Você está na página 1de 8

Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.

org> © Ciências & Cognição


Submetido em 15/06/2007 | Revisado em 27/07/2007 | Aceito em 30/07/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de julho de 2007

Ensaio

Do plausível ao provável: um breve ensaio histórico


From plausible to probable: a short historical essay

Evaldo Araújo de Oliveiraa,  e Vicente Pereira de Barrosb


a
Instituto de Astronomia e Geofísica e Ciências Atmosféricas, Universidade de São Paulo (USP),
São Paulo, São Paulo, Brasil; bInstituto de Física, USP, São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo

Neste trabalho apresentamos um breve ensaio sobre o desenvolvimento do conceito de probabilidades,


enfatizando sua natureza subjetiva. Relatamos a ligação entre as contribuições de Filósofos e
Matemáticos na elaboração dos conceitos pertinentes da Teoria das Probabilidades e Estatística.
Entendemos que a procura da pergunta que motivou estas pessoas a se debruçarem sobre este tema, ou
seja “Como o raciocínio humano funciona?”, nos ajuda a entender melhor o próprio conceito de
probabilidade na forma atualmente apresentado nas maiorias dos cursos de graduação em ciências
(Biologia, Física, Química, ...) de nossas universidades, bem como a manuseá-lo (aplicar). © Ciências
& Cognição 2007; Vol. 11: 184-191.

Palavras-chave: probabilidade subjetiva; ensino; história da ciência.

Abstract

In this paper we present a brief essay on the development of the concept of probabilities, emphasizing
its subjective nature. We present links between the contributions of Philosophers and Mathematicians
in the elaboration of the pertinent concepts of the theory of the probabilities and statistics. We
understand that the search of the question that motivated these people to lean over this subject, in
other words ``How works the human reasoning?``, helps to get better understand on the concept of
probability as is presented in almost courses of graduation in science (Biology, Physics, Chemistry,
...) of our universities, as well as handling it (to apply). © Ciências & Cognição 2007; Vol. 11: 184-
191.

Keywords: subjective probability; teaching; history of science.

1. Introdução inúmeras vezes com conceitos envolvendo


probabilidades e estatística durante os seus
No ensino superior brasileiro, de estudos, normalmente nas aulas de laboratório
forma geral, o estudante de ciências se depara para tratar dados experimentais ou em cursos

 - E.A. de Oliveira é Doutor em Ciências (Instituto de Física - USP) e pesquisador do Instituto de Astronomia,
Geofísica e Ciências Atmosféricas (USP) vinculado ao projeto FAPESP “Classificação de sistemas precipitantes por
meio de sensoriamento remoto e redes neurais artificiais” (05/60141-0). Atualmente colabora como revisor na revista
Journal of Physics A, Mathematical and General. E-mail para correspondência: evaldo@model.iag.usp.br; V.P.
Barros é Mestre em Ciências (Instituto de Física – USP) e Doutorando pelo mesmo Instituto.

184
Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

sobre física quântica, aprendizagem computa- porta ``tem probabilidade'' igual a 1/3, então
cional e epidemiologia. Muitas áreas possuem ele poderia pensar que restou 2/3 para a
cursos de graduação com disciplinas de pro- segunda porta?
babilidade e estatística, no entanto, não Se entendermos que a probabilidade é
abordam a perspectiva bayesiana. uma característica intrínseca do objeto
Iniciaremos este ensaio com o analisado, então a resposta a última pergunta
exemplo do ensino de Física, dentro ensino está longe de ser óbvia.
superior Federal1 algumas poucas universi- Em nosso entender, tais dificuldades
dades apresentam um curso introdutório de residem na falta de esclarecimento sobre o
estatística durante a graduação, mas a maioria conceito de probabilidades que pode ser
não apresenta tais conceitos de forma trabalhada por meio da questão: A princípio,
sistematizada. Desta forma, há um consenso o que se procurava quando a Teoria das
dentre os alunos que este tema é apresentado Probabilidades foi se estruturando?
de maneira deficiente durante a formação Poderíamos começar a pensar em
básica dos físicos. termos da previsão de eventos aleatórios, ou
Este problema já é percebido interna- até certo ponto do futuro, como comumente é
cionalmente no ensino de Física (D'Agostini, ensinado (Dantas, 2000). No entanto, uma
1999) D'Agostini argumenta que a principal análise histórica pode nos surpreender.
razão desta insatisfação por parte dos alunos Mostramos neste artigo que apesar de
na compreensão da estatística e de suas alguns documentos antigos indicarem uma
aplicações é a exposição do conceito de origem das probabilidades na previsão em
probabilidades que não é apresentado com o jogos de azar, sem duvida tal idéia teve sua
devido cuidado. Em seu artigo D'Agostini maior motivação na modelagem matemática
mostra o conceito de probabilidade em termos da forma como a mente humana pensa e toma
da probabilidade subjetiva na qual a teoria decisões. Nesta busca, naturalmente a Teoria
bayesiana é baseada, enfatizando que a idéia das Probabilidades e a estatística surgiram e
de probabilidade como um grau de crença se consolidaram.
sobre a realização de um dado evento não nos O nosso objetivo nesse trabalho não é
leva necessariamente a acreditarmos no que apresentar uma prova da validade da Teoria
quisermos independente dos dados Bayesiana, uma vez que existem vários
fornecidos. trabalhos que o fazem com rigor e clareza
Além das tentativas de se definir a (Cox, 1946; Jaynes, 1988; Bernado, 2000;
probabilidade como limite de freqüências Jaynes, 2003). Desejamos apenas apresentar
relativas não terem sido bem sucedidas mais informações sobre o desenvolvimento do
(Dantas, 2000), o ensino predominante de tal conceito de probabilidades e sua relação com
interpretação gera algumas dificuldades para a modelagem matemática do raciocínio
o manuseio das probabilidades, principal- humano, com o intuito de motivar uma
mente em modelagens. Como um simples exposição mais ampla e intuitiva da Teoria
exemplo, considere o caso de um programa de das Probabilidades nos cursos de graduação.
auditório onde o jogador tem que descobrir O artigo se organiza da seguinte
em que porta está guardado seu prêmio em maneira: na segunda seção apresentamos o
apenas uma tentativa. Se existirem três portas, desenvolvimento da idéia de modelar o
normalmente afirma-se que cada porta ``tem pensamento humano matematicamente, na
probabilidade'' igual a um terço (0,333...%) de seção seguinte apresentamos o surgimento da
conter o prêmio. No entanto, suponha que o sistematização matemática para a Teoria das
jogador tenha escolhido a primeira porta e, Probabilidades, evidenciando alguns trabalhos
para aumentar o suspense, o apresentador recentes sobre a mente humana por meio da
tenha aberto em seguida a terceira porta que Teoria Bayesiana e, por fim, concluímos
apresentou-se vazia. Qual porta o jogador nossa apresentação com uma sugestão para a
deveria escolher? Uma vez que a primeira introdução da Teoria das Probabilidades nos

185
Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

cursos de graduação em ciências visando importante do homem, detentor do seu cerne.


ampliar e facilitar o uso da mesma pelos Veja por exemplo a excelente declaração feita
estudantes. por Hipócrates (460-379 a.C.), onde ele exalta
a função do cérebro no homem (Finger, 1994:
2. O desenvolvimento da idéia 13):

A busca pela compreensão do “Deveria ser sabido que ele é a fonte do


funcionamento da mente humana é quase tão nosso prazer, alegria, riso e diversão,
antiga quanto a própria história da assim como nosso pesar, dor, ansiedade
humanidade, tanto no sentido de alma, e lágrimas, e nenhum outro que não o
pensamento e emoções2, quanto em relação a cérebro. É especificamente o órgão que
partes do corpo humano que estariam direta- nos habilita a pensar, ver e ouvir, a
mente relacionados as tais, como a sede do distinguir o feio do belo, o mau do bom,
ser. o prazer do desprazer. É o cérebro
Embora hoje seja bem conhecido que também a sede da loucura e do delírio,
o cérebro é o órgão pelo qual podemos dizer dos medos e sustos que nos tomam,
que a mente age, nem sempre acreditou-se muitas vezes à noite, mas às vezes
nisso. Por exemplo, os antigos egípcios criam também de dia; é onde jaz a causa da
que o coração era o cerne do homem, a insônia e do sonambulismo, dos
essência da vida, bem como a fonte do bem pensamentos que não ocorrerão, deveres
ou mal. Tal pensamento era bastante popular esquecidos e excentricidades.”
na antiguidade e até defendido por grandes
nomes da ciência antiga. No entanto, é Hipócrates
necessário esclarecer que provavelmente a
palavra “coração” tenha sido anterior à desço- Como pode ser visto tal declaração é
berta do próprio órgão chamado coração (o bem condizente, ou próxima, dos atributos do
coração físico) e referia-se a algo da essência cérebro conhecidos hoje. No entanto, ainda
interna do homem (intelecto, vontade e havia resistências à retirada do coração como
emoções). Como o coração físico é um órgão cerne, mesmo tendo a defesa de homens
vital para a vida do homem, é perfeitamente renomados. No quarto século a.C., Aristóteles
compreensível que tenha sido apelidado por contrariava tal idéia dizendo que o órgão dos
coração. O que afirmamos no início do pensamentos e emoções era o coração e que o
parágrafo é que em várias sociedades, entre cérebro era meramente um radiador designado
estas a egípcia, realmente se acreditava que o para esfriar o coração, embora também
coração físico era a moradia da essência do afirmasse que o órgão do pensamento não era
homem. a base para o pensamento, pois tal base era
A mudança do coração para o cérebro imaterial e, portanto, não poderia ser encon-
como o cerne do homem provavelmente trado em nenhum lugar do corpo humano.
começou no quinto século a.C.. Por volta de Durante os séculos seguintes foram-se
450 a.C., um médico grego, conhecido por acumulando conhecimentos a respeito do co-
Alcmaneon de Crotona, baseando-se em seus ração e do cérebro e a resistência ao cérebro,
conhecimentos sobre anatomia animal, sendo o cerne do homem, foi caindo
concluiu que era o cérebro a sede dos lentamente.
pensamentos e emoções e não o coração. No quarto século d.C., Nemésio, bispo
Ainda no mesmo século outros homens de Emesia, relatou em seu livro Da natureza
(Demócrito, Diógenes, Platão e Teófrasto) do homem que a alma não tinha uma sede,
atribuíam ao cérebro o comando das ativi- mas as funções da mente sim. Para tanto,
dades corporais, de maneira que cada vez entraram em ação os ventrículos cerebrais que
mais não só se dava atenção ao cérebro como seriam os responsáveis pelas operações
se colocava na posição de órgão mais mentais, desde a sensação até a memorização.

186
Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Estes recebiam as informações vindas dos conseqüência notável dessa melhoria foi a
órgãos sensitivos e ali acontecia a análise descrição das primeiras células neurais,
sensorial. As imagens formadas eram levadas ocorrendo esta na década seguinte à
ao ventrículo médio, sede da razão, do construção do primeiro microscópio acro-
pensamento e do juízo. Depois entrava em mático. Em conseqüência, os cientistas
ação o último ventrículo, sede da memória. ficaram maravilhados com a rede fina e
Tais ventrículos eram associados a canais por extremamente complexa de processos
onde circulavam espíritos e assim realizavam filamentares que parecia tomar por completo
as funções do cérebro. Com isso, mais uma o sistema nervoso. Qual seria a função desses
vez se diferenciava a alma do raciocínio do processos filamentares? Teria realmente
homem. alguma relação com o raciocínio (isto quer
A idéia de espírito nos ventrículos dizer, a rede de filamentos interna ao
permaneceu por muito tempo e em meados do cérebro.)? Apesar dos cientistas não terem
século XVII d.C., Descartes, filósofo e imediatamente tais respostas, eles tinham
matemático francês, propôs a idéia que o certeza da importância de tal rede para a
cérebro funcionava como uma máquina. Ele compreensão do funcionamento do cérebro.
dizia que os nervos do homem eram cheios de Finalmente, em 1863, Otto Deiters obteve
espíritos de animais que levavam informações imagens claras e completas sobre os
motoras e sensoriais para os ventrículos do neurônios, isolando-os sob o microscópio.
cérebro, à semelhança dos fluidos hidráulicos Daí surgiu o conhecimento da divisão
numa máquina. Assim, Descartes descreveu o estrutural do neurônio: soma (corpo celular),
cérebro como sendo uma máquina, trazendo axônio e dendritos; reconhecida ainda nos
com isso uma rica analogia apesar dos dias de hoje.
controversos espíritos. Embora o conceito do Os avanços nos equipamentos e
cérebro-máquina tenha permanecido até hoje, técnicas não pararam, de forma que no início
no século seguinte a teoria dos espíritos nos do século XX d.C. já era bem aceito que todas
ventrículos foi por água abaixo com a as funções cerebrais eram resultantes da
demonstração da natureza elétrica na intensa transmissão de mensagens elétricas (
condução nervosa, publicada pelo fisiologista e/ou neurotransmissores) pela gigantesca rede
italiano Luigi Galvani (séc. XVIII d.C.). de neurônios do cérebro. Logo, o mais recente
Com o passar dos séculos, as alvo era decifrar a linguagem dos impulsos
descobertas sobre a fisiologia e funcio- nervosos que já se sabia serem “tudo ou
namento do cérebro acumularam-se a uma nada”, ou de uma forma mais ampla, lidar
velocidade cada vez maior, acompanhando com a questão: seria possível modelar o
uma gradual dissociação entre o estudo do raciocínio humano?
“cerne do homem” e o estudo do “raciocínio As teorias e ferramentas criadas para
humano”. Esse acréscimo na velocidade se responder a pergunta do parágrafo anterior, na
deu devido ao desenvolvimento paralelo das verdade, foram criadas e desenvolvidas muito
teorias físicas e suas aplicações na construção antes da descoberta da rede de neurônios do
de novos equipamentos de pesquisa. O cérebro. A discussão sobre o que seria o
microscópio, construído pela primeira vez em raciocínio e como funcionaria, ou como
1595 pelos holandeses Hans e Zacharias construí-lo, aparentemente seguiu o mesmo
Jansen, foi um desses equipamentos funda- caminho grego-renascentista. Como mencio-
mentais para o avanço das pesquisas sobre o namos, o estudo do raciocínio humano
cérebro e suas funções. Embora tenha sido começou a se diferenciar do estudo do pensa-
muito rudimentar nos seus primeiros séculos mento ou alma do homem no início do
de “vida”, no século XIX d.C. o microscópio primeiro milênio d.C., o que, em nossa
recebeu uma considerável melhoria na sua opinião, contribuiu fortemente para o desen-
resolução, impulsionando novas descobertas volvimento da compreensão do raciocínio,
sobre estruturas internas do cérebro. Uma escapando de questões intratáveis.

187
Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Apesar dos conceitos sobre mente, talvez tenha ocorrido devido aos pesquisa-
pensamento e raciocínio já terem sido dores estarem procurando uma alternativa
bastante discutidos até o primeiro milênio para a Teoria das Probabilidades apresentada
d.C., a estruturação e elaboração destes numa no início do século XIX d.C.
forma mais precisa só foi realizada no século Apesar da Teoria das Probabilidades
XVII d.C. com Descartes. Além de comparar já estar razoavelmente desenvolvida,
o cérebro com uma máquina, Descartes principal-mente devido a Bernoulli (séc.
também estruturou, ou melhor, organizou e XVIII d.C.), Thomas Bayes (séc. XVIII d.C.)
elaborou, “o conhecimento do conhecimento e posteriormente Laplace (séc. XIX d.C.),
humano” --- como este funcionaria. Seus ainda existiam algumas lacunas entre as idéias
trabalhos sobre a estruturação do conheci- conceituais das probabilidades e o que se
mento tiveram um grande impacto na ciência, esperava de uma teoria matemática
não só com relação à estrutura do raciocínio “rigorosa”. Na teoria proposta por Bayes em
humano mas principalmente ao desenvol- An Essay Toward Solving a Problem in the
vimento do método da ciência. Além disso, Doctrine of Chances, a probabilidade
Descartes também defendia que a matemática representava um “grau de crença”, ou seja, o
era uma linguagem comum da mente, quanto se pensava ser alguma coisa
princípio tal cada vez mais popular. Nessa verdadeira baseando-se na evidência dispo-
direção, aproximadamente dois séculos nível. Isto causava um certo desconforto para
depois, George Boole construiu uma álgebra quantificar e operar crenças, ou seja,
binária (hoje conhecida por álgebra booleana) pensamentos. Apesar de Laplace ter
que representaria as “leis do pensamento”3, desenvolvido analiticamente as idéias
revolucionando mais uma vez a teoria do apresentadas por Bernoulli4, reforçando o
raciocínio. Boole (1854) tinha uma clara trabalho de Bayes, ainda havia muita
compreensão da magnitude do seu trabalho, o desconfiança e indisposição por parte da
que era evidenciado tanto por seu próprio maioria dos matemáticos e físicos (se não
título quanto pela própria elucidação do seu maioria, com certeza os mais influentes) para
objetivo --- veja a citação abaixo: tal teoria. A principal crítica era que o
conceito de probabilidade apresentado era
“O motivo do presente tratado é muito vago e subjetivo para ser base de uma
investigar as leis fundamentais do teoria matemática. Assim, no século XX d.C.
funcionamento do cérebro através das houve um grande esforço para “consertar” as
quais o raciocínio se realiza; expressá- probabilidades e por fim acabaram definindo
las através da linguagem do cálculo e, uma nova probabilidade que representava a
sobre este fundamento, estruturar a freqüência relativa de um evento numa
ciência da lógica e construir o seu repetição de grandes conjuntos de amos-
método; fazer deste método a base de tragem. Com esse novo conceito de
todos os métodos para aplicação da probabilidade, aparentemente ganhou-se mais
doutrina matemática das probabilidades; objetividade na teoria, uma vez que
e, finalmente, recolher dos vários “freqüências” podem ser medidas. No
elementos verdadeiros trazidos para entanto, com isso limitou-se considerável-
serem examinados no curso destas mente o espaço da validade ou aplicações das
investigações alguma provável sugestão probabilidades.
a respeito da natureza e constituição da Assim, mesmo com a visível riqueza
mente humana.” (Boole, 1854: 1). da proposta Bayesiana, bem como sua
correspondência qualitativa com o senso
No entanto, as Leis do Pensamento comum, a abordagem freqüencista foi
não foram bem recebidas, na verdade, gradualmente ganhando espaço frente à
podemos dizer que foram negligenciadas. A Bayesiana. Essa tendência era grandemente
razão para tal não parece muito clara, mas facilitada pela falta de argumentação

188
Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

matemática sobre a adoção das regras de da medida e dos conjuntos, fundamentando


inferência obtidas a partir da proposta de matematicamente e definindo as regras
Bayes sob algum critério de otimização5. Já o necessárias para trabalhar-se com probabili-
trabalho de Boole não abordava diretamente dades. O impacto de tal trabalho foi tanto que
essas questões na Teoria das Probabilidades, logo se tornou referência e formulação básica
de forma a se manter neutro, embora viesse a para a Teoria das Probabilidades. Assim,
ser fundamental para a construção dos aparentemente o problema estava resolvido. A
processadores artificiais - que são utilizados partir de um conjunto de axiomas dado
nos nossos computadores. arbitrariamente, definiam-se as regras pelas
O problema da abordagem freqüen- quais as probabilidades deveriam ser tratadas
cista para a construção de processadores de (regra da soma, produto, ...), enquanto o
informações é que nem sempre trabalhamos tratamento lógico de proposições (as
com a inferência de variáveis aleatórias, operações realizadas) era substituído pelas
principalmente nas decisões tomadas no dia- operações de conjunto no espaço dos pontos
a-dia. Posto isso, terminamos essa seção com referentes às proposições. Porém, a
a reapresentação da pergunta: seria possível dificuldade conceitual, apesar de atenuada,
construir uma teoria matemática para modelar ainda persistia.
o pensamento humano, ou melhor, seria Alguns anos após o trabalho de
possível conciliar a Teoria das Probabili- Kolmogorov, Richard Cox (Cox, 1946)
dades, inferência e lógica com o raciocínio demonstrou que também era possível cons-
humano? truir uma teoria fundamentada matemática-
mente a partir da proposta de Laplace,
3. A resposta Bayesiana obtendo-se as regras de Kolmogorov por
conseqüência. Além disso, a arbitrariedade
O século XX d.C. começou então com dos axiomas de Kolmogorov era substituída
o grande desafio de construir uma teoria que por critérios de consistência e qualitativa
funcionasse qualitativamente como o cérebro, correspondência com o raciocínio humano
ou seja, que processasse as informações numa (Jaynes, 1988). Mas será que era só isso?
maneira semelhante. Após praticamente um Apenas uma maneira alternativa de se reobter
século de análise e discussão sobre o conjunto as regras de Kolmogorov? Não!
ou espaço de ferramentas adequadas para a Desde a última década, observa-se um
construção de tal teoria, já tinha-se a crescimento significativo do número de
convicção que a Teoria das Probabilidades era publicações de trabalhos que utilizam uma
a resposta procurada, de maneira que bastava abordagem bayesiana. Isso não se deve
dar uma boa fundamentação matemática e propriamente a um modismo, mas aos ótimos
conceitual, relacionando-a com a lógica resultados obtidos. Além disso, como a
simbólica. própria Teoria Bayesiana engloba a
Embora a linha ortodoxa tivesse gran- freqüencista (Jaynes, 2003; Bernado, 2000),
des dificuldades em lidar conceitual-mente sempre teremos em geral uma qualidade no
com a inferência de variáveis que não fossem mínimo semelhante à obtida pela modelagem
aleatórias, ela teve o seu auge com os ortodoxa (definimos como estatística e
trabalhos de Andrey Kolmogorov. O trabalho probabilidade ortodoxas aquelas oriundas da
apresentado por Kolmogorov na verdade não teoria freqüencista), quando for bem aplicada.
precisava, ou partia, do conceito de A Teoria Bayesiana traz consigo um
freqüência de eventos, mas simplesmente dos conjunto de princípios de otimização que
trabalhos de Emile Borel sobre teoria da foram desenvolvidos e estabelecidos por
medida e dos conjuntos. Em seu livro caminhos independentes da Teoria das
Fundamentos do cálculo de probabilidades6 , Probabilidades, mas que são cruciais para um
ele apresentou o sistema axiomático para a bom tratamento de dados e modelagens em
Teoria das Probabilidades baseado na teoria geral (de Oliveira, 2005). Dentre esses

189
Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

princípios encontram-se a maximização da gem do raciocínio humano a semelhança da


entropia, os reguladores de Tikhonov e o lógica aristotélica por meio da álgebra
princípio de Ockham. A realização natural de booleana. Além disso, observa-se também que
tais princípios pela Teoria Bayesiana é um o uso de um conceito mais geral de
dos seus grandes trunfos. Para aqueles que probabilidades tem levado a grandes desen-
desejarem conhecer mais sobre tais assuntos volvimentos em várias áreas da ciência,
sugerimos as referências: (Jaynes, 1982) para obtendo uma maior evidência nas pesquisas
entropia máxima; (Tikhonov, 1977; Kirsch, em inteligência artificial (Korb, 2003).
1996) para reguladores e (Jeffreys, 1992) para Apesar de reconhecermos que ainda
o princípio de Ockham. existe uma parcela considerável de profis-
Sua aplicação se estende desde a sionais que não se agradam da Teoria
construção de algoritmos de aprendizagem em Bayesiana, devido a diferentes linhas
inteligência artificial (Mitchell, 1997) até o filosóficas de pensamento (Bunge, 2006),
uso para modelagens em neurociência (Weiss, acreditamos que seria altamente instrutivo
2002; Stocker, 2006). Devido a isso, sua para o estudante de ciências ter a
importância já tem sido observada por Reno- oportunidade de conhecer outras abordagens e
meados físicos. Por exemplo, Phillip assim ter acesso a ferramentas que são
Anderson (1992: 9)7 comenta a grandeza da largamente utilizadas na área de aprendiza-
Teoria Bayesiana e o desejo do seu ensino aos gem computacional (inteligência artificial) e
físicos: que começa a ser usada por vários autores em
artigos sobre Física Quântica (Hradil, 1996;
“... Estatística Bayesiana é agora Schack, 2001; Neri, 2005).
ensinada a estudantes de Estatística em Acreditamos que uma boa maneira de
cursos avançado. Infelizmente, contudo, remediar a insatisfação dos estudantes é o
ela não é ensinada a nutricionistas ou fornecimento de motivação aqui apresentada
até mesmo a físicos experimentais.” aliado, é claro, a uma exposição cuidadosa e
clara sobre os fundamentos matemáticos
A referência (Weiss, 2002) é um envolvidos, bem como uma revisão histórica
excelente exemplo de como a abordagem de ambos.
Bayesiana está transformando a percepção da A nossa proposta é não apresentarmos
pesquisa, fornecendo uma estrutura mate- apenas uma abordagem ortodoxa nos cursos
mática rigorosa para a representação de da graduação, mas introduzirmos o conceito
propriedades físicas e estatísticas do ambiente de probabilidades por meio de uma
ao nosso redor. Nesse trabalho por meio de abordagem mais ampla a semelhança de
conceitos Bayesianos os autores descrevem as Jaynes (1988). Assim, seria gasto uma ou
tarefas que sistemas de percepção tentam duas aulas sobre o desenvolvimento histórico
realizar e obtêm teorias computacionais para a das ferramentas e conceitos envolvidos,
realização de tais tarefas, dando propriedades enfatizando a motivação do estudo do
do ambiente e custos e benefícios associados raciocínio humano (apresentada aqui) e mais
com diferentes decisões de percepção. Assim, algumas aulas desenvolvendo a álgebra, ou
mesmo no amplo contexto biológico da plas- regra de operações, da Teoria das Probabili-
ticidade e aprendizagem, a Teoria Bayesiana dades e os demais assuntos envolvidos por
tem mostrado a sua eficiência com ótimos diante.
resultados.
5. Referências bibliográficas
4. Comentários finais
Anderson, P.W. (1992). The Reverend
Após esse breve ensaio podemos Thomas Bayes, Needles in Haystacks, and the
perceber que é possível ver a Teoria das Fifth Force. Physics Today, 45, 9-11.
Probabilidades sob a motivação da modela-

190
Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 184-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Bernado, J.M. e Smith, A.F.M. (2000). Cambridge, Massachusetts: Cambridge


Bayesian theory. John Wiley & Sons. University Press.
Boole, G; (1854). An Investigation of the Jefferys, W.H. e Berger, J.O. (1992).
Laws of Thought: On Which Are Founded Ockham's razor and bayesian analysis. Am.
The Mathematical Theories Of Logic And Scient., 80, 64-72.
Probabilities. Kessinger Publishing. Kirsh, A. (1996). An introduction to the
Bunge, M. (2006). Chasing reality: strife over mathematical theory of inverse problems.
realism. Toronto: University of Toronto Spring-Verlag.
Press. Korb, K.B. (2003). Bayesian Artificial
Cox, R.T. (1946) Probability, frequency and Intelligence. London: Chapman & Hall/CRC.
reasonable expectation. Am. J. Phys., 14, 1- Mitchell, T. M. (1997) Machine learning.
13. Toronto: McGraw-Hill.
D'Agostini , G. (1999). Teaching statistics in Neri, F. (2005). Quantum Bayesian methods
the physics curriculum: Unifying and and subsequent measurements. Phys. Rev.
clarifying role of subjetive probability. Am. J. Am., 72, 062306.
Phys., 67, 1260-1268. de Oliveira, E.A. (2005). Aprendizagem de
Dantas, C.A.B. (2000). Probabilidades, um conceitos não-estacionários por meio de
curso introdutório. São Paulo: EDUSP. redes neurais artificiais}. 2005. Tese de
Finger, S. (1994) Origins of neuroscience, a doutorado, Instituto de Física, Universidade
history of explorations into brain function. de São Paulo, SP.
Oxford: Oxford University Press. Schack, R. ; Brun, T.A. e Caves, C.M. (2001).
Hradil, Z.; Myska, R. e Perina, J. (1996). Quantum Bayes rule. Phys. Rev. A, 64,
Quantum Phase in Interferometry. Phys. Rev. 014305..
Lett., 76, 4295-4298. Stocker, A.A. e Simoncelli, E.P. (2006).
Jaynes, E.T. (1982). On the rationale of Noise characteristics and prior expectations in
maximum-entropy methods. Proceed. IEEE, human visual speed perception. Nat.
70, 939-952. Neurosci., 9, 578-585.
Jaynes, E.T. (1988). How does the brain do Tikhonov, A.N. e Arsenin, V.Y. (1977)
plausive reasoning? Maximum-Entropy Solutions of ill-posed problem. New York:
Bayesian Methods Sci. Eng., 1, 1-24. Winston.
Jaynes, E.T. (2003). Probability theory: the Weiss, Y.; Simoncelli, E. P.; Adelson, E. H.
logic of science. Bretthorst, G.L. (Ed.). (2002). Motion illusions as optimal percepts.
Nat. Neurosci., 5, 598-604.

Notas

(1) Numa rápida pesquisa nos currículos apresentados na internet de três conhecidas universidades federais do sudeste
brasileiro, encontra-se que apenas uma apresenta um curso de estatística em sua grade curricular, sendo o mesmo um
curso optativo para as carreiras de bacharelado e licenciatura em Física.
(2) Ou estados da alma (alegria, tristeza, raiva,...).
(3) Abreviação do título: Uma Investigação das Leis do Pensamento, em que se Fundamentam as Teorias Matemáticas
da Lógica e Probabilidades. Trabalho publicado por G. Boole em 1854.
(4) Expressadas no livro “A arte da conjectura”, publicado por Bernoulli em 1713.
(5) Perceba que estamos falando das regras utilizadas num processo de inferência e não dos resultados obtidos. Até
porque a boa qualidade da inferência bayesiana é bem conhecida desde a época de Laplace, quando ele estimou a massa
de Saturno.
(6) Grundbegriffe der Wahrscheinlichkeitsrechnung, publicado por Kolmogorov em 1933 na Alemanha.
(7) Prêmio nobel em Física em 1977.

191

Você também pode gostar