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CASTELLANOS
CAMPINAS
2003
i
MARCELO E. P. CASTELLANOS
CAMPINAS
2003
iii
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
UNICAMP
Aos meus pais, pelo afeto que nos une e por fazerem
vii
AGRADECIMENTOS
À Sandra, pelo carinho e respeito com que soube me apoiar em cada momento
deste trabalho.
À Ecilda, pela alegria com que tem me recebido em sua casa e pela correção de
meus deslizes na língua portuguesa.
À Suzy, pela orientação no difícil percurso do discurso, sem a qual este trabalho
teria seguido outra direção.
ix
“O sentimento de infância não significa o mesmo que
afeição pelas crianças: corresponde à consciência da
particularidade infantil, essa particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem (...)
Novas ciências, como a Psicanálise, a Pediatria, a
Psicologia, consagraram-se aos problemas da infância, e
suas descobertas são transmitidas aos pais através de uma
vasta literatura de vulgarização. Nosso mundo é obcecado
pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância.”
(Ariès, 1986: 156 e 276)
xi
SUMÁRIO
PÁG.
RESUMO................................................................................................................. xix
ABSTRACT............................................................................................................. xxiii
APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 27
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 33
1. Aspectos gerais.............................................................................................. 35
2. A questão teórico-analítica............................................................................ 36
3. Os sujeitos da pesquisa.................................................................................. 52
xiii
CAPÍTULO 2: Ato clínico na pediatria: contraposições e justaposições na
relação médico-paciente........................................................................................ 147
2.3. Golpe de vista: o que pertence às crianças, o que pertence a seus pais...... 175
Introdução......................................................................................................... 237
xv
3.6. Lactente....................................................................................................... 250
CONCLUSÃO......................................................................................................... 273
ANEXOS.................................................................................................................. 291
xvii
RESUMO
xix
Esta pesquisa visa compreender a construção do objeto de trabalho pediátrico no
atendimento clínico voltado para as crianças, a partir da análise do discurso pediátrico sobre
a infância. O material empírico utilizado foi composto, fundamentalmente, por
depoimentos de nove pediatras que relataram a forma como a experiência clínica foi sendo
elaborada em suas trajetórias escolares e profissionais no campo médico-pediátrico. Nesta
investigação, foram utilizados alguns princípios teóricos presentes nas perspectivas
analíticas de autores como M. Foucault, L. Althusser, M. Pechêux e E. Orlandi.
Considerou-se que o olhar pediátrico é interpelado pela categoria social de “infância”, de
modo que seu foco de atenção é deslocado do corpo doente ao corpo infantil das crianças.
Na medida em que o campo pediátrico estruturou-se historicamente enquanto um sistema
de proteção da infância, a prática clínico-pediátrica busca apreender não somente o “corpo
doente” (problema biomédico) mas também o “corpo infantil” (problema sócio-médico) das
crianças. A análise dos depoimentos apontou de que maneira a clínica pediátrica define
limites específicos para o papel de cuidador “especializado” e “leigo” das crianças, a partir
de uma tensão existente entre o campo pediátrico e o campo das relações familiares. Por
fim, buscou-se identificar uma tipologia da infância elaborada no atendimento
clínico-pediátrico, a partir da qual a atenção médica é organizada em torno das fases do
desenvolvimento infantil.
Resumo
xxi
ABSTRACT
xxiii
The present study aims to understand the built of pediatric working object in clinical
assistance to children, by using the pediatric speech analysis about the childhood. The
empirical data was based on interviews with nine pediatricians who reported how their
clinical experience was developed during the school and professional lives in the medical-
pediatric field. Some theoretical principles exploited in the analytical perspectives of some
authors like M. Foucault, L. Althusser, M. Pecheux and E. Orlandi were used in this study.
It was considered that the pediatric focus is interpellated by the “childhood” social
category, in a way that its attention is diverted from the sick body to the infant body of the
children. Therefore, as the pediatric field evolved as a childhood protection system, the
clinical pediatric practice aimed to consider not only the “sick body” (biomedical problem)
but also the “infant body” (social-medical problem) of children. The testimonies analysis
showed how the pediatrics practice defines specific limits to the role of the expert and non-
expert children care provider, from an existent tension between the pediatric and familial
relationship fields. Finally, we tried to identify an infancy typology based on the pediatric
clinical assistance, from where the medical attention is organized by the childhood
development stages.
Abstract
xxv
APRESENTAÇÃO
27
Esta pesquisa visa compreender a construção do objeto de trabalho da pediatria
no atendimento clínico voltado para as crianças. A partir da análise das práticas discursivas
pediátricas sobre a infância presentes no atendimento clínico pretende-se explorar as
relações constitutivas existentes entre a Infância e a Pediatria. Neste sentido, a investigação
aqui apresentada pergunta, centralmente, pela forma com que o discurso pediátrico sobre a
infância estrutura a prática clínica pediátrica.
Apresentação
29
- a afirmação da puericultura como um conjunto de práticas que possibilitam a
proteção da infância, a partir das quais a pediatria surgirá como uma
especialidade médica voltada para as crianças;
Apresentação
30
No terceiro capítulo, será apresentada uma tipologia pediátrica da infância,
elaborada a partir da descrição da forma com que o atendimento clínico é organizado de
acordo com cada fase do desenvolvimento infantil.
Por fim, são apresentadas algumas conclusões desta investigação, onde são
resumidas as principais questões desenvolvidas nas análises empreendidas.
Apresentação
31
INTRODUÇÃO
33
1. Aspectos Gerais
Introdução
35
encontrá-la nas tramas familiares. Dentre estes agentes, o pediatra não foi o único, mas
certamente atuou com a força e autoridade de quem pode falar sobre a própria constituição
dos corpos infantis. O pediatra fala enquanto médico!
2. A Questão Teórico-Analítica
Assim, entendemos que o ponto de vista analítico adotado nesta pesquisa não se
separa, de modo absoluto, de nenhum dos outros elementos deste trabalho, mas, sim,
atravessa a investigação como um todo. Nesta medida, o pólo teórico e o pólo empírico
tocam-se intensamente no transcorrer desta pesquisa (Bruyne et al., 1977).
Introdução
36
agente institucional a trabalhar com amplas tipificações sociais sobre a infância), quer
porque a Pediatria teria construído um aparato conceitual muito bem definido em torno da
infância. Neste segundo caso, a dimensão tecno-assistencial em que a criança é apreendida
cotidianamente nos serviços de atenção à saúde viria a ser um tema já delineado
claramente, prescindindo, assim, de uma discussão mais detida sobre o tema.
1
O roteiro de questões que guiou estas entrevistas é apresentado em anexo ao final deste trabalho, assim
como uma “legenda” para facilitar a compreensão de alguns sinais de transcrição utilizados nos trechos
reproduzidos ao longo deste texto.
2
Descreveremos com mais detalhes as técnicas de pesquisa utilizadas para a produção deste material
empírico no terceiro item desta Introdução, intitulado “Os sujeitos da Pesquisa”.
Introdução
37
Interessou-nos, nesta pesquisa, apreender alguns elementos da trajetória
profissional dos entrevistados para compreender melhor a construção do ato clínico
pediátrico, elaborada em diversos momentos da carreira médica. Neste sentido, buscamos
identificar, nas narrativas destes pediatras, a construção de uma experiência clínica
“escolar”, própria ao período de formação, e a construção de uma experiência clínica
“profissional”, consolidada ao longo dos anos de trabalho pediátrico.
Torna-se importante chamar a atenção para o fato deste estudo não tentar uma
retomada da acepção sociológica clássica do conceito de Representação Social (RS)
definido por Durkheim (1972). Tampouco, esta investigação localiza-se nos balizamentos
teóricos e metodológicos colocados pela Psicologia Social, em que se estabeleceram novos
parâmetros para os estudos de representações sociais, especialmente a partir das
formulações inauguradas pelos trabalhos de Moscovici (1961), por sua vez retomadas e
desenvolvidas por diversos estudiosos do tema, tais como Herzlich (1969), Jodelet (1989),
Abric (1998), Spink (1993), entre outros
Introdução
38
podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações
discursivas diferentes.” (Orlandi, 1999α:43 e 44)
“Como diz Vignaux (1979), o discurso não tem como função constituir a
representação de uma realidade. No entanto, ele funciona de modo a
assegurar a permanência de uma certa representação. Para isso, diríamos,
há na base de todo discurso um projeto totalizante do sujeito, projeto que o
converte em autor. O autor é o lugar em que se realiza esse projeto
totalizante, o lugar em que se constrói a unidade do sujeito. Como o lugar da
unidade é o texto, o sujeito se constitui como autor ao construir o texto em
sua unidade, com sua coerência e completude. Coerência e completude
imaginárias (...)
Introdução
39
Dito isto, resta afirmar que se os depoimentos dos pediatras entrevistados são
tomados como textos em que serão investigados os discursos sobre a infância, no intuito de
melhor compreender o objeto de trabalho pediátrico, a compreensão dos funcionamentos
discursivos presentes nestes textos será pautada necessariamente pelo simbólico. Uma vez
que o ideal da unidade (indivíduo/fala) é contraposto ao real da dispersão no discurso
(posição-sujeito/ideologia), dando margem à compreensão da falha, do deslize, do equívoco
e da contradição como produtores de sentidos (outros), é no ponto em que o discurso e a
história se tocam que a análise das narrativas será efetuada.
É importante notar que a falha, o deslize e o equívoco não são aqui tomados
como um “erro” intencional ou acidental cometido pelos indivíduos em seus fazeres
cotidianos. Estas noções possuem um lugar teórico distinto nas análises que se seguem,
apontando para o princípio da contradição como garantia de movimento de sentidos. Ou
seja, na medida em que nem a língua nem os sentidos estão completos, ao dizer o indivíduo
significa necessariamente a partir de posições-sujeito constituídas por já-ditos e por não-
ditos que estabilizam sentidos (institucionalização), ao mesmo tempo em que estão abertas
ao deslocamento e, portanto, à afirmação de novos sentidos.
Introdução
40
quando, por exemplo, a instância econômica determinaria, fundamental e aprioristicamente,
a instância política, a cultural ou outras. Estas dimensões são compostas, isto sim, por
práticas sociais produzidas no momento em que os próprios sujeitos constituem-se
enquanto tais.
A ideologia não será trabalhada, neste estudo, como uma instância falseadora
das relações sociais, que agiria de modo imperativo sobre os indivíduos, direcionando suas
interpretações sempre para um mesmo lugar concreto⎯ uma visão de mundo burguesa, no
caso de uma sociedade capitalista. Ao invés de tomar a ideologia como um véu que
encobriria relações sociais “verdadeiras”, entendemos que a ideologia é a dimensão onde as
próprias condições sociais de existência se constituem (Althusser, 1989).
Neste sentido, segundo o ponto de vista aqui assumido, não haveria relação
social “verdadeira” tomada “fora” da ideologia, em vista de outras relações sociais que
seriam consideradas “dentro” da ideologia, porque forjadas a partir de representações
sociais geradas num mundo fictício em que os indivíduos supostamente estariam imersos
⎯ iludidos no mundo das aparências.
Ela consiste, para fins desta pesquisa, em um efeito que oferece condições para
que as relações sociais constituam-se, e não em uma substância que estaria inscrita somente
em uma parcela das relações humanas, destinada a iludir os homens. Portanto, a ideologia
não seria um véu concreto ou uma máscara fictícia que se interpõe entre o Homem e a
Natureza, entre o ser e a coisa; ela é, isto sim, um efeito implicado necessariamente nos
processos que constituem sentidos, sujeitos e práticas sociais. Este efeito consiste em
apagar as marcas que denunciam a construção histórica dos significados, dos valores, dos
dizeres.
Introdução
41
Considerado em uma perspectiva histórica pautada pela contradição (descrita
pelo raciocínio dialético), este apagamento vincula-se, por exemplo, ao efeito de
naturalização da língua.3
3
A língua, ou ainda, a linguagem, apresenta-se como um locus privilegiado de análise para compreendermos
algumas formas em que a ideologia torna-se um efeito necessário na constituição de sentidos apreendidos na
vida social.
Introdução
42
Assim, se as experiências escolares e profissionais relatadas pelos pediatras
entrevistados permitem a construção de trajetórias individuais em que são lançadas
percepções pessoais sobre a prática pediátrica, recuperar estas percepções no sentido de
montar o quebra-cabeça de suas representações individuais não será o caminho percorrido
no tratamento do material empírico. Isto porque, não interessa reconstituirmos as
apreciações de cada entrevistado sobre sua prática profissional, de forma a caracterizarmos
uma práxis logicamente coesa, pertencente a indivíduos (personagens) dotados uma
consistência psicológica una. Antes interessa-nos apreender as formações discursivas em
que os indivíduos entrevistados constituem-se enquanto sujeitos (pais, pediatras, médicos).
Introdução
43
mantém a linha, se detém junto às margens, ultrapassam limites,
transbordam, refluem. No discurso, no movimento do simbólico, que não se
fecha e que tem na língua e na história sua materialidade. Quando dizemos
materialidade, estamos justamente referindo à forma material, ao seja, a
forma encarnada, não abstrata nem empírica, onde não se separa forma e
conteúdo: forma lingüístico-histórica, significativa.” (Orlandi, 1999α: 53)
Introdução
44
Boltanski, por sua vez, analisa as produções simbólicas acerca do corpo em
populações de caráter rural e urbano do interior da França, a partir da variável
extremamente complexa de classe social, em um estudo clássico, onde afirma:
Assim, temos que as percepções relativas ao corpo não são óbvias, nem as
mesmas para grupos sociais diversos. E, desta forma, a partir dos comentários acima
expostos, torna-se possível afirmar que com o ato clínico temos a passagem do reino da
heterogeneidade para o da homogeneidade, de modo que a diversidade será sempre presa e
reduzida à unidade nas práticas profissionais que se apóiam no saber da Clínica.
Podemos perceber isto mais claramente quando atentamos para o fato de serem
os médicos os agentes institucionais autorizados, privilegiadamente, a: definir,
supostamente de modo inequívoco, os meandros e limites da dor e de seu manejo; a
estipular quais queixas dos pacientes são legítimas, merecendo serem reconhecidas como
Introdução
45
“necessidades em saúde” e a definir quais condutas terapêuticas os pacientes devem
necessariamente adotar em relação aos seus problemas de saúde.
Introdução
46
são transformados em fatos particulares da realidade científica (sinais clínicos) quando as
informações fornecidas pelo paciente são comparadas aos exames físicos e laboratoriais
empreendidos pelo médico. Estes fatos particulares, por sua vez, são dimensionados em
quadros gerais que compõem a normalidade patológica dos quadros clínicos (casuística).
O ato clínico pediátrico será estudado, nesta pesquisa, somente a partir dos
discursos dos pediatras, não entrando na análise as concepções sobre a infância
estabelecidas pelos pacientes. Não obstante, podemos perguntar como os pediatras agem na
investigação clínica – composta pela anamnese e pelo exame físico e/ou laboratorial – ao
lidarem com a criança. Constituindo um objeto de intervenção médica, a criança coloca
desafios e dificuldades para a formação do quadro diagnóstico e prognóstico no
atendimento clínico-pediátrico, de maneira que o olhar da Clínica é interpelado pela
construção social da infância. Rivorêdo, um pediatra inquieto diante das práticas
empreendidas pela Pediatria em relação à criança, destaca como uma das questões centrais
em sua gama de preocupações a existência de um certo desconforto presente no ato clínico
pediátrico, pontuado da seguinte maneira:
Introdução
47
que terminam, não sem conflito, por aproximarem-se delas apenas na
ocasião de manipular seu corpo para efeito de execução do conjunto de
procedimentos que contribuem para a elucidação diagnóstica. [Sendo que]
na relação médico e seu saber e a criança e seu corpo, interpõe-se um
intermediário, na maioria das vezes sua mãe, aumentando a distância entre o
agente da prática e o seu objeto.” (Rivorêdo, 1998: 34 e 42 — grifo nosso)
“Como a infância veio, de modo crescente, a ser pensada como algo distinto
da ‘adultice’, a medicina veio, então, a conceber as doenças e os corpos das
crianças como sendo diferentes dos adultos. Uma das mais salientes
diferenças residiria no potencial para o desenvolvimento futuro que o corpo
infantil representa. Ele é um ‘futuro’ vulnerável diante da ruína das doenças,
necessitando ser nutrido e protegido.” (James, 1998: 100)
Introdução
48
Se a abordagem do ato clínico pediátrico deve perguntar sobre os tipos de
tecnologias que organizam os instrumentos de trabalho pediátrico, o dimensionamento
tecnológico da prática médica deve considerar os limites contraditórios entre o saber
epistêmico (epistemé) e o conhecimento aplicado (techné). 4
4
“Um saber tecnológico opera em uma dobra na qual, de um lado, expressa seu compromisso com a ‘razão
instrumental’ e, de outro, com a ‘razão teórica’.” (Mehry in Mehry e Onocko, 1997: 128) Procuraremos
compreender os instrumentos de trabalho pediátrico a partir da dobra tecno-assistencial presente nas práticas
médicas voltadas para as crianças, a partir da qual ocorre um trabalho simbólico em que o olhar pediátrico
insere-se num amplo sistema de proteção e disciplinarização do corpo infantil.
Introdução
49
A partir destes autores, destacamos três princípios teóricos que devem ser
observados na análise da materialidade discursiva das narrativas pediátricas que compõem
o material empírico desta pesquisa:
Não há relação direta entre o mundo e a palavra, pois não temos, de um lado, o
mundo “humano” dando sentido às coisas, e, de outro, um mundo “natural” composto pelas
coisas em si. Temos, sim, que o mundo está nas palavras e não através delas. Ou seja, a
palavra não é algo neutro, que guarda informações que corresponderiam a um reflexo do
mundo real. A palavra se produz na relação ideológica, de modo não descolado da realidade
(já que não oposto a esta). Assim, a palavra deve ser entendida nas relações que produz, e
não nas informações que transmite. Neste sentido, a língua é opaca, pois não é neutra, o que
implica em buscarmos compreender a palavra nas relações que ela produz a partir de sua
historicidade.
“As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua.
O que é dito em outro lugar também significa nas ‘nossas’ palavras. O
sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o
modo pelo qual os sentidos se constituem nele.” (Orlandi, 1999α: 32)
Introdução
50
• A língua não é ocultação da ideologia.
Introdução
51
Buscando analisar o corpus empírico a partir da materialidade do discurso, a
análise aqui proposta busca compreender o modo como os indivíduos interpelados pela
ideologia constituem-se em sujeitos nos discursos encontrados.
3. Os Sujeitos da Pesquisa
5
Sobre algumas vantagens encontradas na utilização de entrevistas para o trabalho de campo, Minayo nos diz
que: “O que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de informações para as ciências sociais é a
possibilidade de a fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos
(...) [e no que diz respeito especificamente à entrevista semi-estruturada] A ordem dos assuntos abordados
não obedece a uma seqüência rígida, sim, é determinada freqüentemente pelas próprias preocupações e
ênfases que os entrevistados dão aos assuntos em pauta [sendo que] (...) a aproximação qualitativa permite
atingir regiões inacessíveis à simples pergunta e resposta” (Minayo, 1998: 109-122)
Introdução
52
Na segunda, foram obtidas listas de pediatras credenciados em duas grandes
empresas ou cooperativas que oferecem planos médicos de atenção à saúde no setor
privado regional. A partir destas, foram selecionados por sorteio aleatório simples dois
grupos de profissionais, com quem procurou-se estabelecer contato telefônico para agendar
as entrevistas.
- Ato Clínico;
- Infância.
6
Vale ressaltar que coincidentemente todos os pediatras entrevistados cursaram medicina em escolas
públicas.
Introdução
53
substituídos por nomes fictícios. Da mesma forma, procurou-se evitar a exposição de
qualquer informações que viessem a identificar inequivocamente os entrevistados.
Dra. Cristina
Cristina nasceu em meados da década de 50. Filha de alfaiate, morava com seus
pais em um bairro simples de São Paulo. Tendo estudado em escola pública, teria como
destino certo seguir o magistério, inscrevendo-se provavelmente em uma escola normal, ou
mesmo em algum curso superior em pedagogia, como era costume ocorrer com as meninas
de seu convívio
Introdução
54
Dra. Zélia
Zélia nasceu em meados da década de 50, sendo criada em uma pequena cidade
do interior paulista. Dos seus vários irmãos, o mais velho acaba por seguir a carreira
médica. Não obstante isto, esta pediatra afirma ter-se interessado pela Medicina muito mais
em decorrência do exemplo paterno. Filha de um dono de farmácia, Zélia conta que a
atuação de seu pai junto aos clientes imprimiu-lhe, desde cedo, um senso de
comprometimento muito grande com a atenção à saúde das pessoas.
Dr. Ricardo
Ricardo nasceu em fins da década de 50, tendo sido criado em uma grande
cidade do Estado de São Paulo. Após ter feito um colegial técnico na área de exatas,
Ricardo redireciona seu percurso escolar ingressando no curso médico, em uma escola do
Estado de São Paulo, concluindo a graduação nos primeiros anos da década de 80, quando
também veio a casar-se com uma colega de curso. Ricardo ingressa em seguida na
residência pediátrica, participando de entidades ligadas ao movimento estudantil. Ao
concluir os dois primeiros anos de residência, em meados de oitenta, Ricardo presta
Introdução
55
concurso em uma escola médica do setor privado, sendo contratado como docente da área
de Pediatria. Neste momento, Ricardo tem o primeiro de seus dois filhos. Após uns poucos
anos, este pediatra presta concurso para a sua escola de origem, sendo contratado como
docente. Ricardo permanece nesta instituição até hoje, onde realizou a sua pós-graduação
em níveis de mestrado e doutorado.
Dra. Mônica
Mônica nasceu no começo dos anos 50, tendo sido criada na capital do Estado
de São Paulo, onde viveu até a adolescência. Neta de imigrantes japoneses que vieram para
o Brasil trabalhar na lavoura, Mônica ingressa no curso médico em uma escola pública do
interior paulista, vindo a concluí-lo em fins da década de 70. Em seguida, faz a residência
em Pediatria, ao final da qual tem seu primeiro filho. Mônica afasta-se de qualquer
atividade profissional para cuidar de seu filho. Dois anos mais tarde, nasce seu segundo
filho e, após um período de quatro anos dedicando-se integralmente ao cuidado materno,
Mônica abre um consultório pediátrico. Em seguida, tem mais uma filha, sem parar suas
atividades profissionais. Mônica atua até hoje em consultório próprio na área privada,
sendo que atualmente desenvolve seu curso de mestrado na sua escola de origem.
Dr. Marco
Marco nasceu nos primeiros anos da década de 60, tendo sido criado na capital
paulista. Sem possuir até então médicos na família, Marco faz um colegial técnico no
exterior, voltado para a área da saúde, e ingressa em uma escola médica pública do Estado
de São Paulo. Concluindo este curso, em fins da década de 80, Marco faz o curso de
residência em Pediatria na mesma escola em que cursou a graduação. Ele termina esta
especialização no início dos anos 90, passando a trabalhar na área de Terapia Intensiva e
realiza seu mestrado nesta mesma escola. Neste período, torna-se, inclusive, responsável
pela residência médica em Terapia Intensiva Pediátrica. A partir de meados da década de
noventa, Marco passa a trabalhar em um serviço hospitalar de saúde voltado para crianças,
Introdução
56
onde, nos últimos anos, atua de maneira muito próxima à residência na área de
Oncohematologia. Marco é pai.
Dra. Carla
Carla nasceu no início da década de 40, tendo sido criada em Recife. Filha de
costureira e de sargento do exército, ela possui um irmão mais velho que se tornou médico.
Ela ingressa no curso médico, em uma instituição pública de Pernambuco, à revelia do
desejo de seus pais, que gostariam que ela seguisse os passos de sua mãe. Sem contar com
o apoio familiar, Carla termina a graduação nos últimos anos da década de 60. Verificando
que a sua grande área de interesse, Hematologia, organizava-se em um mercado de trabalho
muito fechado, Carla aproveita a oportunidade de vir para o sudeste trabalhar como
plantonista em diversos serviços do setor privado, na área de Pediatria. Mais tarde, Carla
passa a trabalhar em um serviço previdenciário e monta seu consultório em meados da
década de 70, lutando para criar sozinha seu único filho. Sem ter feito o curso de residência
pediátrica, Carla adquire o reconhecimento da Sociedade Brasileira de Pediatria como
especialista da área, no início da década de 80, sendo que, cerca de dez anos mais tarde,
esta pediatra defende o título de especialista em Pediatria, consolidando formalmente uma
extensa atuação neste campo profissional. Atualmente, presta atendimento na rede básica
de saúde e em um serviço hospitalar, em diferentes cidades do interior paulista, além de
manter seu consultório particular.
Dr. Francisco
Introdução
57
rede básica de saúde. Francisco ingressa, então, na residência pediátrica, vindo a finalizá-la
no final da década de 90. Neste período, atraído pelas subespecialidades, Francisco passa a
trabalhar como plantonista no setor de U.T.I. neonatal, em dois serviços próximos à capital
do estado. Atualmente, continua com estes empregos, além de trabalhar como médico
contratado com treinamento em serviço (especialização) em oncohematologia pediátrica em
uma instituição hospitalar voltada para a atenção em saúde infantil.
Dra. Fátima
Fátima nasceu nos primeiros anos da década de 70, sendo criada em uma capital
da região nordeste. Ingressa na Medicina, seguindo as expectativas de seus pais, sem ter
parentes médicos ou mesmo grande contato com esta carreira profissional. Seus pais,
criados no interior nordestino, tendo como escolaridade o segundo grau completo, sempre
tiveram em alta conta a carreira médica. Fátima conclui o curso, efetuado em uma
instituição pública de uma capital da região norte do país, em meados dos anos 90. Logo
após a conclusão deste curso, Fátima decide vir para a região sudeste, no Estado de São
Paulo, para ingressar no curso de residência pediátrica em uma instituição privada.
Terminada esta residência, no final dos anos 90, Fátima é admitida em um serviço de
atenção pediátrica hospitalar como médica contratada para efetuar treinamento em serviço
(especialização) em oncohematologia pediátrica.
Dr. Gustavo
Gustavo nasceu no início dos anos 40, sendo criado na capital paulista. Filho de
médico, ele decide ingressar no curso médico contrariando o desejo de seu pai. Assim,
apesar de ter-se preparado para a área de engenharia, Gustavo opta pela Medicina,
terminando o curso de graduação em uma escola pública paulista, em meados dos anos 60.
Em seguida, inicia a residência pediátrica nesta mesma instituição, concluindo a
especialização no final dos anos 60. Assim que finaliza a residência, Gustavo abre um
consultório particular, junto com outros colegas, em que manterá atividades clínicas por
Introdução
58
cerca de 30 anos. Após a residência, Gustavo participa de uma pesquisa realizada na área
de saúde pública, a qual lhe serviu de porta de entrada para a carreira acadêmica. Logo após
realizar seu mestrado, Gustavo é contratado como docente em uma instituição pública de
ensino superior, na área de saúde. A partir daí, Gustavo torna-se pai de duas crianças e
realiza seu doutorado nesta mesma instituição, onde vem assumindo diversos cargos
administrativos importantes, especialmente a partir da década de 80.
Introdução
59
CAPÍTULO 1
“A questão da língua [infância] é, portanto, em primeiro lugar uma questão de Estado, com
uma política de invasão, de absorção e de anulação das diferenças, que supõe, antes de tudo,
que estas são reconhecidas: a alteridade constitui na sociedade burguesa um estado de
natureza quase biológica, a transformar-se politicamente.
O poder do Estado burguês sonha, assim, ao mesmo tempo com a forma logicista de um
sistema jurídico concentrado em um foco único e a forma socialista de uma absorção
negociada da diversidade: poder que funciona simultaneamente segundo a figura jurídica do
Direito, e segundo a figura biológica da Vida.
Assim se realiza a divisão do trabalho que dá à configuração dual da lingüística [Pediatria] sua
forma contemporânea:
61
62
INTRODUÇÃO
1
Devemos lembrar que “o modelo médico (...) não deve ser visto como homogêneo e consistente. Não existe,
na verdade, algo assim como uma Medicina ‘ocidental’ ou ‘científica’ uniforme. (...) A prática da Medicina
varia muito nos países ocidentais e no resto do mundo. De um modo geral, o modelo médico é sempre
‘delimitado culturalmente’, e varia muito segundo o contexto no qual aparece” (Helman, 1994:103).
Capítulo 1
63
Este capítulo pretende fazer alguns apontamentos sobre a constituição do
campo pediátrico, de modo a enfocar importantes questões presentes no atendimento
clínico, indicando pontos de sustentação da prática pediátrica como uma especialidade
médica.
A maneira como os pediatras são tocados pelo saber da Clínica e pela categoria
social da infância aponta para o desejo de interferir no cuidado materno. É inquietante
como no jogo dos papéis familiares investigados pela clínica pediátrica o gesto materno
fale tão alto e transborde para além das balizas pedagógicas da sexualidade disciplinada, ao
mesmo tempo em que é objeto do desejo disciplinador da medicalização social. O olhar
clínico é desafiado pela força contraditória desta relação, porém não se calará diante dela,
Capítulo 1
64
pelo contrário, tentará calar o que dela não cabe em seu olhar classificador. Nem tanto
Vênus, nem tanto Marte, movimentos sutis ocorrem neste enfrentamento.
Capítulo 1
65
A Clínica Moderna estabeleceu-se a partir de uma série de deslocamentos
efetuados em relação à Medicina Classificatória, de modo que as práticas médicas
ganharam uma nova configuração e um poder que antes lhes era negado – o de manipular
objetivamente a realidade, uma vez que o conhecimento médico apresenta-se como um
conhecimento sobre o real.
Capítulo 1
67
“O olhar não é mais redutor, mas fundador do indivíduo em sua qualidade
irredutível.” (Foucault, 1980: XIII)
Capítulo 1
68
Em segundo lugar, temos posta uma questão de Olhar, pois na Medicina
Classificatória o olho percorre o adoecimento como sendo uma realidade alterada da
verdade externa ao corpo concreto, existente somente no plano ideal. Já na Clínica
Moderna, o olho percorre a opacidade corpórea em sua existência passiva, anterior a todo
saber, buscando a sua verdade interna.
Em um caso, a experiência aponta para a unidade do plano ideal que passa pela
formulação de tipos ideais, e, no outro caso, a experiência se dá na estruturação da
espessura perceptiva do objeto, quando o gesto de conhecer passa pelo reconhecimento de
que aquele que conhece e aquilo que é conhecido possuem uma mesma natureza – a
experiência clínica encontra na percepção surda do corpo o fundamento de seu saber.
Capítulo 1
69
local que situa o ser da doença, com suas causas e seus efeitos, em um
espaço tridimensional). O aparecimento da clínica, como fato histórico, deve
ser identificado com o sistema destas reorganizações (...) A discrição do
discurso clínico (proclamada pelos médicos: recusa da teoria, abandono dos
sistemas, não-filosofia) remete às condições não verbais a partir do que ele
pode falar: a estrutura comum que recorta e articula o que se vê e o que se
diz.” (Foucault, 1980: XVII-XVIII)
“ Pra ser pediatra devia ser mãe primeiro porque você muda a visão? Hoje
eu não sei se eu usaria essa história de que pra ser pediatra deveria ser mãe
ou pai antes. Porque, na verdade, eu acho que o que diferenciou foi a parte
não médica. Assim, reforçou aquelas minhas idéias de que a gente tinha que
ver além do coração que está batendo, do olho que está enxergando. Porque
é muito comum na própria Pediatria, quando aparecia um caso interessante,
os residentes chamavam e diziam assim: ‘Nossa! Vem ver aqui um fígado
diferente! Vem cá ver um... sei lá, ...um estrabismo.’ Nem era o olho, era pra
ver um estrabismo, você está entendendo, uma particularidade do olho.
Ninguém dizia assim: ‘Olha, venha ver uma criança com estrabismo’. As
pessoas diziam: ‘Venha ver um estrabismo aqui.’ ” [Dra. Mônica]
A importância desta parte não médica, que não quer se calar no trabalho
médico, ganha um peso singular na clínica pediátrica. Isto porque a pedagogia do Olhar-
Infância, em que o mundo se abre de maneira imediata e transparente ao saber clínico,
permitindo o acesso direto à verdade do corpo doente, aponta também, no caso pediátrico,
para incorporação dos elementos da vida, na medida em que busca apreender um corpo em
formação, localizado nas tramas familiares.
Capítulo 1
70
“Então eu sempre digo pras mães: ‘Você é uma mãe maravilhosa! Você é
uma mãe excelente! Você é uma mãe nota mil!’. Hoje eu sou a mãe
querendo adotar o filho dela, entendeu...” [Dra. Carla]
Falar sobre a Medicina como uma prática social implica em perguntar sobre a
própria identidade médica. Implica também em compreender o processo de constituição dos
saberes nucleares que fundamentam o olhar clínico e a regulação de seu ensino, assim
como analisar a organização social das práticas em saúde em que a Medicina é delineada
como um campo profissional.
Evidentemente, este estudo não pretende tratar destes três aspectos amplos que
conformam a Medicina como uma prática profissional. Porém, todos os três são
extremamente relevantes para a análise aqui proposta sobre as concepções de infância entre
pediatras.
Capítulo 1
71
Além disto, se a compreensão sobre os saberes e práticas profissionais em que a
Medicina ganha uma delimitação específica importa para a discussão aqui pretendida,
podemos dizer que a análise das identidades em jogo nas trajetórias escolares e
profissionais dos pediatras entrevistados adquire importância ímpar para a melhor
compreensão da prática clínico-pediátrica.
Capítulo 1
73
organização de uma medicina positiva; e, inversamente, esta medicina foi,
ao nível empírico, um dos primeiros esclarecimentos da relação que liga o
homem moderno a uma finitude originária. Daí o lugar determinante da
medicina na arquitetura de conjunto das ciências humanas; mais do que
qualquer outra, ela está próxima da disposição antropológica que as
fundamenta. Daí também seu prestígio nas formas concretas da existência: a
saúde substitui a salvação, dizia Guardia. É que a medicina oferece ao
homem moderno a face obstinada e tranqüilizante de sua finitude; nela, a
morte é reafirmada, mas, ao mesmo tempo, conjurada; e se ela anuncia sem
trégua ao homem o limite que ele traz em si, fala-lhe também deste mundo
técnico, que é a forma armada, positiva e plena de sua finitude. Os gestos, as
palavras, os olhares médicos tomaram, a partir deste momento, uma
densidade filosófica comparável talvez a que tivera antes o pensamento
matemático. A importância de Bichat, Jackson e de Freud na cultura
européia não prova que eles eram tanto filósofos quanto médicos, mas que
nesta cultura o pensamento médico implica de pleno direito o estatuto
filosófico do homem.” (Foucault, 1980: 227 e 228)
Capítulo 1
74
Na segunda, a Medicina é compreendida como uma prática social que se
produziu em movimentos de ruptura epistemológica, técnica, teórica e morfológica, em que
não podemos perceber uma linha de continuidade (puro aperfeiçoamento técnico), mas que
devemos analisar em suas configurações discursivas. Tomando a Clínica Moderna como
um saber constituído a partir do século XVIII, temos, neste segundo ponto de vista, o
convite para pensarmos a prática médica naquilo que a fundamenta, ou seja, nos
deslocamentos estabelecidos em relação aos conhecimentos classificatórios, aos espaços
terapêuticos, aos conceitos de saúde e doença, ao lugar epistêmico da linguagem, ao ensino
médico, dentre outros fatores que extrapolam um processo descrito pela conformação de
um conhecimento técnico. Assim, sem que nos vejamos prisioneiros de algumas figuras
que atuam miticamente no imaginário da profissão, devemos compreender quais os
funcionamentos discursivos que estão sendo postos em jogo pela noção de “autonomia
profissional”, tão cara ao pensamento médico.
Capítulo 1
75
Gustavo, filho de médico, preparava-se para seguir a carreira de engenharia,
atendendo às expectativas de seu pai. Porém, seu irmão sofre um grave acidente, iniciando-
se um evento marcante na vida deste pediatra. Gustavo passa a acompanhar seu irmão
numa longa internação hospitalar, passando a responsabilizar-se por sua saúde. Tocado de
modo profundo por toda esta situação, Gustavo descobre que a Medicina salva vidas.
“O meu pai é médico e a última coisa que ele queria era ter um filho médico
(...) Eu estava no terceiro colegial, e aí um irmão meu foi atropelado, ficou
em coma (...) um mês, politraumatismo (...) E eu que tinha que ficar atrás de
doador de sangue, (...) ficava com ele, dormia no corredor do hospital,
porque ele ficou no pronto socorro, no corredor, quinze dias, e não tinha
vaga pra internar...e quase morreu. E aí, quando acabou esse drama, aí eu
falei: ‘Ó, você quer saber? Eu quero mesmo é ser médico, não é engenheiro
não!’ O meu pai ficou uma vara comigo. (...) O caminho dele na Medicina
foi muito duro (...) o pai dele era muito humilde (...) Eu acho que era pra ser
médico (...) Não me arrependo, gostei muito de ter escolhido ser médico e
acho que foi providencial, o meu irmão ter sido atropelado e eu ter então
percebido a tempo (...) Vi que a Medicina salva vidas (...) O meu pai talvez
tivesse sido muito melhor advogado do que médico. Mas ele foi um belo
médico, sabe? (...) Na verdade, eu acho que ele não tinha que ter querido
nada.” [Dr. Gustavo]
Capítulo 1
76
1.4. Vocação: como é chamada a tua profissão?
“Eu acho que era pra ser médico (...) foi providencial.” [Dr. Gustavo]
“Na verdade, eu não fiz colegial no Brasil, eu sou formado pelo colegial no
[exterior] Na época isso era pouco conhecido no Brasil, um curso chamado
Bacharelado Internacional (...) pras ciências de saúde, então, na realidade,
quando eu fui pra esse curso já era premeditando a entrada em Medicina.
Realmente eu tenho uma idéia de fazer Medicina desde os primórdios aí do
colegial.” [Dr. Marco]
Capítulo 1
77
No entanto, para a maior parte dos entrevistados, a Medicina surge como algo
distante de sua vida escolar e familiar. Ela aparece como uma possibilidade de travar um
intenso contato com as pessoas e com o mundo. Para alguns destes adolescentes, o simples
ingresso em um curso superior já significou uma ruptura com as suas trajetórias familiares,
quando um mundo diferente abriu-se diante de seus olhos, desafiando-os e requisitando-
lhes um imenso esforço para ingressar numa nova fase da vida.
“E naquela época (...) eu não tive o orgulho dos meus pais. O meu pai e a
minha mãe não se sentiram orgulhosos porque eu fiz Medicina. Foi um
achado, eu entrei na faculdade por um achado. Porque eu não me preparei,
eu não fiz vestibular, eu não fiz cursinho, sabe (...) Aí eu entrei na
universidade, mas eu entrei ainda de vestido de laço. Com dezoito anos, de
vestido de laço, pra você ver. Quando eu cheguei na faculdade eu me deparei
com um mundo totalmente diferente (...) Eu fiz Medicina... porque eu
gostava das duas coisas, mas não foi um dom (...) que eu tinha talento (...)
Mas eu fui bem porque eu acho que eu ia em qualquer lugar. Porque eu
gostava assim, de estudar, de ler, e mesmo assim eu não tinha tempo de
estudar porque mesmo no sexto ano de Medicina, pra você ter uma idéia, eu
fiz faxina em casa dos outros. Porque a minha mãe era costureira, e ela
achava que eu ia estudar Medicina, era um desperdício, porque eu era boa
em costura. Então eu nunca tive aquele orgulho, assim, da família: ‘Olha, a
minha filha está estudando Medicina!.’ O meu pai escondia até, você
entende? Porque antigamente era orgulho, hoje já não é tanto mais. Mas o
meu pai escondia, e eu me sentia muito chateada com isso. E eu tinha meus
colegas de faculdade que eram colegas que tinham, assim, uma condição
financeira dez vezes melhor que a minha, e eu era menina, eu não tinha
condição de escolha, você entende?” [Dra. Carla]
Vemos como não é a questão da predestinação que se coloca para esta pediatra
em sua aproximação com a carreira médica. Ao contrário, a Medicina aparece em sua vida
como um achado, algo que não estava lá todo o tempo esperando para ser revelado. Vemos,
Capítulo 1
78
também, como isto pesa em sua trajetória, uma vez que nesta menina de “vestido de laço”
era vislumbrado o dom da costura e não o da Medicina.
Esta situação leva Carla a lutar enfaticamente por sua escolha, fazendo faxina,
estudando e esforçando-se ao máximo para encontrar seu lugar na carreira médica. Ela só
encontrará seu verdadeiro dom, seu ponto de tranqüilidade, quando se aproxima da área de
Hematologia.
“Por incrível que pareça, eu queria fazer Hematologia. E como eu era feliz
em Hematologia! Mas eu adorava hematologia. Pra você ter uma idéia,
quando o meu professor tomava [de um instituto hematológico] meu
professor viajou (...) [e] me deixou tomando conta de Hematologia, no
quarto ano de Medicina! Você acha?! Ninguém até hoje se conforma de eu
ser pediatra, meus colegas, tenho pavor. Aí o que foi que aconteceu? Por
isso que eu não fiz residência (...) Eu tinha horror [a Pediatria], sabe por
quê? Porque a gente como adolescente, a gente tem ideal, não tem ideal?
Então a gente... cada pessoa tem um ideal quando a gente está... vai se
formar. Então, o meu ideal é que eu achava que se eu fosse... pode ser que
eu não fosse nada, que fosse uma porcaria de gente... Eu achava que se eu
seguisse aquilo que eu realmente gostei, eu acho que eu seria muito mais
feliz profissionalmente, em todos os pontos. Porque era uma coisa que eu
tinha dom mesmo, eu tinha dom! Eu tinha dom! Qual o professor que deixa
um estudante tomar conta de um instituto?! Era eu. A minha mãe (...) falava:
‘Doutor, o senhor está louco, deixar a minha filha com vinte e três anos aqui
(...) tomando conta do instituto!’; ‘Mas ela é capaz!’ (...) Então eu acho que
eu não fiz o que eu gostei, é só por isso.” [Dra. Carla]
Capítulo 1
79
A Medicina como um achado e o curso médico como um novo universo são
elementos encontrados também por Cristina em sua aproximação com a carreira médica. A
imagem que melhor expressava a Medicina naquele momento, para ela, era a de um
personagem de seriado de televisão, o Dr. Kildare.
“E assim, eu não tenho na família, eu não tinha nenhuma pessoa que era da
área, não... os meus pais não tinham formação nem de ginásio, quer dizer,
tanto o meu pai, como a minha mãe tinham terminado o primário, o meu
pai era alfaiate. Então, família mais simples mesmo. E na família dele
também a regra (...) naquela época (...) a maioria das pessoas que conviviam
com a gente, as meninas em geral faziam mais Normal (...) eu estudei em
escola publica (...) fazer Normal e uma ou outra fazer uma faculdade mais na
área de Pedagogia, na área de Educação. Não era muito comum a gente
perceber as pessoas irem para uma área dessas [como Medicina],
principalmente em mulher. Tinha, tinha uma certa diferença (...) O meu
irmão foi fazer faculdade, Engenharia, que já foi uma coisa diferente, tanto
do resto da família, como do convívio mais comum do bairro onde a gente
morava. E as opções, quer dizer, eu não tinha alguém que estava falando
‘Olha, Medicina é bom porque vai fazer aquilo.’ Você tem aquela idéia de
quando vai no médico (...) Então, assim, não teve nenhuma orientação, quer
dizer, e aí, sei lá, uma prima minha começou a fazer cursinho pra Medicina,
‘Ó, taí um negócio que eu podia fazer, que eu gosto’. Mas sem a menor
noção e orientação. Aí eu falei em casa que eu queria fazer, meu pai (...)
levou até um susto no começo, de querer ir para um curso desse, mas
mandou ver: ‘Então vai’. Eu era boa aluna, gostava de estudar, tinha
aquela coisa de ser uma coisa difícil também, eu acho que tem um... um
desafio (...) [Quanto à Medicina] É a visão de Dr. Kildare, não sei se nunca
você assistiu esse filme, que era o que tinha (...) a experiência da vida da
gente, dos médicos que atendiam a nossa família. Então para mim medicina
era aquilo, e só. Hospital, visão clínica, não tinha muita noção, nem como
que estava organizado, se as condições eram boas ou não, se as
possibilidades de trabalhar eram boas ou não, não tinha essa visão, entrei
sem mesmo conhecer. E só dessa vivência pessoal, de leigo, de quem usa o
serviço, e não de quem conhecesse o profissional que trabalhava...” [Dra.
Cristina]
Capítulo 1
80
Vinda de uma família humilde, onde o horizonte de uma profissão liberal não
se colocava de maneira próxima entre seus membros, Cristina entra no curso médico
munida de sua experiência “de leigo”. Suas vivências pessoais em relação à Medicina
apontam para o médico de família, sem que o serviço ou rede assistencial deixem de estar
também presentes. O ingresso na Medicina aparece, portanto, como algo inusitado em sua
trajetória familiar, sendo que seu bom desempenho escolar permite a esta adolescente
enfrentar o desafio de trilhar os rumos de um curso superior.
Capítulo 1
81
Entre a métrica de um conhecimento exato e o traçado titubeante em direção à
inexatidão humana, a Medicina aparece como possibilidade concreta de tocar o real através
de um olhar em que os limites entre a objetividade e a subjetividade são postos pelo tempo
da Clínica. A ação é rápida porque o gesto clínico é imediato, lida diretamente com um real
palpável. Trata-se de um conhecimento inexato, porque a experiência clínica, embora
permaneça a mesma em seus fundamentos, é modulada com o tempo. O médico acumula
experiência profissional, sendo tocado por ela em pontos que extrapolam o conhecimento
disciplinar. Com isto, transforma, inclusive, a maneira como se coloca frente à própria
experiência clínica.
“Ora, o que garante à medicina, assim entendida, ser um saber útil a todos
os cidadãos é sua relação imediata com a natureza: em vez de ser, como a
antiga Faculdade, o lugar de um saber esotérico e livresco, a nova escola
será o <<Templo da natureza>>; nela não se aprenderá absolutamente o
que acreditavam saber os mestres de outrora, mas esta forma de verdade
aberta a todos, que manifesta o exercício cotidiano: <<a prática, a
manipulação se unirão aos preceitos teóricos. Os alunos serão exercitados
nas experiências químicas, nas dissecações anatômicas, nas operações
cirúrgicas, nos aparelhos. Ler pouco, ver muito e fazer muito>>, se exercitar
Capítulo 1
82
na própria prática, ao leito dos doentes: eis o que ensinará, em vez das vãs
fisiologias, a verdadeira <<arte de curar>>. A clínica se torna, portanto,
um momento essencial da coerência científica, mas também da utilidade
social e da pureza política da nova organização médica. Ela é sua verdade
na liberdade garantida.” (Foucault, 1980: 79)
Capítulo 1
83
Desde o momento em que opta pela carreira médica, Mônica deseja
dimensionar a normalidade e não a patologia em sua prática profissional. Assumindo
nitidamente que o desejo de intervir sobre os limites entre o normal e o patológico, na
prática médica, Mônica objetiva um acesso direto sobre a vida, demonstrando uma grande
vontade de “participar” da vida das pessoas.
Capítulo 1
84
Uma outra descrição dos anos iniciais do curso médico e uma maneira
completamente diferente de lidar com o significado da anatomia na formação médica é
trazida pelo Dr. Gustavo.
“A minha turma foi uma turma muito unida, muito boa. E eu acho que ela
foi uma das melhores turmas (...) se você falar em termos de sucesso
profissional ou em termos acadêmicos. Médicos muito importantes se
formaram na minha turma e acho que isso ajudou a gente, cada um, a se
inspirar. A minha turma fazia tudo o que faz adulto jovem ou adolescente,
além de estudar (...) a gente fez tudo. Só que era uma turma... não era uma
turma muito bagunceira, então o convívio era legal, era fácil, eu acho que
nesse tempo a faculdade (...) era muito acolhedora, não tinham grandes
problemas. Não era grande a escola, as turmas tinham oitenta alunos, tudo
acontecia aqui ou no [hospital]. Bem depois que eu entrei é que começou o
chamado Curso Experimental, aí começou essa história de não ter mais
turma, que você faz matrícula semestral... Eu acho que essa coisa da
matrícula semestral acabou com o conceito de turma e ficou muito ruim o
convívio dos caras aqui (...) Eu acho que era muito mais fácil no meu tempo.
Não houve nunca nenhum problema. Claro, o meu pai [trabalhava no]
Instituto Médico Legal, então eu estava cansado de acompanhar autópsias,
de olhar exames de corpo de delito, gente machucada. Então, esse impacto
de você ir pra aula de Anatomia e ter que dissecar um cadáver, ou começar a
ir no Pronto Socorro e ver que tem gente que morre, isso eu já sabia. Então
pra mim não foi impacto nenhum. Teve gente, todo ano, a gente sabe, tem
uma crônica dos suicídios entre os estudantes de Medicina, especialmente
quando chegam no hospital, no internato, por exemplo, ou na residência.
Um menino da minha turma... um se matou um pouco antes de começar o
internato. Então a gente sabe que tem, que o impacto é pesado. Mas pra mim
não foi por causa disso, entendeu...” [Dr. Gustavo]
Este choque inicial, que para alguns médicos perdura durante toda a sua
carreira, e, para outros, é tratado com naturalidade, está ligado à ruptura que a Clínica
estabelece entre uma sensibilidade voltada para a descrição dos movimentos vivos do corpo
e outra que reencontra a vida através da morte.
Capítulo 1
85
Vemos a importância deste segundo movimento afirmado nos relatos acima
citados, quando os entrevistados localizam na identificação do <<corpo-peça>> um
mecanismo crucial do raciocínio médico, que perdura apesar das reformulações do curso e
das gerações de médicos. Importa muito o apoio dos colegas e o sentimento de turma neste
momento em que a sensibilidade leiga sobre o corpo é posta em choque com uma
sensibilidade clínica. Este apoio é especialmente importante nos primeiros anos de curso,
quando os alunos estão distantes do setting médico, momento este em que esta ruptura na
sensibilidade parece justificar-se pedagogicamente na divisão “anos básicos X anos
clínicos”. De qualquer forma, as peças em funcionamento devem encaixar-se de modo a
acionar o raciocínio médico possibilitado pelo nascimento de uma verdade original que une
vida e morte de maneira cada vez mais próxima.
“Os processos da morte, que não se identificam nem com os da vida nem
com os da doença, servem, no entanto, para esclarecer os fenômenos
orgânicos e seus distúrbios. A morte lenta e natural do velho retoma, em
sentido inverso, o desenvolvimento da vida da criança, no embrião e talvez,
mesmo na planta: ‘o estado do animal que a morte natural vai destruir se
aproxima daquele em que ele se encontrava no seio de sua mãe, como
também do estado do vegetal que só vive em seu interior, e para quem a
natureza está em silêncio’. Os invólucros sucessivos da vida se desprendem
naturalmente, enunciando sua autonomia e sua verdade naquilo mesmo que
os nega. O sistema das dependências funcionais e das interações normais ou
patológicas se esclarece, também, pela análise destas mortes a varejo (...)
Fixada, assim, em seus mecanismos próprios, a morte, com sua rede
orgânica, não pode mais ser confundida com a doença ou seus traços; pode,
ao contrário, servir de ponto de vista sobre o patológico e permitir fixar suas
formas ou suas etapas (...) O tempo da morte pode se deslocar ao longo da
evolução mórbida; e como esta morte perdeu sua característica opaca, ela se
torna, paradoxalmente e por seu efeito de interrupção temporal, o
instrumento que permite integrar a duração da doença no espaço imóvel de
um corpo recortado. A vida, a doença e a morte constituem agora uma
trindade técnica e conceitual. A velha continuidade das obsessões milenares
que colocava, na vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença
aproximada da morte é rompida: em seu lugar, se articula uma figura
triangular, de que o cume superior é definido pela morte. É do alto da morte
que se podem ver e analisar as dependências orgânicas e as seqüências
Capítulo 1
86
patológicas. Em lugar de permanecer o que tinha sido durante tanto tempo,
noite em que a vida se apaga e em que a própria doença se confunde, ela é
dotada, de agora em diante, do grande poder de iluminação que domina e
desvela tanto o espaço do organismo quanto o tempo da doença... O
privilégio de sua atemporalidade, que é sem dúvida tão velho quanto a
consciência de sua imanência, torna-se, pela primeira vez, instrumento
técnico que permite a apreensão da verdade da vida e da natureza de seu
mal. A morte é a grande analista que mostra as conexões, desdobrando-as, e
explode as maravilhas da gênese no rigor da decomposição: e é preciso
deixar à palavra decomposição todos os pesos de seu sentido. A Análise,
filosofia dos elementos e de suas leis, encontra na morte o que em vão tinha
procurado nas matemáticas, na química e na própria linguagem: um modelo
insuperável e prescrito pela natureza; o olhar médico vai, a partir de então,
apoiar-se neste grande exemplo. Não mais o de um olho vivo, mas de um
olho que viu a morte. Grande olho branco que desfaz a vida.” (Foucault,
1980: 163-165)
“No segundo semestre do segundo ano a gente teve Semiologia, que seria
aprender a examinar o paciente já vivo, com base na Anatomia, lógico...
(risos)... apalpar um fígado... um fígado quente, como a gente costumava
brincar porque os pacientes (...) a gente tinha muito... pessoas com
alcoolismo, então a gente ficava lá cutucando aquele fígado do pobre do
paciente dez, vinte estudantes por dia lidando... assim, examinando o
paciente (...) Então, essa transposição do morto pro vivo... estava dentro da
minha expectativa lidar com o paciente, com pessoas como eu falei pra você.
Mas eu acho que em dois anos que você fica dissecando peças ali, parece
Capítulo 1
87
que você se distancia um pouco do ser humano que está por trás do fígado
que você está apalpando. Então eu acho que o curso médico começa a... não
sei, de-sensibilizar, será que seria o termo (...) começa a distorcer talvez a...
sobre a vida humana, aí, no curso de Anatomia. Porque depois, quando você
transportar o seu conhecimento do cadáver pro ser vivo, as pessoas... quer
dizer, os professores na época, eu não sei como está hoje (...) o curso de
Semiologia, mas era feita uma... uma aula onde o velho professor (...) fazia,
considerações sobre o que seria você tratar do paciente... Quer dizer, nós
não tratávamos, nós só examinávamos, porque a aula era de Semiologia.
Mas eu acho que poucas pessoas pensavam no ser humano que estava atrás
daquele fígado, do coração que a gente escutava, do... pela postura dos
colegas... Era uma coisa dolorosa também, tive vontade de parar o curso aí
também.” [Dra. Mônica]
Capítulo 1
88
estavam totalmente desassistidas. Eu acho que isso é uma coisa que marca
aí. Mas eu, assim, resolvi fazer Medicina porque eu achava que, das coisas
que tinha, era aonde eu podia estar atuando (...) Queria fazer Medicina pra
trabalhar atendendo... Nunca me pensei como médica tendo um consultório,
dentro de um hospital (...) Eu pensava em ir atendendo as pessoas em
lugares mais simples (...) Lá em casa a gente tem uma formação meio
religiosa, essa coisa de (...) solidariedade e não de caridade (...) de estar
ajudando as pessoas, de estar construindo coisas. Interessante. E eu acho
que (...) com uma profissão (...) [com] uma função social, eu acho que aí
seria um lugar que daria pra trabalhar.” [Dra. Zélia]
Seu pai era um “quase doutor”, porque embora não possuísse a formação
médica, atuava onde o saber disciplinar da Medicina não chegava, em termos assistenciais.
Aqui podemos ver como a profissão médica é composta também para além do seu núcleo
duro disciplinar. A solidariedade, expressa num atendimento que ajuda as pessoas a
superarem momentos difíceis, aparece como a possibilidade de construir uma relação
comprometida com o sofrimento dos outros. Aqui o trabalho médico não está pautado pela
noção de <<corpo-peça>>, mas sim pelos elementos da vida que delineiam a dimensão do
<<cuidado>>, a partir da qual são estabelecidos laços de solidariedade entre o “cuidador” e
aquele que é cuidado.
2
Dentre os sentidos mencionados em dois importantes dicionários da Língua Portuguesa para vocação,
encontramos:
“[Do lat. vocatione.] S. f., Ato de chamar; Escolha, chamamento, predestinação; P. ext., Talento, aptidão”
(Aurélio, 1999)
“Ato ou efeito de chamar(-se), denominação; Apelo ou inclinação para o sacerdócio, para a vida religiosa;
Disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade, uma função ou
profissão; Etim. Lat. ‘ação de chamar, intimação, convite’ ” (Houaiss, 2001)
Capítulo 1
89
Podemos ver como estes trechos apontam para uma aproximação com a
Medicina, marcada quer por um desejo genérico de intervir na realidade social, em que a
possibilidade de efetuar rapidamente um contato direto com as pessoas e de apropriar-se de
um conhecimento útil para a população ganha importância, quer por um direcionamento
planejado, em que o status da profissão médica ganha maior relevância. Ambas as
vertentes são remetidas pelos entrevistados às visões familiares anteriores ao ingresso na
carreira médica, compondo as suas experiências escolares e profissionais posteriores. Isto
nos mostra como a Medicina do presente vivenciado pelos entrevistados conversa,
incessantemente, com uma Medicina de seu passado.
“Os meus pais... eu sou duma família de... o meu pai e a minha mãe são
nordestinos. E, antigamente, hoje nem tanto, mas a Medicina sempre (...)
dava aquele status. Eles eram de cidade do interior, em cidade do interior
aonde tem um médico o médico é tudo, é o médico, é o prefeito, é o
conselheiro... Então eu acho que eles... a visão da Medicina eu acho que era
um pouco diferente antigamente” [Dra. Fátima]
“Na minha época existia essa coisa ainda de ganhar dinheiro com a
Medicina, mas não passava pela minha cabeça essa questão, apesar de os
familiares (...) Eu já sabia que não ia escolher uma área que fosse
lucrativa, entre aspas. Estava procurando mesmo a área de clínica geral e
tentar agir rapidamente, sem super especializações.” [Dr. Ricardo]
Capítulo 1
90
Desde o momento em que optam pela Medicina, os entrevistados requisitam a
profissionalização de um fazer comprometido com o “social”, seja este acessado no plano
da organização dos sistemas de atenção à saúde, seja este acessado de modo mais restrito
pelo ato clínico marcado pelas relações face-a-face.
Temos essa questão abordada nos trechos que se seguem, a respeito do caráter
do conhecimento elaborado no curso médico.
Podemos ver como esta pediatra polariza em sua trajetória escolar dois tipos de
experiências que fundamentaram a sua formação profissional. Um primeiro, delineado nos
moldes escolares, estrito senso, em que a formação acontece através da aquisição de
conhecimentos fundamentados num saber instituído, referido à experiência profissional
individual de cada professor – trata-se de um saber dimensionado na experiência clínica “de
consultório” do corpo docente.
Capítulo 1
91
O segundo tipo aponta para a noção de <<sistema de saúde>>, em que a ação
médica é pautada mais claramente pelas organizações corporativas que tratam de intervir
nas políticas públicas de atenção à saúde, interferindo deste modo em um contexto social
“mais amplo” do que aquele, estritamente, delimitado pelo campo escolar. Trata-se da
formulação de uma “experiência coletiva” que extrapola os bancos escolares, a partir da
qual o aluno de medicina vai cunhando referências importantes para formar a sua própria
perspectiva sobre a organização do ensino médico. Deste modo, a experiência escolar
individual formulada pelo aluno identifica, no plano da organização social das práticas em
saúde, conflitos da prática médica que perpassam a estruturação do currículo do curso
médico.
“O médico é formado durante o curso médico, depois disso ele pega todos
os vícios que ele teve de formação... Se ele for um médico não incentivado a
examinar o paciente [então] ele vai continuar não examinando o paciente, se
ele for um médico incentivado a só pedir exame [então] ele vai continuar
pedindo só exame. Então eu acho que o grande problema é na formação dele
lá atrás. As cadeiras têm que continuar sendo muito clínicas para poder se
desenvolver o médico realmente do ponto de vista clínico.” [Dr. Marco]
“Você pode falar das coisas acadêmicas e você pode falar das coisas
extracurriculares. São todas importantes porque a formação não é só
assistir aula, não é só fazer prova, não é só tirar nota, é tudo isso. Então,
você participar de MACMED, por exemplo, que é um inimigo comum que é
Capítulo 1
92
o Mackenzie, tomar os porres da MACMED, não precisava jogar, participar
competindo, mas acompanhar, torcer, pra dar um exemplo de coisas
extracurriculares. O Porão, que era o centro acadêmico. Pô, o Porão era
ótimo, você passava a vida lá dentro. Muito mais no Porão do que assistindo
aula. Você assistia porque senão você era reprovado por falta e tal. Mas o
Porão era mais legal do que assistir aula, todo mundo sabe. O snooker, o
pingue-pongue ou almoçar junto. Depois, quando chega mais pra frente,
você dividido em pequenas turmas, a sua ‘panela’ rodizia junto nas
diferentes disciplinas e especialmente no internato, então você tem (...) pelo
menos dez ou doze dos oitenta colegas que vão ficar dois anos juntos, ou
três, isso estimula coleguismo, trocar plantão, ajudar, ‘olha, eu não posso’
(...) ver escala de plantão, um ajuda o outro. Acho que é esse tipo de coisa.
Ajudar a estudar, estudar junto, se preparar para uma prova, dividir tarefa
pra estudar. Tem um livrão desse tamanho, cada um estuda um ou dois
capítulos, dá um jeito de se comunicar. Tudo isso, ou seja, trabalho de grupo
(...) Quando você começa a se interessar pela clínica, no meu tempo, por
exemplo, não sei ainda tem, deve ter, mas tinham as ligas. Então tinha a Liga
de Combate à Febre Reumática, a Liga de Combate à Sífilis que eram
iniciativas do centro acadêmico, com estudantes, coordenadas por
professores que tinham boa vontade.” [Dr. Gustavo]
Deste modo, sem deixar de afirmar a importância da sala de aula para seu
aprendizado, muitas vezes os entrevistados localizam nos espaços extracurriculares o
melhor desenvolvimento de aspectos centrais em sua formação. Estes espaços podem ser
tanto a inserção em fóruns de debate sobre as políticas públicas, quanto um conjunto de
estratégias para enfrentar as tarefas requisitadas nas diversas disciplinas cursadas. Por
vezes, tais espaços chegam a estruturar-se como um segmento extra-curricular ‘oficioso’
paralelo às disciplinas obrigatórias. Em outras ocasiões, trata-se simplesmente de conviver
juntos, buscando referências comuns para se localizarem e estabelecerem laços de
coleguismo e amizade.
Capítulo 1
93
este ou àquele grupo. Da mesma forma, o apoio mútuo existente entre os alunos no
momento em que precisam enfrentar situações competitivas postas dentro da grade
curricular, estrito senso, torna-se um requisito praticamente obrigatório a partir do qual o
corpo discente constitui-se em oposição às exigências do corpo docente. Novos jogos de
aliança são estabelecidos aqui, especialmente, quando a turma é dividida em subgrupos que
deverão passar pelas diversas enfermarias, buscando fixar uma quantidade grande de
informações dispostas sobre o corpo doente dos pacientes, ao mesmo tempo em que
estabelece uma certa coesão profissional.
Portanto, a formação do corpo discente dá-se tanto pela definição de turmas que
seguirão juntas as disciplinas que compõem o currículo médico, calcado no experiência do
corpo docente, quanto pela participação em espaços extracurriculares que acabam por
compor, de modo importante, a formação médica. Vemos aqui como a idéia de
“desenvolvimento médico” nos coloca diante de uma Medicina em movimento, pautada
pela elaboração das experiências discentes e docentes a respeito do curso e da prática
médica.
Capítulo 1
94
um trabalho que acabou sendo tese de livre docência de um médico... só que
(...) essa coisa de ser, no bom sentido, mas, [ser] explorado por um cirurgião
me fez desistir. Não queria passar por isso, virar um escravo durante o
internato, a residência, e mesmo depois de terminar, ter que ser escravo de
um cirurgião mais famoso e ser esse o caminho pra mim. Eu não queria. Eu
sempre fui muito independente. Então isso me fez esquecer a cirurgia. ‘Não
é isso, não é por aí’. E aí percebi ‘bom, se não é cirurgia...’, eu não estava
muito interessado em fazer cadeira básica, eu queria ser médico, atender
pessoas, então, se não é cirurgia é clínica. Então aí comecei a me
encaminhar para uma especialidade clínica. E aí apareceu a Liga de
Puericultura. Por que eu fui lá? Porque era... sei lá, me convidaram, fui lá,
gostei, era um ambiente agradável, as pessoas ensinavam, se preocupavam
em te ensinar, você atendia a criançada, com alguém do seu lado
supervisionando. Atendia crianças saudáveis, aprendia a prescrever, a dar
orientação pra mãe, a formular uma receita de alimentação foi muito mais
um desencanto com a cirurgia que me fez ir pra clínica. E dentro da clínica
foi a oportunidade de freqüentar a Liga de Puericultura... me fez ser
pediatra.” [Dr. Gustavo]
Capítulo 1
95
“No século XVIII, a clínica é, portanto, uma figura muito mais complexa do
que um puro e simples conhecimento de casos. E, no entanto, ela não
desempenhou papel específico no conhecimento científico; forma uma
estrutura marginal que se articula com o campo hospitalar sem ter a mesma
configuração que ele; visa à aprendizagem de uma prática que ela resume
mais do que analisa; agrupa toda a experiência em torno dos jogos de um
desvelamento verbal que nada mais é do que sua simples forma de
transmissão, totalmente retardada.
Capítulo 1
96
verdade é também a gênese do conhecimento da verdade. Não existe,
portanto, diferença de natureza entre a clínica como ciência e a clínica como
pedagogia. Forma-se, assim, um grupo, constituído pelo professor e seus
alunos, em que o ato de reconhecer e o esforço de conhecer se realizam em
um único movimento. A experiência médica, em sua estrutura e em seus dois
aspectos de manifestação e de aquisição, tem agora um sujeito coletivo; não
é mais dividida entre o que sabe e o que ignora; é feita solidariamente por
aquele que descobre e aqueles diante dos quais se descobre. O enunciado é o
mesmo; a doença fala a mesma linguagem a uns e aos outros.” (Foucault,
1980: 125 – grifo nosso)
Capítulo 1
97
Todos estes fatores são contrabalançados pela presença das ligas e dos
professores com “boa vontade”, responsáveis por oferecer o lugar da coesão entre os
conceitos e os fenômenos enfrentados na prática médica. As adversidades enfrentadas pelos
alunos no curso médico encontram, nos espaços extracurriculares, um lugar onde a unidade
entre a técnica e a arte consolida-se na dimensão prática. Apesar disto tudo, o hospital
ocupa um lugar central na constituição do saber clínico.
O aluno, mais do que aprender um corpo teórico para depois agir sobre a
realidade empírica, deve apreender uma prática profissional em que a distância entre o
abstrato e o concreto é posta na proximidade de uma abordagem direta sobre o corpo
doente. Esta abordagem só é adiada no desenrolar de um currículo que separa e opõe um
ciclo básico, supostamente responsável pelo caráter científico da prática médica, a um ciclo
clínico em que esta prática é evidenciada. Apesar desta disposição curricular, os alunos
devem sempre, e desde o início do curso, descobrir-se médicos!
Capítulo 1
98
Segundo nos coloca Foucault (1980) o ato clínico vem a definir-se, na Clínica
Moderna, por:
Capítulo 1
99
substituir o sonho de uma estrutura aritmética da linguagem médica pela
pesquisa de determinada medida interna, feita de fidelidade e de firmeza, de
abertura primeira e absoluta sobre as coisas e de rigor no uso refletido dos
valores semânticos.” (Foucault, 1980: 129)
Este carisma e coragem que caracterizaram sua atuação no início de sua carreira
opõem-se à sensibilidade adquirida com a experiência profissional. Sensibilidade clínica
que apura o olhar, cotejando o quadro diagnóstico e terapêutico com um conhecimento
acumulado sobre a própria prática profissional. O saber clínico instaura-se enquanto uma
sensibilidade que se reveste na atemporalidade sustentada pela realidade anátomo-
fisiológica de seu objeto. Porém, esta sensibilidade pode e deve ser “apurada” com o
tempo, consolidando-se na experiência profissional.
Capítulo 1
100
“Quando eu me formei (...) eu era muito jovem, eu não tinha a sensibilidade
que eu tenho hoje, mas eu era muito impetuosa. Porque o jovem, ele não tem
temor a nada. Eu era muito destemida. Para você ter uma idéia, eu não sabia
de nada de Pediatria, de nada de Pediatria! Eu sabia oxigenar, tirar uma
criança da crise convulsiva. Então o jovem, ele tem menos sensibilidade, ele
tem mais coragem. Eu estava atendendo no pronto-socorro, trabalhando,
fazia uma semana que eu tinha chegado de Recife. Tem um médico aqui em
Campinas que ele, na época, era considerado o melhor médico de Campinas.
O neto dele teve uma crise convulsiva, ele era pediatra. Ele entrou no
hospital, eu peguei o menino, eu era residente... residente não, eu era
médica, mas não tinha nada, peguei... Olha, não sabia quem ele era. Eu vi a
criança convulsionando, tirei ele do pai... do avô dele, que era o avô esse
médico famosíssimo em Campinas... tirei ele do avô dele. Tirei a criança. Eu
tirei! Peguei ele, levei na sala, oxigenei, fiz a medicação nele
anticonvulsivante, fiquei com ele e tratei do menino sem saber quem era. E
esse homem, ele me adorou... ele abriu um monte de caminho pra mim, Ele
falou: ‘Olha, se não fosse você com a sua coragem eu ia perder o meu neto!’.
Falou pra mim. E eu não sabia o que era. Eu, naquela época, eu não tinha a
sensibilidade de hoje saber que ele não tinha a coragem de fazer o que eu fiz
no neto dele! nem um pingo da coragem que eu fiz! Mas eu tive coragem de
ver uma criança convulsionando, tirar dum cara pediatra, famoso em
Campinas, que ele podia me processar se eu fizesse algum procedimento
errado. Tirei, fechei o pronto-socorro, deixei ele na sala, fechei a sala e
fiquei eu com o neto dele e a enfermeira. Olha que coragem! Será que eu
tinha hoje?! Hoje eu não tinha não. Hoje eu não tinha coragem. Antigamente
(...) eu fazia Benzetacil a torto e a direito.” [Dra. Carla]
Capítulo 1
101
É interessante notar como a relação hierárquica existente entre um médico em
início de carreira e outro cuja experiência profissional já se encontra consolidada e
reconhecida passa, no relato da Dra. Carla, pelo lugar da residência médica.
Este médico “em formação” deve desenvolver o quanto antes a sua própria
maneira de conformar a prática clínica, uma prática que será consolidada pela experiência
Capítulo 1
102
profissional posterior, seja aquela elaborada no consultório, seja aquela adquirida nos
diversos serviços ou instituições por que passaram os entrevistados.
3
Esta é uma declaração feita pelo Dr. Lincoln Freire, presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
abordando os resultados da Pesquisa Perfil do Pediatra, encomendada pela Sociedade Brasileira de Pediatria
(SBP) e coordenada pela socióloga Maria Helena Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde
Pública, e pelo Dr. Eduardo Vaz, secretário geral da SBP. Esta entrevista foi obtida no site www.sbp.com.br,
em agosto de 2002.
Capítulo 1
103
É muito significativo que uma entidade pediátrica de extensão nacional exiba,
de modo destacado, em um de seus principais veículos informativos uma declaração que
define a Pediatria como uma “não-especialidade”. Admite-se nesta declaração que o campo
pediátrico é atingido pela partição do olhar médico – afinal “muitos (de nós) também optam
pelas especialidades”, como se a própria Pediatria já não fosse uma especialidade médica –,
porém, isto não deve ameaçar a delimitação com que a Pediatria melhor se identifica, qual
seja, a da Clínica Geral.
4
O universo estudado nesta pesquisa é representado pelo conjunto de pediatras em atividade, projetado a
partir do banco de dados da Pesquisa Perfil dos Médicos no Brasil (Fiocruz/CFM – MS/PNUD, 1996), do
Cadastro Nestlé/Pediatria e Cadastro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Trabalhou-se em 1999 e
2000 com uma amostra de 1.700 profissionais, com índice de 60% de devolução de questionários.
Capítulo 1
104
“A medicina caracteriza-se hoje por uma tendência calcada no modelo
biomédico, com grande inspiração cartesiana e de cunho fundamentalmente
organicista. Não se contempla o caráter social do ser humano, separa-se
mente e corpo e fragmenta-se o corpo em sistemas e órgãos, perdendo-se a
visão global do indivíduo. O resultado é desastroso: medicalização intensa
(para cada sintoma, um remédio) e ruptura progressiva do vínculo médico-
paciente, com consequente desumanização da medicina. A pediatria,
consciente dessa tendência desfavorável, tem enfatizado, na teoria e na
prática, a necessidade da atenção global à criança, para que a medicina
resgate a sua dimensão humana, dentro dos mais elevados princípios éticos e
morais. Estes princípios devem ter como base o fato de que o ser humano é
um todo indivisível do ponto de vista biopsicossocial. Assim, as ações
preventivas e curativas devem contemplar, a um só tempo, esses três
aspectos, para que a assistência à criança, na saúde e na doença, assuma
realmente um caráter holístico.” (FUNDAP, 1991: 11)
Conclui-se neste artigo que a similaridade nos objetivos dos relatórios não
resulta apenas de um mesmo corpo de problemas, mas, também, da reafirmação de valores
idênticos. Segundo o autor, os relatórios têm duas preocupações implícitas que transcendem
a reforma do ensino médico e ajudam a explicar suas similaridades: a afirmação da natureza
social da profissão médica e a regulação da profissão.
5
Sobre este ponto, também, mostra ser interessante a leitura do artigo de Blomm (1990) em que este autor
propõe, inquietantemente, que as reformas curriculares elaboradas nas escolas médicas existentes nos Estados
Unidos trataram de efetivar, inexoravelmente, em seu conjunto, uma “reforma sem mudança”.
Capítulo 1
106
3. Importantes propostas de reforma podem motivar a promulgação dos
relatórios sem que mudanças efetivas venham a ser desejadas num cenário
em que a pesquisa (e não o ensino) é legitimada socialmente.
“O mais difícil eu acho que é a... tentar separar o que é o assistente, o que é
a assistência daquilo que é de ensino. Se fosse possível levar as duas coisas
seria muito bom, mas na instituição hoje é difícil. E hoje os residentes
cobram como se o ensino estivesse muito distante ainda ou a assistência
muito próxima. Em pouco espaço de tempo (...) já tentamos aplicar modelos
diferentes e, mesmo assim, nenhum ainda se encaixou (...) Então, em termos
do próprio ensino hoje, uma das grandes dificuldades que se tem, que é
talvez o grande drama hoje até pro médico pediatra, é que não se reconhece
a especialização. Então, ela, não é reconhecida a especialização de
Oncoematologia. E, se nós conseguirmos caminhar nessa direção, a gente
provavelmente vai ter reconhecimento das sociedades de especialização
desta especialização de oncoematologia (...) Então isso é uma coisa que, com
certeza na cabeça de quem está fazendo especialização, é uma coisa terrível
Capítulo 1
107
porque ele sabe que no final dos três anos que ele está aqui ele tem uma
especialidade, todo mundo reconhece o que ele fez aqui, mas que no papel
não é reconhecido pelo MEC. Então ele sabe que eventualmente se surgir
alguém que consiga esse reconhecimento, ele teria teoricamente mais pontos
aí na frente (...) Então isso também gera muita angústia. Até talvez seja por
isso que se tenta barganhar tanto aí em termos de carga horária (...) de
dedicação, [que] se tornam quase que obrigatórias pra eles em termos de
cobrança (...) Na realidade, a Sociedade Brasileira de Pediatria junto com a
Associação Médica Brasileira (...) que creditam hoje à Pediatria [que] a
única especialização do pediatra seria ser pediatra. O que existe agora, já
está começando a ter, é uma certificação que eles chamam ‘habilitação’ em
determinadas áreas. Mas, especificamente na área de Oncoematologia,
ainda não existe. Então, por exemplo, já existe habilitação em Terapia
Intensiva, já existe habilitação em Pneumologia, já existe habilitação em
Neonatologia, já são sub-especialidades mais específicas, e Oncologia, como
é um programa que tem facetas diferentes em diferentes instituições, não tem
ainda uma creditação como as outras.”[Dr. Marco]
Capítulo 1
108
Podemos depreender das colocações feitas pelo Dr. Marco que os residentes
deveriam ser inseridos em uma prática médica que não se ocupasse somente com a
reprodução da assistência, mas que priorizasse a incorporação de uma experiência clínica
que gere autonomia profissional. Porém, no período da residência esta experiência parece
ser limitada pela forte relação de dependência existente entre o aluno e o professor.
Capítulo 1
109
Podemos observar a força com que as subespecialidades estão presentes no campo
pediátrico ao atentarmos para a maneira como os cursos de residência estão estruturados.
Capítulo 1
110
- Pediatria – Imunologia-Alergia e Pneumonologia Pediátrica;
- Pediatria – Neonatologia;
- Pediatria – Adolescência.
6
“Acaba de ser firmado um convênio entre o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica
Brasileira (AMB) e a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) que institui a Comissão Mista de
Especialidades e reconhece as Especialidades Médicas e as Áreas de Atuação da Medicina. A resolução
CFM n. 1.634/2002 traz uma grande conquista para os pediatras, fruto da luta da SBP: a aprovação da
Adolescência como Área de Atuação exclusiva da pediatria – decisão que já havia sido tomada pela AMB.
Ficam assim definidas como Áreas de Atuação da Pediatria: Alergia e Imunologia Pediátrica, Cardiologia
Pediátrica, Endocrinologia Pediátrica, Gastrologia Pediátrica, Hematologia e Hemoterapia Pediátrica,
Infectologia Pediátrica, Medicina do Adolescente, Medicina Intensiva Neonatal, Medicina Intensiva
Pediátrica, Nefrologia Pediátrica, Neonatologia, Neurologia Pediátrica, Nutrologia Pediátrica, Oncologia
Pediátrica, Pediatria Preventiva e Social, Pneumologia Pediátrica, e Reumatologia Pediátrica.” Nota da
Sociedade Brasileira de Pediatria emitida em seu site oficial (www.sbp.com.br) em 13/08/02. Grifo nosso.
Capítulo 1
111
formação do pediatra deve permitir a este profissional um trânsito seguro tanto pela clínica
geral quanto pelas diversas (sub) especialidades pediátricas, de forma que seja integrado à
clínica pediátrica um objeto de trabalho que articule as dimensões bio-psico-sociais dos
pacientes.
É claro que esta solução esbarra em seus limites óbvios, na medida em que a
adição progressiva de olhares especializados conduz, dentre outros fatores, a um certo
efeito “Frankstein” que não rompe fundamentalmente com a partição do objeto de trabalho
do saber clínico.
Capítulo 1
112
Não é por acaso que a equipe multiprofissional, responsável por tecer uma
visão global sobre a criança, seja composta, à exceção do médico, pelo gênero feminino: a
enfermeira, a assistente social, a terapeuta...
Devemos lembrar que uma malha institucional é construída para que a criança
ganhe uma realidade integralmente assistida: equipes multiprofissionais, especialistas
divididos em níveis assistenciais e preocupados em compreender os mínimos detalhes do
corpo doente, associações que lutam para regulamentar a assistência dada às crianças,
instituições de ensino que pouco a pouco vão consagrando e estimulando um movimento de
especialização inerente à prática médica contemporânea. Esta malha institucional tratará de
definir os limites existentes entre o ponto de vista técnico e o ponto de vista leigo lançado
sobre o cuidado dirigido às crianças.
Capítulo 1
113
Portanto, ainda que a inclusão do cuidado leigo (familiar) no setting médico
seja preconizada por diversos integrantes desta malha institucional, esta incorporação dos
cuidadores “leigos” das crianças deverá ser pontuada por uma posição assertiva de seus
cuidadores “técnicos”. Assim,
Porém,
“cada vez que uma criança estiver sendo examinada, tratada ou sob os
cuidados médicos de um profissional qualificado, e caso, na opinião deste, a
criança precisar de atendimento urgente e os pais ou tutor jurídico do menor
se negarem a dar seu consentimento, o médico deverá comunicar
imediatamente o fato ao Juizado de Menores ou ao tribunal da comarca com
jurisdição juvenil. O juiz de menores ou o tribunal da comarca com
jurisdição juvenil deverá imediatamente nomear um tutor ad litem, que
representará os interesses da criança em todos os procedimentos legais
seguintes (...) O juiz decidirá, baseado no testemunho médico e em qualquer
outro testemunho relevante e no melhor interesse da criança, se o tribunal
será a favor da realização do tratamento.” (Carta de Direitos da Pediatria,
1975, art. 9 apud Gauderer, 1998)7
7
Em que pese o fato desta carta ter sido elaborada por entidades hospitalares dos EUA, em meados da década
de 70, não deixa de ser relevante para este trabalho o visível movimento de regulação jurídica dos limites
existentes entre o cuidado leigo e técnico voltado para as crianças.
Capítulo 1
114
enredando-se em movimentos de aproximação e de afastamento quanto às tramas familiares
de seus pacientes.
Capítulo 1
115
Por isto mesmo o processo de especialização que atinge a Pediatria parece atuar
por um contexto que permanece externo a esta especialidade médica. Se as
subespecialidades, de um lado, chamam a atenção para a força central do <<corpo
doente>> como elemento organizador da ação médica, de outro lado, o “núcleo duro” do
campo pediátrico é preferencialmente identificado no ideal da Clínica Geral. Podemos ver
isto quando atentamos para a formulação <<muitos de nós também optam pelas
especialidades>>, onde as especialidades parecem existir fora e para além da Pediatria,
acoplando-se a uma prática não especializada que, no máximo, tem alterada a sua
configuração geral, mas não seu núcleo central (doutrina).
Capítulo 1
116
A oscilação entre uma prática pautada tanto pela Clínica, quanto pela Saúde
Pública, pode ser observada na tentativa de se definir o lugar ocupado pela Pediatria Social
no campo pediátrico.
“Marciaux (1995) situa a pediatria social como a parte da saúde pública que
diz respeito à criança e não como um ramo da pediatria, uma vez que lida
com a saúde de determinados grupos de toda a população e representa o
ponto de encontro de várias disciplinas que contribuem, interativamente,
para a saúde desses grupos como um todo (...) Para Marciaux, na Europa,
não há consenso sobre o conceito de pediatria social, pois alguns autores
trazem definições muito específicas ou parciais. Argumenta que a abordagem
mais apropriada deve concentrá-la no campo das atividades pertencentes à
saúde, cuidado e bem-estar da criança (...) Citando Robert Debré: ‘Pediatria
Social não é uma especialidade, ela é um estado de espírito’ (Debré, 1963,
apud Marciaux, 1995:3) (...) [Porém] Concluindo que a pediatria social se
situa no ponto de encontro da epidemiologia e da estatística, das ciências
clínicas e das ciências humanas, também sendo relevante para o
desenvolvimento psicossocial, o autor [Marciaux] pensa que, a exemplo da
geriatria social, que evoluiu para a gerontologia, talvez também a pediatria
social possa vir a ser uma pedontology.” (Zanolli & Merhy, 2001: 984)
De todo modo, em ambos os casos, ainda é o corpo doente que organiza a ação
médica, seja ela preventiva ou curativa. É na importância dada pelos pediatras à relação
médico-paciente que poderemos ver um elemento surgir de maneira insidiosa nesta
especialidade médica, apontando para a intervenção sobre o corpo infantil – a Pediatria é
uma Medicina que se constitui no espaço familiar!
Para além de uma retórica pautada pelas oscilações presentes nas políticas de
financiamento público dos serviços de saúde atualmente vigentes (Programa Saúde da
Família, Internação Domiciliar...), em que a “família” aparece como a tônica do momento,
a Pediatria requisita o espaço familiar como local próprio ao estabelecimento daquele
acompanhamento e dimensionamento do ser em desenvolvimento que é a criança.
Capítulo 1
117
1.7. O campo pediátrico em busca de um objeto de trabalho
8
“Foi nesse mesmo contexto que também a saúde da população passou a ser apreciada como questão social
de importância estratégica para as políticas de Estado. A frágil situação da infância passou a ser associada
tanto à necessidade de estimular o crescimento populacional quanto à nova divisão social. Quando a
infância passou a ocupar posição destacada no novo discurso burguês que era, ao mesmo tempo, legislador,
ético e pedagógico, a medicina não permaneceu alheia ao processo. Novas regras e normas foram
institucionalizadas pela medicina e pela pedagogia, com o objetivo de disciplinar o relacionamento dos
adultos com as crianças. Foi em meio à ampla transformação experimentada pela medicina no século XVIII
que ocorreu a tentativa, bem sucedida, de carrear para o seu interior práticas sociais que, até então, apenas
parcialmente a integravam. De modo gradativo, as crianças pequenas e suas mães passariam a ser alvos
prioritários da medicina.” (Marques, 2000: 27-8)
Capítulo 1
118
Em primeiro lugar, a criança é apanhada pelo pediatra no seu vir-a-ser adulto,
ou seja, no seu devir orgânico, emocional, cognitivo. Assim, a pediatria toma a criança em
seus aspectos anatômicos, fisiológicos e mentais, especialmente a partir da idéia de
desenvolvimento.
Assim, se as crianças são diferentes entre si, elas são comparáveis em suas
diferenças; ainda, se elas não são as mesmas durante o processo de crescimento e
desenvolvimento, continuam sendo seres frágeis que requisitam cuidados especiais.
Capítulo 1
119
criança tem. Então, isso faz parte da minha avaliação, porque aí eu vou ver
o quanto que isso está interferindo ou não. Então, crescimento e
desenvolvimento é uma coisa fundamental, eu estou sempre avaliando isso,
porque eu sei que tudo está mexendo, nesse eixo.” [Dra. Cristina]
Capítulo 1
120
para considerá-la menor, miniatura, tabula rasa. Escapam a esta visão
médica pediátrica as especificidades do objeto (...) que é prontamente
idealizado; as prerrogativas para a criança são reduzidas ao fim para elas
pretendido. Desta forma, ela se torna apagada, inencontrável nesse sistema
de idealizações.” (Rivorêdo, 1998: 42)
“O que que é a infância? Acho que a infância é uma fase muito importante
acho que no nosso desenvolvimento (...) hoje ela é muito vivenciada às custas
de muitos estímulos, é uma fase onde você vai preparar aquele indivíduo
que... além de você... ou não prepará-lo, ele vai se preparar. Na realidade,
por mais que a gente fale que a gente prepara alguém, acho que é ele que se
prepara mesmo e... Eu acho que na infância ele aprende os mecanismos que
ele vai utilizar no futuro. Então acho que a infância é onde ele começa a
perceber que ele ouve, que ele enxerga, que ele sente, e outros também
ouvem, enxergam e sentem. E se na infância ele não perceber isso, mais
tarde vai ter reflexo na vida de adulto disso.”[Dr. Marco]
Capítulo 1
121
Esta tensão será aqui abordada a partir da disjunção diversidade/unidade, afirmada no
discurso pediátrico.
“Parece-me (...) que não há uma Prática Médica pediátrica (...) isto é, a
aproximação do corpo infantil, para além das tecnologias médicas a seu
tempo, não leva em conta os seres que são as crianças. A Pediatria impõe-se
assimilando da Clínica (..) não apenas a tecnologia e os saberes, mas
também o pensamento sobre o corpo. Se a Clínica (...) advogou por
corporalizar o sujeito, a Pediatria o fez com o corpo infantil; se a Clínica
(...) assimila a tecnologia armada como operação privilegiada para lidar
com as mazelas do corpo doente, a Pediatria o fará com o corpo infantil
doente. Poderia parecer que a Pediatria perdeu uma visão antiga mais
integral da criança e que a tenha perdido no período que se segue ao
advento da Medicina Tecnológica. Penso que isto não possa ser sustentado.
Ao contrário, de fato, esta unicidade ou globalidade na aproximação do
corpo infantil jamais foi suficientemente presente a ponto de tornar-se parte
da prática, quer dizer, se ela surge em um determinado momento como
discurso, como no caso de Pedro de Alcântara que advogava pela visão
integral da criança, a história nas mostra que este pensar não adquire força
para superar o caminho que a história das práticas médicas para as crianças
tomou. É neste sentido que a Pediatria opera uma certa antinomia em
relação ao seu objeto. Ele é uno porque é a criança vista como ser, mas não
o é porque necessita ser dividido em inúmeras partes desde o momento em
que o seu corpo é apreendido pela clínica e seus paradigmas tornando-se
não mais o corpo do doente da criança mas o corpo do doente do pediatra,
para utilizar a tipologia de Mendes Gonçalves (1984).” (Rivorêdo, 1998: 43)
A idéia de que uma boa “comunicação” garante uma boa relação médico-
paciente permanece como um ponto importante do imaginário médico. Em realidade, tratar
a relação médico-paciente prioritariamente como um problema comunicativo requisita uma
resolução eternamente adiada na clínica, pois aguarda uma fonte incessante de médicos
com “boa vontade” e de “sensibilidade” apurada para lidar com os conflitos humanos que
invadem o setting médico. Desta forma, a contradição estruturada na prática pediátrica, a
partir da qual o olhar disciplinador da clínica pediátrica intervém necessariamente sobre um
corpo fragmentado ao mesmo tempo em que é instado a considerar a criança em sua
integridade (física, moral, emocional), é tratada como uma questão pessoal de adequação
administrativa das relações interpessoais presentes no setting médico.
Capítulo 1
123
através do conhecimento dos fatores ambientais, psicológicos, econômicos,
sociais e culturais, que incidem sobre o menor e sua família e que podem
predispô-lo a uma determinada doença (...) Tem como metas diminuir o risco
de mortalidade infantil e de morbidade da criança; proporcionar medidas
para a promoção de sua saúde, ‘a fim de realizar seu desenvolvimento
integral e culminar em um adulto normal, feliz e socialmente útil’
(Marcondes, 1973: 23).” (Zanolli & Merhy, 2001: 982-983. Grifos nossos)
“No Brasil, a pediatria social é uma área da prática pediátrica que traz, na
sua constituição, propostas reformistas. Aposta na tríplice reforma da
prática pediátrica, da escola médica e do serviço de saúde, influenciada
pelos movimentos políticos mais amplos da área da saúde verificados no país
(...) Os discursos da pediatria social têm uma multiplicidade de origens e de
fundamentos, que chegam muitas vezes a se contrapor. No entanto, todos
confluem para a idéia de reformar a atenção à criança.” (Zanolli & Merhy,
2001: 978)
Capítulo 1
124
Estes autores colocam que a Pediatria Social, assim como aqueles segmentos da
pediatria que estiveram explicitamente voltados para a atenção integral à criança, tem seu
estabelecimento intimamente associado aos movimentos que culminaram na Medicina
Integral, na Medicina Preventiva, na Medicina Comunitária e na Medicina Social, no
transcorrer dos anos 60 e 70, no Brasil, assim como nos Movimentos de Reforma Sanitária
dos anos 80 e, mais recentemente, de Saúde Coletiva, nos anos 90.
Capítulo 1
125
do sistema educacional do que a medicina.” (Novaes, 1979:31. Grifos
nossos)
Capítulo 1
126
ações básicas de saúde (...) este programa compreendia a atenção à saúde
de grupos etários em especial (recém-nascidos e pré-escolares, escolares e
adolescentes), a saúde mental e a suplementação alimentar (...) [Mesmo com
o SUDS e com o SUS] a proposta do Programa de Atenção Integral da
Criança e do Adolescente manteve-se basicamente a mesma, mas a maioria
dos serviços adquiriu características de pronto-atendimento, dificultando a
sua execução, não atendendo às necessidades de saúde da população e não
garantindo a integralidade das ações (Tanaka & Rosenburg, 1990).”
(Zanolli & Merhy, 2001: 980)
9
Com ênfases diversas, os autores da corrente historiográfica conhecida como Escola dos Annales, dentre os
quais encontra-se Ariès, operacionalizaram em suas análises três planos temporais (diacrônicos): a curta, a
média e a longa duração. Ouçamos Le Goff, um dos mais renomados e bem aceitos representantes desta
corrente na atualidade, referir-se ao principal livro de F. Braudel, Mediterrâneo, descrevendo a curta, a média
e a longa duração:
“[a curta duração] é o ritmo tradicional, a história dos acontecimentos de Felipe II no
Mediterrâneo, da personagem de Felipe II e do seu reino; por baixo, uma história que é a da conjuntura
econômica, das mudanças a médio prazo; por fim, e eis a novidade, uma história lenta que é a da vida
material e a das mentalidades. Creio, além disso, que o fundamento desse tipo de análise tenha sido o ter
mostrado que a base dos diversos ritmos temporais era em última análise a geografia.” (Le Goff, 1986:32)
A História das Mentalidades e, especialmente, os estudos empreendidos por Braudel, têm sido
veementemente criticados na medida em que a ênfase na longa teria imobilizado a dinâmica da história. Le
Goff responde a esta crítica da seguinte maneira: “Talvez, mas esse monstro [do imobilismo] ou quem o
cavalgava esqueceu-se de que a geografia de que se faz uso este tipo de história é uma ciência social. Isto
significa que não é dada uma vez por todas mas é, pelo contrário, uma série de condições ou de ocasiões das
quais os homens e a história dos homens se servem (...)” (Le Goff, 1986:32)
Capítulo 1
127
“[Este trabalho é] uma espécie de ponto inaugural para uma nova
perspectiva antropológica e sociológica nos estudos sobre as crianças e
sobre a infância” (James, 1998:98).
“Se a infância não pode mais ser entendida como uma experiência
socialmente invariável para todas as crianças, já que as expectativas sobre o
que a ‘criança’ é variam através dos tempos e das culturas, então podemos
Capítulo 1
128
apontar o desenvolvimento biológico para contextualizarmos as experiências
das crianças. Porém, este não pode ser tomado como determinante destas
experiências. Em suma, o que constitui a infância em qualquer sociedade
vem a ser, deste ponto de vista, uma perspectiva cultural particular da base
biológica da infância.” (James, 1998:99).
A partir de Donzelot (1986), podemos ver como este “cercamento” das crianças
foi empreendido na construção de uma sociedade policiada. Este autor mostra como a
infância moderna constituiu-se pelo estabelecimento de trama de relações familiares
reguladas por dispositivos de vigilância tutelar que educam os sentidos da criança.
Capítulo 1
129
Donzelot estuda a gênese do setor social moderno a partir do que constituiu
uma rede institucional dirigida à regulação das relações familiares pelo Estado, de forma a
garantir a conservação das crianças.
Capítulo 1
130
A partir dos discursos pedagógico-higienistas serão formuladas uma série de
questões relativas ao ordenamento urbano, à formação de um determinado ethos do
trabalho e, principalmente, à consolidação do Estado Nacional. A criança será apreendida
enquanto um ser infantil propenso aos investimentos sócio-políticos presentes no processo
de formação desta malha institucional produzida em direção às redes de relações familiares.
Capítulo 1
131
público-privadas, para ela – tendo a criança como foco principal de atenção. Desta ampla
rede institucional em formação, analisada por Donzelot em suas linhas “puras” (de
preocupações, intervenções, tensões e mutações), emerge uma gama enorme de agentes do
setor público e privado que irão reelaborar os arranjos e relações familiares. Surgirão,
então, novos sentidos para a infância! (Donzelot, 1986: prefácio)
Não é à toa que esta aliança tática estabeleceu-se, uma vez que as mães
deveriam ser disciplinadas para poderem ordenar suas relações familiares. Assim, a
ingerência médica deve dirigir-se, em primeiro lugar, ao cuidado materno:
Capítulo 1
132
“As grandes preocupações, em sua maioria políticas, e os interesses de
ordem econômica que enchem a vida da nossa população não lhe permite
refletir sobre uma verdadeira calamidade social de que não se fala, ninguém
refletindo sobre as tristes conseqüências que ela acarreta. Quero referir-me
à mortalidade das criancinhas que, ao desabrochar da vida, falecem numa
proporção assustadora, calcando o dízimo mortuário geral e levando ao seio
das famílias, desde as do pobre proletário até as dos abastados, a dor e a
saudade... Entre os fatores que tão rudemente vitimam a infância no início
da sua existência, não se pode deixar de reconhecer as mais graves faltas, a
ausência de necessários cuidados que acarretam as moléstias chamadas
provocadas ou às moléstias evitáveis. São as afecções gastro-intestinais que
mais dizimam os pequeninos, sobretudo na sua primeira idade (...) Mas, em
última análise, em que reside a causa de tão grande mortalidade? À
ignorância das mães, ao analfabetismo que em nossa população domina
numa proporção de 80%, são os vícios do regime, a falta de atenção para os
preceitos hoje reconhecidos ótimos, no modo de criarem-se filhos, que
incontestavelmente agravam o obituário infantil... São as chamadas
moléstias evitáveis, porque a boa higiene e os conhecimentos de que
hodiernamente se dispõe, no terreno da profilaxia, conseguem colocar as
crianças ao abrigo do contágio e, por conseqüência, do perigo desses
morbos que dizimam em tão larga escala” (“Por que as crianças morrem?,
Correio da Manhã, 1906, apud Novaes, 1979:55. Grifos nossos)
Capítulo 1
133
Em relação aos hospícios, será feita uma dura crítica sobre o incentivo ao uso
perdulário do corpo, já que estes locais apresentavam-se como uma solução moralizadora
para as relações sexuais ilícitas (especialmente da elite), sustentando comportamentos
moralmente condenáveis, tais como relações carnais fora do casamento.
Portanto, se a honra e o patrimônio familiar das elites eram garantidos por uma
rede institucional destinada a minimizar os danos morais das relações ilícitas cometidas por
seus membros, esta administração do “imoral” acabava por onerar econômica e
politicamente o Estado. Isto, porque a captação dos indivíduos, direta ou indiretamente,
envolvidos nestes eventos acabava por incentivar ações que estas instituições deveriam
inibir. Assim, quando as crianças, frutos destas relações ilícitas, eram absorvidas para o
anonimato pelo mecanismo da roda10, as próprias relações ilícitas eram incentivadas, em
prejuízo de um disciplinamento do corpo que colaborasse para o fortalescimento da nação.
10
“Trata-se de um cilindro cuja superfície lateral é aberta em um dos lados e que gira em torno do eixo da
altura. O lado fechado fica voltado para a rua. Uma campainha exterior é colocada nas proximidades. Se
uma mulher deseja expor um recém-nascido, ela avisa a pessoa de plantão acionando a campainha.
Imediatamente, o cilindro, girando em torno de si mesmo, apresenta para fora o seu lado aberto, recebe o
recém-nascido e, continuando o movimento, leva-o para o interior do hospício. Dessa maneira o doador não
é visto por nenhum servente da casa. E esse é o objetivo: romper, sem alarde e sem escândalo, o vínculo de
origem desses produtos de alianças não desejáveis, depurar as relações sociais das progenituras não
conformes à lei familiar, às suas ambições, à sua reputação.” (Donzelot, 1986:30)
Capítulo 1
134
A conclusão deste raciocínio é inequívoca: o Estado tem suas divisas oneradas
de forma predatória, minando as próprias bases sobre as quais deveria apoiar-se — um
povo saudável, uma nação rica.11
11
A filantropia buscou fornecer alguns dos elementos necessários para atingir-se este ideal. Neste sentido, o
pensamento filantrópico, que se fortaleceu gradativamente no decorrer dos séculos XVIII e XIX, construiu
seu pensamento em oposição ao espírito caritativo-religioso que impregnava uma série de práticas sociais
desde os tempos medievais, e que, para desespero dos higienistas, estruturava as redes de apoio que
transpassavam as corporações de ofício, a família patriarcal e a sociedade estamental.
12
“A proteção e assistência à primeira infância é assunto que vem preocupando higienistas, filantropos e
poderes públicos em toda a parte, provocando uma série de medidas tendentes a cercar de todas as garantias
esses pequeninos seres que inspiram tanta bondade, justiça e solidariedade. A sociedade moderna não se
pode conservar impassível diante dos sofrimentos dos seus representantes futuros – é uma questão de
solidariedade humana, de interesse pela conservação e aperfeiçoamento da nossa espécie. A mortalidade
infantil é verdadeiramente assombrosa em quase todos os países e verifica-se que ela é tanto mais elevada
quanto menos favoráveis são as condições sociais e mais se afastam das leis naturais no modo da
alimentação infantil. Só há uma idade em que a mortalidade é superior à das crianças na primeira infância –
é depois dos noventa anos!” (Archivos de Assistência à Infância, 1907 apud Novaes, 1979:54)
Capítulo 1
135
Os higienistas denunciavam que a responsabilidade de educar os filhos
pródigos da nação era entregue às mãos de inescrupulosas mercenárias contratadas para
servirem obscena e lascivamente seu leite “azedo” e “ardido” àqueles infantes. Estas
crianças, desprotegidas diante de tamanha devassidão sexual e perversidade moral,
entregavam-se aos “deleites” da criadagem — encontrando seu aconchego entre os
serviçais.
13
Temos uma excelente análise acerca da construção de identidades, referidas a um espírito de nacionalidade,
em oposição a uma “cultura de corte afrancesada”, na análise que Norbert Elias faz a respeito do ethos
alemão, em seu clássico livro O Processo Civilizador. Este autor chama a atenção para o surgimento da idéia
de Kultur sendo produzida por uma pequena e média burguesia alemã, que vem se fortalecendo na transição
de um ordenamento social estamental para outro classista, e que reivindica uma identidade alemã que,
gradativamente, vai sendo cunhada na medida em que se instaura a sua modernidade social.
14
Um elemento desta educação artificial das elites, conforme acusavam os higienistas, era o uso de cintas e
faixas nas crianças, pois tolhiam a sua liberdade de movimento, inibindo o desenvolvimento de seus sentidos
Isto incentivava a produção de corpos débeis e de espíritos receosos, pouco ou nada exercitados pela
disciplina higiênica. A fixidez monótona com que era caracterizada a educação corporal vinculada ao uso de
cintas e faixas constituía-se em uma opressão corporal deletéria ao espírito das crianças em que se depositava
o futuro da nação!
Capítulo 1
136
e a rua, o estranho e o familiar, o público e o privado, o labor e o mundo do trabalho, o
campo e a cidade.
Na perspectiva higienista, a urbe era mais do que uma forma de organização das
relações mercantis, sendo muito mais do que um simples local de trabalho ou de moradia.
Mais do que um palco para o desenvolvimento, o espaço urbano constituía o presente da
nação – significava o próprio desenvolvimento.
Capítulo 1
137
corpo e de seu espírito será encorajado por todas as contribuições da
psicopedagogia postas a seu serviço e controlado por uma vigilância
discreta. No outro caso [da família popular], seria mais justo definir o
modelo pedagógico como o de liberdade vigiada. O que constitui o
problema, no que lhe diz respeito, não é tanto o peso das pressões caducas,
mas sim o excesso de liberdade, o abandono nas ruas, e as técnicas
instauradas consistem em limitar essa liberdade, em dirigir a criança para
espaços de maior vigilância, a escola ou a habitação familiar.” (Donzelot,
1986: 46-48)
No século XVIII, houve uma intensa produção de livros relativos à criação das
crianças, à sua educação e às formas de medicá-las. São guias, dicionários e livros de
aconselhamentos médico-higiênicos. No século XIX, o tom destes conselhos torna-se
imperativo, assumindo a tensão existente entre o conhecimento leigo e o saber médico.
Capítulo 1
138
A criança aqui não é conduzida a atualizar perpetuamente a sua ancestralidade,
como na sociedade patrimonial, mas é cobrada a corporificar os projetos singulares dos
seus pais. A conservação das crianças visa a sobrevivência da singularidade, garantindo a
interdependência afetiva no ciclo vital familiar.
É neste sentido que Rivorêdo (1998) chama a atenção para o fato das crianças
terem de responder incessantemente aos desejos dos adultos, estabelecendo-se um jogo de
afetos que gravitam em torno da antinomia existente na disjunção infantil/adulto, qual seja:
a criança é livre porque é humana, mas não é livre porque não o é (completamente).
Capítulo 1
139
conseqüência da ação maléfica dos fatores ambientais e sociais’ (Martagão
Gesteira – 1945). O termo Puericultura é pela primeira vez identificado em
1865, em uma publicação do médico francês Caron, passando, no entanto, a
fazer parte da linguagem médica a partir do final do século XIX, com os
trabalhos do Dr. Pinard.” (Novaes, 1979:2)
Capítulo 1
140
Como segundo termo da relação médico-paciente no campo pediátrico, a
requisição da presença da mãe no atendimento clínico-pediátrico aponta para a existência
de uma “lacuna” na aproximação do médico em relação à criança. A instauração do saber
médico sobre o corpo infantil é intermediada pelo lugar da interpretação localizado na
família da criança.
A mãe surge como evidência deste vazio existente entre o adulto médico e o
corpo infantil da criança; mas surge, também, como uma solução possível para esta
situação. Ela deve ser interrogada a respeito do cuidado dirigido à criança, ela deve
responder pela criança, apontando os eventos cotidianos pelos quais esta vem passando.
Deste modo, vemos como a pediatria, assim como a medicina voltada para os
adultos, opera a redução do corpo enfermo do paciente ao corpo doente do médico,
buscando processar a passagem do campo da subjetividade para aquele da objetividade.
15
“A forma-sujeito histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem a contradição: é um
sujeito ao mesmo tempo livre e submisso. Ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem
falhas: pode tudo dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la. Essa é a base do que chamamos
assujeitamento (...) Para não se ter apenas uma concepção intemporal, a-histórica e mesmo biológica da
subjetividadade – reduzindo o homem ao ser natural – é preciso procurar compreendê-la através de sua
historicidade. E aí podemos compreender essa ambigüidade da noção de sujeito que, se determina o que diz,
no entanto, é determinado pela exterioridade na sua relação com os sentidos” (Orlandi, 1999α: 50)
Capítulo 1
141
deslocamento é denunciado para o pediatra pela presença da mãe na consulta clínica,
faciliatndo a intermediação entre o corpo doente e o corpo infantil na clínica pediátrica.
A globalidade do olhar clínico e a partição operada por seu saber invocam uma
situação rica, porém constrangedora, para o pediatra, uma vez que a objetivação da criança
em seu processo de desenvolvimento está condicionada à interferência médica sobre o
cuidado materno.
16
Tomar a criança no seu devir adulto implica, no caso da pediatria, a considerá-la “hiperativa, hiperpneica,
hiporesistente, etc.” A modulação explicativa entre os determinantes biológicos e sociais formulou-se da
seguinte maneira no início do século, no Brasil: “Para poder atingir este estado de perfeição [dado pela
normalidade adulta] é necessário haver o processo de crescimento, uma força vital transmitida pela
hereditariedade, que a tudo determina. ‘Além dela, algumas condições exteriores e contingentes, como a
alimentação, o modo de vida, podem modificar o crescimento, mas a sua influência é menor do que se diz,
dominando sempre a influência hereditária. Este conceito é verdadeiro para o estado de normalidade, mas
não o é para o estado mórbido, e as doenças podem, com efeito, nós o aprendemos, modificar intensamente o
crescimento, elas podem fazer com que ele cesse, diminua ou aumente, somente elas é que podem
contrabalançar a influência hereditária’ (Marfan, 1901) Por outro lado, as próprias doenças também são,
freqüentemente, determinadas pelas características do indivíduo (as ‘taras’), restando à medicina muito
pouco a fazer. ” (Novaes, 1979:64-65)
Capítulo 1
142
Um dos principais mecanismos que possibilitam a neutralização das opiniões, a
docilização dos movimentos e o controle dos desejos das crianças consistiria no sistema
meritocrático17 (Saraceno, 1977 apud Rivorêdo, 1998) a que elas estão submetidas. Neste
sistema, a ambigüidade polissêmica das crianças é neutralizada no espaço pedagógico que
define sentidos para a infância, tornando-as localizáveis a todo momento em seus atos e
pensamentos.
Rivorêdo adota a idéia de que a família veio a constituir-se num reduto protetor
da criança, a partir do qual é disposta uma rede de sujeitos autorizados a cuidar das
crianças, incluindo aqueles profissionais, amigos, ou outros sujeitos a quem é delegado o
olhar familiar vigilante. Todo elemento estranho a este olhar familiar será suspeito,
classificado como ameaçador da integridade física e moral das crianças: o contato das
crianças com o estranho será proibido.
17
No sistema meritocrático, a criança “valerá pela possibilidade de respostas positivas que puder dar em
relação a expectativas afetivas e de retorno econômico, entre outras (...) Um sistema dirigido por
especialistas (ou agentes de socialização – principalmente médicos, educadores e moralistas), sob controle
panóptico do Estado e da Família.” (Rivorêdo, 1998: 36)
Capítulo 1
143
mesmo tempo em que esta redução é facilitada pelo estado tutelar da infância, ela é
contraposta pela afirmação da integralidade do ser infantil em desenvolvimento.
18
O problema de definição da dor em neonatos, colocado como uma dificuldade no estabelecimento de
parâmetros para a detecção de manifestações de dor no corpo infantil, tem se pautado muito nesta
“incapacidade” verbal das crianças. Restaria, segundo esta perspectiva, estimular o aperfeiçoamento de
instrumentos que atravessem este vazio comunicativo de forma a informar assertivamente o saber médico
sobre a sensibilidade infantil. Algumas reflexões importantes sobre o fenômeno da dor em recém-nascidos são
apresentadas em Rivorêdo (1996); para uma apresentação sucinta de alguns instrumentos para mensurar-se a
dor em neonatos, veja-se Gaíva (2001).
Capítulo 1
144
Em uma palavra (de ordem), a criança deve ser total e absolutamente
apreensível, sem margens de erro, sem dúvidas, embora sempre seja fonte de dúvidas: o
desejo deve ser disciplinado, o comportamento normatizado, o sentimento normalizado, o
sentido controlado.
Capítulo 1
145
CAPÍTULO 2
“Um pediatra faz umas coisas para ver se a pessoa está bem, por exemplo, uma criança está
passando mal e a mãe dessa criança leva a criança para o (a) pediatra para ver se a criança
está com doença ou não. E se ele (a) estiver com uma doença o (a) pediatra manda a mãe
desta criança falar pra criança tomar...”
(A., 2002)*
* Depoimento de um menino de 7 anos, quando solicitado a escrever sobre o pediatra. Grifo nosso.
147
148
INTRODUÇÃO
Sem nos aprofundarmos em cada uma das perspectivas analíticas adotadas nos
trabalhos realizados por estes autores, buscaremos tratar a relação médico-paciente como
um problema profissional fundamentado na estruturação clínica do olhar médico.
Capítulo 2
149
Vemos, assim, como a relação médico-paciente pode ser tratada a partir de um
olhar lançado sobre a sistematização das relações interpessoais, mas, mais ainda, sobre a
regulação dos dizeres estruturados no atendimento clínico. Quando atentamos para “aquilo
que o paciente deseja dizer, aquilo que não deseja dizer e aquilo que não pode dizer”
verificamos que isto é regulado discursivamente pela estruturação clínica da ação médica.
A partir dessa situação podemos começar a pensar sobre algo mais do que as meras
“intenções comunicativas” presentes na relação médico-paciente.
Aliás, não é por acaso que o médico deve “se empenhar para afetar os
sentimentos [e porque não, os dizeres, os silêncios] dos pacientes de acordo com um plano
bem estabelecido”. A idéia de que a ação médica é regulada pela razão e a ação leiga pela
emoção, de modo que a interferência de um sobre o outro deve ser administrada
(controlada) pelo médico, será um ponto de apoio importante para a descrição pediátrica do
ato clínico, conforme poderemos ver neste capítulo.
Vale lembrar que o tema da relação médico-paciente tem sido tratado, muitas
vezes, como um problema comunicativo enunciado fundamentalmente pela oposição
ciência vs senso comum. Em que pesem as relações gerais de subordinação existentes entre
o ponto de vista técnico e o ponto de vista leigo sobre o objeto de trabalho de qualquer
campo profissional, não podemos deixar de estar atentos às condições de produção
específicas do ato clínico (pediátrico), para compreendermos os “acontecimentos”
estruturados na relação médico-paciente.
Capítulo 2
150
“Médicos e pacientes vêem os problemas de saúde de maneiras muito
diferentes, ainda que possuam o mesmo background cultural. Suas
perspectivas estão baseadas em premissas diferentes; empregam diferentes
sistemas de prova e avaliação da eficácia do tratamento (...) [Concluindo
que] o problema consiste em como garantir alguma comunicação entre eles
no encontro clinico entre médico e paciente.” (Helman, 1994: 100. Grifos
nossos)
Capítulo 2
151
Santos (1989), concordando com Bachelard, opõe a ciência (epistemé) à
opinião (doxa), afirmando que esta última é formulada pela “experiência imediata”,
enquanto que a primeira fundamenta-se em três atos epistemológicos principais: a ruptura,
a construção e a constatação. Santos entende que estes três princípios atuam conjuntamente
e que, neste sentido, a ciência é construída “contra” o senso comum, na medida em que ao
constatá-lo consegue romper com as amarras da racionalidade ingênua que o caracteriza.
Desta maneira, este autor enfatiza a importância do lugar ocupado pela “vigilância
epistemológica” para o estabelecimento de qualquer conhecimento científico sobre o real.
Capítulo 2
152
retórica, mas que, com isso, corre o risco de se tornar, mesmo quando falha
na pretensão, um discurso desencantado, triste e sem imaginação,
incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade”
(Santos, 1989: 34-5)
Capítulo 2
153
pela sua certeza, e pouco ou nada sensível à desorganização e à incerteza
por ele provocadas na sociedade e nos indivíduos.” (Santos, 1989: 41-2)
Capítulo 2
154
Torna-se necessário, nesse momento, pontuarmos alguns deslocamentos em
relação ao eixo da pragmática social, relevantes para as análises elaboradas ao longo deste
capítulo. Para tal, vejamos como Pechêux situa epistemologicamente a Análise do Discurso
(AD) em relação às perspectivas teóricas que trabalham fundamentalmente com a noção de
<<sujeito intencional>> e de <<transparência da linguagem>> no trabalho analítico com a
língua.
Capítulo 2
155
pesquisadores a tematizarem o registro simbólico, através da análise de
rituais discursivos de assujeitamento, de tomada de palavra, da interpelação,
de troca dialógica, etc (...) Além do contato entre línguas de estatutos sociais
diferentes, os desnivelamentos intralingüísticos entre ‘códigos’ sociais
diferenciados (e tomados em relações de força simbólica de dominação,
resistência, etc.) são objetos de estudos macro-sociológicos (...)
Simultaneamente, o impulso interdisciplinar que suscita atualmente (...) um
interesse crescente pelo estudo dos atos de linguagem, das relações
pragmáticas e dos mecanismos argumentativos, narrativos e descritivos,
desemboca na sociologia em uma micro-sociologia de interações, que se dão
por tarefa analisar as ‘estratégias’ de poder dos sujeitos falantes em
situação, com os ‘cálculos’, conscientes ou não, que essas estratégias
colocam em jogo.”
Capítulo 2
156
as práticas investigativas pertencentes às correntes teóricas que lidam com a discursividade
de uma ou outra maneira que Pechêux continua seu comentário.
Capítulo 2
157
humano’, eles estão bem dispostos a ter confiança nos que se dizem
especialistas: ‘a psicologia’ lhes parece como uma disciplina auxiliar acima
de qualquer suspeita, à qual cada um pode se endereçar para estabelecer
(...) suas próprias representações do tal sujeito e de seu domínio (...)”
Assim, cada indivíduo deve estar apto a operar estes códigos de maneira a tecer
uma estratégia lógica através da qual procura se valer das coerções do meio (biológico e
social) para fazer prevalecer seu próprio ponto de vista nas suas interações sociais
cotidianas. Esta visão instrumental que caracteriza o pragmatismo social acaba por idealizar
o lugar da lógica na constituição das práticas sociais, propondo, no limite, um sujeito
“mestre em sua morada”.
“[Porém] este domínio tropeça (...) [e na] experiência singular da falha (...)
se marca a tomada inconsciente pela qual o sujeito está submetido à
castração simbólica. Essa ferida narcísica, que não se confunde em absoluto
com os limites inerentes às coerções biológicas ou sociológicas (por
exemplo, o lapso é completamente diferente do fracasso de um
comportamento ou um comportamento fracassado), constitui a estranheza
familiar à qual todo o sujeito humano é confrontado (...) É sobre esse saber
inconsciente que se apoia o analista freudiano em sua prática.”
Capítulo 2
158
Finalmente, o simbólico remete este sujeito necessariamente à interpretação, uma vez que o
<<dizer>> reclama sentidos (outros) que já estão lá.
Como será possível constatar ao longo deste capítulo, a análise do ato clínico
pediátrico aqui elaborada procura abordar a relação médico-paciente em sua estruturação
discursiva, o que nos obriga a tratá-la como algo diferente de um mero problema
comunicativo, que deva ser solucionado por um aperfeiçoamento técnico da linguagem
semiológica.
Capítulo 2
159
As diferenças existentes entre a ótica leiga e a ótica médica sobre o
adoecimento e desenvolvimento infantis serão exploradas neste trabalho não somente em
seus pontos de contraposição, mas também em seus pontos de justaposição. Tentaremos
mostrar que a oposição razão vs emoção estruturada no atendimento clínico pediátrico
opera deslizes de sentido entre o cuidado médico e o cuidado materno sustentados por
posições-sujeito afetadas a todo momento pela contradição. Estes deslizes serão buscados
no modo como a infância é tomada pelas formas do discurso pediátrico, em que o silêncio
será um importante ponto para reflexão.
“(...) no lidar com o paciente (...) eu nunca tive problema nenhum (...) uma
coisa que foi tranqüilo, tanto enfermaria, pronto-socorro (...) nenhum
problema com a profissão, com o lidar com as pessoas (...) com o fracasso”
(Dra. Cristina)
Assim, cada médico deve desenvolver seu próprio modo de lidar com a
<<profissão>>, lugar da regulação institucional do saber e do dizer, assim como, com as
<<pessoas>>, lugar em que tornam-se presentes para os entrevistados “elementos da vida”
que interferem na ótica pediátrica lançada sobre as crianças.
Capítulo 2
160
Isto não nos dispensa de estarmos atentos ao modo como esta capacidade
desenvolve-se de acordo com as condições de trabalho em que ocorre a relação médico-
paciente. Ou seja, tanto os espaços assistenciais em que se organizam as práticas em saúde
(enfermarias, prontos-socorros, etc.), quanto a estrutura de ensino em que o olhar clínico é
apreendido pelos estudantes definem papéis sociais distintos tanto para o médico quanto
para o paciente. A relação médico-paciente coloca em jogo, necessariamente, os limites
destes espaços institucionais (assistenciais e pedagógicos) em que são configurados alguns
papéis sociais importantes para o atendimento clínico, tais como os de cuidador, aluno,
professor, pai, mãe, filho, doente.
“A frustração de não conseguir resolver tudo, eu (...) não sentia tanto, como
eu vejo que (...) agora o pessoal tem. O limiar de frustração parece que está
mais complicado (...) que a dificuldade está mais avolumada (...) tem uma
dificuldade maior de lidar (...) com a dificuldade (...) Eu acho que a gente
resolvia as coisas, topava, ia atrás e... não tive problema nenhum em lidar
com paciente nenhum. Eu achei foi o esquema da residência muito
estressante (...) uma pressão muito grande (...) uma incapacidade de um
corpo docente (...) de ver a gente um pouco como gente, sabe. Uma coisa
meio, muito impessoal, um trato muito difícil: ‘Tudo bem com você hoje?’
Sabe, bater as mãos nas costas (...) ninguém dá uma pegada uma hora no
colo (...) Então, foi muito barra pesada.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
161
estressante, quanto à conformação de um corpo docente que implementa, nas práticas de
ensino, um modo específico de aproximação com os pacientes, com os profissionais de
saúde, com as especialidades médicas e com os diversos serviços visitados. Enfim, os
alunos são tomados, em sua experiência clínica, por um determinado modo de delinear a
relação médico-paciente, cujos contornos são dados tanto pelo serviço em que se inserem as
práticas pedagógicas, quanto pelo tipo de aproximação que o corpo docente estabelece em
relação à carreira médica.
O ato clínico é tomado ora como fruto de um esforço individual, ora como
resultado de uma estruturação institucional, descrevendo assim um movimento pendular em
que o problema clínico define-se tanto no plano dos embates pessoais, quanto no plano da
Capítulo 2
163
estruturação social da prática médica. Em ambos os casos a clínica é identificada como um
encontro entre indivíduos, marcado pela dimensão face-a-face expressa na relação médico-
paciente. Nesta relação parece recompor-se um encontro eternamente adiado entre o ponto
de vista técnico e o ponto de vista leigo sobre o adoecimento. É perturbadora a forma como
este encontro esbarra na falta de vontade para ensinar, e no excesso de amarras próprias a
um determinado sistema de ensino (saber).
“Então, na realidade, eu acho que uma das coisas que diferencia a própria
Pediatria é essa coisa da puericultura. Desde os próprios (...) quando você
tem o surgimento da Pediatria (...) você tinha a clínica, que fazia adulto e
criança, de repente (...) se percebeu algumas especificidades da criança.
Então você começa a ter uma clínica de crianças, mais voltada pra criança.
O próprio desenvolvimento da Pediatria, ele vai (...) tomar mais corpo a
partir da puericultura. Eu acho que isso que vai diferenciar bastante a
Pediatria. No adulto, eu acho que (...) tentou fazer isso (...) [Mas] a
puericultura tem todo um... baseada na coisa da higiene, na história, tudo...
No adulto, eu acho que um pouco disso tentou também ser feito, entra um
pouco naquela coisa de regrar a vida das pessoas, porque você regra a
criança, mas você está regrando pai e mãe junto, todo seu espaço. E a
Medicina Preventiva teve uma época que começou a fazer isso, de cuidados
mais preventivos (...) [Mas] na Pediatria você consegue incorporar um
pouco das duas coisas. E na clínica de adulto [é] difícil, eu acho que é mais
cindido ainda (...) Então, a Pediatria, eu acho que ela incorpora no próprio
conhecimento dela isso, e as outras áreas não. Acho que a diferença para
mim é mais essa (...) Na Pediatria... faz parte do corpo da Pediatria (...)
Capítulo 2
164
estar interferindo além do corpo e do agente na doença (...) Na clínica de
adulto, mesmo você tendo evoluído... hoje em dia se você pensar em saúde do
trabalhador do jeito que ela é desenvolvida (...) mas a maior parte da
consulta de um paciente adulto (...) o cara não traz esse conhecimento (...) O
pediatra, ele é preparado... você vê o ‘em desenvolvimento’.” (Dra. Zélia)
Vemos como “regrar a vida” 1 (das crianças, das famílias) faz parte do corpus
de trabalho pediátrico, na medida em que a Pediatria incorpora uma relação entre a
<<regra>> (norma regular) e <<vida>> (acontecimentos irregulares) pautada pelo discurso
puericultor organizado em torno da noção de <<desenvolvimento>>. Ao contribuir para a
normatização do espaço familiar da criança, o pediatra pretende normalizar o
desenvolvimento infantil, articulando as dimensões curativas e preventivas da ação médica.
Notemos que o “todo” do espaço infantil é atingido pelo olhar pediátrico dirigido às tramas
familiares (disciplináveis), de maneira que a interferência no/do espaço familiar é
incorporada na própria constituição do campo pediátrico.
1
Veja-se Costa, Jurandir Freire (1983). Ordem médica e norma familiar. 3ª ed., Rio de Janeiro: Graal.
Capítulo 2
165
“Na Pediatria você consegue incorporar um pouco das duas coisas
[prevenção e cura] (...) no próprio conhecimento dela (...) faz parte do corpo
da Pediatria (...) estar interferindo além do corpo e do agente na doença
(...) O pediatra, ele é preparado... você vê o ‘em desenvolvimento’.” (Dra.
Zélia)
“O cuidar (...) ele é interessante (...) você não está cuidando só da criança,
você está cuidando da... você tem toda uma... Se você tem uma mãe que não
está bem, ela não vai cuidar do filho bem.” (Dra. Zélia)
Capítulo 2
166
Tentaremos mostrar que estes limites ou dificuldades apontam para
contradições constitutivas da própria prática pediátrica. Contradições que se estruturam
para além de uma má vontade do médico para humanizar o contato com o paciente. Mesmo
quando esta má vontade ecoa uma certa (in)disposição dos grandes sistemas políticos, sobre
os quais a Pediatria organiza-se enquanto uma prática assistencial, devemos procurar
compreender de que forma os planos das microrrelações e das macroestruturas sociais
interpenetram-se num complexo movimento em que o ato clínico é tomado pela
contradição.
“Quando dizemos que há silêncio nas palavras, estamos dizendo que: elas
são atravessadas de silêncio, elas produzem silêncio; o silêncio fala por elas;
elas silenciam.” (Orlandi, 1997: 14)
Assim, quando falamos de uma vontade que se cala diante das dificuldades
encontradas para alterar todo um sistema assistencial, pedagógico, médico, estamos
interessados em compreender de que forma estes sistemas estruturam-se discursivamente,
num jogo existente entre os sentidos e o silêncio. A interdição será analisada no discurso
pediátrico como um elemento constitutivo da prática clínica, e não como um veto à
elaboração da ação médica. Portanto, o trabalho pediátrico será investigado em suas
contradições constitutivas, de maneira a compreendermos alguns dilemas descritos pelos
entrevistados, sem aderirmos a um ponto de vista voluntarista ou determinista sobre a
prática clínica.
“A crítica (...) que foi surgindo no decorrer da residência, eu acho que foi
muito em cima dessa coisa (...) que é própria do sistema. Eu acho que a
gente ainda não resolveu, continua lutando, aí brigando hoje [para]
considerar aquelas pessoas como pessoas, como sujeitos. O tratamento que
é dado à família da criança, é isso [que] chama mais atenção. Então, desde
Capítulo 2
167
que eu estava na enfermaria, ninguém vinha falar (...) ninguém veio ensinar
isso. E não é muito fácil para aprender, porque a orientação que a gente
recebe, no fim, era do R2: “Olha, agora é hora de visita”, coisa que hoje
nem tem, porque as mães ficam junto com as crianças (...) “É hora de visita,
vamos descer pro café porque as mães são muito chatas, porque elas vão
perguntar o que é que os filhos têm (...) Então, isso foi uma coisa (...) que no
início não me chocava. Depois, eu comecei a ter muita crítica dessa postura
(...) tentar mudar um pouco. Mas sabe, do mesmo jeito que hoje é difícil você
mostrar que tem que tratar as pessoas de uma forma adequada e chamar
pelo nome (...) como sujeitos, pessoas que têm uma vida, que gostam ou não
gostam...” (Dra. Cristina)
Seja pela disposição pessoal de alunos e professores para demonstrar uma boa
vontade que venha a preencher “algo faltante” na relação médico-paciente para que os
nomes, os gostos, as histórias dos pacientes sejam finalmente incorporados na prática
médica, seja pela alteração do sistema geral em que se assenta esta prática, o problema da
definição do objeto de trabalho médico coloca-se aqui com toda sua força: o corpo doente
medicalizado joga para o plano restrito das subjetividades, a serem ultrapassadas, todo o
processo de adoecimento vivenciado pelos pacientes. Trata-se de uma incômoda posição
assumida pelos pediatras, qual seja, a de incorporar a sensibilidade leiga sobre o
adoecimento, identificada na ótica materna, a fim de afirmar a soberania do olhar médico
sobre o processo de desenvolvimento das crianças.
Capítulo 2
168
As dificuldades vivenciadas pelos graduandos e residentes no transcorrer da
formação médica não são poucas. Como já apontamos anteriormente, desde o momento da
escolha pela carreira profissional são postos em jogo desejos traçados na trajetória escolar e
familiar dos entrevistados. Aqui, mais uma vez, algumas questões relacionadas ao ensino
da prática médica serão compreendidas a partir de uma correspondência existente entre as
relações de dependência estruturadas na casa e na escola. Sair de casa para ingressar no
curso médico implica, dentre outras coisas, em um afastamento dos cuidados, lugares e
gostos que eram familiares aos estudantes.
“Então, você sair da sua família, um ambiente que você tem tudo (...) ir
prum lugar que você não conhece ninguém, porque eu não tinha ninguém, eu
morava sozinha (...) você não poder ter contato com a sua família, isso foi
muito difícil. E também em relação à própria Pediatria, porque, durante a
faculdade, o contato com o paciente é pequeno, o contato com o paciente é
sempre do lado de um staff, do lado do seu professor. Na residência não, na
residência aquele paciente já começa a ser sua responsabilidade. Eu
comecei, na residência em Pediatria, em estágio de berçário. Nossa, eu me
lembro as madrugadas que eu tinha que acordar, pegar três, quatro crianças
que nasciam! Lógico que eu tinha... eu podia chamar o staff , mas, aquele
momento, quem ia primeiro era você. Então, o primeiro contato com o
paciente, o que tinha que fazer, era você que tomava as decisões. E você
sentia a responsabilidade que é um paciente, tinha que falar com a mãe
como é que a criança nasceu, ou então que ela está mal, que ela não vai
poder ir pro quarto, que ela vai ter que ficar no berçário. É também uma
coisa que choca muito. Principalmente saber que você é a responsável por
uma pessoa importante naquele momento, uma pessoa muito importante para
uma outra, que é um filho.”(Dra. Fátima)
Capítulo 2
169
pais passa a ser rompida pelo ingresso na carreira médica, ao mesmo tempo em que uma
nova relação de dependência é estruturada no âmbito escolar, quando os professores devem
encaminhar seus alunos por entre as dificuldades próprias do atendimento clínico, servindo
de referência para seu desenvolvimento profissional.
Mãe e pediatra estão ligados por laços de obrigação a partir dos quais devem
agir de determinada maneira para que sejam estabelecidos os cuidados necessários para a
criança. Não é por acaso que a Dra. Fátima indica o contato com o recém-nascido como um
dos primeiros momentos em que veio a exercitar a “autonomia” profissional conferida pela
Capítulo 2
170
intervenção médica sobre o paciente. Este é um momento crucial para a clínica pediátrica,
quando o médico defronta-se com o nascimento da vida. Todo gesto adulto ganha uma
intensidade enorme diante da evidente fragilidade do bebê. O recém-nascido aponta para a
verdade original da vida, uma vez que tudo começa ali. É aí também que o pediatra
defronta-se com a evidência de que toda vida (criança) possui uma estruturação familiar,
afinal a criança “sob seus cuidados” é “uma pessoa muito importante para uma outra (...) é
um filho”.
A pediatria deverá olhar “aquele que não fala”2 através do sinal de sua
evidência corporal. Mas não é o corpo materno a extensão do corpo infantil do recém-
nascido?
2
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001). Infância: Etim. Lat. Dificuldade ou incapacidade de falar,
mudez.
3
A forma como a puericultura organizou-se a partir de um projeto de higienização das relações familiares,
voltando suas atenções para o cuidado materno, já foi discutida em capítulo anterior deste trabalho; neste
momento buscaremos analisar alguns aspectos do atendimento clínico definidos, em grande parte, por esta
estruturação do olhar pediátrico.
Capítulo 2
171
Quando perguntada sobre a maneira como o período da residência veio ou não a
alterar de alguma forma a sua visão sobre as crianças, a Dra. Cristina responde que a
residência é marcada por uma pressão muito grande, por uma realidade de trabalho que não
permite que outro objeto senão o corpo doente seja apreendido pela prática médica.
“Eu acho que a minha vida como profissional alterou mais a visão e a minha
compreensão da criança – o que é que ela é, como ela é, como ela se insere –
[do] que a residência em si. A residência, não sei te explicar (...) por mais
que a gente tentasse (...) é uma pressão tão grande, sabe o que é que parece,
Capítulo 2
172
você fica cumprindo tarefa (...) fica tão envolvido em fazer tudo certo, [em]
não deixar escapar, não fazer errado e prescrever direito (...) [que] não te
dá tempo de refletir (...) naquela criança de um outro jeito sem ser um
doente. Então, você não consegue ver a criança, só vê um doente pequeno.”
(Dra. Cristina)
Refletir sobre a criança não parece uma tarefa a ser assumida pelo médico
residente, ou mesmo por aqueles profissionais pressionados por uma demanda não
compatível com a oferta de serviços. Mesmo assim, entre a demanda e a oferta de serviços,
entre o mercado de trabalho médico e a estratificação sócio-econômica dos pacientes, a
prática pediátrica firmará uma aliança fundamental com seus ideais ao tomar as crianças
como filhos de um universo (familiar) a ser atingido pelo olhar médico.
Para que a criança apresente-se ao olhar médico como algo mais do que um
simples corpo doente, torna-se necessária a incorporação do elemento lúdico e familiar nos
consultórios e hospitais. Estes elementos compõem uma atenção à saúde organizada em
torno da elaboração de um ambiente propício para que a criança possa ser captada em sua
integridade.
“Até que hoje, a gente discute um monte de coisa, de garantir ensino para
criança internada (...) um espaço de recreação para criança. Porque hoje
ela é criança. Mudou isso (...) a sociedade melhorou, isso eu sou, sou
obrigada a admitir. Então, hoje não se admite que não tenha sala de
Capítulo 2
173
recreação, que você não tenha um trabalho (...) com o pai (...) Entra lá [num
serviço pediátrico] parece a princípio que você está entrando num, num
shopping (...) no Parque da Mônica. Puxa, que avanço isso.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
174
“[Na] residência você ainda não sabe entender muito bem a mãe, você
entende a criança, sente que a criança tem dor, que ela está chorosa, você
não entende porque que algumas mães descompensam, chegam no seu
consultório gritando... Uma coisa que pediatra inicialmente (...) cem por
cento dos pediatras (...) não entendem porque que três horas da manhã
chega uma mãe lá se queixando (...) Pra você levar uma criança três horas
da manhã no pronto-socorro, você pensa o quê? Ela está morrendo. Não,
mas às vezes ela chega pra dizer que o nariz está escorrendo àquela hora, ou
então que ela não está comendo. Três, quatro horas da manhã! E isso é uma
coisa que, no início pelo menos, eu não conseguia entender. E às vezes a
gente ficava meio possessa, falava agressivo com as mães (...) Mas depois
você começa a se habituar, porque é mãe, não tem como... Você vai viver
isso o resto da sua vida, com vinte anos de profissão vai chegar três horas da
manhã com o nariz escorrendo e a mãe achando que é a doença mais grave
do mundo. O problema é que ela não sabe fazer o diagnóstico diferencial do
que é uma gripe e do que é uma meningite. É o médico olhando a criança.
Eu comecei a entender a partir daí.” (Dra Fátima)
2.3. Golpe de vista: o que pertence às crianças, o que pertence a seus pais
Podemos notar como olhar a criança apresenta-se para o médico como uma
difícil tarefa a ser enfrentada no atendimento clínico, pois implica em perceber a
sensibilidade infantil e em compreender a racionalidade (ou irracionalidade) materna. O
pediatra deve habituar-se com as defasagens existentes entre a linguagem verbal e o gesto
corporal (linguagem gestual), assim como entre a razão médica e a emoção materna,
lidando com suas próprias emoções de modo a não perder de vista a criança que está sob
seus cuidados.
Capítulo 2
175
Ao lidar com os pais das crianças, o pediatra não deve render-se às próprias
emoções, para que possa finalmente distinguir, do modo mais exato possível, o que
pertence à criança do que pertence aos seus pais. Esta distinção implicará, para alguns dos
entrevistados, em uma identidade do pediatra com as crianças.
Neste trecho, a situação descrita anteriormente pela Dra. Fátima sofre uma
ligeira modificação. Desta vez, os pais da criança esperaram demais para procurar o auxílio
do pediatra, deixando a situação chegar ao limite de sua segurança (e do sofrimento
infantil), para então requisitarem uma ação médica imediata. A demanda pela atenção
pediátrica será ativada, de acordo com vários entrevistados4, a partir de uma ruptura do
limiar de segurança leiga, ocasionada por um desequilíbrio do universo familiar. Assim,
uma situação antes assimilada na casa destas crianças passa a transbordar, com todos os
seus componentes emocionais, para o setting médico.
4
Ver item “Papéis familiares: a casa, o casal e seus filhos”.
Capítulo 2
176
pela emoção expressa na relação médico-paciente presente no atendimento prestado às
crianças:
“Ou às vezes acontece dos pais trazerem a criança e falar: ‘Ah, a gente ia
viajar então a gente trouxe para ver se está tudo bem porque vai... a gente ia
saindo’. Ou eu então no caso, quando eu fazia o internato (...) [que ficava] lá
na frente da praça (...) então o horário [de] domingo à tarde, quando eles
iam passear, era a hora que eles aproveitavam pra ir no posto: ‘Ah, a gente
já estava passando por aqui, eu queria que o senhor visse não sei o
quê’...(risos)... Então, nesses momentos às vezes você vê colegas que
espumam de raiva e tratam mal, às vezes nem atendem, remarcam (...)
Mesmo com raiva dos pais, eu direcionava a minha atenção para criança
(...) aí aquilo valia a pena (...) Quando a criança chegava com febre eu ia
perguntar para criança se ela estava com febre, não pro pai ou para mãe.
Então eu acabava brincando com a criança, mesmo que fosse duas, quatro
horas da madrugada, para poder ter as informações que eu ia precisar.”
(Dr. Francisco)
“Agora, aquela frase que fala que Pediatria é ótimo porque cuidar de
criança é bom, o duro são as mães... Não adianta, se você não consegue ter
uma relação adequada com o pai e com a mãe você também não vai
conseguir cuidar da criança.” (Dra. Zélia)
Capítulo 2
177
fantasias desmesuradas organizadas em torno de imagens adultas, como as de criança
vítima, criança cativante, criança gênio. O pediatra deve contrapor-se ao olhar materno
apresentando-se como um ponto de apoio para uma nova perspectiva lançada sobre a
criança.
Capítulo 2
178
“O olhar médico não é o de um olho intelectual capaz de perceber, sob os
fenômenos, a pureza não modificável das essências. É um olhar de
sensibilidade concreta, um olhar que vai de corpo em corpo, cujo trajeto se
situa no espaço da manifestação sensível. Para a clínica toda verdade é
verdade sensível (...) Neste nível, todas as regras são suspensas, ou melhor,
as que constituíam a essência do olhar clínico [na medicina classificatória]
são substituídas, pouco a pouco, em uma desordem aparente, pelas que vão
constituir o golpe de vista. O olhar, com efeito, implica um campo aberto e
sua atividade essencial é da ordem sucessiva da leitura: registra e totaliza;
reconstitui, pouco a pouco as organizações imanentes; estende-se em um
mundo que já é o mundo da linguagem, e por isso se aparenta
espontaneamente com a audição e a palavra; forma como que a articulação
privilegiada de dois aspectos fundamentais do Dizer: o que é dito e o que se
diz. O golpe de vista não sobrevoa um campo: atinge um ponto central ou
decisivo; o olhar é indefinidamente modulado, o golpe de vista vai direto:
escolhe, e a linha que traça sem interrupção opera, em um instante, a divisão
do essencial; vai, portanto, além do que vê; as formas imediatas do sensível
não o enganam porque sabe atravessá-las; ele é por essência
desmistificador. Se atinge algo, em sua retidão violenta, é para quebrar,
levantar, retirar a aparência. Não se embaraça com todos os abusos da
linguagem. O golpe de vista é mudo como um dedo apontado, e que
denuncia. O golpe de vista é da ordem não verbal do contato puramente
ideal, sem dúvida, porém mais ferino, no fundo, porque atravessa melhor e
vai mais longe sob as coisas. O olho clínico descobre um parentesco com um
novo sentido que lhe prescreve sua norma e sua estrutura epistemológica;
não é mais o ouvido atento para uma linguagem; é o índice que apalpa as
profundezas. Daí, a metáfora do tato, pela qual continuamente os médicos
vão definir o que é seu golpe de vista.” (Foucault, 1980: 137-8)
A Clínica Moderna estrutura o seu olhar como um golpe de vista que conhece
na medida em que reconhece imediatamente o que se apresenta diante de si. No caso
pediátrico, a criança deve ser conhecida em sua história familiar através do reconhecimento
de sua relação materna, preferencialmente, sem que com isto o pediatra fique “preso” ao
emaranhado das relações familiares. O duplo dimensionamento do corpo doente e do corpo
infantil permite a este profissional manter uma relação de proximidade e distanciamento,
imprescindível ao trabalho clínico.
Capítulo 2
179
Neste sentido, podemos considerar como sendo um ideal da clínica pediátrica a
condição segundo a qual deve apreender em um só “golpe de vista” tanto o corpo doente
quanto o corpo infantil das crianças, sem perder com isto o caráter objetivo de sua
intervenção. Ora, se isto é possível para a ação médica relativa ao corpo doente, no entanto,
este golpe de vista não parece concretizar-se de maneira tão límpida quando a ação médica
objetiva o corpo infantil. Enfim, a clínica pediátrica parece incorporar na ação médica tanto
um <<golpe de vista>> incisivo sobre o corpo doente, quanto um <<olhar>> que busca a
“linguagem” própria ao corpo infantil.
Vejamos como esta relação de “ação e reação” que parece existir entre a criança
e o seu “meio” (familiar, social) é tematizada pelo Dr. Francisco, quando perguntado a
respeito de alguma teoria que tenha marcado sua visão clínica no campo pediátrico.
Capítulo 2
180
numa dessas que eu assumo para mim que você não vai... não é... a criança...
não está faltando nada pra criança exercer as suas potencialidades, o que
está faltando é arsenal, é instrumento. E isso, na verdade, se o
ambiente não der ela vai ser completamente tolhida das suas capacidades.”
(Dr.Francisco)
Capítulo 2
181
Não interessa tanto ao pediatra conhecer a complexidade psíquica da criança no
sentido de intervir analiticamente sobre ela, antes importa para a ação médica compreender
de que forma esta dimensão integra-se num movimento maior em que floresce o
desenvolvimento infantil. O pediatra deve conhecer o instrumental infantil e arquitetar um
conjunto de ações que fortaleçam este instrumental.
“Então isso é o que me atrai, é o que é mais atraente pra mim na criança.
Tanto que (...) o fato de ser pediatra (...) uma das outras tônicas é justamente
o aspecto preventivo, é (...) permitir o aflorescer de todas as capacidades
que a criança tenha. Enquanto que, se você for um geriatra, você vai tratar
um indivíduo que tem as doenças porque ele se maltratou durante [a] vida
toda. E é o contrário na Pediatria, você vai tratar de trazer toda a situação
pra criança exercer o máximo do potencial que ela tem (...) Medicina pra
mim [é mais] do que tratar as seqüelas de uma vida ruim, desregrada.
Muitas vezes você vai poder ensinar pra criança como viver bem e ela vai
poder usufruir isso mais. Mesmo a criança que tenha uma doença, um
câncer, um doente terminal, o que é importante pra mim é que ela viva bem
até o momento em que ela não esteja mais em capacidade de aproveitar a
vida. Mas não dopada com remédio, ou mesmo internada. Isso é que é o
interessante no meu dia-a-dia (...) que me acaba atraindo pra Oncologia.
Não é nem tanto o desafio de curar a doença dele, mas é o fato de deixar a
criança bem enquanto... mesmo enquanto doente. Muitas vezes tem
tratamento que vai durar dois, três anos, cinco anos, se você não fizer a
criança [ficar] bem você não vai estar tratando dum indivíduo.
(Dr. Francisco)
Capítulo 2
182
A noção de prevenção parece ganhar uma grande amplitude no campo
pediátrico, na medida em que o caráter vulnerável, germinal e, portanto, moldável do
crescimento e desenvolvimento infantil garante ao pediatra a possibilidade de interferir de
maneira decisiva em sua disciplinarização corporal. As potencialidades infantis devem ser
exercitadas de maneira a alcançarem um optimum em seu processo de desenvolvimento.
O pediatra deve se esforçar para ensinar o papel de doente para estas crianças,
indicando-lhes maneiras de exercer suas potencialidades específicas, mostrando-lhes que
elas mantém capacidades próprias à vida. Quando a criança não for mais capaz de assumir
este vínculo com o viver, então o médico deve questionar-se sobre a probidade ética de uma
intervenção médica que garante única e exclusivamente a manutenção mecânica da vida de
seu paciente. Ou, ao menos, ele deve estar ciente que está diante de um <<doente
pequeno>> que, conforme afirmado anteriormente pela Dra. Cristina, não conduz à
apreensão clínica da criança.
Talvez até de maneira mais forte do que no caso adulto, só é admissível optar
pela internação hospitalar e por uma administração medicamentosa pesada para as crianças,
na medida em que estas providências venham a garantir um bem-estar e uma conseqüente
Capítulo 2
183
melhora em sua qualidade de vida. O tratamento hospitalar invasivo deve justificar-se como
uma medida de proteção para a criança, a partir da qual ela possa manter uma relação
fundamental com a vida. A presença de seus familiares no setting médico e o exercício de
suas potencialidades específicas rivalizam aqui com a simples manutenção mecânica de seu
corpo biológico.
Capítulo 2
184
“Ah, eu acho que ele tem uma característica primeiro que é assim, na
dependência da faixa etária (...) você tem maior dificuldade de ter um
contato direto com a criança. Quer dizer, os dados que você obtém, a
informação que você obtém acaba sendo intermediada por um responsável,
na maioria das vezes a mãe que vai ter uma expectativa (...) O significado
que vai ter pra cada sintoma (...) que ela vai falar (...) já é mediado. Quer
dizer que ela vai interpretar (...) ela vai trazer de um determinado jeito pra
você.” (Dra. Cristina)
“O que traz também depende de coisas dela, então, o quanto que incomoda
uma febre para uma pessoa (...) para uma mãe, e o quanto que incomoda
para uma outra mãe, em que momento que rompe a segurança dela de ficar
com a criança, e levar no profissional (...) Cada criança que (...) vem, vem
por uma história contada por uma outra (...) Isso é um dado totalmente
diferente de um adulto que (...) também vai interpretar e vai trazer coisas,
mas aí é ele com você, e no caso da criança, você vai estar lidando com a
família.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
185
A relação de dependência estabelecida entre a descoberta do corpo doente da
criança e das “coisas da mãe” aponta para um cruzamento de subjetividades (médico-mãe-
criança) em que as histórias clínicas e pessoais interpenetram-se, compondo condições
específicas para o horizonte clínico (diagnóstico e terapêutico). Explorar este horizonte em
todo sua extensão será uma tarefa a ser exercitada permanentemente, constituindo-se em
um difícil exercício para os residentes e profissionais em início de carreira.
“Então, sabe que isso aí é janela (...) Cada dia mais eu chego à conclusão
que um bom pediatra se faz com muitos anos de trabalho. Mas trabalho,
assim, trabalho de... de cuidador, de acolhimento. Acolhe a criança, acolhe
a família. Então, às vezes eu estou passando a visita, passo visita lá no
pronto-socorro ou na enfermaria (...)com os alunos residentes e eles contam
uma história (...) Eu tenho um hábito, de alguns anos para cá, de sentar do
lado da mãe [e] tirar a história de novo. E aí é gozado, como a mãe sente
(...) que você dá [uma] segurança maior, de estar mostrando... Muda a
história, ela consegue ser mais clara porque você vai dirigindo de acordo
com a linguagem que ela entende, e você com o tempo vai aprendendo,
Capítulo 2
186
tirando dela o que é mais importante. E os residentes ficam até surpresos
porque aquilo não foi colocado na história que eles tiraram: ‘Mas como?!
Ela na me falou isso!’. Mas é a abordagem. O residente vem de cima pra
baixo, vem em pé, a mãe sentada. E você senta do lado, explica: ‘Como é
que você está? Você está mal acomodada aqui? Como é que você está se
sentindo?’. Quer dizer, ela se sente mais valorizada. Isso eu tento mostrar...
eu acho que é com o tempo que você vai adquirindo essa prática, essa
prática de tirar a história bem feita... Eu tento passar isso, lógico, com a
prática que eu tive, passar pros residentes, pros alunos, mas às vezes isso
fica difícil dado o modo de maturidade profissional, o cara está mais
interessado em aprender a fisiopatologia de determinada doença do que de
sentar com uma mãe, acolhê-la... as angústias, o que ela está sentindo, ali,
internada com o seu filho e um monte de criança em volta.” (Dr. Ricardo)
“Um bom pediatra se faz com muitos anos de trabalho (...) mas trabalho (...)
de cuidador, de acolhimento. Acolhe a criança, acolhe a família.”
(Dr. Ricardo)
“A mãe sente (...) que você dá [uma] segurança maior, de estar mostrando...
Muda a história, ela consegue ser mais clara porque você vai dirigindo de
acordo com a linguagem que ela entende, e você com o tempo vai
aprendendo, tirando dela o que é mais importante (...)E você senta do lado,
explica: ‘Como é que você está? Você está mal acomodada aqui? Como é
que você está se sentindo?’. Quer dizer, ela se sente mais valorizada. Isso eu
tento mostrar (...) Eu tento passar isso, lógico, com a prática que eu tive,
passar pros residentes, pros alunos.” (Dr. Ricardo)
“A linguagem que a gente usa para (...) tirar a história (...) não é suficiente
nem para entender adulto (...) muito menos para conseguir observar a cri...
[criança] E isso, você vai aprendendo, a capacidade de observação, a
sensibilidade, como que a criança fica dentro do consultório, quer dizer,
como é que é a relação com a mãe, se ela tolhe a criança, se ela (...)
mostra.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
188
A inserção da criança no espaço familiar mantém o fio condutor que liga a
criança ao mundo, dentro do consultório pediátrico. As crianças, frutos da humanidade,
devem ser buscadas nas relações de parentescos que mantém sua ligação com o mundo. O
universo familiar abre-se para o olhar médico como um mundo a ser objetivado em relações
pedagogicamente controladas e clinicamente dimensionadas numa estruturação da infância
operada pela apreensão, diagnóstica e terapêutica, de um corpo em desenvolvimento. O
alcance deste olhar clínico é enorme, mas a habilidade para operá-lo é algo que também
deve ser desenvolvido com o tempo da experiência profissional.
Capítulo 2
189
“Eu acho que essa é uma grande peculiaridade, essa intermediação (...) [o]
aguçamento de entender uma outra linguagem que a criança está te
passando, que não é a verbal (...) Isso está presente sempre, eu acho que
numa consulta que você fizer com um adulto isso também está colocado,
você começar a observar, a entender, mas (...) na criança isso fica mais
claro, até porque num determinado momento ela não fala...” (Dra. Cristina)
Quando perguntada sobre o que mais a atrai na prática clínica, a Dra. Fátima
responde da seguinte maneira:
“O que me atrai, primeiro, é o fato [de] que a criança, ela tem toda... você
não explora ela só verbalmente. Eu acho que ela é muito mais aberta à
exploração médica (...) você reconhece uma criança quando ela está bem,
quando ela está mal, quando ela está deprimida, quando ela está alegre. Eu
acho que a criança, ela é mais transparente, ela é muito mais transparente
do que o adulto, você consegue visualizar as coisas melhor (...) Atender
adultos (...) é dificílimo (...) eles dizem uma coisa mas você acha que
realmente não é aquilo. Por quê? Porque eu sou pediatra, eu sou... eu sou
acostumada a pegar o que a mãe fala mas também ver se o que aquela mãe
fala está realmente refletindo o que aquela criança tem. Eu acho que a
criança é mais transparente. Pediatria trabalha mais com isso. Esse é o
ponto que me atrai, que você vê um paciente que não fala nada mas você vê
tudo sobre ele, enquanto às vezes tem tanto adulto que fala tudo o que pensa
e você às vezes não consegue fazer um diagnóstico.” (Dra. Fátima)
Salta aos olhos como a noção de “transparência” faz sentido para uma ação
médica que se constitui entre o <<olhar>> e o <<golpe de vista>>, entre a investigação e a
intervenção, entre a descoberta e a constatação do “corpo em movimento”, do “corpo que
fala”, da “linguagem” dos sintomas e dos sinais. Esta metáfora ótica que descreve a criança
como um ser translúcido diante do olhar pediátrico faz-se sentir também nos termos
empregados pela Dra. Fátima para apontar o que é “ser pediatra”.
“Eu sou pediatra (...) eu sou acostumada a pegar o que a mãe fala mas
também ver se o que aquela mãe fala está realmente refletindo o que aquela
criança tem” (Dra. Fátima)
Capítulo 2
190
Nesta formulação, vemos como o trabalho pediátrico trata de pegar a fala da
mãe e ver de que maneira isto se reflete na realidade infantil (corporal). Neste caso, “pegar/
ver/ explorar/ reconhecer” são todos eles termos que procuram referir uma ação médica que
procura refletir sobre a realidade infantil ou, antes, aprendê-la a partir de seu reflexo
corporal. Como “família” parafrástica destes termos podemos apontar: apreender, agarrar,
manipular/ olhar, investigar, enfocar/ averiguar, verificar, avaliar/ identificar, estipular,
determinar.
E aí você fala: ‘Quem é esse cara que está perguntando outras coisas?’ (...)
Eu achei legal, porque foi (...) uma das poucas pessoas... Eu faço questão até
hoje de falar, porque foi ele que deu... ‘Pô, é mesmo! Como é que não vai
falar com a mãe do moleque!?’ ‘Então chama que eu quero conversar.’
Foi a primeira vez que eu vi um professor pedindo para chamar uma mãe
para conversar, para discutir que ele ia fazer a cirurgia, como que ia ser,
quais seriam as perspectivas. E aí, deu meio que um... um es... um esta... um
esta... um estalo mesmo. ‘Então, tá tudo errado. Olha o que a gente tá
fazendo aqui’.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
191
A passagem de um momento em que a mãe é afastada como alguém que
atrapalha a conduta médica, requisitando justificativas e explicações sobre a assistência
prestada às crianças, para um momento em que a mãe é aproximada como um elemento
fundamental da atenção prestada às crianças, parece assentar-se numa prática profissional
iluminada muito mais pela “boa vontade” pessoal do que por uma mudança do “sistema”
educacional, profissional. Afinal, o aprendizado de uma prática clínica que problematiza o
processo de adoecimento, incorporando a dimensão familiar como um de seus elementos
mais importantes, parece estar na dependência de esforços isolados de professores
interessados na atenção integral à saúde.
“Se a criança vai com queixa de dor de cabeça, (...) recorrente, dor
abdominal... Quando você percebe que tem alguma coisa emocional (...)
[tem que] tentar buscar isso, tentar conversar. Conversar mesmo com o pai e
a mãe para ver como é que é o dia-a-dia do cara, tentando junto com eles ir
vendo o que dá para fazer para melhorar o contato com a criança, com o
adolescente.” (Dra. Zélia)
Capítulo 2
192
2.6. Silêncio e palavras: abertura e fechamento do olhar pediátrico
Capítulo 2
193
ideal do lugar ‘outro’, como não é tampouco o abismo de sentidos. Ele é,
sim, a possibilidade para o sujeito trabalhar sua contradição constitutiva, a
que o situa na relação do ‘um’ com o ‘múltiplo’, a que aceita a reduplicação
e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre remete a
outro discurso que lhe dá realidade significativa (...) Finalmente, se a
reflexão sobre o silêncio nos mostra a complexidade da análise de discurso,
já que por ela podemos nos debruçar sobre os efeitos contraditórios da
produção de sentidos na relação entre o dizer e o não-dizer, essa reflexão
nos ensina também que, embora seja preciso que já haja sentido para se
produzir sentidos (falamos com palavras que já tem sentidos), estes não
estão nunca completamente lá. Eles podem chegar de qualquer lugar e eles
se movem e se desdobram em outros sentidos.” (Orlandi, 1997: 22-24)
“[O] silêncio constitutivo, que nos indica que para dizer é preciso não dizer
(uma palavra apaga necessariamente “outras” palavras); o silêncio local,
que se refere à censura propriamente (aquilo que é proibido dizer em uma
certa conjuntura).” (Orlandi, 1997: 24)
Capítulo 2
194
opera um ordenamento médico do silêncio infantil, segundo o qual a criança é apreendida
necessariamente a partir de sua relação materna. Ou seja, o olhar pediátrico apreende a
Infância a partir do silenciamento de qualquer sentido que não esteja remetido à relação
materna da criança ou, de forma mais ampla, à sua relação “filial” com o mundo.
Capítulo 2
195
2.7. A clínica pediátrica como um trabalho de tradução
“Não é só sair tecnicamente bom, ele tem que ter uma estrutura emocional
pra agüentar essas demandas (...) [que] têm um impacto enorme; tem que
absorver e não bater e reverberar, não pode ricochetear em você, você tem
que absorver e sair com ele todo traduzido numa tranqüilidade. Sendo
autêntico mas com tranqüilidade. Então isso é complicado, fazer isso todos
os dias (...) trabalhar assim. Então, a questão do emocional (...) não pode ser
frio mas também não pode se incorporar todas as angústias, senão você
pira, não trabalha.” (Dr. Ricardo)
Esta intermediação da razão pela emoção e da emoção pela razão deve ser
operada em um sistema de trocas simbólicas em que o impacto do trabalho pediátrico
(sobre médico e paciente) seja revertido em uma intervenção controlada pelo pediatra. Isto
possibilita ao pediatra apresentar-se enquanto um “cuidador técnico” que fornece um ponto
de apoio seguro para o “cuidador leigo” das crianças.
Capítulo 2
196
A utilização da metáfora mecânica para descrever esta intervenção dá conta do
caráter incisivo da prática pediátrica, assim como, chama a atenção para a presença dos
choques, dos conflitos e das tensões aí encadeados.
“Você tem mãe e pai que não deixam o filho abrir a boca. Então, mesmo
uma criança maiorzinha, às vezes a gente tenta conduzir a consulta
conversando com a criança e você não consegue. Então às vezes você
precisa pedir pra sair, você conversa só com a criança. Dependendo do tipo
de coisa que é pra conversar você precisa tirar... Você pergunta pra criança
a mãe responde antes, aí você precisa tirar a mãe (...) Mas no bebezinho é
importante a gente estar conversando com (...) a mãe porque tem que
aprender algumas coisas da criança E historicamente a gente tirou isso das
pessoas, de estarem cuidando da sua saúde, tal... Então a gente tem que
devolver isso. Então a gente conversa com a mãe (...) Um nenezinho que
nasceu é uma pessoa a mais que vai vir, estava dentro da barriga lá
quietinho, já estava sofrendo alguma coisa, mas na hora que ele vem é uma
pessoa a mais que vai interferir no relacionamento do casal, que vai
Capítulo 2
197
interferir... se tem outro irmão, com o outro irmão (...) Tem que trabalhar
essas coisas e a mãe estar tentando buscar essa comunicação com o nenê
(...) Ela vai ter que intermediar algumas dessas coisas mesmo, não tem jeito.
É ela que vai te trazer o que ela acha que a criança está sentindo, quando a
criança é pequena e ela não está sabendo se expressar melhor ali. Tem
algumas formas de expressar que a gente vai traduzindo, o choro, essas
coisas, que você aprendendo a traduzir se aquilo está confortável ou
desconfortável. Mas o que é de fato, é que é a mãe que vai te ajudar muito
nisso. E a criança, como ela vai começando a melhorar a expressão dela, é
você estar buscando isso (...) se você tenta falar e não consegue você tenta
buscar desenho, buscar... trazendo historinha de alguma coisa, você vai
buscando isso nela. E o pai junto, eu acho que o importante é... Agora, é
muito mais fácil quando você percebe que o pai ajuda, mesmo que o pai... o
casal esteja separado, não esteja... Mas se tem um pai que é muito mais
presente no cuidado da criança é muito mais fácil isso, pra criança e pra
mulher.”(Dra. Zélia)
Capítulo 2
198
entender, expressar) que conduzam a uma ação terapêutica (ensinar, saber, explicar) sobre o
corpo infantil.
Capítulo 2
199
Porém, como já vimos, o silêncio não é o “Outro” complementar da linguagem,
ele não vem recompor o todo de um sistema imperfeito ou danificado. O silêncio aponta
para os deslocamentos entre o dizer e não-dizer, para os diferentes campos de tensões
existentes entre as formações discursivas, para a errância dos sentidos e dos sujeitos.
Capítulo 2
200
Assim, o trabalho pediátrico procura, em grande parte, regular o exagero
materno para proteger as crianças do caráter insidioso mantido pelas palavras adultas
(familiares) com relação ao corpo infantil. O trabalho pediátrico deve traduzir o corpo
infantil, oferecendo novos pontos de apoio para o cuidado leigo. A resolução médica dos
conflitos é sempre provisória e não deixa de expor as contradições próprias de uma
profissão tocada pelo campo das relações familiares.
Capítulo 2
201
da pura oposição excludente entre um ponto de vista técnico e um ponto de vista leigo
sobre o corpo infantil.
Finalmente, quando levado ao seu extremo, este trabalho não deixa de causar
um certo mal-estar entre os pediatras, quando alguns entrevistados denunciam a crescente
dependência mantida pela mãe com relação ao pediatra, em vista de um incisivo processo
de medicalização social do cuidado materno.
Porém, estes movimentos não são controláveis por uma consciência individual
onisciente que viria a manipular toda a significação discursiva. Como já vimos, o silêncio
estrutura-se discursivamente, assim como o próprio discurso (ou estruturação discursiva)
pressupõe o silêncio. Assim, o silêncio não se constitui em matéria visível, devendo ser
compreendido pelos seus efeitos (que afetam o trabalho pediátrico), na medida em que
possibilita o movimento do discurso na contradição entre o “um” e o “múltiplo”, entre a
coesão e a dispersão.
Aliás, esta vontade definitiva que nos diz que há algo que devemos reter na
vida, um sentido que sempre nos escapa, coloca-nos diante da errância dos sentidos. A
presença do silêncio acena de modo fugaz em cada palavra que procura remetê-lo ao
visível, sua força não reside em uma solidez concreta, mas em um movimento de
desestabilização de qualquer sentido solidificado.
Capítulo 2
202
Os deslizes de sentido e os deslocamentos discursivos presentes na relação da
língua com a história (contradição) não atestam uma imperfeição lingüística, mas, sim,
apontam para a existência de um exterior da língua, que nada mais é do que seu impossível:
<<tudo não pode ser dito>> (Lalangue/Lacan). Aqui é quebrada a idéia de uma língua
descrita como um <<repertório>> estruturado enquanto um sistema homogêneo de signos.
Não há relação de complementaridade entre o “um” e o “múltiplo”, entre o silêncio e o
discurso. Trata-se de uma relação contraditória que aponta para pequenos movimentos nas
estruturas, uma vez que estas não estão fundadas sobre sistemas fechados (semiológicos ou
outros).
“Ah, com certeza! Eu não tenho dúvida! Eu não tenho duvida porque é muito
mais uma questão de... não é abordagem de doença (...) é comportamental
mesmo, é coisa do comportamento infantil, comportamento da criança. Você
só consegue ser um bom pediatra se você está vivendo do lado de uma
criança dia e noite, sabendo que o pai que acorda à noite, o que ele está
sentindo, chega com essa angústia para você, com olheira. Se você não
viveu isso você vai menosprezar, ou hipervalorizar a queixa, você não
consegue passar a sua experiência. Eu acho muito difícil. Até dou um
louvor, a quem conseguiu ser um bom pediatra não tendo filho. O Boldrini,
por exemplo, não teve filho. Hoje é nome de centro de referência aí da
América Latina. Mas isso aí são exceções. Acho que a maior parte das
pessoas, pra ter uma boa atuação, tem que ter uma vivência em casa com as
crianças.” (Dr. Ricardo)
Capítulo 2
204
seja através dos filhos que temos ou dos filhos que fomos, consiste em uma experiência que
organiza o olhar médico voltado para o dimensionamento familiar do corpo infantil.
“Quer dizer, o que faz ela levar a criança no médico, em que momento (...)
qual o papel que essa criança desempenha dentro da casa. Então, (...) a
criança que é um problema, e precisa ter aquele problema para que outras
questões não sejam discutidas dentro da casa. Então, deposita toda angustia
dentro de um mal relacionamento do casal (...) cria-se um problema na
criança, porque aí todo mundo fica em cima daquilo e não (...) Chega lá e
tampa (...) Então você tem que ir percebendo isso, como abordar, entender o
papel que a criança tem dentro da casa. E isso você realmente vai
aprendendo com o tempo.” (Dra. Cristina)
Se a criança não fala ou não pode falar sozinha de si mesma, ela fala a partir de
sua dimensão familiar, por isto mesmo ela fala sobre e sob a casa em que ganha espaço o
seu processo de desenvolvimento. A criança fala sobre a casa em que vive, sobre o
casamento de seus pais, sobre as relações de parentescos que compõem seu universo
familiar.
“Então você tem que ir percebendo isso, como abordar, entender o papel
que a criança tem dentro da casa.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
205
É significativo o fato desta aproximação ser descrita como um gesto que se
formula antes no campo da percepção do que no do saber. Afinal, este é um dos raros
momentos em que a ação médica não está circunscrita pela explicação.
Capítulo 2
206
O estabelecimento do diagnóstico parece associar-se à capacidade de
intervenção pediátrica sobre o corpo infantil/doente, uma vez que torna-se mais difícil
consolidar o diagnóstico quando a situação vivenciada pela criança não autoriza a clara
identificação de um quadro clínico a partir do qual a ação médica seja legitimada.
“Você tem que ensinar o aluno a ver isso. Porque essa determinação que
você tem no processo saúde-doença, eu acho que tem duas coisas que são
fundamentais aí. Eu acho que primeiro é olhar essa coisa pela perspectiva
da saúde, não da doença. A doença faz parte, então não é nela. E a segunda
é o quanto que essas diferenças interferem nesse processo saúde-doença.
Determinação (...) de inserção de classe que vai ter o jeito de cada problema
de manifestar. E isso é tão escarrado! Quando a gente vai aprendendo a ver
não tem como não ver! Então, (...) uma criança (...) com anemia, por
exemplo, (...) você tem que fazer uma história alimentar (...) e tem que dar o
remédio. Então você tem que saber como é que você vai dar esse remédio, o
que tem em casa para comer, o que não tem, se a mãe trabalha, de que hora
a que hora, que hora que vai dar o remédio, que hora que não vai. Se está
dando o remédio. Às vezes você está tratando, tratando, descobre que não
está dando o remédio. Aí você conversa, vê de novo o que está acontecendo e
tal. Esses dias atrás (...) a gente fez exame e ainda não estava bom. Aí eu fui
conversar com ela (...) “Mas ele engole o remédio ou ele cospe?”, “Ele
cospe tudo, doutora!” (risos). Esqueci de perguntar se ela engolia. Ela
estava dando, estava fazendo tudo direitinho, mas eu esqueci de perguntar se
ela estava engolindo. Então, se você não fica atento pra essas coisas, dança
(...) A outra que não sabe ler direito, ou sabe ler mas não lembra (...) Então
você tem que saber do que está acontecendo com as pessoas pra poder estar
inclusive podendo (...) Não adianta você prescrever, a gente só cuida (...) Se
as pessoas não estão envolvidas nesse processo, não consegue. E você tem
que estar desenvolvendo autonomia aí com a mãe podendo cuidar.”
(Dra. Zélia)
Capítulo 2
207
Conhecer a <<casa>> torna-se um caminho seguro para que a intervenção
médica alcance uma eficácia terapêutica que atinja as dinâmicas familiares nos pontos de
inflexão em que se definem os processos de adoecimento infantil. Assim, <<a doença faz
parte...>> do objeto de trabalho pediátrico, <<.... mas não é nela....>> que o olhar médico
vem a reconhecer o todo de seu objeto. A pediatria deve estar atenta ao processo saúde-
doença, ao processo de desenvolvimento infantil, ao processo de construção do cuidado
materno. Aí reside a possibilidade de encontrar a criança em sua integralidade.
“Você tem que ensinar o aluno a ver isso (...) Quando a gente vai
aprendendo a ver não tem como não ver!” (Dra. Zélia)
Uma vez que o pediatra apreenda o exemplo dado por seus professores sua
prática clínica não mais deixará de ser tocada pelas tensões constitutivas do trabalho
pediátrico.
Capítulo 2
208
“ ‘Mas ele engole o remédio ou ele cospe?’, ‘Ele cospe tudo, doutora!’
(risos). Esqueci de perguntar se ela engolia. Ela estava dando, estava
fazendo tudo direitinho, mas eu esqueci de perguntar se ela estava
engolindo.” (Dra. Zélia)
“Não adianta você prescrever, a gente só cuida (...) Se as pessoas não estão
envolvidas nesse processo, não consegue. E você tem que estar
desenvolvendo autonomia aí com a mãe podendo cuidar.” (Dra. Zélia)
Desta forma, para que o pediatra inscreva-se como “cuidador técnico” de seus
pacientes ele deve estar atento para a maneira como os acompanhantes das crianças
constituem-se, eles próprios, enquanto “cuidadores”.
5
Polícia e Ladrão, Duro e Mole, Cabra Cega, Passa Anel...
Capítulo 2
210
na consulta clínica, e, desta forma, compreender qual a sua importância no espaço
terapêutico.
“É geralmente a mãe, nem sempre, pai traz bastante, até essa coisa do
desemprego... Mas (...) tem mais pai (...) quando você trabalha em pronto-
socorro” (Dra. Zélia)
6
É importante dizer que nos referimos aqui ao papel de cuidador estritamente ligado ao adoecimento infantil,
sem querermos abordar qualquer outra dimensão da relação paterna.
Capítulo 2
211
Vemos como os papéis sociais de cuidador e de provedor da criança implicam
não só em diferentes relações com a criança, mas também garantem lugares diferentes no
atendimento clínico. A proeminência da mãe como cuidadora natural de seus filhos parece
coadunar-se harmonicamente com a ausência do pai na casa, ou, ao menos, na consulta
pediátrica.
“Olha, sinceramente, a gente tem uma experiência, aqui no nosso (...) meio
social, (...) com pai, muito ruim. Ou ele não está presente porque ele está
trabalhando mesmo, ou ele não está presente porque dentro daquela
estrutura familiar ele (...) não tem importância nem do ponto de vista de
ganho financeiro nem de cuidador dos filhos, ali, [para] ajudar a mãe em
casa. Porque é uma estrutura extremamente machista, o papel está delegado
à mãe, cuidar dos filhos, e raramente a gente consegue tirar alguma coisa a
mais quando é um vizinho ou um parente que traz. A não ser nas crianças
que estão institucionalizadas, que vêm com a pessoa que está encarregada
delas, o responsável. Mas... é totalmente diferente tirar uma história com a
mãe, tirar uma história com o pai ou com o tio (...) Às vezes (...) é muito
comum os pais que ficam com as crianças, os separados, [que] vêm o fim de
semana com a criança – o pai. Aí você tenta tirar uma história, ele fala:
‘Mas eu peguei ele ontem. Não sei. Olha, de ontem para cá ele está com isso,
mas não sei o que aconteceu antes’. Mas aí você fala (...) [que] a história
tinha que ter um dado anterior: ‘Não dá pro senhor ligar pra...?’ [E o pai
então responde]: ‘Não, não. Não converso com ela...’ (...) É o que eu falei,
tirar água de pedra, porque você tem poucos dados porque é o pai que
trouxe, que pegou a criança pouco tempo [e] tem que devolver domingo à
noite com medo da mãe dar uma dura porque ele devolveu a criança pior do
que pegou, e ele leva lá no pronto-socorro. Quer dizer, é muito diferente, eu
acho que a mãe é o ponto-chave, a estrutura realmente... na nossa
sociedade, essa que vive em volta da gente, que freqüenta nosso hospital...
Em clínica privada não, às vezes o pai chega e fala muito melhor até que (...)
Capítulo 2
212
a mãe. Tem pais que cuidam dos filhos, [pois] a mãe está trabalhando. Eu
atendo umas crianças (...) [em consultório, por] convênio, particular, e às
vezes a mãe é a estrutura-chave na família, ela que trabalha e o pai que
acaba cuidando das crianças. Então, quando ela vem, ela vem com os filhos
mas com o pai junto pra falar o que está acontecendo, porque ela se sente
na obrigação, como mãe, de estar lá presente. Mas ela precisa da ajuda do
pai pra mostrar a história.” (Dr. Ricardo)
Assim, quando perguntado se o fato do acompanhante ser sua mãe, seu pai ou
um vizinho interfere na consulta pediátrica, Dr. Gustavo nos responde o seguinte:
Capítulo 2
213
pôde] abrir um espaço na sua agenda de executiva. Ficava imaginando
quanto de afeto ela tinha para dar pra esse filho em casa, porque nem isso...
Achava isso muito triste, mas [é] um sinal dos tempos. Agora, a maior parte
do tempo o meu interlocutor, ou a pessoa que levava, foi sempre a mãe,
muito raramente irmã ou tia, às vezes ia a avó só, mas muitas vezes foi só
babá e motorista. E eu achava isso horrível, mas dava toda a atenção. Aí ele
ligava para a mãe, explicava, mas não era igual, não era igual. Ou a mãe
ligava só pra se tranqüilizar. E aí você percebia que a mãe que contava com
a criança não era a mãe biológica, era mesmo a babá, o pai não era mesmo
o pai, era mesmo o motorista. E isso é triste de você ver. Mas eu lidava assim
mesmo. Então dou orientação pro motorista, dou orientação pra babá, faz
uma bruta diferença porque (...) eu aprendi isso (...) você tem que dar
orientação pra quem está cuidando, não é pra mãe, é pra quem está
cuidando. Então eu fazia muita questão de explicar direitinho pra babá ou
pra enfermeira (aspas enfermeira), lá, enfim, atendente que levou, toda
atenção. Para mãe eu explicava, está com tal problema, receitei tal coisa e
tal, agora, o detalhe não era para mãe, era pra quem levou lá mesmo.”
(Dr. Gustavo)
A infância requisita que o estranho seja tornado familiar. Assim, a Pediatria tem
que ultrapassar as dificuldades apontadas pela Clínica na relação médico-paciente, para
encontrar-se com o elemento familiar que traz com maior força o dimensionamento do
corpo infantil – a maternidade ou a relação materna que ultrapassa a mãe biológica.
Capítulo 2
214
Em primeiro lugar, aponta-se aí uma falta de afeto da mãe pelos seus filhos
como única explicação possível para que os cuidados maternos sejam delegados de maneira
tão enfática para a babá das crianças. Esta falta de afeto aparece como um <<sinal dos
tempos>> que se associa não somente ao fato do trabalho feminino, atualmente, estruturar-
se de maneira a exigir uma dedicação cada vez maior das mulheres ao mundo do trabalho,
mas que, antes de mais nada, associa-se de maneira especial a um crescente desinteresse
pela condição materna.
Vemos, neste trecho, como a condição materna está marcada pela noção de
“sofrimento”, na medida em que estar interessada no crescimento do seu filho rivaliza com
o investimento em seu crescimento profissional. Por sua vez, abdicar do compromisso com
o cuidado materno implica em prejuízo ao crescimento e desenvolvimento de seu filho.
Capítulo 2
215
Conforme já vimos, à medida em que o elemento materno estrutura até certo
ponto o atendimento pediátrico, ele será, a um só tempo, um objeto estranho e familiar ao
setting médico. Desta forma, ainda que a babá não seja a mãe biológica da criança, ela deve
ser aproximada na consulta clínica de maneira a tornar-se familiar diante do olhar médico.
Capítulo 2
216
lá dar a notícia sem preparo (...) mostrando a despreocupação que havia.
Melhorou um pouco isso, hoje tem uns grupos (...) de psicólogos, discutindo,
fazendo grupo (...) [Mas era] assim: ‘Ó, agora avisa a mãe lá e vê se
consegue a autópsia, porque pra gente é importante’, entendeu. Então, uma
coisa muito ruim, porque, você não tinha nem como falar aquilo, não tinha
preparo, e isso mostra uma despreocupação, um descompromisso mesmo,
com aquelas pessoas que eram objeto de estudo. Então, essa coisa do objeto,
era o que eram (...) continua sendo, mas pelo menos agora não é
politicamente correto falar isso abertamente: ‘Vai lá e vê se consegue a
autópsia’. Ninguém fala isso. Pode até pensar (...) mas não fala. Naquela
época era claro, quer dizer, paciente do sistema público é objeto de estudo.
Então, hoje, ninguém fala isso. Pode até pensar e agir como, mas não fala
pelo menos. E naquela época era uma coisa natural.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
218
políticas bastante avançadas, presentes na Constituição de 1988 e consolidadas pela
regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS), quando da aprovação da Lei 8.080, em
1990.
Capítulo 2
219
desenvolvimento do auto-cuidado pode ser tratado no atendimento pediátrico como uma
questão de <<condicionamento>> determinado pelas diferentes condições de existência
fisiológica, familiar e social da criança.
Capítulo 2
220
mais rápido do que aquele encontrado entre as <<crianças de consultório>>. Isto ocorre
porque as primeiras têm que aprender “na marra” as práticas corporais que auxiliam a
proteção da sua infância. Estas crianças devem ajudar suas mães e o pediatra a serem
cuidadas devidamente, cuidando de si e de seus irmãos, especialmente, na busca de uma
rede assistencial que venha a incentivar seu pleno desenvolvimento. Já as crianças que
chegam ao consultório (privado) estão envolvidas de tal maneira numa liberdade vigiada
que acabam por sofrer um protecionismo que ironicamente adia o desenvolvimento de
comportamentos que demonstrem a sua autonomia para tratar com as dificuldades com que
não estão familiarizadas.
“Eu acho que sem dúvida o auto-cuidado só vai sendo possível com o
crescimento da criança. E eu acho que não é uma coisa, (...) com os adultos
também assim, não é uma coisa que se resolve na consulta. Eu acho que isso
na consulta pode haver um reforço da parte do profissional (...) mas, às
vezes, num programa de televisão, essa coisa da mídia, esse tipo de
informação, na coisa da educação pra saúde, se trabalha muito com isso (...
) E não é dando palestrinhas, falando, entendeu (...) Então, assim, eu acho
que nesse sentido o pediatra, isoladamente, ele tem um papel muito
limitado. Então, acho que a escola é importante pra isso (...) A Sociedade de
Pediatria está propondo que as escolas incluam nos currículos uma
discussão de saúde (...) junto com ciências (...) [Isso] tem um impacto maior
do que você falar numa consulta (...) A criança vai incorporando, lê, olha na
televisão, passa num programa que tem uma aceitação (...) não é um médico
te falando (...) ‘Olha, tem uma matéria, tem um pessoal bacana, a gente é de
uma linha que (... ) é pra começar a andar e fazer isso melhor’ (...) Ele tem
que buscar outras formas (...) é intersetorial. Se ele for uma pessoa que tem
uma atividade isolada dentro de um consultório, é muito limitada, não vai
conseguir fazer grandes coisas.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
221
corpo didático escolar intervém (pedagogicamente) sobre o corpo infantil, podendo,
inclusive, influir no estabelecimento do auto-cuidado.
Neste trecho, vemos como a Pediatria está marcada pela injunção de trabalhar
com... a mãe, o pai, a criança, o professor, etc. O trabalho pediátrico está necessariamente
marcado por estas intermediações que permitem estabelecer a rápida passagem entre os
aspectos biológicos e sociais que afetam o desenvolvimento infantil. Um ponto concreto em
que podemos localizar a força destas intermediações no trabalho pediátrico é evidenciado
pela formulação a gente tem que... trabalhar, conversar, investir, explicar, passar
(transmitir).
Capítulo 2
222
Vemos assim como estas intermediações implicam em um sistema de
obrigações (prestações e contra-prestações) em que os cuidadores devem investir na
demonstração de um corpo didático para as crianças, afinal, estas também devem “entender,
conhecer, lidar” pedagogicamente com seu próprio corpo (“inclusive” com sua sexualidade,
“porque o sexo é mais uma parte do corpo”).
“Não dá para atender as pessoas sem entender em que espaço estão, e tem a
ver com a linguagem, eu acho que (...) começa daí, você ter uma linguagem
que se torne acessível e compreensível. E ao mesmo tempo saber (...)
entender o que é que essas pessoas estão falando (...) E [nível] cultural
também, quer dizer (...) a importância que determinadas coisas têm. E a
gente que atende muito na área pública, você acaba atendendo (...) um nível
sócio-econômico mais baixo, e pessoas (...) até muito diferente você atender
alguém que acabou de um norte, nordeste, que (...) acredita em determinadas
coisas, culturalmente pensa algumas coisas, que a criança tem um papel na
vida dela, e, e alguém que é daqui, de outro nível, que viveu outra situação
(...) com mais escolaridade e tal.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
223
“Então o que a gente percebe que (...) as pessoas muitas vezes (...) elas
tiveram muitas petas [sic], sem substituir por nada, essa é a impressão que
eu fico. Porque ela vem achando que tal coisa é importante, que tal
procedimento a mãe falou que devia ser feito quando a criança nasce, uma
porção de coisas. Aí ela chega aqui você fala: ‘Olha, não é verdade, isso não
é, isso não é (risos)’. E aí fica um... acho que é um vazio, que ela perde
algumas coisas que acreditava, e a gente não oferece muitas coisas pra, pra,
pra ela estar se... tendo o pé no chão. Porque aquilo estava bom, estava
acomodado, acreditava naquilo. De repente você fala: ‘Não’. Ficou com
febre, ‘mas não [foi] por causa daquilo?, ‘Não, não é isso. Isso é um virus...’
Então (...) até que ponto que você, a hora que você desfaz algumas questões
culturais aprendidas aí e não substitui por alguma coisa mais palpável. E
[isso] traz uma insegurança muito grande.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
224
parecem não se aproximarem dos sentidos próprios às trajetórias pessoais destas mães,
restringindo-se a um campo abstrato demais para atingi-las. No entanto, o fazer pediátrico
põe em xeque o cuidado materno de maneira muito concreta, afirmando preceitos de
puericultura, noções de higiene, conceitos clínicos e explicações sobre o processo de
adoecimento.
“Então o que a gente percebe que (...) elas tiveram muitas petas [sic], sem
substituir por nada, essa é a impressão que eu fico (...) acho que é um vazio,
que ela perde algumas coisas que acreditava, e a gente não oferece muitas
coisas pra (...) ela estar se... tendo o pé no chão (...) Então (...) você desfaz
algumas questões culturais aprendidas aí e não substitui por alguma coisa
mais palpável.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
225
Mesmo assim, o que se tira, o que se dá, o que se perde e o que se substitui
aparece para o pediatra como uma pura oposição em que médico e paciente permanecem
em um mesmo lugar. Parece que falta uma linguagem específica para intermediar este
encontro entre mães e pediatras, que viesse a estabelecer uma ponte firme entre o
conhecimento médico e a percepção leiga sobre as crianças.
O ideal de uma língua universal fala alto aqui, como em outros lugares7,
assediando o molde científico dos saberes médicos com as formas de um discurso
totalizador que se fecha para a possibilidade do deslize, da falha, do acaso. O corpo humano
universal possui uma consistência anátomo-fisiológica que expressa bem a noção de
unidade, porém o corpo infantil em desenvolvimento possui um estado não-acabado que
deve ser apreendido em sua densidade familiar, conduzindo a ótica médica em meio à
diversidade cultural de seus pacientes.
7
Esperanto, Ação Comunicativa...
Capítulo 2
226
maior dos cuidados em um sistema de crenças legitimadas socialmente8. Esta situação
altera-se diante de um conhecimento escolar que provoca na sensibilidade indígena o
surgimento de um elemento perturbador incluído num processo de transformação social,
neste caso, descrito como uma aculturação. Este processo de “aculturação” só pode ser
entendido, no exemplo dado pela Dra. Cristina, levando-se em conta o modo como a
intervenção de um sistema jurídico-moral que regula o estatuto da infância atinge médico e
paciente.
Nesta situação, não é possível para o índio (paciente) enterrar seus deficientes
(e suas deficiências), nem para o branco (médico) admitir na formação do papel social de
cuidador a presença de uma ambigüidade perturbadora que atrapalhe a execução de uma
ação terapêutica precisa, que se traduza em cuidados adequados para aquela criança. Os
índios não podem ser condenados por seu sistema de crenças, mas uma vez que este não se
localiza inteiramente para além do conhecimento escolar, ele deve ser “readequado” (leito
de Procusto) dentro de novos parâmetros, de modo que o cuidado paterno/materno não seja
tomado por ambigüidades nocivas à criança.
8
Um senso comum muito difundido entre conhecimentos populares e eruditos sobre as sociedades indígenas é
o de tomá-las como um corpo social homogêneo, onde as individualidades não têm lugar de existência e as
identidades acoplam-se com funções sociais precisas. Descreve-se uma sociedade de iguais, onde a diferença
cumpre uma função orgânica de permanência de uma estrutura social. Este mito democrático que mistura a
idéia de uma assembléia permanente com uma hierarquia harmônica das identidades sociais associa-se
ironicamente com uma visão utilitarista em que cada indivíduo existe para cumprir uma função na sociedade.
Assim, as sociedades indígenas são caracterizadas por estruturar-se em uma lista fixa de papéis sociais rígidos
que exerce o poder de extrair de qualquer particularidade individual um grau maior de generalidade coletiva
que garante uma coesão social fortalecida. O mito do bom selvagem conjuga-se com o do paraíso perdido,
com a diferença de que, no primeiro, a procriação restringe-se à perpetuação do mesmo, não cabendo aí a
enunciação do cuidado materno para além de sua auréola natural, enquanto que, no segundo, os filhos do
desejo humano são o sinal de sua decadência, ao mesmo tempo que prometem e evidenciam a sua
transformação.
Capítulo 2
227
“Aí eles resolveram cuidar, mas ao mesmo tem... Porque esse pai ainda não
é tão índio assim, de repente, porque ele está convivendo... Então, algumas
coisas do branco foram passadas. Mas aí eles realmente não conseguem
cuidar direito, porque, porque... E a gente foi se perguntando o que é que
vai ser dessa criança nessa tribo (...) Ele não enxerga, não serve pra cassar,
não serve para... para que vai servir, que representação vai ter essa criança
naquela sociedade? Estávamos muito ansiosos, quer dizer: ‘O que é que a
gente faz?’ Não sei, porque ficou um meio termo, eles nem enterraram a
criança, e nem estão conseguindo fazer o que a gente faria. Então ele... e é
isso que você tem que entender na hora de atender, não adianta xingar o
pobre do índio: ‘Ah, o sr. é um cafajeste, não está cuidando...’ Não é isso,
claro que não é. Então, eu estou te dando um extremo, mas isso está
colocado em diferentes graus em todas as culturas: a questão do cuidar ou
não cuidar, o como cuidar, o que que é cuidar. Às vezes, para pessoa está
respondida a necessidade, e do ponto de vista técnico, entre aspas, talvez
não esteja.” (Dra. Cristina)
Assim, “a questão do cuidar ou não cuidar, o como cuidar, que é que é cuidar às
vezes, para a pessoa, está respondida (...) e do ponto de vista técnico (...) talvez não esteja”
mas “é isso que você tem que entender na hora de atender” (Dra. Cristina). O atendimento
clínico pediátrico deve lidar centralmente com a questão do cuidado/cuidador de modo a
propiciar a formulação de um entendimento sobre os próprios conflitos existentes entre o
ponto de vista técnico e leigo no setting médico. Entender e atender parecem confluir para
uma mesma ação interventiva que garante uma passagem entre o médico e o paciente.
Capítulo 2
228
condições importantes para a própria construção do conhecimento médico sobre o cuidado
materno. Afinal, a figura materna não fala apenas para as mães que atuam na posição de
pacientes no ato clínico, mas também para aqueles que professam o próprio saber médico.
As mães que tivemos, as mães que seremos e as mães que terão nossos filhos passeiam
miticamente pelas cabeças de médicos e pacientes, surtindo efeitos específicos sobre as
práticas discursivas que estruturam a clínica pediátrica.
Assim, podemos dizer que esta clínica não sofre a falta de uma linguagem
intermediária que viesse a aproximar o ponto de vista técnico do leigo, ou mesmo, que
lograsse incorporar definitivamente a percepção leiga no plano epistêmico do conhecimento
científico. Mas, sim, que a clínica pediátrica sofre as conseqüências das contradições
produzidas no entrecruzamento de uma prática profissional (regida pela figura do Direito)
com o fluxo da Vida: mãe, pai, filho, casa, rua, corpo, que se mostram para o pediatra como
elementos subjetivos da relação médico-paciente identificados como conteúdos emotivos
incontroláveis pertencentes aos “cuidadores leigos” das crianças (“conhecimento cultural”).
Capítulo 2
229
orientação compartilhada, quer dizer, ‘Como é que você está? Como é que
você está lidando com isso ?’ O aleitamento materno tem muito isso, mãe vai
(... ) tantas horas (... ) Ninguém pergunta da mãe, principalmente, como é
que ela está (...) E isso é muito ruim, porque o profissional que está
trabalhando, está atendendo a criança, ele tem que atender essa criança
dentro de um contexto familiar, de uma complexidade de relações muito
grande.” (Dra. Cristina)
Capítulo 2
230
Atender (e entender) o paciente pediátrico em sua densidade familiar,
interferindo, para tal, nas linhas em que se inscreve o papel de cuidador das crianças,
permanece ainda como um empreendimento (necessário) que desafia o olhar pediátrico a
desestabilizar a oposição existente entre o conhecimento técnico e leigo, de modo a abrir-se
às contraposições e justaposições concretizadas entre o campo profissional pediátrico e o
campo das relações familiares.
Neste momento, podemos refletir sobre a oposição existente entre a ótica leiga
e a ótica médica existente no atendimento clinico-pediátrico, a partir de alguns elementos
expostos ao longo deste capítulo.
Capítulo 2
231
em que a elaboração de uma “linguagem intermediária” viesse a aproximar ao máximo
médico e paciente, sem perturbar a divisão existente entre aquele que sabe e aquele que não
sabe.
Capítulo 2
232
O pediatra deve demonstrar coragem para enfrentar uma gama grande de
problemas agravados pelo caráter vulnerável das crianças, e, por isto mesmo, deve
desenvolver uma sensibilidade apurada para apreender as tramas sutis em que as crianças (e
seus cuidadores) estão inscritas. Tecer as linhas investigativas e as condutas terapêuticas na
clínica pediátrica certamente é uma arte a ser aprimorada com o tempo, mas que nunca
deixará de impor e de expor seus limiares de inquietação àqueles que a realizam.
Capítulo 2
233
CAPÍTULO 3
A infância no consultório
“Eu daria tudo que tivesse/ prá voltar aos dias de criança/ Eu não sei porque que a gente
cresce/ se não sai da gente essa lembrança.”
235
236
INTRODUÇÃO
Vimos até agora como a prática clinica na área pediátrica é atravessada pela
relação materna, de forma que o “ato clínico a três”, mais do que simplesmente agregar
cumulativamente novos níveis de dificuldades ao atendimento clínico, implica em um
importante deslocamento no olhar médico em direção à tomada do corpo infantil. Assim, a
oposição existente entre o corpo doente e o processo de adoecimento, inerente à prática
médica, é tensionada de modo específico no atendimento pediátrico pelo campo das
relações familiares. Procuramos apontar como, a partir do entrecruzamento do campo
pediátrico com o campo das relações familiares, são produzidos deslizes de sentido entre o
papel de cuidador leigo e especializado da criança.
Capítulo 3
237
internas neste campo profissional, visando focalizar de modo mais especifico, por exemplo,
o recém-nascido (neonatologia) e o adolescente (hebiatria).
Capítulo 3
238
O pediatra deve atar-se (mais uma vez) ao eixo das relações familiares para
lidar com as variações e as regularidades próprias à infância. Ao longo deste capítulo,
teremos a oportunidade de ver mais claramente como o eixo familiar intercepta o eixo da
Educação (dos corpos, das sensibilidades, dos sentidos) na clínica pediátrica, de maneira a
ocasionar que a tensão existente entre o corpo doente e o corpo infantil estabeleça uma
certa ambigüidade nas fronteiras existentes entre os aspectos biológico e social da infância.
“Você pode ter muitas maneiras de definir a infância. Eu não sei, não tenho
muita clareza do que é a infância não. O que eu posso dizer por exemplo é
que a infância é uma coisa muito recente para eu saber direito o que ela é.
[A] criança era um adulto em miniatura, até no vestir (...) [E então] falou:
(...) ‘olha, espera aí, precisa educar (...) não é só ensinar artes marciais.´
Isso é fim do séc. XVIII. Então vamos dizer que (...) temos aí (...) duzentos e
poucos anos com a noção de infância... [E] se a gente prestar atenção, deve
ter aí uns cem anos ou menos [a] adolescência. Então eu digo que a noção
(...) de criança [é] determinada e culturalmente modificada. Então infância,
por exemplo na classe média-alta brasileira, talvez eu saiba dizer para você.
[Já a] infância de um coitadinho que mora no Vale do Jequitinhonha, (...)
[de uma] criança que começa a ajudar a mãe a catar coisa ...”
(Dr. Gustavo)
“A gente trabalha com a infância... mas eu acho que não tem um marco. Eu
não tenho muito essas coisas definidas. Eu acho que vai mudando a forma de
você estar lidando com eles. Porque se você está pensando na criança como
um... respeitando essas fases dela de uma forma que ela está nessa fase e (...)
vai desenvolver algumas coisas ali, e aquilo é importante pra ela naquele
momento. [E] não porque ela depois vai ser alguém... Não muda muito no
jeito de você estar vendo isso, porque se você pensar na criança como um
ser que não tem capacidade de fazer nada, que você vai resolver tudo pra
ela (...) [então] você põe marcos mais definitivos nisso. Então, a partir do
momento que o cara termina tal coisa ele vai conseguir trabalhar, ou se ele
já consegue se expressar de alguma outra forma. Então aí eu acho que tem
mais marco (...) Mas... eu não saberia te dizer (...) Acho que eu nunca pensei
Capítulo 3
240
isso... Você tem os clássicos, então, hoje em dia, se considera infância até
dez anos, de dez anos a vinte anos, adolescência. A definição da
Organização Mundial de Saúde hoje trabalha assim: até dez, infância, de
dez a vinte, adolescência. Mas acho que isso muda muito. Você pega, por
exemplo, catorze anos de idade, você pega a menininha e o menininho (...)
tanto do ponto de vista físico... E isso é outra coisa, nem sempre a
maturidade física acompanha a maturidade emocional, social, depende de
todas essas interações com o meio. E às vezes você pega uma criança de
oito, nove anos de idade, que nem fisicamente está madura para nada, e que
tem às vezes uma maturidade de entender coisas da vida muito mais do que
um adulto. De vez em quando a gente se assusta com uma coisa que a
criança fala perto da gente (...) Isso é muito dinâmico, não consigo (...)
Agora (...) do ponto de vista oficial até dez anos é infância e de dez a vinte é
adolescência.” (Dra. Zélia)
Capítulo 3
241
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze
anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos
de idade.
Capítulo 3
242
O acesso verbal da criança às condutas diagnósticas e terapêuticas apresenta-se
como um marco para a ação pediátrica, na medida em que requisita atitudes e preocupações
diferentes por parte deste profissional na execução do atendimento prestado. Mais do que
informar ou não os pacientes a respeito de sua situação de saúde, a disjunção verbal/não-
verbal leva os pediatras a estabelecerem demarcações importantes para a estruturação do
atendimento clínico.
“Tive [apenas] uma censura (...) [nos] trinta e dois anos da minha vida.
Uma menina com cinco anos que chegou aqui, até nessa sala aqui. Eu falei
que (...) [ela] era bobinha com cinco anos. E bobinha no sentido de dizer
que com sete anos você já tem... Ela [mãe] tinha uma menina de cinco e uma
de oito, me lembro bem. E eu falei que a de cinco era bobinha. Bobinha
porque o pensamento dela é mágico. E a de oito, ela já tem um pensamento
lógico, ela já sabe o que está fazendo. Mas a pequena não, a pequena (...)
tem estímulos, mas ela não pensa... ela não tem resposta. É como eu falei
para ela, uma criança de cinco anos, ela pode aprender a nadar, ser uma
exímia nadadora, mas na hora do risco ela morre, porque ela não tem
iniciativa de sair do risco (...) Bobinho porque acredita em Papai Noel,
bobinho porque os pais são os espelhos dele. Sete anos já contesta! Mas a
pequena adora separar pai e mãe. Se você está conversando com... você tem
a sua sobrinha, na hora que você conversa com a sua irmã ela não te tira do
meio da conversa? Não quer que a conversa seja pra ela?” (Dra. Carla)
Capítulo 3
243
A oposição entre o pensamento lógico e o pensamento mágico opera uma
relação de exclusão mantida entre o <<saber>> e a <<percepção>>. Uma das irmãs,
mencionada no episódio relatado pela Dra. Carla, está sujeita ao campo dos
condicionamentos mentais binários do tipo “estímulo-resposta”, enquanto a outra afasta-se
desta condição na medida em que sabe avaliar as diferentes situações enfrentadas
cotidianamente sem “afogar-se” de modo confuso em seu meio social.
“O que é a infância? Acho que a infância é uma fase muito importante (...)
no nosso desenvolvimento, é uma fase onde... hoje ela é muito vivenciada
(...) às custas de muitos estímulos. É uma fase onde você vai preparar
aquele indivíduo (...) Na realidade, por mais que a gente fale que a gente
prepara alguém, acho que é ele que se prepara mesmo e... Eu acho que na
infância ele aprende os mecanismos que ele vai utilizar no futuro. Então
acho que a infância é onde ele começa a perceber que ele ouve, que ele
enxerga, que ele sente, e outros também ouvem, enxergam e sentem. E se na
infância ele não perceber isso, mais tarde vai ter reflexo na vida de adulto
disso.” (Dr. Marco)
Capítulo 3
244
O processo de socialização infantil implica em muitos <<custos>> para as
crianças, uma vez que o processo de desenvolvimento infantil fundamenta-se
discursivamente em dizeres que subalternizam sua sensibilidade às expectativas adultas.
Sem dúvida, um dos pontos mais evidentes desta subalternização é dado pelo caráter tutelar
da infância. Não obstante, também podemos pensar na maneira como a ótica adulta busca
incessantemente localizar as crianças em seu processo de desenvolvimento – a partir das
oposições linguagem verbal/não-verbal, pensamento mágico/lógico ou conhecimento
cultural/escolar – como um esforço revelador de importantes pontos de concretização da
criança como sujeito.
Uma das formas deste esforço é dada pela identificação do adulto com o lugar
da permanência e da criança com o lugar do movimento, sendo que o desenvolvimento
infantil deve encaminhar a criança em seu processo de individualização.
Se as crianças são tomadas pelas relações familiares que conformam seu espaço
específico de existência, elas também devem ser consideradas em suas características
individuais. As próprias mágoas sentidas ao longo da infância possibilitam a construção de
uma individualidade infantil, constituindo-se em marcos da história pessoal da criança.
Capítulo 3
245
Outras marcas de individualidade serão reconhecidas desde cedo nas crianças;
especialmente no caso das crianças pequenas, a denotação destas características pode
aparecer em termos de um ímpeto inato que se apresenta na forma de um dom.
“Ah, quando trazem o ímpeto (...) você tem que deixar aflorar, não pode
inibir ou coibir, você tem que deixar (...) Eu tenho uma criança com quatro
anos que ela canta pra mim. Vem cantar pra mim (...) e é entoada. O que eu
vou dizer para mãe? Isso é dom, não fabricou ela. Eu tenho criança aqui
com dois anos sabendo essas coisas todinhas de [cores] (...) Então a mãe
gosta quando eu digo que o filho dela é gênio, eu melhoro muito a auto-
estima da mãe.” (Dra. Carla)
As mães devem compreender que seus filhos são altamente suscetíveis às suas
atitudes, dependentes que são dos cuidados maternos. Desta forma, mesmo estes ímpetos
naturais requisitam o estímulo do meio familiar da criança para ganharem um espaço
relevante em suas vidas.
Ademais, as mães devem ter em conta que esta relação de dependência não
deve gerar um drama familiar fomentado por culpas, medos e opiniões que venham a
obrigá-la a um estado de permanente vigília, estabelecido no sentido de resguardar seus
Capítulo 3
246
filhos de qualquer perturbação que possam sofrer. O pediatra deve demonstrar para as mães
que seus filhos possuem uma existência própria, ainda que extremamente dependente dos
cuidados maternos.
As mães devem compreender que o bebê possui somente duas situações, ou está
dormindo quieto ou está acordado chorando. Elas devem compreender que o choro do bebê
não possui a mesma realidade de um choro adulto, pois as crianças possuem uma estrutura
binária de existência, que se distancia bastante da sensibilidade adulta. Deste modo, estas
crianças estão imersas em um estado de simplicidade que não deve ser perturbado pelas
elucubrações interpretativas maternas, sustentadas em sua rede social de convívio.
Capítulo 3
247
“Então, como é que você ajuda a mãe, a família, a se adaptar frente a uma
nova situação que nunca mais vai ser a mesma. Uma coisa é você não ter
filho, outra coisa é ter. Completamente diferente para o resto da vida. A
minha filha mais velha está casada, mora com o marido na casa dela. E
basta ela não aparecer uma semana lá em casa [que] eu pergunto para
[minha esposa]: ‘Escuta, aconteceu alguma coisa com a [nossa filha]?’. Não
quero nem saber, ela tem que ir lá! Agora, ela sente muita falta de ir lá em
casa, e ela fica triste com isso. Ao mesmo tempo ela sabe que agora ela é
outra pessoa, casou. Então, você conseguir mostrar o que significa ter um
nenê novo em casa, como é que cuida dele (...) Se o pediatra não ajudar
direito. E tem que ser loguinho, desde que nasceu, por isso o meu interesse
no berçário.” (Dr. Gustavo)
Estar ou não casada, ter ou não ter filhos, ser ou não ser mãe, são todas estas
situações distintas que inserem o indivíduo em uma rede de obrigações específicas. O filho
que fomos ou o filho que somos, o filho que temos ou que desejamos serão elementos que
informam o cuidado pediátrico e materno.
“O que eu, a gente operacionaliza (...) é o lactente até dois anos, pré-escolar
até cinco, seis anos, e aí escolar, de sete para nove, e aí depois adolescente
(risos), que essa divisão ela existe.” (Dra. Cristina)
Capítulo 3
248
A descrição das fases da infância no atendimento pediátrico aponta para o
movimento de ruptura progressiva com a condição de dependência da criança com relação
ao cuidado materno. Cada sinal desta ruptura deve ser explorado e até estimulado pelo
pediatra, no sentido de consolidar uma relação autônoma da criança com seu meio familiar.
Vejamos como o Dr. Marco descreve a participação da criança no atendimento pediátrico,
de acordo com as fases da infância:
“De forma grosseira, talvez desse para dividir em três etapas (...) até dois
anos, de dois até oito (...) depois de oito até daí para frente. Até dois anos eu
acho que a criança participa muito mais com gestos, expressões daquilo que
está acontecendo, chora, ela vai manifestar clinicamente o que
eventualmente está acontecendo com os sintomas, é falta de ar, é febre, a
mãe é que vai principalmente transmitir isso para você e é ela que vai te
falar: ‘Olha, está acontecendo isso, isso e isso, notei tal e tal mudança’. Aí
entre dois e cinco anos, ela te fala já algumas coisas, ela já te passa dados
importantes, ela fala: ‘Dói aqui, dói acolá, eu estou tendo cansaço, estou me
sentindo mal, estou me sentindo quente.’ Então a mãe começa a ter o cordão
umbilical, (...) com o médico, começa a ser quebrado. Nessa hora é
interessante porque a mãe tenta interferir, também, porque na realidade ela
está sentindo que a criança está crescendo e ela quer falar: ‘Não... ’. Ela
quer mandar na doença também. E aí você tem que realmente triar... e eu
particularmente uso, a partir de dois anos, muito já informação da própria
criança. Ela é muito confiável, acho que vale à pena usar a informação
dela.” (Dr. Marco)
Capítulo 3
249
O relato materno torna-se objeto de desconfiança médica não somente quando a
criança ainda não verbaliza – momento este em que a gestualidade materno-infantil deve
revelar a verdade sobre o adoecimento da criança –, mas, também, quando a criança
verbaliza, apontando sintomas mais confiáveis para o pediatra do que aqueles identificados
no relato materno. Esta desconfiança está baseada tanto no caráter interpretativo do relato
materno (apoiado em sua rede social de convívio), quanto na inscrição da criança em uma
existência binária (linguagem verbal/não-verbal, personalidade angelical/endiabrada,
pensamento lógico/mágico), a partir da qual, mesmo quando fantasia uma situação de
adoecimento, (a criança) é tomada pelo olhar médico em sua simplicidade translúcida, não
oferecendo resistência ao saber clínico.
3.6. Lactente
“[O] Lactente, tem aí essa dependência da mãe, pelo próprio nome, então é
um bebezão, pequeno até ficar mais ou menos grande, mas permanente
dependente.” (Dra. Cristina)
Capítulo 3
250
“O recém-nascido você tem que prestar muita atenção (...) principalmente
no aspecto da criança, na cara mesmo, se ela está em bom estado, em mal
estado, ver sinais vitais. Eu acho que no recém-nascido, no lactente, criança
até dois anos, é o momento em que você mais ver sinais vitais, porque a
criança não se expressa verbalmente, então você tem que procurar dados
além do que ela puder... pode falar (...) Os sinais vitais aqui são mais
importantes, freqüência cardíaca, freqüência respiratória, pressão...”
(Dra. Fátima)
“Uma criança de nove meses até dezoito, ela chora muito no exame físico,
porque elas percebem essa agressão. Elas começam a entender que não
fazem mais parte do corpo da mãe, então elas choram. Porque eu estou
agredindo, eu estou cutucando. Mas daí: ‘Olha, mãe, você segure aqui no
que for possível, não segure com muita força porque senão ela vai reagir
mais. Só para não bater no aparelho.’ Alguma coisa assim (...) [Mas] esses
capetinhas que viram o consultório do avesso, também, eu já sou um pouco
mais dura, eu não deixo, porque senão o consultório não dura mais do que
uma consulta.” (Dra. Mônica)
O choro atrapalha a consulta, mas pode ser controlado pelo gesto materno. Para
tal, a mãe deve segurar o bebê para o pediatra, apresentando-o ao olhar médico em um
gesto tranqüilo que acalme a criança. A vulnerabilidade do recém-nascido é extrema, assim
a ação (médica e materna) de conter o recém-nascido pode ser tomada pela criança como
uma agressão. Neste modo de interpretar o choro da criança, o progressivo processo de
ruptura com a dependência relativa aos cuidados maternos constituiria, assim, a principal
fonte do incômodo infantil presente nas primeiras fases da vida.
Capítulo 3
251
como os comportamentos da criança são condicionados pelos cuidados maternos; assim, as
crianças podem querer virar do avesso o consultório pediátrico quando o cuidado materno
não media adequadamente o cuidado médico, requisitando do pediatra a imposição de
limites ao seu comportamento.
Capítulo 3
252
Para que a mãe e o pediatra possam definir melhor os cuidados destinados ao
recém-nascido, eles têm que compreender a sensibilidade infantil e interpretar seu modo
peculiar de expressão (binário). No momento em que a mãe não sabe realizar tal
interpretação, o pediatra deve agir rapidamente para que não seja rompido o equilíbrio
mínimo necessário no ordenamento do cuidado materno, evitando assim a instauração do
<<caos>> nas relações familiares.
“Eu acho que a pior fase (...) [em] que a criança está mais vulnerável, onde
ela apresenta os sinais mais inespecíficos (...) [em que] a gente tem mais
dificuldades de lidar... de lidar não, de fazer um diagnóstico preciso, é o
primeiro ano de vida (...) Principalmente os três primeiros meses, [em] que
qualquer sinal pode ser de uma doença grave. Tanto que a gente tem
protocolos de atendimento na urgência de acordo com a faixa etária. Nessa
faixa etária, tem o cuidado com tudo isso, com todos esses sinais. Nessa
[outra fase] você já (...) [fixa a atenção em] poucos sinais. E vai até a hora
que a criança consegue verbalizar. Então o primeiro ano é o pior (...) o
segundo ano fica mais fácil, a criança interage mais com o atendente mas
chora muito, e às vezes dificulta um pouco o diagnóstico (...) No primeiro
ano não chora tanto, interage bem com a gente mas é difícil você
caracterizar bem a clínica. No segundo ano ela chora demais, é difícil
Capítulo 3
253
examinar, mas de longe você consegue às vezes saber com que tipo de
doença ela está, e até a história fica um pouco mais clara porque ela começa
a localizar os sintomas.” (Dr. Ricardo)
Veremos mais adiante como é visível a predileção que muitos dos entrevistados
mantém em relação ao atendimento prestado ao recém-nascido. Mesmo apresentando sinais
clínicos inespecíficos, o recém-nascido parece possibilitar a construção de uma relação
médico-paciente atraente para o pediatra. Provavelmente, isto tem a ver com a extrema
vulnerabilidade do recém-nascido em relação ao meio físico e social, conformando-se em
um corpo infantil bastante dependente e suscetível à ação médica.
“O primeiro ano de vida tem muito a ver com o aspecto propriamente físico,
crescimento, peso, estatura... tem muito a ver também com desenvolvimento
(...) você tem aqueles marcos de desenvolvimento que são ainda muito no
sentido propriamente neurológico: se firmou a cabeça, se sorrir, se olha a
mão, se permanece sentado com apoio, se está engatinhando (...) Primeiros
passos, fala as primeiras palavras. Tudo isso aí vai acontecer no primeiro
ano de vida. Você tem que estar alerta, medir perímetro cefálico, você tem
que ser capaz de diagnosticar precocemente problemas. Isso eu acho que é
a atuação no primeiro ano de vida. Como é que é a alimentação, como é que
é o desmame. São coisas que se não forem bem feitas não têm uma segunda
Capítulo 3
254
vez boa, é só aquela (...) O Winnicot dizia que você tem que ajudar a mãe a
saber o que é uma mãe suficientemente boa. O que é? É aquela que no
primeiro momento dá tudo, porque ela é Deus. Recém-nascido, se ele está
alimentado e saciado ele está no céu, nirvana, e se ele está com fome ele
está morrendo, não tem meio termo. E quem satisfaz completamente isso é a
mãe. E é o tempo todo. O Winnicot fala que a mãe suficientemente boa é
aquela que sabe dar tudo o que o neném precisa, e, sabe se afastar
progressivamente. E você ajuda a mãe a fazer isso, o se afastar
progressivamente... Você ajuda a conciliar trabalho com maternidade, ou
maternagem: ‘Aí, eu vou voltar a trabalhar! Vou ter que levar o meu neném
pra creche ou pro berçário! Como é que vai ser?!’ (imitando mãe chorosa).
Bom, vai precisar trabalhar? Vai. Pronto. Como é que a gente resolve isso?
Como é que obtém o melhor resultado possível disso, em vez de ficar jogando
cinza na cabeça?” (Dr. Gustavo)
Em primeiro lugar, a emoção materna deve se associar à razão médica para que
o recém-nascido seja avaliado em seu processo de desenvolvimento. Assim, ao examinar os
aspectos fisiológicos e morfológicos do recém-nascido, o pediatra deve detectar
precocemente agravos à saúde que perturbem o pleno desenvolvimento infantil.
Em segundo lugar, neste período da vida, a relação existente entre a mãe e seu
filho é marcada por uma disposição binária de sentimentos, momentos, desejos e
necessidades. Ou o bebê está no céu ou no inferno, não há lugar para o “meio termo” ou
Capítulo 3
255
para as posições intermediárias entre a infância e a idade adulta (que marcarão outras fases
da vida, em especial a adolescência). A criança parece estar praticamente “colada” à sua
mãe, restando a esta “padecer no paraíso”.
Este paraíso, em que mãe e criança experimentam uma união fundamental, deve
ser rompido através do afastamento progressivo assumido por uma mãe que sabe abdicar de
sua ascendência sobre a criança, sempre em favor do desenvolvimento infantil. Caso isto
não ocorra, a relação de extrema dependência mantida entre mãe e filho pesará de tal modo
em suas vidas que terminará por prejudicar o próprio desenvolvimento infantil, condenando
ambos a uma relação circular que não encontra nenhum sinal diacrítico que venha a alterar
sua configuração binária. Cabe ao pediatra mostrar para a mãe a diferença entre uma
relação materna sadia ou doentia, assim como suas implicações para a formação de seu
filho.
Esta situação é indicada pelo Dr. Gustavo quando afirma que somente a mãe
“satisfaz completamente” a criança, experimentando com ela a oscilação entre o céu e o
inferno, concluindo que o pediatra deve intervir na relação materna para incentivar o
estabelecimento de uma autonomia relativa entre mãe e filho ao longo do desenvolvimento
infantil. Se entre mãe e filho há uma relação de complementaridade importante para o
trabalho pediátrico, esta deve ser trabalhada a partir de um caráter também complementar,
instaurado entre o cuidado especializado (médico) e o cuidado leigo (materno).
Capítulo 3
256
uma segunda vez (tão) boa” para que a intervenção pediátrica atinja o corpo infantil ao
intervir no cuidado materno.
O recém-nascido parece manter uma relação materna com o mundo que oscila
entre o céu e o inferno, entre a saciedade e a completa frustração, cabendo ao pediatra
interpor-se nesta situação de modo a incentivar a instauração de novas sensibilidades
infantis, próprias à linguagem verbal, ao pensamento lógico, ao conhecimento escolar. O
nascimento da vida individual e social é descrito aqui como um processo pautado, em
grande parte, pela educação dos sentidos.
“O meu trabalho mais forte é puericultura. Então, nos primeiros dois anos
de vida [é] que a gente tem um contato mais freqüente com a mãe. Eu marco
nos primeiros seis meses, a mãe vem mensalmente, depois vem a cada dois
meses até um ano (...) depois de dois anos uma vez por ano, para rotina. E
nas intercorrências que elas trazem as crianças. Então o meu atendimento
mais freqüente é com lactentes de zero a dois anos. Eu tenho atendimento até
Capítulo 3
257
doze anos, que seria da faixa da pediatria. E por força da demanda, eu
estou atendendo adolescência, também, até esses aí de vinte e não sei
quantos anos que me chamam de tia... me ligam da faculdade... (risos) Esses
dias atrás eu tive que atender um menino de vinte e um anos que já veio
grande aqui para mim. Eu não consegui me livrar dele, eu tive que dobrá-lo
em quatro pra ele caber na minha mesa aqui. Porque a minha mesa já é
pretensiosa, tem um metro e setenta. A mesa de pediatra... essa mesa,
quando eu mandei fazer a vinte anos atrás, todo mundo deu risada. Falaram:
‘Ah, mas que mulher mais pretensiosa. Vai botar bebê de cinqüenta
centímetros, mandou fazer uma mesa de um e setenta!’ Mas eu tinha essa
concepção de atender até doze anos (...) Mas hoje atendo até mais que doze.
A parte da adolescência, eu não tenho especialização, então (...) eu estou
como eu fiz no começo da carreira, tentando correr atrás das informações
para poder atender essa clientela que eu não consigo passar pra frente,
porque não tem um clínico geral na cidade! Não tem clínico geral! Tem
cardiologista, pneumo, não sei o quê. (...) E quando um jovem de vinte anos
tem uma febre ele vai aonde?! Então, eu acabo atendendo aqui no
consultório. Mas não é uma faixa que eu goste de fazer não, eu prefiro
atender (...) os menores mesmo.” (Dra. Mônica)
Capítulo 3
258
dependência da criança em relação aos seus cuidadores regula a estruturação de uma ação
médica que procura interferir sobre o cuidado leigo.
3.7. Escolar
Salta aos olhos a utilização, por parte dos entrevistados, da denominação <<pré-
escolar>> e <<escolar>> para designar a fase da vida que se estende mais ou menos dos
três aos dez anos. Sem nos enveredarmos por interpretações aprofundadas sobre estes
termos, não podemos deixar de notar a clara alusão ao campo da Educação como um ponto
de apoio importante para o processo de desenvolvimento infantil.
Capítulo 3
259
Vimos em passagens anteriores a importância alcançada pela verbalização
infantil no atendimento clínico para o estabelecimento das condutas diagnósticas e
prognósticas assumidas pelo pediatra. Mencionou-se, também, em capítulo anterior, o
caráter complementar mantido entre a Pediatria, a Escola e a Mídia no sentido de favorecer
a incorporação do auto-cuidado por parte das crianças.
Este papel deve ser primeiramente apreendido pela mãe, cuidadora privilegiada
da criança ao longo de sua vida (especialmente na primeira fase da infância). A seguir, este
papel deve ser delegado, em parte, à escola, onde a criança passa por momentos
importantes em seu processo de desenvolvimento. Em ambos os casos, encontramos no
gesto pedagógico um ponto de apoio importante para a construção do papel de cuidador da
criança. Aliás, a própria ótica pediátrica apresenta-se como um contraponto à ótica leiga, na
medida em que se apóia duplamente numa perspectiva pedagógica; ou seja, enquanto
cuidador especializado da criança, o pediatra procura instruir o cuidado leigo a partir dos
conhecimentos aprendidos na sua formação escolar e consolidados na sua experiência
profissional.
Capítulo 3
260
fazendo a prevenção de não mamar deitado, explicando... Uma coisa que
eles se preocupam muito é com órgãos genitais, então precisa ficar fazendo
exercício (...) [mas] o pintinho eu não mexo até sete anos. Quer dizer, a
gente tem um monte de coisas para dizer, e que aquela idade de cinco anos
fica uma idade que a mãe tem que exigir aquilo que ele pode dar, porque às
vezes a mãe fica cobrando e a gente não cobra. Então gera um conflito com
a criança. Mas nessa idade é natural, então... E vacinações. É uma consulta
(...) muito mais ampla no sentido de puericultura do que de doença porque
não tem.” (Dra. Carla)
Assim, a mãe deve saber que a criança pré-escolar, apesar de geralmente não
querer comer, precisa ingerir alimentos energéticos para favorecer seu crescimento. O
pediatra deve compreender as necessidades das crianças e de seus pais, e aprender a hora
certa de tocar em certos temas relativos ao desenvolvimento infantil.
“A minha filha mais nova (...) foi pra escola com dois anos, olha que
pecado!... (risos)... Mas ficou seis meses na escola porque (...) [O primeiro]
já estava (...) [na] escola, foi com (...) cinco anos, (...) [o segundo] foi com
quatro. E aí eu acabei pondo [minha filha] com dois, mas ficou [apenas] seis
meses porque ela mais chorava do que qualquer coisa. Daí, tirei da escola e
ela ficava (...) com uma vizinha, que teve (...) um vínculo muito positivo com
ela (...) [Isto durou] até ela fazer quatro anos (...) [então] ela foi pra
escola.” (Dra. Mônica)
Capítulo 3
261
“Idade escolar, as preocupações são muito menos agora com a questão
mesmo física (...) tem aquele que é baixinho, tem aquele que é muito gordo
(...) Aí vem o período da pré-puberdade. A mãe vem, assim, com onze, doze
anos, trazer o menino e: ´Olha, estou preocupada, até o meu marido queria
vir junto, mas eu estou muito preocupada.´ ´Mas ele está bem?´; ´ Não, ele
está bem!´; ´Ele come bem?´; ´Não, ele come bem!´; ´Como é que ele está
indo na escola?´; ´Não, ele está indo bem na escola! Mas eu estou muito
preocupada!´; ´Mas, olha, então me explica porque que você está tão
preocupada!´ Aí no fim [eu] descobria que (...) todo mundo está dizendo que
ele tem o pinto muito pequeno. Pronto. E isso é uma coisa horrível, o pai
está preocupado, não sabe que o desenvolvimento peniano é muito sui
generis (...) Por exemplo, um cara que está na pré-puberdade, o pintinho
dele é do tamanho que ele tinha quando nasceu, e se ele for meio gordinho,
aquela gordura pré-pubiana esconde o pinto do infeliz. Pronto... pronto: ‘O
meu filho é capão!’ E aí você tem que explicar: ´Não, olha, ele vai se
desenvolver, vai ter uma hora...´; ´Ah, mas o primo dele tem a mesma
idade...´; ´É, mas o adolescente... a adolescência (...) a puberdade acontece
em idades diferentes de pessoa pra pessoa, então você começa a ter... A
menina tem a ver com a coisa da menarca, da primeira menstruação.´ E
assim vai, o tempo todo...” (Dr. Gustavo)
3.8. Adolescente
Capítulo 3
262
Então, para mim é o que a Pediatria acha (risos) e consagrou, que [a
infância] vai até os dezenove anos, na verdade, (...) e [o] adolescente por
definição, segundo a OMS, é de de dez à dezenove. Então, se a gente for
falar [de] criança que não é adolescente, até nove seria uma fase da
infância, e dez à dezenove seria pros adolescentes, segundo a definição.”
(Dra. Cristina)
Capítulo 3
263
“Eu acho que tem essa coisa do próprio (...) ponto de vista social, na
nossa sociedade, a criança não pode fazer um monte de coisa, ela é
totalmente dependente do adulto. Por mais que você queira... mesmo
com seus filhos, tentar deixá-los mais responsáveis de alguma coisa...
das coisas... Mas (...) você tem todo um contexto social nessa
sociedade que não deixa ele (...) E o adolescente fica no
intermediário, na nossa sociedade. A criança não pode nada e o
adolescente pode algumas coisas... e o adulto... também não sei o
quanto ele pode (risos) (...) Mas, do ponto de vista da estruturação da
sociedade moderna, isso é muito definido, de toda proteção que você
tem com a criança... Eu acho que isso fez com que todo esse jeito da
criança ser encarada no mundo da gente fosse mudando. Agora,
infelizmente, hoje em dia o pessoal também está preocupado muito
com o adolescente nessa coisa do consumo, o pessoal se especializa
nos consumos pra cada fase mais do que em qualquer outra coisa.”
(Dra. Zélia)
Capítulo 3
264
sensibilidade adulta que obriga o olhar pediátrico a trilhar um difícil caminho em direção
ao seu corpo (ainda) infantil.
“No caso da adolescência tem (...) [o] adolescente precoce, tardio. O cara
que tem treze anos e um metro e noventa e que não cabe na carteira da
classe e que tenta esconder a sua altura excessiva para não ficar muito
diferente de todo o resto da classe, que tem eventualmente treze anos
também (...) Já tive caso assim. O cara teve que usar colete de aço porque
ele entortou a coluna para tentar esconder o tamanho dele. [E] menina que
de repente tem mama muito grande, a gente chama de ‘baixa-com-bustão’,
isso pode ser muito ruim, pode exigir de repente uma plástica. E esse tipo de
questão (...) de natureza (...) muito mais psicológica, muito mais afetiva (...)
a questão de atender adolescente, a questão então da atividade sexual...
Permitiu ou não a presença da mãe e do pai no consultório junto...
Diferente... Acho que eu fui capaz de trabalhar isso legal porque, nos últimos
anos, no meu consultório eu recebia muito ex-cliente que trazia o filho.
Muito. O que eu dizia: ´Bom, o cara não ficou com raiva de mim!´, entendeu,
´O cara gostou da orientação (...) precisou (...) traz o filhinho para eu olhar´
(...) [Isto é] indicativo pra mim de que [fui] capaz de dar um atendimento
diferenciado para momentos diferenciados no crescimento,
desenvolvimento.” (Dr. Gustavo)
Pela primeira vez, o pediatra deverá pedir aos pais de seu paciente para saírem
momentaneamente do consultório médico; pela primeira vez, também, os direitos do
paciente pediátrico apontam não mais para a incorporação familiar da criança no setting
médico, mas sim para a estruturação de um atendimento individualizado, que acaba por
limitar a tutela médica e familiar sobre a criança.
Capítulo 3
265
A adolescência desafia, assim, a especialidade pediátrica, que responderá, não
sem incômodos, a partir de uma posição muito clara: os adolescentes requisitam seu espaço
específico na sociedade, portanto eles merecem seu próprio médico (especialista) – o
Hebiatra.
Capítulo 3
266
Sugere-se que o adolescente possui uma densidade psicológica que ultrapassa
ou limita o saber pediátrico operado no seu atendimento clínico. Mas, mais importante do
que isto, o próprio papel de cuidador é deslocado no atendimento médico do adolescente. A
autonomia do adolescente implica em um cerceamento da ação pediátrica, na medida em
que recusa, até certo ponto, a organização do ato clínico a partir da tensão existente entre o
cuidado médico e o cuidado materno.
Não obstante todo este incômodo sentido pela maior parte dos entrevistados, a
Dra. Carla demonstra grande apreço no atendimento dos adolescentes.
Capítulo 3
267
acorda sem querer comer (...) Por que ele não pode dormir com o cabelo
molhado, por que ele tem que melhorar a sua voz, porque todo adolescente é
narcisista, ele adora cantar (...) Então como ele cuidar da voz (...) Como é
que a mãe vai lidar com isso. Então é uma consulta bem abrangente.” (Dra.
Carla)
“Porque eu acho que a gente para criar um adolescente a gente tem que
exigir dele (...) A coisa mais difícil é você aprender a ler. E o que eu vejo é
muita evasão na escola, como eu vejo [isso] no adolescente. Mas sabe o que
é? Porque eu acho que as mães não olham a lição das crianças. Elas não se
interessam pelos filhos. Porque o mínimo que você interessa é a criança
estar bem na escola, é o mínimo que você interessa. Eu sempre digo para
todos eles, seja pobre, seja rico: ‘Tome a lição! Você está cansado? Tome a
lição!’ Porque isto faz com que a criança melhore.” (Dra. Carla)
Capítulo 3
268
O pediatra deve estar alerta, inclusive, quanto aos exageros presentes numa
visão estereotipada da adolescência que redunda sempre nos mesmos chavões. Neste
sentido, a Dra. Mônica faz os seguintes comentários a respeito do indicador “escolaridade”,
quando nos conta manter um firme desejo de investigar a adolescência (última fase da vida
a contar com a atenção pediátrica):
Capítulo 3
269
Mais uma vez, vemos como não há um parâmetro técnico que aponte de modo
definitivo os limites entre uma e outra fase da infância. Aliás, os pediatras entrevistados
lembram de modo recorrente que tanto a infância, em geral, mas, particularmente a
adolescência, devem ser compreendidas em seu caráter histórico mais amplo, de maneira a
compreender o modo pelo qual as práticas institucionais e familiares elaboradas em direção
às crianças definiram um estatuto social específico para ela.
“Eu tenho que dizer que tecnicamente a adolescência faz parte da infância
(...) é (...) parte da infância. A infância (...) começa (...) [com a]
representação que uma mulher (...) Quando você está namorando (...) você
começa eventualmente (...) vai querer passar muitos anos com essa pessoa e
(...) disso pode resultar filhos, você já começa a representar, você já começa
a fazer uma imagem (...) A questão que vai da concepção até (...) tem a ver
com [o ponto de vista] cultural, de quem está falando sobre essa infância.
Então, no máximo, eu posso dizer que na visão de um pediatra que é de
classe média-alta, que mora (...) [em uma grande cidade], infância é isso que
eu estou te falando (...) [este conceito] usado para representar o ser humano
em formação, muito ligado ainda com a questão biológica, física do seu
crescimento, da sua maturação... Porque parou de crescer (...) aí (...) eu não
posso mais estar falando de infância. Apesar de que eu estou falando de
pessoas ainda em desenvolvimento... esse desenvolvimento que acaba
quando acaba o crescimento. O cara virou um ser humano lógico, e com
uma certa autonomia (...) A infância acaba mais cedo ou mais tarde de
acordo também com a classe social [Mas] quanto que o trabalho pode ser
visto como uma atividade... O adolescente que trabalha, [a] criança que
trabalha, pedindo [esmolas]... Será que eu ainda estou podendo falar de
criança, um cara que ajuda a sustentar a família, ou que sustenta a família!
Tem cara de treze, catorze anos aí que é o provedor da família, será que
ainda é criança?! Definir criança (...) tem haver com isso... com o papel
social. Eu tenho que ter um pouco de... para delimitar essa criança. Primeiro
porque criança começa muito antes, como eu te falei, nem nasceu, [está] no
útero materno, mas já estamos falando de criança, das crianças... Eu queria
ter [filhos mas] (...) depois percebi que ia ser muito difícil. Então, eu levei
(...) anos para ter uma filha e (...) [depois] para ter um segundo. Aí eu falei:
´Bom, agora eu estou com quarenta anos´ (...) aí desisti. Então a minha
representação de família teve que ser corrigida Então o meu conceito aí de
criança, de infância, acabou sendo o resultado de uma pré-definição, talvez
Capítulo 3
270
até de um preconceito, que é temperado pela sua experiência de vida. Então
eu diria que eu não sei dizer o que que é infância (...) É por aí. Mas você (...)
pega [o] Ariès falando da história da vida privada, você vê o pessoal que
fala de infância... Adolescência... A minha avó casou com treze anos, com
quinze já tinha um filho. Nunca foi considerada uma adolescente grávida.
Porque em mil novecentos e nada era assim que usava. Então esse conceito é
histórico e culturalmente determinado. Eu acho que... a adolescência ficou
mais visível por exemplo quando você começa a ter um tempo muito longo
entre a menarca, ou a pubarca, e terminar de estudar. Não está
trabalhando, vai começar a trabalhar. Nego começa a trabalhar com vinte e
quatro, vinte e cinco, vinte e seis anos, não é assim?” (Dr. Gustavo)
Realmente, entender os processos sociais que nos permitem falar, hoje em dia,
em uma adolescente grávida, passa necessariamente por um olhar que permita
compreendermos a construção histórico-discursiva desta realidade. Compreender de que
forma estruturou-se historicamente uma determinada sensibilidade infantil em oposição a
uma sensibilidade adulta resulta em um trabalho analítico complexo que extrapola os
propósitos das considerações aqui elaboradas.
Capítulo 3
272
CONCLUSÃO
273
274
Neste momento, cabe retomar alguns pontos centrais desta investigação,
destacando, em primeiro lugar, que a análise discursiva da clínica pediátrica permitiu
trabalharmos um duplo aspecto das relações existentes entre a infância e a Pediatria, qual
seja, de um lado, compreendemos alguns funcionamentos discursivos que estruturam o
atendimento clínico voltado para as crianças, e, de outro lado, pudemos identificar uma
tipologia das fases do desenvolvimento infantil própria à construção pediátrica da infância.
O fato do pesquisador ser sociólogo poderia representar pelo menos dois tipos
de dificuldades à realização desta pesquisa: em primeiro lugar, poderia constituir obstáculo
à utilização do referencial teórico adotado, uma vez que a Análise do Discurso está mais
fortemente vinculada ao campo da Lingüística; em segundo lugar, poderia prejudicar a
aproximação do pesquisador em relação objeto de estudo investigado, uma vez que a
clínica pediátrica é estruturada no campo médico.
Conclusão
275
A análise das trajetórias escolares e profissionais dos entrevistados permitiu
localizarmos a presença de pontos de convergência e divergência no material empírico
analisado, o que, na verdade, não impossibilitou a identificação de uma certa regularidade
no discurso pediátrico. Foi possível, então, olharmos a experiência clínica dos entrevistados
a partir destas suas trajetórias, identificando o modo como a tensão existente entre a
apreensão do corpo infantil e a apreensão do corpo doente das crianças se dirige para a
questão do cuidado/cuidador.
Conclusão
276
doente/infantil –, o ideal da atenção integral à criança implica necessariamente em
silenciamentos de sentidos que apontam para o efeito da contradição na prática clínica
pediátrica.
Conclusão
277
Acreditamos que este trabalho propôs alguns pontos importantes para
pensarmos as relações existentes entre a infância e a Pediatria. Seria interessante investigar
mais profundamente a construção social do adoecimento e do desenvolvimento infantil a
partir das percepções das próprias crianças e de seus familiares. Certamente, tal
investigação pontuaria de modo decisivo as reflexões aqui apresentadas acerca da prática
pediátrica. Ao longo desta pesquisa, pudemos compreender como cuidar de crianças
implica não só na busca de conhecimentos técnicos sobre o desenvolvimento infantil, mas
em uma grande habilidade para lidar com as artimanhas de um olhar protetor que empenha
adultos e crianças nas razões e desrazões da vulnerabilidade infantil.
Conclusão
278
REFERÊNCIAS
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SNYDERS, Georges (1984). Não é fácil amar os nossos filhos. 1ª ed., Lisboa, Ed. Dom
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Bibliografia Complementar
289
ANEXOS
291
ANEXO I
ROTEIRO DE ENTREVISTAS
ROTEIRO TEMÁTICO:
a) Identificação.
b) Formação e trajetória profissional.
c) Ato clínico.
d) Concepção saúde/doença.
e) Infância.
f) Fechamento.
ROTEIRO DE PERGUNTAS:
1. Nome e idade.
2. Formação profissional (local e ano de conclusão da graduação e residência).
3. Ocupação atual (local, instituição, cargo/função).
4. Por favor, eu gostaria que o Sr. (a) falasse sobre os motivos que o levaram a
ingressar na área da saúde e a optar pela medicina como carreira profissional.
5. O Sr. (a) poderia fazer um breve relato sobre o seu período de graduação? Quais
eram os seus principais interesses e dificuldades naquela época?
8. Em que momento decidiu-se pela especialidade pediátrica? Nesse momento, qual era
a sua visão sobre este ramo da atividade médica?
Anexos
293
9. Fale-me, por favor, do seu período de residência médica, especialmente de
experiências marcantes desse período.
10. O que foi mudando, no transcorrer desse período, em relação ao seu modo de
encarar a pediatria? O que foi se reafirmando?
11. O Sr. (a) poderia descrever-me como era o atendimento clínico durante a residência
em pediatria? O que o Sr (a) trouxe dessa experiência para a sua prática atual?
13. Eu gostaria que o Sr. (a) falasse um pouco sobre alguns pontos importantes ou
significativos que marcaram a sua trajetória profissional? Estes pontos podem ser
tanto episódios públicos que vieram a direcionar a sua carreira, quanto experiências
de cunho mais pessoal e particular que tenham se constituído em alguma vivência
marcante para seus conceitos sobre a profissão.
c) ATO CLÍNICO.
17. Como a prática clínica pediátrica, hoje em dia, está lidando com os recursos
tecnológicos disponíveis no atendimento das crianças? De que forma isto interfere na
relação médico-paciente?
18. O que o atrai no atendimento de crianças? E o que lhe causa inquietação neste
atendimento?
19. O Sr. (a) pode comentar um pouco sobre a situação do ato clínico dentro da
pediatria? Existe algo que diferencie o atendimento de crianças do atendimento de
adultos? Comente.
20. Quando ou por que, em geral, a criança é levada à consulta médica? Quais as
diferenças entre a visão do médico e do paciente e familiares a respeito das
necessidades em saúde?
Anexos
294
22. Caso existam, quais são os problemas enfrentados em relação à consulta e
seguimento do tratamento, de acordo com a origem cultural ou sócio-econômica de
seus pacientes?
24. Quais as dificuldades existentes para que a terapêutica indicada seja completamente
seguida?
e) INFÂNCIA.
31. Qual a faixa de idade que na sua opinião compreende o período da infância?
36. O fato de ter ou não filhos influencia de alguma maneira a prática pediátrica? Por
que?
Anexos
295
f) FECHAMENTO.
37. Se o Sr. (a) pudesse mudar algo no atendimento em saúde à criança, o que o Sr. (a)
mudaria?
38. O Sr. (a) teria alguma coisa que gostaria de falar a respeito dos assuntos abordados
e/ou da maneira como a entrevista foi realizada? Por favor, se for o caso eu gostaria
de ouvi-lo (a).
Anexos
296
ANEXO II
Anexos
297