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Mas, será que não podemos criar imagens de Deus mais próximas ao princípio de
realidade? Para Freud, isto seria um absurdo. Para os místicos, não. Uma discussão
válida aqui seria de nos perguntarmos - afinal, qual o conceito de realidade que
tomamos? Para fundamentar seu "princípio de realidade", Freud tomou o conceito da
ciência positivista da época.
Hoje já há possibilidade de fundamentar outros parâmetros de realidade - basta ver a
nova física. Qual será o nosso, cristãos que tem na fé - certeza das coisas que não se
vêem - o seu fundamento básico? Como avançar para além da ilusão?
Segundo Morano, no seu belo livro Orar depois de Freud, temos de nos conformar com
ter a ilusão como ponto de partida. Não temos outro canal inicial a não ser nosso tesouro
de fantasias e marcas mnêmicas das experiências de satisfação.
Nossa fala com Deus, seja de que modo for, não pode partir senão de nosso mundo
interior, com toda a sua complexidade, suas zonas anônimas e secretas, suas aspirações
sinceras ou desvirtuadas, seus auto-enganos ou suas meias verdades.(1998,p.10)
Mas, esperemos que o ponto de partida não permaneça como único ponto de chegada -
isto seria andar em círculos, e para as idéias mais reducionistas da psicanálise,
permanecer com imagem de Deus eqüivale a isso.
Talvez poderíamos dizer que aquele que não permite que seus "bezerros de ouro",
construídos a cada experiência de desamparo, sejam destruídos e pulverizados, corre o
risco de andar em círculos na sua caminhada de fé. Círculo vicioso e neurotizante.
A LEI DO PAI
Mas, no caminho do povo de Israel, Moisés destruiu o bezerro e apresentou a lei. E o
povo de Israel passou a cultuar um Deus invisível, que se apresenta mediado pela
Palavra. Freud, no Moisés e o Monoteísmo apresenta este fato como um progresso
mental.
…pois significava que uma percepção sensória recebia um lugar secundário quanto ao
que poderia ser chamado de idéia abstrata - um triunfo da intelectualidade sobre a
sensualidade, ou, estritamente falando, uma renúncia pulsional, com todas as
conseqüências psicológicas necessárias. (1939, p.135)
Para Freud, com este avanço a pessoa migra do reino da mãe - sensório - para o reino do
pai - psíquico. Passa-se da identidade de percepção para a identidade de pensamento. A
renúncia à descarga direta da pulsão torna o psiquismo mais apto para sublimações.
Segundo Ricoeur, a passagem do ídolo para a capacidade simbólica é um caminho que
retira o povo da prisão. O símbolo ligado à palavra permite criar e recriar, retirando da
fixidez do sensório.
Mas o próprio Ricoeur fala que todo símbolo corre o risco de novamente transformar-se
em ídolo, aprisionando e limitando a multiplicidade semântica. Isto lembra-nos o desvio
patológico do neurótico obsessivo, que, sentindo a ameaça de castração, utiliza sua
capacidade simbólica na formação de sintomas ritualísticos.
Morano também discorre sobre a conseqüência deste desvio na representação de Deus:
Trata-se de uma lei sagrada que perdeu sua natureza mediadora, que substitui o próprio
Deus e desloca para um segundo termo a celebração gozosa, o encontro festivo e a
comunicação com o Outro, assim como a proclamação libertadora e profética de sua
palavra.(1998,p. 60)
A história judaico-cristã está recheada de exemplos desta deturpação. Usando a
terminologia lacanianda, diria-se que a lei do Pai, em vez de organizar e incluir,
transforma-se em mecanismo paralisante excludente. A angústia de castração do pai
terrível é fonte de temor e distanciamento. Isto vale para obsessivos, fóbicos e
histéricos. Na neurose, a lei, em vez de organizar a devoção, obstaculiza. Haverá
possibilidade de sair do aprisionamento da lei sem o abandono do religioso?
Para nós, cristãos, depois da Lei vem a Graça. E que imagem de Deus nos viria pela
graça?
A GRAÇA
Logo me recordei das parábolas de Jesus, sobre achar o que se havia perdido. Há um
tom de surpresa para a atitude do pai que acolhe o filho que retorna estropiado: em vez
de objetos consoladores ou leis, há um modelo de relacionamento pai-filho com
elementos novos. Paul Vitz chamou Jesus de Anti-Édipo, mostrando que a História
Sagrada não corresponde à história edípica. O pai do filho pródigo não corresponde a
Laio, pai de Édipo. Há lugar para pai e filho; não há vingança, mas restauração da
filiação. Jesus nos apresenta uma imagem de Deus que desconcerta, que desconstrói o
sabido, retira do eixo das próprias projeções. Inicia com a imagem terrena - pai -, mas
desconcerta pelas diferenças.
O homem perde a voz ativa de construir a imagem de Deus somente a partir do seu
interior e passa para a voz passiva de conhecer como é conhecido. Sai da posição ativa
de fabricar o caminho a Deus pelas suas próprias obras - quer pela construção de
imagens ou pelo cumprimento da Lei - para a voz passiva de aceitar o caminho já dado
pela graça. Parece que, no decorrer da história, este tem sido o eixo da Boa Nova - é
novo, não vem do nosso interior, nos é dado. E isto desconcerta, desconstrói, retira-nos
do centro da história. Esta construção
já não acontece nos moldes das fantasias infantis de fusão com a mãe, nem coincide
com a representação edípica do pai.