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Para citar esse documento:

MÜLLER, Cláudia Góes. Procura-se crítica institucional na dança contemporânea.


Anais do VI Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Salvador: ANDA,
2019. p. 964-975.

www.portalanda.org.br

963
PROCURA-SE CRÍTICA INSTITUCIONAL NA DANÇA
CONTEMPORÂNEA
Cláudia Góes Müller (UFU/ UERJ)i

RESUMO: Considerando a intensa e plural produção de dança contemporânea no


Brasil, bem como a expansão das pesquisas nos últimos 20 anos, causa
estranhamento a quase ausência de discussões e pesquisas referentes às relações
entre artistas, suas produções e as instituições que abrigam trabalhos de dança
contemporânea. As diferentes possibilidades de associação, as fricções e/ou
embates entre artistas e instituições foram amplamente discutidos no campo das
artes visuais, a partir dos anos 1960, por artistas, pesquisadores, teóricos, curadores
das chamadas três gerações da Crítica Institucional. Na dança, raras são as
menções ao tema, seja na produção teórica ou como objeto de discussão em
programações culturais ou no contexto acadêmico. Busco, neste artigo, conjecturar
como a força da Crítica Institucional pode ativar o terreno da dança contemporânea
no que diz respeito a suas posições éticas e políticas no contato com seu rarefeito
circuito.

PALAVRAS-CHAVE: Dança Contemporânea. Instituição. Crítica Institucional.

ABSTRACT: Considering the fervent and diverse contemporary dance production in


Brazil, as well as research growth in the last 20 years, it seems odd that there are
almost no researchs or debate on the relationship between artists, their productions
and the institutions funding and housing them. The association possibilities, the
frictions and conflicts between artists and institutions were widely discussed in the
visual arts, since the 1960s, by artists, researchers, theorists, curators from the so-
called three generations of Institutional Critique. In the dance field, this subject is
scarcely referred to, either in theoretical works or as academic discussion, both in
cultural programs and within the academic context. In this article, I investigate how
Institutional Critique may spark the contemporary dance field, as to its ethical and
political views in contact with its pale circuit.

KEYWORDS: Contemporary Dance. Institution. Institutional Critique.

Entre o final dos anos 90 e início dos 2000, revela-se uma conjuntura
particular na dança contemporânea brasileira: uma quantidade expressiva de artistas
configura um cenário formado, em grande parte, pelos chamados artistas
independentes, muitos deles, originários de companhias e grupos de dança1. Novos
coletivos2, que se pretendiam agrupamentos de artistas organizados de forma não
hierárquica, também despontam no panorama da dança. O restrito circuito de dança
1
Micheline Torres, Denise Stutz, Marcela Levi e eu mesma, ex-integrantes da Lia Rodrigues Cia de
Danças; Cristian Duarte, ex-Cia.Nova Dança; Gustavo Ciríaco (ex-Cia. de dança Paula Nestorov),
Eduardo Fukushima (ex-Key Zetta e cia.), Tuca Pinheiro, Thembi Rosa, André Masseno, Michel
Groisman, entre tantos outros.
2
Alguns exemplos de coletivos atuantes na época: Couve-Flor (PR), Núcleo do Dirceu (PI), Dimenti, 964
Coletivo Quitanda, VAGAPARA (BA),Coletivo Cartográfico, Núcleo Tríade, Núcleo Artérias SP).
contemporânea no Brasil apresentou, nesse período, uma expansão percebida
através da multiplicação de espaços de formação (hoje existem 45 cursos de
graduação em universidades brasileiras), do incremento na produção, de um trânsito
maior entre artistas de distintas regiões do país. Diversos editais e subsídios para
projetos de circulação, manutenção de companhias ou de pesquisa entraram em
vigência nesse período: o Prêmio Klauss Vianna, idealizado pelo Ministério da
Cultura e ativo entre os anos 2006 e 2015, o programa de Fomento à Dança
promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o Programa de
Subvenção à Dança no Rio de Janeiro (1995-2005), o Fundo de Apoio à Dança –
FADA (2011 e 2012), da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, o Edital
de Montagem da Secretaria de Cultura do Estado no Rio de Janeiro (2008-2010),
entre outros. Dentre os editais e prêmios idealizados por instituições privadas,
destacou-se o programa Rumos Dança3, de abrangência nacional, que vigorou de
1999 a 2014, contemplando 136 participantes entre grupos e artistas. É evidente que
esses programas não foram suficientes para abarcar a produção de um país de
grandes proporções como o Brasil. No entanto, essas iniciativas constituíram (ou
ainda constituem, em alguns poucos casos) plataformas de impacto no incentivo de
projetos, na manutenção de artistas e grupos, na difusão de trabalhos artísticos, na
circulação de informações, na visibilidade e no fortalecimento do campo da dança.
Embora não constituam propriamente políticas públicas, esse conjunto de ações
promoveu alterações significativas no desenvolvimento desse campo, mesmo sem
nenhuma garantia de longevidade.

Como parte dessa geração de novos artistas independentes, me deparo,


desde o final dos anos 1990, com novas questões a lidar. Da sala de ensaio, dos
ambientes de criação e dos espaços de apresentação, passo ao computador, às
planilhas, aos e-mails e às conversas com curadores, produtores e equipes de
espaços culturais e festivais. É fato que alguns artistas, grupos e companhias de
dança já lidavam com essas demandas. No entanto, o incremento das possibilidades
de atuação dos artistas independentes e coletivos estimulou a criação de novos
contextos. Essa geração de profissionais, que antes atuava sobretudo nos palcos,

3
Esse programa desempenhou papel fundamental para dar visibilidade à dança produzida no Brasil.
Atuando em várias frentes, criou o primeiro banco de dados brasileiro sobre dança, disponibilizado no
site da instituição; possibilitou extensa convivência entre os artistas que participaram em cada uma 965
das suas cinco edições e difundiu informação através dos materiais produzidos (livros e DVDs).
passou a acumular tarefas relacionadas à produção de suas atividades e trabalhos
artísticos, combinando práticas corporais e processos de criação com contratos,
documentos, mapas de luz e equipamentos. Antes de assinar a autoria de minhas
próprias criações, por exemplo, não sabia exatamente o que esperar do contato
direto com as instituições. Entre a necessidade de se estabelecer como pessoa
jurídica, colecionar comprovantes, preparar orçamentos, releases4 e riders técnicos5,
uma série de preocupações inéditas passou a me ocupar. Aquilo que parecia, à
primeira vista, mero acúmulo de funções burocráticas mostrou-me a importância de
uma compreensão mais abrangente sobre as relações entre obra, recepção e
instituições.

Os meandros das negociações exigiram outras competências dessa nova


geração de artistas. Já não era possível prescindir de certas habilidades para atuar
na dança (e na arte) contemporânea: lucidez no diálogo sobre as especificidades
das obras (e suas necessidades - técnicas ou não), acuidade nos embates pelas
condições e contextos adequados de partilha dos trabalhos artísticos, perspicácia na
análise dos contratos etc. Por essa razão, tenho me demorado, nos últimos 15 anos,
na observação atenta de situações vividas por meus pares diante das instituições
que vêm acolhendo seus trabalhos. Como os profissionais da dança percebem as
relações entre o fazer artístico e o circuito? Como lidam com as instituições de arte?
Como se posicionam em relação às condições - variáveis a cada acordo ou contrato
- que estabelecem como uma peça de dança contemporânea chegará ao público?

Essas perguntas trazem à tona questões fundamentais para a arte


contemporânea. As reflexões sobre o circuito de arte ganharam relevância nos anos
1960 e 1970 a partir da prática dos chamados artistas conceituais. A consciência das
personagens e instâncias que atuam no circuito tornaram-se fundamentais para
compreender os mecanismos de produção de sentido de uma obra. Desde então,
“...a realidade da arte contemporânea se constrói fora das qualidades próprias da

4
Nas artes cênicas, corresponde a um pequeno texto sobre um trabalho para inclusão no programa
de mão do evento e/ou para divulgação em geral.
5
Documento disponibilizado pelo artista, antes do momento de montagem, para especificar as
necessidades técnicas do seu trabalho. Nas artes cênicas, pode incluir: o tamanho e as
características do espaço cênico (sala, teatro italiano, teatro de arena, galeria, espaço urbano etc), os
equipamentos cênicos (ciclorama, rotunda, cortina…), o equipamento de iluminação (mesa,
refletores), o sistema de áudio, o sistema de vídeo, os camarins, a infraestrutura para carga e 966
descarga.
obra, na imagem que ela suscita dentro dos circuitos de comunicação”
(CAUQUELIN, 2005, p.81). A obra passa a ser percebida, então, como parte de uma
rede, transitória e em movimento, que relaciona elementos visíveis e invisíveis e tem
um papel essencial em sua definição. Musso6 (2004, p. 31), a partir das reflexões de
Saint Simon, Michel Serres, Henri Atlan e Anne Cauquelin7, define a rede como “...
uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja
variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento.”

Basbaum8 (2013, p.112), em suas constantes reflexões sobre o circuito da


arte e o papel do artista na articulação dos âmbitos e da recepção do seu fazer,
sublinha que o

[...] sentido da obra é construído pelo modo de sua circulação, pelas


instituições, por onde essa obra passa, pelo trânsito que a obra consegue
construir nos seus deslocamentos, seja através do museu, da galeria, do
centro cultural, ou via colecionador, pela revista ou pela crítica.

A difusão da produção em dança no Brasil é bastante desigual. Além das


discrepâncias no que se refere à quantidade de festivais, espaços culturais e
possibilidades de financiamento entre as regiões9, há que se considerar que a
facilidade (ou dificuldade) de circulação não corresponde apenas às qualidades
artísticas de um trabalho. As expectativas das programações de espaços artísticos,
culturais e festivais (que, por vezes, ditam “tendências”), as especificidades – tipo de
espaço solicitado, quantidade de público sugerida, debates suscitados - e o lugar
que determinado artista ocupa (ou não consegue ocupar) no ranking da sua área
pesam enormemente no sucesso da empreitada. De forma geral, não são acordos
simples, resolvidos com um “sim ou não”. Certas fricções entre proposições e
instituições de arte, se não eliminam, dificultam a possibilidade de circulação de
alguns trabalhos, comprometendo suas negociações. Outras, no entanto, atendem
às demandas do próprio circuito, ansioso por instrumentalizar, inclusive, a

6
Pierre Musso, professor de Ciências da Informação e da Comunicação nas Universidades Rennes II
e Paris Tech. é filósofo e doutor em ciências políticas.
7
Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, (1760-1825), foi um filósofo e economista francês.
Michel Serres (1930 - ) filósofo francês, leciona na Sorbonne e da Universidade de Stanford. Henri
Atlan (1931 - ), biólogo e filósofo francês, atua na na EHESS (École des Hautes Études en Sciences
Sociales). Anne Cauquelin é professora de filosofia da Universidade de Picardie – França.
8
Ricardo Basbaum é artista, crítico, curador e professor do Departamento de Artes da Universidade
Federal Fluminense e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ. 967
9
Ou, muitas vezes, entre a capital e as cidades do interior em um mesmo estado.
resistência e o atrito.

É fato que as instituições de arte contemporânea já abraçam e, inclusive,


desejam incluir obras que apontem para algum desvio ou transgressão em suas
programações. Essas iniciativas atendem à necessidade de estarem sempre up to
date em relação aos temas atuais e às tendências do momento, o que não significa
que os artistas estarão livres para ocuparem os espaços institucionais com suas
subversões. Na maior parte das vezes, suas produções serão reguladas e, em
alguma medida, cooptadas10 por seus contextos de exibição.

O possível acolhimento de propostas artísticas “radicais” se explica pelo papel


que as atividades ligadas à criatividade e à cultura desempenham na economia do
neoliberalismo. Para Lazzarato e Negri (2001, p.25), pensadores imersos em
reflexões sobre o trabalho no pós-fordismo, é agora a “alma do trabalhador que
desce à fábrica”, sendo exploradas sua personalidade, sua criatividade, sua
capacidade inventiva, sua subjetividade. Ao que Rolnik (2006) acrescenta: “...é,
fundamentalmente, das forças subjetivas, especialmente as de conhecimento e
criação, que este regime se alimenta, a ponto de ter sido qualificado mais
recentemente como “capitalismo cognitivo” ou “cultural”. A criatividade está na ordem
do dia e, com isso, artistas, designers, publicitários e profissionais afins têm suas
atividades celebradas para serem, em seguida, apropriadas como meras
mercadorias para consumo.

Não há como ignorar o peso do contexto macro/neoliberal na inserção da


obra, do artista, do teatro, do festival, de uma programação artística. E é evidente
que as possibilidades e caminhos dos trabalhos artísticos vão sendo abertos de
acordo com o valor que possam agregar à instituição, ao patrocinador, ao apoiador
etc. Não se deve esperar inocuidade ou singeleza nas negociações.

No entanto, o jogo não acaba aí. A arte também é capaz de instaurar novas
possibilidades, de esgarçar seus campos, procurando novos modos de existir. Entre
a rejeição e aceitação irrestrita dos projetos artísticos, há muitas nuances. Na
alternância entre as ondas de abertura e cooptação, há muito a explorar.

10
Ressalto que é problemático afirmar uma cooptação absoluta, já que isso apontaria para um estado 968
anterior “puro”.
É preciso observar que o trabalho artístico11 se reconfigura nas negociações
circunstanciais, construindo-se continuamente ao longo do seu percurso de
circulação. Há que se empreender uma travessia entre diversas camadas de
dispositivos, a cada nova apresentação, até seu encontro com o público. Faz-se
necessário negociar a existência da obra com instituições e agentes do circuito da
arte, voltados, em maior ou menor grau, à permanência e à estabilidade. Percebe-
se, consequentemente, uma defasagem entre as necessidades das obras e o grau
de flexibilidade das instituições. Entre a estrutura relativamente fixa da instituição e
os espaços que certas coreografias desejam ocupar, há sempre uma expectativa de
acordo transitório, na direção da mobilidade de uma ou de ambas as partes. À
instituição correspondem os desejos de manutenção, estrutura, contorno, regra,
organização. A ela caberá conter (abrigando e/ou limitando) os fluxos das obras que
clamam por mudança, flexibilidade e agilidade. Trata-se sempre de jogos mais
complexos que não se resumem à perfeita harmonia ou ao completo desajuste.

Diante desses desafios, parece-me urgente evocar as chamadas três


gerações da Crítica Institucional (ou Práticas Instituintes) para nos ajudar a refletir
sobre as possibilidades e contribuições desse movimento nos dias atuais.

A origem do termo Crítica Institucional não é clara. Alguns autores apontam o


ensaio de Benjamin Buchloh Conceptual Art 1962-1969: from the aesthetics of
administration to institutional critique (publicado na revista October em 1989) como
responsável pela primeira aparição do termo.

Buchloh definiu a Crítica Institucional como as práticas, derivadas do


conceitualismo, interessadas em expor, problematizar e forjar mudanças nas
estruturas dos museus e galerias de arte.

A artista e teórica Andrea Fraser, por sua vez, utiliza também o termo em um
texto de 1985, referindo-se a artistas como Broodthaers, Daniel Buren, Hans Haacke
e Michael Asher (que compõe o cânone da chamada primeira geração da Crítica
Institucional) para afirmar que “embora muito diferentes, todos esses artistas
estavam engajados na crítica institucional” (ainda que nenhum deles tenha

11
O uso de um termo tão amplo deve-se à necessidade de abarcar um conjunto diverso de práticas
que adotam múltiplas nomeações como: espetáculos, ações, performances, instalações 969
coreográficas, videoperformances, coreografias etc.
reivindicado para si esta classificação). Embora apresentassem poéticas muito
distintas, esses artistas mostravam-se engajados numa oposição direta às
instituições: as percebiam como espaços de circunscrição e, nas palavras de Robert
Smithson (1972), de “confinamento cultural”. Essa é a compreensão recorrente
quando se aborda essa primeira geração. Entretanto, Fraser (2008, p.181) a
complexifica em seu texto Da crítica às instituições a uma instituição da crítica:

[...] a ideia de que a crítica institucional opõe arte e instituição ou supõe que
as práticas artísticas radicais podem existir, ou algum dia existiram, fora da
instituição da arte antes de serem institucionalizadas pelos museus, é
desmentida ponto a ponto pelos escritos e trabalhos de Asher, Broodthaers,
Buren e Haacke.

Artistas como Daniel Buren e Marcel Broodthaers, por exemplo, protagonizam


iniciativas para examinar tanto o museu quanto as práticas artísticas e os ateliês 12,
relacionando ambientes aparentemente antagônicos nos embates entre artistas e
instituições. Dessa forma, a divisão e a caracterização das diferentes gerações da
Crítica Institucional soa um tanto simplista e didática.

Apesar das contradições que emergem na avaliação do momento inicial da


Crítica Institucional, essa é a frase que ainda o resume para muitos teóricos: A
instituição é um problema.

Nos anos 1980 e 1990, o movimento amplia sua compreensão de instituição,


passando a abranger todos os âmbitos (além de museus e galerias) pelos quais
circula a produção e reflexão artística: publicações, ateliês, estúdios, congressos,
seminários, aulas, residências artísticas, escritórios, casas de colecionadores etc.

Fraser, uma das mais importantes expoentes desse momento, assinala que
uma mera oposição não é capaz de definir a Crítica Institucional, já que a instituição
também abarca todos os participantes dessa rede, inclusive (ou sobretudo?) o
artista. Trabalhos da Andrea Fraser. Ao que Asher (apud FRASER, 2008, p. 184)
acrescenta: “A instituição da arte não é algo externo a qualquer trabalho de arte,
mas a condição irredutível de sua existência como arte.” A famosa frase de Fraser
(2008, p. 187) poderia resumir suas análises: “Nós somos a instituição”.

12
As relações entre museu e ateliê são examinadas criticamente nos textos de Buren (1970 e 1971) e
na idealização, por Broodthaers, do emblemático Musée d’Art Moderne d’Épartement des Aigles -
museu fictício inaugurado em seu próprio ateliê em Bruxelas em 1968 e que funcionou de forma 970
itinerante até 1972.
As Práticas Instituintes, fase mais recente da Crítica Institucional, apostam
nas possibilidades de diversas formas de crítica: social, institucional e autocrítica
(RAUNIG, 2006). Ampliando seus horizontes, essa geração abarca outros terrenos
institucionais: as práticas políticas, os movimentos sociais, o ativismo, a economia.
Suas práticas envolvem ações que atravessam transversalmente diversos campos
de conhecimento, como enfatiza Raunig (2006):

A crítica institucional não deveria se fixar ao âmbito da arte nem a suas


regras fechadas, mas desenvolver-se mais amplamente junto às mudanças
sociais sobretudo encontrando e estabelecendo alianças com outras formas
de crítica dentro e fora do âmbito da arte.

Críticos ao movimento precedente, Raunig e Expósito, por exemplo, afirmam


o risco de impotência implícita na argumentação de Andrea Fraser: “Nós somos a
instituição”. Ao nos declararmos inteiramente capturados e autoconfinados no
sistema da arte, desabonamos quaisquer perspectivas de resistência e
reconfiguração do campo da arte em contato com as transformações sociais –
enfatizam em seus textos. Simon Sheikh contribui acrescentando que, ao
argumentar que a crítica institucional foi inteiramente cooptada, pressupõe-se a
existência de um movimento anterior em estado puro – argumentação facilmente
contestável.

As discussões atuais das Práticas Instituintes (que envolvem também


diretores e curadores de instituições artísticas) vêm argumentando mais a favor de
transformar (e não de destruir) as instituições. Como sua frase emblemática,
provavelmente adotariam: A instituição não é só um problema, é também a
solução!13

No entanto, entre os meios da dança e das artes visuais há diferenças


consideráveis no que diz respeito ao funcionamento do circuito, às instituições, ao
modo de circulação dos trabalhos, aos tipos de negociação, contratos e acordos; à
economia, ao mercado. Com formação em dança e atuante nesse circuito, observo,
a partir da minha experiência e em contato com parceiros e colegas, que as regras
do mesmo obedecem a uma lógica própria, não podendo ser igualadas às do teatro,

971
13
SHEIKH, 2006.
do cinema, da música, das artes visuais etc14. Os profissionais de dança circulam
em ambientes específicos e suas trajetórias muitas vezes delimitam sua participação
em festivais e programações do próprio meio. Os programas de graduação
constituem ambientes separados das outras artes. A formação em dança (nos
contextos informal ou acadêmico) não privilegia um debate que envolva a inserção
do trabalho no contexto profissional, ignorando (ou evitando) palavras como crítica,
instituição, circuito, contrato, orçamento, cachê, produção, negociação.

No fundo não há nada de novo, artistas sempre criaram e sempre criarão


obras críticas e instituições, via de regra, buscarão a estabilidade, a
preservação da memória e a democratização do acesso da sociedade à
arte. Por tudo isso as instituições tornam as relações mais duráveis, e um
território sólido é importante no atual estado de liquidez das relações
humanas. (SOBRAL, 2016)

O pequeno texto de Sonia Sobral15 citado acima foi uma das raras referências
que encontrei em português sobre a relação artista e instituição na dança. Estudos
que se aproximam dessas questões aparecem também em publicações e pesquisas
de Núcleo Tríade (2008), Isaura Tupiniquim (2014) e Ivana Menna Barreto (2017).

O Núcleo Tríade (Mariana Vaz, Adriana Macul e Laura Bruno), de São Paulo,
realizou em 2008 o projeto “Bichos da Seda Deslocados?”16- uma pesquisa sobre as
condições de trabalho dos artistas da dança (diretores, coreógrafos, dançarinos) na
cidade de São Paulo. Entrevistaram cerca de uma dezena de profissionais da dança,
entre diretores de companhias, criadores que trabalham em grupo, “artistas-solo” e
intérpretes. Buscavam responder à pergunta: Quais as condições de produção e de
sobrevivência dos artistas atuantes na dança residentes na cidade de São Paulo?

A dança contemporânea incorporou uma espécie de modelo no seu fazer,


entrando em diálogo quase que exclusivamente com uma rede formada por um
grupo específico de artistas, intelectuais e críticos – é o que observa Isaura
Tupiniquim no artigo “Dança contemporânea: entre a crise como potência
mobilizadora e a normatização das suas variações transgressoras”. A autora critica o

14
Inúmeras diferenças podem ser observadas no formato e nas características dos editais, nos
modos de visibilidade e inserção dos trabalhos, na remuneração, nos espaços físicos destinados às
obras, entre outros aspectos.
15
Sonia Sobral, pesquisadora e curadora em dança, é, atualmente, responsável pela programação da
área no Centro Cultural São Paulo. Foi gerente do núcleo de artes cênicas do Instituto Itaú Cultural de
1999 a 2015. 972
16
Mais informações em http://triade-bichosdasedadeslocados.blogspot.com/
hermetismo que tende a aniquilar a heterogeneidade das propostas artísticas e a
produzir uma anestesia crítica.

Em seu livro “Autoria em rede: modos de produção e implicações políticas”,


fruto de sua pesquisa de doutorado, Ivana Menna Barreto relaciona a criação
artística às instâncias institucionais, às demandas dos editais, dos programas de
fomento, aos patrocínios. Associando a autoria em dança ao contexto de sua
produção e aos acordos que possibilitam a gestação de um processo, Barreto (2017,
p.11) aponta as exigências para que o artista se insira no circuito:

[…] elaborar projetos formatados para editais específicos, cumprir prazos


para inscrição, desenvolvimento e realização, prevendo estreias, geralmente
com poucas apresentações (para abrir espaço aos novos trabalhos que
também precisam ser contemplados), veicular o nome e a logomarca das
instituições patrocinadoras.

Tendo em vista a carência de debates sobre Crítica Institucional em dança,


optei, em minha tese de doutorado17, por investigar a relação entre artistas, de
formação e atuação na dança contemporânea brasileira, seus trabalhos e as
instituições nesse âmbito específico. Considerando a efervescência da dança
contemporânea no Brasil nos últimos 30 anos, urge legitimá-la como campo de
pesquisa cuja singularidade requer reflexões e ferramentas teóricas próprias, o que
não elimina a articulação com outros saberes. Mais do que classificar ou encaixar os
trabalhos artísticos em categorias, pretendo compreender as especificidades do
circuito da dança, aproximando-me da realidade de seus trânsitos e negociações.

A ausência de discussões e pesquisas acerca dos contextos de difusão e dos


contratos (formais ou informais) e acordos (explícitos ou tácitos) com instituições que
abrigam obras de dança contemporânea pode refletir a apreensão dos seus
profissionais em meio à precariedade do circuito. A falta de perspectiva é detectada
pelo número escasso de festivais, eventos e instituições nacionais com atuação
duradoura. Artistas e grupos ligados à dança tendem a manifestar suas posições e
críticas apenas nas conversas informais entre os membros da classe, enquanto
criam um verdadeiro cardápio de trabalhos de custos e condições diversas. No
contexto atual, mais que desfavorável às artes, floresce a disputa desleal: “farinha

17
Pesquisa de doutorado em andamento no programa de Pós-Graduação em Artes na UERJ sob 973
orientação de Ricardo Basbaum e coorientação de Daniella de Aguiar.
pouca, meu pirão primeiro18”.

A Crítica Institucional, ao expor as engrenagens políticas e ideológicas das


instituições culturais, seus espaços19 e contextos (que não primam pela
neutralidade); problematiza suas estruturas e suas complexas relações com artistas
e trabalhos artísticos. Se parece desnecessário repetir que não há obra autônoma,
separada do seu contexto de visibilidade, por que essas questões não se destacam
no ambiente da dança? Talvez não seja, de fato, uma repetição tão desnecessária.
Ou haja, ainda, uma razão mais premente: Quem pode se ocupar dessas reflexões
diante dos recursos minguados e da geladeira vazia?

Os artesãos, diz Platão, não podem participar das coisas comuns porque
eles não têm tempo para se dedicar a outra coisa que não seja o seu
trabalho. Eles não podem estar em outro lugar porque o trabalho não
espera. A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em
função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se
exerce. (RANCIÈRE, 2005, p. 16)

Longe de examinar detidamente essas questões20, este artigo apenas aponta para
as possibilidades da Crítica Institucional na ativação do terreno da dança
contemporânea no que diz respeito a suas posições éticas e políticas no contato
com seu rarefeito circuito. Respeitando as necessidades e critérios de cada artista,
torço para que a declaração a seguir não resuma nossas perspectivas: -É preciso
negociar. Para sobreviver não é possível apenas dizer não21.

Referências

BARRETO, Ivana. Autoria em rede: modos de produção e implicações políticas. Rio


de Janeiro: 7 letras, 2017.

BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue


Editorial, 2013.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins,


2005.
18
Conhecido ditado popular.
19
Todos os ambientes, lugares e contextos destinados à arte: teatros, centros culturais, festivais,
publicações, ateliês, estúdios, universidades, congressos, seminários, aulas, residências artísticas,
escritórios de produção etc.
20
Essa problemática vem sendo extensamente explorada em minha pesquisa de doutorado ainda em
processo.
21
Depoimento de profissional da dança (mantido em anonimato) para o projeto “Bichos da seda 974
deslocados?” realizado pelo Núcleo Tríade.
FRASER, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica.
Concinnitas, Rio de Janeiro, v.9, n.13, p.178-87, dez. 2008.

LAZZARATO, Maurizio e NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e


produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. IN: PARENTE, André. Tramas da rede: novas
dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina,
2004.

RAUNIG, Gerald. Prácticas instituyentes: fugarse, instituir, transformar. Disponível


em: < http://eipcp.net/transversal/0106/raunig/es>. Acesso: 20 jun.2019.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2005.

ROLNIK, Suely. Geopolítica da Cafetinagem. Disponível em:


<http://eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt>. Acesso: 23 jun.2019.

SOBRAL, Sonia. Artista e instituição: uma parceria idealizada? s.l.: Portal


idança.net, 2016. Disponível em: <http://idanca.net/artista-e-instituicao-uma-parceria-
idealizada/>. Acesso: 23 jun. 2019.

TRÍADE. Bichos da seda deslocados? Disponível em: <https://triade-


bichosdasedadeslocados.blogspot.com/>. Acesso: 10 fev. 2019.

i
Cláudia Góes Müller é artista com projetos desenvolvidos em dança e performance. Investiga as
poéticas e políticas do encontro, as margens dos espaços tradicionalmente destinados à arte e a
crítica institucional. Doutoranda e Mestre em Artes pela UERJ. Docente do curso de dança da
Universidade Federal de Uberlândia. contato@claudiamuller.com

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