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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2020.0000668941

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1008949-


92.2020.8.26.0196, da Comarca de Franca, em que é apelante ELOI CRISTINO
BORGES (JUSTIÇA GRATUITA), é apelada CREFISA S/A. CRÉDITO,
FINANCIAMENTO E INVESTIMENTOS.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 22ª Câmara de Direito


Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Deram
provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este
acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores CAMPOS MELLO


(Presidente), MATHEUS FONTES E ROBERTO MAC CRACKEN.

São Paulo, 21 de agosto de 2020.

CAMPOS MELLO
Relator
Assinatura Eletrônica
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Ap . 1 0 0 8 9 4 9 - 9 2 .2 0 2 0 . 8 .2 6 .0 1 9 6 Fr an c a 3 ª V C VOTO 76540
Ap te. : E lo i Cr ist in o Bo r g e s ( ju s tiç a g r at u it a) .
Ap d a. : C r ef isa S/ A. Cr é d it o , Fin an c iam en t o e I n v es tim en t o s.

DEMANDA REVISIONAL DE CONTRATO DE


EMPRÉSTIMO BANCÁRIO, COM PEDIDOS CUMULADOS
DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO E DE INDENIZAÇÃO DE
DANOS MORAIS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA.
DECISÃO ALTERADA. 1. ABUSIVIDADE DOS JUROS
REMUNERATÓRIOS CONFIGURADA. DISCREPÂNCIA
SUBSTANCIAL DA TAXA PACTUADA COM A DA MÉDIA
DE MERCADO. 2. DEVOLUÇÃO SINGELA
DETERMINADA. 3. REDISTRIBUIÇÃO DOS ENCARGOS
DE SUCUMBÊNCIA. DEMANDA JULGADA PROCEDENTE
EM PARTE. RECURSO PROVIDO.

É apelação contra a sentença a fls. 109/119, que


julgou improcedente demanda revisional de contrato de empréstimo
bancário, com pedidos cumulados de repetição de indébito e de
indenização de danos morais.
Em seu recurso, alega o autor que a decisão não deve
subsistir. Invoca o regime da Lei 8.078/90 e postula o reconhecimento
da abusividade dos juros praticados. Bate-se pela limitação dos juros à
taxa média de mercado e a devolução dos valores pagos a maior. Pede
a reforma.
Apresentadas contrarrazões, subiram os autos.
É o relatório.
O recurso comporta provimento.
Cabe, de início, proclamar que incide na espécie a Lei
8.078/90, visto que se trata de contrato de empréstimo pessoal
celebrado entre instituição financeira e pessoa física (Súmula 297 do
Superior Tribunal de Justiça).
O autor pretende a revisão da avença, com
fundamento na existência de cláusulas abusivas. Mas o fato de ser o
contrato de adesão não tem o significado pretendido. Não quer dizer
que, só por causa disso, ele seja leonino.
Relembre-se que no regime do Código de Defesa do
Consumidor há duas hipóteses de modificação de cláusulas
contratuais, a primeira delas decorrente do reconhecimento do
estabelecimento de prestações desproporcionais, quando se consume
lesão na contratação, caso em que verificada tal desproporcionalidade
entre a prestação e a contraprestação já no momento da celebração da
avença (cf. Arruda Alvim e outros, “Código do Consumidor

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Comentado” Ed. RT, p. 30). A lesão é instituto que fora banido de


nosso sistema normativo desde a codificação civil (cf. STF in RTJ
84/218, acórdão que esgota a matéria) e que agora reapareceu no
âmbito das relações de consumo e do novo Código Civil.
A segunda possibilidade de modificação, em tese, de
cláusula contratual é aquela decorrente de onerosidade excessiva,
modalidade enquadrada na teoria da imprevisão. Esta pode ser
empregada quando se trata de ocorrência posterior à contratação. Para
sua adoção por decisão judicial, não se pode olvidar que ela só poderá
ser adotada na hipótese da denominada “desaparição da base do
negócio”, entendida como tal a destruição da relação de equivalência
das prestações, ou ainda quando se torne frustrada a própria finalidade
do negócio jurídico, mesmo que o devedor disponha de meios para
cumprir suas obrigações (cf., a propósito, Karl Larenz, “Base del
Negocio Juridico y Cumplimiento de los Contratos”, Ed. Revista de
Derecho Privado, p. 225). Mesmo se o enfoque for a excessiva
onerosidade, ainda assim cabe a advertência de que só pode ser
aplicada a teoria em caso de evidente desequilíbrio causado por
situação nova. Isso significa que se o alegado desequilíbrio, a alegada
onerosidade, já existam no momento da contratação, não se poderá
falar em imprevisão. E não se perca de vista que todo negócio contém
certo grau de incerteza a respeito das vantagens e desvantagens
econômicas que ele poderá ou não propiciar. Há mesmo uma incerteza
considerada normal na vida negocial (Alberto Trabucchi, “Istituzioni
di Diritto Civille”, Ed. Cedam, 26ª ed., 1983, p. 696). Ocorre que, no
caso em tela, não está presente a alegação da ocorrência de fato
superveniente causador de onerosidade excessiva.
Assentadas tais premissas, verifico que o autor tem
razão no tocante à cobrança de juros remuneratórios no contrato em
análise, visto que a alegada abusividade restou cabalmente
demonstrada.
Nesse ponto, cabe lembrar que a ré é instituição
financeira. Em consequência, não está sujeita à limitação da taxa de
juros, nem mesmo à limitação de juros remuneratórios a 12% ao ano.
Tal limitação, já revogada, dependia de edição de lei complementar
(Súmula 648 do Supremo Tribunal Federal). E hoje em dia nem é mais
possível que alguma decisão judicial disponha em sentido contrário,
visto que isso ofenderia o art. 103 A, caput e §3º, da Constituição
Federal, já que editada pelo Supremo Tribunal Federal a Súmula
Vinculante 7, com a seguinte redação: “A norma do §3º do artigo 192
da Constituição, revogada pela Emenda Constitucional nº 40/2003,

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que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação
condicionada à edição de lei complementar”. Além disso, foi editada
pelo Superior Tribunal de Justiça a Súmula 382, com a seguinte
redação: “A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao
ano, por si só, não indica abusividade”, bem como firmada tese em
julgamento de recurso repetitivo com o mesmo teor.
Todavia, na espécie, está configurada a abusividade
das taxas de juros cobradas pela ré. Com efeito, o contrato prevê a
taxas de juros anuais de 987,22% (cf. fls. 16). Nesse contexto, impõe-
se a conclusão de que a taxa cobrada é muito superior à média de
mercado em operações similares no mesmo período. Com efeito, a taxa
contratada supera o quádruplo da média de mercado, certo que a taxa
média anual para operações simulares era, em tal período, de 205,17%
(cf. (https://www.bcb.gov.br/estatisticas/reporttxjuros).
Ressalve-se que é possível, em certas circunstâncias,
ser considerada abusiva a contratação que em muito ultrapasse a taxa
média para operações similares. Por exemplo, já foi reconhecida a
abusividade na contratação de juros remuneratórios aproximadamente
150% mais elevados do que a taxa média de mercado (Rec. Esp.
327.727/SP, 4ª T., Rel. Min. César Asfor Rocha, DJU 8.3.2004, p.
00166). O entendimento mais razoável é o que considera admissível o
reconhecimento da abusividade em caso de taxa que comprovadamente
discrepe de modo substancial da média de mercado e, mesmo assim, se
tal elevação não for justificada pelo risco da operação, tal como já se
decidiu naquela Corte (Rec. Esp. 407.097/RS, 2ª Seção, Rel. p. o
acórdão Min. Ari Pargendler, DJU 29.9.2003, p. 00142; AgInt no
AREsp 1.470.820/MS, 3ª T., Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva,
DJe 17.10.2019; AgInt no AREsp 1.443.474/MS, 4ª T., Rel. Min.
Maria Isabel Gallotti, DJe 24.9.2019; AgInt no AREsp 1.447.398/RS;
4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, DJe 12.8.2019).
Além disso, ao ser julgado na Segunda Seção o
Recurso Especial 1.061.530/RS, em incidente de processo repetitivo,
conforme a previsão do art. 543-C, § 7º, do C.P.C. de 1973, aquela
Corte, à qual compete a padronização da interpretação do direito
federal infraconstitucional, proclamou que só é possível o controle
judicial quando se tratar de juros manifestamente abusivos e, assim
mesmo, apenas em relação a contratos sujeitos ao regime da Lei
8.078/90, desde que tal abusividade esteja cabalmente demonstrada. E
é exatamente essa a hipótese dos autos. Na ocasião, foram enumerados
os diversos precedentes no mesmo sentido: Rec. Esp. 915.572/RS, 4ª
T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 10.3.2008, Rec. Esp.

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939.242/RS AgRg., 4ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU


14.4.2008, Rec. Esp. 881.383/MS AgRg , Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, DJU 27.8.2008, Rec. Esp. 1.041.086/RS AgRg, 4ª T., Rel.
Min. Fernando Gonçalves, DJU 1.9.2008, Rec. Esp. 1.036.857/RS, 3ª
T., Rel. Min. Massami Uyeda, DJU 5.8.2008, Rec. Esp. 977.789/RS, 3ª
T., Rel. Min. Sidnei Beneti, DJU 20.6.2008, Rec. Esp. 1.036.818/RS,
3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, DJU 20.6.2008.
Então, como no caso presente houve cobrança de taxa
de juros muito superior à taxa média de mercado em operações
similares no mesmo período, sem que houvesse justificativa por
excepcional risco da operação, torna-se de rigor a limitação postulada
na inicial.
Nesse sentido, aliás, já se decidiu nesta Câmara em
caso análogo, em que houve a concessão de empréstimo pessoal e a
cobrança de juros de 14,5% a.m. e 407,77% a.a., verbis: “Revisão de
contrato Contrato de mútuo Incidência do Código de Defesa do
Consumidor Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça
Afastamento da taxa de juros remuneratórios prevista no contrato
(14,5% ao mês e 407,77% ao ano), aplicando-se a taxa média para
operações da espécie - Repetição simples do indébito Ausência de
má-fé Juros cobrados com base no contrato então vigente
Exercício regular de direito da credora. Recurso provido, em parte.”
(Ap. 1000949-46.2015.8.26.0595, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j.
em 6.4.2017). E também: Ap. 1006513-51.2016.8.26.0019, Rel. Des.
Hélio Nogueira, j. em 27.7.2017; Ap. 1013153-79.2017.8.26.0037,
Rel. Des. Matheus Fontes, j. em 16.3.2018.
O valor concernente aos juros cobrados em
desconformidade com a média de mercado em operações similares
deverá ser expurgado da dívida. O valor já indevidamente quitado pelo
autor dever-lhe-á ser devolvido, de forma singela, atualizado
monetariamente pela Tabela Prática desta Corte desde a data do
respectivo desembolso e acrescido de juros de mora legais desde a
citação. Fica, porém, admitida expressamente a compensação da
obrigação assim quantificada com outros créditos líquidos e certos de
titularidade da ré (art. 369 do Código Civil). No prosseguimento,
deverá a ré apresentar demonstrativo de evolução do débito, adequado
ao que está aqui decidido. É o que se determina.
Em resumo, restrito o inconformismo a tal questão, é
caso de prover o recurso, para julgar parcialmente procedente a
demanda, para as finalidades acima explicitadas.

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De resto, alterada a sentença, restou configurada


sucumbência recíproca. Assim, cada parte arcará com metade das
custas e despesas processuais e também com honorários advocatícios
da parte contrária, que fixo, com fundamento no art. 85, § 8º, do
C.P.C., em R$ 1.200,00, observado, em relação ao autor, o disposto no
art. 98, § 3º, do C.P.C. (cf. fls. 28).
Pelo exposto, dou provimento ao recurso, para as
finalidades acima explicitadas.

Campos Mello
Desembargador Relator

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