressas pelo filme”.
Devemos nos lembrar que a “questão ética” é considerada hoje de
fundamental importância para a discussão deste gênero audiovisual (Cf. RAMOS,
2005a; 2008), e a teoria do cinema da asserção pressuposta garante que ela terá

152
sempre seu lugar de destaque, já que nela estão implicados os comprometimentos
e crenças do cineasta com relação aquilo que ele alega.

4.2. Significado

A discussão anterior do conceito de asserção e de suas implicações, no


que se inclui, o comprometimento do emissor com a verdade do conteúdo
proposicional asserido, remete a outro ponto da teoria do cinema da asserção
pressuposta - a questão do significado.
Sendo a asserção um ato de fala ilocucionário, ela invariavelmente
mobilizará significados, pois sempre que se realiza um ato ilocucionário, “os sons
ou signos gráficos” nele produzidos “têm uma significação”, e através de sua
enunciação, “se quer dizer alguma coisa” (SEARLE, 1981: p.59).
Searle “toma de empréstimo” algumas idéias do filósofo da linguagem
Paul Grice (Cf. SEARLE, 1981: p.59) e as revisa188, propondo a seguinte
descrição do significado: quando um falante “F emite e quer significar a frase T”,
isto equivale a (Cf. p.68):

F emite T e:
a) F pretende (i-I) que a emissão U de T produza em O o conhecimento
(reconhecimento, consciência) de que os estados de coisas
especificados pelas (algumas das) regras de T se dão. (Chamemos a
este efeito, efeito ilocucional, EI)
b) F pretende que U produza EI através do reconhecimento de i-I.
c) F pretende que i-I seja reconhecido em virtude do (através do)
conhecimento que O tem das (algumas das) regras que governam
(os elementos de) T

188
Apesar de Searle achar interessante sua abordagem geral, ele discorda de alguns pontos da
definição de Grice sobre o significado. Especificamente, Searle (Cf. 1981: p.60) pensa que a
definição de Grice do significado “é defeituosa” pois “confunde actos ilocucionais com actos
perlocucionais”, ao estipular que a significação é questão de se gerar certos efeitos no interlocutor.
Na definição revista proposta por Searle, ele deixará claro que a significação implica apenas em
efeitos de compreensão (“efeito ilocucional”). Qualquer efeito perlocucionário é secundário em
relação a uma emissão, e não necessário ao significado desta.

153
Temos, nessa definição da significação, os seguintes elementos: um
falante (“F”); um ouvinte (“O”); uma frase189 (“T”); a emissão desta frase (“U”); uma
intenção ilocucionária (“i-I”); e um efeito ilocucional (“EI”).
Uma vantagem deste tipo de abordagem, diz Searle (1981: p.60), é que
ela “faz uma conexão entre significação e intenção” (p.60). Em termos mais
simples, esta definição estabelece que:

1. Existe um emissor (“F”) e um receptor (“O”) interagindo.


2. O emissor realiza um ato de fala (uma emissão “U”) que mobiliza um
conteúdo proposicional (uma frase “T”).
3. O emissor (“F”) tem uma intenção ilocucionária (“i-I”) de que o receptor (“O”)
compreenda (“EI”) o conteúdo proposicional (“T”) veiculado pelo ato de fala
(“U”).
4. O emissor (“F”) pretende que essa compreensão (“EI”) ocorra em função do
receptor (“O”) reconhecer sua intenção (“i-I”).
5. Há regras (lingüísticas, institucionais, etc.)190 compartilhadas pelo emissor
(“F”) e pelo receptor (“O”), que governam o uso do conteúdo proposicional
(“T”) em questão, e garantem que o reconhecimento descrito em 4 ocorra.

Ora, este esquema comunicacional que explica como um ato de fala


veicula significado nos apresenta alguma familiaridade. Como vimos anteriormente
(viz. 3.4.3.2), Noël Carroll informa que se baseou neste tipo de “modelo
comunicativo de intenção-resposta” para estabelecer uma distinção entre as

189
Pelo contexto, consideramos que o que se quer dizer aqui com “frase”, seja uma “proposição”,
ou seja, o “conteúdo proposicional” de um ato ilocucionário.
190
Searle (1981: p.47-49) chama este tipo de regra de “regras constitutivas”, pois estas “constituem
(e também governam) uma actividade cuja existência é logicamente dependente das regras”. Ou
seja, o tipo de atividade ou comportamento definido por este tipo de regra não lhe preexiste, mas
lhe é consubstancial. A forma geral das regras constitutivas é: “X conta como Y”, ou “X conta como
Y no contexto C”. Este tipo de regra difere das regras do tipo “normativo”, que visam regular uma
forma de comportamento preexistente, e têm a forma “Faça X”, ou “Se Y, faça X” (p.49).

154
categorias das obras ficcionais e das não-ficcionais (Cf. CAP: p.80), o que serve
de base para sua definição do “cinema da asserção pressuposta”.
A definição mais completa que Carroll nos ofereceu para este conceito
por ele criado (viz. 3.4.4), estabelecia que:

1. O autor da obra possui uma intenção de sentido.


2. O público reconhece esta intenção.
3. O público nela se baseia para compreender os sentidos do filme.
4. O autor da obra possui uma intenção assertiva.
5. O público reconhece esta intenção.
6. O público adota uma postura assertiva com relação aos sentidos por ele
compreendidos.
7. O reconhecimento da intenção assertiva (5) é um dos motivos para a
adoção da postura assertiva (6).

Os dois processos descritos são, pois, bastante semelhantes. Parece-


nos que a “intenção de sentido” de Carroll equivale à “intenção ilocucionária” de
Searle; a obra ou “estrutura de signos com sentido” de Carroll equivale à
“emissão” ou “ato de fala” de Searle; e os “sentidos compreendidos” pelo público
são para Carroll o que o “conteúdo proposicional” é para Searle.
Contudo, a adaptação do modelo comunicativo de intenção-resposta,
da filosofia da linguagem para o cinema documentário, é efetiva e integralmente
consistente?
Como a realização de um ato de fala (por exemplo, da asserção)
implica em empregar uma “força ilocucional” específica a certo conteúdo
proposicional, é necessário que Searle, como vimos, forneça uma explicação de
como, no final das contas, o conteúdo proposicional (o significado) pode ser
veiculado através da emissão do ato.
Segundo a teoria de Carroll, para que uma obra seja classificada
adequadamente como “filme de asserção pressuposta”, é necessário que haja
155
primeiro, por parte de seu público, o reconhecimento de uma “intenção de sentido”
do autor, através da qual ele compreende os “significados” veiculados pela obra; e
em segundo lugar, o reconhecimento, por parte do público, de uma “intenção
assertiva” do autor, através da qual o público adota um estado mental de crença
perante os significados que o filme veicula e ele compreende.
Contudo, a teoria de Carroll não nos explica como ocorre a veiculação
de significados (conteúdos proposicionais) através de uma obra fílmica. Carroll
sugere simplesmente que a compreensão de significado por parte do público
ocorre através de seu “reconhecimento da intenção de sentido” do autor.
No entanto, na explicação de Searle sobre o significado, o que garante
que ocorra a sua compreensão pelo receptor, no processo comunicacional, é a
existência de certas regras lingüísticas, institucionais, etc. Sendo assim, ao sugerir
apenas que o “reconhecimento da intenção de sentido” é suficiente para que haja
a compreensão deste, Carroll deixa incompleto um ponto bastante importante de
sua teoria. Para persuadir-nos de sua validade, seria importante que Carroll nos
oferecesse uma explicação para a compreensão de sentido por parte do
espectador.
Como se viu, uma asserção, por ser um ato ilocucionário, é constituída
também por um ato enunciativo e um ato propositivo. Sem que haja estes dois
outros atos, não pode haver um ato ilocucionário, como o da asserção.
Ora, onde estariam/como se efetuariam estes sub-atos de fala no caso
de um filme? Neste caso, o ato enunciativo seria constituído apenas por palavras
escritas ou faladas, isto é, apenas por elementos verbais? Ou deveríamos
considerar como elementos compositivos de um “ato de enunciação fílmica” todos
os materiais audiovisuais que o cinema é capaz de mobilizar?
Parece fazer mais sentido se adotar a segunda opção. Fernão Ramos
(2008: p.22), por exemplo, afirma que o documentário “é uma narrativa
basicamente composta por imagens-câmera, acompanhadas muitas vezes de
imagens de animação, carregadas de ruídos, música e fala (...), para as quais
olhamos (...) em busca de asserções sobre o mundo”. Ou seja, este pesquisador,

156
conhecido no campo dos estudos de cinema documentário, crê serem importantes
para o estudo do gênero os materiais de composição variados mobilizados pelas
obras, que supostamente concorreriam para realizar “asserções sobre o mundo”.
Mas, se este for o caso, e se devemos considerar estes materiais como
os componentes do “ato de enunciação fílmico”, nos mesmos termos em que
Searle considera as palavras os componentes do ato de enunciação verbal, seria
necessário haver um conjunto de “regras” que determinassem os modos como
cada um destes elementos audiovisuais estabelece um significado específico
(inequívoco?), da mesma forma com que, segundo Searle, as regras lingüísticas
(e institucionais) o fazem no caso das emissões verbais.
No entanto, este ponto, que remete à idéia de uma “língua ou
linguagem do cinema”, é um tópico longe de ser considerado solucionado pelos
estudiosos da área191. E, no mais, como se poderia conceber a segunda espécie
de ato, interno ao ato ilocucionário, ou seja, o “ato proposicional fílmico”? Como
um filme efetua, sem recorrer (unicamente?) à linguagem, os atos de referência e
predicação?
Á primeira vista, a referência parece poder ser facilmente realizada pela
imagem-câmera, principal elemento de composição audiovisual, visto que ela
possui alto índice de semelhança com os objetos que representa. Pela
semelhança de uma imagem cinematográfica representando dado ser humano,
com relação à entidade real que se posicionou em frente à câmera e lhe serviu de
base192, parece ser óbvio que esta imagem está realizando um ato proposicional
de referência. Afinal, isso não estaria implicado no conceito de “representação”?
Não obstante, ao tratar do ato de referência, Searle (1981: p.39)
determina que ele serve para “isolar ou identificar um ‘objeto’ ou uma ‘entidade’,

191
Cf. Jacques Aumont et al., “Cinema e linguagem”, em: A Estética do Filme, 5a. ed., Campinas:
Ed. Papirus, 2007, p.157-222.
192
Por exemplo, as imagens-câmera do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, obtidas durante a
campanha eleitoral de 2002, que aparecem no documentário Entreatos (2004).

157
ou um ‘elemento particular’, com a exclusão de [todos os] outros objetos, a
respeito do qual o falante poderá então dizer alguma coisa”.
Ora, mas a imagem-câmera não é sempre utilizada com esta função de
“identificar um objeto particular” com exclusão de todos os outros. A imagem-
câmera pode ser usada também para representar uma “classe” de objetos,
fenômenos, ações, etc.
Por exemplo, em Koyaanisqatsi (1983), as tomadas aéreas obtidas pela
técnica de time lapse193 que mostram, à noite, largas avenidas contendo um
tráfego intenso e aparentemente caótico, não parecem pretender representar uma
avenida determinada de uma cidade específica, mas sim a “classe” de fenômenos
que poderíamos designar como “o tráfego nas grandes metrópoles”.
E a propósito, essa diferença nos modos de representação visual
mobilizados por uma imagem cinematográfica havia já sido reconhecida por
Carroll em outro local (Cf. FRTR: p.240-242)194. Ele nos oferece outro exemplo
(Cf. p.241), nos lembrando que no filme E o Vento Levou (1939), um plano que
nos mostra Clark Gable (entidade particular), também está representando um
homem (classe geral) e, ainda ao mesmo tempo, representa a personagem
ficcional Rhett Butler (entidade particular diferente da primeira).
Portanto, sabendo que a imagem-câmera pode representar através de
formas variadas (e simultâneas), e que ao menos uma delas não identifica um
objeto específico, é difícil ver como se poderia explicar satisfatoriamente, em
termos análogos aos da teoria dos atos de fala, um suposto ato referencial fílmico,
que seria condição para que possa haver um ato ilocucionário fílmico (como uma
asserção).

193
“Lapso temporal”. A técnica consiste em capturar imagens a uma freqüência de quadros inferior
àquela que será usada na exibição do filme, de modo que, quando esta ocorrer, as imagens
parecerão estar “aceleradas”.
194
Referimo-nos brevemente a esta questão (viz. 3.1.4), pois Carroll lá (FRTR) mobiliza um
referencial terminológico e conceitual, a nosso ver, provavelmente desnecessário ao assunto em
pauta, lançando mão de distinções tais como “nominal portrayal”, “physical portrayal”, e “depiction”.

158
Lembremo-nos também que Searle estabelece que “os actos de fala
executados na enunciação de uma frase são função da significação da frase em
questão” (Cf. 1981: p.28). Assim, tanto os atos proposicionais como os atos
ilocucionários necessitam que haja anteriormente um sistema codificado de regras
de significação, pois que ambos dependem da existência (e se utilizam) de frases
lingüisticamente bem-formadas. Na linguagem verbal existem regras sintáticas e
semânticas que o garantem, mas como mencionamos, a questão das “regras de
linguagem” cinematográfica, com determinações semelhantes às da linguagem
verbal, é assunto questionável195.
Assim, não nos parece que o ato proposicional da referência, e muito
menos o da predicação (que envolve a atribuição de propriedades ou relações
específicas e determináveis à entidade que foi referida) possam ocorrer, no meio
cinematográfico, da forma como são explicados pela teoria dos atos de fala.
E, além disso tudo, devemos nos lembrar de uma objeção relativa à
questão intencional, relaciona ao assunto em questão, e contra a qual Carroll
pretende ter salvaguardado sua teoria do cinema da asserção pressuposta (viz.
item 3.4.6.2).
Carroll a chamou de “argumento da falácia intencional”. E este tipo de
argumento sustenta que “as intenções autorais são inacessíveis, ou que assim
deveriam ser consideradas” (CAP: p.96). Carroll pretende ter refutado essa
objeção demonstrando que o que esse argumento está a entender por “intenções”
é diferente do que Carroll está a entender por “intenções” em sua teoria – no
primeiro caso, tratar-se-iam de intenções relativas à “interpretação do sentido” das
obras (Cf. p.96); e no segundo caso, tratar-se-iam de “intenções categoriais” (Cf.
p.97), isto é, intenções que prescrevem como uma obra deveria ser classificada.
Portanto, Carroll concluíra (Cf. p.97), o segundo caso não estaria no escopo do
primeiro, não sendo, efetivamente, por ele negado.

195
Ver, por exemplo, “A significação na imagem”, em: Jacques Aumont, A Imagem, 10a. ed.,
Campinas: Ed. Papirus, 2005, p.244-254.

159
Todavia, isso talvez não seja de todo certo. Conforme tivemos a
ocasião de examinar, a adoção, por parte do público, de uma postura mental
assertiva (que é aquela requisitada por um documentário, ou filme de asserção
pressuposta) deve “se projetar” sobre uma outra ordem de intenções que fora
anteriormente reconhecida, que são as intenções de sentido. Só se entretém um
“conteúdo proposicional” como um “pensamento assertivo”, se se reconhece e se
compreende o tal “conteúdo proposicional”, ou seja, se se compreende seu
significado.
A adoção de uma postura mental assertiva parece então sempre
pressupor a compreensão de sentidos por parte do público. Sem a compreensão
de sentidos, não há “sobre o quê” se adotar uma postura mental assertiva. Ora,
mas como se poderia então adotar uma postura assertiva, se os tais argumentos
da falácia intencional forem verdadeiros, isto é, se as intenções autorais de
sentido forem (consideradas) inacessíveis?
Carroll não se põe a examinar realmente a validade deste tipo de
argumento (i.e., ele não analisa se as intenções autorais de sentido são ou não
acessíveis). O que ele faz é se “desembaraçar” do mesmo (Cf. CAP: p.97),
demonstrando/alegando que o fenômeno compreendido por este argumento
(interpretação de sentido) é de natureza diversa do fenômeno existente em sua
teoria do cinema da asserção pressuposta (intenção assertiva).
Não obstante, se estivermos corretos ao sugerir que, na realidade, há
razões para que o argumento da falácia intencional subsista em face à sua teoria
(a intenção assertiva pressupõe a interpretação de sentido), isto resultará numa
outra ordem de contra-argumentação que se espera ser atendida por Carroll, para
que sua teoria continue a ser sustentada de forma persuasiva.
Ora, essas questões todas que viemos levantando, não nos
ofereceriam possíveis obstáculos à tomada da teoria dos atos de fala como
modelo explicativo para fenômenos audiovisuais – i.e., os filmes de asserção
pressuposta? Seria Carroll capaz de oferecer uma explicação adequada para
nossas problematizações?

160
4.3. Ficção

Conforme demonstramos anteriormente (viz. item 3.4.3), na teoria de


Noël Carroll do cinema da asserção pressuposta, o conceito de “ficção” tem
central importância. É tomando-o como base que Carroll cria/propõe o conceito de
“filme de asserção pressuposta”, através de um certo percurso de pensamento.
Será necessário, aqui, recapitularmos as linhas gerais deste percurso, para
podermos problematizar alguns de seus passos.
Em CAP, Carroll propõe solucionar o problema da inconsistência
extensional do termo “documentário” “por etapas” - primeiro traçando “uma
distinção entre ficção e não-ficção” e, com base nisso promovendo, em seguida
“uma análise do conceito de cinema de asserção pressuposta” (Cf. CAP: p.72). E
a razão, ele nos informa, de iniciar seu empreendimento através da distinção entre
“ficção” e “não-ficção”, é que seu conceito de “cinema da asserção pressuposta”
“constitui uma subcategoria” do conceito de “filme não-ficcional” (Cf. p.72; p.73),
devendo, assim, ser precedido por estes.
Apesar de haverem teóricos que crêem não haver distinção entre ficção
e não-ficção (viz. 3.4.3.1), Carroll refuta seus argumentos, e nos lembra que esse
tipo de distinção categorial está “profundamente arraigada em nossas práticas
cotidianas” (p.79), ou seja, ela intervém no modo como nos relacionamos com
objetos culturais e comunicacionais tais como filmes, livros, discursos, etc.
Em outras palavras, Carroll sustenta que a distinção entre ficção e não-
ficção é possível, no cinema, pois ela já existe em outras de nossas práticas
culturais. De fato, em outro local (FRTR: p.244), Carroll revelara considerar que “o
cinema, talvez por ser uma mídia recente (...), se desenvolveu primeiramente pela
imitação e incorporação de práticas e preocupações culturais preexistentes”, em
que se inclui o gênero da “não-ficção”.
Para sustentar sua proposta de distinção entre a ficção e a não-ficção,
Carroll recorre então a “propriedades relacionais, não-manifestas, das obras” –

161
certas “intenções autorais” (Cf. CAP: p.79). Carroll propõe uma definição da ficção
(Cf. p.80-81) que pode ser descrita na seguinte estrutura:

1. O autor da obra possui uma intenção ficcional.


2. O público reconhece essa intenção.
3. O público assume uma postura ficcional.

Em seguida, Carroll nos esclarece que o que se entende por “postura


ficcional” é a adoção de uma “atitude mental” de “imaginação supositiva” (Cf. p.81;
p.84; p.85), que é o que nos permite entreter um pensamento “em nossas mentes”
como “uma hipótese, e não uma asserção” (p.85).
Havíamos evidenciado, neste ponto da discussão (viz. Figura 6), que
Carroll, para propor seu conceito de ficção, está a contrastar duas posturas
mentais diferentes:

a) Postura mental imaginativa supositiva (que Carroll irá designar


simplesmente como “imaginativa”);
b) Postura mental assertiva;

Elas são tratadas, pelo autor, como se uma fosse o inverso da outra
(Cf. p.85-86): a postura assertiva equivaleria a uma postura crível, que equivaleria
a uma postura não-imaginativa; enquanto que a postura imaginativa equivaleria a
uma postura hipotética, que equivaleria, por sua vez, a uma postura não-assertiva
(viz. Figura 6).
Ora, chegamos enfim a um primeiro ponto problemático na definição do
conceito de “ficção” realizada por Carroll, e o problema consiste no seguinte:
Quais são as condições de possibilidade desta operação de pensamento que trata
estas duas posturas mentais como contrárias? Estas condições são

162
adequadamente cumpridas no raciocínio de Carroll? Após maior reflexão, estamos
inclinados a pensar que não. Expliquemos.
Para que se possam tratar dois termos como contrários, deve-se supor
que, dentro do contexto relevante, os dois façam parte de uma disjunção
exclusiva196, do tipo:

1. A ou B.

Essa simples disjunção torna possível algumas deduções, como:

2. ~(A & B)
3. Se ~A, então B.
4. Se ~B, então A.

Relacionando esses elementos lógicos com o raciocínio de Carroll,


podemos dizer que Carroll, ao contrastar a postura mental assertiva com a postura
imaginativa supositiva, está realizando a seguinte operação:

1’. Há ou uma postura assertiva ou uma postura imaginativa.


2’. Não pode haver uma postura assertiva e uma postura imaginativa.
3’. Se não há uma postura assertiva, então há uma postura imaginativa.
4’. Se não há uma postura imaginativa, então há uma postura assertiva.

Contudo, para que esse raciocínio seja válido, deve ser verdadeira sua
premissa (a proposição 1’), que postula uma relação de disjunção exclusiva entre
ambas as posturas mentais. E nosso ponto é, justamente, que existem razões

196
Ressaltamos que se trata de uma disjunção exclusiva, e não inclusiva, pois esta última aceitaria
a conjunção “A & B”, o que vemos, pela proposição 2, que não ocorre.

163
para crer que esta premissa não é verdadeira, isto é, que as condições de
possibilidade deste raciocínio não são adequadamente cumpridas.
Como pode Carroll tratar estas duas posturas mentais (“assertiva” e
“imaginativa supositiva”) como contrárias, se existem outras posturas mentais
possíveis de ser adotadas? O próprio Carroll reconhece haver mais de um tipo de
“imaginação”, por exemplo, a imaginação como “construção de imagens mentais”
(Cf. CAP: p.84), ou a imaginação como “faculdade que unifica as percepções” (Cf.
o.83). Assim, o que garante que a postura assertiva é realmente o contrário da
postura imaginativa supositiva? O que garante que a primeira não seja o contrário
de uma das outras duas posturas imaginativas reconhecidas por Carroll? Ou, o
que garante que a postura assertiva não seja, na verdade, o contrário de algum
dos outros estados mentais possíveis e não identificados nesta discussão? Ou,
ainda, o que garante que essas posturas mentais não estejam, realmente, em uma
relação de contrariedade?
Parece-nos que seria preciso, da parte de Carroll, que ele respondesse
a esta ordem de questões, e comprovasse haver o vínculo necessário de
contrariedade entre estas duas posturas mentais, para preservar a validade das
distinções categorias que utiliza em sua teoria.

164
4.4. Considerações finais

No decorrer deste trabalho apresentamos o pensamento sobre


documentário de Noël Carroll, com ênfase para sua teoria do cinema da asserção
pressuposta. Para ser possível compreender adequadamente este pensamento,
achamos necessário contextualizar o método ou estilo filosófico analítico,
mobilizado por este autor. Também consideramos importante relacionar a teoria
do cinema da asserção pressuposta com aspectos da teoria dos atos de fala, em
que Carroll se baseou, para que assim pudesse ser melhor avaliada pelo leitor a
apropriação, por parte de Carroll, de conceitos ou abordagens desta segunda
teoria.
Após definir e defender sua teoria do cinema da asserção pressuposta,
ao final de CAP (p.103-104), Noël Carroll conclui que sua teoria seria a “melhor
explicação” para o gênero do documentário, e afirma que ficará “a critério do leitor
verificar se a teoria de fato é adequada à prática” (p.103). Isto é, em suas
palavras, seria da competência de seus comentadores “demonstrar que minhas
distinções são equivocadas (lógica, empírica ou pragmaticamente), ou que há
maneiras mais eficientes” de definir este gênero cinematográfico (p.104).
Apesar de considerarmos sua teoria como uma reflexão bem
desenvolvida e de grande interesse para os estudos de cinema documentário, de
nossa parte, procuramos levantar algumas problematizações à mesma.
Consideramos que, no geral, essas problematizações, embora relacionadas a
temas definidos, sejam de ordem lógica - com exceção, talvez, da questão do
significado, que também envolveria uma dimensão pragmática.
Achamos que provavelmente essas problematizações não tenham
“força” suficiente para invalidar a teoria de Carroll, mas sim que, no mínimo, elas
instigarão discussões mais aprofundadas, por parte do próprio Carroll ou de outros
interessados.
Neste ponto, talvez seja útil evocar as epígrafes iniciais do trabalho.
Conforme a citação de Dan Shaw, de modo geral, consideramos bastante úteis os
165
conceitos e modos de operação filosóficos analítico, que se manifestam no
pensamento de Noël Carroll, e pensamos que eles podem fornecer importantes
contribuições para a investigação nos estudos de cinema. Eles talvez nos ajudem
a tratar este campo “mais seriamente”.
Por sua vez, conforme a citação de John Grierson, reconhecemos que,
certamente, no decorrer do trabalho, deixamos passar diversas “imagens” – outros
pontos importantes do pensamento de Carroll; relações deste pensamento com
outros referenciais; aspectos que poderiam ser problematizados de outra forma;
etc.
Por fim, conforme nos lembra Hans-Johann Glock, apesar dessas
variadas ausências, talvez o que seja mais importante seja o valor de todo esse
processo investigativo, e não a “durabilidade” (completude) de seu resultado. Um
certo grau de incompletude, de “trabalho em progresso” (work in progress), parece
marcar os empreendimentos filosóficos analíticos e, seja pelas imperfeições deste
nosso trabalho tal como se encontra, seja pelas perspectivas de aprimoramento e
desdobramento que nele vislumbramos, sentimo-nos próximos a este espírito.
No que concerne aos possíveis desdobramentos, é importante notar
que a teoria do cinema da asserção pressuposta, elaborada por Noël Carroll,
possui diversas ressonâncias com abordagens teóricas de outros pesquisadores
da área.
Carl Plantinga (Cf. 1997), por exemplo, também trabalha com o
conceito de “postura assertiva” e se inspira na teoria dos atos de fala. Roger Odin
(Cf. 2012), por sua vez, propõe uma definição de documentário que se baseia,
principalmente, em um certo modo de leitura da obra (uma “leitura
documentarizante”). Bill Nichols (Cf. 2005), autor mais conhecido
internacionalmente, também aparenta possuir certas intuições, em suas
formulações sobre o cinema documentário, que se aproximam do conceito de
asserção. Ele afirma, por exemplo, que “a lógica que organiza um filme
documentário sustenta um argumento, uma afirmação ou uma alegação
fundamental sobre o mundo histórico” (p.55). E, enfim, o pesquisador brasileiro

166
Fernão Ramos (Cf. 2008), a quem já remetemos anteriormente, se baseia
diretamente na teoria de Carroll, ao definir o documentário, por exemplo, como
“uma narrativa com imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo”
(p.22).
Sendo assim, devido a estas diversas ressonâncias, pensamos que as
reflexões que propusemos, em nosso trabalho, sobre a teoria de Noël Carroll do
documentário, podem servir de base a posteriores desdobramentos, tanto para
análise de outros pontos desta mesma teoria, como das relações variadas que ela
estabelece com as abordagens de outros autores da área, como ainda para
aspectos mais específicos destas últimas.
Portanto, apesar de não serem “definitivas” ou totalmente “extensivas”,
pensamos que as considerações que estabelecemos neste trabalho serão, no
mínimo, proveitosas para se pensar este campo dos estudos do cinema
documentário.

167
168
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176
6. FILMOGRAFIA

11/9. Dir.: Gédéon Naudet, Jules Naudet e James Hanlon. Estados Unidos /
França. 2002. 112 min. cor, som.

A BATALHA do Chile. Dir.: Patrício Gúzman. Venezuela / França / Cuba. 1975-79.


Parte 1: 97 min. / Parte 2: 88 min. / Parte 3: 80 min. som, cor.

A TÊNUE linha da morte. Dir.: Errol Morris. Estados Unidos. 1988. 103 min. cor,
som.

ARNULF Rainer. Dir.: Peter Kubelka. Áustria. 1960. 7 min, mudo, cor.

ARUANDA. Dir.: Linduarte Noronha. Brasil. 1960. 20 min, p&b, som.

BALLET mécanique. Dir.: Fernand Léger. França. 1924. 19 min. p&b, mudo.

CABRA marcado para morrer. Dir.: Eduardo Coutinho. Brasil. 1984. 119 min. cor,
som.

CITY of coral. Série Televisiva: Nova Series, Temporada 10, Episódio 14. Prod.:
Neil Goodwin / Peace River Films / PBS. Estados Unidos. 1983. 57 min. cor, som.

CRISIS: behind a presidential commitment. Dir.: Robert Drew. Estados Unidos.


1963. 52 min. p&b, som.

CRÔNICA de um verão. Dir.: Jean Rouch e Edgar Morin. França. 1960. 85 min.
p&b, som.

ENTREATOS. Dir.: João Moreira Salles. Brasil. 2004. 117 min. cor, som.

E O VENTO levou. Dir.: Victor Fleming, George Cukor. Estados Unidos. 1939. 238
min. cor, som.

EU, um negro. Dir.: Jean Rouch. França. 1958. 70 min. cor, som.

HOOP dreams. Dir.: Steve James. Estados Unidos. 1994. 170 min. cor, som.

JAGUAR. Dir.: Jean Rouch. França. 1954/67. 110 min. cor, som.

177
JOGO de cena. Dir.: Eduardo Coutinho. Brasil. 2007. 100 min. som, cor.

JUSTIÇA. Dir.: Maria Augusta Ramos. 2004. Brasil. 100 min.

KOYAANISQATSI. Dir.: Godfrey Reggio. 1983. Estados Unidos. 86 min. cor, som.

L’ARRIVÉ du train en gare de La Ciotat. Prod.: August e Louis Lumière. França.


1895. 1 min. p&b, mudo.

LA RÉGION centrale. Dir.: Michael Snow. Quebec. 1971. 180 min, som, cor.

NANOOK do norte. Dir.: Robert Flaherty. Estados Unidos. 1922. 79 min. p&b,
som.

NIGHT mail. Dir.: Harry Watt e Basil Wright. Reino Unido. 1936. 25 min. p&b, som.

O HOMEM da câmera. Dir.: Dziga Vertov. União Soviética. 1929. 68 min. p&b,
mudo.

O HOMEM urso. Dir.: Werner Herzog. Estados Unidos. 2005. 103 min. cor, som.

OS CATADORES e eu. Dir.: Agnès Varda. França. 2000. 82 min. som, cor.

PAN-CINEMA permanente. Dir.: Carlos Nader. Brasil. 2008. 83 min. cor, som.

PRIMARY. Dir.: Robert Drew. Estados Unidos. 1960. 60 min. p&b, som.

REPTILES and amphibians. Dir.: Walon Green e Heinz Sielmann. Estados


Unidos. 1968. 52 min. cor, som.

ROGER e eu. Dir.: Michael Moore. Estados Unidos. 1989. 91 min. cor, som.

SALESMAN. Dir.: Albert e David Maysles. Estados Unidos. 1968. 85 min. p&b,
som.

SERENE velocity. Dir.: Ernie Gehr. Estados Unidos.1970. 23 min. cor, mudo.

TERRA sem pão. Dir.: Luis Buñuel. Espanha. 1933. 30 min. p&b, som.

THE FALL of the Romanov dinasty.. Dir.: Esther Shub. União Soviética. 1927.
90min. p&b, mudo.

178
THE PLOW that broke the plains. Dir.: Pare Lorentz. Estados Unidos. 1936. 25
min. p&b, som.

THE SONG of Ceylon. Dir.: Basil Wright. Reino Unido. 1934. 38 min. p&b, som.

THREE songs of Lenin. Dir.: Dziga Vertov. União Soviética. 1934. 57 min. p&b,
mudo.

TRIUNFO da vontade. Dir.: Leni Reifenstahl. Alemanha. 1935. 114 min. p&b,
som.

TITICUT follies. Dir.: Frederick Wiseman. Estados Unidos. 1967. 84 min. p&b,
som.

TURKSIB. Dir.: Victor A. Turin. União Soviética. 1929. 75 min. p&b, mudo..

UM ESTRANHO no ninho. Dir.: Milos Forman. Estados Unidos. 1975. 129 min.
cor, som.

WHY we fight. Dir.: Frank Capra. Estados Unidos. 1942-45. 7 partes de aprox. 40
a 60 min. p&b, som.

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