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01/05/2021 Virtualidade, visão e vazio
"Movements in Pole Vaulting", Etienne Jules Marey, 1890 (Foto: Reprodução/ Google Arts & Culture)
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complexidade do que está em jogo com a virtualização do mundo, quando essa forma
de vida remota é vista como a evolução mais lógica e acabada da presença e do
presente.
***
Mais de uma vez, Jorge Luis Borges relacionou “os sórdidos pesadelos de Kafka” ao
infinito. E ao infinito também se deve a pregnância do qualificativo kafkiano, seja ele
mórbido ou alegre. Nesse sentido, nada mais certo do que postular que Zenão de Eleia,
com seus célebres paradoxos, seria contemporâneo de Kafka, ou a posteriori um dos
seus precursores: “o móvel e a flecha e Aquiles são os primeiros personagens
kafkianos da literatura”. Mas Borges também foi leitor atento de Piotr Demianovich
Ouspensky, autor de Tertium Organum, publicado em 1912.
Aí Ouspensky especula sobre a espacialidade do tempo. Diz que, “existindo, todo corpo
tridimensional se move no tempo” e “deixa a marca do seu movimento na forma de
um corpo temporal, ou de um corpo tetradimensional”. No entanto, em razão das
“propriedades do nosso aparato de percepção, nunca vemos nem sentimos esse corpo;
só vemos seu segmento”, o corpo tridimensional. A consequência, para Ouspensky, é
que um corpo tridimensional é “meramente a projeção de um corpo tetradimensional”. É
“seu desenho, sua imagem no nosso plano”. Ou seja, “um corpo tetradimensional é um
número infinito de corpos tridimensionais”, “um número infinito de momentos de
existência”. E arremata: “o corpo tridimensional que vemos é só uma figura na
película cinematográfica, uma de uma série de instantâneos”.
Ouspensky está dizendo que a aparência nos engana: ela não oferece a existência
existindo; apresenta apenas estados e posições, momentos de existência análogos aos
fragmentos justapostos, mas a rigor imóveis, de uma película cinematográfica.
E, como no cinema, há um vazio entre esses fragmentos: diz-se que num filme em
película, os espaços entre os quadros ocupam cerca de quarenta por cento do tempo de
projeção. Assim, a continuidade, o movimento, enfim a presença é somente um efeito:
uma aparição resultante do aparato, o resultado de um artifício (técnico, perceptivo)
que oblitera o vazio e a imobilidade. Esses artifícios, muitas vezes naturalizados,
podem ser contrapostos, e o primeiro gesto necessário é expô-los como natureza de
segunda ordem. Flores azuis no jardim da técnica, diria Benjamin.
***
Dziga Vertov expôs muito bem esses artifícios; fez disso um método, até. Em Câmera
olho (1924), para mostrar os processos de produção de cooperativas e de camponeses
(contrapondo-os aos do setor privado), decidiu remontar o tempo ao contrário, indo
do produto acabado (a carne, o pão) ao seu estado material original. Com isso criou
uma aporia, já que no filme coincidem o avanço da série de imagens e a regressão do
tempo linear. Também fez questão de mostrar ao público como um filme era
montado, ou seja, como nele operava a técnica. Em Um homem com uma câmera (1929),
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Essas experiências mantêm sintonia com o que lemos em O inconsciente, onde Freud
pensou o tempo como resultado da operação intermitente do aparelho consciente,
enquanto o inconsciente seria descrito como uma espécie de arquivo imune aos efeitos
da passagem corrosiva da temporalidade. Para Freud
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/sigmund-freud), o tempo está relacionado
ao funcionamento descontínuo e protetor da consciência, e não ao arquivamento
“infinito” e não-cronológico do inconsciente. Mary Ann Doane afirmou: “tempo é
aquilo que não deixa registro – ele emerge do fracasso da representação”. Ou seja,
“ele é um efeito, uma espécie de espelhamento da operação do sistema psíquico”.
Daí, ademais, a relação entre Freud e as experiências fotográficas levadas a cabo por
Eadweard Muybridge, Thomas Eakins ou Etienne-Jules Marey. Fisiologista que seguiu
as investigações de Hermann von Helmholtz e figura central no experimento da
cronofotografia, Marey estava interessado em apreender o “tempo perdido”, ou como
Mary Ann Doane escreveu, “o tempo durante o qual nada parece acontecer – o tempo
entre a recepção do choque nervoso ou do impulso pelo músculo e a contração do
músculo”.
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01/05/2021 Virtualidade, visão e vazio
Chronophotograph of a Man on a Bicycle, Etienne Jules Marey (Foto: Reprodução/Google Arts & Culture)
Marcel Duchamp, um precursor de Borges, viveu em Buenos Aires entre 1918 e 1919.
“Segundo me contou”, escreveu Octavio Paz, “passava as noites jogando xadrez e
dormia durante o dia. Sua chegada coincidiu com um golpe de Estado e outros
transtornos públicos que ‘dificultavam a circulação’. Conheceu pouquíssima gente
[…]”. Não obstante, em Buenos Aires, Duchamp trabalha. Conhecedor da
cronofotografia e dos estudos de Muybridge com o movimento de cavalos, o artista já
decompusera a forma em Nu descendo a escada (1912), de acordo com um interesse pelo
estatismo (afastando-se do movimento apolíneo dos futuristas).
Segundo Raul Antelo, mais que o olhar (regard), é o retardo (retard) que Duchamp
exercita em Buenos Aires; cidade em acelerado processo de modernização, mas que
vive uma espécie de anestesia tensa, marcada, em janeiro de 1919, pela Semana
Trágica, um dos eventos inaugurais da biopolítica na região: greve geral (cuja
organização impressiona Katherine Dreier, incentivadora do dadaísmo, que
acompanha Duchamp) e violenta repressão ao movimento operário anarquista e aos
imigrantes.
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E se La mariée mise à nu par ses célibataires, même, conhecida como Grande vidro, faria da
noiva uma espécie de motor, sua mecânica é parte de um processo “não analisável pela
lógica”, de modo que “a noiva, os celibatários e, por implicação, também o espectador
são suspensos em um estado de desejo permanente”, frisou Calvin Tomkins em sua
biografia do artista. Após meses no ateliê de Duchamp em Nova York, aliás, a obra
seria fotografada por Man Ray em seu trabalho de criação de poeira, isto é, seria
pensada, por meio da técnica (supostamente) mais objetiva, como uma duração que
frustra a pretensa transparência da visão e a realização do desejo.
***
Tais experiências nos permitem reafirmar que, ao contrário do que pode parecer, o
mundo virtual ou remoto não é a realização plena de uma presença ampliada, global,
just in time, sem interrupções, nem vazios. Não é a precisa superação tecnológica das
imprecisas distâncias analógicas.
Sim, esse mundo abre oportunidades, contatos possíveis, novas formas de criação,
participação etc. Mas é por excelência o mundo das imagens: nada nele escapa à
ambivalência do olhar – ao contrário, parece intensificá-la –, que sempre vê e ao
mesmo tempo não vê. E mais: é agora o mundo maquínico da pré-visão mundial,
alcançada pelos processos aparentemente autônomos de algoritmos que compõem
produtos e serviços; respondem aos nossos desejos e afetos; servem de mediação para
as relações pessoais, sociais e políticas etc.
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