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CDD: 149.

Primeiras Considerações sobre o Problema da Explicação


Teleológica da Ação Humana em Espinosa
MARCOS ANDRÉ GLEIZER

Departamento de Filosofia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/CNPq
RIO DE JANEIRO, RJ
gleizer@uerj.br

Resumo: Uma das principais controvérsias que dividem os estudiosos do pensamento de Espino-
sa refere-se à determinação do alcance exato de sua crítica à doutrina das causas finais. Embora
todos concordem que esta crítica acarreta a recusa radical de qualquer explicação teleológica da ação di-
vina, o debate surge quando se trata de determinar se ela também acarreta a exclusão de toda e qual-
quer forma de explicação teleológica do comportamento dos entes finitos e, em particular, do ser huma-
no. Neste artigo pretendo apresentar um primeiro exame de algumas das principais evidências a favor
dos intérpretes que sustentam que nem as formulações textuais de Espinosa nem seus argumentos ex-
cluem a legitimidade de explicações teleológicas da ação humana.

Palavras-chave: Espinosa. Explicação teleológica. Determinismo. Conatus. Atividade causal.


Representação.

Dentre as inúmeras controvérsias que dividem os intérpretes do pensa-


mento de Espinosa, uma das principais refere-se à determinação do alcance exato
de sua crítica à doutrina das causas finais. Com efeito, dessa determinação depen-
de a adequada compreensão da estrutura motivacional e explicativa da ação hu-
mana e, conseqüentemente, do sentido do projeto ético que norteia toda a cons-
trução do sistema. Embora os intérpretes sejam unânimes em concordar que a
crítica de Espinosa acarreta a recusa inequívoca da explicação teleológica da ação
divina, a controvérsia surge quando se trata de determinar se essa crítica também
acarreta a exclusão de toda e qualquer forma de explicação teleológica do com-
portamento dos entes finitos e, em particular, do comportamento humano. As
principais posições interpretativas presentes nesta controvérsia podem ser classi-
ficadas em dois grandes grupos:

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(1) No primeiro grupo encontramos os comentadores que defendem uma


interpretação antifinalista integral de Espinosa. Este grupo acolhe intérpretes de
proveniências filosóficas tão diferentes quanto Martial Gueroult e Jonathan Ben-
nett. Ao desenvolver sua análise do apêndice da primeira parte da Ética, Gueroult
procura mostrar que a crítica de Espinosa ao finalismo é muito mais radical que a
de Descartes. Este teria se contentado em excluir a pertinência metodológica de
explicações finalistas na física, deixando intacta, entretanto, a legitimidade de sua
aplicação nas esferas da ação divina 1 , do composto psicofísico, da mente humana
e da vida moral. Espinosa, por sua vez, teria combatido integralmente a legitimi-
dade dessas diversas aplicações, reduzindo, assim, o próprio conceito de finalida-
de a uma mera ilusão imaginativa. 2 Bennett, cuja interpretação antifinalista inte-
gral é a mais minuciosamente desenvolvida na bibliografia atual, defende esta
mesma leitura apresentando argumentos baseados em diversas passagens e aspec-
tos da doutrina espinosista. 3 Em especial, ele procura demonstrar: (i) como al-
guns dos argumentos dirigidos contra a teleologia divina no apêndice da primeira
parte da Ética também atingem a explicação teleológica do comportamento dos
agentes finitos, tendo, portanto, um alcance universal; (ii) como a tese do parale-
lismo psicofísico tem como conseqüência a impotência causal do conteúdo repre-
sentativo das idéias e, portanto, a impossibilidade de explicações da conduta hu-
mana em termos teleológico-mentais, ou seja, em termos de intenções; (iii) como,
apesar de afirmações inconsistentes por parte de Espinosa, o seu grande “insight”
filosófico teria consistido precisamente em tentar elaborar uma teoria não-
teleológica do apetite e do desejo; (iv) como só esta teoria permite explicar a tese

1 Em virtude da infinitude da natureza divina, Descartes considera que os desígnios de

Deus são insondáveis e que seria arrogância de nossa parte nos julgarmos partícipes deles
(cf. Princípios da Filosofia, art. 28). Daí se segue a exclusão metodológica da busca de causas
finais na física. Porém, esta exclusão não é acompanhada pela recusa da validade, no plano
ontológico, da noção de finalidade divina. Ou seja, embora Deus aja em vista de fins, es-
tes são incognoscíveis para nós.
2 Cf. Gueroult (1968, §XV, p. 399-400).
3 A posição de Bennett é apresentada nas seguintes obras: Bennett (1984, cap. 9);

Bennett (1990) e Bennett (2001, cap. 11).

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da antecedência do desejo sobre o juízo de valor, enunciada por Espinosa no es-


cólio da EIIIpr.9.
(2) No segundo grupo encontramos comentadores que, combatendo prin-
cipalmente as análises propostas por Bennett, procuram mostrar que nem as
formulações textuais nem os argumentos de Espinosa excluem a legitimidade de
explicações teleológicas do comportamento dos entes finitos. Este grupo de in-
térpretes pode ser dividido em dois subgrupos: (2.1) há aqueles, representados de
forma exemplar por E. Curley 4 , que procuram mostrar particularmente que a
crítica de Espinosa à teleologia divina não exclui a legitimidade de explicações
teleológicas do comportamento humano; (2.2) há aqueles, representados exem-
plarmente por Garrett, que procuram sustentar que aquela crítica tampouco ex-
clui a legitimidade de explicações teleológicas do comportamento dos entes fini-
tos menos complexos que o homem, à condição de entendermos que estas expli-
cações repousam sobre uma interpretação da teoria geral do conatus como um tipo
de finalidade interna. 5 Garrett chega inclusive a defender que, dentre os três gran-
des filósofos racionalistas do século XVII, Espinosa é o que mais se aproxima da
posição aristotélica original (não-medieval) no que tange ao âmbito das explica-
ções teleológicas, pois, segundo ele, tanto Espinosa quanto Aristóteles concorda-
riam quanto à inexistência de teleologia divina, à existência de processos teleoló-
gicos sem pensamento, à existência de processos teleológicos em organismos
sub-humanos, e mesmo quanto à existência de uma função substantiva para ex-
plicações teleológicas em filosofia natural.
A classificação proposta acima deixa claro que a controvérsia acerca do al-
cance da crítica dirigida à doutrina das causas finais abarca posições interpretati-
vas radicalmente antitéticas, posições estas que repercutem sobre a compreensão

4 Cf. Curley (1990). Outros intérpretes pertencentes a este grupo são: Jarrett (1999);

Manning (2002) e Lin, M.


5 Cf. Garrett (1999). Também neste grupo, como no caso dos intérpretes do grupo

(1), encontramos comentadores de proveniências filosóficas muito distintas. Com efeito, a


interpretação do conatus como um tipo de finalidade interna foi sugerida por Victor Del-
bos em seu curso proferido na Sorbonne em 1912-1913 (ver nota 60).

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da totalidade do sistema. Para poder tomar uma posição global neste importante
debate seria preciso examinar as principais passagens e argumentos oferecidos
por Espinosa. Evidentemente, uma análise exaustiva da totalidade dessas passa-
gens e argumentos ultrapassaria em muito os limites deste trabalho. Por isso, meu
intuito aqui será apenas o de apresentar um primeiro exame de algumas das prin-
cipais evidências a favor da interpretação do grupo (2.1).

1. Presença de expressões teleológicas nas obras de Espinosa


A primeira evidência a favor da interpretação do grupo (2.1) é o fato de
Espinosa utilizar freqüentemente uma linguagem teleológica para descrever o
comportamento humano. Os casos mais significativos são aqueles em que Espi-
nosa faz uso dessa linguagem para formular seu próprio projeto filosófico. É o
que ocorre, por exemplo, no preâmbulo do Tratado da Reforma do Entendimento,
onde toda a discussão acerca dos bens mundanos, do verdadeiro bem e do sumo
bem é formulada em conformidade com a terminologia e o esquema meios-fins. 6
No §14 Espinosa enuncia seu projeto da seguinte maneira: “Este é, portanto, o
fim ao qual eu tendo, a saber, adquirir uma natureza assim [natureza humana mais
forte] e esforçar-me para que muitos a adquiram comigo”. O gozo dessa natureza
humana mais forte, brevemente caracterizada no §13 como consistindo no “co-
nhecimento da união da mente com a Natureza inteira”, constitui o sumo bem,
sendo o bem verdadeiro, por sua vez, definido como “tudo o que pode ser um
meio para chegar a essa natureza”. É importante salientar que Espinosa não vê
nenhum inconveniente em usar essa linguagem teleológica para descrever seu
esforço (conatus), mesmo após ter relembrado no §12 a tese determinista em con-
formidade com a qual “tudo o que é feito acontece segundo uma ordem eterna e
conforme leis certas da Natureza”. Ou seja, ele não assinala nenhuma incompati-
bilidade entre a tese do determinismo causal e a descrição teleológica do compor-
tamento humano.

6 Cf. T.R.E., seções 1-17 (GII/5-9).

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O prefácio da Ética IV, por sua vez, retoma e desenvolve alguns elemen-
tos contidos no preâmbulo. Toda a análise proposta neste prefácio acerca da gê-
nese e da natureza das noções de “perfeição” e “imperfeição”, “bem” e “mal”,
toma por fundamento o reconhecimento de que os homens agem em vista de
fins ao produzirem intencionalmente certas obras: “Quem decidiu fazer alguma
coisa e a levou a cabo dirá que a sua obra está perfeita; e não só esse, mas tam-
bém todo aquele tiver conhecido exatamente a intenção do autor de tal obra e o
seu fim, ou o que crer conhecê-lo” (GII/206). Partindo dessa base, Espinosa e-
xamina criticamente a formação e a utilização de idéias imaginativas como mode-
los para a avaliação das obras realizadas pelos homens e, sobretudo, sua projeção
antropomórfica sobre a ação de Deus ou da Natureza (Deus sive Natura) e seu uso
para a avaliação de coisas naturais. 7 A crítica da validade objetiva dos modelos
imaginativos e a exclusão da legitimidade da projeção antropomórfica de nosso
comportamento teleológico sobre Deus ou a Natureza 8 não conduzem Espinosa
a negar o caráter teleológico de nosso comportamento nem tampouco a recusar a
validade de todo e qualquer modelo que permita orientar e avaliar a nossa condu-
ta. Com efeito, ao final do prefácio ele afirma que “nós desejamos formar uma
idéia de homem que nós consideremos como um modelo de natureza humana”
(GII/208), modelo este que fornece uma norma para nossa conduta e permite
qualificar como um bem “aquilo que sabemos com certeza ser um meio para nos
aproximarmos cada vez mais” dele. Ora, o teor da crítica dirigida às idéias imagi-
nativas tanto neste prefácio quanto na Ética II impede que interpretemos Espino-
sa como propondo aqui a formação e adoção de mais um modelo imaginativo tão
subjetivo, relativo e parcial quanto os outros. A utilização da primeira pessoa do
plural (“nós desejamos”) e a referência ao que “sabemos com certeza” nas passa-

7 “Com efeito, os homens têm por hábito formar idéias universais tanto das coisas na-

turais como das artificiais, idéias estas que eles têm como modelos das coisas, e crêem que
a Natureza (que, a seu ver, não faz nada que não seja em vista de um fim determinado) as
considera e as propõe como um modelo a si mesma”. (GII/206)
8 “Com efeito, mostramos, no apêndice da primeira parte, que a Natureza não age em

vista de um fim”. (GII/206)

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gens mencionadas acima constituem indícios claros de que Espinosa está pro-
pondo a possibilidade de construirmos um modelo racional que permita superar a
dispersão dos modelos imaginativos e legitimar juízos de valor e preceitos racio-
nais intersubjetivamente válidos. 9 Embora Espinosa não volte a se referir explici-
tamente a este modelo na Ética, é perfeitamente possível compreender boa parte
da Ética IV como dedicada exatamente à construção geométrica do modelo ra-
cional de uma vida filosófica 10 , onde, em conformidade com o que é afirmado no
preâmbulo do T.R.E., é demonstrado que conhecer é um fim em si mesmo (EIV-
pr.26), que tudo aquilo que sabemos com certeza ser favorável ao esforço de co-
nhecer é um bem verdadeiro (EIVpr.27), e que o sumo bem consiste no conhe-
cimento de Deus (EIVpr.28) e, como completará mais tarde a Ética V, no gozo
do amor intelectual de Deus que nasce deste conhecimento.
Por fim, este mesmo projeto, formulado na mesma linguagem teleológica,
é apresentado no capítulo IV do T.T.P., onde Espinosa explica a noção de lei
divina como uma regra de vida que diz respeito ao bem soberano, isto é, ao ver-
dadeiro conhecimento e amor de Deus: “O que a idéia de Deus prescreve é que
Deus é nosso bem supremo ou, por outras palavras, que o conhecimento e o
amor de Deus são o fim último para o qual devem estar orientadas todas as nos-
sas ações”. 11

9 Não é possível examinar aqui as diversas dificuldades ontológicas, epistemológicas e

éticas que surgem do reconhecimento de uma função normativa para as idéias da razão.
Cabe assinalar, no entanto, que a superação do relativismo individual (próprio ao plano
imaginativo) propiciada pela construção de um modelo racional intersubjetivo (fundado
em noções comuns a todos os homens) é compatível com a preservação do caráter rela-
cional dos juízos de valor. É em relação a este modelo intersubjetivo que os objetos (in-
cluindo os afetos e as condutas humanas) serão avaliados. Assim, eles serão considerados
como bons ou ruins não em si mesmos, mas apenas na medida em que forem úteis ou pre-
judiciais à realização do modelo, e os homens serão ditos mais ou menos perfeitos exclusi-
vamente em função do maior ou menor grau de concordância com o modelo proposto.
10 Construção esta que culmina com o “retrato do homem livre” apresentado nas sete

últimas proposições.
11 Cf. T.T.P, capítulo IV, p. 68, 69 e 70.

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Apesar da importância inegável dessas passagens, é preciso, no entanto, re-


conhecer que a adoção de uma linguagem teleológica não constitui por si só uma
evidência decisiva a favor da interpretação do grupo (2.1). Afinal, é sempre possível
argumentar que Espinosa se apropria de uma linguagem tradicional para expressar
um aparato conceitual radicalmente novo, tal como ocorre, segundo a grande maio-
ria dos intérpretes, com o seu uso dos termos “substância”, “atributo” e “modo”.

2. Presença de esquemas explicativos teleológicos da conduta humana


Um segundo tipo de evidência a favor da interpretação do grupo (2.1)
consiste na presença, freqüente na Ética, de esquemas explicativos da conduta
humana formulados em proposições acerca do conatus dotadas da seguinte forma
geral: ‘se um agente A pensa (crê ou sabe) que fazer x lhe será útil ou prejudicial,
então A se esforçará, tanto quanto puder, por fazer ou por evitar x, respectiva-
mente’. Exemplos importantes de proposições nas quais encontramos esta forma
geral encontram-se, entre outros, nas seguintes passagens:
Tudo o que imaginamos que conduz à alegria, esforçar-nos-emos por fazer de mo-
do a que se produza; mas tudo o que imaginamos que lhe é contrário ou conduz à
tristeza, esforçar-nos-emos por afastá-lo ou destruí-lo. (EIIIpr.28)

Cada um deseja ou tem aversão necessariamente, pelas leis da sua natureza, àquilo
que julga ser bom ou mau. (EIVpr.19)

Proposições deste tipo permitem explicar o que um agente necessariamen-


te se esforça por fazer com base no que ele crê ou sabe ser útil ou prejudicial,
tendo, assim, o que Bennett classifica como uma forma teleológico-cognitiva. 12 A
Ética explora as diferenças afetivas e éticas existentes entre os desejos passionais
que nascem das crenças imaginativas (idéias inadequadas) acerca do bem e do mal
e os desejos ativos que nascem do saber racional (idéias adequadas) acerca do que

12 Cf. Bennett (1984, §68.3, p. 295). Bennett distingue proposições dotadas desta for-

ma não apenas de proposições teleológicas não-cognitivas (expressas pela forma ‘se x é


útil para A, A faz x’), mas também de proposições não-teleológicas (expressas pela forma
‘se A faz x, x é útil para A’). Cf. Bennett (1984, p. 244).

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é verdadeiramente útil ou prejudicial, procurando explicitar exatamente em que


condições e em que medida os segundos podem se desenvolver e prevalecer so-
bre os primeiros na determinação de nossa conduta. Bennett reconhece a impor-
tância central exercida por proposições deste tipo na realização do projeto geral
da Ética, mas acredita poder mostrar que sua presença é fruto de uma inconsis-
tência por parte de Espinosa acerca da natureza do conatus, do desejo e da teleolo-
gia mental. No entanto, como indicarei mais adiante, parece-me perfeitamente
possível evitar a atribuição de uma inconsistência de conseqüências tão graves
para o sistema mostrando que nada do que Espinosa sustenta na Ética é incompa-
tível com a aceitação de proposições deste tipo.

3. Análise do apêndice da Ética I


3.1. Exame das passagens “canônicas” do apêndice 13

Um dos textos mais importantes para a discussão que nos ocupa é o apên-
dice da Ética I. Afinal, é aí que a crença no finalismo é explicitamente apontada
como o prejuízo fundamental que dificulta, e muitas vezes impede, a aceitação
das teses demonstradas ao longo da obra. O objetivo de Espinosa neste apêndice
é justamente o de explicar a causa da adesão quase universal a este prejuízo, exibir
sua falsidade e mostrar como dele nascem outros prejuízos. Mas, em que consiste
exatamente o prejuízo denunciado? Eis o que Espinosa afirma inicialmente:

Todos os prejuízos que me cumpre indicar dependem de um só, a saber: os ho-


mens supõem comumente que todas as coisas da Natureza agem, como eles mesmos,
em consideração de um fim, e chegam mesmo a ter por certo que o próprio Deus
dirige todas as coisas para determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coi-
sas em consideração do homem, e que criou o homem para que este lhe prestasse
culto. (GII/78, grifo nosso)

Nesta passagem, como no início do prefácio da EIV citado acima, Espino-


sa afirma claramente que os homens agem em vista de fins e que o prejuízo fun-

13 Por passagens “canônicas” entendo aquelas mais freqüentemente citadas como base

da interpretação antifinalista integral.

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damental consiste na projeção antropomórfica deste comportamento teleológico


sobre a totalidade das coisas da Natureza e sobre a ação divina. Ou seja, o prejuí-
zo fundamental consiste na crença na providência divina ou cósmica. Não é afir-
mado aqui que a própria ação teleológica humana seja uma crença ilusória. Para
obter esta leitura mais radical seria preciso ler a passagem acima não como afir-
mando: (a) que os homens agem em vista de fins e supõem comumente (e falsa-
mente) que este comportamento se aplica também à Natureza e a Deus; mas sim
como afirmando: (b) que os homens supõem comumente (e falsamente) que eles
agem em vista de fins e que a Natureza e Deus agem da mesma maneira que eles.
Esta segunda leitura enraizaria a falsa cosmologia e a falsa teologia, oriundas da
projeção antropomórfica, em uma falsa antropologia que conteria como um de
seus ingredientes essenciais a crença ilusória na teleologia humana. Esta leitura
radical encontra respaldo na seqüência do texto?
Quando Espinosa inicia sua explicação da gênese do prejuízo finalista, to-
mando como fundamento desta explicação a ignorância que os homens têm das
causas das coisas e a consciência do apetite de buscar o que lhes é útil, ele aponta
efetivamente para seu enraizamento numa falsa concepção que os homens têm
de si, mas não utiliza nenhuma formulação que permita afirmar que o comporta-
mento teleológico humano seja ilusório. Com efeito, dos dois fatores explicativos
apresentados Espinosa conclui inicialmente que: (1) “os seres humanos têm a
opinião de que são livres por estarem cônscios de suas volições”, mas ignorarem
as causas que os dispõem a querer; (2) “os homens agem em tudo em vista de um
fim, a saber, o útil de que têm apetência” (GII/78). Ora, Espinosa se refere aqui
explicitamente a uma opinião acerca da liberdade (opinião esta que servirá de
exemplo paradigmático para a falsidade no escólio da EIIpr.35), mas não qualifica
igualmente como uma mera opinião o agir teleológico humano. Se ele aponta
para uma falsa concepção de si na origem do prejuízo finalista, ele não diz que
esta falsa concepção consiste em crer ilusoriamente que os homens agem em vis-
ta de fins. A má compreensão de si consiste na associação imaginativa estabeleci-
da entre a crença ilusória no livre arbítrio e a ação teleológica, ou seja, na crença
segundo a qual os homens escolhem livremente os fins em vista dos quais eles

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agem. No entanto, é perfeitamente possível criticar essa associação sem recusar o


caráter teleológico da conduta humana, pois negar que nós escolhemos livremen-
te os fins que buscamos não equivale a negar que nós agimos em vista de fins.
Assim, é perfeitamente possível interpretar as passagens acima como detectando
na origem da crença ilusória na teleologia cósmica ou divina uma concepção ima-
ginativa e inadequada da teleologia humana caracterizada precisamente por sua
articulação com a crença ilusória no livre arbítrio. Se esta leitura for correta, a ex-
clusão dessa concepção imaginativa não acarreta por si só a exclusão de uma au-
têntica explicação teleológica da ação humana no sistema espinosista.
Porém, há uma terceira passagem do apêndice cuja formulação parece sus-
tentar a interpretação do grupo (1). No início da refutação do prejuízo finalista,
Espinosa afirma de forma aparentemente universal que: “todas as causa finais
nada mais são que ficções do espírito humano” (GII/80). Tomada isoladamente
esta frase se aplicaria também à conduta humana. No entanto, Curley mostrou de
forma bastante convincente que a leitura mais natural desta frase deve conectá-la
com o que é afirmado imediatamente antes e com os argumentos apresentados
logo em seguida. Ora, a passagem completa diz o seguinte: “para mostrar agora
que a Natureza não tem qualquer fim que lhe seja prefixado e que todas as causas
finais nada mais são que ficções do espírito humano, não é necessário grande
esforço”. A leitura mais natural da passagem tomada em seu contexto consiste
em entender que Espinosa qualifica como ficções todas as causas finais atribuídas
apenas à Natureza enquanto identificada a Deus. Trata-se mais uma vez de recu-
sar apenas a tese de uma providência divina ou cósmica. A correção desta leitura
é reforçada, por um lado, pelo fato de que todas as passagens da Ética I a que
Espinosa se refere em seguida como tendo estabelecido a falsidade desta tese
dizem respeito exclusivamente à ação de Deus e, por outro lado, pelas passagens
do prefácio da EIV em que Espinosa se refere ao apêndice como tendo mostrado
apenas que “aquele ente eterno e infinito a que chamamos Deus ou Natureza não
age em vista de um fim.” 14

14 Cf. as passagens do prefácio da EIV citadas nas notas 7 e 8.

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Estas passagens “canônicas”, portanto, não sustentam a interpretação ra-


dical do grupo (1), sendo as formulações utilizadas por Espinosa mais apropria-
das à interpretação do grupo (2.1). No entanto, para sustentar esta leitura contra a
detalhada interpretação de Bennett é preciso examinar se os argumentos dirigidos
diretamente apenas contra a teleologia divina atingem ou não indiretamente a
explicação teleológica do comportamento humano.

3.2. Exame do alcance dos argumentos do apêndice contra a teleologia divina

3.2.1. Teleologia e livre arbítrio

Na passagem completa referente ao início da refutação do prejuízo finalis-


ta, Espinosa afirma o seguinte:
Para mostrar agora que a Natureza não tem qualquer fim que lhe seja prefixado e
que todas as causas finais nada mais são que ficções do espírito humano, não é ne-
cessário grande esforço. Com efeito, estou convencido de que isto está suficiente-
mente estabelecido, tanto pelos fundamentos e causas de onde este prejuízo tira sua
origem, como mostrei, como pela EIpr.16 e pelos corolários da EIpr.32, e, além
disso, pelas demonstrações em que fiz ver que tudo o que existe provém de certa necessi-
dade eterna e da suma perfeição da Natureza. (GII/80, grifo nosso)

Com base nesta passagem, Bennett sustenta que Espinosa defende equivo-
cadamente uma tese geral acerca da incompatibilidade entre determinismo e teleo-
logia. O argumento que Bennet atribui a Espinosa é assim resumido por Curley15 :
(i) Todas as coisas ocorrem por “uma certa necessidade eterna da Natureza”.
(ii) Coisas explicáveis por causas finais não podem ocorrer necessariamente.
(iii) Com efeito, explicar em termos de causas finais é explicar em termos de
volições incausadas do agente.
(iv) Ora, volições incausadas são contingentes.
(v) Logo, nada é explicável por causas finais.

15 Cf. Curley (1990, p. 42).

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Curley concorda com Bennett que a ligação entre teleologia e liberdade de


escolha é um erro, mas julga que Espinosa de forma alguma comete este erro.
Segundo ele, Espinosa recusa as premissas (ii) e (iii), ou seja, embora Espinosa
aceite que explicações teleológicas se façam em termos de apetites, volições ou
desejos, ele recusa que estas diversas expressões mentais do conatus sejam incau-
sadas. 16 De fato, esta recusa se manifesta com toda clareza na formulação teleo-
lógico-cognitiva presente na EIVpr.19, segundo a qual, como vimos no item (2)
acima, cada indivíduo é necessariamente determinado pelas leis da sua natureza a
desejar o que julga ser bom ou a ter aversão pelo que julga ser mau. Assim, Curley
defende que o argumento de Espinosa deve ser entendido como dirigido exclusi-
vamente contra aqueles que, em conformidade com o prejuízo denunciado, atri-
buem antropomorficamente entendimento e vontade a Deus, e pensam a criação
do mundo seja como uma escolha arbitrária seja como o resultado de uma delibe-
ração na qual Deus escolhe livremente a melhor opção apresentada pelo seu inte-
lecto. 17 Como ele nota, todas as proposições que Espinosa cita como tendo refu-
tado este prejuízo têm a ver especificamente com a explicação da natureza da
ação divina e pretendem demonstrar que o entendimento e a vontade não são

16 Idem, p. 43. No escólio da EIIIpr.9 Espinosa afirma que o conatus recebe diferentes

nomes quando é referido apenas à alma ou `a alma e ao corpo simultaneamente. No pri-


meiro caso, chama-se vontade. No segundo, chama-se apetite. Este, por sua vez, quando
é acompanhado de consciência, chama-se desejo. Assim, apetite, desejo e vontade são
manifestações do conatus que envolvem um aspecto mental.
17 Na EIpr.33esc.2, Espinosa, partindo da tese sustentada por seus adversários de que

o intelecto e a vontade absoluta seriam constitutivos da essência de Deus, formula um


argumento que demonstra, contra eles, que a consideração atenta da perfeição da natureza
divina acarreta necessariamente a imutabilidade de seus decretos, de modo que sua vonta-
de jamais poderia ter sido outra. Assim, ele demonstra que aqueles que supõem uma liga-
ção necessária entre teleologia e livre arbítrio e que sustentam que Deus escolhe livremen-
te os fins em vista dos quais age são obrigados a concluir que Deus não age em vista de
fins. Por sua vez, os argumentos fundados nas proposições e corolários citados por Espi-
nosa na passagem acima (bem como na EIpr.31) demonstram diretamente não apenas
que a vontade não é livre, mas, sobretudo, que nem ela nem o intelecto constituem a es-
sência de Deus, de forma que o modus operandi da ação divina não pode ser caracterizado
por estas faculdades.

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atributos constitutivos da essência de Deus, isto é, da Natureza Naturante, mas sim


modos que dela se seguem e que pertencem à Natureza Naturada. 18 Ora, estas
proposições permitem estabelecer que se a necessidade da natureza divina exclui
a ação teleológica isto não ocorre em virtude de uma incompatibilidade geral en-
tre determinismo e teleologia, mas antes em virtude das características específicas
da natureza divina. Com efeito, tal natureza é uma potência causal perfeita des-
provida de intelecto e vontade. Não tendo intelecto, ela exclui que sua ação possa
ser determinada pela representação presente de seus possíveis efeitos futuros.
Não tendo vontade, ela exclui que sua ação possa depender de qualquer adesão
volitiva (seja ela contingente ou necessária) dada a conteúdos representativos.
Sendo perfeita, como veremos a seguir, ela não pode ter desejos. Assim, na medi-
da em que explicações teleológicas se fazem em termos de representações, voli-
ções e desejos, elas não podem se aplicar à ação divina. 19
Assim compreendido, o argumento de Espinosa no apêndice não visa, e
tampouco atinge indiretamente, a legitimidade de explicações teleológicas da ação
humana, pois, diferentemente da natureza divina, a natureza da mente humana é
constituída por idéias e volições (ou, mais precisamente, por idéias-volições 20 )

18 Cf. EIpr.16, EIpr.32cor.1 e cor.2.


19 Ao defenderem uma leitura do conatus como um tipo de finalidade interna, os intér-
pretes do grupo (2.2) recusam a tese de que toda explicação teleológica se faça em termos
de representações, volições e desejos. Afinal, a tese do conatus se aplica a todas as coisas
singulares (cf. EIIIpr.6dem.), sejam elas materiais ou mentais, simples ou complexas. Em-
bora a minha intenção aqui não seja a de examinar os argumentos deste grupo, cabe sa-
lientar que também para eles é a especificidade da natureza divina que exclui a explicação
teleológica de sua ação. Com efeito, Deus é uma substância absolutamente infinita e não
uma coisa singular (cf. EIIdef.7). Sendo assim, o exercício de sua potência infinita não
encontra obstáculos e não pode ser propriamente caracterizado como um esforço para
perseverar no ser. A diferença entre o exercício desimpedido da potência infinita e o es-
forço dos seres finitos é um elemento importante para tentar sustentar de forma consis-
tente que a inexistência de fins da Natureza Naturante não acarreta a inexistência de fins na
Natureza Naturada.
20 Cf. EIIpr.49, onde Espinosa demonstra que “não existe nenhuma volição, isto é,

nenhuma afirmação e nenhuma negação, além da que envolve a idéia, enquanto é uma
idéia”.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
176 Marcos André Gleizer

que desempenham uma função causal na determinação adequada ou inadequada


do desejo e, conseqüentemente, da conduta humana.21

3.2.2. Teleologia e carência

Um segundo argumento apresentado na refutação do finalismo insiste na


demonstração da existência de uma incompatibilidade entre a perfeição de Deus e
a atribuição de finalidade a ele, pois “se Deus age em vista de um fim, é porque
necessariamente deseja algo de que carece”. Segundo esta passagem, Espinosa
considera que: (i) um agente só age em vista de fins se ele deseja estes fins; (ii) um
agente só deseja aquilo de que carece. O comportamento teleológico supõe, por-
tanto, alguma carência ou privação por parte de um ser dotado de desejos. Após
refutar a aplicabilidade à criação divina da distinção escolástica entre “fim de indi-
gência” (pelo qual o agente age para procurar o seu bem e suprir alguma carência) e
“fim de assimilação” (pelo qual o agente age para fazer o bem às coisas que estão
fora dele), Espinosa conclui que não se pode atribuir causas finais à ação de Deus
sem atribuir-lhe carências e, portanto, sem destruir a perfeição de sua natureza.
Também aqui a discussão de Espinosa se situa claramente no nível da na-
tureza divina e seu argumento não visa e não se opõe à atribuição de comporta-
mentos teleológicos aos seres humanos. Afinal, os homens são seres dotados de
desejos e, sendo finitos, parece óbvio que estão sujeitos a múltiplas carências.
Assim, como lembra Martin Lin, se os homens desejam atingir uma natureza
humana mais perfeita, como afirma Espinosa no preâmbulo do T.R.E. e no pre-
fácio da EIV, é porque estão desprovidos da perfeição que almejam. 22
No entanto, apesar de sua aparente obviedade cabe ressaltar que a tese de
que um agente só deseja aquilo de que carece não é totalmente isenta de dificul-
dades no sistema espinosista. Por um lado, não é clara sua compatibilidade com a

21 Cf. EIIIpr.1, EIIIpr.3 e EIIIpr.9. Cabe ressaltar que esta conclusão está de acordo

com a posição adotada por Espinosa no T.R.E. Como indiquei no item (1), Espinosa não
assinala nesta obra nenhuma incompatibilidade entre determinismo causal e teleologia
humana.
22 Cf. Lin, p. 7.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
O Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa 177

concepção do desejo como pura positividade que resulta da teoria do conatus co-
mo expressão certa e determinada da potência divina. Por outro lado, não é clara
sua compatibilidade com a concepção necessitarista radical defendida por Espi-
nosa. Com efeito, segundo esta concepção, cada coisa finita, a cada momento, é
tudo o que pode ser em virtude de sua essência e do resultado de sua interação
causal com as outras coisas finitas. Como diz Deleuze, cada modo finito existente
é sempre tão perfeito quanto pode em função das afecções que pertencem à sua
essência e que preenchem de forma necessária, integral e contínua seu poder de
ser afetado. 23 Como, então, considerar legitimamente que lhe falta algo?
Segundo Espinosa, a atribuição de qualquer falta, carência ou privação a
uma coisa é fruto de uma comparação dela com outras coisas do mesmo gênero
ou com algum de seus estados anteriores. Há privação quando uma propriedade
que acreditamos pertencer à natureza de um objeto é negada deste objeto. Mas
esta negação é baseada numa crença oriunda de uma comparação imaginativa.
Assim compreendida, a privação é um mero ser de razão, um modo de pensar
imaginativo que ignora a ordem das causas e não possui nenhum alcance onto-
lógico. 24

23 Cf. Deleuze (1968, cap. XIV, p. 205). Neste capítulo Deleuze distingue e busca con-

ciliar duas inspirações fundamentais presentes no pensamento de Espinosa. Segundo a


inspiração física, cada modo é sempre tão perfeito quanto pode em virtude das afecções
que preenchem seu poder de ser afetado. Segundo a inspiração ética, “enquanto este po-
der é preenchido por afecções passivas, ele é reduzido ao seu mínimo; nós permanecemos
então imperfeitos e impotentes, somos de alguma forma separados de nossa essência ou
de nosso grau de potência, separados do que podemos” (p. 205). A dificuldade que salien-
tamos consiste em entender o sentido exato desta separação e sua conciliação com a ins-
piração física.
24 Essa compreensão da noção de privação, amplamente desenvolvida na carta XXI a

Blyenbergh, reaparece no prefácio da Ética IV (cf. GII/207/18 a GII/208/7). Cabe ob-


servar que não há nada no pensamento de Espinosa que nos impeça de considerar que a
atribuição de uma privação também possa ser fruto de uma comparação com algum esta-
do de coisas imaginado como realizável no futuro. Assim, podemos imaginar que estamos
privados atualmente de uma natureza humana mais potente que acreditamos poder alcan-
çar no futuro, e esta crença faz com que nos esforcemos por alcançar esta natureza en-
quanto não vemos nenhum obstáculo intransponível.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
178 Marcos André Gleizer

Sendo assim, parece necessário interpretar o argumento de Espinosa como


ad hominem. Neste caso, ele não endossaria a premissa segundo a qual um agente
só deseja aquilo de que carece, pois, segundo ele, não há ontologicamente ne-
nhuma falta ou carência. No entanto, é possível reformular esta premissa de mo-
do a construir um argumento compatível com o pensamento de Espinosa. Basta
incluir em sua formulação uma expressão que indique a origem imaginativa da
atribuição de carência. Esta premissa poderia então ser assim formulada: um a-
gente só deseja aquilo que ele crê carecer. Esta formulação não encontra obstácu-
los em sua aplicação aos seres humanos e acarreta as mesmas conseqüências ne-
fastas que a primeira formulação em sua aplicação a Deus, pois atribuir a Deus
crenças oriundas de comparações imaginativas é incompatível com a perfeição de
sua natureza.

3.2.3. Teleologia e inversão da ordem da Natureza

A terceira passagem crucial na refutação da doutrina finalista é a seguinte:

Esta concepção finalista subverte completamente a Natureza, porquanto o que na


realidade é causa considera-o como efeito, e inversamente; e, além disso, o que por
natureza é anterior fá-lo posterior, e, por fim, o que é mais elevado e mais perfeito
torna-o mais imperfeito. (GII/80)

Nesta passagem Espinosa afirma que a explicação teleológica inverte a or-


dem da Natureza, pois ela (a) troca a causa pelo efeito, (b) o anterior pelo poste-
rior, e (c) o mais perfeito pelo menos perfeito. Embora Espinosa considere (a) e
(b) como evidentes por si e apresente apenas um argumento para (c) 25 , é a consi-
deração de (a) e (b) que me parece fundamental para determinar se esta crítica da
explicação teleológica também atinge o comportamento humano.

25 Cabe ressaltar que também aqui o argumento refere-se explicitamente apenas à cau-

salidade divina. Com efeito, ele é baseado nas proposições 21, 22 e 23 da Ética I, isto é,
em proposições que se referem exclusivamente ao que resulta da natureza absoluta dos
atributos constitutivos da essência de Deus.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
O Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa 179

Com efeito, em certas explicações teleológicas uma estrutura, processo, es-


tado de coisas ou comportamento qualquer (digamos, x) é explicado em função
do que ele realiza, isto é, em função de alguma conseqüência sua. Neste caso, diz-
se que x ocorre porque x causa y. Logo, toma-se um efeito subseqüente para ex-
plicar uma causa antecedente, invertendo, como diz Espinosa, a ordem das rela-
ções causais e temporais. Ora, segundo Bennett a crítica de Espinosa a este mo-
delo explicativo visa tanto os casos do tipo: “cotovelos existem para mover o
braço”, como do tipo: “Pedro levantou o braço para desviar a pedra”. No entan-
to, os exemplos dados por Espinosa no apêndice se restringem a casos de fenô-
menos biológicos e inanimados, tais como “olhos para ver, dentes para mastigar,
vegetais e animais para alimentação, sol para iluminar, mar para o sustento dos
peixes” (GII/78). Portanto, cabe indagar se Espinosa considera que o argumento
da inversão também atinge qualquer tipo de explicação teleológica do comporta-
mento humano.
No meu entender, os intérpretes do grupo (2.1) estão certos ao defende-
rem uma resposta negativa a esta questão. Além das evidências apresentadas mais
acima, sua base textual mais importante é a seguinte passagem do prefácio da EIV:

A causa a que chamam final não é senão o próprio apetite humano, enquanto é
considerado como princípio ou causa primeira de uma coisa qualquer. Por exemplo,
quando dizemos que a habitação foi a causa final desta ou daquela casa não enten-
demos outra coisa senão isso: que o homem, por ter imaginado as vantagens da vi-
da doméstica, teve o apetite de edificar uma casa. É por isso que a habitação, en-
quanto é considerada como causa final, não é senão este apetite singular, que, na re-
alidade, é uma causa eficiente, a qual é considerada como primeira por os homens
ignorarem comumente a causa de seus apetites. (GII/207)

Nesta passagem, como ressalta Curley, Espinosa explica claramente a ação


humana “apelando para a antecipação mental que uma pessoa faz das conseqüên-
cias que ela espera da ação, o desejo destas conseqüências e o desejo resultante de
realizar a ação”. 26 Ou seja, a atribuição de crenças e desejos ao agente permite
escapar do argumento da inversão da ordem da Natureza, pois não se trata de

26 Cf. Curley (1990, p. 48).

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explicar a ação a partir de seus efeitos futuros, mas a partir de estados mentais
que, precedendo a ação, se referem intencionalmente aos seus possíveis efeitos
futuro. O fim, portanto, é um objeto intencional que modifica e determina inter-
namente o desejo. Retomando uma expressão proposta pelo próprio Bennett,
para Espinosa “o pensamento da causa final funciona como causa eficiente”. 27
Poder-se-ia objetar, no entanto, que na passagem acima Espinosa está
identificando a causa final com o apetite apenas enquanto este é tomado errada-
mente por uma causa primeira. Neste caso, a própria caracterização do apetite
como fim envolveria necessariamente a ignorância de suas causas eficientes e se-
ria, portanto, fruto de um conhecimento inadequado do apetite. Esta leitura é
proposta, entre outros, por J. Carriero:

Observe, para começar, que meu pensamento acerca de mim mesmo como tendo
uma causa final envolve um erro: eu penso em uma tendência motora, uma causa
eficiente, como uma causa primeira, quando ela não é uma causa primeira, mas
simplesmente um elemento em uma cadeia infinita de tendências motoras. Consi-
dero que Espinosa está indicando que se nós não ignorássemos as causas de nossos
apetites (ou mesmo, talvez, se nós não fossemos ignorantes do fato de que nossos
apetites são o tipo de coisas que eles são, com os tipos de causas que eles têm), nós
abandonaríamos a fala acerca de causas finais e nos ateríamos a apetites ou causas
eficientes. Assim, embora seja verdade que Espinosa diga que causas finais são ape-
tites, penso que devemos estar atentos para a insinuação de um erro teórico aqui. 28

Cf. Bennett (1984, §51.4, p. 217).


27

Cf. Carriero (2005, p. 141). Esta leitura também é defendida por Marilena Chaui em
28

(1993. Cf. p. 85 e p. 114, nota 13: “no livro IV, a ignorância quanto às causas da ação leva
à posição do apetite como causa final”) e (1990. Cf. p. 60: “visto que não existem causas
finais – pois a finalidade é resultado imaginário do desconhecimento da verdadeira causa-
lidade –, somos causas eficientes”). Carriero considera que a tentativa de interpretar a
identificação entre causa final e apetite estabelecida nesta passagem como uma forma de
evitar uma inversão da ordem causal é uma motivação vazia (cf. p. 141, nota 35), pois,
segundo ele, a doutrina tomista da causa final, com a qual ele contrasta sistematicamente o
pensamento de Espinosa em seu artigo, não incide em tal inversão. Ora, é um fato que
Espinosa considera (com ou sem razão) que a doutrina finalista inverte a ordem da Natu-
reza. Logo, uma explicação de como seu sistema procura evitar isto não me parece de
forma alguma vazia, se o que pretendemos é entender seu pensamento.

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O Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa 181

Esta leitura, no meu entender, não encontra respaldo na maneira como


Espinosa relaciona apetite e fim tanto nas passagens do apêndice que examina-
mos no item 3.1 quanto nas passagens iniciais do prefácio. Como vimos, nestas
passagens ele jamais qualifica a consciência que os homens têm de agir em vista
de fins como ilusória. A ilusão consiste em crer que nós escolhemos livremente
os fins em vista dos quais agimos e na projeção antropomórfica desta falsa con-
cepção de nossa ação teleológica sobre Deus ou a Natureza. Ora, não há nenhu-
ma razão para pensar que o reconhecimento de que o apetite (e as representações
que ele envolve) não é o ponto de partida absoluto da ação, mas apenas um elo
determinado de uma cadeia causal, aboliria seu caráter teleológico. É por isso que
Espinosa se sente autorizado a apresentar logo no início da Ética IV uma defini-
ção explícita de fim (EIVdef.7) que o identifica ao apetite sem fazer nenhuma
referência à ignorância das causas: “por fim em vista do qual fazemos alguma
coisa, entendo o apetite”. Se Espinosa associasse de forma indissolúvel a mera
caracterização do apetite como fim à crença no livre arbítrio (apetite tomado co-
mo causa primeira), ele não poderia oferecer esta definição. 29 A interpretação
mais natural desta associação é tomá-la como uma referência à origem da crença
ilusória na teleologia cósmica ou divina detectada no apêndice, referência à qual
Espinosa faz explicitamente menção no contexto desta passagem.
Uma interpretação semelhante a que adotamos também é proposta por
Matheron. Ele reconhece que a passagem do prefácio autoriza uma concepção
teleológica da ação humana que, quando devidamente dissociada das crenças
imaginativas que a ela se acrescentam, escapa do argumento da inversão e é per-

29 Em seu artigo de 1993, Marilena Chauí propõe uma interpretação da distribuição

geral das definições na Ética IV em conformidade com a qual a definição de apetite como
fim (def.7), assim como as definições de contingente (def.3) e de possível (def.4), deveria
ser tomada como expressando a perspectiva cognitiva da imaginação (cf. p. 100). Embora
engenhosa, sua interpretação me parece problemática. Com efeito, enquanto as definições
3 e 4 fazem clara referência ao nosso desconhecimento das causas – o que permite situá-
las inequivocamente no plano imaginativo –, esta referência não aparece na definição 7.
Além disso, a presença do termo “intelligo” na formulação desta definição parece indicar
que ela é fruto de uma intelecção.

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feitamente compatível com o determinismo universal. 30 Em sua magistral re-


construção da análise espinosista da gênese da doutrina finalista, ele mostra que
esta doutrina consiste na articulação das seguintes crenças imaginativas 31 : a crença
na livre escolha dos fins; a crença na providência divina e, conseqüentemente, na
consideração da natureza inteira como um imenso sistema de meios a serviço de
nossos fins; a crença nos fins como objetos exteriores desejáveis em si, exercendo
“de fora” uma atração sobre o agente (crença no “apelo dos valores”, considera-
dos como propriedades objetivas das próprias coisas). Ora, todas estas crenças
podem ser eliminadas pela razão sem que a explicação da ação humana como
causada pelo desejo internamente determinado pela representação presente de
seus possíveis efeitos futuros seja eliminada. 32 Assim compreendida, a explicação
teleológica é integrada ao dinamismo causal do desejo, definido como causa efi-
ciente pela teoria do conatus. Desta forma, causa eficiente e conduta finalizada, de-

30 Cf. (1969, p. 105). Matheron não usa aqui a expressão “concepção teleológica da

ação humana”, mas ela é claramente autorizada pelo seu reconhecimento de que Espinosa
afirma que nós agimos em vista fins e não que nos parece que agimos em vista de fins (cf.
p. 105, nota 67), assim como pela seguinte passagem: “A habitação me aparece como a
causa final de minha casa, enquanto que, de fato, sou eu-enquanto-desejoso-de-habitar
que sou sua causa eficiente. A diferença, para dizer a verdade, pode parecer insignificante,
pois é certo que sou eu que construo minha casa em vista de habitá-la: a causa eficiente,
aqui, é um agente consciente que imagina de antemão o resultado de seu empreendimen-
to; se eu batizo de ‘fim’ a imagem antecipada deste resultado, o mal não parece muito
grande, e se não o faço, não terei mais avançado, nesta medida, no conhecimento do de-
terminismo que me rege. E, no entanto, não se trata apenas de uma questão de palavras.
Não dá no mesmo integrar o fim à causa eficiente ou separá-lo dela para fazê-lo agir sobre
ela do exterior: no primeiro caso, nós reconhecemos o princípio de nosso pertencimento
à necessidade universal, mesmo se esta permanece para nós lacunar; no segundo, nós
fragmentamos a cadeia e, preenchendo ilusoriamente a lacuna, nós invertemos as coisas”.
31 Idem, p. 102-112.
32 Que a eliminação destas crenças imaginativas pela razão não abole o caráter teleoló-

gico de nossa ação é algo que Matheron reconhece, pois ele afirma, ainda que com certa
qualificação, que o desejo racional de realizar tudo o que decorre de nosso conceito abs-
trato de natureza humana “toma paradoxalmente um aspecto teleológico” (1969, p. 225).

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O Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa 183

terminismo e teleologia, são perfeitamente compatíveis e legitimamente aplicáveis


na explicação do comportamento humano.

4. Exame da compatibilidade entre teleologia mental e certos aspectos do


sistema
A constatação de que Espinosa aceita explicações teleológico-mentais da
conduta humana obriga-nos a examinar se esta aceitação é compatível com certas
teses centrais de seu sistema, ou ainda com teses que supostamente seriam conse-
qüências necessárias de algumas de suas teses centrais. Assim, examinaremos bre-
vemente três tópicos que nos parecem de particular importância.

4.1. Compatibilidade com a ausência de interação causal alma-corpo

Cabe examinar inicialmente se esta aceitação é compatível com a negação


de qualquer interação causal entre a alma e o corpo, demonstrada na EIIIpr.2, e
com sua substituição pela tese do paralelismo psicofísico, segundo a qual a alma e
o corpo são duas expressões diferentes de uma mesma realidade. 33 Com efeito,
poder-se-ia crer que quando se oferece uma explicação teleológico-mental do tipo
“Pedro levantou a mão com o intuito de desviar a pedra”, esta explicação supõe
que a idéia que representa o desviar da pedra como algo útil, suscitando o desejo
deste efeito, em conjunção com a idéia que representa o levantar da mão como
um meio para produzi-lo, causariam o evento corporal que consiste em levantar a
mão. Neste caso, estados mentais determinariam causalmente o movimento cor-
poral, violando a EIIIpr.2 e o paralelismo. No entanto, a suposição desta intera-
ção não é de forma alguma necessária. Todos os intérpretes reconhecem que é
perfeitamente possível redescrever a explicação da ação numa linguagem adequada

33 Segundo a EIIIpr.2 “nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma de-

terminar o corpo ao movimento ou ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe
outra coisa)”. O escólio desta proposição retoma a tese do paralelismo, segundo a qual “a
ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas” (EIIpr.7), e
sustenta que “a ordem das ações e das paixões do nosso corpo é, de sua natureza, simul-
tânea à ordem das ações e das paixões da alma”.

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ao paralelismo. Basta para tal descrever o evento corporal como o objeto de uma
idéia, de modo que a idéia que representa o desviar da pedra como fim almejado, Mantém o
em conjunção com a idéia que representa o levantar da mão como meio, causam a Paralelismo!
idéia cujo objeto é o evento corporal que consiste em levantar a mão, enquanto os
correlatos físicos (estados cerebrais e movimentos corporais) destas idéias mantêm
entre si no atributo extensão as relações causais físicas correspondentes.

4.2. O problema da impotência causal do conteúdo representativo das idéias

Apesar de concordar que a redescrição acima proposta se conforma perfei-


tamente às exigências do paralelismo, Bennett propõe um argumento que pretende
colocar em questão a eficácia causal dos conteúdos representativos das idéias e,
portanto, sua função na estrutura causal comum ao pensamento e à extensão. Este
argumento, discutido intensamente na literatura norte-americana atual34 , pretende
mostrar que Espinosa está comprometido com certas teses metafísicas, físicas e
epistemológicas cuja conjunção acarreta a impotência causal do conteúdo represen-
tativo das idéias e, conseqüentemente, a impossibilidade de explicações teleológico-
mentais da conduta humana. O argumento geral pode ser assim reconstruído:
(1) Todos os poderes causais dos corpos dependem de propriedades in-
trínsecas, tais como figura, grandeza e movimento [baseado no esbo-
ço de física mecanicista que acompanha a EIIpr.13esc., e na corres-
pondência com Oldenburg].
(2) Há um paralelismo entre os corpos, suas propriedades e suas relações,
e as idéias, suas propriedades e suas relações [baseado na EIIpr.7 e
seu escólio].
(3) Todos os poderes causais das idéias dependem de propriedades in-
trínsecas [inferido de 1 e 2].

34 Além dos artigos citados na nota 4 cabe acrescentar o importante artigo de della

Rocca (2003, p. 200-231).

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O Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa 185

(4) Todos os conteúdos representativos das idéias são propriedades rela-


cionais, pois dependem das circunstâncias causais nas quais as idéias
foram adquiridas pelos indivíduos que as possuem [baseado na EII-
pr.16, com seus dois corolários, e na EIIpr.40esc.1].
(5) Todas as propriedades relacionais derivadas de interações causais são
propriedades extrínsecas.
(6) Os poderes causais das idéias não dependem de seus conteúdos re-
presentativos [inferido de 3, 4 e 5].
(7) Toda explicação teleológico-mental depende da eficácia causal dos
conteúdos representativos das idéias.
(8) Logo, não há teleologia mental [inferido de 6 e 7]. 35
No meu entender, este argumento repousa sobre interpretações equivo-
cadas de teses fundamentais de Espinosa expressas nas premissas (4) e (5). Veja-
mos em que consistem estes equívocos.
Cabe observar inicialmente que a premissa (4) não se aplica às idéias
adequadas constitutivas do segundo e do terceiro gêneros de conhecimento. Com
efeito, as idéias adequadas da razão (noções comuns) representam propriedades
comuns igualmente presentes na parte e no todo, e, portanto, igualmente instan-
ciadas nos corpos exteriores que afetam o corpo humano, no próprio corpo hu-
mano e em suas afecções. Por isso, estas idéias possuem conteúdos que não va-

35 Esta reconstrução é baseada nas análises do argumento de Bennett propostas por

Garrett e Lin. Em sua reconstrução do argumento, Garrett (1999, p. 319) formula a pre-
missa (7) de maneira universal: “toda teleologia exige que algumas propriedades causal-
mente eficazes sejam mapeadas em propriedades representativas”. Desta formulação,
segue-se uma conclusão universal, a saber: “não há teleologia”. A refutação da formulação
universal da premissa (7) depende de uma interpretação da doutrina do conatus como um
tipo de finalidade natural interna que pode operar independentemente de representações.
A exposição e análise desta interpretação ultrapassam o exame das evidências a favor da
interpretação do grupo (2.1), ao qual limitamos este trabalho.

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186 Marcos André Gleizer

riam em função das suas circunstâncias causais de obtenção. 36 A mesma invaria-


bilidade vale para as idéias adequadas constitutivas da ciência intuitiva, pois “o
que dá o conhecimento da essência eterna e infinita de Deus”, a saber, o atributo,
é uma forma de ser igualmente presente em todos os seus efeitos (modos), de
maneira que seu conceito está igualmente envolvido nas idéias de todos os seus
modos. 37 Assim, a formulação da premissa (4) deveria restringir-se exclusivamen-
te ao âmbito das idéias inadequadas da imaginação.
Bennett acaba por aceitar esta objeção e reconhece a limitação de seu ar-
gumento ao âmbito das idéias imaginativas. 38 Porém, ele considera que mesmo
esta restrição é suficiente para excluir qualquer função causal dos conteúdos re-
presentativos das idéias envolvidas nas explicações teleológicas da conduta hu-
mana, pois as idéias imaginativas desempenham uma função ineliminável na mo-
tivação desta conduta, mesmo quando ela é orientada pela razão. Com efeito, é da
natureza das idéias adequadas da razão representar seus objetos não como con-
tingentes, possíveis e temporais, mas como necessários e eternos. 39 Sendo assim,
elas só podem orientar condutas teleológicas se a obtenção dos estados de coisas
que elas representam como desejáveis for representada como um evento futuro
possível. Ora, isso supõe sua articulação com idéias imaginativas, pois só estas
representam seus objetos sob as perspectivas da contingência, da possibilidade e
da temporalidade.
Esta articulação entre razão e imaginação manifesta-se, por exemplo, no
esforço para atingir uma natureza humana mais firme mencionado no §13 do
T.R.E. e retomado posteriormente no prefácio da Ética IV: “Como, porém, a
fraqueza humana não alcança aquela ordem [eterna] pelo pensamento, e, entre-
tanto, o homem concebe [concipiat] alguma natureza humana muito mais firme
que a sua, vendo, ao mesmo tempo, que nada obsta a que adquira tal natureza, é
incitado a procurar os meios que o conduzam a tal perfeição” (GII/8). Nesta

36 Cf. EIIpr.38dem.
37 Cf. EIIpr.46dem.
38 Cf. Bennett (1984, p. 219) e, mais explicitamente, Bennett (2001, p. 212-213).
39 Cf. EIIpr.44 com os corolários I e II.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
O Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa 187

passagem, Espinosa considera a natureza humana mais firme como objeto de


uma apreensão conceitual, logo, de um conhecimento intelectual. No entanto, é
apenas na medida em que não vemos nada que nos impede de adquiri-la que so-
mos incitados a buscá-la. Ou seja, é apenas na medida em que ignoramos o nexo
infinito das causas finitas que determina a sucessão dos acontecimentos que po-
demos imaginar a obtenção desta natureza superior como um evento futuro pos-
sível e que somos necessariamente incitados por esta imaginação a tentar alcançá-
la. Afinal, ninguém se esforçaria para alcançar algo que soubesse com certeza ser
inalcançável. Ora, mesmo que possamos saber de forma abstrata e universal que
tudo o que ocorre é determinado por leis naturais e por um nexo infinito de cau-
sas finitas, o caráter finito de nosso intelecto nos impede de conhecermos concre-
tamente as infinitas determinações particulares deste nexo e, portanto, torna im-
possível que saibamos de antemão que grau de potência intelectual estamos de-
terminados a alcançar. Por isso, somos capazes de imaginar como possível a su-
peração de nossas atuais fraquezas e a obtenção futura de uma existência mais
potente, virtuosa, racional e livre, isto é, mais conforme ao modelo de natureza
humana que a razão concebe. 40
Assim, dada a importância da imaginação tanto na motivação de nossa
conduta ordinária quanto como auxiliar indispensável na representação do ideal
de vida racional como um estado de coisas futuro alcançável, é preciso examinar
o argumento utilizado por Bennett em sua aplicação das premissas (4) e (5) às
idéias imaginativas.
O núcleo do argumento de Bennett se encontra na EIIpr.16 e seus dois
corolários, pois é aí que Espinosa estabelece o fundamento de sua explicação da
origem do conhecimento imaginativo. 41 Segundo Espinosa, imaginar é represen-

40 Cabe ressaltar que a articulação entre razão e imaginação não acarreta nenhuma

confusão entre suas respectivas funções cognitivas. Cabe à razão apreender as relações
necessárias existentes entre potência, virtude, racionalidade, liberdade e felicidade, en-
quanto à imaginação cabe representar como possível a realização futura de uma existência
em que estas ligações se concretizem em graus cada vez maiores.
41 EIIpr.16: “A idéia de qualquer modo pelo qual o corpo humano é afetado pelos

corpos exteriores deve envolver a natureza do corpo humano e, ao mesmo tempo, a natu-

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188 Marcos André Gleizer

tar os corpos exteriores como presentes a partir das idéias de suas imagens for-
madas no corpo humano. Estas imagens são afecções do corpo humano, efeitos
resultantes de sua interação causal com os corpos exteriores e dependentes tanto
da natureza dos corpos que nos afetam quanto da natureza e da situação atual do
nosso corpo, por exemplo, da natureza dos nossos órgãos sensoriais, de suas
idiossincrasias e de nossa posição espaço-temporal. Assim, nossas idéias imagina-
tivas dos objetos exteriores se referem a eles apenas de forma indireta, a partir da
maneira como eles nos afetam. Por exemplo, a idéia de Pedro que Paulo tem re-
presenta Pedro a partir da maneira como sua imagem se forma no corpo de Paulo
em função dos fatores acima mencionados. Espinosa conclui que a percepção
que Paulo tem de Pedro indica mais o estado atual do corpo de Paulo do que a
natureza do corpo de Pedro. Ou seja, as idéias imaginativas representam direta-
mente o estado do corpo humano e apenas indiretamente as causas exteriores
deste estado.
Bennett conclui daí que o conteúdo representativo indireto das idéias ima-
ginativas depende de propriedades relacionais que não têm repercussão significa-
tiva sobre a natureza intrínseca da idéia. Com efeito, diz ele:

Os poderes causais de qualquer item dependem apenas de sua natureza intrínseca,


não de quaisquer de suas propriedades relacionais – e assim, a fortiori, não de fatos
acerca de sua origem. Se uma idéia minha foi causada por uma interação com o
corpo de Paulo, este fato só pode fazer uma diferença para os poderes causais da
idéia se afetar sua natureza intrínseca. Assim, Espinosa precisa encarar esta questão:
Quando alguém tem uma idéia indireta de algum item, em que medida a natureza
intrínseca da idéia contém informação sobre sua causa? Espinosa deveria – e, penso,
iria – responder: “apenas em uma pequena medida”. Sua afirmação de que a idéia
que Pedro tem indiretamente do corpo de Paulo indica mais a condição do corpo
de Pedro que o de Paulo implica que há perda de informação. 42

reza do corpo exterior”. Cor.1: “a alma humana percebe a natureza de um grande número
de corpos ao mesmo tempo que a do seu próprio corpo”. Cor.2: “as idéias que nós temos
dos corpos exteriores indicam mais a constituição do nosso corpo do que a natureza dos
corpos exteriores”.
42 Bennett (2001, p. 211).

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Apesar de afirmar nesta passagem apenas que há “perda de informação” e


que a natureza intrínseca da idéia tem “somente em pequena medida” informação
sobre sua causa exterior, Bennett na realidade despreza esta “pequena medida” e
assimila a perda de informação à ausência completa de informação, dissociando
inteiramente a natureza intrínseca da idéia dos fatos acerca de sua causalidade.
Esta dissociação aparece com mais força na seguinte passagem:

O que Espinosa diz [na EIIpr.16] claramente implica que o que faz uma idéia mi-
nha contar como “do” seu corpo não é como a idéia é intrinsecamente, mas antes como
ela é causada. Isto claramente abre a possibilidade para que a sua idéia de x e a minha
sejam intrinsecamente muito diferentes, e que o mesmo estado mental intrínseco
possa ser em você uma idéia de x e em mim uma idéia de y. 43

Bennet não explicita o que ele entende exatamente por propriedade intrín-
seca e por propriedade relacional, mas está claro que o núcleo de seu argumento
contra a eficácia causal da representação indireta repousa sobre uma oposição
rígida entre ambas. 44 Este argumento pode ser assim apresentado 45 :
(i) idéias imaginativas representam indiretamente as causas externas de
seus objetos diretos.
(ii) idéias e seus correlatos extensos refletem mutuamente seus poderes
causais (corolário do paralelismo).

43 Bennett (1990, p. 54).


44 Toda a argumentação desenvolvida por Bennett repousa sobre esta oposição rígida
e não suficientemente explicitada entre “intrínseco” e “relacional”. Ele se refere a esta
última como uma propriedade que “depende das circunstâncias de obtenção” ou “de
fatos acerca de sua origem”. No entanto, ele não me parece distinguir com clareza entre
uma propriedade que consiste em uma relação (o que Espinosa chama de uma denomina-
ção extrínseca) e uma propriedade que consiste em um estado de uma coisa obtido a par-
tir de uma relação com algo exterior (o que Espinosa chama de afecção ou disposição ad-
quirida da essência. Cf. EIII definição do desejo, explicação). Embora a primeira proprieda-
de seja desprovida de eficácia causal, a segunda, sendo uma afecção da própria essência da
coisa, é um estado que determina e especifica sua atividade causal.
45 Esta apresentação se baseia na análise do argumento proposta por Manning (2002,

p. 195).

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190 Marcos André Gleizer
(iii) os poderes causais de um modo extenso são uma função bi-unívoca
das características intrínsecas (definidas em termos de movimento e
repouso) deste modo extenso (tese mecanicista).
(iv) as características intrínsecas de um modo extenso não refletem (envol-
vem) a natureza de suas causas externas.
(v) Logo, o conteúdo indireto das idéias imaginativas é desprovido de efi-
cácia causal.
Ora, a premissa (iv), que retoma neste argumento a premissa (5) do argu-
mento inicial, é falsa e repousa sobre o desconhecimento da concepção propria-
mente espinosista da causalidade e de como esta concepção funda a tese segundo
a qual a natureza de um efeito é determinada intrinsecamente pela natureza de
suas causas e reflete (mesmo que inadequadamente, quando se trata de efeitos
derivados do nexo infinito das causas) estas naturezas. Este desconhecimento
acarreta a negligência da noção de envolvimento contida no axioma IV da Ética I
e da função capital por ela exercida tanto na demonstração da EIIpr.16 quanto na
tese espinosista geral segundo a qual a natureza e a potência de um efeito envol-
vem a natureza e a potência de suas causas, sendo definidas a partir delas. 46 É a
compreensão da especificidade desta concepção que permite refutar a interpreta-
ção proposta por Bennett.
Sem poder examinar aqui detalhadamente esta concepção, cabe ressaltar
que ela se caracteriza por ser uma concepção analítica da causalidade. Com efeito,
ao identificar em seu sistema causa e ratio, Espinosa estabelece uma fusão da causa

46 Cf. EIpr.13ax.I (“todos os modos pelos quais um corpo qualquer é afetado por ou-

tro corpo dependem da natureza do corpo afetado e, ao mesmo tempo, da natureza do


corpo que afeta...”), EIIIpr.56dem., que especifica os tipos de paixões em função dos
tipos de objetos externos que são causas parciais destas paixões (“a natureza de cada pai-
xão deve necessariamente ser explicada de maneira que exprima a natureza do objeto pelo
qual somos afetados. A alegria que nasce de um objeto, por exemplo A, envolve a nature-
za de A, e a alegria que nasce do objeto B envolve a natureza de B; e por conseqüência,
esses dois afetos de alegria são diferentes por natureza, pois nascem de causas de natureza
diferente...”), e EIVpr.5, que estabelece que a essência e a potência de uma paixão são
determinados em função da essência e da potência de sua causa externa.

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eficiente e da causa formal da qual resulta que toda dependência causal é também
uma dependência conceitual. Assim, há entre a causa e o efeito uma relação de
inclusão conceitual interna. É esta inclusão que fará com que a natureza do efeito
seja determinada intrinsecamente a ser o que é pela natureza da causa, de uma
maneira que envolve a presença da natureza da causa no efeito. Esta relação de
envolvimento é uma das duas relações presentes na formulação do axioma IV da
Ética I: “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envol-
ve”. A análise dos diversos usos deste axioma na Ética permite mostrar que ele
contempla duas relações distintas: uma relação de dependência, que conota uma
relação entre idéias ou itens de conhecimento, e uma relação de envolvimento,
que conota uma relação de inclusão conceitual interna entre a natureza da causa e
a do efeito. Afirmar que “x envolve y” é afirmar que x é determinado a ser o que
é pela natureza de y, de uma maneira que reflete esta natureza, seja adequadamen-
te, quando y é a causa única de x, seja inadequadamente, quando y é causa parcial
de x. 47 Ora, a relação de envolvimento é o fundamento da relação de representa-
ção indireta, estabelecida na EIIpr.16 e retomada no seu primeiro corolário. Com
efeito, se a idéia de uma afecção do corpo humano representa sua causa externa é
porque a afecção enquanto tal envolve sua causa, isto é, contém a natureza da
causa tal como ela se manifesta no efeito. 48 Evidentemente, o conhecimento i-

47 Para duas análises minuciosas dos diversos usos da EIax.4 e da noção de envolvi-

mento, cf. Margaret Wilson (1999, cap. 10) e Gilles Deleuze (1968, segunda parte). Deleu-
ze analisa detalhadamente as complexas relações existentes entre as noções de “envolver”,
“explicar” e “exprimir”, salientando de forma particularmente importante a dissociação
entre os termos “envolver” e “exprimir” no contexto das idéias inadequadas da imagina-
ção (p. 132). Neste contexto, o termo “envolver” designa a mistura confusa das naturezas
do corpo exterior e do nosso corpo, presente na afecção de que temos uma idéia. Esta
confusão confere à idéia imaginativa uma função meramente indicativa e recognitiva, mas
não explicativa.
48 No enunciado da EIIpr.16 Espinosa afirma que “a idéia de qualquer modo pelo

qual o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores deve envolver a natureza do cor-
po humano e, ao mesmo tempo, a natureza do corpo exterior”. A demonstração remete a
EIax.4, mas se baseia na relação de envolvimento e não na relação de dependência entre
idéias. Com efeito, se esta última relação fosse aplicada, Espinosa deveria concluir que a

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192 Marcos André Gleizer

maginativo da causa a partir de sua presença no efeito é confuso e inadequado,


mas, como ressalta Richard Manning, “se o envolvimento da causa no efeito não
permitisse distinguir minimamente tal ou tal objeto como causa do efeito, o co-
nhecimento do efeito não poderia remeter a nenhuma causa exterior determina-
da”. 49
Vemos, assim, como o reconhecimento da especificidade da concepção
espinosista da causalidade e de sua função na noção de envolvimento presente na
EIax.4 permitem recusar a tese de Bennett segundo a qual a causa externa não
teria repercussão na determinação da natureza intrínseca e do poder causal do
efeito e, conseqüentemente, que sua idéia seria causalmente impotente.

4.3. O problema das relações entre desejo e juízo de valor


Cabe examinar por fim um problema referente à compatibilidade entre
explicações teleológico-mentais da conduta humana e a tese espinosista da ante-
rioridade do desejo sobre o juízo de valor. Segundo esta tese, enunciada no escó-
lio da EIIIpr.9, não é porque julgamos que x é bom que desejamos x, mas porque
desejamos x que julgamos que x é bom. 50 Esta tese é complementada pela

idéia da afecção do corpo humano depende da idéia da natureza do corpo humano e da


idéia da natureza do corpo exterior. No entanto, ele afirma apenas que a idéia desta afec-
ção envolve a natureza destes corpos. Ora, dada a heterogeneidade conceitual dos atribu-
tos e sua independência causal e explicativa, não faz sentido afirmar que a idéia de afec-
ção, que é um modo do atributo pensamento, envolve a natureza das causas da afecção
que, sendo corpos, são modos do atributo extensão. O que Espinosa está afirmando,
portanto, é que a afecção envolve a natureza de suas causas e que a idéia desta afecção
representa este efeito enquanto envolvendo suas causas. Não se trata de uma relação entre
as idéias do efeito e de suas causas, mas de uma relação de envolvimento entre o efeito e
suas causas representada na idéia do efeito. A idéia da afecção é a idéia de um efeito que,
enquanto tal, envolve a natureza de suas causas.
49 Manning (2002), p. 197.
50 “É, portanto, evidente, em virtude de todas estas coisas, que não nos esforçamos

por fazer alguma coisa, que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer coi-
sa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque
tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e a desejamos.” (GII/148)

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EIVpr.8, que sustenta que os juízos de valor se reduzem à consciência dos afetos
alegres ou tristes oriundos das variações positivas ou negativas de nossa potência de
agir, isto é, de nosso desejo.51 Assim, o desejo é o fundamento de nossos juízos de
valor. Ora, esta tese suscita as seguintes dificuldades. Em primeiro lugar, não é ime-
diatamente clara sua compatibilidade com o axioma III da Ética II, em que Espino-
sa afirma explicitamente a precedência da idéia (logo, segundo sua epistemologia,
do juízo) em relação aos modos de pensar afetivos (logo, em relação ao desejo).52
Segundo este axioma, é a presença do juízo que explica a intencionalidade dos mo-
dos de pensar afetivos. Ora, se é o juízo que fixa o conteúdo intencional do desejo
e que explica seu investimento sobre objetos particulares, como explicar a anterio-
ridade do desejo sobre o juízo de valor?53 Em segundo lugar, como tornar esta tese
compatível com as várias passagens em que Espinosa se refere explicitamente aos
desejos que nascem do conhecimento (logo, dos juízos) acerca do bem e do mal54 ?
Estes desejos, originados pelos juízos de valor, certamente não podem precedê-los.

51 Cf. EIVpr.8: “o conhecimento do bem e do mal não é outra coisa senão o afeto de

alegria ou tristeza, na medida em que temos consciência dele”.


52 O axioma afirma que “os modos de pensar como o amor, o desejo ou qualquer ou-

tro afeto da alma, qualquer que seja o nome pelo qual é designado, não podem existir
num indivíduo senão enquanto se verifica nesse mesmo indivíduo uma idéia da coisa
amada, desejada, etc. Mas uma idéia pode existir sem que exista qualquer outro modo de
pensar”. Há nessa tese uma clara anterioridade lógica e ontológica da idéia em relação aos
modos de pensar afetivos. Como toda idéia, segundo a EIIPr.49, envolve uma afirmação
ou uma negação, isto é, envolve um juízo, a tese estabelece uma relação de anterioridade
lógica e ontológica entre juízos e modos de pensar afetivos.
53 Evidentemente, nem todo juízo é valorativo. Assim, poder-se-ia tentar evitar esta

dificuldade sustentando que os juízos que representam os objetos do desejo são apenas
cognitivos, isto é, representam seus objetos sem qualificá-los como úteis ou prejudiciais.
Seria apenas após o investimento do desejo sobre eles que surgiriam os juízos de valor.
No entanto, esta leitura não permite explicar porque o desejo investe sobre estes objetos e
não dá conta da segunda dificuldade que mencionamos a seguir no texto.
54 Cf. EIVpr.15, EIVpr.16 e EIVpr.17. A anterioridade do juízo de valor expressa nes-

tas proposições é também claramente enunciada na EIVpr.19 que citamos no item (2) do
artigo como exemplo de esquema explicativo teleológico-mental da conduta humana:

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
194 Marcos André Gleizer

Trata-se, no entanto, de um problema aparente. Para resolvê-lo e evitar a


afirmação de Bennett de que Espinosa seria inconsistente em sua teoria do dese-
jo 55 (teoria esta que fornece a base de toda a teoria da afetividade e, conseqüente-
mente, da ética nela fundada), basta distinguir entre o desejo tomado absoluta-
mente, isto é, tomado como o esforço originário de autopreservação que consti-
tui a nossa essência, e os múltiplos desejos particulares que dele nascem em fun-
ção das afecções que lhe ocorrem nas diversas circunstâncias relativas à sua atua-
lização. O desejo primordial é o esforço para perseverar no ser, definido inde-
pendentemente de suas manifestações particulares como “a própria essência do
homem, de cuja natureza seguem necessariamente os atos que servem à sua con-
servação” (EIIIpr.9esc./GII/147). Para dar conta de suas particularizações e ex-
plicar a causa da consciência que acompanha os desejos, Espinosa complementa
esta definição afirmando que “o desejo é a essência do homem, enquanto ela é
determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada” (EIII-
def.af.1/GII/190). A expressão “afecção qualquer” introduz a referência às con-
dições relativas à atualização concreta do desejo no mundo, condições estas que
dão conta da projeção do desejo primordial que nos constitui sobre os diversos
objetos particulares, originando, assim, os desejos derivados. Com efeito, a toda
afecção, seja ela inata ou adquirida 56 , corresponde necessariamente na alma uma

“cada um deseja ou tem aversão necessariamente, pelas leis de sua natureza, àquilo que
julga ser bom ou mau”.
55 Bennett acredita que, apesar das inconsistências de Espinosa, sua interpretação da

impotência causal do conteúdo representativo das idéias permite explicar satisfatoriamen-


te a tese da antecedência do desejo sobre o juízo de valor, entendida não apenas como
uma tese acerca da natureza destes juízos, isto é, como a tese de que eles seriam expressi-
vos e não descritivos, mas também como uma tese acerca da natureza do desejo, isto é,
como a tese de que as características intrínsecas do desejo seriam as únicas causalmente
determinantes, enquanto suas características representacionais seriam meramente epife-
nomenais. Esta posição, no entanto, além de não ser compatível com o axioma III da
Ética II e com as proposições a que nos referimos na nota anterior, depende essencial-
mente da validade do argumento que procuramos refutar no item 4.2.
56 Cf. EIIIdef.af.1: “por afecção da essência do homem entendemos qualquer estado

desta essência, quer inato [NS: ou adventício], quer se conceba apenas pelo atributo do

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O Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa 195

idéia desta afecção, e toda idéia, por sua vez, é acompanhada por uma idéia da
idéia, pela qual somos dela conscientes. Se a afecção faz variar positiva ou negati-
vamente a potência de agir do corpo, isto é, se ela favorece ou entrava nosso es-
forço primordial de autopreservação, sua idéia não apenas indicará o estado atual
do corpo, mas afirmará também sua maior ou menor potência de agir, sendo, por
isso, dotada de uma carga afetiva alegre ou triste. 57 Por outro lado, como a idéia
de afecção não apenas indica o estado atual do corpo, mas também representa o
corpo exterior que nos afeta, ela projetará sobre ele a carga afetiva de que somos
conscientes, dando origem aos afetos de amor ou ódio, aos juízos de valor que os
acompanham e, conseqüentemente, aos desejos ou aversões particulares deles
originados. Estes desejos derivados são, portanto, modificações do desejo primi-
tivo, decorrentes das afecções da essência.
Assim, o desejo primordial é o fundamento último de todos os nossos juí-
zos de valor, pois estes dependem da consciência dos afetos alegres ou tristes que
o fazem variar positiva ou negativamente. Porém, estas variações afetivas, e os
juízos de valor a elas vinculados, são dotados também de uma eficácia causal e
determinam, por sua vez, os desejos particulares derivados. Não há, aqui, ne-
nhuma inconsistência por parte de Espinosa. 58

5. Conclusão
Como afirmei no início deste trabalho, minha intenção não foi a de anali-
sar exaustivamente todos os argumentos e passagens a favor da interpretação do
grupo (2.1), mas apenas apresentar um primeiro exame de algumas das principais
evidências a favor desta interpretação. Acredito que este exame preliminar tenha

pensamento ou apenas pelo atributo da extensão, quer, enfim, se refira ao mesmo tempo
a ambos” (GII/190). Às afecções inatas correspondem, no pensamento, as idéias adequa-
das, e às afecções adventícias, as idéias inadequadas.
57 Cf. a definição geral dos afetos com a qual Espinosa conclui a Ética III.
58 A distinção aqui proposta entre o desejo primitivo e os desejos derivados reencon-

tra as defesas da inexistência de contradição entre a EIIIpr.9esc. e a EIVpr.19 propostas


por Jarrett (1999, p. 22, nota 34) e Matheron (1969, p. 244, nota 10).

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contribuído para fortalecer significativamente esta interpretação. No entanto,


para alcançar a interpretação global que o sistema exige é preciso não apenas
aprofundar algumas análises aqui esboçadas, mas sobretudo examinar os proble-
mas colocados pela interpretação do grupo (2.2). Com efeito, segundo os intér-
pretes deste grupo a refutação espinosista da tese da providência divina exclui a
noção de finalidade externa, mas é totalmente compatível com a interpretação do
conatus como um tipo de finalidade interna. Dada a universalidade da doutrina do
conatus, os comentadores que defendem esta interpretação estão comprometidos
com a defesa da existência de processos teleológicos corporais. Para concluir, eu
gostaria de assinalar então dois dos principais problemas que me parecem decor-
rer desta interpretação e que pretendo abordar em um próximo artigo:
(1) Se uma explicação teleológica, tal como a define Garrett, consiste es-
sencialmente em “explicar um estado de coisas indicando uma suposta
ou provável conseqüência (causal, lógica ou convencional) sua que está
implicada na origem ou etiologia deste estado” 59 , é possível encontrar
algum processo corporal que, correspondendo à função exercida na
mente pelo conteúdo representativo das idéias na antecipação daquelas
supostas ou prováveis conseqüências, permita escapar ao argumento
da inversão da ordem da Natureza?
(2) É possível, como sugeria Delbos já no início do século passado, com-
patibilizar a adoção espinosista do método geométrico e das explica-
ções mecânicas do comportamento dos corpos com a interpretação
geral do conatus como um tipo de finalidade interna? 60

Cf. Garrett (1999, p. 310).


59

Cf. Delbos (2002, p. 92-93), onde ele sustenta que o geometrismo de Espinosa acar-
60

reta a exclusão do mecanicismo bruto, isto é, do domínio absoluto da causalidade externa


e das partes extra partes, opondo-se às relações de finalidade externa, mas sendo compatí-
vel com a aceitação da finalidade interna ou imanente; e (2002, p. 123-124), onde a noção
de uma definição genética que se realiza é utilizada para aproximar o conatus da finalidade
interna: “concebido como a realização de uma essência, ainda que rejeite toda finalidade
externa, ele [o conatus] não deixa de introduzir uma espécie de equivalente da finalidade

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
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sas muito menos do que se poderia crer; pois o determinismo de Espinosa é mais geomé-
trico que mecânico, e tem seu modelo na relação interna que deriva do conceito as pro-
priedades que ele compreende, mais que na relação externa que faz um estado depender
de outros estados; a individualidade, com o esforço que lhe pertence, não é um simples
encadeamento de fatos: ela é uma definição singular que se realiza”.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 1, p. 163-198, jan.-jun. 2006.
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