Você está na página 1de 11

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

CARTOGRAFIAS COM CRIANÇAS: COMPOSIÇÕES E PAISAGENS QUE


AFIRMAM O DESEJO DE UMA VIDA BONITA

MEDEIROS, Fernanda Vieira de


NASCIMENTO, Sylvia Fernanda
Prefeitura Municipal de Vitória

Resumo:
Cartografias. Exercício do pensar. Pensar a infância, “pedra de toque” da pesquisa,
potência nietzscheana: como a gente se torna o que a gente é. Infância-texto que se dar a
ler. Conceito não acabado, não definido em sua totalidade, pois, pode ser lido em uma
diferença problematizadora. Infância que pergunta. Perguntamo-nos, então, que
experiência/pensamento do cotidiano da escola transita entre os “fazeres” e os processos de
subjetivação/afecções da aventura-infância? Na resistência ao modelo da representação, e
na afirmação de uma vida como obra de arte, que infâncias podem ser inventadas?
Perguntas atravessadas pela Filosofia da Diferença e pelo Método Cartográfico. Passeamos
entre as produções de Gilles Deleuze, Walter Kohan, Sandra Corazza, Jorge Larrosa,
Virgínia Kastrup e outros. Desenhamos com esses autores algumas conversas do que é
inquietante no pensamento das crianças e invasivo no modelo da representação. Conversas
de ideias, de perguntas, de sensações, um mover-se que irrompe do acontecimento. Vida
bonita. Vida das palavras. Palavra Infância. Multiplicidade do existir. Diferença. Arte da
existência. Nascer a cada dia. Infância. Uma escrita inventada com as pistas do
imprevisível e aguçadas com as experimentações dos processos de constituição de si.
Demasiadamente humano. Afirmamos que infância? Deixamo-nos afetar por quais
movimentos? Movimento em que podemos responder para concluir ou perguntar para abrir
espaço ao que tanto nos convida a seguir. Gostamos do perguntar. Uma pergunta traz em si
questões que respondem, neste sentido, afirmamos a infância do não determinismo
etapista, do não essencialismo, da não linearidade do tempo. Infância em suas
singularidades, livre de pressupostos. Leitura-afecção. Infância, uma leitura do que se abre
para pensar. Desejo de pensar mais, de se dar mais, de está sendo mais. Desejo que não
cabe apenas nas medidas calculadas para a infância. Desejo de fazer durar a infância todo o
tempo possível.
Palavras-chave: Infância. Experiência. Cartografia.

INFÂNCIA E EXPERIÊNCIA
Infância como condição da experiência. Infância que não é um tema, mas um
transbordamento de questões. Infância em suas singularidades, livre de pressupostos, que
pensa um pensamento que não se pensa. Infância do tempo intensivo, do nascimento e da
abertura ao novo. Infância do problema, um exercício de si. Infância...
Exercício do pensar. Pensar a infância, “pedra de toque” da pesquisa, potência
nietzscheana, um canto: como a gente se torna o que a gente é. Infância-texto que se dar a
ler. Conceito não acabado, não definido em sua totalidade, pois, pode ser lido em uma
diferença problematizadora. Infância que pergunta. Perguntamo-nos, então, que

EdUECE- Livro 1
01314
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

experiência/pensamento do cotidiano da escola transita entre os “fazeres” e os processos de


subjetivação/afecções da aventura-infância? Na resistência ao modelo da representação, e
na afirmação de uma vida como obra de arte, que infâncias podem ser inventadas?
Perguntas que provocam deslocamentos nos diferenciados sentidos e conceitos de infância.
Pergunta do conceito que se dá sendo infância com os atravessamentos da Filosofia da
Diferença e do Método Cartográfico. Passeamos entre as produções de Gilles Deleuze,
Walter Kohan, Sandra Corazza, Jorge Larrosa, Virgínia Kastrup e outros. Desenhamos
com esses autores algumas conversas do que é inquietante no pensamento das crianças e
invasivo no modelo da representação. Conversas de ideias, de perguntas, de sensações, um
mover-se que irrompe do acontecimento: uma vida bonita. Vida das palavras. Palavra
Infância. Multiplicidade do existir. Diferença. Mundo que começa agora.

Dirigir-se à criança em sua própria infância: permitir-lhe que, em vez de


desabrochar, como se diz impropriamente, ela venha a expandir-se; em vez de se
identificar, ela se disperse em uma multiplicidade de novas relações – eis o
caráter próprio das transições (SCHÉRER, 2009, p. 105).
Experiência-encontro que nos chama a parar para escutar, a sentir mais devagar aquilo que
se expande do entre, do meio, da relação. Experiência que se dá na trama dos processos de
constituição de si, do que está sendo produzido na Educação Infantil de maneira
entrelaçada, rizomática. Infância no meio, intermezzo, devir. Um nascer cada vez. Convite
do acaso, que vem entre o que é planejado e o que pode ser lido nas linhas de composição
da vida. Leitura do que faz pensar e do que se cria por meio da experimentação. Vida
experimentada. Diferença em si mesma. Desequilíbrio. Busca (KOHAN, 2005).
Existência do que ainda salta do intempestivo na sala de aula, nos corredores, nos passos
que também driblam o dito verdadeiro e permitido dentro dos parâmetros curriculares.
Parâmetros que muitas vezes estão presos à concepção do tempo linear. Uma lógica que
interrompe a infância-experiência.
Com outros parâmetros, o intenso pede passagem e não interrupção. Abertura para uma
escrita cartográfica: deixar passar uma vida bonita com as singularidades das questões da
infância. Experiência lida nas entrelinhas, nos espaços intervalares, nas superfícies porosas,
permeáveis. Um convite das pistas que suscitam experimentações. Jeito cartográfico de
produção dos dados da pesquisa. Infância-composição. Uma trama.

CARTOGRAFIAS: PERGUNTAS QUE ABREM CONVERSAS


Nos intervalos das direções e das intenções pedagógicas, entre uma coisa e outra, e com
tantas outras coisas, há um istmo, um estreito espaço que nos lança em uma aventura

EdUECE- Livro 1
01315
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

criadora com o improvável, com o tempo das intensidades, com os movimentos


cartográficos de diferenciadas conversas-texto. Passagem para as experiências mais
interrogativas do existir. Experiência intempestiva. Modo de temporalizar um encontro que
deixa latente o sentido da pergunta. Espaço inquietante entre o possível e o impossível,
entre o saber e o não-saber, entre o lógico e o ilógico. Pergunta..., que nesta pesquisa, se
faz metodológica, e, se constitui por meio de uma perspectiva cartográfica do desejo, do
modo de olhar, sentir e de dizer os efeitos do que nos passa e nos detém.
Sendo assim, cartograficamente, compomos junto com os desdobramentos das
experiências do Centro Municipal de Educação Infantil Marlene Orlande Simonetti (CMEI
“MOS”, Vitória ES) algumas versões e tantos enredos do território existencial das
possibilidades de vida das palavras que escrevem conversas-texto. Conversas excitadas
pelo plano de imanência.
O que pergunta deseja desenhar a infância como transbordamento de questões. Infância de
uma pintura-informe, não aprisionada na totalidade da forma; de uma leitura das
derivações que formam outras formas; de uma vibração do que não se forma da forma, se
cria do que não tem forma.
Pensamento que se dá ao exercício vivo da problematização. Traduções e acontecimentos.
Emaranhado mundo. A pergunta transita na “corda bamba”, convida a pesquisa para
dançar; abre uma pista para os passos cambiantes das formas; cria modos de produzir uma
cartografia com as linhas singulares e expressivas do plano coletivo de forças, também
definido como plano de consistência ou de imanência (DELEUZE; PARNET, 1998). O
plano coletivo de forças com suas vibrações descontínuas e assimétricas opera fraturando
as categorias da representação, dos clichês, dos dogmatismos da pedagogia e provoca nas
formas um trasbordamento de sentidos e experimentações, um olhar que tateia, um mover
embaraçado com as linhas do acontecimento, uma atenção prestante.

A atenção se desdobra na qualidade de encontro, de acolhimento. As


experiências vão então ocorrendo, muitas vezes fragmentadas e sem sentido
imediato. Pontas de presente, movimentos emergentes, signos que indicam que
algo acontece, que há uma processualidade em curso” (KASTRUP, 2010, p. 39).
Movendo-se na aventura das cartografias que se fazem por meio da processualidade em
curso do plano coletivo das formas e das forças, a pesquisa se torna uma aposta, uma
afirmação política, uma relação que se constitui amante das produções desconcertantes da
diferença – Como a gente se torna o que a gente é. Questão que ensaia uma existência
filosófica e cava os mais variados sentidos para o exercício colorante na composição das

EdUECE- Livro 1
01316
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

pedagogias. Pergunta-filosofia com a ampliação das formas de versentirpensar o mundo.


Filosofia do que pode perguntar. Pergunta experimentação.

“[...] uma experiência de pensamento. Com ela podemos nos surpreender, pensar
de outra maneira, encontrar o que não buscávamos, problematizar o que somos,
transformar a vida que estamos vivendo. Ela pode ser uma tentativa de gerar
pensamento, de pensar de outro modo o que já se pensa, de abrir as portas para
outras formas de vida [...]” (KOHAN, 2012, p. III).
Experiência dos movimentos cartográficos das conversas-texto que podem ser agenciadas
pelos vetores das linhas molares e moleculares (DELEUZE; PARNET, 1998), bem como
pelas pistas da embalada arte que convoca à leitura o que se deixa escrever. Ler com os
outros. “Expor os signos no heterogêneo, multiplicar suas ressonâncias, pluralizar seus
sentidos” (LARROSA, 2010, p. 143). Abertura para o múltiplo. Dar-se como texto para ser
lido por muitos. Entrelinhas de sentidos que a todo instante libera fulgurações da diferença
e da repetição. Diferença da repetição. Cada vez outra. Conversa que se esparrama,
distende a sintaxe, dobra a doutrina, destorce a forma padronizada, idealizada, ordenada.
Faz vazar espessuras que se juntam ao que não se forma, mas sim, ao que se dá.
Multiplicidade. Uma leitura aberta ao que pode ser dito e pensado. Dar a ler. Deixar espaço
para o que estava dito poder dizer mais. Ao dizer para os meus alunos, vou pintar com o
lápis deitado..., comecei a rir, e perguntei: será que ele também dorme? Um pouco mais
tarde, em um canto de estudo, entrando no que foi aberto, me perguntei novamente:
Também dorme o lápis deitado? Sonha? Deseja?. Perguntas que colocam em questão o
dito do dito.
Então, senti outros dizeres, e, fiquei nos desenhos que eles podiam fazer. Vi que nas mãos
do artista, o lápis faz chover e canta. Seria eu também uma professora artista? Mundos
transcriados. Atmosfera do ler, um sopro a nos levar para além daquilo que o texto diz, e a
nos trazer o que o texto abriga, e o que dá o que dizer (LARROSA, 2010). Desejo de
artista. Pedagogia que arrisca. Arte que risca novos conceitos. Artista-lectio. Leituras em
suas artistagens, légein, linguagem.
Escritas nômades dos movimentos cartográficos que desenham alguns espaços-tempos da
Educação Infantil e dos encontros com a pesquisadora. Cartografias que acompanham os
fluxos do tempo das intensidades, tempo áion, duração, devir, bem como os efeitos de um
ziguezague das formas que se instituem na escolarização e nas linguagens do aprender.
Efeitos que rasgam a forma de informe. Escrita que busca uma intimidade com o dito, faz-
se dizer. “Entrar num texto é morar e demorar-se no dito do dito. Por isso, ler é trazer o
dito à proximidade do que fica por dizer, trazer o pensado à proximidade do que fica por

EdUECE- Livro 1
01317
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

pensar, trazer o respondido à proximidade do que fica por perguntar” (LARROSA, 2010,
p. 142).
Pensamento às voltas com o improvável, com o acontecimento. Território fronteiriço. Meio
das intensidades das águas. Encontro das águas com suas correntes de sentidos que
ameaçam o localizável no corpo das pedagogias. Corpo que coloca as disciplinas/temas
para dançar com os ritmos da criação e, assim, produz tensões no que na maioria das vezes
é interrupção da infância. O que se interrompe, quando estamos determinados a uma
escolarização apressada? E o que se alarga do tempo das intensidades?
CONVERSAS: “POR CAUSA QUE EU PENSO VENDO”
Seduzidos pelo jogo que nos monta, entramos nos movimentos de encaixes e desencaixes
do Lego. Brinquedo de montar. Produção não pensada, acontecimento que nos assalta, nos
toca, que estica as ideias e inventa outras, prolonga o pensar e o viver. Brincar de Lego,
monta, desmonta, remonta, encontra-nos. Com as peças, os encaixes, íamos formando-
criando talvez uma nave, um carro, um veículo, (um pouco mais de conversa com as
crianças) e, afundando-nos nas peças e na brincadeira, pensamentos rolavam e, em outros
voos, naves vermelhas, azuis, amarelas se juntavam. Peças corriam de mão em mão,
escorregavam nos espaços de uma vida bonita. Infância transbordante de questões: O que
pode o pensamento? O que é o ato de criar?
Mostramos o nosso veículo-lego. Marcelo quis acrescentar nele outras peças, reconfigurá-
lo. Pegou a nave e colocou “rodinhas”. A variabilidade das formas conferiu ao brinquedo
um desenrolado movimento, bem mais divertido. Entre diferenciadas naves, comentamos
com Marcelo: “Você é fera!” Olhando-nos ele respondeu: “Por causa que eu penso
vendo... (pausa), vendo na minha cabeça”.

O acontecimento não é de maneira nenhuma o estado de coisas, ele se atualiza


num estado de coisas, num corpo, num vivido, mas ele tem uma parte sombria e
secreta que não para de se subtrair ou de se acrescentar à sua atualização:
contrariamente ao estado de coisas, ele não começa nem acaba, mas ganhou ou
guardou o movimento infinito ao qual dá consistência. (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 202).
Pausa, irrupção, zona intensiva de ideias criadoras, acontecimento que corta o
modelo/representação e agencia outro modo de existência das coisas. Conjugações de um
pensamento-devir (desconfiado do mesmo e do aparente estado de coisas que determina o
que ver) que dão passagem a outra língua, deixam a gramática em êxtase, revolucionam o
modo de ver, tensionam o significado, que não sai diretamente da cabeça, mas da criação.
Arte de ver “mais no mesmo”.

EdUECE- Livro 1
01318
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

O corte que se dá com o acontecimento traça outras sensações. Enuncia um pensamento-


artista, desterritorializante, movente, que desloca o reduzido olho-visão e o expulsa para o
lugar do entre, o encontro, a percepção que se faz com o coração que vibra. Corpo com os
efeitos do processo-visão-sensação. Pensamento que arrasta as regras, as locuções, a
linearidade, o antes e o depois, em um vaivém de mutações plásticas. “Criamos algo, em
suma, constituído por nossa visão e vontade de expressão” (CORAZZA, 2010, p. 86).
Vendo na minha cabeça. Infância como condição da experiência. Intervalo de ideias que
inventa modos de rachar as palavras, de fazer ouvir um grito nas coisas visíveis e de
quebrar a fixidez das verdades feitas. Arte de pensar. Trama-processo-inventividade.
Vemos mais coisas do que sabemos a respeito delas. Olhares, sensações, deixar ver,
compor formas de ver, pintar o que não se vê, dar o que ver demorando no que se vê.
Infância que se dar a ler e que escreve uma questão ao ser lida: ver e pensar.
Visão-criadora-de-si-sensação. Aprendizado do pensar. Uma vida que nos monta
legamente com liberdade. Ideias-arte-de-Marcelo. Bom encontro. Alegria da escuta.
Intensidade dos fios de uma conversa. Seguimos uma pista. Deitamos e rolamos nas
tentativas de compor com os elementos das experimentações. As nossas naves, produções
de lego inventivas, estão conectadas com o desejo de fazer da vida obra de arte. Um lego a
mais para se pensar.
ÁGUA QUE JORRA NA LÍNGUA DAS CRIANÇAS
Escorrem nas palavras das crianças outras águas, cachoeiras de ideias, correntezas de
conexões. Água que foge entre os dedos. Escapa dos percursos definidos, “dança fora do
leito”. Em contrapartida, um rio calmo e raso parece prevalecer no tempo da estrutura
escola: um livro nas mãos marca o lugar ainda em destaque da professora explicando a
importância da Água, sua utilidade. Contando a história, apresentando imagens, formando
rimas, ela desenvolve algumas marolinhas discretas, enquanto, na cabeça das crianças,
forças invasivas desmontam barreiras, arrastam pedras (vogais, consoantes, nome
próprio...) e promovem inundações de outros conceitos, ondas de pensamentos ferozes,
avassaladores. Pensar a produção discursiva a favor da água faz muito bem, também “mata
a sede”, no entanto, as conversas das crianças dizem “de que sede? As águas que estão
rolando inventam que mundos?”
As crianças derramavam suas invenções. De um lado, frases do livro com rimas meio
previsíveis; do outro lado da cena, metamorfoses aquáticas borbulhando em diferentes
inundações: “água não nasssce...”; “na praia tem guarda-vida”. As conversas foram

EdUECE- Livro 1
01319
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

desembocando em um mar de possibilidades, momentos de um devir-livro que olha as


crianças. As determinações da gramática convencional, as teorias dos fundamentos do
conteúdo água, não nadavam com os sentidos-desejos do pensamento da diferença.
Explicações de que “a água nasce na fonte”... ideia que para as crianças parecia não ter
fonte... E a professora completava: “Depois vamos conhecer o que é uma fonte...” Talvez,
no momento em que a professora pronunciava o nome de quem escreveu a história que
estava sendo contada, autora Ingrid Bellinghausen, uma profunda “fonte-pista” encontrasse
sentido.
Com emoção, Celimar relaciona a fonte/autora a uma nascente de uma cantora que no
momento se fazia mais próxima. Sorrateiramente, baixinho, Celimar exclama: “Amy
Winehouse já morreu”. Surpresa de uma rima tão viva e que há pouco havia morrido. Essa
língua que naquele instante pedia passagem chocava-se com a muralha do a priori, dos
fundamentalismos receituários – deixando de lado o acontecimento e outras escutas. Sendo
assim, muitos fazeres como a aula/saber se projetam nas finalidades, nas respostas que
definem o curso da água para o bom entendimento daquele conteúdo. Tantas águas-
questões ficam submersas nas linhas de fuga das crianças.
O pensamento pergunta-nos acerca de tantas conexões que fluem e flutuam no terreno da
escola. O que queremos escutar? Damos passagens a que língua? O que fazemos com as
interferências das crianças? Elas provocam deslizamentos de barreiras, fazem infiltrações
nos esquemas lógicos e garantem velocidades radicais.
Sentir um espaço de insegurança, de não-saber, pode ser uma experiência movente na vida
do professor. Depois de as inúmeras gotas de água, com seus pensamentos inesperados,
escorrerem na sala de aula, saímos para um cafezinho com a professora. Entre conversas...
uma gota de risada: “Não vão rir de mim... eu não sei falar o nome dessa autora”. Entre
café e risada brincamos com essa fala. Dizíamos: “As crianças falam bem o que muitas
vezes não sabemos como dizer. Sabe que Celimar falou junto com você o nome da cantora
Amy Winehouse. Que sacada!”.
Momento de perceber os desdobramentos das relações. Falar o nome da autora, um
agenciamento, um corte, uma possibilidade de não saber dizer, atitude da professora que
contava a história e, também, uma descolada entonação do nome da cantora Amy
Winehouse (encontro-sonoridade que grita em tom “grave” outros possíveis). Voz
intrigante de Celimar que fez jorrar naquele instante uma ligação de sentido com rimas
incisivas. Ingrid Bellinghausen-Amy Winehouse. Expressamos na conversa com a

EdUECE- Livro 1
01320
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

professora, a alegria de experimentarmos as distorções da língua. Desvios do pensamento


criador. Artistagens das crianças.
Conexões vivas. Elas entram por torrentes de águas, relacionam-se com o mundo que a
vida traz em si, escoam diferença. Pensamentos em bolhas. A escola insiste em
configurações do tipo frases feitas. Mas há que se entrar na brincadeira de correr atrás das
bolhas para estourar algumas, algumas poucas, ao alcance daqueles que ensinam com uma
liberdade do pensamento vivo, sem a única preocupação de “produzir frutos”, de
memorizar para que serve.
De um lado, afirmação: “A água nasce da fonte”. E, do outro, uma questão: “Água não
nasssce...” Voz curiosa que soava em reticências. Como escrever essa entonação...? Limite
também das palavras, da gramática, do ensino que fixa, estrutura, é sintaxe, mas não nos
retira a sensação, a beleza, o riso, a provocação de ideias que vazam pelos efeitos
embaçados das bolhas de um devir-criança e pelas modulações de uma gota, pedaços de
formas, roubos, matéria de expressão, outras maneiras, outras línguas que evaporam e
deixam as possibilidades de chuva, do novo, outras transformações.
As águas que forçam as paredes, as grades curriculares, os saberes didáticos presos
somente à lógica do conteúdo disciplinar definido pelo adulto (água leva aos cuidados com
o corpo, aos meios de transportes...) podem problematizar que outros pensamentos, o que
“mais no mesmo”? Elas também produzem fugas, inquietações, espanto, e deixam vazar
outras expressões, outros afetos, outras linguagens.
UM NOME -POBLEMA
Surfar com as crianças exige “furar ondas” e, mesmo que clandestinamente, se for o caso,
cantar Meteoro da paixão. O que estamos cartografando? Seguimos uma linha... atividades
de aula... acontecimentos entre o tempo de escrever frases-feitas a respeito da relação da
água com o corpo e o espaço inventivo das crianças. Elas olhavam a gravura, cena que
revelava uma ação entre água e corpo (Exemplo: escovar os dentes). A cada gravura,
escolhiam um nome para o desenho da criança em ação (Assim escreviam o que a gravura
significava – “Pedro escova os dentes”). Muitos nomes nadaram na boca das crianças...
Pedro. Lucas. Thiago. Mariana e outros. Em uma das gravuras, disseram: “Luan Santana”.
Te dei o sol, te dei o mar pra ganhar seu coração... dispararam cantando Meteoro da
paixão (Música do cantor Luan Santana). A professora, sem pestanejar diz: Luan Santana
não escrevo. Escrevo Luan. Questão de gosto-estilo musical? Essência X Desejo? Regras?

EdUECE- Livro 1
01321
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

Rótulos? O que é válido e o que não pode ser? Escrita = Modelo? Que diferença está em
jogo?
Permitido mundo adulto de muitas vezes não entrar na dança, no ritmo, na intensidade de
cantar outros nomes, mesmo que já consagrados pela mídia, porém remixados nas vozes,
nos gestos, nos imprevisíveis versos das crianças. “Não é em sua gramática nem em sua
materialidade nua que encontramos a vida das palavras. As palavras são sempre as
mesmas; seu sentido, porém, é diferente a cada vez que são pronunciadas ou ouvidas”
(LÓPEZ, 2008, p. 10).
Ao nos olhar, a professora meio sem saída fez uma indagação: “Viu? quem manda deixar
eles darem ideias?”. É constante a intervenção das crianças também ampliada pela
abertura da professora, no entanto, surfar com elas desequilibra-nos o tempo todo. Muitas
das nossas tentativas de ouvir o outro reforçam a prática de deixar o pensamento viajar-
criar até certo ponto. Limitamos a arte de ouvir. Impomos limite ao que escutamos com
base nos julgamentos que fazemos. Ouvimos a partir do nosso ponto de vista. Aventuramo-
nos pouco quando o pensamento se torna restrito a um modelo ou a uma única lógica.
Talvez a música, o canto, como um ritornelo, nos convoque a uma experiência de “[...]
vivenciar os vácuos e, de dentro deles, buscar matéria de expressão para administrar as
partículas de afeto enlouquecidas, dando-lhes sentido” (ROLNIK, 2007, p. 75).

[...] abre-se para o pensamento a possibilidade de ultrapassar os limites do visível


e de participar da processualidade de elaboração de cartografias e de
constituição de territórios, embarcando nas linhas de fuga, enfrentando os
impasses de sentido e para eles inventando saídas, a cada vez que se apresentam
(ROLNIK, 2007, p. 74, grifo do autor).
Conversas-fragmentos que nadaram na composição de um mundo deslizante. Ziguezague
dos arranjos das palavras. Ondulações. Aprender uma nova escuta. Um novo modo de ver.
Conjugar as experiências em gerúndio. Está sendo criança. Viagem de verso em verso.
Atração de ordem e caos, controle e resistência, alegria e espanto. Força da linguagem dos
gestos do corpo.
VIDA BONITA
Uma trama. Composição dos fios das conversas. Pensamento nômade. Abertura das ideias.
Pesquisa. Criação. Cartografias que foram se fazendo no impensável das coisas ditas e
sentidas, que, de mansinho escreveram em ziguezague um jeito de pensar a experiência-
infância e a infância-experiência com suas problematizações. Experiência que nos
interpela, nos coloca em questão, e, assim, desconfigura a pedagogia da solução de
problemas. Entramos nas perguntas que foram provocando desvios no modelo formalizado

EdUECE- Livro 1
01322
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

dos “fazeres” e que desenharam uma linguagem fulgurar, como a gente se torna o que a
gente é em tudo que fazemos.

Experiência entendida como uma expedição em que se pode escutar o “inaudito”


e em que se pode ler o não-lido, isso é, um convite para romper com os sistemas
de educação que dão o mundo já interpretado, já configurado de uma
determinada maneira, já lido e, portanto, ilegível (LARROSA, 2010, p. 10-11).
Vida que se enrola na teoria das multiplicidades, uma produção com linhas de ação da
diferença: “[...] essas linhas, enquanto fluxos intensivos e enquanto portadoras de potências
expressivas e interrogativas, vivem num constante estado de experimentação [...]”
(ORLANDI, 2000, p. 49). Sendo assim, a infância como obra arte está viva na condição de
afetar e de ser afetada. Obra de arte, sensação, existência pura.
Infância, força intempestiva do encontro, do estilo improvável e inventivo de outras
temporalidades. Pintura do devir. Uma pintura que não se revela, não é linear, não instaura
o começo nem o fim, apenas evoca o entre da questão, enunciações do descontínuo e do
deslizante corre-corre das crianças.
Vida bonita. Arte da existência. Nascer a cada dia. Infância-duração. Uma escrita
inventada com as pistas do imprevisível e aguçadas com as experimentações dos processos
de constituição de si. Demasiadamente humano. Afirmamos que infância? Deixamo-nos
afetar por quais movimentos? Movimento em que podemos responder para concluir ou
perguntar para abrir espaço ao que tanto nos convida a seguir. Gostamos do perguntar.
Uma pergunta traz em si questões que respondem, neste sentido, afirmamos a infância do
não determinismo etapista, do não essencialismo, da não linearidade do tempo. Infância em
suas singularidades, dando-se a ler. Produzindo leituras novas. Ler é não ser interrompido
(SKLIAR, 2012).
Leitura-afecção. Desejo que não cabe apenas nas medidas calculadas para a infância.
Infância, uma leitura do que se abre para pensar, desejo de pensar mais, de se dar mais, de
está sendo mais. Podemos fazer durar a infância todo o tempo possível? Pergunta que
deseja durar e se fazer viva nas linhas de um canto-pesquisa: vida bonita a ressoar em cada
instante, como agente se torna o que a gente é.

REFERÊNCIAS
CORAZZA, Sandra Mara. Pedagogia dos sentidos: a infância informe no método de
Valéry-Deleuze. In: KOHAN, Walter Omar (Org.). Devir-criança da filosofia: infância
da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 81-94.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

EdUECE- Livro 1
01323
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS,
Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓCIA, Liliana. Pistas do Método da cartografia:
Pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, p. 32-51, 2010.
KOHAN, Walter Omar. Infância: entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica,
2005.
______. Pensar com Sócrates. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010.
LÓPEZ, Maximiliano Valerio. Acontecimento e experiência no trabalho filosófico com
crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
ORLANDI, Luiz B. Lacerda. Linhas de ação da diferença. In: ALLIEZ, Éric (Org.). Gilles
Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 49-63.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo.
Porto Alegre: Sulina, 2007.
SCHÉRER, René. Infantis: Charles Fourier e a infância para além das crianças. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.
SKLIAR, Carlos. As interrupções no corpo, a atenção, a ficção e a linguagem da infância.
In: KOHAN, Walter; XAVIER, Ingrid Müller. Filosofar: aprender e ensinar. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

EdUECE- Livro 1
01324

Você também pode gostar