Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Anda 2019 15 Muller
Anda 2019 15 Muller
www.portalanda.org.br
963
PROCURA-SE CRÍTICA INSTITUCIONAL NA DANÇA
CONTEMPORÂNEA
Cláudia Góes Müller (UFU/ UERJ)i
Entre o final dos anos 90 e início dos 2000, revela-se uma conjuntura
particular na dança contemporânea brasileira: uma quantidade expressiva de artistas
configura um cenário formado, em grande parte, pelos chamados artistas
independentes, muitos deles, originários de companhias e grupos de dança1. Novos
coletivos2, que se pretendiam agrupamentos de artistas organizados de forma não
hierárquica, também despontam no panorama da dança. O restrito circuito de dança
1
Micheline Torres, Denise Stutz, Marcela Levi e eu mesma, ex-integrantes da Lia Rodrigues Cia de
Danças; Cristian Duarte, ex-Cia.Nova Dança; Gustavo Ciríaco (ex-Cia. de dança Paula Nestorov),
Eduardo Fukushima (ex-Key Zetta e cia.), Tuca Pinheiro, Thembi Rosa, André Masseno, Michel
Groisman, entre tantos outros.
2
Alguns exemplos de coletivos atuantes na época: Couve-Flor (PR), Núcleo do Dirceu (PI), Dimenti, 964
Coletivo Quitanda, VAGAPARA (BA),Coletivo Cartográfico, Núcleo Tríade, Núcleo Artérias SP).
contemporânea no Brasil apresentou, nesse período, uma expansão percebida
através da multiplicação de espaços de formação (hoje existem 45 cursos de
graduação em universidades brasileiras), do incremento na produção, de um trânsito
maior entre artistas de distintas regiões do país. Diversos editais e subsídios para
projetos de circulação, manutenção de companhias ou de pesquisa entraram em
vigência nesse período: o Prêmio Klauss Vianna, idealizado pelo Ministério da
Cultura e ativo entre os anos 2006 e 2015, o programa de Fomento à Dança
promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o Programa de
Subvenção à Dança no Rio de Janeiro (1995-2005), o Fundo de Apoio à Dança –
FADA (2011 e 2012), da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, o Edital
de Montagem da Secretaria de Cultura do Estado no Rio de Janeiro (2008-2010),
entre outros. Dentre os editais e prêmios idealizados por instituições privadas,
destacou-se o programa Rumos Dança3, de abrangência nacional, que vigorou de
1999 a 2014, contemplando 136 participantes entre grupos e artistas. É evidente que
esses programas não foram suficientes para abarcar a produção de um país de
grandes proporções como o Brasil. No entanto, essas iniciativas constituíram (ou
ainda constituem, em alguns poucos casos) plataformas de impacto no incentivo de
projetos, na manutenção de artistas e grupos, na difusão de trabalhos artísticos, na
circulação de informações, na visibilidade e no fortalecimento do campo da dança.
Embora não constituam propriamente políticas públicas, esse conjunto de ações
promoveu alterações significativas no desenvolvimento desse campo, mesmo sem
nenhuma garantia de longevidade.
3
Esse programa desempenhou papel fundamental para dar visibilidade à dança produzida no Brasil.
Atuando em várias frentes, criou o primeiro banco de dados brasileiro sobre dança, disponibilizado no
site da instituição; possibilitou extensa convivência entre os artistas que participaram em cada uma 965
das suas cinco edições e difundiu informação através dos materiais produzidos (livros e DVDs).
passou a acumular tarefas relacionadas à produção de suas atividades e trabalhos
artísticos, combinando práticas corporais e processos de criação com contratos,
documentos, mapas de luz e equipamentos. Antes de assinar a autoria de minhas
próprias criações, por exemplo, não sabia exatamente o que esperar do contato
direto com as instituições. Entre a necessidade de se estabelecer como pessoa
jurídica, colecionar comprovantes, preparar orçamentos, releases4 e riders técnicos5,
uma série de preocupações inéditas passou a me ocupar. Aquilo que parecia, à
primeira vista, mero acúmulo de funções burocráticas mostrou-me a importância de
uma compreensão mais abrangente sobre as relações entre obra, recepção e
instituições.
4
Nas artes cênicas, corresponde a um pequeno texto sobre um trabalho para inclusão no programa
de mão do evento e/ou para divulgação em geral.
5
Documento disponibilizado pelo artista, antes do momento de montagem, para especificar as
necessidades técnicas do seu trabalho. Nas artes cênicas, pode incluir: o tamanho e as
características do espaço cênico (sala, teatro italiano, teatro de arena, galeria, espaço urbano etc), os
equipamentos cênicos (ciclorama, rotunda, cortina…), o equipamento de iluminação (mesa,
refletores), o sistema de áudio, o sistema de vídeo, os camarins, a infraestrutura para carga e 966
descarga.
obra, na imagem que ela suscita dentro dos circuitos de comunicação”
(CAUQUELIN, 2005, p.81). A obra passa a ser percebida, então, como parte de uma
rede, transitória e em movimento, que relaciona elementos visíveis e invisíveis e tem
um papel essencial em sua definição. Musso6 (2004, p. 31), a partir das reflexões de
Saint Simon, Michel Serres, Henri Atlan e Anne Cauquelin7, define a rede como “...
uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja
variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento.”
6
Pierre Musso, professor de Ciências da Informação e da Comunicação nas Universidades Rennes II
e Paris Tech. é filósofo e doutor em ciências políticas.
7
Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, (1760-1825), foi um filósofo e economista francês.
Michel Serres (1930 - ) filósofo francês, leciona na Sorbonne e da Universidade de Stanford. Henri
Atlan (1931 - ), biólogo e filósofo francês, atua na na EHESS (École des Hautes Études en Sciences
Sociales). Anne Cauquelin é professora de filosofia da Universidade de Picardie – França.
8
Ricardo Basbaum é artista, crítico, curador e professor do Departamento de Artes da Universidade
Federal Fluminense e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ. 967
9
Ou, muitas vezes, entre a capital e as cidades do interior em um mesmo estado.
resistência e o atrito.
No entanto, o jogo não acaba aí. A arte também é capaz de instaurar novas
possibilidades, de esgarçar seus campos, procurando novos modos de existir. Entre
a rejeição e aceitação irrestrita dos projetos artísticos, há muitas nuances. Na
alternância entre as ondas de abertura e cooptação, há muito a explorar.
10
Ressalto que é problemático afirmar uma cooptação absoluta, já que isso apontaria para um estado 968
anterior “puro”.
É preciso observar que o trabalho artístico11 se reconfigura nas negociações
circunstanciais, construindo-se continuamente ao longo do seu percurso de
circulação. Há que se empreender uma travessia entre diversas camadas de
dispositivos, a cada nova apresentação, até seu encontro com o público. Faz-se
necessário negociar a existência da obra com instituições e agentes do circuito da
arte, voltados, em maior ou menor grau, à permanência e à estabilidade. Percebe-
se, consequentemente, uma defasagem entre as necessidades das obras e o grau
de flexibilidade das instituições. Entre a estrutura relativamente fixa da instituição e
os espaços que certas coreografias desejam ocupar, há sempre uma expectativa de
acordo transitório, na direção da mobilidade de uma ou de ambas as partes. À
instituição correspondem os desejos de manutenção, estrutura, contorno, regra,
organização. A ela caberá conter (abrigando e/ou limitando) os fluxos das obras que
clamam por mudança, flexibilidade e agilidade. Trata-se sempre de jogos mais
complexos que não se resumem à perfeita harmonia ou ao completo desajuste.
A artista e teórica Andrea Fraser, por sua vez, utiliza também o termo em um
texto de 1985, referindo-se a artistas como Broodthaers, Daniel Buren, Hans Haacke
e Michael Asher (que compõe o cânone da chamada primeira geração da Crítica
Institucional) para afirmar que “embora muito diferentes, todos esses artistas
estavam engajados na crítica institucional” (ainda que nenhum deles tenha
11
O uso de um termo tão amplo deve-se à necessidade de abarcar um conjunto diverso de práticas
que adotam múltiplas nomeações como: espetáculos, ações, performances, instalações 969
coreográficas, videoperformances, coreografias etc.
reivindicado para si esta classificação). Embora apresentassem poéticas muito
distintas, esses artistas mostravam-se engajados numa oposição direta às
instituições: as percebiam como espaços de circunscrição e, nas palavras de Robert
Smithson (1972), de “confinamento cultural”. Essa é a compreensão recorrente
quando se aborda essa primeira geração. Entretanto, Fraser (2008, p.181) a
complexifica em seu texto Da crítica às instituições a uma instituição da crítica:
[...] a ideia de que a crítica institucional opõe arte e instituição ou supõe que
as práticas artísticas radicais podem existir, ou algum dia existiram, fora da
instituição da arte antes de serem institucionalizadas pelos museus, é
desmentida ponto a ponto pelos escritos e trabalhos de Asher, Broodthaers,
Buren e Haacke.
Fraser, uma das mais importantes expoentes desse momento, assinala que
uma mera oposição não é capaz de definir a Crítica Institucional, já que a instituição
também abarca todos os participantes dessa rede, inclusive (ou sobretudo?) o
artista. Trabalhos da Andrea Fraser. Ao que Asher (apud FRASER, 2008, p. 184)
acrescenta: “A instituição da arte não é algo externo a qualquer trabalho de arte,
mas a condição irredutível de sua existência como arte.” A famosa frase de Fraser
(2008, p. 187) poderia resumir suas análises: “Nós somos a instituição”.
12
As relações entre museu e ateliê são examinadas criticamente nos textos de Buren (1970 e 1971) e
na idealização, por Broodthaers, do emblemático Musée d’Art Moderne d’Épartement des Aigles -
museu fictício inaugurado em seu próprio ateliê em Bruxelas em 1968 e que funcionou de forma 970
itinerante até 1972.
As Práticas Instituintes, fase mais recente da Crítica Institucional, apostam
nas possibilidades de diversas formas de crítica: social, institucional e autocrítica
(RAUNIG, 2006). Ampliando seus horizontes, essa geração abarca outros terrenos
institucionais: as práticas políticas, os movimentos sociais, o ativismo, a economia.
Suas práticas envolvem ações que atravessam transversalmente diversos campos
de conhecimento, como enfatiza Raunig (2006):
971
13
SHEIKH, 2006.
do cinema, da música, das artes visuais etc14. Os profissionais de dança circulam
em ambientes específicos e suas trajetórias muitas vezes delimitam sua participação
em festivais e programações do próprio meio. Os programas de graduação
constituem ambientes separados das outras artes. A formação em dança (nos
contextos informal ou acadêmico) não privilegia um debate que envolva a inserção
do trabalho no contexto profissional, ignorando (ou evitando) palavras como crítica,
instituição, circuito, contrato, orçamento, cachê, produção, negociação.
O pequeno texto de Sonia Sobral15 citado acima foi uma das raras referências
que encontrei em português sobre a relação artista e instituição na dança. Estudos
que se aproximam dessas questões aparecem também em publicações e pesquisas
de Núcleo Tríade (2008), Isaura Tupiniquim (2014) e Ivana Menna Barreto (2017).
O Núcleo Tríade (Mariana Vaz, Adriana Macul e Laura Bruno), de São Paulo,
realizou em 2008 o projeto “Bichos da Seda Deslocados?”16- uma pesquisa sobre as
condições de trabalho dos artistas da dança (diretores, coreógrafos, dançarinos) na
cidade de São Paulo. Entrevistaram cerca de uma dezena de profissionais da dança,
entre diretores de companhias, criadores que trabalham em grupo, “artistas-solo” e
intérpretes. Buscavam responder à pergunta: Quais as condições de produção e de
sobrevivência dos artistas atuantes na dança residentes na cidade de São Paulo?
14
Inúmeras diferenças podem ser observadas no formato e nas características dos editais, nos
modos de visibilidade e inserção dos trabalhos, na remuneração, nos espaços físicos destinados às
obras, entre outros aspectos.
15
Sonia Sobral, pesquisadora e curadora em dança, é, atualmente, responsável pela programação da
área no Centro Cultural São Paulo. Foi gerente do núcleo de artes cênicas do Instituto Itaú Cultural de
1999 a 2015. 972
16
Mais informações em http://triade-bichosdasedadeslocados.blogspot.com/
hermetismo que tende a aniquilar a heterogeneidade das propostas artísticas e a
produzir uma anestesia crítica.
17
Pesquisa de doutorado em andamento no programa de Pós-Graduação em Artes na UERJ sob 973
orientação de Ricardo Basbaum e coorientação de Daniella de Aguiar.
pouca, meu pirão primeiro18”.
Os artesãos, diz Platão, não podem participar das coisas comuns porque
eles não têm tempo para se dedicar a outra coisa que não seja o seu
trabalho. Eles não podem estar em outro lugar porque o trabalho não
espera. A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em
função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se
exerce. (RANCIÈRE, 2005, p. 16)
Longe de examinar detidamente essas questões20, este artigo apenas aponta para
as possibilidades da Crítica Institucional na ativação do terreno da dança
contemporânea no que diz respeito a suas posições éticas e políticas no contato
com seu rarefeito circuito. Respeitando as necessidades e critérios de cada artista,
torço para que a declaração a seguir não resuma nossas perspectivas: -É preciso
negociar. Para sobreviver não é possível apenas dizer não21.
Referências
MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. IN: PARENTE, André. Tramas da rede: novas
dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina,
2004.
i
Cláudia Góes Müller é artista com projetos desenvolvidos em dança e performance. Investiga as
poéticas e políticas do encontro, as margens dos espaços tradicionalmente destinados à arte e a
crítica institucional. Doutoranda e Mestre em Artes pela UERJ. Docente do curso de dança da
Universidade Federal de Uberlândia. contato@claudiamuller.com
975