A porta da loja se abriu de chofre e a campainha anunciando a chegada de mais um cliente
soou tilintando. A loja que mais se parecia uma grande adega estava quase vazia naquele fim de tarde frio, o sol parecia estar apenas de enfeite lá no horizonte. A mulher que acabara de entrar era mais uma daquelas, como o balconista da loja sempre se referia sobre seus clientes excêntricos que frequentemente entravam ali para comprar alguma bebida (vinho e vodca eram os campeões de venda) para se deleitaram na oitava maravilha do mundo que era o álcool. Os tipos de bebidas eram separados por prateleiras de madeira envernizadas num estilo envelhecido, para ter a mesma aparência que os barris antigos da Europa, onde vinhos ficavam guardados por décadas. E a mulher analisava garrafa por garrafa nas prateleiras, como se procurasse uma marca em particular. – Deseja ajuda? – perguntou o balconista, um homem velho na casa dos cinquenta anos. A mulher girou nos calcanhares. – Talvez – respondeu com sua voz um pouco grave e nasalizada. Estava com uma expressão pensativa. – Qual tipo de vinho procura? – perguntou o balconista fingindo simpatia enquanto observava as diversas tatuagens no braço da mulher. – Tinto – respondeu ela. – Mas não lembro o nome da marca. Talvez se eu ver a embalagem, eu reconhecerei. – Fique à vontade para procurar – disse o balconista com gentileza. A tranquilidade na voz da mulher deixou-o sem desconfiança. Cansou de ter esses tatuados querendo levar bebidas sem pagar. Em geral, essas pessoas eram arrogantes e já entravam bêbadas ali, ao contrário daquela mulher, ela estava sóbria e transmitia certo ar intelectual. – Obrigada, senhor – ela agradeceu. – Se precisar de ajuda, eu te avisarei. – Como quiser senhorita! – respondeu o balconista velho. Voltou a se postar em seu balcão e a ler seu jornal. A mulher pegou uma garrafa e a analisou, depois a colocou de volta em seu lugar. “Preciso de um especial.” Ela viu uma prateleira na parede que era protegida por um vitral e nem prestara atenção em seu reflexo inexistente, pois havia achado a garrafa da marca que tanto procurava. Abriu um largo sorriso com sua boca pintada de batom vermelho, e sua pinta que ficava no canto dos lábios subiu até ficar próxima à sua orelha. – Senhor! Encontrei! – ela anunciou contente. – Achei! O balconista veio ligeiro e tirou uma chave do bolso ao ver a prateleira com porta de vidro, que deixava claro que era onde os produtos mais caros e especiais eram guardados. – Senhorita, este é um vinho de uma safra bem antiga. É um vinho caro, devo dizer – avisou o balconista. – Estou ciente disso – ela disse, calma. Ela afastou as gordas mechas de cabelo preto das orelhas deixando à mostra dois brincos brilhantes com forma de coração, eram pedras de diamante, reais e caros. Uma lasca dessas pedras tinha o valor suficiente para dúzias daquele vinho importado. Os olhos do balconista quase saltaram das órbitas ao vê-los. – Não tenho dinheiro, mas tenho estes brincos que já não têm valor algum para mim – ela disse na maior naturalidade. – Quero trocá-los por este vinho. – Mas... senhorita... – o balconista pigarreou. – Isso vale dezenas, senão centenas de vezes mais que este vinho holandês! Estes brincos não são roubados, são? – ele a fitou desconfiado, não seria a primeira e nem a última a tentar barganhar com itens roubados. – De modo algum! – ela respondeu prontamente. – Olhe, hoje é meu aniversário, o único dia além do halloween que tenho permissão para ir onde eu quiser. O que estou pedindo é bastante simples e, ambos sabemos que você não pode recusar essa oferta. O balconista velho ficou pensativo por um bom tempo, hesitando em tomar qualquer decisão sem pensar muito bem nas consequências se aquilo tudo fosse uma armação. Contudo, estava ganhando aquelas joias de graça! Por Deus! Aceite homem! Era só mais uma dessas burguesinhas drogadas que gastam metade de sua mesada com bebidas e a outra metade com entorpecentes. Se ele aceitasse a barganha, venderia as joias em algum lugar ilegal de compra de ouro e finalmente sairia daquela cidade para ter uma velhice sossegada no campo com sua esposa. – Não terei problemas, certo? – indagou ainda desconfiado. Ela soltou um muxoxo como um sinal negativo. – Então... tudo bem. A mulher tirou os brincos e entregou-os ao homem velho, que em troca deu-lhe a garrafa de vinho embrulhada num saquinho de papel pardo. – Feliz aniversário! – congratulou o balconista que sorria como um crocodilo. A mulher sorriu em agradecimento. O velho ficou tão feliz e distraído enquanto analisava a beleza das pedras de diamante que mal percebera que a mulher havia sumido antes de atingir a porta, não houve som algum de campainha tocando que anunciasse alguém entrando ou saindo da casa de vinho. Ele nunca pensaria sobre isso, não enquanto o brilho dos diamantes continuasse em cada um de seus olhos. Lá fora, debaixo da luz inóspita do crepúsculo, a mulher caminhava entre a multidão de pessoas que iam para lá e para cá, voltando da escola, do trabalho, de algum passeio ou indo encontrar-se com seus amigos e amores. As demais pessoas esbarravam nela e sequer pediam desculpas. Sentia falta disso, a estupidez das pessoas. Todos vestiam casacos, mas a mulher não sentia frio, usava apenas um vestidinho preto que se estendia até seus joelhos magrelos. As pessoas deveriam achar que ela fosse mais uma daqueles artistas de rua que acham que vestir-se como drogados deveria ser reconhecido como um ato artístico contemporâneo. Ela se afastou daquela região comercial e foi em direção à ponte que antecedia a rodovia principal da cidade. “Esse ar poluído; esse cheiro de gasolina queimada; pombos saltitando pela rua... nunca pensei que sentiria falta disso.” Ela tirou a rolha da garrafa com seus dentes, o canino direito inexistente não fez falta nesse ato. A solidão da noite que se iniciava era algo muito nostálgico para ela, e assim gostava, sentia falta disso. O prazer do primeiro gole do vinho, que sentiu quando a bebida tocou suas papilas gustativas, a fez desejar que essa sensação nunca se extinguisse. O vinho era seu elixir, lhe dava forças para sorrir. Enquanto caminhava pela ponte, decidiu parar por ali e sentar-se no acostamento para observar as luzes da cidade. Começou a cantarolar uma canção com melodia um pouco agitada, mas ao mesmo tempo calma, talvez estivesse cantando blues. “Vinho, senti tanta sua falta.” Ela não conhecia a cidade onde estava, também não importava, ela estava ali, isso importava. Talvez se nunca houvesse deixado de andar na Terra teria aproveitado melhor o vinho de cada dia e sua música. E era justamente a música que era o ápice de suas faltas. Sua vida era vinho e música, música e vinho. Mas a vida teve outros caminhos para perverter sua direção. Ela saiu dali quando a garrafa estava pela metade, andou bamboleante de volta para o comércio. Os bares noturnos já estavam abrindo suas portas enquanto faxinavam o local para receber seus clientes. Clientes como a mulher magrela com os braços tatuados que se aproximava embriagada dos pés à cabeça, onde suas madeixas escorriam de um volume excessivo no topo da cabeça. O letreiro do bar a que se dirigia piscava em azul e vermelho, quem estivesse longe dali enxergaria apenas letras roxas estáticas. O letreiro dizia BAROQUÊ. – Tem alguma banda aí? – perguntou a mulher ao garçom que apareceu na porta para atendê- la. – Não... apenas um dj – respondeu ele um pouco confuso. A mulher coçou seus cílios longos, a sua maquiagem estava um pouco borrada ao redor dos olhos. – Deve servir – ela disse conformada e se adentrou nas entranhas daquele bar limpo. Suas últimas horas de aniversário iriam ser gastas ali, ela até já passava os dedos em seus anéis com vários quilates de ouro, os seus objetos mágicos para barganhar por bebidas. “Ah, álcool e música! Senti tanta falta desses bares que fedem a urina!” O barman ficou deslumbrado ao presenciar essas pessoas que realmente conseguiam ficar idênticas a seus artistas preferidos para fazer suas homenagens em troca de uns trocos. Aquela noite prometia ser divertida, não era conhecedor da história de vida da falecida cantora Amy Winehouse, mas conhecia suas canções. Ele achava que o mundo da música contemporânea nunca tivera uma perda tão grande como aquela. E essa mulher era idêntica à cantora, pensava em até lhe pedir uma foto mais tarde. Mas ah se ele soubesse, ah se ele soubesse...