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A SAMARITANA COM JESUS (Jo.

4,5-33)

É um exemplo extraordinário de colóquio vocacional. Espécie de ícone que resume e


exprime tudo quanto diz respeito ao mistério perdido e que deve ser reencontrado. Jesus
cansado da viagem, Jesus senta-se junto ao poço/fonte. Talvez atentemos na leitura
desse cansaço e dessa aparente procura de descanso, como estratégia muito inteligente,
típica do evangelizador, que, por definição, é uma pessoa algo astuta.
Evangelizador é ir ao encontro de alguém. Pensar em tudo, ser incansável na busca e na
proposta. Significa sobretudo saber captar o ponto certo, os pontos estratégicos, onde
está a vida, e onde o evangelizando vai procurar a vida. O poço, na sociedade daquele
tempo, era fonte de vida, uma condição fundamental de sobrevivência. Será que somos
capazes de identificar os poços de hoje, aqueles lugares e aqueles momentos, aquelas
povoações e aquelas perguntas, ou aquelas situações e factos, onde é inevitável
encontrar os que precisam de uma palavra que os levem para além do seu horizonte
actual? Aquelas encruzilhadas em que tarde ou cedo todos passam com as suas ânforas
vazias, com suas perguntas inexpressas, com seus sonhos mal interpretados com seus
anseios inibidos ou às vezes desviados, ostentando sua auto-suficiência apenas aparente,
com seu desejo profundo e irretorquível de autenticidade?
Chega uma mulher qualquer. Observe-se o absoluto anonimato. A evangelização é
exactamente assim. Um serviço de provocação que se dirige a todos. A evangelização
é antes de tudo uma ajuda, um caminho oferecido a todos os homens. É uma proposta
que começa com o pedido. É uma atribuição de responsabilidade, que é principalmente
uma mensagem de estima por qualquer coisa concreta que a pessoa possa fazer.
Vejam que Jesus não pensava apenas na água terrena, mas ele se aproveitou daquele
circunstância para estabelecer um contacto importante com a samaritana, ele pediu
alguma coisa que aquela mulher tinha condições de fazer e de dar. A evangelização não
é um simpósio ideológico, mas uma experiencia de vida.
O método pedagógico utilizado por Jesus conseguiu o seu primeiro objectivo, que era o
de criar interesse e causar surpresa. Estabeleceu relações que iam para além dos critérios
de raça ou de simpatia instintiva, de religiões ou de identidade cultural. O missionário
deveria ser capaz de dizer sempre uma palavra e propor sempre coisas novas que não
podem ser entendidas segundo o esquema habitual. Alguma coisa que mova o coração
por parecer estranha, original e inédita. Vede, Jesus conseguiu entrar e penetrar
profundamente na cultura da mulher e dialogar com ela de modo concreto. Conseguiu
uma empatia movida por amor. Conseguiu ver o mundo dela com os seus próprios
olhos, da pessoa a quem queria transmitir a mensagem e mudar o seu coração. À
resposta da mulher Jesus diz: se conhecesses o dom de Deus…! Estamos no centro da
operação que conduz ao cavar-escalar o desejo e a pergunta de si. Com esta expressão
Jesus coloca o mistério no centro da atenção da mulher, que imaginava saber tudo. Jesus
tudo faz para que a mulher descubra para além das aparências e de sentimentos
imediatos, o desejo de Deus escondido no mais fundo do seu coração. Quem como
evangelizador não adoptar esta atitude, não terá nada a dizer ao mundo, muito menos
pode arrogar-se o direito de falar em nome de Deus.
Jesus transmite esta inquietação salutar, abrindo à mente e o coração da mulher para a
perspectiva do mistério. É preciso lembrar-se sempre que a pergunta abre o mistério,
mas também o mistério faz nascer no coração a pergunta certa e mais profunda.
Não tens balde… essas palavras da samaritana revelam uma atitude interior complexa e
em movimento. A mulher representa aqui aquele e aquelas que dão ouvido ao
chamamento e interpelação do Senhor, entretanto procura defender-se banalizando o
pedido e negando um eventual sentido superior e transcendente às verdades que acabara
de ouvir. Uma vez que não acredita na grandeza do desígnio divino a seu respeito. No
acredita naquilo que pode tocar ou está muito segura de saber fazer. É a negação do
mistério. O poço, na verdade era profundo e fundo que Jesus estava a cavar na vida
dela. O próprio Jesus profundo como ninguém, profundo de sentido e de possibilidade
de satisfação, cava fundo na vida da mulher a fim de ela também ser profunda e funda,
capaz de acolher e saborear o mistério da sua vida, fruto do amor de Deus e
consequência da comunicação deste amor à humanidade. A água prometida e procurada
é “água viva”, fresca e pura, é aquilo por meio da qual a mulher pode reconhecer a sua
verdadeira identidade, sua vida e seu futuro. É deste diálogo e encontro que nasce a
pergunta: de onde vais tirar a água viva? Nasceu o interesse, a procura, o desejo de
buscar em outro lugar. Mesmo assim, ainda surge a dúvida, a desconfiança: será que ir
busca de outra água não complicará a minha vida, não será uma escolha que me atira
contra a corrente e me torna estranho aos olhos dos meus próprios amigos e familiares
(Lc. Não vim trazer a paz mas o fogo, que quero eu senão que acenda?). O evangelho
traz, efectivamente divisão, por as trevas não podem com a luz. Notai como o mistério
perturba, provoca, remexe. Mas Jesus não se dá por vencido, e insiste. E lá vem Paulo:
falai a propósito e despropósito. Insistir sempre, mas com amor e testemunho de vida,
com empatia e simpatia, mas também com pedagogia. Jesus insiste. Quem bebe desta
água nunca mais terá sede… a saciedade desta água abrange o homem inteiro, é
saciedade definitiva e felicidade perene. Pois cria uma fonte dentro daquele que a bebe.
É por isso que a vocação cristã existe para os outros e é uma fonte de vida, é
responsabilizar-se pelos outros. Este é o aspecto fascinante dessa vocação, de ser
apóstolo. É muito mais atraente o dom de si aos outros, que um ideal que tem por meta
simplesmente a auto-realização.
“Senhor, dá-me desta água”. O pedido tornou-se uma invocação, súplica, uma procura
da própria identidade segundo o desígnio de Deus. A mulher foi posta diante do
mistério, do mistério da sua vida e do seu futuro. A súplica indica que ela está diante do
mistério sem poder escapar dele e evitá-lo. E o mistério à semelhança do que fez Maria,
implica um compromisso, um pacto com o risco.
Na Evangelização é importante que o missionário ajude os outros a redescobrir e
decifrar o sonho de Deus sobre a sua própria vida. Recorrer à memória para descobrir o
discernir o mistério da sua vida. É recordando tudo o que aconteceu na sua vida passada
que alguém pode começar a ouvir outra voz, a voz certa, a reconhecer determinado
timbre, a descobrir um chamamento que é fruto de uma sequência de acontecimentos1.
Curiosamente e significativamente, a memória Bíblica, isto é, dos feitos de Deus em
favor da Humanidade e do Povo concreto de Israel, é o modo típico de crer do homem
espiritual, que acredita recordando e recorda acreditando. Esta é a memória que Moisés
recomendou ao povo de Israel (lembre-se de todo o caminho que Javé de fez percorrer
durante quarenta anos no deserto Dt.8, 2). o que fez com que o povo acreditasse não foi
a inteligência, mas fundamentalmente porque tinha visto ( Dt. 11, 3-7), porque seus pais
lhes tinham contado o que viram e viveram (Dt.32, 7) porque caminhando pelo deserto
experimentaram as seduções de Deus e tinham sido provados (Dt.8,3). Acreditavam
não pela força probante dos argumentos, mas pela evidência intrínseca dos factos
vividos. Portanto, o missionário, como é óbvio deve fazer reviver aos outros o que Deus
fez já nas suas vidas e começarem a recordar e solidificarem a sua fé, a sua convicção.
Vede, o que o Israelita piedoso fazia para que esses factos não fossem esquecidos, fazia

1
- Amedeo Cencini- a história pessoal, morada do mistério, 3ªed, S. Paulo: paulinas, 2003, p.23. o cristão
começa a interrogar por uma presença, por um convite, por um alógica dos factos que parece invadir e
abraçar sempre mais claramente toda a existência, dando-lhe singularidade e projectando-a sobre
panorama impensado.
memória deles, isto é, celebrava-os, prestando, um culto que consistia no memorial.
Uma memória que não se voltava exclusivamente para o passado, mas se projectava em
direcção ao futuro. Renova no tempo o significado do acontecimento e a sua eficácia.
Quando o homem se recorda de Deus, e faz este memorial, deixa que o seu ser e a sua
acção sejam determinados por Deus. Faz com que os seus actos sejam determinados
pela vontade de Deus; nisto o verdadeiro Cristão devia pedir sempre a Deus para que se
lembre dele e não se lembre dos seus pecados, e é próprio, por exemplo, de um Israelita
que ao fazer memória isto tenha influência sobre toda a sua pessoa e o rumo de sua vida.
Por isso, do ponto de vista histórico, ele caminha de costa viradas para aonde vai e vê
assim o seu futuro a dilatar-se, isto é, a crescer para trás.
A memória da fidelidade de Deus cria a fidelidade do homem, torna-a possível e a
sustenta com eficácia, e no momento e na medida em que a fidelidade divina é
reconhecida e celebrada, com estupor e contemplação, o coração humano começa a se
tornar participe da própria fidelidade divina. Assim que para o cristão a Bíblia devia ser
muito familiar, e tornasse para ela uma boa memória, um espelho no qual visse
reflectida a sua vicissitude existencial, ou o panorama de fundo diante do qual toda a
sua vida se desenrola. Heschel diz que: “ a Bíblia não é a visão que o homem tem de
Deus, mas a visão que Deus tem do homem. A Bíblia não é teologia do homem (feita
pelo homem), mas a antropologia de Deus, que se ocupa dos homens e daquilo que ele
lhes pede, mais do que da natureza de Deus.
Na missionação é esta lógica que deve ser seguida. Despertar nos outros a fidelidade do
projecto de Deus. O que ele fez ontem com os nossos antepassados é a mesma coisa que
quer fazer connosco. Nós somos herdeiros das mesmas promessas de Abraão. A
diferença é só do tempo, mas a qualidade das promessas é a mesma e é o mesmo Deus.
A abertura confiante ao dom de Deus, a abertura dialógica aos outros, consequência
desta abertura a Deus exige uma maturidade humana do evangelizador. Como viver a
experiencia comunitária, fruto da aceitação de um Deus que é comunidade em si
mesmo, quando a pessoa está fechada na própria subjectividade, incapaz de uma
abertura fecunda aos outros? Na Evangelização, trata-se de sair-de si-próprio para se
encontra com o outro, respeitado como outro, a fim de ajudá-lo a se encontrar com Jesus
Cristo Salvador-libertador. Pois assumir com realismo a condição humana é de
fundamental importância para o aprofundamento no encontro com Deus salvador-
redentor.
Note-se e desde já que, a humildade constitui o alicerce necessário do trabalho
evangelizador, devido a realidade de que o evangelizador é apenas o colaborador no
trabalho de semear o Reino de Deus. Quem semeia de facto é Jesus Cristo. (Mt. 13,4-
9.18-239). E faz a semente germinar, crescer e frutificar é o Espírito de Deus, a graça, o
amor de Deus actuando no ser Humano. Na evangelização cada um se recebe de Deus
através da palavra que o mediador lhe dirige e cria nova identidade a partir dos valores
do Evangelho.
Vejam como Jesus foi capaz de mobilizar, suscitar os sentimentos humanos com
profundidade e simplicidade. Ele é alguém capaz de mobilizar e cativar o coração
humano. Por isso, a actividade evangelizadora compromete a pessoa inteira do
evangelizador, mas trata-se de um agir fundamentado na vivencia de uma relação
pessoa e adulta com Deus da revelação Bíblica.
Formação para o sentido da missão.

Quanto mais Fervorosamente se unirem a Cristo por uma doação que abraça a vida
inteira, tanto mais rica será a sua vida para a Igreja e mais fecunda será o seu apostolado
( Pc. 1).
Os institutos religiosos de vida contemplativa e activa tiveram até agora e continuam a
ter a maior parte na evangelização do mundo.

A missão e o seu sentido constituem um elemento verdadeiramente novo do Concilio


Vat. II e da reflexão pós conciliar em relação a teologia da vida consagrada. O sentido
apostólico apara além de ser parte integrante da vida consagrada e objectivo da
formação é também conteúdo e instrumento formativo.
O projecto de vida, geralmente indica, de um ponto psicológico, uma realidade
complexa e compósita, na qual é possível reconhecer diversos componentes: o sentido
de identidade do individuo, sobretudo como elemento fundamental que sustenta e
motiva o projecto no seu conjunto, uma série de valores, convicções e crenças, uma fé
com possível abertura ao transcendente com interesses e desejos correspondentes;
O projecto de vida do crente consagrado se articula, evidentemente em torno de
conteúdos, mas assumindo conteúdos precisos e ligados à própria opção existencial. É
neste aspecto que vem à baila o projecto do instituto que em termos mais familiares
podemos chamar de carisma. O carisma de facto é um autêntico projecto de vida,
pensado por Deus para um conjunto de pessoas, projecto definido substancialmente por
estes componentes. Sentido de identidade, experiencia mística, caminho ascético,
objectivo apostólico, sentido de pertença. Ele não pode ser compreendido apenas porem
só desses componentes, mas por todos, tomados em seu conjunto. É o conjunto que dá
sentido a cada uma das partes, como num mosaico. Deste modo, a missão, o objectivo
apostólico de um instituto, deve estar ligado à experiencia mística e ao caminho ascético
do carisma correspondente, pois de contrário se tornaria incompreensível e repetitivo., e
morre. Ou dá lugar a discussões sem fim e sem sentido. E cria projectos individualistas
que prejudicam sobremaneira a dimensão comunitária e fraterna da vida consagrada. Se
não pode existir projecto de vida sem objectivo apostólico, também é verdade que não
pode haver autentico objectivo apostólico fora de um projecto carismático. E o carisma
é de facto um autêntico projecto de vida, pensado por Deus para um conjunto de
pessoas, projecto que é definido substancialmente por estes componentes: sentido de
identidade, experiencia mística, caminho ascético, objectivo apostólico e sentido de
pertença. Notemos, e desde já que é o conjunto que dá sentido às partes e as partes é que
constituem o conjunto. Deste modo, a missão, o objectivo apostólico de um instituto
deve estar continuamente ligado á experiencia mística e ao caminho ascético do carisma
correspondente. O carisma acaba por ser uma forma que dá identidade aos seus
membros.
Como harmonizar o projecto individual com forte pendor subjectivo e o projecto
institucional onde todos se devem rever e reencontrar?
Projectar-se implica, pois uma superação de si mesmo, para algo que está além do eu e
que também o realiza plenamente; está para além do que a pessoa já sabe fazer, a
respeito do qual está segura, e também é algo que atrai fortemente o individuo, é o eu
ideal, um ideal a ser amado, uma missão a cumprir.
Nesta formação para o sentido da missão, o educador deveria fazer o papel do “eu ideal”
para o jovem, procurar propor, e modo gradual, mas também sabiamente provocativo,
um valor que funcione como elemento de tracção atracção para o jovem, que só diante
de perspectivas precisas e interessantes se dispõe a começar a derrubar a lógica
inibitória e redutiva do eu actual, par experimentar concretamente um novo modo de
ser, que vai além de si mesmo e voltado para os outros. A formação para a missão não é
questão de clima psicológico, mas de conversão ao evangelho. E o critério de exame
neste campo de formação para a missão, é a conformação do coraçã-mente-vontade aos
sentimentos de Cristo, e de Cristo crucificado. Aí o objectivo não é a perfeição do
indivíduo como tal, (uma santidade privada), mas a sua decisão de pôr a própria vida ao
serviço dos últimos e dos outros2.
É fundamental ter presente que a evangelização do homem actual tem uma condição e
um imperativo fundamental: a inculturação da fé no mundo de hoje mediante a
evangelização da cultura e das culturas, e isto por um duplo fidelidade: a mensagem ao
destinatário, a universalidade da mensagem evangélica e as culturas particulares, o
depósito da fé e o homem na sua cultura. A evangelização perde muita força e eficácia
se não toma em consideração o povo concreto ao qual se dirige, se não utiliza a sua
linguagem e língua, seus signos, seus símbolos, se não responde às questões mais
candentes da sua vida, se não chega á sua vida concreta. Por outro lado, a evangelização
corre o risco de perder a sua alma e desvanecer-se, se desvirtua o seu conteúdo sob
pretexto de traduzi-lo. Somente uma igreja que mantém a sua universalidade, pode ter
uma mensagem capaz de ser entendida no mundo inteiro, e estar acima dos limites
regionais.
Seja como for é necessário conhecer a realidade cultural e ter a noção de cultura, e os
documentos de puebla definem como o modo particular como, em cada povo, os
homens cultivam a sua relação com a natureza entre si mesmos e com Deus. É o estilo
de vida comum que caracteriza os diversos povos. Assim entendida, a cultura abarca a
totalidade da vida de um povo: o conjunto dos valores que o animam e os desvalores
que os debilitam. Uma, necessidade urgente de inculturar a fé ou a mensagem
evangélica. Inculturar a fé cristã é conseguir a plena assimilação da mesma desde o
interior da própria cultura, de modo que a fé encarne dinâmica e criativamente na alma e
sentir do povo. Assim se conjugarão a experiencia cristã vivida a partir da própria
identidade cultural, e a experiencia da mesma segundo as formas culturais próprias.
Vejamos que o drama do nosso tempo é a ruptura entre a fé e a cultura ou entre o
evangelho e a cultura. E para evangelizar a cultura teremos que situar-nos no espaço
comum de encontro e diálogo entre a fé e a cultura, ampliando ao máximo os pontos de
convergência e interesses comuns para crentes e não crentes e que normalmente se
centram na pessoa, sua dignidade, sua liberdade, seus direitos. A pessoa e as relações
interpessoais. É necessário um diálogo permanente dos cristãos comprometidos na
cultura com os que não partilham a sua fé. O que o crente pode fornecer e dar é a
gratuidade que decorre da sua fé, explicar o significado e o sentido de Deus e do
homem.
Vemos que a evangelização pressupõe que o ser seja chamado a ser ele mesmo na
relação com o outro. A mesma evangelização compromete a pessoa do evangelizador. A
relação adulta com Deus-ágape, em conexão com a experiencia da receptividade, recebe
uma atenção especial.

2
-Amadeo Cencini- Vida consagrada, itinerário formativo no caminho de Emaus, S.Paulo: camara
brasileira do livro, 1994, p.257.
No curso da assembleia dos superiores maiores, em Novembro de 92, foi dito que a vida
consagrada encontra-se hoje no meio de uma crise pastoral. “ Os religiosos não sabem
mais dizer com clareza para que servem as suas iniciativas apostólicas, num contexto
que parece tê-las já superado. E ainda: os factos mostram a fraca capacidade de atracão
das nossas obras tradicionais.

Ao longo da história da igreja a consagrada foi uma presença viva da acção do Espírito,
lugar privilegiado de amor total a Deus ao próximo, testemunha do plano divino de
fazer que toda a humanidade, no horizonte de uma civilização do amor seja a grande
família dos filhos de Deus. É nesta perspectiva que a vitalidade dos conselhos
evangélicos interpela a crise da cultura moderna mais recente e oferece ou devia
oferecer aos homens e mulheres desencantados modelos capazes de transformar a sua
vida.
A vida consagrada deve propor hoje como caminho acessível a todos segundo seus
estados de vida, como proposta de modelos de existência que gosta de contemplar o que
são edificantes, que todos podem reconhecê-los como tesouros de sabedoria e felicidade
para sua vida, e portanto tendem a reproduzir e experimentar numa existência laica3.
Há que perguntar-nos: a vida religiosa consegue, na verdade partilhar seu dom, fazer
ver que tem sentido para todos, fazer que os grandes motivos de viver e morrer sejam
significativos para os homens e para todos crentes e iluminem os pequenos motivos, os
sucessos às opções de cada dia? A vida consagrada está mais preocupada em prestar
serviços que em propor ao alcance de todos sua riqueza espiritual? Que sabe a gente de
nossos carismas e dons espirituais que recebemos para os homens e que tratamos agora
de actualizar e entender a partir de outras perspectivas? Que contribuição deu e tem
dado nossa espiritualidade a sabedoria, à serenidade e a paz da sociedade civil? Quantos
de nossos dons se converteram em riqueza de todos?
É verdade que muitas se dão conta dos bons serviços sociais e culturais que se prestam,
todavia não se dão conta nem se apercebem da raiz que os alimenta e sustenta. As
pessoas aceitam uma série de serviços e actividades que prestamos, mas as razões para
viver, amar e sofrer as vão buscar de outra parte. É admirável e espantosamente curioso!
Também é o momento de assisar profundamente e largamente que até certo ponto,
temos privado a sociedade civil da contribuição da nossa espiritualidade a fim de fazer
um mundo mais humano. Se a nossa espiritualidade é incapaz de sugerir novos sinais e
significados para a vida de todos e de todos os dias, a razão principal é que não somos
capazes de a transmitir e actualizá-la de modo adequado e segundo os parâmetros do
evangelho, isto é, atender as necessidades e o contexto do nosso alvo, destinatário. Os
nossos carismas e espiritualidades já não permitimos que sejam desafiados e provocados
pelos problemas e dramas da existência das pessoas. Jesus teve pena da multidão porque
eram ovelhas sem pastor e interpelou os seus discípulos a fim de providenciarem
alimentação naquele lugar deserto. E viu-se que o pouco partilhado chega e sobra e o
muito, mas gerido egoisticamente nunca chega e como consequência provoca stress e
preocupação com o zelo de conservá-lo. Isto nos deve levar à reflexão de que um
carisma que não se insere nem na história nem na vida, que não remete constantemente
ao âmbito vital em que nasceu que não está bem ligada às raízes eclesiais e sociais
firmes na Igreja e no mundo como causa e razão da sua existência acaba por morrer!
Acreditamos que a vida consagrada necessita que se lhe diga hoje essa palavra
evangélica: efatá , abra-te (Mc.7,34), que se cure da sua surdez e mutismo, que convide

3
- Amadeo cencini- vida en comunidad: reto y maravilla, la vida fraterna y la nueva evangelizacion,
Madrid: sociedad de educación Atenas, 1997, p. 34.
a falar e a escutar, a dar e a receber a palavra, a dizer e a confessar a esperança, a
evangelizar e a deixar-se evangelizar4.
A pessoa é tão grande quanto às suas expectativas. Uma pessoa torna-se grande
esperando o possível. Outra torna-se grande esperando o eterno. Mas quem espera o
impossível torna-se maior que todos. Abraão aposta na possibilidade impossível de
Deus sobre o acontecimento, isto é, aposta em que o mesmo Deus, que deu e que tirou,
é o Deus em quem tem de confiar. Deus tem sempre uma alternativa impossível.
Abraão confia em Deus, mesmo no tempo do silêncio de Deus. Esta é sua grandeza:
confiar no Senhor não só quando tudo corre bem, mas sempre, mesmo na noite escura,
quando Ele parece querer tirar-lhe o Isaac do seu coração. Abraão crê abandona-se
perdidamente, confia e confia-se a Deus Pai. Deus é aquele que exige amor absoluto.
Não se ama a Deus quando se ama as consolações de Deus; ama-se a Deus, quando o
amamos, queira Ele o que quiser para nós (as quatro noites, p.24). Para o amor nenhum
sacrifício é demasiado grande; de facto, só pode sacrificar o que se ama. O difícil é
oferecer a Deus o amor verdadeiro da nossa vida. A Deus não se oferece o refugo do
coração. Cada um de nós, à semelhança de Abraão, tem o Isaac do seu coração. A Fé é
reconhecer este Isaac e estar pronto a colocá-lo sobre o altar do sacrifício, no dia em que
Deus quiser, isto é, renuncia-lo para o bem maior. Crer é oferecer o Isaac do seu
coração, o único, o amado, oferecê-lo a Deus, porque só Deus é digno desta oferta e
deve ser amado assim. Morrer para nascer. Perder-se para encontrar-se. A fé consiste
em: crer na possibilidade impossível de Deus, confiar em Deus, apesar do silêncio de
Deus, não obstante a noite escura das suas exigências impossíveis. Deus também vive a
sua noite escura por amor aos homens, também Ele, como Abraão, oferecerá o Isaac do
seu coração: Jesus, o seu Filho unigénito. Abraão, na verdade, amou mais a Deus do que
as promessas de Deus.

4
- Ibidem, p. 38

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