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Sobre a Aplicação no Espaço do Novo

Código dos Valores Mobiliários

Maria Helena Brito *

* Professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa


Texto da comunicação apresentada no Seminário “O Novo Código dos Valores Mobiliários”, organizado pela
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, com a colaboração da Comissão do Mercado de Valores
Mobiliários, que se realizou no Centro Cultural de Belém, em 16 e 17 de Dezembro de 1999. A autora agradece
ao Prof. Doutor António Marques dos Santos e ao Dr. Paulo Câmara os comentários e as sugestões que
formularam a propósito da primeira versão deste texto.
1. Introdução

O novo Código dos Valores Mobiliários (adiante designado CVM ou, simplesmente,
Código) concretiza os objectivos fixados pelo Governo e as inovações que se propôs
realizar em torno de cinco ideias principais: codificar, simplificar, flexibilizar,
modernizar e internacionalizar (cfr. Preâmbulo do CVM, nº 1, in fine).
A internacionalização dos mercados de valores mobiliários exige que se dedique especial
atenção à determinação do direito competente para reger as situações plurilocalizadas.
Tradicionalmente, a especificidade de tais situações tem sido ignorada, através de uma
aplicação sistemática do direito material do foro.
O novo Código não tem propriamente como finalidade internacionalizar o mercado
de valores mobiliários, porque a internacionalização existe, e já existia. O que o
Código pretende é eliminar os entraves de natureza legal a essa internacionalização.
Na expressão do Preâmbulo do Código (nº 6, primeiro parágrafo), procurou-se
agora encontrar um “ponto de equilíbrio adequado”, evitando quer o alheamento do
sistema jurídico português quanto à eventual competência de outras ordens jurídicas
quer a maximização de aplicação do direito do foro.
A solução final encontrada traduz-se na adopção de um conjunto de regras de diversa
natureza. A determinação do âmbito de aplicação no espaço do novo Código resulta,
como se verá, da conjugação de uma pluralidade de técnicas jurídicas.
Penso que o novo Código dos Valores Mobiliários constitui, também neste domínio,
um importante elemento de estudo e estou convencida de que servirá de pretexto,
num futuro próximo, para a elaboração de diversos trabalhos de nível universitário.
O que aqui vou dizer agora não passará de uma primeira e brevíssima leitura das
soluções adoptadas.

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2. As técnicas jurídicas utilizadas no código dos valores previstos no sistema de direito internacional privado em vigor no ordenamento
mobiliários para a delimitação do seu âmbito de aplicação português (artigos 22º do Código Civil e artigo 16º da Convenção de Roma sobre a
no espaço Lei Aplicável às Obrigações Contratuais).

II. O Código dos Valores Mobiliários contém normas de conflitos de leis no espaço,
de carácter bilateral, que designam o sistema jurídico competente para resolver a
questão privada internacional em termos tais que o sistema designado tanto pode ser o
2.1. Normas de conflitos de leis no espaço, de carácter bilateral direito do foro como um direito estrangeiro.
São exemplos:
I. As normas de conflitos de leis no espaço visam regular a situação privada
internacional através da remissão para uma ou mais das ordens jurídicas locais a que – as normas relativas à determinação da ordem jurídica aplicável a certas questões que
a mesma se encontra ligada. A ordem jurídica ou as ordens jurídicas designadas pela se suscitam a propósito dos valores mobiliários (contidas nos artigos 39º a 41º) – a
norma de conflitos são assim declaradas competentes para regular a situação. estas normas se dedicará mais atenção na exposição subsequente (infra, nº 4.);

A individualização da ordem jurídica competente faz-se através da escolha de um – a norma relativa à determinação da ordem jurídica aplicável aos direitos e
elemento (o elemento de conexão) que estabelece a ligação (a conexão) entre a obrigações decorrentes da participação em sistema de liquidação, uma vez aberto
situação da vida a regular e a ordem jurídica designada. A escolha do direito aplicável um processo de falência, de recuperação de empresa ou de saneamento de um
nos termos do método conflitual faz-se, em princípio, tendo em conta a posição que participante num sistema de liquidação (constante do artigo 285º);
esse direito ocupa relativamente à situação a regular e não tendo em conta o respectivo – a norma relativa à determinação da ordem jurídica aplicável aos direitos dos
conteúdo. Trata-se assim, fundamentalmente, de escolher a lei melhor colocada para beneficiários das garantias de obrigações decorrentes do funcionamento de um
intervir – em razão da localização dos factos ou da relação de tal lei com as pessoas a sistema de liquidação no caso de os valores mobiliários dados em garantia
quem os factos dizem respeito – e não de escolher a melhor lei em razão do respectivo estarem registados ou depositados em sistema centralizado situado ou a
conteúdo1. funcionar num Estado-membro da Comunidade Europeia (artigo 284º, nº 4).
As normas de conflitos não se propõem regular directamente as questões, não contêm
imediatamente a solução do caso, antes se limitam a indicar o sistema de normas
materiais à qual se irá pedir essa regulação. Todavia, a função da norma de conflitos
não se esgota com a simples designação da ordem jurídica local à qual se irá pedir o
2.2. Normas unilaterais, que se limitam a indicar o âmbito de
regime aplicável; ela guarda sempre o controlo do resultado a que conduz, em cada
aplicação no espaço das normas materiais contidas no código, em
caso, a aplicação da lei designada como competente. Esta função de controlo do
diversos sectores – ou seja, normas que indicam a esfera de aplicação
resultado reservada à norma de conflitos encontra-se patente no Código dos Valores
no espaço do direito português
Mobiliários, atenta, desde logo, a relevância reconhecida às normas de aplicação
imediata (artigo 3º) e a admissibilidade da interferência do direito português no I. São naturalmente as mais numerosas: não pode esquecer-se que estão em causa, em
direito estrangeiro competente, com a finalidade de protecção da parte muitos aspectos, normas de direito público, como as que estabelecem a competência
institucionalmente mais fraca (artigo 321º, nº 3), para além, evidentemente, da das autoridades de supervisão, designadamente da Comissão do Mercado de Valores
possível actuação da reserva de ordem pública internacional, nos termos gerais Mobiliários (a seguir, CMVM).
Ora, em princípio, a delimitação do âmbito de aplicação espacial das normas dessa
natureza faz-se através de regras unilaterais. Mas, mesmo para além do domínio
referido, o Código recorre a regras unilaterais, isto é, a regras que se limitam a
1 indicar a esfera de aplicação no espaço das normas materiais a que se referem.
Cfr., por todos: I. MAGALHÃES COLLAÇO, Direito internacional privado, Lisboa, I, 1958, p. 26 ss, II, p. 7 ss;
A. FERRER CORREIA, Direito internacional privado. Alguns problemas, Coimbra, 1981, reimp., 1995, p. 21 ss.

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II. São exemplos de regras unilaterais: 2.4. Normas de reconhecimento de requisitos preenchidos ao abrigo
– o artigo 108º, nº 2, por força do qual as normas sobre ofertas públicas de de um direito estrangeiro ou de actos praticados no estrangeiro
aquisição obrigatória se aplicam às ofertas públicas de aquisição obrigatória de
valores mobiliários emitidos por sociedades que tenham como lei pessoal a lei
São exemplos:
portuguesa;
– o artigo 91º, nº 3, que admite que as contas de registo individualizado
– o artigo 43º, nº 2, nos termos do qual as disposições sobre o registo de emissão
integrantes do sistema centralizado possam ser abertas junto de intermediários
de valores mobiliários se aplicam aos valores mobiliários emitidos por entidade
financeiros reconhecidos pela entidade gestora do sistema centralizado, desde
cuja lei pessoal seja a lei portuguesa;
que estejam organizadas em condições de eficiência, segurança e controlo
– o artigo 199º, que define os mercados cujo funcionamento é permitido em equivalentes às exigidas aos intermediários financeiros autorizados a exercer a
Portugal; sua actividade em Portugal;
– o artigo 272º, que estabelece os requisitos a que devem obedecer os sistemas de – o artigo 147º, nº 1, que impõe, em certas condições, o reconhecimento, para
liquidação para serem registados na CMVM; efeito de registo na CMVM, do prospecto aprovado por autoridade competente de
– o artigo 359º, nº 2, que sujeita à supervisão da CMVM as pessoas ou entidades Estado-membro da Comunidade Europeia relativo a uma oferta pública realizada
que exerçam actividade de carácter transnacional, sempre que essas actividades simultaneamente ou em datas próximas em Portugal e noutro Estado-membro.
tenham alguma conexão relevante com mercados, operações ou valores
mobiliários sujeitos à lei portuguesa.
2.5. Normas que prevêem a atendibilidade de um direito estrangeiro

2.3. Normas de direito material especial, isto é, normas que I. A referência a uma ordem jurídica pode ter objectivos distintos: umas vezes,
instituem uma disciplina própria para as situações dotadas de pretende-se encontrar a regra jurídica aplicável; outras vezes, pretende-se tão só
elementos de estraneidade encontrar algum elemento relevante face à regra jurídica fornecida pelo direito
aplicável.
Constituem exemplos de normas que regem directamente as situações internacionais, No primeiro grupo de casos, a regra designada é aplicável como critério normativo.
fixando um regime próprio para tais situações: No segundo grupo de casos, a regra designada é considerada como pressuposto de
– o artigo 68º, nº 3, sobre as menções nas contas de registo individualizado, no facto ou condição de aplicação de uma outra norma material (do direito competente);
caso de os valores mobiliários terem sido emitidos por entidade que tenha como então a regra designada não é tida como critério de valoração (rule of decision), mas como
lei pessoal uma lei estrangeira; simples dado (datum), a atender (berücksichtigen) na aplicação da norma material
competente2.
– o artigo 91º, nº 2, que admite especialidades quanto às contas de emissão
integrantes do sistema centralizado, no caso de os valores mobiliários terem sido
emitidos por entidade que tenha como lei pessoal uma lei estrangeira;
– o artigo 117º, que estabelece uma exigência adicional relativamente às ofertas
públicas de valores mobiliários emitidos ou a emitir por entidade cuja lei pessoal
seja uma lei estrangeira ou que estejam sujeitos a direito estrangeiro;
2
– o artigo 146º, relativo à informação a incluir no prospecto se o emitente tiver Sobre esta distinção qualitativa entre os dois métodos de referência a regras jurídicas (aplicabilidade e mera
como lei pessoal uma lei estrangeira. atendibilidade ou consideração), cfr. MARIA HELENA BRITO, A representação nos contratos internacionais. Um
contributo para o estudo do princípio da coerência em direito internacional privado, Coimbra, 1999, p. 513 ss (e bibliografia aí
citada).

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3. A consagração de normas de conflitos relativas aos
II. No sistema do CVM, opera uma referência do segundo tipo a disposição do artigo valores mobiliários e a possibilidade de aplicação de um
227º, que estabelece os requisitos gerais de admissão à negociação em mercado de direito estrangeiro
bolsa a contado: no nº 1 do preceito determina-se que só podem ser admitidos à
negociação em mercado de bolsa a contado – sendo certo que essa negociação é regida
I. O Código do Mercado de Valores Mobiliários, de 1991, não continha normas de
pelo direito português (artigos 3º e 220º e seguintes do CVM) – valores mobiliários
conflitos para a determinação do direito aplicável aos valores mobiliários em situações
que sejam conformes com a lei que lhes é aplicável e que tenham sido, em tudo o
internacionais.
mais, emitidos de harmonia com a lei pessoal do emitente.
O carácter geral das normas de conflitos consagradas no Código Civil português (e no
Sempre que a lei pessoal do emitente seja uma lei estrangeira, a norma do artigo
Código das Sociedades Comerciais), as dificuldades suscitadas pelas regras de
227º, nº 1, determina portanto a atendibilidade (Berücksichtigung), no âmbito do direito
delimitação do âmbito material de aplicação de duas convenções internacionais
primariamente competente – o direito português –, de um direito estrangeiro (a lei
vigentes em Portugal – a Convenção de Roma de 1980 sobre a Lei Aplicável às
pessoal do emitente), quanto às questões da regularidade da emissão, do conteúdo e
Obrigações Contratuais e a Convenção de Haia de 1978 sobre a Lei Aplicável aos
da forma de representação dos valores mobiliários.
Contratos de Intermediação –, a polémica doutrinal quanto à qualificação dos valores
mobiliários (com a consequente indefinição quanto à questão de saber se era possível
– e, sendo possível, se era adequado – aplicar, por analogia, aos valores mobiliários as
2.6. Normas que admitem a interferência do direito português no regras constantes da Convenção de Genebra de 1930 Destinada a Regular Certos
direito estrangeiro competente, com a finalidade de protecção da Conflitos de Leis em Matéria de Letras e Livranças) não permitiam determinar com
parte institucionalmente mais fraca rigor e clareza o direito competente para reger os diversos problemas susceptíveis de se
colocar a propósito de situações internacionais que dizem respeito a valores
mobiliários.
O Código prevê expressamente a interferência do direito material português no
São em número reduzido os estudos que no nosso país, e no domínio do direito
direito estrangeiro competente, com a finalidade de protecção da parte
anterior, se dedicaram aos problemas de conflitos de leis suscitados pelos valores
institucionalmente mais fraca, no artigo 321º, nº 3, em matéria de contratos de
mobiliários3.
intermediação celebrados com investidores não institucionais residentes em Portugal,
para a execução de operações em Portugal. Esta norma será analisada adiante (infra, nº
5.). II. O CVM, considerando “a inadequação ou inaplicabilidade das soluções
internacionalprivatísticas constantes do Código Civil, da Convenção de Roma sobre a
Lei Aplicável às Obrigações Contratuais e da Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável
aos Contratos de Intermediação” (cfr. Preâmbulo, nº 6, terceiro parágrafo),
2.7. Normas de aplicação imediata estabelece normas de conflitos para a determinação do direito aplicável aos valores
mobiliários, que constam do Título II (valores mobiliários), Capítulo I (disposições
Estão em causa as normas a que se reporta o artigo 3º do Código. Este tema será gerais), Secção I (direito aplicável) – artigos 39º a 41º.
retomado mais tarde (infra, nº 6.). São essas normas de conflitos – ou alguns dos problemas suscitados por essas normas
de conflitos – que, de modo necessariamente breve, vou comentar.

3
Cfr.: P. CÂMARA, A oferta de valores mobiliários realizada através da Internet, Cadernos do Mercado de Valores
Mobiliários, I, 1997, p. 10 ss; F. ALMEIDA PIRES, Emissão de valores mobiliários (primeiras considerações sobre a
determinação da lei aplicável), Lisboa, 1999; D. MOURA VICENTE, Da responsabilidade pré-contratual em direito
internacional privado. Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa,

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3.1. Características gerais das normas de conflitos constantes dos III. Na aplicação da ordem jurídica designada pelas normas de conflitos do CVM é
artigos 39Ø a 41º do CVM expressamente admitida a interferência de normas imperativas do direito português,
em consequência da relevância atribuída às “normas de aplicação imediata” (artigo 3º
do CVM)5.
Uma primeira observação das normas de conflitos dos artigos 39º a 41º permite concluir:
I. Trata-se, em todos os casos, de normas de conflitos bilaterais perfeitas – isto é, de
normas que indicam o direito competente em função de um elemento que estabelece
a conexão entre a situação e a ordem jurídica designada, que tanto pode ser a ordem 3.2. Conceito de valores mobiliários relevante para efeitos de
jurídica portuguesa como uma ordem jurídica estrangeira: tudo depende da aplicação das normas de conflitos do CVM
concretização do elemento de conexão utilizado na norma4.
I. O CVM não contém propriamente uma definição de valores mobiliários.

II. Sempre que estas normas de conflitos designarem um direito estrangeiro, a O artigo 1º do Código enumera, no nº 1, um elenco não exaustivo de categorias de
remissão é necessariamente dirigida às normas materiais da ordem jurídica designada, valores mobiliários, que correspondem às categorias de bens que a comunidade
tendo em conta a exclusão do reenvio determinada pelo artigo 42º do Código. jurídica, no momento actual, considera como valores mobiliários.
Na verdade, nos termos deste preceito, “a designação de um direito estrangeiro por No nº 2 do mesmo artigo permite-se o reconhecimento de outros valores
efeito das normas de conflitos da presente secção não inclui as normas de direito mobiliários, através de regulamento da CMVM ou do Banco de Portugal, desde que o
internacional privado do direito designado”. objecto em causa obedeça a certas condições cumulativas:
Sublinhe-se neste ponto o afastamento das regras gerais sobre a natureza da referência – que sejam representados através de documento;
ao direito estrangeiro constantes dos artigos 16º a 19º do Código Civil.
– que sejam representativos de situações jurídicas que visem o financiamento de
A solução adoptada – determinando uma referência de natureza material – insere-se entidades públicas ou privadas;
na orientação seguida pelas mais recentes convenções internacionais de direito
– que sejam homogéneos;
internacional privado, confere certeza e segurança à determinação do direito
competente e impede a maximização na aplicação do direito material do foro. – que sejam emitidos para serem distribuídos junto do público;
– que estejam assegurados os interesses dos potenciais adquirentes.
É portanto indispensável atender aos elementos constantes do artigo 1º para construir
1999, p. 753 s.
o conceito de valor mobiliário aceite pelo Código.
4
A consagração de normas de conflitos bilaterais para a determinação do direito aplicável aos valores
mobiliários, com esta amplitude, constitui uma inovação do Código português. Na verdade, as mais recentes
legislações europeias sobre mercados de valores não contêm normas de conflitos bilaterais para a II. Para efeitos de aplicação das normas de conflitos, o ponto de partida para a
determinação do direito aplicável em situações internacionais – por exemplo, a lei italiana (Testo Unico delle
disposizioni in materia di intermediazione finanziaria, de 1998), cujo âmbito material de aplicação mais se aproxima do
interpretação é o conceito do direito material português – ou seja, o conceito que se deduz das
CVM. Por outro lado, apenas algumas das mais recentes leis sobre direito internacional privado regulam disposições do CVM e, antes de mais, do artigo 1º.
certos problemas que podem colocar-se nesta matéria. Assim, a lei suíça de direito internacional privado, de
1987, inclui, no capítulo relativo às sociedades, a norma de conflitos do artigo 156, nos termos da qual: “As Mas, como é em geral defendido pela melhor doutrina, os conceitos utilizados nas
pretensões derivadas da emissão pública de títulos de participação e de empréstimos através de prospectos, normas de conflitos hão-de interpretar-se com autonomia em relação ao direito
circulares ou outras publicações análogas regem-se quer pelo direito aplicável à sociedade quer pelo direito do
Estado de emissão”. A lei de reforma do sistema italiano de direito internacional privado, de 1995, contém, material do foro: tais conceitos são abertos e por isso neles podem caber institutos
no capítulo relativo às obrigações não contratuais, uma norma de conflitos sobre os títulos de crédito (artigo
59), que, no seu nº 3, determina: “Os outros títulos de crédito [que não sejam letras, livranças e cheques]
regem-se pela lei do Estado em que o título foi emitido. Todavia as obrigações diversas da obrigação principal
regem-se pela lei do Estado em que cada uma foi contraída”. Cfr. ainda: o § 39 da lei austríaca de direito
direito aplicável à emissão de títulos-valor; os artigos 57 a 59 da lei romena sobre a regulamentação das
internacional privado,
relações de direito internacional privado, de 1992 (os respectivos textos podem ser consultados em A.
de 1978, sobre o direito aplicável às operações de bolsa; o artigo 10, 3, do Código Civil espanhol, sobre o
MARQUES DOS SANTOS, Direito internacional privado. Colectânea de textos legislativos de fonte interna e internacional,

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jurídicos estrangeiros não exactamente coincidentes com os conceitos do foro. O que 4. Determinação do direito aplicável aos valores mobiliários
se exige é que tais institutos, pelo seu conteúdo e pela função que desempenham na
ordem jurídica a que pertencem, possam integrar o regime do instituto visado
na norma de conflitos do foro6.

III. Do sistema do Código resulta que os valores mobiliários sujeitos a um direito


4.1. O direito aplicável à capacidade para a emissão de valores
estrangeiro que, de acordo com as regras gerais sobre qualificação, não possam ser
mobiliários
reconduzidos a uma das categorias enunciadas no nº 1 do artigo 1º ficam sujeitos ao
regime previsto no nº 2, ou seja, só podem ser considerados valores mobiliários para I. Nos termos do artigo 39º, primeira parte, a matéria de capacidade para a emissão
efeitos de aplicação do CVM se como tal forem reconhecidos pela CMVM ou pelo rege-se pela lei pessoal do emitente.
Banco de Portugal, conforme os casos.
Esta solução, que me parece não colocar especiais dificuldades, corresponde à regra
geral sobre capacidade constante da norma de conflitos do artigo 33º do Código
Civil, tendo em conta a delimitação do âmbito da lei pessoal das pessoas colectivas
constante do nº 2 do mesmo artigo.

II. Quanto à concretização da lei pessoal, há que atender a diversos critérios7,


conforme os casos:
– ao critério do artigo 3º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, para
determinar a lei pessoal das sociedades comerciais – a lei pessoal é
primariamente a lei do Estado onde se encontra situada a sede principal e
efectiva da sua administração8;
– ao critério do artigo 33º, nº 1, do Código Civil, para determinar a lei pessoal
das pessoas colectivas de direito privado que não sejam sociedades comerciais
– de onde resulta que estas pessoas colectivas têm como lei pessoal a lei do
Estado onde se encontra situada a sede principal e efectiva da sua administração;

qualificação em direito internacional privado, Lisboa, 1964, p. 183; e, após a entrada em vigor do Código Civil, A.
FERRER CORREIA, O problema da qualificação segundo o novo direito internacional privado português, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLIV, 1968, p. 39 ss (p. 45); ID., Direito internacional
Coimbra, 1999). privado. Alguns problemas, p. 155 s; J. BAPTISTA MACHADO, Lições de direito internacional privado, 3ª ed., Coimbra,
5 1985, reimp., 1995, p. 111 ss (p. 115).
Sobre a eventual relevância de outros limites ao carácter formal das normas de conflitos na aplicação do direito 7
dos valores mobiliários, para além das normas de aplicação imediata, cfr. supra, nº 2.1., I. Para uma exposição dos critérios utilizados na determinação do estatuto pessoal das sociedades, cfr., por
6 último, L. LIMA PINHEIRO, O direito aplicável às sociedades. Contributo para o direito internacional privado das sociedades,
Cfr. artigo 15º do Código Civil português. A doutrina, em vários países, tem proposto a interpretação separata da “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, II, Julho de 1998, p. 673 ss (p. 678 ss).
autónoma dos conceitos utilizados no conceito-quadro da norma de conflitos. Na doutrina portuguesa, 8
cfr., por todos: I. MAGALHÃES COLLAÇO, Direito internacional privado, II, p. 153 ss, 178 ss; ID., Da Sobre os problemas suscitados pela norma do artigo 3º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, cfr: R.

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– ao critério do artigo 34º do Código Civil, para determinar a lei pessoal das determinação do conteúdo dos valores mobiliários que confiram direito à
pessoas colectivas internacionais – sendo, nesses termos, lei pessoal das pessoas subscrição, à aquisição ou à alienação de outros valores mobiliários; aplicam-se
colectivas internacionais a lei designada na convenção que as criou ou nos conjuntamente a lei pessoal do emitente dos valores mobiliários que confiram
respectivos estatutos e, na falta de designação, a do país onde estiver a sede certos direitos relativamente a outros valores mobiliários e a lei pessoal do
principal; emitente destes últimos valores mobiliários (artigo 40º, nº 2).
– ao critério da incorporation theory, para determinar a lei pessoal das pessoas
colectivas de direito público – considerando-se então como lei pessoal a lei do II. Justificação da regra geral (que conduz à competência da lei pessoal do emitente).
Estado à luz da qual se constituíram.
Há que ponderar que se trata, frequentemente, de valores mobiliários emitidos por
uma pessoa colectiva. Por isso, embora em graus diferenciados, a situação apresenta
relações com os mecanismos da sua organização e funcionamento.
4.2. O direito aplicável à forma de representação de valores Assim sendo, a solução consagrada é a que traduz a ligação mais forte entre os valores
mobiliários mobiliários em causa e uma determinada ordem jurídica e a que evita problemas de
coordenação potencialmente existentes entre qualquer outra lei que viesse a ser
Também a forma de representação dos valores mobiliários é submetida à lei pessoal do considerada competente e a lei pessoal do emitente dos valores mobiliários.
emitente (artigo 39º, segunda parte).
Esta norma de conflitos constitui uma inovação. III. Justificação das excepções.
A norma de conflitos geral relativa à forma da declaração negocial (artigo 36º do – Quanto à 1ª excepção, isto é, quanto à norma que permite a designação pelos
Código Civil português) não seria susceptível nem de enquadrar convenientemente a interessados do direito aplicável ao conteúdo de certos valores mobiliários
questão nem de fornecer a solução adequada. (obrigações e outros valores mobiliários representativos de dívida):
A solução adoptada parece oportuna e a que encontra melhor justificação dentro do A relevância atribuída à autonomia privada neste domínio visa, umas vezes,
sistema instituído pelo CVM. Verifica-se aqui uma atracção pela lei reguladora da facilitar o conhecimento, por parte dos destinatários (os potenciais
capacidade para a emissão de valores mobiliários, em função da tendencial obrigacionistas), do direito aplicável, através da designação da lei que lhes é mais
competência da entidade emitente para seleccionar a primitiva forma de próxima. Pense-se, por exemplo, num empréstimo obrigacionista lançado num
representação dos valores mobiliários e a sua eventual alteração. único país.
Outras vezes, a solução adoptada permite a designação de um direito conhecido
ou reconhecido pela generalidade dos destinatários como sendo o mais
adequado quanto a determinada situação ou a designação de um direito
4.3. O direito aplicável ao conteúdo dos valores mobiliários considerado vantajoso do ponto de vista fiscal (por exemplo, o direito inglês ou
o direito do Estado de Nova Iorque).
Em qualquer caso, a possibilidade de escolher o direito aplicável funciona como
I. Em matéria de conteúdo dos valores mobiliários atribui-se competência, primaria-
um elemento, entre outros, de captação da poupança.
mente, à lei pessoal do emitente (artigo 40º).
– Quanto à 2ª excepção, isto é, quanto à norma que estabelece a aplicação
Todavia, prevê-se:
cumulativa de duas ordens jurídicas para a determinação do conteúdo dos
– por um lado, a designação pelos interessados do direito aplicável ao conteúdo de valores mobiliários que confiram direito à subscrição, à aquisição ou à alienação
certos valores mobiliários (obrigações e outros valores mobiliários de outros valores mobiliários:
representativos de dívida); essa designação tem de ser feita no registo da emissão Tem-se em vista evitar o risco de que o direito conferido por certos valores
(artigo 40º, nº 1, parte final); mobiliários (ao abrigo da lei pessoal do respectivo emitente) não possa ser
– por outro lado, a aplicação cumulativa de duas ordens jurídicas quanto à efectivado perante a ordem jurídica reguladora dos valores mobiliários a cuja
subscrição, aquisição ou alienação os primeiros conferem direito.

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Trata-se por isso de uma regra de protecção, destinada a prevenir a eventual respectivamente, os artigos 106º, nº 2, e 343º, nº 3, do CVM).
impossibilidade de reconhecimento ou os obstáculos de efectivação de tais direitos. Isto é, a existência de um único depositário não impede uma efectiva dispersão física
dos lugares de situação dos valores mobiliários.
Procurando evitar os inconvenientes que podem decorrer de tal situação – a
4.4. O direito aplicável à transmissão de direitos e à constituição aleatoriedade e a dispersão na designação dos direitos competentes –, o Código
de garantias sobre valores mobiliários utilizou como critérios para concretizar o lugar da situação (jurídica) dos valores
mobiliários o estabelecimento da entidade gestora do sistema centralizado e o
estabelecimento do intermediário financeiro onde estão registados ou depositados os
I. A transmissão de direitos e a constituição de garantias sobre valores mobiliários
valores mobiliários (alíneas a) e b) do artigo 41º).
regem-se:
Na generalidade dos casos, a “localização jurídica” dos valores mobiliários que resulta
a) em relação a valores mobiliários integrados em sistema centralizado, pelo direito
destas normas coincidirá com a sua localização física ou material. Nos casos em que
do Estado onde se situa o estabelecimento da entidade gestora desse sistema
essa coincidência não exista, a solução adoptada privilegia a certeza na determinação
(artigo 41º, alínea a));
do direito competente. Ao mesmo tempo, dá preferência à aplicação de um direito
b) em relação a valores mobiliários registados ou depositados não integrados em único – o direito do Estado onde se localiza o estabelecimento do depositário.
sistema centralizado, pelo direito do Estado em que se situa o estabelecimento
Só em relação à transmissão de direitos e à constituição de garantias sobre valores
onde estão registados ou depositados os valores mobiliários (artigo 41º, alínea
mobiliários que não estejam integrados em sistema centralizado e que não estejam
b)).
registados nem depositados num único intermediário financeiro poderia, apesar de
Quanto à transmissão de direitos e à constituição de garantias sobre valores tudo, encarar-se a possibilidade de atribuir competência à lei do “lugar da situação”
mobiliários que não estejam integrados em sistema centralizado e que não estejam física ou material dos valores mobiliários. Porém, o Código entendeu que, neste caso,
registados nem depositados, é aplicável a lei pessoal do emitente (artigo 41º, alínea a ligação mais forte existe com a lei pessoal do emitente (alínea c) do artigo 41º); mais
c)). uma vez prosseguiu o objectivo da aplicação de um direito único.
II. Em matéria de determinação da ordem jurídica competente para reger a Os critérios utilizados na norma de conflitos em análise reflectem, até certo ponto, o
transmissão de direitos e a constituição de garantias sobre valores mobiliários, o CVM regime de direito material e os critérios consagrados no CVM em matéria de registo
inspirou-se na solução consagrada na norma de conflitos geral do Código Civil (artigos 61º a 64º).
português relativa aos “direitos sobre as coisas” – a norma do artigo 46º, nº 1, que
manda atender à lei do lugar da situação dos bens (lex rei sitae).
III. Não deixará todavia de mencionar-se um problema a que pode dar origem a
Mas reconheceu-se que o critério geral constante do Código Civil teria de ser
aplicação do artigo 41º, sobretudo da norma constante da alínea b). É que a norma de
adaptado à especificidade do “lugar da situação” dos valores mobiliários.
conflitos não fixa o momento relevante para a concretização da conexão.
Na verdade, o “lugar da situação”, no sentido de “localização física ou material” dos
Assim, nos casos em que a transmissão de direitos sobre valores mobiliários (ou a
valores mobiliários, não poderia ser utilizado, como tal, na designação da lei
constituição de garantias sobre valores mobiliários) seja – ou deva ser, nos termos do
competente para reger a questão da transmissão de direitos e a constituição de
concreto contrato celebrado – acompanhada de mudança da entidade registadora ou
garantias quando estivessem em causa valores mobiliários escriturais.
depositária, suscita-se a questão de saber qual o momento a que deve atender-se para
Por outro lado, mesmo em relação aos valores mobiliários titulados, optou-se por determinar o direito competente, isto é, para concretizar “o direito do Estado em que
considerar uma “localização jurídica” em vez da mera localização física ou material. se situa o estabelecimento onde estão registados ou depositados os valores mobiliários”:
Com efeito, sabe-se que quer a entidade gestora do sistema centralizado quer o – deve atender-se ao momento da celebração do contrato através do qual se
intermediário financeiro onde os valores mobiliários se encontram registados ou estipula a transmissão dos direitos sobre valores mobiliários (ou a constituição
depositados podem encarregar outrem da gestão ou da prestação de algum ou alguns de garantias sobre valores mobiliários)?
dos serviços resultantes do contrato (cfr., no direito material português,

64 65
– ou, pelo contrário, deve atender-se ao momento da efectiva transmissão dos 5. Determinação do direito aplicável aos contratos de
direitos sobre valores mobiliários? intermediação de valores mobiliários
– ou, ainda, deve atender-se ao momento em que é discutido e dirimido o litígio
entre as partes envolvidas?
I. O CVM não inclui normas de conflitos que definam uma disciplina geral aplicável
Tal como está construída, a norma pode dar origem a um problema de conflito aos contratos internacionais de intermediação de valores mobiliários.
móvel, ou de sucessão de estatutos, que o Código deveria ter resolvido de modo
A tipificação e a regulamentação material de tais contratos constam do Título VI
expresso, em nome da certeza e da segurança das transacções. Não o tendo feito, cabe
(intermediação), Capítulo II (contratos de intermediação) – artigos 321º a 345º.
ao intérprete determinar o momento relevante para a concretização da conexão, por
via da interpretação da norma em causa, tendo em conta a sua integração no sistema a
que pertence9. II. O CVM contém apenas uma disposição respeitante a contratos internacionais de
Numa primeira análise da questão, afigura-se-me que será de atender ao momento intermediação de valores mobiliários celebrados com investidores não institucionais.
em que é discutido e dirimido o litígio entre as partes envolvidas e, nesse sentido, será Nos termos dessa disposição – o artigo 321º, nº 3 –, admite-se, em certas
de considerar competente “o direito do Estado em que se situa o estabelecimento circunstâncias, a interferência do direito português na lei estrangeira normalmente
onde actualmente estão registados ou depositados os valores mobiliários”. Assim o competente, por razões de protecção da parte institucionalmente mais fraca11.
exige a certeza do direito e o interesse geral do comércio jurídico que se desenvolve no
Estado em que os valores mobiliários actualmente se encontram registados ou Desde que o contrato tenha sido celebrado com investidores não institucionais,
depositados. Esta solução, de natureza geral, não impede todavia que em certas residentes em Portugal, e desde que o contrato se destine à execução de operações em
circunstâncias seja necessário atender aos (ou tomar em consideração os) direitos Portugal, a aplicação do direito estrangeiro normalmente competente – isto é, do
constituídos sobre os valores mobiliários durante o período em que se encontravam direito designado pela norma de conflitos portuguesa relevante – não pode ter como
registados ou depositados em estabelecimento situado noutro Estado, ao abrigo da consequência privar o investidor da protecção assegurada pelas disposições do CVM
legislação desse Estado10. sobre contratos de intermediação (por exemplo, quanto ao regime dos contratos
celebrados fora do estabelecimento, artigo 322º, quanto às consequências da
inobservância da forma escrita, artigo 321º, nº 1, quanto à responsabilidade dos
intermediários financeiros perante os seus ordenadores, artigo 331º) e pelas
disposições do CVM sobre certos deveres dos intermediários financeiros em matéria
de informação, de conflito de interesses e de segregação patrimonial.
Daqui resulta que são aplicáveis as normas de protecção do direito português (do
CVM), se o direito estrangeiro aplicável for menos favorável ao investidor não
institucional.
Este regime constitui portanto o reflexo do carácter imperativo das disposições do
CVM sobre as matérias referidas. As normas internas de protecção da parte mais fraca
ficariam sem efeito prático no comércio internacional se pudessem ser livremente

MOURA RAMOS, Aspectos recentes do direito internacional privado português, Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, separata do nº especial “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues
Queiró”, 1987, p. 29 ss; A. MARQUES DOS SANTOS, Direito internacional privado. Sumários, Lisboa, 1987, reimp.,
1989, p. 251 ss; P. PAES DE VASCONCELOS, Estatuto pessoal das sociedades comerciais, “Estruturas jurídicas da
empresa”, Lisboa, 1989, p. 37 ss (p. 48 ss); L. LIMA PINHEIRO, O direito aplicável às sociedades, p. 756 ss. comercial e direito internacional privado”, Coimbra, 1989, p. 363 ss (p. 390 s).
9 10
Cfr., por todos, A. FERRER CORREIA, Conflitos de leis em matéria de direitos sobre as coisas corpóreas, “Temas de direito O novo estatuto aceita os valores mobiliários “com a condição jurídica que lhe foi dada pelo anterior”,

66 67
afastadas pela escolha de uma lei diferente ou se, nos termos das normas de conflitos contidas em duas convenções internacionais – a Convenção de Roma de 1980 sobre a
gerais, viesse a ser considerada competente uma ordem jurídica em que tal interesse Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (em vigor entre nós desde 1 de Setembro de
não fosse prosseguido12. 1994) e a Convenção de Haia de 1978 sobre a Lei Aplicável aos Contratos de
Garante-se deste modo nas relações internacionais um standard mínimo de protecção Intermediação e à Representação (em vigor entre nós desde 1 de Março de 1992).
da parte que o Código considerou como contratualmente mais fraca – o investidor Tendo em conta os princípios do direito constitucional português e as exigências
não institucional. constantes daquelas duas convenções internacionais, e considerando também a
natureza e o objecto dos contratos em causa, conclui-se que às normas de conflitos
dos artigos 41º e 42º do Código Civil se sobrepõem as normas sobre a determinação
III. Vejamos então como se determina o direito competente para reger a substância, o da ordem jurídica competente fixadas nas mesmas convenções13.
conteúdo ou os efeitos dos contratos internacionais de intermediação de valores
mobiliários. Ora, independentemente da conclusão a que se chegue quanto à questão da
coordenação entre as normas de conflitos da Convenção de Roma e as normas de
Excluídos os efeitos de constituição e transmissão de direitos sobre valores conflitos da Convenção de Haia sobre os Contratos de Intermediação14, e deixando
mobiliários, por força da consagração de uma norma de conflitos autónoma – a também de lado, neste momento, a discussão sobre o complexo problema da
norma do artigo 41º, já analisada –, trata-se de saber qual a lei reguladora dos efeitos determinação do sentido e alcance da reserva a que se refere o artigo 18º, alínea 1), da
obrigacionais, das obrigações que para as partes decorrem dos contratos Convenção de Haia 15, tem de concluir-se que a lei reguladora dos contratos
internacionais de intermediação de valores mobiliários. internacionais de intermediação de valores mobiliários é, antes de mais, a lei
As considerações que se seguem apresentam, de modo sintético, um critério geral, designada pelas partes.
susceptível de ser utilizado em relação a todos os tipos de contratos internacionais de É o que resulta do artigo 3º da Convenção de Roma ou do artigo 5º da Convenção de
intermediação. Haverá porventura que admitir especificidades quanto a certos tipos Haia.
contratuais, designadamente pelo que respeita à admissibilidade de interferência de
disposições do direito material português no direito estrangeiro normalmente Na falta dessa designação, é competente a lei do país onde se situa o estabelecimento
competente, mas tais especificidades não serão agora analisadas. principal do intermediário financeiro – porque se presume que é esse o país com o
qual o contrato apresenta a conexão mais estreita, em virtude de a prestação
Na falta de normas de conflitos especiais sobre a matéria, há que atender às normas característica do contrato ser fornecida pelo intermediário financeiro, que actua
gerais do sistema de direito internacional privado em vigor no ordenamento português. necessariamente no exercício da sua actividade profissional (artigo 4º, nºs 1 e 2, da
No actual sistema de direito internacional privado português, seriam, em teoria, Convenção de Roma), ou porque é essa a consequência da aplicação da regra de
convocáveis três grupos de normas de conflitos: as normas de conflitos de fonte
interna (constantes dos artigos 41º e 42º do Código Civil) e as normas de conflitos

transpondo-se, neste aspecto, a expressão utilizada por A. FERRER CORREIA, Conflitos de leis em matéria de direitos
sobre as coisas corpóreas, p. 394, 397. privadas internacionais. Estudos de direito internacional privado”, Coimbra, 1995, p. 197 ss (p. 213 ss); ID.,
Contratos internacionais e protecção da parte mais fraca no sistema jurídico português, “Contratos: actualidade e evolução. Actas
11 do Congresso Internacional organizado pelo Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa
Tendo em conta o objectivo de protecção que inspira esta norma, no seu âmbito não devem considerar-se de 28 a 30 de Novembro de 1991”, Porto, 1997, p. 330 ss (p. 345 ss); em sentido diferente, A. MARQUES
abrangidos os investidores não institucionais referidos no artigo 30º, nº 2, do CVM. DOS SANTOS, As normas de aplicação imediata no direito internacional privado. Esboço de uma teoria geral, Coimbra, 1991,
12 p. 903 s, e nota 2841.
A técnica jurídica utilizada é semelhante à que se encontra consagrada nas normas de conflitos dos artigos 5º e 13
6º da Convenção de Roma (relativas, respectivamente, aos contratos celebrados por consumidores e ao Sobre os efeitos da vigência na ordem jurídica portuguesa da Convenção de Roma e da Convenção de Haia
contrato individual de trabalho) e na norma do artigo 38º do Decreto-Lei nº 178/86, de 3 de Julho, quanto sobre os Contratos de Intermediação, cfr. MARIA HELENA BRITO, A representação nos contratos internacionais,
ao contrato de agência. Sobre o sentido e alcance de tais categorias de normas, no âmbito da protecção da p. 434 ss.
parte institucionalmente mais fraca, cfr.: R. MOURA RAMOS, Da lei aplicável ao contrato de trabalho internacional,
Coimbra, 1991, p. 753 ss; ID., La protection de la partie la plus faible en droit international privé (1991), “Das relações 14

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conflitos de conteúdo preciso constante da Convenção de Haia (artigo 6º, parágrafo 6. A consagração de normas de aplicação imediata e a
primeiro). salvaguarda de interesses fundamentais do direito
Sublinhe-se que a doutrina que tem comentado a Convenção de Roma afirma, de português em certas matérias
modo unânime, perante a norma do artigo 1º, nº 2, alínea c)16, que os contratos de
intermediação de valores mobiliários estão abrangidos no âmbito de aplicação dessa
I. Apesar da abertura revelada pelo CVM quanto à possibilidade de ser aplicado um
Convenção17. Diferentemente, os pouco numerosos comentários existentes sobre a
direito estrangeiro para reger matérias por ele abrangidas, relativamente a situações
Convenção de Haia procuram justificar, ao abrigo da reserva prevista no mencionado
plurilocalizadas, o Código admite, de modo expresso, no artigo 3º, a atribuição de
artigo 18º, alínea 1), da Convenção, a exclusão de tais contratos do respectivo âmbito
relevância a normas de aplicação imediata contidas na ordem jurídica portuguesa.
de aplicação18/19.
No seu teor literal, o artigo 3º refere-se às “normas imperativas do presente código”,
mas a teleologia do preceito, o texto da disposição considerado no seu conjunto e o
seu contexto permitem concluir que estão em causa as “normas internacionalmente
Para a discussão desta questão, cfr. MARIA HELENA BRITO, A representação nos contratos internacionais, p. 441 ss.
imperativas” contidas no CVM, que a doutrina identifica como “normas de aplicação
15
A norma que permite que qualquer Estado contratante, no momento da assinatura, aceitação, aprovação ou imediata” (aliás, a expressão utilizada na epígrafe do próprio artigo 3º).
adesão, se reserve o direito de não aplicar a Convenção “à representação exercida por um banco ou grupo de
bancos em matéria de operações de banco”. Portugal formulou essa reserva. Cfr. Aviso nº 239/97, Diário da As normas de aplicação imediata, cuja teorização na doutrina portuguesa se deve
República, I Série-A, nº 173, de 29.7.97, p. 3867 s. sobretudo aos estudos realizados pelo Professor Marques dos Santos20, são, numa
16 expressão necessariamente simplificada, normas imperativas que, pelo seu conteúdo,
A norma que exclui do âmbito de aplicação da Convenção “as obrigações decorrentes de letras, cheques, finalidade e posição que ocupam no ordenamento a que pertencem, reclamam aplicação
livranças, bem como de outros títulos negociáveis, na medida em que as obrigações surgidas desses outros
títulos resultem do seu carácter negociável”. mesmo nas situações internacionais sujeitas a um direito estrangeiro, desde que entre
17 essas situações e a ordem jurídica em que tais normas se inserem exista uma ligação
A conclusão fundamenta-se em que a exclusão do regime convencional, operada pelo artigo 1º, nº 2, alínea c), especial (ligação que, quando não é expressa, se deduz do conteúdo e função que as
diz respeito apenas às obrigações decorrentes do carácter negociável dos títulos, não abrangendo portanto os
contratos através dos quais os títulos são negociados. Cfr.: M. GIULIANO, P. LAGARDE, Rapport concernant la
normas em causa visam prosseguir).
convention sur la loi applicable aux obligations contractuelles, JO C 282, 30.10.80, p. 1 ss (p. 11); A. BONOMI, Il nuovo diritto
internazionale privato dei contratti: La Convenzione di Roma del 19 giugno 1980 è entrata in vigore, Banca, Borsa e Titoli di
As denominações mais frequentes (“normas de aplicação imediata” e “normas de
Credito, 1992, I, p. 36 ss (p. 76); T. BALLARINO, A. BONOMI, Sulla disciplina delle materie escluse dal campo di aplicação necessária”) pretendem reflectir as características que a tais normas se
applicazione della Convenzione di Roma, Rivista di diritto internazionale, 1993, p. 939 ss (p. 953 ss); T. BALLARINO, imputam: são normas de aplicação imediata, porque, afirma-se, a sua competência é
Diritto internazionale privato, 3ª ed., com a colaboração de A. BONOMI, Padova, 1999, p. 751; A. L. MALATESTA,
Considerazioni sull’ambito di applicazione della Convenzione di Roma del 1980: il caso dei titoli di credito, Rivista di diritto “imediata”, não depende da mediação das regras de conflitos; são normas de aplicação
internazionale privato e processuale, 1992, p. 887 ss (p. 896 s); R. PLENDER, The European Contracts Convention. necessária, porque, esclarece-se, a sua observância é “necessária” para a salvaguarda da
The Rome Convention on the Choice of Law for Contracts, London, 1991, p. 65. Na doutrina portuguesa: P. CÂMARA, A
oferta de valores mobiliários realizada através da Internet, p. 50 (admitindo a aplicação da Convenção aos contratos de organização política, social ou económica do Estado em cuja ordem jurídica se
intermediação envolvidos nas ofertas públicas de valores mobiliários realizadas através da Internet, inserem.
designadamente aos contratos de colocação); F. ALMEIDA PIRES, Emissão de valores mobiliários, p. 59; D. MOURA
VICENTE, Da responsabilidade pré-contratual em direito internacional privado, p. 754, nota (29). Trata-se de normas “materiais”, “espacialmente autolimitadas”, “dotadas de particular
18
I. G. F. KARSTEN, Rapport explicatif, Conférence de La Haye de Droit International Privé. Actes et documents
de la Treizième Session (4 au 23 Octobre 1976), tome IV - Contrats d’intermédiaires, La Haye, 1979, p. 378 ss
(p. 431); H. L. E. VERHAGEN, Agency in private international law. The Hague Convention on the law applicable to agency, The
Hague, Boston, London, 1995, p. 165.
19 pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, e Anexo, nº 7, e), da Segunda Directiva de Coordenação
A questão da inclusão ou não no âmbito da Convenção de Haia dos contratos internacionais de intermediação Bancária – Directiva (CEE) nº 89/646, do Conselho, de 15 de Dezembro de 1989, JOCE nº L 386, de
de valores mobiliários merece uma análise cuidada – apesar da sua escassa importância prática, dado o 30.12.1989, p. 1), ficam necessariamente abrangidos no âmbito da reserva – e por isso excluídos das regras da
paralelismo de soluções a que conduzem as Convenções de Roma e de Haia. Numa primeira apreciação do Convenção de Haia – os contratos de intermediação de valores mobiliários em que sejam intermediários os
problema, parece impor-se a conclusão de que a formulação pelo Estado Português da reserva prevista no bancos. Perante esta conclusão, afigura-se razoável sustentar que devem igualmente ficar excluídos do regime
artigo 18º, alínea 1), tem por efeito a exclusão de tais contratos do âmbito de aplicação da Convenção de Haia. da Convenção de Haia os contratos de intermediação de valores mobiliários em que intervenham outros
Na verdade, sendo as operações sobre valores mobiliários consideradas “operações de banco” (cfr. artigo 4º, intermediários financeiros, que não sejam bancos.
nº 1, alínea e), parte final, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado

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intensidade valorativa”21. b) as actividades desenvolvidas e os actos realizados em Portugal;
Existem normas de aplicação imediata no domínio do direito dos contratos (contrato c) a difusão de informações acessíveis em Portugal que digam respeito a situações, a
de trabalho, contrato de agência); encontram-se também normas desta natureza que actividades ou a actos regulados pelo direito português.
têm como objectivo a protecção, entre outros valores, da saúde e do ambiente, de bens
culturais ou de produtos de alta tecnologia. Surgem sobretudo no direito da III. No sistema do CVM, podem considerar-se normas de aplicação imediata, por
economia, desde o direito da concorrência ao direito monetário e financeiro. Agora, exemplo:
na ordem jurídica portuguesa, é reconhecida a sua relevância, de modo muito nítido,
no direito dos valores mobiliários. – as normas do direito português relativas às ofertas públicas (os artigos 108º e
seguintes do CVM e os regulamentos que os complementam), no caso de ofertas
O Código dos Valores Mobiliários encara as normas de aplicação imediata inseridas públicas dirigidas especificamente a pessoas com residência ou estabelecimento em
no Código como uma excepção ao funcionamento normal do direito de conflitos, já Portugal: essas normas aplicam-se a tais ofertas, seja qual for a lei pessoal do
que determina que tais normas se aplicam às situações internacionais oferente ou do emitente e o direito aplicável aos valores mobiliários que são objecto
independentemente de qual seja, no caso, a ordem jurídica competente designada da oferta, e independentemente também do direito que seria competente para reger
pelas regras de conflitos do foro. a oferta – a conclusão decorre, desde logo, do artigo 108º, nº 1, do Código;
Ao consagrar esta técnica jurídica22, o CVM pretende portanto salvaguardar, no plano – as regras sobre exigibilidade e conteúdo do prospecto (artigos 134º a 144º), no caso
das relações internacionais, a aplicação do direito português e, por essa via, os interesses de ofertas públicas dirigidas especificamente a pessoas com residência ou
prosseguidos pelo Estado Português, no domínio da legislação sobre valores mobiliários. estabelecimento em Portugal: essas regras aplicam-se a tais ofertas, seja qual for o
direito aplicável aos valores mobiliários que são objecto da oferta, e
independentemente também do direito competente para reger a oferta;
II. O preceito do artigo 3º do CVM que permite atribuir relevância às normas de
aplicação imediata – a “regra de reconhecimento”, na expressão de Marques dos – as disposições relativas às operações a prazo (artigos 252º e seguintes), realizadas em
Santos23 – fixa as condições e os limites em que o órgão de aplicação do direito há-de bolsa em Portugal: essas regras aplicam-se a tais operações, seja qual for o direito
atribuir relevância a tais normas. aplicável aos valores mobiliários que são objecto da operação, e independentemente
também do direito que seria competente para reger a operação.
Exige-se que as situações, as actividades e os actos a que as normas se referem tenham
conexão relevante com o território português (no nº 1).
A norma procede à exemplificação de situações, actividades e actos que apresentam IV. Nos termos do artigo 3º do CVM, o efeito da atribuição de relevância às normas de
“conexão relevante com o território português” (nas três alíneas do nº 2). Assim, aplicação imediata consiste em dar-lhes prevalência sobre o direito estrangeiro
considera-se que têm essa conexão, designadamente: normalmente competente (o direito designado pelas normas de conflitos portuguesas),
já que o preceito determina que “as normas imperativas do presente código aplicam-se ...”
a) as ordens dirigidas a membros de mercados registados na CMVM e as operações
realizadas nesses mercados; Seguindo, também nesta matéria, o exemplo de convenções internacionais em vigor
em Portugal, observando a legislação que tem sido aprovada em diversos países, e
dando atenção às discussões doutrinárias, o legislador nacional construiu a regra de
20 reconhecimento das normas de aplicação imediata (o artigo 3º do CVM) de modo a
Cfr., como mais significativos: As normas de aplicação imediata no direito internacional privado. Esboço de uma teoria geral, cit.;
Les règles d’application immédiate dans le droit international privé portugais, “Droit international et droit communautaire. tornar claros, não só os pressupostos e os limites em que o órgão de aplicação do
Actes du Colloque, Paris, 5 et 6 Avril 1990”, Paris, 1991, p. 187 ss. direito há-
21 -de atribuir relevância a tais normas, como também o efeito decorrente da atribuição
Cfr.: A. MARQUES DOS SANTOS, As normas de aplicação imediata no direito internacional privado, p. 815 ss, 842 ss,
897 ss.
legislações nacionais sobre direito internacional privado. Distingue-se, por vezes, entre as normas de
22 aplicação imediata incluídas no direito do foro e as normas de aplicação imediata pertencentes ao direito de
Esta técnica jurídica tem sido utilizada nas mais recentes convenções internacionais de normas de conflitos (de um país estrangeiro, quer quanto aos pressupostos, quer quanto aos efeitos da relevância atribuída a umas e
entre as quais se referem, pela especial ligação com o tema agora tratado, a Convenção de Roma, no seu artigo outras. Cfr. a menção e a análise de alguns textos de direito positivo feita por A. MARQUES DOS SANTOS,
7º, e a Convenção de Haia sobre os Contratos de Intermediação, no seu artigo 16º) e nas mais recentes

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