Você está na página 1de 4

1

Tradução feita por Iara I. Ribeiro Vilhena para estudo dos alunos da disciplina
Da imagem: estudos das noções de lonjura e distância em Maurice Blanchot e
Georges Didi-Huberman​, ministrada pela prof​a ​D​ra​ Daisy Leite Turrer – 2011.

NANCY, Jean-Luc. Le jardinier. In: _____. ​Noli me tangere: Essai sur la levée
du corps​. Paris: Bayard Editions, 2003. p. 47-53

O JARDINEIRO

Um outro aspecto da intriga da visão reside no mal entendido inicial de


Maria Madalena, que pensa ver o jardineiro. Para que esse mal entendido seja
possível, é necessário que Jesus não esteja lá, pelo menos não imediatamente
reconhecível. Ora, Maria Madalena o conhece há bastante tempo para não o
reconhecer. A explicação de seu engano deve ficar indecisa: ou pela certeza
de não mais o ver vivo, ela não dispunha desta “pré-visão” ou desse esquema
diante da imagem que permite ou que impõe a identificação; ou então, Jesus
não está a princípio reconhecível, mesmo sendo ele próprio1. Como já
assinalamos a propósito do encontro de Emmaüs, outras cenas de aparição do
ressuscitado são marcadas por uma dificuldade de reconhecê-lo, até mesmo
pela evocação de uma mudança de seus traços2. Em sentido inverso, o
reconhecimento de Jesus não implicará na adesão de Tomé, na cena que
sucede o ​Noli me tangere em João, sem que o discípulo tenha tocado as
feridas do supliciado.
Essas dificuldades para reconhecer o Cristo têm um duplo alcance.
De um lado, tudo acontece como se a semelhança à ele mesmo fosse
um momento suspenso e flutuante. Ele é o mesmo sem ser o mesmo, ele está
alterado em si mesmo: não é assim que aparece um morto? Não é esta
alteração ao mesmo tempo insensível e impressionante – o aparecimento
daquele que propriamente não aparece mais, o aparecimento de um aparecido

1
Eu negligencio aqui, para ficar o mais próximo do texto que identifica bem Jesus, a hipótese
mais arriscada que eu sugeri mais acima: que se trata unicamente do jardineiro. Seja o que for,
é remarcável que os pintores tenham tão freqüentemente mantido a aparência do jardineiro, ao
menos por uma pá, que às vezes mal discernimos à primeira vista. Eu voltarei aqui.
2
Os discípulos de Emmaüs, Lc 24,16.
2

e desaparecido – que traz o mais propriamente e o mais violentamente a


impressão da morte? O mesmo que não é mais o mesmo, a dissociação do
aspecto e da aparência, a ausência do rosto diretamente sobre a face, o corpo
se afundando no corpo, deslizando sob ele. A partida inscrita na presença, a
presença apresentando sua licença. Ele já partiu, ele não está mais lá onde ele
está, ele não é mais como ele é. Ele está morto, quer dizer que ele não é nem
aquilo nem aquele que ao mesmo tempo ele é ou ele apresenta. Ele é sua
própria alteração e sua própria ausência. Ele é propriamente sua
impropriedade.
Por outro lado, o reconhecimento difícil, incerto, duvidoso carrega a
questão da fé. Esta não consiste em reconhecer o conhecido, mas em se
confiar ao desconhecido (e certamente não tomá-lo como um substituto do
conhecido: porque isso seria a crença e não a fé). Quanto a isto, a sucessão de
episódios no texto de João é instrutiva. Há de início o discípulo (João mesmo)
que “vê e crê” diante do túmulo vazio com os tecidos e sudários abandonados.
Ele compreende sem ver, mas nada é dito sobre o conteúdo de sua fé. É como
se esta fé consistisse na confiança depositada no vazio enquanto tal, sem a
procura daquilo que o morto se tornou. Além do “noli” haverá o episódio de
Tomé: Jesus lhe dirá que ele é bem aventurado de ter acreditado, mas que ele
não o é tanto quanto os que acreditaram sem ver (“ver” e “tocar” nesta cena,
são colocados como equivalentes: nela, o tocar vale como confirmação ou
como a realização do olhar). A fé de Tomé se enuncia em termos expressos.
Ele diz: “Meu Senhor e meu Deus.”
Entre os dois, Maria Madalena é aquela cujo olhar sem clarividência se
virou (...3) pela voz de Jesus. Ela não o reconheceu durante o tempo que falou
com ele como se fosse o jardineiro, para lhe perguntar se ele sabia onde
estava o corpo do Mestre, mas assim que ele, em vez de lhe responder,
pronuncia seu nome – “Maria!” -, ela o reconhece e o chama, em hebreu, pelo
nome de “Rabouni”, como está escrito no texto de João, que marca por sua vez
seu respeito e sua familiaridade para com ele. Deduz-se daí então que Maria

3
Há nesse ponto questões de interpretação delicadas, já que, segundo as versões (grega ou
siríaca), Maria Madalena se vira uma só vez ou duas vezes).
3

Madalena não estaria nem na fé diante do vazio, nem na adesão trazida pela
constatação. Ela acredita porque ela ouve. Ela escuta o que só se dirige a ela.
Ela ouve esta voz que desmente a aparência do jardineiro, embora não tenha
sido dito que essa aparência tenha mudado. Ela responde somente à voz
daquele que mantém a mesma aparência.
Os pintores compreenderam a questão do “jardineiro” representando
Jesus, freqüentemente, com os atributos deste ofício: uma pá ou uma enxada,
um chapéu de palha. Quando seu rosto está na sombra, como em Dürer, a
intenção pode ser a de indicar a dificuldade de discernir seus traços. No
entanto, a pá ou o chapéu só pertencem ao pensamento da mulher que
acredita que é o jardineiro. Estes atributos estão na imagem da representação
da crença, ou da ilusão. Quanto à fé, ela diz respeito ao que nenhuma crença
pode fornecer nem decepcionar.
Os atributos do jardineiro raramente estão ausentes nas representações
da cena. É o caso de Giotto, Duccio ou Schongauer, por exemplo, em que
Jesus aparece exclusivamente como Cristo, Messias e Salvador. A
justaposição das obras que representam um Cristo portador dos emblemas da
realeza messiânica, e daquelas (mais numerosas) que colocam um jardineiro,4
tem uma força esclarecedora. De certa maneira, é o mesmo Cristo. De outra
maneira, o Messias enquanto ressuscitado (...) não é ninguém mais do que o
primeiro jardineiro vindo. Não há nada a mudar em seu aspecto, não há,
portanto, nada a mudar no olhar de Maria Madalena, e esta visão não é um
engano. Sim, como no desenho de Dürer, a pá que escava a terra é contígua
ao sol nascendo. Sim, Maria vê o jardineiro, o homem comum que sucede a
outro homem comum e morto cujo túmulo escancarado expõe a ausência
insondável.

4
Dificilmente podemos afirmar que a representação do jardineiro se acentuará a medida que se
distancia de Giotto, pois a encontraremos também nas iluminuras ou nas gravuras anteriores.
Mas nem por isso se nega que esta representação comporte também um aspecto pitoresco e
anedótico que seduz sobretudo os pintores mais desligados da religião. Era preciso também
considerar todas as misturas que são praticadas: meio-jardineiro, meio-Messias, meio-vestido
(que deve ser o jardineiro), meio-nu (que deve ser o corpo saído de sua mortalha), e as
combinações cujos dados tornam-se recursos para o desenho e para a cor. Ficamos
fascinados por esta circunstância que faz com que um problema teológico – como se deve
representar esse corpo glorioso? – forneça e combine tantos pretextos para elaborações
iconográficas.
4

A fé de Maria se fundamenta nesta confiança: que este que a chama


não chama ninguém mais a não ser ela, e a fidelidade a esta nomeação.
“Maria” ressoa aqui como “Abraão” ressoou uma vez. “Ouve quem tem
ouvidos”. (...) “Escuta que eu te chamo, e que eu te peço para partir e ir dizer
aos outros que eu parto. Não ouça nada mais: você, só você, e minha partida.
(...) E como Abraão, Maria não manifesta sua fé pelas constatações, hipóteses
ou cálculos5. Ela parte. A resposta à verdade que parte é partir com ela.

5
Ela não pensa “se ele diz meu nome, é que... etc.”, não mais que Abraão especule “Se Deus
é Deus, ele salvará meu filho”; ela e ele partem de lá, vão para lá, como se diz...(cf. a esse
respeito a diferença das interpretações de Abraão entre Paulo e Tiago: em Paulo a fé de
Abraão assemelha-se a uma estimativa que permite “crer” que Deus será benevolente, em
Tiago a fé está inteira no ato de partir sobre a ordem de Deus, não em uma operação reflexiva).
(Eu explicito esta análise em “Le judéo-chrétien”, Atos do Colóquio “Judéités, questions à
Derrida” que aconteceu em 2000 no Centro Comunitário Israelita de Paris, publicado em 2003
por Galilée.)

Você também pode gostar