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MARCELO E. P.

CASTELLANOS

A PEDIATRIA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA


INFÂNCIA: UMA ANÁLISE DO DISCURSO
MÉDICO-PEDIÁTRICO.

CAMPINAS
2003

i
MARCELO E. P. CASTELLANOS

A PEDIATRIA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA


INFÂNCIA: UMA ANÁLISE DO DISCURSO
MÉDICO-PEDIÁTRICO.

Dissertação de Mestrado apresentada à Pós-Graduação


da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Estadual de Campinas para a obtenção do título de Mestre
em Saúde Coletiva.

ORIENTADOR: PROF. DR. EVERARDO DUARTE NUNES

CAMPINAS
2003

iii
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
UNICAMP

Castellanos, Marcelo Eduardo Pfeiffer


C276p A pediatria e a construção social da infância: uma análise do
discurso médico-pediátrico. / Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos.
Campinas, SP : [s.n.], 2002.

Orientador : Everardo Duarte Nunes


Dissertação ( Mestrado ) Universidade Estadual de Campinas.
Faculdade de Ciências Médicas.

1. Criança. 2. Relações mãe-filho. 3. Relações médico-paciente.


4. Ciências sociais. I. Everardo Duarte Nunes. II. Universidade
Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Médicas. III. Título.
DEDICATÓRIA

Aos meus pais, pelo afeto que nos une e por fazerem

da prática docente uma arte (tão necessária!)

vii
AGRADECIMENTOS

À FAPESP, órgão financiador que tornou possível esta pesquisa, e, em especial,


ao parecerista que avaliou este trabalho a partir de uma leitura criteriosa de cada uma de
suas fases, contribuindo com comentários pertinentes à sua elaboração.

À Sandra, pelo carinho e respeito com que soube me apoiar em cada momento
deste trabalho.

Ao Professor Everardo, pela maneira generosa e cuidadosa com que assumiu


esta orientação.

À Ecilda, pela alegria com que tem me recebido em sua casa e pela correção de
meus deslizes na língua portuguesa.

Ao Carlos, por ter me apresentado o vasto campo das questões pediátricas,


mostrando-se sempre aberto às minhas solicitações.

À Suzy, pela orientação no difícil percurso do discurso, sem a qual este trabalho
teria seguido outra direção.

À Cláudia, por ter me apresentado a Análise do Discurso e apoiado com


entusiasmo este meu “passeio” acadêmico.

Aos pediatras entrevistados com quem tive a grata oportunidade de conversar


sobre assuntos tão relevantes ao campo da saúde infantil.

Finalmente, a todos os amigos e colegas com os quais pude “trocar figurinhas”


a respeito da pesquisa nestes três anos.

ix
“O sentimento de infância não significa o mesmo que
afeição pelas crianças: corresponde à consciência da
particularidade infantil, essa particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem (...)
Novas ciências, como a Psicanálise, a Pediatria, a
Psicologia, consagraram-se aos problemas da infância, e
suas descobertas são transmitidas aos pais através de uma
vasta literatura de vulgarização. Nosso mundo é obcecado
pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância.”
(Ariès, 1986: 156 e 276)

xi
SUMÁRIO

PÁG.

RESUMO................................................................................................................. xix

ABSTRACT............................................................................................................. xxiii

APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 27

INTRODUÇÃO....................................................................................................... 33

1. Aspectos gerais.............................................................................................. 35

2. A questão teórico-analítica............................................................................ 36

3. Os sujeitos da pesquisa.................................................................................. 52

CAPÍTULO 1: O campo pediátrico: alguns deslizes entre o núcleo de


saberes clínicos e as práticas voltadas para as crianças...................................... 61

Introdução – Infância e Pediatria, unidade e diversidade no campo das


práticas sociais......................................................................... 63

1.1. A pediatria: o corpo doente e o corpo infantil............................................ 65

1.2. Medicina: entre a intervenção e a interferência define-se um objeto........ 71

1.3. A medicina como projeto............................................................................ 75

1.4. Vocação: como é chamada a tua profissão?.............................................. 77

1.5. Contato com as pessoas, contato com a vida.............................................. 81

1.6. Residência: uma encruzilhada necessária entre o fazer e o aprender?........ 102

1.7. O campo pediátrico em busca de um objeto de trabalho............................ 118

1.8. A conservação das crianças: o discurso médico pedagógico e a


vulnerabilidade infantil............................................................................... 127

xiii
CAPÍTULO 2: Ato clínico na pediatria: contraposições e justaposições na
relação médico-paciente........................................................................................ 147

Introdução - relação médico-paciente: um problema a ser investigado............. 149

2.1. Os primeiros contatos................................................................................. 160

2.2. Os “intermediários” e a disciplinarização da família.................................. 164

2.3. Golpe de vista: o que pertence às crianças, o que pertence a seus pais...... 175

2.4. O papel de doente e o papel de cuidador.................................................... 180

2.5. A questão pediátrica: um problema de linguagem...................................... 184

2.6. Silêncio e palavras: abertura e fechamento do olhar pediátrico................. 193

2.7. A clínica pediátrica como um trabalho de tradução.................................... 196

2.8. “Mal-estar” do trabalho pediátrico.............................................................. 200

2.9. Papéis familiares: a casa, o casal e seus filhos............................................ 203

2.10. Público e privado: assistência e clientela.................................................. 216

2.11. Auto-cuidado: entre o social e o biológico............................................... 219

2.12. Conhecimento cultural vs conhecimento escolar...................................... 223

2.13. Clínica pediátrica: arte ou técnica?........................................................... 231

CAPÍTULO 3: A infância no consultório............................................................. 235

Introdução......................................................................................................... 237

3.1. Tomada do desenvolvimento: da imagem parada à imagem em


movimento................................................................................................ 238

3.2. Algumas “tomadas” sobre os pares de oposição na infância...................... 242

3.3. Individualidade infantil?............................................................................. 245

3.4. Estados binários da criança, da mãe........................................................... 246

3.5. As fases da infância e a organização do atendimento pediátrico................ 248

xv
3.6. Lactente....................................................................................................... 250

3.7. Escolar......................................................................................................... 259

3.8. Adolescente................................................................................................. 262

CONCLUSÃO......................................................................................................... 273

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 279

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR................................................................ 285

ANEXOS.................................................................................................................. 291

Anexo 1: Roteiro da Entrevista.......................................................................... 293

Anexo 2: Legenda da Transcrição..................................................................... 297

xvii
RESUMO

xix
Esta pesquisa visa compreender a construção do objeto de trabalho pediátrico no
atendimento clínico voltado para as crianças, a partir da análise do discurso pediátrico sobre
a infância. O material empírico utilizado foi composto, fundamentalmente, por
depoimentos de nove pediatras que relataram a forma como a experiência clínica foi sendo
elaborada em suas trajetórias escolares e profissionais no campo médico-pediátrico. Nesta
investigação, foram utilizados alguns princípios teóricos presentes nas perspectivas
analíticas de autores como M. Foucault, L. Althusser, M. Pechêux e E. Orlandi.
Considerou-se que o olhar pediátrico é interpelado pela categoria social de “infância”, de
modo que seu foco de atenção é deslocado do corpo doente ao corpo infantil das crianças.
Na medida em que o campo pediátrico estruturou-se historicamente enquanto um sistema
de proteção da infância, a prática clínico-pediátrica busca apreender não somente o “corpo
doente” (problema biomédico) mas também o “corpo infantil” (problema sócio-médico) das
crianças. A análise dos depoimentos apontou de que maneira a clínica pediátrica define
limites específicos para o papel de cuidador “especializado” e “leigo” das crianças, a partir
de uma tensão existente entre o campo pediátrico e o campo das relações familiares. Por
fim, buscou-se identificar uma tipologia da infância elaborada no atendimento
clínico-pediátrico, a partir da qual a atenção médica é organizada em torno das fases do
desenvolvimento infantil.

Resumo
xxi
ABSTRACT

xxiii
The present study aims to understand the built of pediatric working object in clinical
assistance to children, by using the pediatric speech analysis about the childhood. The
empirical data was based on interviews with nine pediatricians who reported how their
clinical experience was developed during the school and professional lives in the medical-
pediatric field. Some theoretical principles exploited in the analytical perspectives of some
authors like M. Foucault, L. Althusser, M. Pecheux and E. Orlandi were used in this study.
It was considered that the pediatric focus is interpellated by the “childhood” social
category, in a way that its attention is diverted from the sick body to the infant body of the
children. Therefore, as the pediatric field evolved as a childhood protection system, the
clinical pediatric practice aimed to consider not only the “sick body” (biomedical problem)
but also the “infant body” (social-medical problem) of children. The testimonies analysis
showed how the pediatrics practice defines specific limits to the role of the expert and non-
expert children care provider, from an existent tension between the pediatric and familial
relationship fields. Finally, we tried to identify an infancy typology based on the pediatric
clinical assistance, from where the medical attention is organized by the childhood
development stages.

Abstract
xxv
APRESENTAÇÃO

27
Esta pesquisa visa compreender a construção do objeto de trabalho da pediatria
no atendimento clínico voltado para as crianças. A partir da análise das práticas discursivas
pediátricas sobre a infância presentes no atendimento clínico pretende-se explorar as
relações constitutivas existentes entre a Infância e a Pediatria. Neste sentido, a investigação
aqui apresentada pergunta, centralmente, pela forma com que o discurso pediátrico sobre a
infância estrutura a prática clínica pediátrica.

A Introdução do trabalho divide-se em três seções, sendo que, na primeira, é


fornecida ao leitor uma visão geral sobre a problemática em que se insere esta investigação,
na segunda, são feitos apontamentos sobre o seu objeto de estudo, objetivos e princípios
teóricos, e, finalmente, na terceira, é realizada uma descrição das técnicas de pesquisa
utilizadas para a construção do material empírico, seguida de uma sucinta apresentação dos
pediatras entrevistados.

No capítulo 1, aborda-se a estruturação do campo pediátrico, principalmente, a


partir da apresentação e discussão de trabalhos importantes de autores que refletiram sobre
as práticas médicas relativas às crianças. Neste capítulo, procura-se compreender a
construção histórica do olhar pediátrico, destacando como a aproximação dos entrevistados
em relação ao campo profissional da Pediatria aponta para dizeres que fundamentam
discursivamente esta especialidade médica. Serão abordados os seguintes temas:

- a construção do saber clínico enquanto um conhecimento sobre o corpo


doente que estabelece uma relação específica entre o visível e o invisível,
entre as palavras e as coisas;

- a aproximação dos entrevistados em relação à Medicina e à Pediatria e o


imaginário médico sobre a prática profissional;

- a construção da prática clínico-pediátrica a partir das experiências escolares


dos entrevistados;

- a construção de uma malha institucional em que o tema da conservação das


crianças aponta para a investigação da infância nas tramas familiares;

Apresentação
29
- a afirmação da puericultura como um conjunto de práticas que possibilitam a
proteção da infância, a partir das quais a pediatria surgirá como uma
especialidade médica voltada para as crianças;

- o incessante movimento de divisão interna presente na especialidade


pediátrica como expressão dos deslizes presentes na definição de seu objeto
de trabalho.

No segundo capítulo, são apontadas as condições de produção do atendimento


clínico pediátrico, a partir das quais o pediatra apreende o corpo infantil. Apresenta-se a
maneira como este profissional lida com um problema especifico de interpretação clínica
ao indentificar a presença de várias “linguagens” compondo a relação médico-paciente
estruturada no atendimento pediátrico. Descreve-se como a investigação diagnóstica e a
conduta terapêutica, adotada pelos pediatras, baseiam-se, em grande parte, na confrontação
da “linguagem verbal” com a “linguagem gestual” dos pacientes e de seus acompanhantes,
num trabalho de tradução do corpo infantil.

Procura-se mostrar que este trabalho implica na problematização do ideal da


“atenção integral à criança” em um campo de tensões em que a intervenção médica sobre o
corpo infantil implica necessariamente na interferência sobre o cuidado materno. Assim, a
partir da tensão existente entre o campo pediátrico e o campo das relações familiares são
disputados sentidos para o estabelecimento do papel de cuidador “leigo” e “especializado”
das crianças.

Também, são apontados alguns processos de silenciamento das crianças,


vinculados a uma prática profissional que se lança em direção a um corpo em movimento,
no sentido de proteger o desenvolvimento infantil. As contradições da clínica pediátrica –
evidenciadas, em parte, pela dificuldade de atingir o ideal da atenção integral à criança –
revelam-se na maneira como corpo infantil é identificado a partir da afirmação de sua
vulnerabilidade, num amplo sistema de vigilância e proteção social.

Apresentação
30
No terceiro capítulo, será apresentada uma tipologia pediátrica da infância,
elaborada a partir da descrição da forma com que o atendimento clínico é organizado de
acordo com cada fase do desenvolvimento infantil.

Ao final deste capítulo, procura-se compreender as dificuldades experimentadas


por diversos pediatras entrevistados ao atenderem adolescentes. Entende-se que os dilemas
apresentados na incorporação clínica da adolescência no campo pediátrico fornecem
elementos importantes para a reflexão sobre a própria constituição do olhar pediátrico, na
medida em que impõe deslocamentos específicos na definição do papel de cuidador “leigo”
e “profissional” da criança.

Por fim, são apresentadas algumas conclusões desta investigação, onde são
resumidas as principais questões desenvolvidas nas análises empreendidas.

Apresentação
31
INTRODUÇÃO

33
1. Aspectos Gerais

Este estudo lida de modo central com o problema da construção social da


infância na sociedade moderna. Este problema, posto de forma contundente por P. Ariés e
trabalhado por diversos autores, tem suscitado estudos que trazem à tona a discussão acerca
da relação indivíduo-sociedade. Esta discussão perpassa diversas disciplinas das ciências
humanas, organizando-se, a partir daí, algumas das formulações fundadoras das próprias
ciências sociais e, especificamente, da sociologia enquanto um saber científico-
interpretativo.

A relação indivíduo-sociedade, tomada como um dos pilares explicativos da


própria vida social, foi tratada, no século XIX, na tentativa de compreender os processos de
formação da sociedade urbano-capitalista, desencadeados a partir das Revoluções (francesa,
industrial, constitucionais), que vieram a consolidar a territorialização do Estado-Nação em
seus contornos contemporâneos.

Entre os grandes temas debatidos no transcorrer dos séculos XVII, XVIII e


XIX, resultantes do esforço de produção e compreensão dos processos socializadores
envolvidos na construção de todo um aparato jurídico-político moderno, a partir do qual
efetuou-se o reordenamento do mundo do trabalho e dos modos de educar os sentidos,
encontramos no tema <<socialização infantil>> um importante ponto de questionamento.

Na discussão sobre as formas adequadas de socializar os indivíduos dentro dos


contornos de uma sociedade urbana, em que a sensibilidade burguesa buscou erigir seu
império dos sentidos, formulou-se o tema da <<conservação das crianças>>.

A partir da formação de toda uma rede institucional voltada para o ordenamento


do mundo urbano, organizada estrategicamente em torno da vigilância dos corpos infantis,
temos que a relação adulto/criança passa a conformar-se indelevelmente pelo gesto
pedagógico em que o Um (completo) leva pelas mãos o ainda Não-um (incompleto).

Este gesto pedagógico pertence a um movimento maior de disciplinarização dos


sentidos, em que o saber especializado ganha espaço institucional. A criança não terá um,
mas vários agentes institucionais que, incorporados pelo saber disciplinar, buscarão

Introdução

35
encontrá-la nas tramas familiares. Dentre estes agentes, o pediatra não foi o único, mas
certamente atuou com a força e autoridade de quem pode falar sobre a própria constituição
dos corpos infantis. O pediatra fala enquanto médico!

Esta pesquisa visa compreender o objeto de trabalho da Pediatria através da


análise das práticas discursivas pediátricas sobre a infância, a partir das quais se estrutura o
atendimento clínico voltado para as crianças.

“A apreensão do objeto consiste basicamente na identificação de suas


características que permitem a visualização do produto final, antevisto nas
finalidades do trabalho. O objeto não se impõe em nenhum caso
naturalmente, mas corresponde já a um olhar enviesado que nele discrimina
a potencialidade do produto.” (Mendes Gonçalves, 1994: 62)

Torna-se importante, assim, perguntarmos: que produto é este?

2. A Questão Teórico-Analítica

A análise aqui proposta parte do princípio de que qualquer investigação, ao


esboçar seu desenho de pesquisa, ao definir o seu problema e ao caracterizar seu campo de
atuação, já está lançando mão de hipóteses interpretativas, de impressões e de conclusões
provisórias, que definem, de modo específico, o seu objeto de estudo e, de modo geral, o
método empregado.

Assim, entendemos que o ponto de vista analítico adotado nesta pesquisa não se
separa, de modo absoluto, de nenhum dos outros elementos deste trabalho, mas, sim,
atravessa a investigação como um todo. Nesta medida, o pólo teórico e o pólo empírico
tocam-se intensamente no transcorrer desta pesquisa (Bruyne et al., 1977).

Investigar as concepções de infância presentes no discurso pediátrico implica,


dentre outras coisas, correr o risco de cair em redundâncias. Isto, quer porque estes
profissionais poderiam, em seu conjunto, alinhavar seus conceitos com uma concepção
geral de infância moderna (e, neste caso, o pediatra apresentar-se-ia somente como mais um

Introdução

36
agente institucional a trabalhar com amplas tipificações sociais sobre a infância), quer
porque a Pediatria teria construído um aparato conceitual muito bem definido em torno da
infância. Neste segundo caso, a dimensão tecno-assistencial em que a criança é apreendida
cotidianamente nos serviços de atenção à saúde viria a ser um tema já delineado
claramente, prescindindo, assim, de uma discussão mais detida sobre o tema.

Outro risco existente na abordagem destes dois universos a um só tempo


empíricos e conceituais – a Infância e a Pediatria – é andar no terreno pantanoso em que se
coloca em causa o limite entre o concreto e o abstrato diante da dupla existência da infância
e das diferentes infâncias, bem como do pediatra e dos diferentes pediatras. O grau de
generalização da análise presente neste estudo aparece, desde o início, como um
balizamento teórico importante.

Neste sentido, este estudo enfrenta o problema da construção social da infância


na prática clínico pediátrica, tendo como sua dimensão geral a relação constitutiva entre a
estruturação de uma prática profissional – a Pediatria – e a produção de uma categoria
social – a Infância.

Considerando o pediatra um importante agente do processo de socialização


infantil, integrado em uma malha institucional organizada em torno das crianças,
buscaremos compreender as relações constitutivas existentes entre a infância e a Pediatria a
partir da análise discursiva do ato clínico pediátrico.

O material empírico que possibilitou tal análise foi composto de narrativas


sobre a prática clínica estruturada no campo pediátrico, produzidas em entrevistas1
realizadas com um grupo de pediatras.2 Se a compreensão das relações existentes entre a
infância e a pediatria, remetidas à problemática da socialização infantil, compõem a
dimensão geral deste estudo, a análise discursiva da prática clínica pediátrica apresenta-se
como sua dimensão específica.

1
O roteiro de questões que guiou estas entrevistas é apresentado em anexo ao final deste trabalho, assim
como uma “legenda” para facilitar a compreensão de alguns sinais de transcrição utilizados nos trechos
reproduzidos ao longo deste texto.
2
Descreveremos com mais detalhes as técnicas de pesquisa utilizadas para a produção deste material
empírico no terceiro item desta Introdução, intitulado “Os sujeitos da Pesquisa”.

Introdução

37
Interessou-nos, nesta pesquisa, apreender alguns elementos da trajetória
profissional dos entrevistados para compreender melhor a construção do ato clínico
pediátrico, elaborada em diversos momentos da carreira médica. Neste sentido, buscamos
identificar, nas narrativas destes pediatras, a construção de uma experiência clínica
“escolar”, própria ao período de formação, e a construção de uma experiência clínica
“profissional”, consolidada ao longo dos anos de trabalho pediátrico.

Torna-se importante chamar a atenção para o fato deste estudo não tentar uma
retomada da acepção sociológica clássica do conceito de Representação Social (RS)
definido por Durkheim (1972). Tampouco, esta investigação localiza-se nos balizamentos
teóricos e metodológicos colocados pela Psicologia Social, em que se estabeleceram novos
parâmetros para os estudos de representações sociais, especialmente a partir das
formulações inauguradas pelos trabalhos de Moscovici (1961), por sua vez retomadas e
desenvolvidas por diversos estudiosos do tema, tais como Herzlich (1969), Jodelet (1989),
Abric (1998), Spink (1993), entre outros

As práticas discursivas pediátricas serão analisadas a partir do referencial


teórico da Análise do Discurso (AD) (Orlandi, 1999α). Assim, o foco analítico desta
investigação não será delimitado prioritariamente pelos grupos de convívio dos indivíduos
investigados, tal qual ocorre nos estudos de RS, mas, sim, pelas formações discursivas em
que a noção de infância é dimensionada no ato clínico pediátrico.

“A noção de formação discursiva, ainda que polêmica, é básica na análise


do discurso, pois permite compreender o processo de produção dos sentidos,
a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade de
estabelecer regularidades no funcionamento do discurso. A formação
discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou
seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada
– determina o que pode e deve ser dito (...) As palavras não tem um sentido
nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que
se inscrevem. As formações discursivas, por sua vez, representam no
discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são
determinados ideologicamente. (...) O estudo do discurso explicita a maneira
como a linguagem e ideologia se articulam, se afetam em sua relação
recíproca. As palavras falam com outras palavras (...) Palavras iguais

Introdução

38
podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações
discursivas diferentes.” (Orlandi, 1999α:43 e 44)

Torna-se importante destacar que a compreensão da estruturação discursiva da


clínica pediátrica, efetuada dentro da perspectiva teórica da Análise de Discurso aqui
adotada (Orlandi, 1999α), passa necessariamente pela relação existente entre o real, o
simbólico e o imaginário. Nesta perspectiva, o discurso é definido como o efeito de sentido
entre locutores, marcado pela descontinuidade, pelo deslize, pelo equívoco, pela
contradição e pela dispersão. Se o real do discurso é expresso pela dispersão, o texto
delineia-se como uma unidade empírica representada por uma superfície lingüística fechada
nela mesma, marcada pelo começo, meio e fim. Nesta formulação, o sujeito está para o
discurso assim como o autor está para o texto, sendo que, se no primeiro caso apresenta-se
a idéia de dispersão, no segundo prevalece a idéia de unidade, de disciplina, de
organização.

“Como diz Vignaux (1979), o discurso não tem como função constituir a
representação de uma realidade. No entanto, ele funciona de modo a
assegurar a permanência de uma certa representação. Para isso, diríamos,
há na base de todo discurso um projeto totalizante do sujeito, projeto que o
converte em autor. O autor é o lugar em que se realiza esse projeto
totalizante, o lugar em que se constrói a unidade do sujeito. Como o lugar da
unidade é o texto, o sujeito se constitui como autor ao construir o texto em
sua unidade, com sua coerência e completude. Coerência e completude
imaginárias (...)

O que temos, em termos de real do discurso, é a descontinuidade, a


dispersão, a incompletude, a falta, o equívoco, a contradição, constitutivas
tanto do sujeito como do sentido. De outro lado, a nível das representações,
temos a unidade, a completude, a coerência, o claro e o distinto, a não
contradição, na instância do imaginário. É por essa articulação necessária e
sempre presente entre o real e o imaginário que o discurso funciona. É
também dessa natureza a distinção (relação necessária) entre discurso e
texto, sujeito e autor.” (Orlandi, 1999α: 73-74)

Introdução

39
Dito isto, resta afirmar que se os depoimentos dos pediatras entrevistados são
tomados como textos em que serão investigados os discursos sobre a infância, no intuito de
melhor compreender o objeto de trabalho pediátrico, a compreensão dos funcionamentos
discursivos presentes nestes textos será pautada necessariamente pelo simbólico. Uma vez
que o ideal da unidade (indivíduo/fala) é contraposto ao real da dispersão no discurso
(posição-sujeito/ideologia), dando margem à compreensão da falha, do deslize, do equívoco
e da contradição como produtores de sentidos (outros), é no ponto em que o discurso e a
história se tocam que a análise das narrativas será efetuada.

É importante notar que a falha, o deslize e o equívoco não são aqui tomados
como um “erro” intencional ou acidental cometido pelos indivíduos em seus fazeres
cotidianos. Estas noções possuem um lugar teórico distinto nas análises que se seguem,
apontando para o princípio da contradição como garantia de movimento de sentidos. Ou
seja, na medida em que nem a língua nem os sentidos estão completos, ao dizer o indivíduo
significa necessariamente a partir de posições-sujeito constituídas por já-ditos e por não-
ditos que estabilizam sentidos (institucionalização), ao mesmo tempo em que estão abertas
ao deslocamento e, portanto, à afirmação de novos sentidos.

“Ao dizer, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um


lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que
reclamam sentidos, e também por sua memória discursiva, por um
saber/poder/dever dizer, em que os fatos fazem sentido por se inscreverem
em formações discursivas que representam no discurso as injunções
ideológicas. Sujeito à falha, ao jogo, ao acaso, e também à regra, ao saber, à
necessidade. Assim o homem (se) significa. Se o sentido e o sujeito poderiam
ser os mesmos, no entanto escorregam, derivam para outros sentidos, para
outras posições. A deriva, o deslize é o efeito metafórico, a tranferência, a
palavra que fala com as outras.” (Orlandi, 1999α: 53)

Neste modo de trabalhar com os movimentos existentes entre a “ação social” e


a “estrutura social” define-se um ponto de vista sobre a relação da História com a Ideologia
que não recai nem em explicações deterministas nem em explicações voluntaristas da
realidade social. Ou seja, as macro e micro-estruturas da realidade social não são tomadas
como instâncias fundamentalmente separadas e hierarquizadas em um único sentido,

Introdução

40
quando, por exemplo, a instância econômica determinaria, fundamental e aprioristicamente,
a instância política, a cultural ou outras. Estas dimensões são compostas, isto sim, por
práticas sociais produzidas no momento em que os próprios sujeitos constituem-se
enquanto tais.

A ideologia não será trabalhada, neste estudo, como uma instância falseadora
das relações sociais, que agiria de modo imperativo sobre os indivíduos, direcionando suas
interpretações sempre para um mesmo lugar concreto⎯ uma visão de mundo burguesa, no
caso de uma sociedade capitalista. Ao invés de tomar a ideologia como um véu que
encobriria relações sociais “verdadeiras”, entendemos que a ideologia é a dimensão onde as
próprias condições sociais de existência se constituem (Althusser, 1989).

Neste sentido, segundo o ponto de vista aqui assumido, não haveria relação
social “verdadeira” tomada “fora” da ideologia, em vista de outras relações sociais que
seriam consideradas “dentro” da ideologia, porque forjadas a partir de representações
sociais geradas num mundo fictício em que os indivíduos supostamente estariam imersos
⎯ iludidos no mundo das aparências.

Mas se o caráter da ideologia não é o de falsear o “real” existente, iludindo os


indivíduos, então, em que consiste a ideologia?

Ela consiste, para fins desta pesquisa, em um efeito que oferece condições para
que as relações sociais constituam-se, e não em uma substância que estaria inscrita somente
em uma parcela das relações humanas, destinada a iludir os homens. Portanto, a ideologia
não seria um véu concreto ou uma máscara fictícia que se interpõe entre o Homem e a
Natureza, entre o ser e a coisa; ela é, isto sim, um efeito implicado necessariamente nos
processos que constituem sentidos, sujeitos e práticas sociais. Este efeito consiste em
apagar as marcas que denunciam a construção histórica dos significados, dos valores, dos
dizeres.

O efeito ilusório que o caráter ideológico da vida social apresenta, levando-se


em conta o que acaba de ser dito e abandonando-se as disjunções falso/verdadeiro e
aparência/essência, aponta agora para um efeito de esquecimento, para um mecanismo de
apagamento do processo de construção social dos dizeres, das palavras, dos sentidos.

Introdução

41
Considerado em uma perspectiva histórica pautada pela contradição (descrita
pelo raciocínio dialético), este apagamento vincula-se, por exemplo, ao efeito de
naturalização da língua.3

O conceito de ideologia expresso por este efeito de apagamento apóia-se na


distinção conceitual entre as noções de sujeito e indivíduo. Quando estas duas categorias
diferenciam-se e são operadas pelas noções de concreto e abstrato. Os indivíduos formulam
suas ações cotidianas a partir de interpretações constituídas por posições-sujeito
interpeladas pela ideologia.

“ [Temos] um exemplo bastante ‘concreto’ [disso], quando nossos amigos


batem à nossa porta, quando perguntamos, através da porta fechada, ‘quem
é?’ eles respondem (‘é evidente’) ‘sou eu’ (...) [e assim] você e eu já somos
sempre sujeito e que, enquanto tais, praticamos ininterruptamente os rituais
do reconhecimento ideológico, que nos garantem que somos de fato sujeitos
concretos, individuais, inconfundíveis e (obviamente) insubstituíveis.”
(Althusser, 1989: 95)

As ações dos indivíduos (coesão) são formuladas a partir de relações sociais


constituídas por posições expressas pela categoria sujeito (dispersão). Portanto, as
dimensões individual e coletiva são indissociadamente integradas na sua construção social,
sendo que o indivíduo empírico aponta em suas formulações para o imaginário da unidade,
enquanto as posições-sujeito apontam para a contradição própria do simbólico.

A partir deste raciocínio, não há ideologia sem sujeito. Ou seja, os indivíduos


são interpelados a todo momento por posições-sujeito, constituídas ideologicamente nas
práticas materiais socialmente existentes. Esta interpelação, corrente no cotidiano, deve ser
tomada em um processo histórico específico. Assim, a utilização dos conceitos de sujeito,
indivíduo e ideologia na análise da prática clínica pediátrica deve considerar não só a
história da formação do campo de conhecimento da Pediatria, mas tomar esta especialidade
médica como um saber tocado pela História, ou seja, deve tomá-lo em seus deslizes,
equívocos e contradições.

3
A língua, ou ainda, a linguagem, apresenta-se como um locus privilegiado de análise para compreendermos
algumas formas em que a ideologia torna-se um efeito necessário na constituição de sentidos apreendidos na
vida social.

Introdução

42
Assim, se as experiências escolares e profissionais relatadas pelos pediatras
entrevistados permitem a construção de trajetórias individuais em que são lançadas
percepções pessoais sobre a prática pediátrica, recuperar estas percepções no sentido de
montar o quebra-cabeça de suas representações individuais não será o caminho percorrido
no tratamento do material empírico. Isto porque, não interessa reconstituirmos as
apreciações de cada entrevistado sobre sua prática profissional, de forma a caracterizarmos
uma práxis logicamente coesa, pertencente a indivíduos (personagens) dotados uma
consistência psicológica una. Antes interessa-nos apreender as formações discursivas em
que os indivíduos entrevistados constituem-se enquanto sujeitos (pais, pediatras, médicos).

A relação entre a infância e a Pediatria será investigada na análise deste


material empírico a partir da compreensão do jogo existente entre o real, o simbólico e o
imaginário, no qual podemos localizar efeitos de coesão e dispersão que definem a própria
possibilidade de produção de sentidos na atenção clínica voltada para as crianças. Assim,
será relevante atentarmos para alguns pontos de sustentação da própria legitimidade da
Pediatria como uma especialidade médica voltada para crianças. Aqui, a relação entre
história e ideologia fornece entradas analíticas importantes para pensarmos os deslizes do
dizer, o equívoco e a contradição presentes nas narrativas que os pediatras entrevistados
tecem sobre sua prática profissional.

Desta forma, a compreensão da construção social do campo pediátrico e da


construção individual da experiência clínica escolar e profissional dos entrevistados será
empreendida no sentido de trabalharmos analiticamente a relação existente entre a estrutura
e o acontecimento no discurso pediátrico.

“Entre o jogo e a regra, a necessidade e o acaso, no confronto do mundo e


da linguagem, entre o sedimentado e o a se realizar, na experiência e na
história, na relação tensa do simbólico com o real e o imaginário, o sujeito e
o sentido se repetem e se deslocam. O equívoco, o non-sens, o irrealizado
tem no processo polissêmico, na metáfora, o seu ponto de articulação. Em
termos teóricos, isso significa que trabalhamos continuamente a articulação
entre a estrutura e o acontecimento: nem o exatamente fixado, nem a
liberdade em ato. Sujeitos, ao mesmo tempo, à língua e à história, ao
estabilizado e ao irrealizado, os homens e os sentidos fazem seus percursos,

Introdução

43
mantém a linha, se detém junto às margens, ultrapassam limites,
transbordam, refluem. No discurso, no movimento do simbólico, que não se
fecha e que tem na língua e na história sua materialidade. Quando dizemos
materialidade, estamos justamente referindo à forma material, ao seja, a
forma encarnada, não abstrata nem empírica, onde não se separa forma e
conteúdo: forma lingüístico-histórica, significativa.” (Orlandi, 1999α: 53)

Entendemos que as concepções de infância presentes no discurso pediátrico


poderão ser melhor apreendidas em relação às categorias de “Corpo” e de “Atendimento
em Saúde”, definidas na prática clínico-pediátrica. Na medicina, o corpo é o lugar visado
pelo olhar clínico, consistindo o elemento de espacialização da intervenção médica
(Foucault, 1980). As concepções acerca do atendimento em saúde, por sua vez, conformam
algumas compreensões sobre a organização dos instrumentos de trabalho presentes no ato
clínico.

Rivorêdo, baseando-se em análises feitas por Ricardo Bruno Mendes


Gonçalves, lembra-nos que o olhar clínico, enquanto uma prática social, focaliza o corpo
como “corpo doente”, modificando-o, modelando seus contornos biológicos e sociais da
seguinte forma:

“Num primeiro momento o objeto [de intervenção clínica] é submetido a uma


dupla abstração. O sujeito portador de uma necessidade sentida em seu
corpo ao entrar em contato com a prática [médica], através de seus agentes
sociais, tem sua necessidade redimensionada pelas características da
própria prática. Assim, o sintoma (ou necessidade sentida pelo sujeito) é
traduzido pelo sinal, passível de adequação ao corpo de conhecimentos e ao
sistema de pensamento médico. A partir daí ocorre uma segunda abstração,
na medida em que os sinais são reorganizados em quadros que permitem a
intervenção. Assim, o corpo doente (objeto da prática médica) anteriormente
pleno da percepção que o sujeito tem de si mesmo (o ‘corpo doente do
doente’) se transmuta (parcialmente) no corpo doente do médico que é, este
sim, o objeto da prática [médica]— objeto de trabalho. Contudo, mesmo
assim, persiste algo de natureza [subjetiva do paciente] no objeto, porque o
sujeito portador da necessidade persiste na relação.” (Rivorêdo. 1998:41)

Introdução

44
Boltanski, por sua vez, analisa as produções simbólicas acerca do corpo em
populações de caráter rural e urbano do interior da França, a partir da variável
extremamente complexa de classe social, em um estudo clássico, onde afirma:

“Justificar a desigualdade da necessidade médica nas diversas classes pelas


variações da competência médica e unicamente por estas, é esquecer que o
próprio emprego da competência médica está submetido a regras que
determinam o grau de interesse e de atenção que convém dar às sensações
doentias e, talvez, de maneira mais geral, às sensações corporais e ao
próprio corpo; até que ponto é conveniente falar do corpo, de comunicar a
outrem as próprias sensações corporais e, em especial, queixar-se de
sensações doentias; e, correlativamente, os tetos de intensidade a partir dos
quais uma sensação deve ser tida como anormal e conscientemente sentida,
aceitada, expressa, e determinar o conseqüente recurso ao médico. Ora,
essas regras não são idênticas nos diversos grupos sociais.” (Boltanski,
1979: 145)

Assim, temos que as percepções relativas ao corpo não são óbvias, nem as
mesmas para grupos sociais diversos. E, desta forma, a partir dos comentários acima
expostos, torna-se possível afirmar que com o ato clínico temos a passagem do reino da
heterogeneidade para o da homogeneidade, de modo que a diversidade será sempre presa e
reduzida à unidade nas práticas profissionais que se apóiam no saber da Clínica.

Deste modo, o plano da singularidade expresso nas sensibilidades corporais e


expectativas de cura de grupos sociais diversos, nitidamente um plano de caráter
heterogêneo, é rompido pelo plano das generalidades instauradas pelo saber médico sobre o
corpo doente presente no ato clínico. Em outras palavras, a ótica médica apoiada no saber
da clínica circunscreve o evento singular do adoecimento num quadro geral fundamentado
no corpo doente, crivando o caráter heterogêneo das sensibilidades leigas com a
regularidade dada por um objeto de conhecimento de caráter homogêneo.

Podemos perceber isto mais claramente quando atentamos para o fato de serem
os médicos os agentes institucionais autorizados, privilegiadamente, a: definir,
supostamente de modo inequívoco, os meandros e limites da dor e de seu manejo; a
estipular quais queixas dos pacientes são legítimas, merecendo serem reconhecidas como

Introdução

45
“necessidades em saúde” e a definir quais condutas terapêuticas os pacientes devem
necessariamente adotar em relação aos seus problemas de saúde.

Assim, a percepção do paciente a respeito do seu processo de adoecimento,


definida por um conjunto de elementos heterogêneos dimensionados em aspectos sócio-
econômicos e culturais diversos, é codificada pela linguagem clínica, inscrevendo-se numa
sistematização lógico-conceitual nosológica, de modo que a leitura médica sobre o corpo
doente emerge, sobrepondo-se soberanamente sobre a perspectiva leiga do paciente a
respeito do seu próprio corpo.

“À medida que a medicina se estruturou sobre ciências positivas, passou a


crer, com um grau de confiança que não era mais técnico, mas científico, que
apreendera definitiva e verdadeiramente seu objeto (...) quando as ciências
básicas positivas, sobre as quais se fundamenta a prática médica, se
dispuseram a explicar seu objeto, assumiram em relação a ele aquela
postura racional, radicalmente otimista, que vê no intelecto a capacidade de
sair de si mesmo, anular toda a subjetividade e poder reproduzi-lo
integralmente tal como se supõe que seja dado, em sua verdade externa,
antes e fora da ação cognitiva (...) O corpo anátomo-fisiológico tornou-se,
assim, um campo de invariantes qualitativas no qual é possível explicar,
para todas as situações históricas concretas, a ocorrência da normalidade e
da patologia.”(Mendes Gonçalves, 1994: 63)

Nesta proposta, assumimos como pressuposto teórico que a Clínica moderna


opera a passagem da heterogeneidade empírica do seu objeto de intervenção, circunscrita
pelos sintomas descritos pelo paciente, para a homogeneidade racional de seu objeto de
trabalho, expressa pelo conjunto de sinais clínicos apontados na investigação diagnóstica.
Nesta passagem, os elementos heterogêneos presentes na ótica leiga do paciente são
codificados pela linguagem clínica, a partir de uma sistematização lógico-conceitual, de
modo que a leitura médica sobre o corpo doente impõe-se soberanamente à perspectiva do
sujeito adoecido.

A passagem do plano subjetivo do paciente para o plano objetivo do médico


processa, assim, a ruptura do olhar científico com o olhar leigo sobre o corpo doente.
Portanto, os dados singulares da realidade empírica (sintomas), captados pela anamnese,

Introdução

46
são transformados em fatos particulares da realidade científica (sinais clínicos) quando as
informações fornecidas pelo paciente são comparadas aos exames físicos e laboratoriais
empreendidos pelo médico. Estes fatos particulares, por sua vez, são dimensionados em
quadros gerais que compõem a normalidade patológica dos quadros clínicos (casuística).

Desta forma, o corpo doente define-se como objeto de trabalho da clínica,


sendo a partição anátomo-fisiológica do corpo doente em um conjunto de órgãos e
sistemas, assim como a produção de uma casuística que orienta a percepção semiológica na
consulta clínica, ambos instrumentos de trabalho que operacionalizam tecnologicamente o
olhar clínico.

“Tecnologia refere-se aos nexos técnicos estabelecidos no interior do


processo de trabalho entre a atividade operante e os objetos de trabalho,
através daqueles instrumentos [de trabalho] (...) [sendo assim] um conjunto
de saberes e instrumentos que expressa, nos processos de produção dos
serviços, a rede de relações sociais em que seus agentes articulam sua
prática em uma totalidade social.” (Mendes Gonçalves, 1994: 19 e 32)

O ato clínico pediátrico será estudado, nesta pesquisa, somente a partir dos
discursos dos pediatras, não entrando na análise as concepções sobre a infância
estabelecidas pelos pacientes. Não obstante, podemos perguntar como os pediatras agem na
investigação clínica – composta pela anamnese e pelo exame físico e/ou laboratorial – ao
lidarem com a criança. Constituindo um objeto de intervenção médica, a criança coloca
desafios e dificuldades para a formação do quadro diagnóstico e prognóstico no
atendimento clínico-pediátrico, de maneira que o olhar da Clínica é interpelado pela
construção social da infância. Rivorêdo, um pediatra inquieto diante das práticas
empreendidas pela Pediatria em relação à criança, destaca como uma das questões centrais
em sua gama de preocupações a existência de um certo desconforto presente no ato clínico
pediátrico, pontuado da seguinte maneira:

“Muitas vezes, em que pese o esforço hoje mais freqüente de superação,


vemos as crianças relegadas a um plano secundário durante o momento
concreto da prática [pediátrica]. Por exemplo, em muitos instantes, dadas as
características da consulta pediátrica mais comumente vivenciada, existe
uma dificuldade de comunicação com as crianças por parte dos pediatras

Introdução

47
que terminam, não sem conflito, por aproximarem-se delas apenas na
ocasião de manipular seu corpo para efeito de execução do conjunto de
procedimentos que contribuem para a elucidação diagnóstica. [Sendo que]
na relação médico e seu saber e a criança e seu corpo, interpõe-se um
intermediário, na maioria das vezes sua mãe, aumentando a distância entre o
agente da prática e o seu objeto.” (Rivorêdo, 1998: 34 e 42 — grifo nosso)

Nesta medida, estudar as representações sobre o Corpo, na investigação que


aqui se propõe, implica em analisar as concepções de saúde e doença presentes no discurso
médico-pediátrico. Implica também, de modo especial, em compreender como estas
concepções delineiam-se a partir de posições-sujeito constituídas na relação médico-mãe-
criança/paciente. Um dos pontos centrais para a compreensão das condições de produção
do ato clínico na prática pediátrica será posto pela oposição adulto/criança.

“Como a infância veio, de modo crescente, a ser pensada como algo distinto
da ‘adultice’, a medicina veio, então, a conceber as doenças e os corpos das
crianças como sendo diferentes dos adultos. Uma das mais salientes
diferenças residiria no potencial para o desenvolvimento futuro que o corpo
infantil representa. Ele é um ‘futuro’ vulnerável diante da ruína das doenças,
necessitando ser nutrido e protegido.” (James, 1998: 100)

A definição biomédica do corpo na Clínica não parece estabelecer diferenças


importantes entre o que venha a ser um corpo adulto em oposição ao infantil. Isto porque
entre estes haveria somente a distância percorrida entre a potência e o ato, guardando
ambos uma relação de continuidade no plano biológico. Tomando o corpo infantil como um
corpo social existente no e para além do continuum racional da lógica biomédica, a
existência de uma especificidade do corpo infantil deve ser questionada nos possíveis
deslocamentos que a prática pediátrica opera no saber da Clínica ao defrontar-se com a
criança em seu setting profissional. A definição do corpo infantil como “em
desenvolvimento” e a tomada das crianças como seres “vulneráveis” oferecem elementos
importantes para pensarmos a ambigüidade entre saber e fazer postas na prática clínico-
pediátrica.

Introdução

48
Se a abordagem do ato clínico pediátrico deve perguntar sobre os tipos de
tecnologias que organizam os instrumentos de trabalho pediátrico, o dimensionamento
tecnológico da prática médica deve considerar os limites contraditórios entre o saber
epistêmico (epistemé) e o conhecimento aplicado (techné). 4

Assumimos como hipótese de trabalho, neste estudo, que a prática clínico-


pediátrica desloca a perspectiva tecnológica operada pela razão instrumental da clínica,
acima descrita, na medida em que ameaça o ideal de completude assumido pelo olhar
médico na Pediatria.

Este ideal sustenta-se na redução do corpo doente a uma realidade físico-


química que permite a intervenção médica no sentido de abstrair a subjetividade dos
sintomas na objetividade dos sinais clínicos, revelando a verdade anátomo-fisiológica do
corpo doente.

A prática pediátrica existente no atendimento clínico produz um deslocamento


naquela abstração ao tomar a criança como um ser em desenvolvimento, assumindo o
espaço familiar como a realidade própria ao corpo infantil. Assim, se o objeto de
intervenção da prática clínico-pediátrica é dado pelo corpo doente da criança, a
interferência no cuidado materno será buscada pelos pediatras ao depararem-se com o
corpo infantil.

Para compreendermos melhor a dimensão simbólica deste deslocamento e dos


funcionamentos discursivos implicados na constituição ideológica das posições-sujeito
estruturadas na produção do ato clínico voltado para as crianças, analisaremos o material
empírico desta pesquisa a partir de princípios teóricos presentes nas perspectivas analíticas
de autores como L. Althusser, M. Pêucheux e E. Orlandi.

4
“Um saber tecnológico opera em uma dobra na qual, de um lado, expressa seu compromisso com a ‘razão
instrumental’ e, de outro, com a ‘razão teórica’.” (Mehry in Mehry e Onocko, 1997: 128) Procuraremos
compreender os instrumentos de trabalho pediátrico a partir da dobra tecno-assistencial presente nas práticas
médicas voltadas para as crianças, a partir da qual ocorre um trabalho simbólico em que o olhar pediátrico
insere-se num amplo sistema de proteção e disciplinarização do corpo infantil.

Introdução

49
A partir destes autores, destacamos três princípios teóricos que devem ser
observados na análise da materialidade discursiva das narrativas pediátricas que compõem
o material empírico desta pesquisa:

• A língua não é transparente.

Não há relação direta entre o mundo e a palavra, pois não temos, de um lado, o
mundo “humano” dando sentido às coisas, e, de outro, um mundo “natural” composto pelas
coisas em si. Temos, sim, que o mundo está nas palavras e não através delas. Ou seja, a
palavra não é algo neutro, que guarda informações que corresponderiam a um reflexo do
mundo real. A palavra se produz na relação ideológica, de modo não descolado da realidade
(já que não oposto a esta). Assim, a palavra deve ser entendida nas relações que produz, e
não nas informações que transmite. Neste sentido, a língua é opaca, pois não é neutra, o que
implica em buscarmos compreender a palavra nas relações que ela produz a partir de sua
historicidade.

“Gostaria de mostrar que os ‘discursos’, tais como podemos ouvi-los, tais


como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar,
um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras (...) gostaria de
mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de
confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um
léxico e uma experiência (...) analisando os próprios discursos, vemos se
desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e
destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva.”
(Foucault, 1987: 56)

• A língua não é um mero instrumento de comunicação.

Considerando-se a não transparência da língua, torna-se fácil compreendermos


porque a língua não é mero instrumento de comunicação. Ou seja, a palavra não se constitui
simplesmente numa substância que serviria unicamente para informar, mas, antes, consiste
num espaço de constituição de relações e de sujeitos. Neste sentido:

“As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua.
O que é dito em outro lugar também significa nas ‘nossas’ palavras. O
sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o
modo pelo qual os sentidos se constituem nele.” (Orlandi, 1999α: 32)

Introdução

50
• A língua não é ocultação da ideologia.

Aqui, voltamos a colocar que não partimos da convicção segundo a qual se


afirma a existência de uma única ideologia (universal), ou mesmo de diversas ideologias
concretas, que encobririam, como um véu, as verdades correspondentes a um mundo “real”
(existente por trás das representações sociais). Mas, sim, assumimos com Althusser (1989)
que: a) a ideologia consiste num efeito de apagamento do caráter histórico das relações
sociais, conforme discutido anteriormente; b) não há sujeito sem ideologia, pois esta
possibilita a própria constituição social de sentidos (sem a ideologia, teríamos que parar a
cada passo, a cada palavra, para refletirmos sobre a construção sócio-histórica do aspecto
simbólico da vida social, buscando compreender a todo momento os sentidos que aí estão
sendo inscritos); c) a distinção entre os conceitos de sujeito e de indivíduo permite-nos
chegar a uma situação de análise onde podemos investigar, por exemplo, as práticas
discursivas de um indivíduo, dando-nos conta, possivelmente, da existência de várias
posições-sujeito compondo estas práticas.

Sobre este último comentário, devemos lembrar que os sujeitos somente se


apresentam coerentemente do ponto de vista dos indivíduos, já que, como afirma Pêcheux:

“O sujeito pragmático [indivíduo] (...) tem por si só uma imperiosa


necessidade de homogeneidade lógica: isso se marca pela existência dessa
multiplicidade de pequenos sistemas lógicos portáteis que vão da gestão
cotidiana da existência (por exemplo, em nossa civilização, o porta-notas, as
chaves, a agenda, os papéis, etc.) até as ‘grandes decisões’ da vida social e
afetiva (eu decido fazer isso e não aquilo, de responder a X e não a Y, etc..)
passando por todo o contexto sócio-técnico dos ‘aparelhos domésticos’ (isto
é, a série de objetos que adquirimos e que aprendemos a fazer funcionar, que
jogamos e que perdemos, que quebramos, que consertamos e que
substituímos).” (Pêcheux, 1990: 33)

Assim, estes três princípios estarão permeando e orientando a perspectiva


analítica adotada neste estudo, compondo alguns dos pressupostos teóricos fundamentais
para a pesquisa aqui proposta.

Introdução

51
Buscando analisar o corpus empírico a partir da materialidade do discurso, a
análise aqui proposta busca compreender o modo como os indivíduos interpelados pela
ideologia constituem-se em sujeitos nos discursos encontrados.

3. Os Sujeitos da Pesquisa

Neste estudo, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas5 com nove


pediatras inseridos nos setores público e privado de saúde, de modo que estes profissionais
elaborassem um relato sobre as suas trajetórias escolares e profissionais, enfocando
especialmente a prática clínica dirigida às crianças.

Estes pediatras, inseridos em instituições de ensino, em instituições hospitalares


e/ou consultórios privados, pertencem a várias gerações de profissionais que se formaram
em diferentes escolas médicas. Todos eles são médicos e médicas que possuem um grande
compromisso com a atividade clínica.

Procedeu-se à seleção dos entrevistados a partir da inserção profissional dos


pediatras no setor público ou privado de saúde, sendo que duas foram as estratégias básicas
para a definição dos profissionais a serem entrevistados.

Na primeira, foram visitadas instituições de ensino e/ou assistenciais no


Município de Campinas (SP) e no Município de São Paulo (SP), onde foram,
primeiramente, obtidas listas dos profissionais pertencentes ao quadro pediátrico. A seguir,
procurou-se averiguar com o profissional responsável pela área de Pediatria e/ou
pertencente a esta, quais os profissionais que, provavelmente, teriam maior disponibilidade
para participarem desta pesquisa.

5
Sobre algumas vantagens encontradas na utilização de entrevistas para o trabalho de campo, Minayo nos diz
que: “O que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de informações para as ciências sociais é a
possibilidade de a fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos
(...) [e no que diz respeito especificamente à entrevista semi-estruturada] A ordem dos assuntos abordados
não obedece a uma seqüência rígida, sim, é determinada freqüentemente pelas próprias preocupações e
ênfases que os entrevistados dão aos assuntos em pauta [sendo que] (...) a aproximação qualitativa permite
atingir regiões inacessíveis à simples pergunta e resposta” (Minayo, 1998: 109-122)

Introdução

52
Na segunda, foram obtidas listas de pediatras credenciados em duas grandes
empresas ou cooperativas que oferecem planos médicos de atenção à saúde no setor
privado regional. A partir destas, foram selecionados por sorteio aleatório simples dois
grupos de profissionais, com quem procurou-se estabelecer contato telefônico para agendar
as entrevistas.

Feitos os contatos e agendados os encontros, em ambos os casos, as entrevistas


iniciavam-se com a exposição dos objetivos da pesquisa e do formato da entrevista, quando
os entrevistados foram convidados a ler um termo de consentimento esclarecido que, em
caso de concordância, vieram a assinar, confirmando a sua participação voluntária nesta
pesquisa. A seguir, os entrevistados preencheram uma ficha informando alguns dados
pessoais e profissionais, após o que era iniciada a entrevista gravada, com uma hora e meia
de duração média.

As entrevistas foram realizadas em um único encontro com cada entrevistado e


foram orientadas a partir de um roteiro organizado em quatro temas básicos:

- Formação e Trajetória Profissional;

- Ato Clínico;

- Concepção de Saúde e Doença;

- Infância.

Assim, os entrevistados foram solicitados a comentar suas trajetórias escolares


e profissionais, salientando tanto a sua aproximação com relação à Medicina e,
especialmente, à Pediatria, quanto o modo como o atendimento clínico foi estruturando-se
em suas práticas profissionais. Os entrevistados foram indagados a respeito de
acontecimentos marcantes de sua vida profissional e pessoal que resultaram em
experiências importantes naquelas trajetórias.

A seguir, são apresentados os entrevistados e resumidos alguns dados gerais


sobre suas trajetórias escolares6 e profissionais. Vale lembrar que em toda a extensão deste
trabalho os nomes destes pediatras, assim como os que por eles foram mencionados foram

6
Vale ressaltar que coincidentemente todos os pediatras entrevistados cursaram medicina em escolas
públicas.

Introdução

53
substituídos por nomes fictícios. Da mesma forma, procurou-se evitar a exposição de
qualquer informações que viessem a identificar inequivocamente os entrevistados.

Dra. Cristina

Cristina nasceu em meados da década de 50. Filha de alfaiate, morava com seus
pais em um bairro simples de São Paulo. Tendo estudado em escola pública, teria como
destino certo seguir o magistério, inscrevendo-se provavelmente em uma escola normal, ou
mesmo em algum curso superior em pedagogia, como era costume ocorrer com as meninas
de seu convívio

Seu irmão foi o primeiro a romper o cotidiano familiar, ao ingressar na


faculdade, em um curso de engenharia. Além disso, uma prima faz cursinho preparatório
para medicina, e um primo distante inicia o curso médico. Porém, a maior referência sobre
Medicina para Cristina será a do médico de família, incorporado pelo personagem de
televisão “Dr. Kildare”.

Mesmo tendo crescido em um ambiente familiar muito distante de uma


profissão liberal como é o caso da Medicina, Cristina decide tentar ingressar na escola
médica, contando com a surpresa e o orgulho dos pais.

Em fins da década de 70, Cristina termina seu curso de graduação,


questionando-se durante um breve período sobre a possibilidade de inserir-se na rede básica
de saúde. Porém, sem demora Cristina decide ingressar na residência em Pediatria,
concluindo esta especialização no início dos anos 80. Neste momento, Cristina abre um
consultório juntamente com alguns colegas e tem o primeiro de seus dois filhos. Sua
participação neste consultório dura cerca de três anos, durante os quais procura centrar sua
atenção muito mais na criação dos filhos do que na expansão das atividades profissionais.
Em meio a tudo isto, Cristina passa a trabalhar em um centro de saúde como funcionária do
Estado de S. Paulo, sendo que, mais tarde, vem a ser contratada como docente em sua
escola de origem, onde realiza a sua pós-graduação em níveis de mestrado e doutorado.
Cristina atua até hoje nesta instituição, inserida no Depto. de Pediatria.

Introdução

54
Dra. Zélia

Zélia nasceu em meados da década de 50, sendo criada em uma pequena cidade
do interior paulista. Dos seus vários irmãos, o mais velho acaba por seguir a carreira
médica. Não obstante isto, esta pediatra afirma ter-se interessado pela Medicina muito mais
em decorrência do exemplo paterno. Filha de um dono de farmácia, Zélia conta que a
atuação de seu pai junto aos clientes imprimiu-lhe, desde cedo, um senso de
comprometimento muito grande com a atenção à saúde das pessoas.

Zélia ingressa na escola médica em um grande centro urbano do Estado de São


Paulo, visualizando a possibilidade de tornar-se uma médica que viesse a atuar em serviços
de atenção básica de saúde. No entanto, quando se aproxima dos últimos anos de
graduação, em fins da década de 70, ela acaba por envolver-se com a área de Pediatria,
optando então por realizar a residência nesta especialidade. Ao concluir esta residência,
Zélia faz ainda um curso de especialização em saúde pública, dando continuidade ao grande
contato que já vinha tomando com a assistência básica. Em seguida ao término deste curso,
Zélia é contratada, inicialmente como auxiliar didática e logo como docente, em sua escola
de origem, onde veio a realizar a sua pós-graduação em níveis de mestrado e doutorado.
Neste período esta pediatra torna-se mãe de duas crianças. Zélia continua a atuar como
docente naquela mesma instituição, desempenhando atividades de pesquisa, docência e
extensão, em grande parte voltadas para a rede básica de saúde.

Dr. Ricardo

Ricardo nasceu em fins da década de 50, tendo sido criado em uma grande
cidade do Estado de São Paulo. Após ter feito um colegial técnico na área de exatas,
Ricardo redireciona seu percurso escolar ingressando no curso médico, em uma escola do
Estado de São Paulo, concluindo a graduação nos primeiros anos da década de 80, quando
também veio a casar-se com uma colega de curso. Ricardo ingressa em seguida na
residência pediátrica, participando de entidades ligadas ao movimento estudantil. Ao
concluir os dois primeiros anos de residência, em meados de oitenta, Ricardo presta

Introdução

55
concurso em uma escola médica do setor privado, sendo contratado como docente da área
de Pediatria. Neste momento, Ricardo tem o primeiro de seus dois filhos. Após uns poucos
anos, este pediatra presta concurso para a sua escola de origem, sendo contratado como
docente. Ricardo permanece nesta instituição até hoje, onde realizou a sua pós-graduação
em níveis de mestrado e doutorado.

Dra. Mônica

Mônica nasceu no começo dos anos 50, tendo sido criada na capital do Estado
de São Paulo, onde viveu até a adolescência. Neta de imigrantes japoneses que vieram para
o Brasil trabalhar na lavoura, Mônica ingressa no curso médico em uma escola pública do
interior paulista, vindo a concluí-lo em fins da década de 70. Em seguida, faz a residência
em Pediatria, ao final da qual tem seu primeiro filho. Mônica afasta-se de qualquer
atividade profissional para cuidar de seu filho. Dois anos mais tarde, nasce seu segundo
filho e, após um período de quatro anos dedicando-se integralmente ao cuidado materno,
Mônica abre um consultório pediátrico. Em seguida, tem mais uma filha, sem parar suas
atividades profissionais. Mônica atua até hoje em consultório próprio na área privada,
sendo que atualmente desenvolve seu curso de mestrado na sua escola de origem.

Dr. Marco

Marco nasceu nos primeiros anos da década de 60, tendo sido criado na capital
paulista. Sem possuir até então médicos na família, Marco faz um colegial técnico no
exterior, voltado para a área da saúde, e ingressa em uma escola médica pública do Estado
de São Paulo. Concluindo este curso, em fins da década de 80, Marco faz o curso de
residência em Pediatria na mesma escola em que cursou a graduação. Ele termina esta
especialização no início dos anos 90, passando a trabalhar na área de Terapia Intensiva e
realiza seu mestrado nesta mesma escola. Neste período, torna-se, inclusive, responsável
pela residência médica em Terapia Intensiva Pediátrica. A partir de meados da década de
noventa, Marco passa a trabalhar em um serviço hospitalar de saúde voltado para crianças,

Introdução

56
onde, nos últimos anos, atua de maneira muito próxima à residência na área de
Oncohematologia. Marco é pai.

Dra. Carla

Carla nasceu no início da década de 40, tendo sido criada em Recife. Filha de
costureira e de sargento do exército, ela possui um irmão mais velho que se tornou médico.
Ela ingressa no curso médico, em uma instituição pública de Pernambuco, à revelia do
desejo de seus pais, que gostariam que ela seguisse os passos de sua mãe. Sem contar com
o apoio familiar, Carla termina a graduação nos últimos anos da década de 60. Verificando
que a sua grande área de interesse, Hematologia, organizava-se em um mercado de trabalho
muito fechado, Carla aproveita a oportunidade de vir para o sudeste trabalhar como
plantonista em diversos serviços do setor privado, na área de Pediatria. Mais tarde, Carla
passa a trabalhar em um serviço previdenciário e monta seu consultório em meados da
década de 70, lutando para criar sozinha seu único filho. Sem ter feito o curso de residência
pediátrica, Carla adquire o reconhecimento da Sociedade Brasileira de Pediatria como
especialista da área, no início da década de 80, sendo que, cerca de dez anos mais tarde,
esta pediatra defende o título de especialista em Pediatria, consolidando formalmente uma
extensa atuação neste campo profissional. Atualmente, presta atendimento na rede básica
de saúde e em um serviço hospitalar, em diferentes cidades do interior paulista, além de
manter seu consultório particular.

Dr. Francisco

Francisco nasceu no início da década de 70, tendo sido criado em um grande


cidade do interior paulista. Após fazer um colegial técnico na área de engenharia, Francisco
opta por ingressar na escola médica, realizando este curso em uma instituição pública de
ensino superior situada em outra grande cidade deste mesmo estado. Terminando a
graduação em meados dos anos 90, Francisco atua profissionalmente como voluntário no
Exército e, em seguida, emprega-se em uma pequena cidade de interior para trabalhar na

Introdução

57
rede básica de saúde. Francisco ingressa, então, na residência pediátrica, vindo a finalizá-la
no final da década de 90. Neste período, atraído pelas subespecialidades, Francisco passa a
trabalhar como plantonista no setor de U.T.I. neonatal, em dois serviços próximos à capital
do estado. Atualmente, continua com estes empregos, além de trabalhar como médico
contratado com treinamento em serviço (especialização) em oncohematologia pediátrica em
uma instituição hospitalar voltada para a atenção em saúde infantil.

Dra. Fátima

Fátima nasceu nos primeiros anos da década de 70, sendo criada em uma capital
da região nordeste. Ingressa na Medicina, seguindo as expectativas de seus pais, sem ter
parentes médicos ou mesmo grande contato com esta carreira profissional. Seus pais,
criados no interior nordestino, tendo como escolaridade o segundo grau completo, sempre
tiveram em alta conta a carreira médica. Fátima conclui o curso, efetuado em uma
instituição pública de uma capital da região norte do país, em meados dos anos 90. Logo
após a conclusão deste curso, Fátima decide vir para a região sudeste, no Estado de São
Paulo, para ingressar no curso de residência pediátrica em uma instituição privada.
Terminada esta residência, no final dos anos 90, Fátima é admitida em um serviço de
atenção pediátrica hospitalar como médica contratada para efetuar treinamento em serviço
(especialização) em oncohematologia pediátrica.

Dr. Gustavo

Gustavo nasceu no início dos anos 40, sendo criado na capital paulista. Filho de
médico, ele decide ingressar no curso médico contrariando o desejo de seu pai. Assim,
apesar de ter-se preparado para a área de engenharia, Gustavo opta pela Medicina,
terminando o curso de graduação em uma escola pública paulista, em meados dos anos 60.
Em seguida, inicia a residência pediátrica nesta mesma instituição, concluindo a
especialização no final dos anos 60. Assim que finaliza a residência, Gustavo abre um
consultório particular, junto com outros colegas, em que manterá atividades clínicas por

Introdução

58
cerca de 30 anos. Após a residência, Gustavo participa de uma pesquisa realizada na área
de saúde pública, a qual lhe serviu de porta de entrada para a carreira acadêmica. Logo após
realizar seu mestrado, Gustavo é contratado como docente em uma instituição pública de
ensino superior, na área de saúde. A partir daí, Gustavo torna-se pai de duas crianças e
realiza seu doutorado nesta mesma instituição, onde vem assumindo diversos cargos
administrativos importantes, especialmente a partir da década de 80.

Introdução

59
CAPÍTULO 1

O Campo Pediátrico: alguns deslizes entre o núcleo de saberes clínicos e


as práticas voltadas para as crianças

“A questão da língua [infância] é, portanto, em primeiro lugar uma questão de Estado, com
uma política de invasão, de absorção e de anulação das diferenças, que supõe, antes de tudo,
que estas são reconhecidas: a alteridade constitui na sociedade burguesa um estado de
natureza quase biológica, a transformar-se politicamente.

O poder do Estado burguês sonha, assim, ao mesmo tempo com a forma logicista de um
sistema jurídico concentrado em um foco único e a forma socialista de uma absorção
negociada da diversidade: poder que funciona simultaneamente segundo a figura jurídica do
Direito, e segundo a figura biológica da Vida.

Assim se realiza a divisão do trabalho que dá à configuração dual da lingüística [Pediatria] sua
forma contemporânea:

- do lado do Direito, a ditadura logicista instituindo a circulação forçada dos


significados, garantida por uma autoridade central (o Estado detém o monopólio
da emissão de símbolos monetários e garante seu valor);

- do lado da Vida, as múltiplas práticas fragmentárias, indefinidamente


reelaboradas e aperfeiçoadas, para as quais a estratégia esquadrinhadora
burguesa encontra o caminho de seu exercício.”

(Gadet e Pechêux, 1981: 36)

61
62
INTRODUÇÃO

Infância e Pediatria: unidade e diversidade no campo das práticas sociais

Partindo da evidência empírica de que existe a criança e de que existem as


crianças, assim como de que existe o pediatra e de que existem os pediatras, podemos
pensar sobre a constituição de um campo profissional que busca encontrar a unidade de seu
objeto de trabalho em meio à diversidade de aspectos que caracterizam a sua prática
profissional.1

Esta unidade seria localizada, à primeira vista, no próprio objeto de intervenção


pediátrica – a criança. Porém, como apontado acima, a criança só pode ser tomada
concretamente a partir da sua diversidade, já que não existe uma criança universal. O
mesmo podemos dizer sobre os pediatras.

A evidência desta diversidade empírica impediria, assim, a formulação da


unidade nas divisões criança/crianças e pediatra/pediatras?

A análise aqui empreendida irá responder negativamente a esta pergunta, uma


vez que encontra na oposição unidade/diversidade um jogo constitutivo do próprio campo
pediátrico. Tomando o campo profissional da pediatria e a categoria social de infância
como elementos produzidos em um conjunto de práticas sociais presentes na constituição
de toda uma malha institucional voltada para a conservação das crianças, este capítulo
aborda alguns aspectos do ato clínico pediátrico em que a oposição unidade/diversidade irá
conformar condições de produção importantes para a definição do objeto de trabalho
pediátrico.

Propõe-se a compreensão do objeto de trabalho pediátrico a partir da análise das


concepções de infância presentes no discurso médico-pediátrico sobre a prática clínica
empreendida nesta especialidade médica. Nesta medida, o objeto de trabalho pediátrico será
investigado a partir de elementos postos pela relação criança-infância existentes nas
práticas profissionais delimitadas no ato clínico pediátrico.

1
Devemos lembrar que “o modelo médico (...) não deve ser visto como homogêneo e consistente. Não existe,
na verdade, algo assim como uma Medicina ‘ocidental’ ou ‘científica’ uniforme. (...) A prática da Medicina
varia muito nos países ocidentais e no resto do mundo. De um modo geral, o modelo médico é sempre
‘delimitado culturalmente’, e varia muito segundo o contexto no qual aparece” (Helman, 1994:103).

Capítulo 1
63
Este capítulo pretende fazer alguns apontamentos sobre a constituição do
campo pediátrico, de modo a enfocar importantes questões presentes no atendimento
clínico, indicando pontos de sustentação da prática pediátrica como uma especialidade
médica.

Um destes pontos reside no entrecruzamento existente entre um saber clínico


(marcado pelo “Olhar-Infância”) e toda a gama de elementos “familiares” à clínica
pediátrica que extrapolam os conhecimentos disciplinares da Medicina. Tal
entrecruzamento é identificado na construção da experiência clínica elaborada no
transcorrer das trajetórias escolares e profissionais dos entrevistados.

Outro ponto importante, diz respeito à inserção da clínica pediátrica em um


amplo sistema de proteção à infância, no qual as crianças estão sujeitas ao “cuidado
tutelar”. Assim, na medida em que a criança é tomada pela prática clínica como um ser em
desenvolvimento, marcado pela sua vulnerabilidade, o pediatra é levado a considerá-la
sempre a partir de sua dependência em relação ao adulto (família/pediatra) que incorpora o
papel de seu “cuidador” privilegiado.

O paradoxo da afirmação da unidade ontológica da criança sobre a


fragmentação do corpo de saberes pediátricos é, via de regra, tratado como um problema de
“linguagem” que requisita soluções técno-assistenciais que venham a apaziguar os conflitos
“comunicativos” na relação médico-paciente, aproximando a ótica leiga da ótica técnica
sobre o corpo doente. Ao indentificarmos os limites entre a razão e emoção presentes na
formação do olhar pediátrico podemos compreender melhor a grande oposição entre o
estabelecimento de uma visão integral sobre a criança e a fragmentação de seu corpo doente
presente na clínica pediátrica.

A maneira como os pediatras são tocados pelo saber da Clínica e pela categoria
social da infância aponta para o desejo de interferir no cuidado materno. É inquietante
como no jogo dos papéis familiares investigados pela clínica pediátrica o gesto materno
fale tão alto e transborde para além das balizas pedagógicas da sexualidade disciplinada, ao
mesmo tempo em que é objeto do desejo disciplinador da medicalização social. O olhar
clínico é desafiado pela força contraditória desta relação, porém não se calará diante dela,

Capítulo 1
64
pelo contrário, tentará calar o que dela não cabe em seu olhar classificador. Nem tanto
Vênus, nem tanto Marte, movimentos sutis ocorrem neste enfrentamento.

1.1. A pediatria: o corpo doente e o corpo infantil

“No final do século XVIII, a pedagogia como sistema das normas de


formação se articulava diretamente com a teoria da representação e do
encadeamento das idéias. A infância, a juventude das coisas e dos homens
estavam carregadas de um poder ambíguo: dizer o nascimento da verdade;
mas também colocar à prova a verdade tardia dos homens, retificá-la,
aproximá-la de sua nudez. A criança se torna senhor imediato do adulto na
medida em que a verdadeira formação se identifica com a própria gênese do
verdadeiro. Incansavelmente, em cada criança, as coisas repetem a sua
juventude, o mundo retoma contato com sua forma natal: ele nunca é adulto
para quem o olha pela primeira vez. Quando abandonar os seus velhos
parentescos o olho poderá se abrir ao nível das coisas e das idades; e, de
todos os sentidos e saberes, ele terá a habilidade de poder ser o mais inábil,
repetindo agilmente sua longínqua ignorância. A orelha tem suas
preferências, a mão seus traços e suas dobras; o olho, que tem parentesco
com a luz, suporta apenas seu presente. O que permite ao homem
reconciliar-se com a infância e alcançar o permanente nascimento da
verdade é esta ingenuidade clara, distante e aberta ao olhar. Daí, as duas
grandes experiências míticas em que a filosofia do século XVIII desejou
fundar seu começo: o estrangeiro em um país desconhecido e o cego de
nascença conduzido à luz. Mas Pestalozzi e os Bildungsromane também se
inscrevem no grande tema do Olhar-Infância. O discurso do mundo passa
por olhos abertos, e abertos a cada instante como que pela primeira vez.”
(Foucault, 1980: 71-72)

A construção do saber clínico que estrutura a Medicina Moderna, conforme


aponta Foucault (1980), ocorreu a partir de movimentos de continuidade e de ruptura com
práticas pedagógicas e profissionais que, a partir do século XVIII, vieram a ser deslocadas,
abrindo-se para uma disposição dos conhecimentos e de seus espaços de acontecimento, a
partir da qual se estruturou uma nova maneira de ver e de dizer em que se constrói um novo
objeto – o corpo doente.

Capítulo 1
65
A Clínica Moderna estabeleceu-se a partir de uma série de deslocamentos
efetuados em relação à Medicina Classificatória, de modo que as práticas médicas
ganharam uma nova configuração e um poder que antes lhes era negado – o de manipular
objetivamente a realidade, uma vez que o conhecimento médico apresenta-se como um
conhecimento sobre o real.

Do início do século XVIII ao início do XIX, temos uma transformação crucial


da prática médica, pois o raciocínio clínico deixa de ser um instrumento de investigação do
adoecimento, para se constituir num saber em que são instituídas novas relações entre o
visível e o invisível. A constituição da Clinica Moderna como um saber, em que se
fundamenta a prática médica contemporânea, deu-se a partir de uma sucessão de
deslocamentos nas práticas discursivas em que conceitos como mal, patológico, morte,
vida, corpo, conhecimento e linguagem, tomaram novas densidades. Estes deslocamentos
implicaram na estruturação de um olhar e de um objeto que passaram a circunscrever o
adoecimento no plano das subjetividades, de maneira que a doença aparece finalmente
como algo concreto, objetivada sem perturbação.

A Medicina Classificatória entendia as doenças como elementos reconstituíveis,


em sua plenitude, somente no plano ideal. A percepção das alterações corporais decorrentes
das doenças encontrava-se no plano de uma realidade que distorcia inexoravelmente a
verdade original do mal. Assim, as doenças eram tomadas em termos de essências
perceptíveis somente nas suas formas alteradas, pelas quais vinham a manifestar-se no
corpo humano. Ademais, o ambiente interpunha-se também ao acesso direto às doenças em
sua verdade original, uma vez que interferiam sobre a maneira como elas se manifestavam.
Segundo esta visão, o ambiente hospitalar, em especial, produzia expressões artificiais da
doença, uma vez que modulava os tons em que o mal vinha a impregnar-se no corpo
humano, alterando-se assim, de maneira mais forte, sua pureza original.

A intervenção sobre o corpo humano aparecia como um desvio do percurso


natural da doença no corpo humano. Se a doença pertencia por direito ao plano da
idealização, sua manifestação estava necessariamente presa ao processo real de
adoecimento manifestado por cada tipo individual. Temos, então, uma apropriação da teoria
humoral (bile negra, amarela, sangue...) em que os tipos de doentes (fleumático,
Capítulo 1
66
pletórico...) e o percurso da doença em direção à sua realidade essencial (fogo, terra,
água...) estão colados indelevelmente, participantes que são de uma mesma verdade
original.

Mas o conhecimento da doença e de suas formas alteradas tornou-se possível,


também, através de sua classificação botânica. As classes, as famílias e as espécies
garantiram a formulação de um plano comparativo, do particular ao geral, a partir do que o
patológico pôde ser investigado como um sistema de relações hierarquizadas em que a
percepção atuava de maneira subalterna à imaginação. A imaginação regulava aqui a
relação entre a percepção e o conhecimento, uma vez que o modo de adoecer e o modo de
conhecer eram definidos pelo plano das essências ideais manifestadas no corpo humano.
Ainda assim, a percepção ganhava peso fundamental na construção do conhecimento sobre
as doenças, uma vez que o gradativo controle sobre o modo de perceber o local de
acontecimento da doença permitiria um maior controle da alteração de sua natureza.

Quando a percepção passar a oferecer a própria possibilidade de conhecimento


do mal, então teremos a presença de um saber clínico assentado em uma nova relação entre
o visível e o invisível. Neste momento, o conhecimento do mal e sua verdade possuem uma
mesma natureza reencontrada por um gesto natural que busca no corpo a verdade
patológica. Este gesto, a um só tempo cognitivo e pedagógico, busca a verdade original da
doença, trabalhando no plano empírico-racional da descoberta.

Deste modo, no transcorrer do século XVIII não encontramos a passagem de


um estado visionário mistificador da realidade para um estado de conhecimento de fato
sobre o real, garantida por uma decisão racional em que o corpo finalmente abriu-se de
modo objetivo para sua verdade primeira. Muito menos temos aí um movimento
espontâneo de apagamento de um estado visionário num evoluir linear em que o advento da
modernidade veio a coroar o conhecimento com o estatuto de ciência, garantido por um
critério intrínseco ao próprio homem: o de definir-se como um ser racional.

Encontramos na construção da Clinica Moderna, isto sim, a constituição de um


saber que se instaura numa nova disposição dos conhecimentos, dos objetos, das práticas e
das linguagens, a partir do que

Capítulo 1
67
“O olhar não é mais redutor, mas fundador do indivíduo em sua qualidade
irredutível.” (Foucault, 1980: XIII)

A possibilidade de existência deste indivíduo irredutível assenta-se em dois


enunciados fundamentais da modernidade – o de que <<existe conhecimento>> com
Descartes, e o de que <<existe linguagem>>, com Nietzsche –, enunciados estes que não só
constatam mas problematizam a realidade. A partir deles, teremos, por um movimento de
deslocamentos em que ocorrem fissuras nas relações existentes entre as palavras e as
coisas, uma nova maneira de dizer e de ver em que a possibilidade de conhecer e a própria
estrutura do conhecimento serão postos em causa.

Assim, se temos na Clínica Moderna a instauração de um corpo universal


cognoscível, abstraído pela regularidade estatística e sensorial do corpo doente, esta
situação só se tornou possível porque uma nova estruturação da percepção e do
conhecimento colocou a experiência no centro do saber.

“As formas da racionalidade médica penetram na maravilhosa espessura da


percepção, oferecendo, como face primeira das coisas, sua cor, suas
manchas, sua dureza, sua aderência. O espaço da experiência parece
identificar-se com o domínio do olhar atento, da vigilância empírica aberta
apenas à evidência dos conteúdos visíveis. O olho torna-se o depositário e a
fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só recebe à
medida que lhe deu à luz; abrindo-se, abre a verdade de uma primeira
abertura: flexão que marca, a partir do mundo da clareza clássica, a
passagem do <<Iluminismo>> para o século XIX.” (Foucault, 1980: XI-XII)

Em primeiro lugar, temos posta uma questão de Linguagem, em que a estrutura


falada da percepção aponta para o abandono das medições quantitativas precisas,
designadas pela figura da <<balança>>. Este abandono ocorre em favor do
esquadrinhamento minucioso das qualidades de um mundo de objetos a conhecer, quando a
figura do <<quebra-crânios>> toma lugar central. Ou seja, a geometria dos corpos
(iluminados pelo plano ideal), a qual definia na Medicina Classificatória que a experiência
humana só podia aproximar-se da essência do mal sem nunca alcançá-la, é substituída pela
absorção da espessura perceptiva dos objetos, descritos em sua cor, densidade, dureza,
tamanho.

Capítulo 1
68
Em segundo lugar, temos posta uma questão de Olhar, pois na Medicina
Classificatória o olho percorre o adoecimento como sendo uma realidade alterada da
verdade externa ao corpo concreto, existente somente no plano ideal. Já na Clínica
Moderna, o olho percorre a opacidade corpórea em sua existência passiva, anterior a todo
saber, buscando a sua verdade interna.

Em ambos os casos, busca-se uma verdade original do mal. No primeiro,


encontra-se esta verdade por uma aproximação do que ela vem a ser, quando a origem e o
plano ideal são postos em jogo na definição do visível e do invisível. Neste caso, a
percepção é uma condição mediadora intransponível, que deve ser minimizada e codificada
em tipos essenciais pela experiência da luz retilínea que atravessa os corpos, sem neles
parar, alcançando as doenças em suas verdades essenciais. No segundo caso, a percepção é
condição necessária para o próprio conhecimento do objeto em sua verdade original, de
forma que o olhar se detém no corpo, objetivando aí a doença, de forma que a relação entre
o visível e o invisível é pautada pela formulação de um objeto que põe em jogo a origem e
o real.

Em um caso, a experiência aponta para a unidade do plano ideal que passa pela
formulação de tipos ideais, e, no outro caso, a experiência se dá na estruturação da
espessura perceptiva do objeto, quando o gesto de conhecer passa pelo reconhecimento de
que aquele que conhece e aquilo que é conhecido possuem uma mesma natureza – a
experiência clínica encontra na percepção surda do corpo o fundamento de seu saber.

“(...) Considerada em sua disposição de conjunto, a clínica aparece para a


experiência do médico como um novo perfil do perceptível e do enunciável:
nova distribuição dos elementos discretos do espaço corporal (isolamento,
por exemplo, do tecido, região funcional de duas dimensões, que se opõe à
massa, em funcionamento, do órgão e constitui o paradoxo de uma
<<superfície interna>>), reorganização dos elementos que constituem o
fenômeno patológico (uma gramática dos signos substituiu uma botânica dos
sintomas), definição das séries lineares de acontecimentos mórbidos (por
oposição ao emaranhado das espécies nosológicas), articulação da doença
com o organismo (desaparecimento das entidades mórbidas gerais que
agrupavam os sintomas em uma figura lógica, em proveito de um estatuto

Capítulo 1
69
local que situa o ser da doença, com suas causas e seus efeitos, em um
espaço tridimensional). O aparecimento da clínica, como fato histórico, deve
ser identificado com o sistema destas reorganizações (...) A discrição do
discurso clínico (proclamada pelos médicos: recusa da teoria, abandono dos
sistemas, não-filosofia) remete às condições não verbais a partir do que ele
pode falar: a estrutura comum que recorta e articula o que se vê e o que se
diz.” (Foucault, 1980: XVII-XVIII)

A patologia clínica apresenta-se, assim, como o grande acontecimento


epistemológico que elucida a verdade sobre o corpo anátomo-fisiológico investigado pelo
olhar clínico. Aqui, a realidade do objeto perscrutado pela clínica é de ordem físico-
química.

Porém, a clínica pediátrica é constituída por um olhar que se lança em direção a


um objeto que extrapola esta realidade físico-química do corpo doente. Podemos ver isto no
entrecruzamento do campo pediátrico com o das relações familiares.

“ Pra ser pediatra devia ser mãe primeiro porque você muda a visão? Hoje
eu não sei se eu usaria essa história de que pra ser pediatra deveria ser mãe
ou pai antes. Porque, na verdade, eu acho que o que diferenciou foi a parte
não médica. Assim, reforçou aquelas minhas idéias de que a gente tinha que
ver além do coração que está batendo, do olho que está enxergando. Porque
é muito comum na própria Pediatria, quando aparecia um caso interessante,
os residentes chamavam e diziam assim: ‘Nossa! Vem ver aqui um fígado
diferente! Vem cá ver um... sei lá, ...um estrabismo.’ Nem era o olho, era pra
ver um estrabismo, você está entendendo, uma particularidade do olho.
Ninguém dizia assim: ‘Olha, venha ver uma criança com estrabismo’. As
pessoas diziam: ‘Venha ver um estrabismo aqui.’ ” [Dra. Mônica]

A importância desta parte não médica, que não quer se calar no trabalho
médico, ganha um peso singular na clínica pediátrica. Isto porque a pedagogia do Olhar-
Infância, em que o mundo se abre de maneira imediata e transparente ao saber clínico,
permitindo o acesso direto à verdade do corpo doente, aponta também, no caso pediátrico,
para incorporação dos elementos da vida, na medida em que busca apreender um corpo em
formação, localizado nas tramas familiares.

Capítulo 1
70
“Então eu sempre digo pras mães: ‘Você é uma mãe maravilhosa! Você é
uma mãe excelente! Você é uma mãe nota mil!’. Hoje eu sou a mãe
querendo adotar o filho dela, entendeu...” [Dra. Carla]

Conforme poderemos observar nos relatos dos entrevistados, a formação


pediátrica nos currículos de graduação e de residência tem como grande objeto de trabalho
pedagógico o corpo doente. Porém, entre o corpo doente e o corpo em desenvolvimento
encontraremos uma prática profissional em conflito de identidade, de orientação e de
organização interna.

Esta condição, expressa nas trajetórias escolares dos entrevistados, ocorre em


uma prática profissional que toma o corpo doente como objeto de trabalho, mas que busca,
ao mesmo tempo, intervir sobre aquele que porta este corpo. Mais do que em um corpo
disciplinar específico de saberes, a medicalização da infância implicou na disciplinação de
um conjunto de sentimentos e de atos que delineiam o corpo infantil nas tramas familiares.
A intervenção disciplinar sobre o corpo infantil presente na prática clínica implicará na
interferência sobre o cuidado materno. Desta maneira, o pediatra é tomado por elementos
que escapam ao saber que fundamenta sua prática profissional, sendo ele próprio tocado por
um corpo em movimento.

1.2. Medicina: entre a intervenção e a interferência define-se um objeto

Falar sobre a Medicina como uma prática social implica em perguntar sobre a
própria identidade médica. Implica também em compreender o processo de constituição dos
saberes nucleares que fundamentam o olhar clínico e a regulação de seu ensino, assim
como analisar a organização social das práticas em saúde em que a Medicina é delineada
como um campo profissional.

Evidentemente, este estudo não pretende tratar destes três aspectos amplos que
conformam a Medicina como uma prática profissional. Porém, todos os três são
extremamente relevantes para a análise aqui proposta sobre as concepções de infância entre
pediatras.

Capítulo 1
71
Além disto, se a compreensão sobre os saberes e práticas profissionais em que a
Medicina ganha uma delimitação específica importa para a discussão aqui pretendida,
podemos dizer que a análise das identidades em jogo nas trajetórias escolares e
profissionais dos pediatras entrevistados adquire importância ímpar para a melhor
compreensão da prática clínico-pediátrica.

A Medicina está marcada pelo desejo de intervenção. Um dos elementos mais


caros ao médico em sua prática profissional é a presença da autonomia técnica em seu
trabalho. Delimitada, atualmente, na chamada Medicina Tecnológica, em contornos rígidos
ditados por diversos fatores relacionados à organização social das práticas em saúde – tais
como a proletarização do trabalho médico e a enorme presença de exames diagnósticos
altamente sofisticados condicionando o raciocínio semiológico à comprovação físico-
química da realidade do corpo doente – a autonomia técnica no trabalho médico não deixa
de ser requisitada e afirmada na prática profissional.

Autonomia para intervir no corpo doente, autonomia como garantia de uma


relação ética e comprometida com seus pacientes e, porque não dizer, autonomia para
intervir no corpo de idéias que conformam a sensibilidade leiga do paciente a respeito de
seu próprio adoecimento.

“A busca de uma área definida de atuação no interior do campo profissional


permite, portanto, apreender bem essa articulação entre o plano das
interferências pessoais possíveis no social e o determinismo relativo desse
social nas escolhas pessoais. Observemos, nesse sentido, que mesmo no
interior da escola médica, o estudante parece dispor de um grande espaço
para a opção pessoal, já permitindo representar tudo o que diga respeito à
profissão por meio da noção de liberdade – da livre-escolha, do livre arbítrio.
Essa noção não mais deixará de acompanhá-lo como referencial de
pressuposto adequado e qualificador de seu trabalho. (Schraiber, 1993: 58)

Portanto, se a noção de autonomia ganha novos contornos na Medicina


Tecnológica é porque a prática médica define-se, em grande parte, a partir da tensão
existente entre seu pólo técnico e seu pólo artístico ou artesanal, em que pesem atualmente
os processos de proletarização, feminilização, e reificação tecnológica do trabalho médico.
Esta tensão não deixa de existir diante da tecnicização do mundo do trabalho, pela
precarização das relações trabalhistas, ou pela fragilização das estruturas produtivas que
Capítulo 1
72
tem que se adequar a regras de mercado cada vez mais voláteis; pelo contrário, esta tensão
mostra-se cada vez mais atuante na formação da identidade profissional na Medicina. Não
há uma ruptura com o saber que fundamenta a Medicina Moderna, nas configurações atuais
em que ela se encontra, somente ocorre que aquela tensão ganha maior dramaticidade na
conformação do ato clínico.

A autonomia como valor técnico, ou como instrumentalização do fazer


profissional, ainda que limitada no cenário atual, permanece sendo expressão e
conseqüência da constituição de um saber – Clínica Moderna – que intervém na realidade,
instaurando-lhe novos limites. A autonomia, não obstante um cenário que lhe é
desfavorável, continua atingindo centralmente o imaginário médico.

“Assim sendo, na medicina moderna, do modelo liberal ao modelo


‘tecnologizado’ e especializado, haverá uma efetiva transformação da
relação médico-paciente, ocorrendo uma redefinição das inserções de
ambos, médico e paciente, no processo de trabalho. Contudo, o pensamento
médico seguirá mantendo as mesmas designações, com o uso de termos
únicos (...) para situações tão díspares, como que desconhecendo a total
requalificação das realidades que nomeia. Assim ocorre com a relação
médico-paciente e sobretudo com a autonomia profissional (...) O
pensamento médico deixará de considerar, dada a recusa de princípio, o fato
de que os elementos que constituem a posição de autonomia mudam no
modelo de prática atual, denotando-lhe outro sentido técnico, por referência
à medicina liberal. Desse modo, diante da mudança concreta dos modelos de
trabalho, o pensamento médico tentará buscar, na produção de um discurso
geral e universalizante, a permanência da autonomia enquanto representação,
concepção esta que, deslocada das condições que pretende representar,
transforma-se em um símbolo mítico do ideal de uma prática.” (Schraiber,
1993: 214)

“A possibilidade do indivíduo ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de


conhecimento implica que se inverta no saber o jogo da finitude. Para o
pensamento clássico, esta não tinha outro conteúdo senão a negação do
infinito, enquanto que o pensamento que se forma no final do século XVIII
lhe dá poderes do positivo: a estrutura antropológica que então aparece
desempenha simultaneamente o papel crítico de limite e o papel fundador de
origem. Foi esta mudança que serviu de conotação filosófica para a

Capítulo 1
73
organização de uma medicina positiva; e, inversamente, esta medicina foi,
ao nível empírico, um dos primeiros esclarecimentos da relação que liga o
homem moderno a uma finitude originária. Daí o lugar determinante da
medicina na arquitetura de conjunto das ciências humanas; mais do que
qualquer outra, ela está próxima da disposição antropológica que as
fundamenta. Daí também seu prestígio nas formas concretas da existência: a
saúde substitui a salvação, dizia Guardia. É que a medicina oferece ao
homem moderno a face obstinada e tranqüilizante de sua finitude; nela, a
morte é reafirmada, mas, ao mesmo tempo, conjurada; e se ela anuncia sem
trégua ao homem o limite que ele traz em si, fala-lhe também deste mundo
técnico, que é a forma armada, positiva e plena de sua finitude. Os gestos, as
palavras, os olhares médicos tomaram, a partir deste momento, uma
densidade filosófica comparável talvez a que tivera antes o pensamento
matemático. A importância de Bichat, Jackson e de Freud na cultura
européia não prova que eles eram tanto filósofos quanto médicos, mas que
nesta cultura o pensamento médico implica de pleno direito o estatuto
filosófico do homem.” (Foucault, 1980: 227 e 228)

Entre a identificação da Medicina como uma profissão liberal e a compreensão


da construção social do saber clínico encontramos duas maneiras diferentes de
compreendermos o trabalho médico e a história do pensamento clínico. Na primeira,
presente na maior parte dos relatos sobre a Medicina, a prática médica constituiu-se a partir
de um progressivo aperfeiçoamento técnico que veio a consolidar-se com o advento das
Luzes, quando a racionalidade vence positivamente as brumas quiméricas da imaginação,
oferecendo aos olhos humanos a nudez de seus corpos, em uma verdade até então perdida
nas sombras do pecado original. Nesta versão a racionalidade moderna teria ousado tocar o
corpo humano como antes lhe era vedado diante do temor da punição para aquele que
violasse o último recinto sagrado. Aqui o imaginário médico fala da autonomia técnica
como seu grande reduto original.

Capítulo 1
74
Na segunda, a Medicina é compreendida como uma prática social que se
produziu em movimentos de ruptura epistemológica, técnica, teórica e morfológica, em que
não podemos perceber uma linha de continuidade (puro aperfeiçoamento técnico), mas que
devemos analisar em suas configurações discursivas. Tomando a Clínica Moderna como
um saber constituído a partir do século XVIII, temos, neste segundo ponto de vista, o
convite para pensarmos a prática médica naquilo que a fundamenta, ou seja, nos
deslocamentos estabelecidos em relação aos conhecimentos classificatórios, aos espaços
terapêuticos, aos conceitos de saúde e doença, ao lugar epistêmico da linguagem, ao ensino
médico, dentre outros fatores que extrapolam um processo descrito pela conformação de
um conhecimento técnico. Assim, sem que nos vejamos prisioneiros de algumas figuras
que atuam miticamente no imaginário da profissão, devemos compreender quais os
funcionamentos discursivos que estão sendo postos em jogo pela noção de “autonomia
profissional”, tão cara ao pensamento médico.

Na verdade, não devemos tomar o ideal da autonomia como mito falseador de


uma realidade que já não está presente, descartando-o perante a evidência de seu
estreitamento atual. Devemos, isto sim, tomar a noção de autonomia como um efeito
sempre presente, em que o saber clínico toca a relação médico-paciente. O corpo é
espacializado pelo saber médico, que intervém sobre a sua própria realidade; médico e
paciente interferem na maneira como esta espacialização vem a concretizar-se, porém, ela
já está dada como um princípio positivo assentado na forma de um saber – a Clinica
Moderna é soberana!

1.3. A medicina como projeto

Este desejo de intervenção, aliás, está presente desde o momento em que os


entrevistados optam por ingressar no curso médico. Emerge com força, então, o conflito
habitual existente entre pais e filhos em relação à escolha de uma carreira profissional.
Independentemente de existirem ou não disparidades quanto ao rumo a ser seguido, ou
mesmo a respeito do grau em que estas vêm a ser explicitadas, a vontade dos filhos coloca
em causa o desejo dos pais.

Capítulo 1
75
Gustavo, filho de médico, preparava-se para seguir a carreira de engenharia,
atendendo às expectativas de seu pai. Porém, seu irmão sofre um grave acidente, iniciando-
se um evento marcante na vida deste pediatra. Gustavo passa a acompanhar seu irmão
numa longa internação hospitalar, passando a responsabilizar-se por sua saúde. Tocado de
modo profundo por toda esta situação, Gustavo descobre que a Medicina salva vidas.

“O meu pai é médico e a última coisa que ele queria era ter um filho médico
(...) Eu estava no terceiro colegial, e aí um irmão meu foi atropelado, ficou
em coma (...) um mês, politraumatismo (...) E eu que tinha que ficar atrás de
doador de sangue, (...) ficava com ele, dormia no corredor do hospital,
porque ele ficou no pronto socorro, no corredor, quinze dias, e não tinha
vaga pra internar...e quase morreu. E aí, quando acabou esse drama, aí eu
falei: ‘Ó, você quer saber? Eu quero mesmo é ser médico, não é engenheiro
não!’ O meu pai ficou uma vara comigo. (...) O caminho dele na Medicina
foi muito duro (...) o pai dele era muito humilde (...) Eu acho que era pra ser
médico (...) Não me arrependo, gostei muito de ter escolhido ser médico e
acho que foi providencial, o meu irmão ter sido atropelado e eu ter então
percebido a tempo (...) Vi que a Medicina salva vidas (...) O meu pai talvez
tivesse sido muito melhor advogado do que médico. Mas ele foi um belo
médico, sabe? (...) Na verdade, eu acho que ele não tinha que ter querido
nada.” [Dr. Gustavo]

Como vemos no trecho acima, o exemplo do pai é contraposto à afirmação da


autonomia do filho, que se compromete, assim, com a definição de seus próprios rumos. A
relação de dependência, que caracteriza a situação do adolescente – ainda criança e quase
adulto – no espaço da casa, é posta em questão quando Gustavo opta pela carreira médica.

A escola médica exige progressivamente uma presença e dedicação dos alunos


só comparável à ordem presente no espaço da casa. Ao optar por um curso como este, os
alunos se integram em uma instituição escolar que impõe novas relações de subordinação,
sob a promessa de lhes garantir a autonomia profissional. Neste novo cenário, os estudantes
passam a referir seus desejos e conflitos em um campo escolar onde tecem novas formações
identitárias. As relações de equivalência e de complementaridade existentes entre a
instituição médica escolar e a familiar serão melhor abordadas quando fizermos alguns
apontamentos sobre a formação do campo pediátrico.

Capítulo 1
76
1.4. Vocação: como é chamada a tua profissão?

A solução apontada por alguns dos entrevistados para a tensão presente no


momento da opção pela carreira profissional passa pela constatação de um acaso
providencial em que encontram uma vocação predestinada!

“Eu acho que era pra ser médico (...) foi providencial.” [Dr. Gustavo]

Temos aqui aproximação em relação ao curso médico marcada pela presença de


uma predestinação expressa no encontro de algo que já estava desde sempre lá, esperando
para ser descoberto. Mas, também, encontramos outro tipo de aproximação, marcada pelo
planejamento da vida escolar dos adolescentes, conforme vemos a seguir:

“Inicialmente, o meu primeiro... quem realmente sempre cogitou a


Medicina pra mim (...) foram meus pais. No primário ainda, no pré, os meus
pais... a minha mãe principalmente, dizia: ‘Ah, quando você crescer e for pra
faculdade, eu gostaria muito que você fosse médica.’ Então, realmente, foi a
minha infância toda assim. Agora, realmente, eu só tive realmente... levei em
consideração realmente essa vontade, que não era só dos meus pais, mas era
minha também, quando eu comecei a ter na escola algumas disciplinas, tipo
Biologia. Na sétima série do primeiro grau, você entra em contato com a
Biologia em relação ao corpo humano. Então, eu meu senti muito atraída.
Então, realmente, acho que foi nessa época que confirmou.” [Dra. Fátima]

“Na verdade, eu não fiz colegial no Brasil, eu sou formado pelo colegial no
[exterior] Na época isso era pouco conhecido no Brasil, um curso chamado
Bacharelado Internacional (...) pras ciências de saúde, então, na realidade,
quando eu fui pra esse curso já era premeditando a entrada em Medicina.
Realmente eu tenho uma idéia de fazer Medicina desde os primórdios aí do
colegial.” [Dr. Marco]

Temos expostas nestes trechos duas maneiras diferentes de aproximação com a


Medicina, ambas marcadas pelo planejamento. Na primeira, o ingresso na carreira médica
procura responder nitidamente ao desejo dos pais da Dra. Fátima, que projetaram um
determinado futuro para sua filha. Na segunda, o direcionamento para a Medicina deu-se
pelo desejo do Dr. Marco em vivenciar uma experiência escolar no exterior que o
conduzisse ao campo da saúde. Nestes dois casos, podemos notar como a realização pessoal
conquistada ao ingressar na carreira médica lida com um certo futuro idealizado.

Capítulo 1
77
No entanto, para a maior parte dos entrevistados, a Medicina surge como algo
distante de sua vida escolar e familiar. Ela aparece como uma possibilidade de travar um
intenso contato com as pessoas e com o mundo. Para alguns destes adolescentes, o simples
ingresso em um curso superior já significou uma ruptura com as suas trajetórias familiares,
quando um mundo diferente abriu-se diante de seus olhos, desafiando-os e requisitando-
lhes um imenso esforço para ingressar numa nova fase da vida.

Carla, filha de sargento do exército e de uma costureira, tem um irmão que


ingressou no curso médico, fato este que representou uma novidade no cenário familiar.
Quando também ela decide seguir esta carreira, não contava com o apoio dos pais, que
desejavam que ela seguisse os passos de sua mãe no ramo da costura.

“E naquela época (...) eu não tive o orgulho dos meus pais. O meu pai e a
minha mãe não se sentiram orgulhosos porque eu fiz Medicina. Foi um
achado, eu entrei na faculdade por um achado. Porque eu não me preparei,
eu não fiz vestibular, eu não fiz cursinho, sabe (...) Aí eu entrei na
universidade, mas eu entrei ainda de vestido de laço. Com dezoito anos, de
vestido de laço, pra você ver. Quando eu cheguei na faculdade eu me deparei
com um mundo totalmente diferente (...) Eu fiz Medicina... porque eu
gostava das duas coisas, mas não foi um dom (...) que eu tinha talento (...)
Mas eu fui bem porque eu acho que eu ia em qualquer lugar. Porque eu
gostava assim, de estudar, de ler, e mesmo assim eu não tinha tempo de
estudar porque mesmo no sexto ano de Medicina, pra você ter uma idéia, eu
fiz faxina em casa dos outros. Porque a minha mãe era costureira, e ela
achava que eu ia estudar Medicina, era um desperdício, porque eu era boa
em costura. Então eu nunca tive aquele orgulho, assim, da família: ‘Olha, a
minha filha está estudando Medicina!.’ O meu pai escondia até, você
entende? Porque antigamente era orgulho, hoje já não é tanto mais. Mas o
meu pai escondia, e eu me sentia muito chateada com isso. E eu tinha meus
colegas de faculdade que eram colegas que tinham, assim, uma condição
financeira dez vezes melhor que a minha, e eu era menina, eu não tinha
condição de escolha, você entende?” [Dra. Carla]

Vemos como não é a questão da predestinação que se coloca para esta pediatra
em sua aproximação com a carreira médica. Ao contrário, a Medicina aparece em sua vida
como um achado, algo que não estava lá todo o tempo esperando para ser revelado. Vemos,

Capítulo 1
78
também, como isto pesa em sua trajetória, uma vez que nesta menina de “vestido de laço”
era vislumbrado o dom da costura e não o da Medicina.

A insistência de Carla em percorrer os rumos da carreira médica foi tomada por


seus pais como o desperdício de um dom, que nela despontava, para a costura. Mesmo
assim, Carla decide empenhar-se nesta profissão.

Esta situação leva Carla a lutar enfaticamente por sua escolha, fazendo faxina,
estudando e esforçando-se ao máximo para encontrar seu lugar na carreira médica. Ela só
encontrará seu verdadeiro dom, seu ponto de tranqüilidade, quando se aproxima da área de
Hematologia.

“Por incrível que pareça, eu queria fazer Hematologia. E como eu era feliz
em Hematologia! Mas eu adorava hematologia. Pra você ter uma idéia,
quando o meu professor tomava [de um instituto hematológico] meu
professor viajou (...) [e] me deixou tomando conta de Hematologia, no
quarto ano de Medicina! Você acha?! Ninguém até hoje se conforma de eu
ser pediatra, meus colegas, tenho pavor. Aí o que foi que aconteceu? Por
isso que eu não fiz residência (...) Eu tinha horror [a Pediatria], sabe por
quê? Porque a gente como adolescente, a gente tem ideal, não tem ideal?
Então a gente... cada pessoa tem um ideal quando a gente está... vai se
formar. Então, o meu ideal é que eu achava que se eu fosse... pode ser que
eu não fosse nada, que fosse uma porcaria de gente... Eu achava que se eu
seguisse aquilo que eu realmente gostei, eu acho que eu seria muito mais
feliz profissionalmente, em todos os pontos. Porque era uma coisa que eu
tinha dom mesmo, eu tinha dom! Eu tinha dom! Qual o professor que deixa
um estudante tomar conta de um instituto?! Era eu. A minha mãe (...) falava:
‘Doutor, o senhor está louco, deixar a minha filha com vinte e três anos aqui
(...) tomando conta do instituto!’; ‘Mas ela é capaz!’ (...) Então eu acho que
eu não fiz o que eu gostei, é só por isso.” [Dra. Carla]

Aquela jovem encontra finalmente o reconhecimento de seu dom para a


Medicina quando um professor confere à ela responsabilidades que não cabiam a uma
adolescente. A idéia de formar-se para além do “vestido de laço”, associada à descoberta de
um dom, firma um ideal próprio ainda à sua adolescência, que virá a ser frustrado na
carreira da Dra. Carla.

Capítulo 1
79
A Medicina como um achado e o curso médico como um novo universo são
elementos encontrados também por Cristina em sua aproximação com a carreira médica. A
imagem que melhor expressava a Medicina naquele momento, para ela, era a de um
personagem de seriado de televisão, o Dr. Kildare.

“E assim, eu não tenho na família, eu não tinha nenhuma pessoa que era da
área, não... os meus pais não tinham formação nem de ginásio, quer dizer,
tanto o meu pai, como a minha mãe tinham terminado o primário, o meu
pai era alfaiate. Então, família mais simples mesmo. E na família dele
também a regra (...) naquela época (...) a maioria das pessoas que conviviam
com a gente, as meninas em geral faziam mais Normal (...) eu estudei em
escola publica (...) fazer Normal e uma ou outra fazer uma faculdade mais na
área de Pedagogia, na área de Educação. Não era muito comum a gente
perceber as pessoas irem para uma área dessas [como Medicina],
principalmente em mulher. Tinha, tinha uma certa diferença (...) O meu
irmão foi fazer faculdade, Engenharia, que já foi uma coisa diferente, tanto
do resto da família, como do convívio mais comum do bairro onde a gente
morava. E as opções, quer dizer, eu não tinha alguém que estava falando
‘Olha, Medicina é bom porque vai fazer aquilo.’ Você tem aquela idéia de
quando vai no médico (...) Então, assim, não teve nenhuma orientação, quer
dizer, e aí, sei lá, uma prima minha começou a fazer cursinho pra Medicina,
‘Ó, taí um negócio que eu podia fazer, que eu gosto’. Mas sem a menor
noção e orientação. Aí eu falei em casa que eu queria fazer, meu pai (...)
levou até um susto no começo, de querer ir para um curso desse, mas
mandou ver: ‘Então vai’. Eu era boa aluna, gostava de estudar, tinha
aquela coisa de ser uma coisa difícil também, eu acho que tem um... um
desafio (...) [Quanto à Medicina] É a visão de Dr. Kildare, não sei se nunca
você assistiu esse filme, que era o que tinha (...) a experiência da vida da
gente, dos médicos que atendiam a nossa família. Então para mim medicina
era aquilo, e só. Hospital, visão clínica, não tinha muita noção, nem como
que estava organizado, se as condições eram boas ou não, se as
possibilidades de trabalhar eram boas ou não, não tinha essa visão, entrei
sem mesmo conhecer. E só dessa vivência pessoal, de leigo, de quem usa o
serviço, e não de quem conhecesse o profissional que trabalhava...” [Dra.
Cristina]

Capítulo 1
80
Vinda de uma família humilde, onde o horizonte de uma profissão liberal não
se colocava de maneira próxima entre seus membros, Cristina entra no curso médico
munida de sua experiência “de leigo”. Suas vivências pessoais em relação à Medicina
apontam para o médico de família, sem que o serviço ou rede assistencial deixem de estar
também presentes. O ingresso na Medicina aparece, portanto, como algo inusitado em sua
trajetória familiar, sendo que seu bom desempenho escolar permite a esta adolescente
enfrentar o desafio de trilhar os rumos de um curso superior.

1.5. Contato com as pessoas, contato com a vida

Um forte desejo de entrar em contato com pessoas será afirmado pelos


entrevistados, ao optarem pelo curso médico. Vejamos como Dr. Ricardo coloca a questão:

“Isso apareceu muito no final do ensino médio, do colegial. Eu tinha uma


formação técnica em Eletrônica (...) fiz uma formação estritamente técnica,
e no final do segundo colegial eu achava que aquilo não atendia às minhas
necessidades. Era uma coisa extremamente cartesiana, uma coisa muito do
sim ou não, de conexões e não atendia ao que eu achava que era importante.
Naquela época eu tinha uma tendência pra Ciências Sociais, e gostava da
área de Humanas e estava meio perdido. E aí apareceu a Medicina, achei
que dentro da Medicina poderia ter (...) um contato social que eu achava
que era fundamental, dada a nossa realidade de saúde, indicadores sociais
que a gente conhecia. E aí acabei dando essa guinada no terceiro colegial.
Fiz um curso pré-médico só pra área de Medicina porque eu não sabia nada
de Biologia, estava totalmente na área de Exatas. Então foi no finalzinho
mesmo, ainda mais quando caiu a ficha de que eu precisava pra me realizar
alguma coisa de contato com a população, de me sentir útil (...) rapidamente,
uma coisa rápida de utilidade para a população, mais ou menos nessa linha,
aí.” [Dr. Ricardo]

No trecho acima, podemos observar como o entrevistado polariza as carreiras


profissionais, de um lado caracterizadas por um pensamento cartesiano assertivo sobre a
realidade, marcada pela disjuntiva do ou sim... ou não...; de outro lado, por um pensamento
que toma a realidade em termos de indicadores, de um conhecimento não tão assertivo
sobre a realidade, mas que permite uma ação rápida que se reverte em utilidade pública.

Capítulo 1
81
Entre a métrica de um conhecimento exato e o traçado titubeante em direção à
inexatidão humana, a Medicina aparece como possibilidade concreta de tocar o real através
de um olhar em que os limites entre a objetividade e a subjetividade são postos pelo tempo
da Clínica. A ação é rápida porque o gesto clínico é imediato, lida diretamente com um real
palpável. Trata-se de um conhecimento inexato, porque a experiência clínica, embora
permaneça a mesma em seus fundamentos, é modulada com o tempo. O médico acumula
experiência profissional, sendo tocado por ela em pontos que extrapolam o conhecimento
disciplinar. Com isto, transforma, inclusive, a maneira como se coloca frente à própria
experiência clínica.

A formação de uma vasta experiência clínica é importante para a consolidação


profissional, na medida em que nela sobressaem situações em que a sensibilidade médica
deve lidar com elementos que não cabem na objetividade do corpo doente. Daí a inexatidão
da profissão médica, que a aproxima das ciências humanas. Ao lidar com o humano, a
Medicina inscreve-se como um saber que tem por objeto o corpo doente; porém, ela não
descarta o que está para além deste corpo doente em sua prática. A Medicina deve lidar de
alguma maneira com os imponderáveis da vida.

Veremos mais adiante como a própria constituição do saber clínico implica em


rupturas com alguns destes imponderáveis – quando, por exemplo, a relação com o corpo
vivo e com o corpo morto é dada pela tensão entre a integralidade do ser e a sua
espacialização segmentada. Porém, na medida em que o saber clinico garante um acesso
direto à natureza, agindo de modo incisivo sobre o corpo doente, ele encontra um ponto de
apoio firme que lhe confere liberdade para afirmar-se.

“Ora, o que garante à medicina, assim entendida, ser um saber útil a todos
os cidadãos é sua relação imediata com a natureza: em vez de ser, como a
antiga Faculdade, o lugar de um saber esotérico e livresco, a nova escola
será o <<Templo da natureza>>; nela não se aprenderá absolutamente o
que acreditavam saber os mestres de outrora, mas esta forma de verdade
aberta a todos, que manifesta o exercício cotidiano: <<a prática, a
manipulação se unirão aos preceitos teóricos. Os alunos serão exercitados
nas experiências químicas, nas dissecações anatômicas, nas operações
cirúrgicas, nos aparelhos. Ler pouco, ver muito e fazer muito>>, se exercitar

Capítulo 1
82
na própria prática, ao leito dos doentes: eis o que ensinará, em vez das vãs
fisiologias, a verdadeira <<arte de curar>>. A clínica se torna, portanto,
um momento essencial da coerência científica, mas também da utilidade
social e da pureza política da nova organização médica. Ela é sua verdade
na liberdade garantida.” (Foucault, 1980: 79)

A busca de um “conhecimento útil” para a população, em uma profissão que


viabilize rapidamente uma prática profissional de intervenção sobre a realidade, está
presente de maneira muito forte nos relatos dos pediatras entrevistados. Soma-se a esta
busca o desejo de ingressar em uma profissão com amplo reconhecimento social.

“Mas, na verdade, eu na época pensava em fazer Psicologia, que era uma


área que me interessava um pouco mais. Mas eu acabei entrando na
Psicologia (...) e em Medicina (...) E como Psicologia não era uma faculdade
reconhecida na época, eu acabei optando por fazer Medicina, por
influências de professores meus do tempo de colegial, que todo mundo
achava que eu tinha mais potencial pra isso...‘Ah, depois você faz lá na
especialização...’ (...) Eu, na verdade... pensava em lidar com pessoas, com...
que é o que eu gostava de fazer. E a Medicina acho que foi mais uma
influência mesmo do... namorava um estudante de Medicina, então... via que
era... eu comecei a freqüentar a faculdade com ele, e via que era um espaço
bom pra lidar com pessoas. E talvez a minha idéia inicial fosse mesmo de
lidar com pessoas normais, não com a doença (...) Mas é uma... a minha
idéia inicial era só pra lidar com pessoas. E na área de biológicas... que na
época não tinha muita opção de lidar com pessoas fugindo da área de
biológicas, porque as áreas eram divididas em biológicas, humanas e exatas.
E humanas... pra eu fazer na área de humanas, o caminho seria pra ser
professor, e não era bem essa a minha aspiração, eu queria lidar com
pessoas diretamente ou participar da vida das pessoas, não sei qual que era
a... acho que era alguma coisa por aí, não sei definir bem o que eu... o
sentimento da época” [Dra. Mônica]

Aqui, mais uma vez, a Medicina aparece repentinamente no período em que o


entrevistado cursava o colegial. Neste caso, o direcionamento para esta carreira ocorre quer
por seu prestígio social, quer pela afirmação de um “potencial” já existente.

Capítulo 1
83
Desde o momento em que opta pela carreira médica, Mônica deseja
dimensionar a normalidade e não a patologia em sua prática profissional. Assumindo
nitidamente que o desejo de intervir sobre os limites entre o normal e o patológico, na
prática médica, Mônica objetiva um acesso direto sobre a vida, demonstrando uma grande
vontade de “participar” da vida das pessoas.

Este contato é viabilizado pela constituição de um saber que estabelece uma


relação de parentesco entre a Morte e a Vida. Este será um ponto de incômodo presente
durante toda a carreira desta pediatra. Assim, quando perguntada sobre os anos iniciais do
curso médico, temos a seguinte resposta:

“Foram duros, viu? E a minha primeira aula de Anatomia... eu tenho uma


imagem tão gravada... acho que encravada, não é nem gravada. Eu me
lembro bem de eu e mais duas colegas sentadas, assim, na calçada ali do
galpão da Anatomia (...) nós sentamos ali, depois da primeira aula, a idéia
era... a minha idéia era voltar (...) e tentar recuperar o curso de
Psicologia...(sorrisos)... Daí que me alertaram: ‘Ah, você vai voltar (...) pra
fazer o curso de Psicologia e vai passar por Anatomia também, isso é um
instrumento, você vai precisar saber bastante anatomia pra depois poder
entender o funcionamento.’ Mas eu queria trabalhar com pessoas normais,
não mortas, e muito menos agredir, depois... a peça, porque medicamente
ela é uma peça que estava ali. Mas eu realmente me senti muito mal e... os
dois primeiros anos que a gente tem basicamente Anatomia, e... as outras
matérias são até mais tranqüilas que são matérias teóricas. Mas o
Laboratório de Anatomia me deixou bem desesperada. Mas foi, passou (...)
Eu acho que é lógico que a base da Medicina está aí, você aprender mesmo
anatomia, tudo... Agora (...) no semestre passado eu voltei lá para o
Laboratório de Anatomia porque fiz uma disciplina em Neuroanatomia, e
realmente é uma sensação muito desagradável. Eu gosto do cérebro em
funcionamento, não gosto do cérebro no formol (...) não me causa uma
impressão agradável. E principalmente com os comentários que eu ouvi,
falei: ‘Gente, trinta anos depois as pessoas tratam mesmo como se fosse uma
peça, um objeto que...’; que na verdade é, mas eu não sei se eu estou tão
acostumada aqui no consultório a lidar com vida, em crescimento, em
desenvolvimento, que realmente continuo me sentindo mal no Laboratório de
Anatomia (...) eu acho que continua igual, as pessoas pensam realmente no
material. E o médico é treinado pra isso...” [Dra Mônica]

Capítulo 1
84
Uma outra descrição dos anos iniciais do curso médico e uma maneira
completamente diferente de lidar com o significado da anatomia na formação médica é
trazida pelo Dr. Gustavo.

“A minha turma foi uma turma muito unida, muito boa. E eu acho que ela
foi uma das melhores turmas (...) se você falar em termos de sucesso
profissional ou em termos acadêmicos. Médicos muito importantes se
formaram na minha turma e acho que isso ajudou a gente, cada um, a se
inspirar. A minha turma fazia tudo o que faz adulto jovem ou adolescente,
além de estudar (...) a gente fez tudo. Só que era uma turma... não era uma
turma muito bagunceira, então o convívio era legal, era fácil, eu acho que
nesse tempo a faculdade (...) era muito acolhedora, não tinham grandes
problemas. Não era grande a escola, as turmas tinham oitenta alunos, tudo
acontecia aqui ou no [hospital]. Bem depois que eu entrei é que começou o
chamado Curso Experimental, aí começou essa história de não ter mais
turma, que você faz matrícula semestral... Eu acho que essa coisa da
matrícula semestral acabou com o conceito de turma e ficou muito ruim o
convívio dos caras aqui (...) Eu acho que era muito mais fácil no meu tempo.
Não houve nunca nenhum problema. Claro, o meu pai [trabalhava no]
Instituto Médico Legal, então eu estava cansado de acompanhar autópsias,
de olhar exames de corpo de delito, gente machucada. Então, esse impacto
de você ir pra aula de Anatomia e ter que dissecar um cadáver, ou começar a
ir no Pronto Socorro e ver que tem gente que morre, isso eu já sabia. Então
pra mim não foi impacto nenhum. Teve gente, todo ano, a gente sabe, tem
uma crônica dos suicídios entre os estudantes de Medicina, especialmente
quando chegam no hospital, no internato, por exemplo, ou na residência.
Um menino da minha turma... um se matou um pouco antes de começar o
internato. Então a gente sabe que tem, que o impacto é pesado. Mas pra mim
não foi por causa disso, entendeu...” [Dr. Gustavo]

Este choque inicial, que para alguns médicos perdura durante toda a sua
carreira, e, para outros, é tratado com naturalidade, está ligado à ruptura que a Clínica
estabelece entre uma sensibilidade voltada para a descrição dos movimentos vivos do corpo
e outra que reencontra a vida através da morte.

Capítulo 1
85
Vemos a importância deste segundo movimento afirmado nos relatos acima
citados, quando os entrevistados localizam na identificação do <<corpo-peça>> um
mecanismo crucial do raciocínio médico, que perdura apesar das reformulações do curso e
das gerações de médicos. Importa muito o apoio dos colegas e o sentimento de turma neste
momento em que a sensibilidade leiga sobre o corpo é posta em choque com uma
sensibilidade clínica. Este apoio é especialmente importante nos primeiros anos de curso,
quando os alunos estão distantes do setting médico, momento este em que esta ruptura na
sensibilidade parece justificar-se pedagogicamente na divisão “anos básicos X anos
clínicos”. De qualquer forma, as peças em funcionamento devem encaixar-se de modo a
acionar o raciocínio médico possibilitado pelo nascimento de uma verdade original que une
vida e morte de maneira cada vez mais próxima.

“Os processos da morte, que não se identificam nem com os da vida nem
com os da doença, servem, no entanto, para esclarecer os fenômenos
orgânicos e seus distúrbios. A morte lenta e natural do velho retoma, em
sentido inverso, o desenvolvimento da vida da criança, no embrião e talvez,
mesmo na planta: ‘o estado do animal que a morte natural vai destruir se
aproxima daquele em que ele se encontrava no seio de sua mãe, como
também do estado do vegetal que só vive em seu interior, e para quem a
natureza está em silêncio’. Os invólucros sucessivos da vida se desprendem
naturalmente, enunciando sua autonomia e sua verdade naquilo mesmo que
os nega. O sistema das dependências funcionais e das interações normais ou
patológicas se esclarece, também, pela análise destas mortes a varejo (...)
Fixada, assim, em seus mecanismos próprios, a morte, com sua rede
orgânica, não pode mais ser confundida com a doença ou seus traços; pode,
ao contrário, servir de ponto de vista sobre o patológico e permitir fixar suas
formas ou suas etapas (...) O tempo da morte pode se deslocar ao longo da
evolução mórbida; e como esta morte perdeu sua característica opaca, ela se
torna, paradoxalmente e por seu efeito de interrupção temporal, o
instrumento que permite integrar a duração da doença no espaço imóvel de
um corpo recortado. A vida, a doença e a morte constituem agora uma
trindade técnica e conceitual. A velha continuidade das obsessões milenares
que colocava, na vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença
aproximada da morte é rompida: em seu lugar, se articula uma figura
triangular, de que o cume superior é definido pela morte. É do alto da morte
que se podem ver e analisar as dependências orgânicas e as seqüências

Capítulo 1
86
patológicas. Em lugar de permanecer o que tinha sido durante tanto tempo,
noite em que a vida se apaga e em que a própria doença se confunde, ela é
dotada, de agora em diante, do grande poder de iluminação que domina e
desvela tanto o espaço do organismo quanto o tempo da doença... O
privilégio de sua atemporalidade, que é sem dúvida tão velho quanto a
consciência de sua imanência, torna-se, pela primeira vez, instrumento
técnico que permite a apreensão da verdade da vida e da natureza de seu
mal. A morte é a grande analista que mostra as conexões, desdobrando-as, e
explode as maravilhas da gênese no rigor da decomposição: e é preciso
deixar à palavra decomposição todos os pesos de seu sentido. A Análise,
filosofia dos elementos e de suas leis, encontra na morte o que em vão tinha
procurado nas matemáticas, na química e na própria linguagem: um modelo
insuperável e prescrito pela natureza; o olhar médico vai, a partir de então,
apoiar-se neste grande exemplo. Não mais o de um olho vivo, mas de um
olho que viu a morte. Grande olho branco que desfaz a vida.” (Foucault,
1980: 163-165)

Esta longa passagem, que historicamente construiu-se numa relação de


apropriação e ruptura com a Medicina Classificatória, dá conta, em um instante, de trazer
dos recantos insondáveis da morte a possibilidade concreta de iluminar a vida. Para que
esta virada ocorresse, muitos foram os deslocamentos necessários; porém, no momento em
que ela se apresenta, imediatamente instaura-se no raciocínio médico com uma força que
chega praticamente a apagar o caminho percorrido. Da morte insondável à morte
esclarecedora, parece que só existiu a distância da queda de um tabu, ainda que abrir
cadáveres já fosse prática conhecida. O importante é que agora a própria morte ganhou
substância particular, abrindo caminho ao vivo.

“No segundo semestre do segundo ano a gente teve Semiologia, que seria
aprender a examinar o paciente já vivo, com base na Anatomia, lógico...
(risos)... apalpar um fígado... um fígado quente, como a gente costumava
brincar porque os pacientes (...) a gente tinha muito... pessoas com
alcoolismo, então a gente ficava lá cutucando aquele fígado do pobre do
paciente dez, vinte estudantes por dia lidando... assim, examinando o
paciente (...) Então, essa transposição do morto pro vivo... estava dentro da
minha expectativa lidar com o paciente, com pessoas como eu falei pra você.
Mas eu acho que em dois anos que você fica dissecando peças ali, parece

Capítulo 1
87
que você se distancia um pouco do ser humano que está por trás do fígado
que você está apalpando. Então eu acho que o curso médico começa a... não
sei, de-sensibilizar, será que seria o termo (...) começa a distorcer talvez a...
sobre a vida humana, aí, no curso de Anatomia. Porque depois, quando você
transportar o seu conhecimento do cadáver pro ser vivo, as pessoas... quer
dizer, os professores na época, eu não sei como está hoje (...) o curso de
Semiologia, mas era feita uma... uma aula onde o velho professor (...) fazia,
considerações sobre o que seria você tratar do paciente... Quer dizer, nós
não tratávamos, nós só examinávamos, porque a aula era de Semiologia.
Mas eu acho que poucas pessoas pensavam no ser humano que estava atrás
daquele fígado, do coração que a gente escutava, do... pela postura dos
colegas... Era uma coisa dolorosa também, tive vontade de parar o curso aí
também.” [Dra. Mônica]

A transposição de um conhecimento estabelecido sobre o <<corpo-peça>> para


um <<corpo-funcionamento>>, como aponta o depoimento da Dra. Mônica, é realizada
sem que seja deslocada a ruptura fundamental entre a sensibilidade corporal próxima à
palpitação da vida (e seus imponderáveis) e aquela próxima à verdade que a morte revela
sobre o corpo vivo. O saber clínico reivindica a verdade original da vida pela descoberta da
especificidade da morte. O traçado que a doença e a vida inscrevem no corpo deverá ser
visto a partir da descoberta de sua morte. Mesmo assim, a Medicina lida com a vida, ainda
que esta seja entregue por direito e necessariamente à morte.

A escolha pela carreira médica associada à possibilidade de manter um intenso


contato com as pessoas ocupa um lugar especial na trajetória da Dra. Zélia. Filha de
farmacêutico, esta pediatra aprendeu logo cedo o valor de atender as pessoas, receber seus
anseios e ajudá-las a superar seus sofrimentos.

“Na realidade eu resolvi fazer Medicina, eu estava no final do colégio já.


Uma das últimas coisas que eu pensei em fazer foi a Medicina. Mas (...) eu
achava que a gente precisava ter um papel dentro da sociedade (...). O meu
pai era dono de farmácia de cidade do interior, essas coisas, e eu não sei,
isso deve ter de algum jeito influenciado aí nessa coisa de pensar em ter um
papel, de ver as pessoas... ele era daqueles donos de farmácia que receitava
com freqüência, daqueles que era quase doutor, não tinha formação
nenhuma mas que resolvia às vezes as situações das pessoas (...) que

Capítulo 1
88
estavam totalmente desassistidas. Eu acho que isso é uma coisa que marca
aí. Mas eu, assim, resolvi fazer Medicina porque eu achava que, das coisas
que tinha, era aonde eu podia estar atuando (...) Queria fazer Medicina pra
trabalhar atendendo... Nunca me pensei como médica tendo um consultório,
dentro de um hospital (...) Eu pensava em ir atendendo as pessoas em
lugares mais simples (...) Lá em casa a gente tem uma formação meio
religiosa, essa coisa de (...) solidariedade e não de caridade (...) de estar
ajudando as pessoas, de estar construindo coisas. Interessante. E eu acho
que (...) com uma profissão (...) [com] uma função social, eu acho que aí
seria um lugar que daria pra trabalhar.” [Dra. Zélia]

Seu pai era um “quase doutor”, porque embora não possuísse a formação
médica, atuava onde o saber disciplinar da Medicina não chegava, em termos assistenciais.
Aqui podemos ver como a profissão médica é composta também para além do seu núcleo
duro disciplinar. A solidariedade, expressa num atendimento que ajuda as pessoas a
superarem momentos difíceis, aparece como a possibilidade de construir uma relação
comprometida com o sofrimento dos outros. Aqui o trabalho médico não está pautado pela
noção de <<corpo-peça>>, mas sim pelos elementos da vida que delineiam a dimensão do
<<cuidado>>, a partir da qual são estabelecidos laços de solidariedade entre o “cuidador” e
aquele que é cuidado.

Apesar desta pediatra preocupar-se em distinguir a noção de solidariedade da


noção de caridade, podemos ver em seu relato como ambas se inserem dentro de um
imaginário religioso em que a dedicação ao outro associa-se à construção de aspectos
importantes ao cumprimento de uma certa trajetória de vida. A profissão e a vocação
aparecem intimamente ligadas por um laço de parentesco entre o espaço familiar e o
escolar, através do qual é elaborado um espaço de “transição” em que se coloca uma
espécie de “chamamento” 2 para a construção de uma elevação simbólica em que as noções
de “autonomia” e “comprometimento” passam a importar cada vez mais.

2
Dentre os sentidos mencionados em dois importantes dicionários da Língua Portuguesa para vocação,
encontramos:
“[Do lat. vocatione.] S. f., Ato de chamar; Escolha, chamamento, predestinação; P. ext., Talento, aptidão”
(Aurélio, 1999)
“Ato ou efeito de chamar(-se), denominação; Apelo ou inclinação para o sacerdócio, para a vida religiosa;
Disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade, uma função ou
profissão; Etim. Lat. ‘ação de chamar, intimação, convite’ ” (Houaiss, 2001)

Capítulo 1
89
Podemos ver como estes trechos apontam para uma aproximação com a
Medicina, marcada quer por um desejo genérico de intervir na realidade social, em que a
possibilidade de efetuar rapidamente um contato direto com as pessoas e de apropriar-se de
um conhecimento útil para a população ganha importância, quer por um direcionamento
planejado, em que o status da profissão médica ganha maior relevância. Ambas as
vertentes são remetidas pelos entrevistados às visões familiares anteriores ao ingresso na
carreira médica, compondo as suas experiências escolares e profissionais posteriores. Isto
nos mostra como a Medicina do presente vivenciado pelos entrevistados conversa,
incessantemente, com uma Medicina de seu passado.

“Os meus pais... eu sou duma família de... o meu pai e a minha mãe são
nordestinos. E, antigamente, hoje nem tanto, mas a Medicina sempre (...)
dava aquele status. Eles eram de cidade do interior, em cidade do interior
aonde tem um médico o médico é tudo, é o médico, é o prefeito, é o
conselheiro... Então eu acho que eles... a visão da Medicina eu acho que era
um pouco diferente antigamente” [Dra. Fátima]

A maneira como a família dos entrevistados encara o ingresso de um de seus


membros na Medicina acaba por colocar em cena visões a serem contrapostas pelo
estudante no decorrer do curso. Assim, não só a possibilidade de intervir na realidade e a
promessa de status social, mas também a busca pela especialização pode colocar-se para
estes alunos, diante da expectativa formada por seus familiares.

“Na minha época existia essa coisa ainda de ganhar dinheiro com a
Medicina, mas não passava pela minha cabeça essa questão, apesar de os
familiares (...) Eu já sabia que não ia escolher uma área que fosse
lucrativa, entre aspas. Estava procurando mesmo a área de clínica geral e
tentar agir rapidamente, sem super especializações.” [Dr. Ricardo]

A associação entre lucratividade e especialização profissional coloca-se como


um dado que rivaliza com a possibilidade de efetuar uma intervenção médica que se
concretize o mais rápido possível. O intrigante na oposição formação especializada (lucro)
vs formação básica (ação rápida), é o fato dela não contornar a passagem pela residência
pediátrica, o que por si só já adia, de certa forma, a rápida concretização de uma autonomia
profissional.

Capítulo 1
90
Desde o momento em que optam pela Medicina, os entrevistados requisitam a
profissionalização de um fazer comprometido com o “social”, seja este acessado no plano
da organização dos sistemas de atenção à saúde, seja este acessado de modo mais restrito
pelo ato clínico marcado pelas relações face-a-face.

Temos essa questão abordada nos trechos que se seguem, a respeito do caráter
do conhecimento elaborado no curso médico.

“Na graduação a gente começa a ter, evidentemente, um contato grande. O


primeiro e segundo ano nem tanto, porque ainda é muito básico, você fica
muito fora da área clínica, fora do hospital. E eu acho que aí [no] terceiro,
quarto, quinto e sexto, o que você vai conhecendo da profissão é,
basicamente, o que os docentes vão te passando de como que é a profissão,
como isso está organizada e tal. Eu me formei em 79, [e] em 77 [teve] aquele
boom do movimento estudantil. E na área de saúde você acaba tendo vários
espaços de discussão em que a questão da saúde e do sistema de saúde
começam a ficar colocados. É o momento aí de todo o movimento da
Reforma Sanitária. Então, comecei a participar mais do Centro Acadêmico
(...) Todo esse processo eu acho que acabou interferindo (...) [de modo a ter]
uma visão que não era mais só passada pelo professor, clínico ou cirurgião
que tem um consultório, que tem uma visão X, e que te coloca a visão e a
experiência dele (...) Então, nesses espaços a visão da gente da sociedade
(...) e do curso mesmo foi modificando muito. Quer dizer, que aí você sai
daquela coisa [do] Dr. Kildare, [de] trabalhar no hospital, para ter uma
visão maior e se encontrar dentro de um contexto mais amplo.” [Dra.
Cristina]

Podemos ver como esta pediatra polariza em sua trajetória escolar dois tipos de
experiências que fundamentaram a sua formação profissional. Um primeiro, delineado nos
moldes escolares, estrito senso, em que a formação acontece através da aquisição de
conhecimentos fundamentados num saber instituído, referido à experiência profissional
individual de cada professor – trata-se de um saber dimensionado na experiência clínica “de
consultório” do corpo docente.

Capítulo 1
91
O segundo tipo aponta para a noção de <<sistema de saúde>>, em que a ação
médica é pautada mais claramente pelas organizações corporativas que tratam de intervir
nas políticas públicas de atenção à saúde, interferindo deste modo em um contexto social
“mais amplo” do que aquele, estritamente, delimitado pelo campo escolar. Trata-se da
formulação de uma “experiência coletiva” que extrapola os bancos escolares, a partir da
qual o aluno de medicina vai cunhando referências importantes para formar a sua própria
perspectiva sobre a organização do ensino médico. Deste modo, a experiência escolar
individual formulada pelo aluno identifica, no plano da organização social das práticas em
saúde, conflitos da prática médica que perpassam a estruturação do currículo do curso
médico.

“O médico é formado durante o curso médico, depois disso ele pega todos
os vícios que ele teve de formação... Se ele for um médico não incentivado a
examinar o paciente [então] ele vai continuar não examinando o paciente, se
ele for um médico incentivado a só pedir exame [então] ele vai continuar
pedindo só exame. Então eu acho que o grande problema é na formação dele
lá atrás. As cadeiras têm que continuar sendo muito clínicas para poder se
desenvolver o médico realmente do ponto de vista clínico.” [Dr. Marco]

Podemos ver na formulação <<Se o médico for incentivado (formação


presente).... então será (atuação futura)... >> como a formação médica, especialmente
aquela definida na grade curricular oficial, é tomada como uma estrutura que molda, quase
que inexoravelmente, o ethos e a práxis profissional à revelia da vontade ou contraposição
dos alunos. Estes parecem esperar serem levados pelas mãos dos professores, como peixes
na maré que nadam de acordo com a correnteza, sem chance de escolha. Na verdade, a
única escolha permitida (na graduação) será a de optarem por complementar a sua
formação escolar com espaços extracurriculares em que podem aliviar-se das redes de
subordinação em que o ensino médico estrutura-se como um saber prático. Nestes espaços
são incorporados elementos da vida importantes para o processo de desenvolvimento
médico.

“Você pode falar das coisas acadêmicas e você pode falar das coisas
extracurriculares. São todas importantes porque a formação não é só
assistir aula, não é só fazer prova, não é só tirar nota, é tudo isso. Então,
você participar de MACMED, por exemplo, que é um inimigo comum que é

Capítulo 1
92
o Mackenzie, tomar os porres da MACMED, não precisava jogar, participar
competindo, mas acompanhar, torcer, pra dar um exemplo de coisas
extracurriculares. O Porão, que era o centro acadêmico. Pô, o Porão era
ótimo, você passava a vida lá dentro. Muito mais no Porão do que assistindo
aula. Você assistia porque senão você era reprovado por falta e tal. Mas o
Porão era mais legal do que assistir aula, todo mundo sabe. O snooker, o
pingue-pongue ou almoçar junto. Depois, quando chega mais pra frente,
você dividido em pequenas turmas, a sua ‘panela’ rodizia junto nas
diferentes disciplinas e especialmente no internato, então você tem (...) pelo
menos dez ou doze dos oitenta colegas que vão ficar dois anos juntos, ou
três, isso estimula coleguismo, trocar plantão, ajudar, ‘olha, eu não posso’
(...) ver escala de plantão, um ajuda o outro. Acho que é esse tipo de coisa.
Ajudar a estudar, estudar junto, se preparar para uma prova, dividir tarefa
pra estudar. Tem um livrão desse tamanho, cada um estuda um ou dois
capítulos, dá um jeito de se comunicar. Tudo isso, ou seja, trabalho de grupo
(...) Quando você começa a se interessar pela clínica, no meu tempo, por
exemplo, não sei ainda tem, deve ter, mas tinham as ligas. Então tinha a Liga
de Combate à Febre Reumática, a Liga de Combate à Sífilis que eram
iniciativas do centro acadêmico, com estudantes, coordenadas por
professores que tinham boa vontade.” [Dr. Gustavo]

Deste modo, sem deixar de afirmar a importância da sala de aula para seu
aprendizado, muitas vezes os entrevistados localizam nos espaços extracurriculares o
melhor desenvolvimento de aspectos centrais em sua formação. Estes espaços podem ser
tanto a inserção em fóruns de debate sobre as políticas públicas, quanto um conjunto de
estratégias para enfrentar as tarefas requisitadas nas diversas disciplinas cursadas. Por
vezes, tais espaços chegam a estruturar-se como um segmento extra-curricular ‘oficioso’
paralelo às disciplinas obrigatórias. Em outras ocasiões, trata-se simplesmente de conviver
juntos, buscando referências comuns para se localizarem e estabelecerem laços de
coleguismo e amizade.

A formação dos grupos de convívio passa pela participação em diversos


eventos que circulam em torno do currículo propriamente dito. Assim, a participação em
competições esportivas, em que a rivalidade entre as diferentes escolas põe em jogo
identidades configuradas num plano acadêmico mais ampliado, passa a estabelecer
hierarquias em que os estudantes vão progressivamente se localizando como pertencendo a

Capítulo 1
93
este ou àquele grupo. Da mesma forma, o apoio mútuo existente entre os alunos no
momento em que precisam enfrentar situações competitivas postas dentro da grade
curricular, estrito senso, torna-se um requisito praticamente obrigatório a partir do qual o
corpo discente constitui-se em oposição às exigências do corpo docente. Novos jogos de
aliança são estabelecidos aqui, especialmente, quando a turma é dividida em subgrupos que
deverão passar pelas diversas enfermarias, buscando fixar uma quantidade grande de
informações dispostas sobre o corpo doente dos pacientes, ao mesmo tempo em que
estabelece uma certa coesão profissional.

Portanto, a formação do corpo discente dá-se tanto pela definição de turmas que
seguirão juntas as disciplinas que compõem o currículo médico, calcado no experiência do
corpo docente, quanto pela participação em espaços extracurriculares que acabam por
compor, de modo importante, a formação médica. Vemos aqui como a idéia de
“desenvolvimento médico” nos coloca diante de uma Medicina em movimento, pautada
pela elaboração das experiências discentes e docentes a respeito do curso e da prática
médica.

A Medicina, como um campo profissional que incorpora constitutivamente a


tensão entre a morte e a vida, é identificada geralmente como a ciência de curar, porém isto
não exclui de seu campo de formação (extracurricular...) o aprendizado da arte de cuidar.

É importante notar como o Dr. Gustavo, em consonância com outros


entrevistados, afirma que o ensino médico estabelecido para além do corpo doente,
fragmentado nas disciplinas curriculares, é garantido por <<professores de boa vontade>>,
que passam a formar <<Ligas>> em que os alunos identificam-se com uma sensibilidade
clínica que lida de modo muito próximo com a tensão entre o curar (corpo doente) e o
cuidar (corpo infantil).

“O interesse cirúrgico... fui ‘peixinho’, como a gente chamava, de um grupo


de cirurgia vascular. Então eles fizeram comigo como se fosse uma
Iniciação Científica. Meio mal orientada mas foi, valeu. E aí instrumentei
muitas cirurgias deles, participei na elaboração de uma série de projetos e
de trabalhos de pesquisa, principalmente pesquisa retrospectiva com
prontuários hospitalares, trabalhos que foram apresentados em congresso,

Capítulo 1
94
um trabalho que acabou sendo tese de livre docência de um médico... só que
(...) essa coisa de ser, no bom sentido, mas, [ser] explorado por um cirurgião
me fez desistir. Não queria passar por isso, virar um escravo durante o
internato, a residência, e mesmo depois de terminar, ter que ser escravo de
um cirurgião mais famoso e ser esse o caminho pra mim. Eu não queria. Eu
sempre fui muito independente. Então isso me fez esquecer a cirurgia. ‘Não
é isso, não é por aí’. E aí percebi ‘bom, se não é cirurgia...’, eu não estava
muito interessado em fazer cadeira básica, eu queria ser médico, atender
pessoas, então, se não é cirurgia é clínica. Então aí comecei a me
encaminhar para uma especialidade clínica. E aí apareceu a Liga de
Puericultura. Por que eu fui lá? Porque era... sei lá, me convidaram, fui lá,
gostei, era um ambiente agradável, as pessoas ensinavam, se preocupavam
em te ensinar, você atendia a criançada, com alguém do seu lado
supervisionando. Atendia crianças saudáveis, aprendia a prescrever, a dar
orientação pra mãe, a formular uma receita de alimentação foi muito mais
um desencanto com a cirurgia que me fez ir pra clínica. E dentro da clínica
foi a oportunidade de freqüentar a Liga de Puericultura... me fez ser
pediatra.” [Dr. Gustavo]

O início do ciclo clínico e, especialmente, o momento do internato, colocam de


modo dramático a necessidade dos estudantes encontrarem nas estratégias de apoio mútuo
uma forma de se relacionarem como “colegas” em uma profissão que os desafia a cada
instante a adquirir um conhecimento tensionado pela intervenção prática que o legitima – a
manipulação do corpo doente. Porém, as Ligas aparecem como um espaço em que a
pressão para apreender este objeto de trabalho não aniquila a possibilidade do estudante
modular uma experiência que ainda lhe é externa com a incorporação elementos da vida
que lhes são significativos. Nas Ligas os alunos parecem poder incorporar melhor o saber
clínico como uma experiência de descoberta.

Também é neste espaço extra-curricular que vemos aparecer de modo


importante algo que escapa à objetividade do trabalho médico centrado na corpo doente: a
necessidade de prescrever orientações para a mãe; e vemos que o atendimento clínico deve
ser apreendido enquanto um saber, mas isto não dispensa o aprendizado de habilidades que
extrapolam o núcleo duro dos conhecimentos disciplinares. A relação médico-paciente traz
à tona a presença destas habilidades que apontam para uma intervenção que vai além do
corpo anátomo-fisiológico dos pacientes.

Capítulo 1
95
“No século XVIII, a clínica é, portanto, uma figura muito mais complexa do
que um puro e simples conhecimento de casos. E, no entanto, ela não
desempenhou papel específico no conhecimento científico; forma uma
estrutura marginal que se articula com o campo hospitalar sem ter a mesma
configuração que ele; visa à aprendizagem de uma prática que ela resume
mais do que analisa; agrupa toda a experiência em torno dos jogos de um
desvelamento verbal que nada mais é do que sua simples forma de
transmissão, totalmente retardada.

Ora, em alguns anos, os últimos do século, a clínica vai ser


bruscamente reestruturada: separada do contexto teórico em que nascera,
vai receber um campo de aplicação não mais limitado ‘aquele em que se diz
um saber, mas coextensivo ‘aquele que nasce, se experimenta e se realiza:
ela fará corpo com [a] totalidade da experiência médica. Para isso,
entretanto, ainda será preciso que seja armada de novos poderes, separada
da linguagem a partir do que era proferida como lição e libertada por um
movimento de descoberta.” (Foucault, 1980: 70)

Os alunos devem incorporar a prática médica integrando a sua experiência


discente em diversos espaços acadêmicos que passam pedagogicamente a funcionar como
ritos iniciáticos em que se objetiva um corpo manipulável. Deve-se apreender a relação
entre teoria e prática em uma experiência pedagógica pautada por um corpo diretamente
acessível a um olhar que elabora um conhecimento existente no plano da descoberta. Tanto
os espaços curriculares como os extra-curriculares são elementos estruturados na formação
médica, de forma que os alunos apreendam no jogo dos saberes disciplinares o gesto
pedagógico do olhar clínico. Este gesto, apesar de organizado em hierarquias acadêmicas e
profissionais, aponta para uma situação de igualdade em que alunos e professores
encontram-se diante do saber clínico.

“Pelo jogo indefinido das modificações e das repetições, a clínica hospitalar


permite, portanto, colocar de lado o extrínseco. Ora, este mesmo jogo torna
possível a soma do essencial no conhecimento: as variações efetivamente se
anulam, e o efeito de repetição dos fenômenos constantes delineia
espontaneamente as conjunções fundamentais. A verdade, indicando-se ela
própria sob forma repetitiva, indica o caminho que permite adquiri-la. Ela se
dá a conhecer, dando-se a reconhecer (...) A gênese da manifestação da

Capítulo 1
96
verdade é também a gênese do conhecimento da verdade. Não existe,
portanto, diferença de natureza entre a clínica como ciência e a clínica como
pedagogia. Forma-se, assim, um grupo, constituído pelo professor e seus
alunos, em que o ato de reconhecer e o esforço de conhecer se realizam em
um único movimento. A experiência médica, em sua estrutura e em seus dois
aspectos de manifestação e de aquisição, tem agora um sujeito coletivo; não
é mais dividida entre o que sabe e o que ignora; é feita solidariamente por
aquele que descobre e aqueles diante dos quais se descobre. O enunciado é o
mesmo; a doença fala a mesma linguagem a uns e aos outros.” (Foucault,
1980: 125 – grifo nosso)

É no momento em que a Clínica estrutura a experiência médica no cruzamento


das séries (diversidade) com o quadro nosológico (unidade) que um olhar de superfície
começa a construir-se enquanto saber. Outros elementos virão compor os delocamentos
necessários à gênese deste novo olhar, porém destaca-se o fato da experiência pedagógica
permanecer, a partir daí, fundamentalmente ligada ao processo da descoberta. As atividades
extra-curriculares, curiosamente, parecem trabalhar melhor esta noção do que as disciplinas
obrigatórias do curso médico. Faltaria nestas últimas um pouco mais de <<boa vontade>>
para aproximar os alunos de uma experiência eminentemente prática, chamando-lhes a
atenção para elementos não estritamente técnicos que a compõem. Este gesto pedagógico
da descoberta solidária parece não dispensar, mas, pelo contrário, requisitar dos professores
um esforço para levar os alunos pelas mãos experimentadas em uma linguagem comum que
se constrói no atendimento clínico.

Este caminho torna-se, aparentemente, facilitado pelo espaço hospitalar, onde


as séries de doenças são oferecidas abundantemente ao olhar. Mas também é neste espaço
que a hierarquização do fazer mostra-se menos dócil àqueles que dão seus primeiros passos
na arte de curar. Há um número excessivo de alunos por leito hospitalar, os pacientes são
frequentemente tomados meramente como objetos da intervenção médica, além do que
somente a partir dos últimos anos estes alunos poderão assumir progressivamente maiores
responsabilidades em relação ao paciente. Vale lembrar, também, que os plantões
sucessivos acabam por burocratizar a atenção médica elaborada por estes alunos.

Capítulo 1
97
Todos estes fatores são contrabalançados pela presença das ligas e dos
professores com “boa vontade”, responsáveis por oferecer o lugar da coesão entre os
conceitos e os fenômenos enfrentados na prática médica. As adversidades enfrentadas pelos
alunos no curso médico encontram, nos espaços extracurriculares, um lugar onde a unidade
entre a técnica e a arte consolida-se na dimensão prática. Apesar disto tudo, o hospital
ocupa um lugar central na constituição do saber clínico.

“A clínica não é, portanto, esta paisagem mítica em que as doenças


aparecem em si mesmas e absolutamente desveladas; ela permite a
integração, na experiência, da modificação hospitalar sob forma constante.
O que a medicina das espécies chamava natureza mostra-se apenas a
descontinuidade das condições heterogêneas e artificiais; quanto às doenças
<<artificiais>> do hospital, estas autorizam uma redução ao homogêneo do
campo dos acontecimentos patológicos; sem dúvida, o domínio hospitalar
não é pura transparência à verdade; mas a refração que lhe é própria
permite, por sua constância, a análise da verdade (...) Estrutura coletiva do
sujeito da experiência médica; caráter de coleção do campo hospitalar: a
clínica se situa no encontro de dois conjuntos; a experiência que a define
percorre a superfície de seu confronto e de seu recíproco limite. Adquire aí
sua inesgatável riqueza, mas também sua figura suficiente e fechada. É o
recorte do domínio infinito dos acontecimentos pelo entrecruzamento do
olhar e das questões combinadas” (Foucault, 1980: 124 e 125)

O aluno, mais do que aprender um corpo teórico para depois agir sobre a
realidade empírica, deve apreender uma prática profissional em que a distância entre o
abstrato e o concreto é posta na proximidade de uma abordagem direta sobre o corpo
doente. Esta abordagem só é adiada no desenrolar de um currículo que separa e opõe um
ciclo básico, supostamente responsável pelo caráter científico da prática médica, a um ciclo
clínico em que esta prática é evidenciada. Apesar desta disposição curricular, os alunos
devem sempre, e desde o início do curso, descobrir-se médicos!

Capítulo 1
98
Segundo nos coloca Foucault (1980) o ato clínico vem a definir-se, na Clínica
Moderna, por:

- Alternância dos momentos falados e dos momentos percebidos na


observação;

- O esforço para definir uma forma estatutária de correlação entre o olhar e a


linguagem;

- O ideal de uma descrição exaustiva.

Estes princípios indicam um fechamento da clínica para tudo que escape à


possibilidade de estabelecimento de um saber total que busca abarcar a realidade
patológica em sua integridade. Ao lado de uma língua dos cálculos, na qual o grau de
precisão em que se atinge o real repousa na depuração conceitual das palavras, será
proposta substitutivamente uma língua medida, a partir da qual o real é atingido no
momento em que a palavra e o objeto participam de uma mesma natureza. No primeiro
caso, o real é mensurável na regularidade do Direito; no segundo, ele se define pela norma
da Vida – aqui é uma Gramática do Mundo que deve ser descoberta pelo gesto clínico.

“É nesta passagem, exaustiva e sem resíduo, da totalidade do visível à


estrutura de conjunto do enunciável que se realiza finalmente esta análise
significativa do percebido, que a arquitetura ingenuamente geométrica do
quadro não chegava a assegurar. É a descrição, ou melhor, o labor implícito
da linguagem na descrição, que autoriza a transformação do sintoma em
signo, a passagem do doente à doença, o acesso do individual ao conceitual.
E é aí que se estabelece, pelas virtudes espontâneas da descrição, o vínculo
entre o campo aleatório dos acontecimentos patológicos e o domínio
pedagógico no qual estes formulam a ordem de sua verdade. Descrever é
seguir a ordenação das manifestações, mas é seguir também a seqüência
inteligível de sua gênese; é ver e saber ao mesmo tempo, porque dizendo o
que se vê o integramos espontaneamente ao saber; é também ensinar a ver,
na medida em que é dar a chave de uma linguagem que domina o visível. A
língua bem feita (...) não deve portanto ser procurada, como fizeram, com
excessiva pressa, certos médicos, do lado de uma língua dos cálculo; mas, do
lado desta língua medida, que é, ao mesmo tempo a medida das coisas que
ela descreve e da linguagem na qual os descreve. É necessário, portanto,

Capítulo 1
99
substituir o sonho de uma estrutura aritmética da linguagem médica pela
pesquisa de determinada medida interna, feita de fidelidade e de firmeza, de
abertura primeira e absoluta sobre as coisas e de rigor no uso refletido dos
valores semânticos.” (Foucault, 1980: 129)

Esta descoberta da linguagem médica ou da clínica como uma linguagem é


expressa em conflitos próprios à apreensão de um conhecimento prático que toca a vida em
seus elementos concretos. Carla identifica, no enfrentamento destes conflitos, a formulação
de dois elementos que passam a balizar a experiência clínica: a coragem e a sensibilidade.

Assim, temos a coragem e o carisma pessoal que a ajudaram, quando jovem, a


impulsionar sua carreira profissional.

“Não, não demorou muito [a deslanchar a carreira profissional] porque eu


tinha sorte (...) eu tinha carisma. Eu tinha muito carisma. Então eu era
jovem, eu era jovem demais! Eu tinha vinte e quatro anos, pô! Eu tinha um
carisma imenso até com os meus colegas!” [Dra. Carla]

Este carisma e coragem que caracterizaram sua atuação no início de sua carreira
opõem-se à sensibilidade adquirida com a experiência profissional. Sensibilidade clínica
que apura o olhar, cotejando o quadro diagnóstico e terapêutico com um conhecimento
acumulado sobre a própria prática profissional. O saber clínico instaura-se enquanto uma
sensibilidade que se reveste na atemporalidade sustentada pela realidade anátomo-
fisiológica de seu objeto. Porém, esta sensibilidade pode e deve ser “apurada” com o
tempo, consolidando-se na experiência profissional.

É muito interessante a maneira como estes diferentes elementos –


carisma/coragem e sensibilidade/saber – balizam modos diversos de atuação que marcam e
enfatizam aspectos próprios à experiência clínica. De um lado, denota-se um modo
impetuoso e cativante de agir. Por outro, temos uma ação pausada, assentada na prudência
adquirida por um conhecimento acumulado sobre a relação médico-paciente. Por isto
mesmo, é mais plausível tomar estes pares não como elementos excludentes, mas como
pólos que compõem um campo de tensões e atenções em que o fazer-se médico-pediatra é
posto em jogo. Temos uma imagem deste jogo no seguinte episódio, relatado pela Dra.
Carla:

Capítulo 1
100
“Quando eu me formei (...) eu era muito jovem, eu não tinha a sensibilidade
que eu tenho hoje, mas eu era muito impetuosa. Porque o jovem, ele não tem
temor a nada. Eu era muito destemida. Para você ter uma idéia, eu não sabia
de nada de Pediatria, de nada de Pediatria! Eu sabia oxigenar, tirar uma
criança da crise convulsiva. Então o jovem, ele tem menos sensibilidade, ele
tem mais coragem. Eu estava atendendo no pronto-socorro, trabalhando,
fazia uma semana que eu tinha chegado de Recife. Tem um médico aqui em
Campinas que ele, na época, era considerado o melhor médico de Campinas.
O neto dele teve uma crise convulsiva, ele era pediatra. Ele entrou no
hospital, eu peguei o menino, eu era residente... residente não, eu era
médica, mas não tinha nada, peguei... Olha, não sabia quem ele era. Eu vi a
criança convulsionando, tirei ele do pai... do avô dele, que era o avô esse
médico famosíssimo em Campinas... tirei ele do avô dele. Tirei a criança. Eu
tirei! Peguei ele, levei na sala, oxigenei, fiz a medicação nele
anticonvulsivante, fiquei com ele e tratei do menino sem saber quem era. E
esse homem, ele me adorou... ele abriu um monte de caminho pra mim, Ele
falou: ‘Olha, se não fosse você com a sua coragem eu ia perder o meu neto!’.
Falou pra mim. E eu não sabia o que era. Eu, naquela época, eu não tinha a
sensibilidade de hoje saber que ele não tinha a coragem de fazer o que eu fiz
no neto dele! nem um pingo da coragem que eu fiz! Mas eu tive coragem de
ver uma criança convulsionando, tirar dum cara pediatra, famoso em
Campinas, que ele podia me processar se eu fizesse algum procedimento
errado. Tirei, fechei o pronto-socorro, deixei ele na sala, fechei a sala e
fiquei eu com o neto dele e a enfermeira. Olha que coragem! Será que eu
tinha hoje?! Hoje eu não tinha não. Hoje eu não tinha coragem. Antigamente
(...) eu fazia Benzetacil a torto e a direito.” [Dra. Carla]

Entre a razão e a emoção, um corpo de conhecimentos disciplinares coloca-se


em processo de intervenção. A experiência clínica, como vimos, estrutura-se como um
gesto pedagógico em direção ao empírico que está pautado pela idéia de descoberta. Não se
trata de um empirismo ingênuo, tampouco de um racionalismo surdo aos movimentos da
vida. Trata-se de uma experiência em que o gesto pedagógico da Clínica coloca a
sensibilidade médica em jogo, desafiando seus arranjos, ora postos no extremo da
“coragem” juvenil, ora postos no estremo da “prudência” madura. Em ambos os momentos
a Clínica atua sobre o médico e o paciente, organizando as suas percepções sobre o corpo
doente a partir da oposição objetividade (médica) vs subjetividade (paciente).

Capítulo 1
101
É interessante notar como a relação hierárquica existente entre um médico em
início de carreira e outro cuja experiência profissional já se encontra consolidada e
reconhecida passa, no relato da Dra. Carla, pelo lugar da residência médica.

“Ele entrou no hospital, eu peguei o menino, eu era residente... residente


não, eu era médica, mas não tinha nada (...) [Eu] não sabia quem ele era.”
(Dra. Carla)

A residência apareceu na vida profissional da Dra. Carla como um porvir quase


necessário que, no entanto, jamais veio a concretizar-se. Em realidade, o reconhecimento de
sua prática profissional veio pela prova de título, a partir da qual esta médica teve
homologada sua qualidade de especialista.

Não devemos entender, portanto, que o ensino acadêmico, formalmente


reconhecido, da especialidade pediátrica não teve importância na trajetória desta pediatra,
mas que tão somente o peso com que foi requisitado e a forma que veio a tomar em seus
rumos profissionais foi singular. Para os outros entrevistados, a residência apareceu desde
cedo como um caminho a ser traçado em seu desenvolvimento profissional.

1.6. Residência: uma encruzilhada necessária entre o fazer e o aprender?

O caráter terminal do curso de graduação em Medicina encontra-se hoje


fragilizado diante do lugar ocupado pelos programas de residência médica. A residência
aparece, para os entrevistados, como um espaço escolar em que o médico tem sua
autonomia profissional relativisada pela trama de subordinações que compõem o setting
médico. Diante da relação de dependência mantida entre os residentes e seus professores, e
da grande pressão a que estão submetidos estes alunos, o período da residência fornece para
alguns dos entrevistados um momento de confrontação com certos problemas que
estruturam a relação médico-paciente na clinica pediátrica, dos quais sobressai a
incorporação familiar do paciente.

Este médico “em formação” deve desenvolver o quanto antes a sua própria
maneira de conformar a prática clínica, uma prática que será consolidada pela experiência

Capítulo 1
102
profissional posterior, seja aquela elaborada no consultório, seja aquela adquirida nos
diversos serviços ou instituições por que passaram os entrevistados.

Outro ponto relevante abordado pelos entrevistados a respeito da residência


trata do aparente paradoxo existente no fato dos entrevistados apontarem a Medicina como
um trabalho que deve pautar-se prioritariamente pela Clínica Geral, ao mesmo tempo em
que optam por uma especialidade médica. Este paradoxo assenta-se no fato da Pediatria
definir-se como uma prática profissional especializada que se define como uma clínica
geral.

“O pediatra hoje é, em sua maioria, mulher, jovem, trabalha no serviço


público, acumulando também o consultório e, por exemplo, um ou dois
plantões numa clínica particular. Só assim consegue ter um rendimento
melhor. O pediatra é, acima de tudo, um profissional vocacionado, que
gosta de sua profissão. É o pediatra que está na ponta da atenção primária
nos diversos pontos do país. E a despeito das dificuldades, vem difundindo o
soro caseiro, contribuindo para a queda da mortalidade infantil por diarréia
e doenças infecto-contagiosas e respiratórias. Somos generalistas – e muitos
de nós também optam pelas especialidades – que acompanham o indivíduo
desde o final da gravidez até a sua adolescência. Numa consulta pediátrica
hoje fazemos todo o tipo de prevenção e para a qual a Sociedade tem
chamado atenção em sua campanha nacional. Estamos em contato com a
família e ainda conseguimos, apesar de vários pesares, manter o vínculo
médico-paciente. O pediatra ainda é médico de família.” (Freire, 2002.
Grifo nosso)3

3
Esta é uma declaração feita pelo Dr. Lincoln Freire, presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
abordando os resultados da Pesquisa Perfil do Pediatra, encomendada pela Sociedade Brasileira de Pediatria
(SBP) e coordenada pela socióloga Maria Helena Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde
Pública, e pelo Dr. Eduardo Vaz, secretário geral da SBP. Esta entrevista foi obtida no site www.sbp.com.br,
em agosto de 2002.

Capítulo 1
103
É muito significativo que uma entidade pediátrica de extensão nacional exiba,
de modo destacado, em um de seus principais veículos informativos uma declaração que
define a Pediatria como uma “não-especialidade”. Admite-se nesta declaração que o campo
pediátrico é atingido pela partição do olhar médico – afinal “muitos (de nós) também optam
pelas especialidades”, como se a própria Pediatria já não fosse uma especialidade médica –,
porém, isto não deve ameaçar a delimitação com que a Pediatria melhor se identifica, qual
seja, a da Clínica Geral.

É importante notar a impossibilidade desta crescente especialização da


formação pediátrica concretizar-se sem que a organização das práticas pediátricas conduza
a um conseqüente processo de fragmentação do foco de ação médica. No entanto, o
processo de subespecialização do campo pediátrico não impede que o pediatra identifique-
se antes como um “generalista” que acompanha o indivíduo desde a sua gestação até a sua
maturidade. Durante este acompanhamento, o pediatra encontra-se em contato (direto) com
a família de seu paciente, o que parece facilitar a construção de uma boa relação médico-
paciente, localizada como um dos aspectos mais importantes de sua prática profissional.

Em pesquisa recentemente realizada sobre o perfil do pediatra brasileiro4


(Freire e Machado, 2002) encontramos que cerca de 75% dos respondentes possuem
residência em Pediatria, 42% realizaram curso de especialização e 70% possuem título de
especialista na área. Isto mostra como a regulamentação atual do ensino e da prática
pediátrica aponta para o reconhecimento da prática profissional “especializada” como um
passo importante para a consolidação da carreira médica.

Em um relatório da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP),


referente a um seminário realizado sobre os “Requisitos Mínimos de um Programa de
Residência Médica: Competências em Pediatria”, podemos ver o seguinte retrato da
situação do ensino médico no Brasil:

4
O universo estudado nesta pesquisa é representado pelo conjunto de pediatras em atividade, projetado a
partir do banco de dados da Pesquisa Perfil dos Médicos no Brasil (Fiocruz/CFM – MS/PNUD, 1996), do
Cadastro Nestlé/Pediatria e Cadastro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Trabalhou-se em 1999 e
2000 com uma amostra de 1.700 profissionais, com índice de 60% de devolução de questionários.

Capítulo 1
104
“A medicina caracteriza-se hoje por uma tendência calcada no modelo
biomédico, com grande inspiração cartesiana e de cunho fundamentalmente
organicista. Não se contempla o caráter social do ser humano, separa-se
mente e corpo e fragmenta-se o corpo em sistemas e órgãos, perdendo-se a
visão global do indivíduo. O resultado é desastroso: medicalização intensa
(para cada sintoma, um remédio) e ruptura progressiva do vínculo médico-
paciente, com consequente desumanização da medicina. A pediatria,
consciente dessa tendência desfavorável, tem enfatizado, na teoria e na
prática, a necessidade da atenção global à criança, para que a medicina
resgate a sua dimensão humana, dentro dos mais elevados princípios éticos e
morais. Estes princípios devem ter como base o fato de que o ser humano é
um todo indivisível do ponto de vista biopsicossocial. Assim, as ações
preventivas e curativas devem contemplar, a um só tempo, esses três
aspectos, para que a assistência à criança, na saúde e na doença, assuma
realmente um caráter holístico.” (FUNDAP, 1991: 11)

A afirmação da necessidade de efetivar-se um modelo de atenção à saúde que


contemple o ser humano em sua integralidade, tanto na rede assistencial, quanto nas
instituições de ensino, não é novidade. Em realidade, particularmente no caso do ensino
médico, muitas foram as propostas de mudanças na prática de ensino que redundaram em
sucessivas reformas que pouco alteraram os modelos vigentes de atenção à saúde, em seus
fundamentos disciplinares.

A afirmação da medicina preventiva, da medicina integral, da medicina


comunitária, entre outras, trouxe contribuições importantes para o modo de pensar a
organização do ensino e das práticas em saúde, associando-se às estratégias de integração
docente-assistencial, de estágio comunitário, de aproximação com disciplinas próprias ao
campo das ciências humanas. No entanto, na medida em que a estruturação do ensino
associa-se de modo íntimo à estruturação do saber clínico, organizando em torno da
objetivação do corpo doente conhecimentos disciplinares fragmentados, a adoção destas
estratégias parece não deslocar a perspectiva biomédica sustentada no paradigma
mecanicista que envolve a ação médica. A assimilação das ciências humanas no curso
médico, mesmo quando preconizada por diversas reformas curriculares, permanece
periférica na formação do olhar médico. Talvez seja este um fator invariante que não é
abordado nas diversas propostas de reformas do ensino médico.
Capítulo 1
105
Em um estudo, realizado por Christakis (1995), procurou-se identificar os
programas e valores presentes nos maiores relatórios elaborados sobre o ensino médico, em
nível de graduação, publicados entre 1910 e 1993, nos Estados Unidos, onde foram
formuladas diversas propostas de reformas curriculares. Identificou-se, de forma geral,
nestes relatórios a forte defesa da escola médica como uma instituição “a serviço da
sociedade”.

Os principais objetivos das reformas estudadas seriam: servir melhor ao


interesse público; atender às necessidades da força de trabalho médico; cooperar com o
desenvolvimento do conhecimento médico; aumentar a ênfase na medicina generalista.

Assim, temos que as reformas sugeriram mudanças no modelo de ensino que


alterassem sua forma e conteúdo no sentido de: aumentar o treinamento do generalista,
especialmente, em nível ambulatorial; incentivar a presença de disciplinas de Ciências
Sociais; estimular o estudo contínuo e o auto-didatismo; premiar o exercício da docência;
definir de modo mais claro a missão da escola e; finalmente, centralizar seu currículo,
integrando suas etapas de maneira mais orgânica.

Conclui-se neste artigo que a similaridade nos objetivos dos relatórios não
resulta apenas de um mesmo corpo de problemas, mas, também, da reafirmação de valores
idênticos. Segundo o autor, os relatórios têm duas preocupações implícitas que transcendem
a reforma do ensino médico e ajudam a explicar suas similaridades: a afirmação da natureza
social da profissão médica e a regulação da profissão.

Foram lançadas três hipóteses explicativas para justificar a maneira recorrente


com que estas reformas apontam para as mesmas questões e soluções, sem que haja uma
mudança substancial nos problemas enfrentados no ensino médico5:

1. Os problemas enfrentados pela educação médica são inerentemente à sua


estrutura;

2. Os esforços para propor e realizar as reformas foram inadequados;

5
Sobre este ponto, também, mostra ser interessante a leitura do artigo de Blomm (1990) em que este autor
propõe, inquietantemente, que as reformas curriculares elaboradas nas escolas médicas existentes nos Estados
Unidos trataram de efetivar, inexoravelmente, em seu conjunto, uma “reforma sem mudança”.

Capítulo 1
106
3. Importantes propostas de reforma podem motivar a promulgação dos
relatórios sem que mudanças efetivas venham a ser desejadas num cenário
em que a pesquisa (e não o ensino) é legitimada socialmente.

Certamente, cada uma destas justificativas são relevantes para explicar, ao


menos em parte, as dificuldades enfrentadas por estas sucessivas reformas curriculares. No
entanto, na medida em que o saber clínico conduz a ação médica em direção a um objeto de
trabalho fragmentado, o qual deve ser encontrado no plano da descoberta, acreditamos que
estamos diante sim de um problema inerente à estrutura do ensino e da prática médica. A
contradição presente no fato do olhar clínico elaborar uma “visão totalizadora” sobre um
“corpo fragmentado” provavelmente continuará a desafiar aqueles que pretendem propor
um novo objeto de trabalho médico e, consequesntemente, uma reorganização do ensino e
da prática próprios a este campo profissional. Para tal, torna-se necessária uma ruptura com
o “núcleo duro” de conhecimentos disciplinares que conformam o campo médico,
formulando-se, então, um saber clínico que se insira dentro de um novo paradigma
científico.

A polêmica gerada em torno do objeto de trabalho da prática médica, quando


remetida às discussões estabelecidas em torno da organização dos programas de residência,
põe em jogo os limites existentes entre a assistência compreendida como ato pedagógico e
o trabalho tomado como ato gerador de riquezas.

“O mais difícil eu acho que é a... tentar separar o que é o assistente, o que é
a assistência daquilo que é de ensino. Se fosse possível levar as duas coisas
seria muito bom, mas na instituição hoje é difícil. E hoje os residentes
cobram como se o ensino estivesse muito distante ainda ou a assistência
muito próxima. Em pouco espaço de tempo (...) já tentamos aplicar modelos
diferentes e, mesmo assim, nenhum ainda se encaixou (...) Então, em termos
do próprio ensino hoje, uma das grandes dificuldades que se tem, que é
talvez o grande drama hoje até pro médico pediatra, é que não se reconhece
a especialização. Então, ela, não é reconhecida a especialização de
Oncoematologia. E, se nós conseguirmos caminhar nessa direção, a gente
provavelmente vai ter reconhecimento das sociedades de especialização
desta especialização de oncoematologia (...) Então isso é uma coisa que, com
certeza na cabeça de quem está fazendo especialização, é uma coisa terrível

Capítulo 1
107
porque ele sabe que no final dos três anos que ele está aqui ele tem uma
especialidade, todo mundo reconhece o que ele fez aqui, mas que no papel
não é reconhecido pelo MEC. Então ele sabe que eventualmente se surgir
alguém que consiga esse reconhecimento, ele teria teoricamente mais pontos
aí na frente (...) Então isso também gera muita angústia. Até talvez seja por
isso que se tenta barganhar tanto aí em termos de carga horária (...) de
dedicação, [que] se tornam quase que obrigatórias pra eles em termos de
cobrança (...) Na realidade, a Sociedade Brasileira de Pediatria junto com a
Associação Médica Brasileira (...) que creditam hoje à Pediatria [que] a
única especialização do pediatra seria ser pediatra. O que existe agora, já
está começando a ter, é uma certificação que eles chamam ‘habilitação’ em
determinadas áreas. Mas, especificamente na área de Oncoematologia,
ainda não existe. Então, por exemplo, já existe habilitação em Terapia
Intensiva, já existe habilitação em Pneumologia, já existe habilitação em
Neonatologia, já são sub-especialidades mais específicas, e Oncologia, como
é um programa que tem facetas diferentes em diferentes instituições, não tem
ainda uma creditação como as outras.”[Dr. Marco]

<<Separar o que é o assistente... a assistência... daquilo que é de ensino>>


parece algo difícil de ser efetivado pelos residentes, de acordo com o Dr. Marco. Uma
resposta à ambigüidade existente entre o ensino e o trabalho médico, fundidos no mesmo
plano da descoberta, será dada através da formalização de um curso reconhecido pelos
órgãos responsáveis por regular o ensino e a prática médica. Porém, como já vimos, a
oficialização do ensino voltado para a especialização toma um tom dramático numa
especialidade que se quer geral, mas que não deixa de acompanhar um movimento mais
amplo da organização da prática médica.

Merece, ainda, uma atenção especial, a maneira como as noções de


<<assistente>> e de <<assistência>> parecem confundir-se quando remetidas ao
<<ensino>> estruturado nos programas de residência médica. Entre a assistência e o
assistente parece haver um deslize de sentido que incomoda, especialmente, na medida em
que fragiliza a relação solidária imposta pelo saber clínico entre aquele que descobre
(professor) e aqueles diante dos quais se descobre (alunos).

Capítulo 1
108
Podemos depreender das colocações feitas pelo Dr. Marco que os residentes
deveriam ser inseridos em uma prática médica que não se ocupasse somente com a
reprodução da assistência, mas que priorizasse a incorporação de uma experiência clínica
que gere autonomia profissional. Porém, no período da residência esta experiência parece
ser limitada pela forte relação de dependência existente entre o aluno e o professor.

Diante desta ambigüidade existente entre a “assistência” e o “assistente”


podemos dizer que o residente “assiste” algo (a doença/ a prática médica), ao mesmo tempo
em que “assiste” (à) alguém (o paciente/o especialista) e, finalmente, é “assistido” por
alguém (o professor/preceptor/tutor). Neste sentido, há uma certa similaridade entre a
relação instaurada entre médico e paciente, e aquela que se estabelece entre o professor e o
aluno. Em ambos casos, a prática médica insere-se em uma trama de subordinações através
da qual o saber clínico instrumentaliza e autoriza aquele que o detém a intervir sobre seu
objeto de trabalho – o corpo doente (paciente), o corpo de conhecimentos (discente).
Também, em ambos os casos, esta mesma prática médica defronta-se com diversos
elementos da vida que extrapolam seu objeto de trabalho, jogando para o plano restrito das
“subjetividades” tudo aquilo que escapa ao seu olhar objetivo.

Assim, a tensão <<assistente/aluno>> presente na residência médica deságua,


de modo não declarado, em conflitos e disputas presentes entre os residentes, que passam a
barganhar entre si horas de trabalho/aprendizado. Da mesma forma, os problemas da prática
médica, vivenciados na residência, são tratados unicamente como uma questão de
regulação do ensino. Assim, vemos como o Dr. Marco preocupa-se bastante com o fato do
ensino de algumas especialidades pediátricas ser requerido pelo mercado de trabalho
médico, ao mesmo tempo em que muitas destas especialidades continuam sem um currículo
totalmente regulamentado e reconhecido oficialmente. Isto torna-se tanto mais grave para a
carreira destes residentes quanto forem maiores as flutuações do mercado de trabalho que
eles terão de enfrentar na sua vida profissional.

A subespecialização pediátrica traz em grau superlativo uma contradição que


afeta a Medicina como um todo – a objetivação do corpo doente está implicada na partição
dos conhecimentos disciplinares, assim como requisita a fragmentação dos fazeres.

Capítulo 1
109
Podemos observar a força com que as subespecialidades estão presentes no campo
pediátrico ao atentarmos para a maneira como os cursos de residência estão estruturados.

“Os objetivos primordiais da residência médica na especialidade devem,


assim, voltar-se à formação do pediatra geral e possibilitar, após o
treinamento básico, a seleção de uma subespecialidade pediátrica, a ser
desenvolvida no terceiro ano de residência, com estágio de complementação
especializada. O programa de residência básica deve priorizar estágios em
nível de atenção primária e secundária, como atividades em centros de
saúde, ambulatórios gerais, pronto-atendimento, enfermarias gerais e
serviço de neonatologia, complementando-os com estágios em
subespecialidades pediátricas, em nível de atenção terciária, incluindo
terapia intensiva e semi-intensiva.” (FUNDAP, 1991: 11 – Grifos nossos)

Vemos como a escolha de uma subespecialidade passa a ser tomada


praticamente como um caminho natural, um passo subseqüente ao da formação básica
numa especialidade médica que se reconhece na doutrina da atenção integral expressa na
figura da Clínica Geral. Porém, a Sociedade Brasileira de Pediatria credita que:

<<A única especialização do pediatra seria ser pediatra>>

Se contabilizarmos as áreas de concentração ou de subespecialização presentes


somente em uma instituição de ensino que oferece no terceiro ano de residência
Especialização Complementar em:

- Pediatria – Ambulatório Geral;

- Pediatria – Endocrinologia Pediátrica;

- Pediatria – Reumatologia Pediátrica;

- Pediatria – Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição;

- Pediatria – Urgências e Emergências em Pediatria;

- Pediatria – Enfermaria de Pediatria;

Capítulo 1
110
- Pediatria – Imunologia-Alergia e Pneumonologia Pediátrica;

- Pediatria – Onco-Hematologia Pediátrica;

- Pediatria – Neonatologia;

- Pediatria – Pediatria Social;

- Pediatria – Nefrologia Pediátrica;

- Pediatria – Terapia Intensiva Pediátrica;

- Pediatria – Adolescência.

Podemos notar que não só as especialidades pediátricas acompanham o


movimento geral das especialidades médicas, assim como soma a estas algumas outras,
como a Neonatologia e, mais recentemente, a Pediatria da Adolescência ou Medicina do
Adolescente.6 Fica fácil percebermos como as especialidades médicas circunscrevem-se,
em sua maior parte, quer por unidades e setores da rede assistencial (ambulatório, terapia
intensiva....), quer por conhecimentos específicos organizados em torno de órgãos ou
sistemas do corpo humano (nefrologia, imunologia...).

Na oposição “especialidade” versus “clínica geral” a atenção integral à criança


é pensada como sendo o resultado de uma conjunção de olhares fragmentados que devem
complementar-se no sentido de atingir plenamente o “corpo infantil”. Assim, se a
organização social das práticas profissionais presentes na Medicina e, por extensão, na
Pediatria, implica na fragmentação dos fazeres e na partição dos conhecimentos
disciplinares, espacializados na segmentação do corpo doente, então, em contrapartida, a

6
“Acaba de ser firmado um convênio entre o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica
Brasileira (AMB) e a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) que institui a Comissão Mista de
Especialidades e reconhece as Especialidades Médicas e as Áreas de Atuação da Medicina. A resolução
CFM n. 1.634/2002 traz uma grande conquista para os pediatras, fruto da luta da SBP: a aprovação da
Adolescência como Área de Atuação exclusiva da pediatria – decisão que já havia sido tomada pela AMB.
Ficam assim definidas como Áreas de Atuação da Pediatria: Alergia e Imunologia Pediátrica, Cardiologia
Pediátrica, Endocrinologia Pediátrica, Gastrologia Pediátrica, Hematologia e Hemoterapia Pediátrica,
Infectologia Pediátrica, Medicina do Adolescente, Medicina Intensiva Neonatal, Medicina Intensiva
Pediátrica, Nefrologia Pediátrica, Neonatologia, Neurologia Pediátrica, Nutrologia Pediátrica, Oncologia
Pediátrica, Pediatria Preventiva e Social, Pneumologia Pediátrica, e Reumatologia Pediátrica.” Nota da
Sociedade Brasileira de Pediatria emitida em seu site oficial (www.sbp.com.br) em 13/08/02. Grifo nosso.

Capítulo 1
111
formação do pediatra deve permitir a este profissional um trânsito seguro tanto pela clínica
geral quanto pelas diversas (sub) especialidades pediátricas, de forma que seja integrado à
clínica pediátrica um objeto de trabalho que articule as dimensões bio-psico-sociais dos
pacientes.

É claro que esta solução esbarra em seus limites óbvios, na medida em que a
adição progressiva de olhares especializados conduz, dentre outros fatores, a um certo
efeito “Frankstein” que não rompe fundamentalmente com a partição do objeto de trabalho
do saber clínico.

Vemos como a disjunção pediatria/pediatrias acaba por fortalecer o ideal da


atenção integral à criança, ainda que esta permaneça como um foco irremediavelmente
adiado na prática clínica. Em realidade, este aparente fracasso da consolidação da doutrina
da atenção integral anda de mão dadas com o sucesso de um outro ideal abraçado na prática
médica, segundo o qual acredita-se que ao alcançar um conhecimento “integral” sobre a
doença a experiência do doente é “totalizada” pela ação médica.

O ideal de um saber totalizador só é deslocado quando a Pediatria toma a


criança para além dos seus conhecimentos disciplinares, encontrando-a nas tramas
familiares que definem sua realidade específica. Ao corpo doente (biomédico) sobrepõe-se
um corpo infantil (familiar); ambos ligam-se ao ponto imaginário da totalidade sem restos.

“Recomendou-se, ainda, tendo em vista o objetivo de formar o pediatra geral


e aprofundar a visão global de atenção à criança, que os programas se
utilizem, sempre que possível, do trabalho em equipe multi-profissional, com
a participação do médico, da enfermeira, da assistente social, da
nutricionista, da psicóloga, da terapêuta ocupacional e da fisioterapêuta,
entre outros. Que incrementem o intercâmbio entre serviços, para suprir
deficiências, e as discussões formais dos casos clínicos, para aprimoramento
do raciocínio clínico. Que incentivem os programas da mãe-participante,
facilitando a presença dos pais no acompanhamento da criança internada.”
(FUNDAP, 1991: 11)

Capítulo 1
112
Não é por acaso que a equipe multiprofissional, responsável por tecer uma
visão global sobre a criança, seja composta, à exceção do médico, pelo gênero feminino: a
enfermeira, a assistente social, a terapeuta...

Não obstante o fato destas profissões serem tradicionalmente femininas, não


podemos esquecer que o processo de feminilização da Medicina já é corrente há algum
tempo e acentua-se sobremaneira na especialidade pediátrica. O importante aqui é vermos
como a presença feminina aparece com uma força espantosa na construção de um cuidado
integral da criança.

Na verdade, não deveria haver espanto algum, afinal não é a mulher-mãe a


cuidadora natural das crianças-filhos?

A existência de “Programas da Mãe-Participante” a serem assimilados na


prática médica como um caminho (natural) para o estabelecimento da atenção integral
oferece pontos de reflexão importantes sobre a questão do cuidado especializado vs cuidado
leigo.

Afinal a idéia de “Mãe-Participante” oferece a possibilidade de múltiplos


implícitos, sendo um dos primeiros a idéia de “Mãe-Não Participante”. Restaria
perguntarmo-nos sobre qual participação estamos tratando: na educação da criança, no seu
cuidado, na atenção à sua saúde, na busca de uma assistência aos seus problemas de saúde,
na sua medicalização, na consulta médica, na anamnese pediátrica? Ou simplesmente e, de
modo geral, na vida da criança?

Devemos lembrar que uma malha institucional é construída para que a criança
ganhe uma realidade integralmente assistida: equipes multiprofissionais, especialistas
divididos em níveis assistenciais e preocupados em compreender os mínimos detalhes do
corpo doente, associações que lutam para regulamentar a assistência dada às crianças,
instituições de ensino que pouco a pouco vão consagrando e estimulando um movimento de
especialização inerente à prática médica contemporânea. Esta malha institucional tratará de
definir os limites existentes entre o ponto de vista técnico e o ponto de vista leigo lançado
sobre o cuidado dirigido às crianças.

Capítulo 1
113
Portanto, ainda que a inclusão do cuidado leigo (familiar) no setting médico
seja preconizada por diversos integrantes desta malha institucional, esta incorporação dos
cuidadores “leigos” das crianças deverá ser pontuada por uma posição assertiva de seus
cuidadores “técnicos”. Assim,

“os estabelecimentos de atendimento à saúde deverão proporcionar


condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou
responsável, nos casos de internação de criança ou adolescente” (ECA,
1990, art. 12)

Porém,

“cada vez que uma criança estiver sendo examinada, tratada ou sob os
cuidados médicos de um profissional qualificado, e caso, na opinião deste, a
criança precisar de atendimento urgente e os pais ou tutor jurídico do menor
se negarem a dar seu consentimento, o médico deverá comunicar
imediatamente o fato ao Juizado de Menores ou ao tribunal da comarca com
jurisdição juvenil. O juiz de menores ou o tribunal da comarca com
jurisdição juvenil deverá imediatamente nomear um tutor ad litem, que
representará os interesses da criança em todos os procedimentos legais
seguintes (...) O juiz decidirá, baseado no testemunho médico e em qualquer
outro testemunho relevante e no melhor interesse da criança, se o tribunal
será a favor da realização do tratamento.” (Carta de Direitos da Pediatria,
1975, art. 9 apud Gauderer, 1998)7

Entre o pediatra e os pais das crianças parece interpor-se a distância existente


entre a razão e a emoção, de maneira que a incorporação familiar da criança no setting
médico deve gerar uma disciplinarização deste “corpo familiar”, dentre outros fatores,
através da regulação institucional do papel social de cuidador.

Porém, devemos lembrar que a assertividade da Medicina apóia-se em um saber


clínico que não se coloca inteiramente no plano cartesiano dos cálculos matemáticos, nem
tampouco se funda como um puro conhecimento interpretativo da realidade. Por isto
mesmo, a Pediatria lida de modo ambíguo com a certeza da razão e a incerteza da emoção
ao formular um cuidado especializado em oposição ao cuidado leigo das crianças,

7
Em que pese o fato desta carta ter sido elaborada por entidades hospitalares dos EUA, em meados da década
de 70, não deixa de ser relevante para este trabalho o visível movimento de regulação jurídica dos limites
existentes entre o cuidado leigo e técnico voltado para as crianças.

Capítulo 1
114
enredando-se em movimentos de aproximação e de afastamento quanto às tramas familiares
de seus pacientes.

Quando a Pediatria procura organizar a sua prática assistencial em diversas


especialidades médicas, ao mesmo tempo em que se identifica com o ideal da “Clínica
Geral”, ela busca abarcar a integralidade infantil apoiando-se em sua “jurisdição”
especializada sobre os cuidados necessários a cada fase do desenvolvimento infantil. Esta
noção de desenvolvimento infantil confere uma certa coesão ao olhar pediátrico, ao mesmo
tempo em que chama a atenção para as diversas realidades experimentadas por cada criança
em sua vida familiar. Neste sentido, a prática clínico-pediátrica experimenta um duplo
movimento (pendular), tanto em direção a uma deriva racionalista pautada pelo ideal da
unidade (figura do Direito) quanto em direção a uma deriva empiriscista pautada pela
evidência da diversidade (figura da Vida).

É na prática assistencial que a Pediatria experimenta a tensão existente entre a


razão e a desrazão de sua doutrina, envolvendo-se no manto da visão global (atenção
integral), o qual é, por sua vez, fortalecido pela concretização das ações complementares.
Mas é exatamente na busca de uma visão totalizadora sobre seu objeto de trabalho que a
prática pediátrica defronta-se com seu próprio limite.

“Que incrementem o intercâmbio entre serviços, para suprir deficiências, e


as discussões formais dos casos clínicos, para aprimoramento do raciocínio
clínico.”

Esta especialidade médica define-se prioritariamente como uma prática clínica


pautada pela atenção integral à criança. É sob esta perspectiva que a atenção pediátrica
deve cogitar o feto e acompanhar a criança até sua fase “terminal”, a adolescência.

O núcleo central que organiza a atuação médica – o corpo doente – permanece


o mesmo, seja ele circunscrito pela Clínica Geral ou pelas áreas especializadas da
Medicina. Porém, admiti-lo como o grande objeto de trabalho da especialidade pediátrica
será tarefa desconfortante para muitos profissionais que nela atuam.

Capítulo 1
115
Por isto mesmo o processo de especialização que atinge a Pediatria parece atuar
por um contexto que permanece externo a esta especialidade médica. Se as
subespecialidades, de um lado, chamam a atenção para a força central do <<corpo
doente>> como elemento organizador da ação médica, de outro lado, o “núcleo duro” do
campo pediátrico é preferencialmente identificado no ideal da Clínica Geral. Podemos ver
isto quando atentamos para a formulação <<muitos de nós também optam pelas
especialidades>>, onde as especialidades parecem existir fora e para além da Pediatria,
acoplando-se a uma prática não especializada que, no máximo, tem alterada a sua
configuração geral, mas não seu núcleo central (doutrina).

Esta acoplagem deveria ocorrer de maneira a não enfatizar ainda mais a


situação dúbia vivida por esta especialidade que se reconhece, antes como uma não-
especialidade. Assim, se a impossibilidade efetiva de coadunar estas duas posições torna-se
evidente, o incômodo a ela associado leva a Pediatria a tentar contornar esta situação
lembrando que a doutrina pediátrica deve impor-se, desde cima, sobre qualquer divisão
interna.

Em realidade, a Pediatria lida de modo ambíguo com suas divisões internas,


revelando um certo incômodo com o efeito fragmentador que a partição dos saberes
médicos realiza na organização social das práticas existentes no interior desta
especialidade.

Outro ponto interessante para pensarmos esta situação conflitiva da Pediatria


pode ser observado no fato de seus profissionais inserirem-se preponderantemente na rede
básica de atenção à saúde, onde assumem uma relação ambígua entre as linhas de ação
ditadas pela Clínica e aquelas preconizadas pela Saúde Pública. As vacinas, os soros, mas
também as doenças infecto-contagiosas e respiratórias devem integrar a lista de
preocupações dos pediatras. O pediatra, talvez mais do que qualquer outro profissional de
saúde, deve organizar a ação médica voltada à intervenção individual sem perder de vista a
dimensão coletiva da saúde populacional e o caráter social do processo saúde-doença.

Capítulo 1
116
A oscilação entre uma prática pautada tanto pela Clínica, quanto pela Saúde
Pública, pode ser observada na tentativa de se definir o lugar ocupado pela Pediatria Social
no campo pediátrico.

“Marciaux (1995) situa a pediatria social como a parte da saúde pública que
diz respeito à criança e não como um ramo da pediatria, uma vez que lida
com a saúde de determinados grupos de toda a população e representa o
ponto de encontro de várias disciplinas que contribuem, interativamente,
para a saúde desses grupos como um todo (...) Para Marciaux, na Europa,
não há consenso sobre o conceito de pediatria social, pois alguns autores
trazem definições muito específicas ou parciais. Argumenta que a abordagem
mais apropriada deve concentrá-la no campo das atividades pertencentes à
saúde, cuidado e bem-estar da criança (...) Citando Robert Debré: ‘Pediatria
Social não é uma especialidade, ela é um estado de espírito’ (Debré, 1963,
apud Marciaux, 1995:3) (...) [Porém] Concluindo que a pediatria social se
situa no ponto de encontro da epidemiologia e da estatística, das ciências
clínicas e das ciências humanas, também sendo relevante para o
desenvolvimento psicossocial, o autor [Marciaux] pensa que, a exemplo da
geriatria social, que evoluiu para a gerontologia, talvez também a pediatria
social possa vir a ser uma pedontology.” (Zanolli & Merhy, 2001: 984)

De todo modo, em ambos os casos, ainda é o corpo doente que organiza a ação
médica, seja ela preventiva ou curativa. É na importância dada pelos pediatras à relação
médico-paciente que poderemos ver um elemento surgir de maneira insidiosa nesta
especialidade médica, apontando para a intervenção sobre o corpo infantil – a Pediatria é
uma Medicina que se constitui no espaço familiar!

Para além de uma retórica pautada pelas oscilações presentes nas políticas de
financiamento público dos serviços de saúde atualmente vigentes (Programa Saúde da
Família, Internação Domiciliar...), em que a “família” aparece como a tônica do momento,
a Pediatria requisita o espaço familiar como local próprio ao estabelecimento daquele
acompanhamento e dimensionamento do ser em desenvolvimento que é a criança.

Capítulo 1
117
1.7. O campo pediátrico em busca de um objeto de trabalho

“A Pediatria, como especialidade médica, surge no final do século XVIII, no


rastro das modificações sócio-culturais próprias da Modernidade e das
Luzes. Não foi possível pensar uma especialidade médica para as crianças
sem que estas tivessem um estatuto que lhes desse um lugar social
específico.” (Rivorêdo, 1998: 38)

A pediatria surge de uma polêmica estabelecida entre a defesa da delimitação


de um campo de atuação profissional específico no atendimento clínico voltado para as
crianças, e a defesa do atendimento clínico voltado para pacientes de qualquer faixa etária.
No primeiro caso, os argumentos em defesa desta especialidade médica eram legitimados
pelo estatuto social específico da infância. No segundo caso, os argumentos em favor da
clínica geral apoiavam-se no caráter comum apresentado pelo corpo anátomo-fisiológico de
adultos e crianças.

Esta polêmica foi possibilitada pelo surgimento de pensamentos sustentados na


construção do chamado setor social, elemento próprio da modernidade dos Estados
Nacionais. Pensamentos, como a eugenia, o higienismo, a pedagogia moderna, a medicina
social e a puericultura apostavam na regulação da vida social pela ação intervencionista do
Estado.8

Um dos grandes temas formulados neste processo de regulação da vida social,


pelo menos aquele que mais interessa à construção do campo pediátrico, é o da
<<conservação das crianças>>. Antes de examinar a gama de preocupações que veio a
resultar na produção de uma rede institucional de especialistas em torno das crianças, vale
lembrar algumas questões colocadas para a prática pediátrica moderna.

8
“Foi nesse mesmo contexto que também a saúde da população passou a ser apreciada como questão social
de importância estratégica para as políticas de Estado. A frágil situação da infância passou a ser associada
tanto à necessidade de estimular o crescimento populacional quanto à nova divisão social. Quando a
infância passou a ocupar posição destacada no novo discurso burguês que era, ao mesmo tempo, legislador,
ético e pedagógico, a medicina não permaneceu alheia ao processo. Novas regras e normas foram
institucionalizadas pela medicina e pela pedagogia, com o objetivo de disciplinar o relacionamento dos
adultos com as crianças. Foi em meio à ampla transformação experimentada pela medicina no século XVIII
que ocorreu a tentativa, bem sucedida, de carrear para o seu interior práticas sociais que, até então, apenas
parcialmente a integravam. De modo gradativo, as crianças pequenas e suas mães passariam a ser alvos
prioritários da medicina.” (Marques, 2000: 27-8)

Capítulo 1
118
Em primeiro lugar, a criança é apanhada pelo pediatra no seu vir-a-ser adulto,
ou seja, no seu devir orgânico, emocional, cognitivo. Assim, a pediatria toma a criança em
seus aspectos anatômicos, fisiológicos e mentais, especialmente a partir da idéia de
desenvolvimento.

“Alguém já falou assim do pediatra: ‘Atender criança é igual a consertar um


carro em movimen... andando’. Porque é um ser que não é o mesmo, então,
isso é uma característica muito diferente. Não está estável, assim como você
começar a atender um idoso que vai perdendo habilidades. São as duas
pontas que trazem uma dificuldade que merece uma atenção e um
conhecimento especial. A fase de adulto-jovem, de vinte e pouco até os
quarenta e pouco, é uma fase de relativa estabilidade, não há muita
mudança, nem fisiológica...” [Dra. Cristina]

A imagem do carro em movimento, para além de um paradigma mecanicista do


modelo biomédico (Capra, 1982), aponta para uma característica da clínica pediátrica, ao
chamar atenção para o crescimento e desenvolvimento infantis. Corpo e mente
desenvolvendo-se neste ser em formação colocam para o pediatra um desafio – o de
responsabilizar-se, junto aos pais das crianças, pela condução adequada deste processo.

A criança desenvolve habilidades e adquire capacidades postas num continuum


delineado pelo conceito de normalidade. Toda criança é comparável com outras crianças a
partir do estabelecimento de certos padrões de normalidade estatística que falam sobre sua
constituição anatômica, fisiológica, psicológica.

Assim, se as crianças são diferentes entre si, elas são comparáveis em suas
diferenças; ainda, se elas não são as mesmas durante o processo de crescimento e
desenvolvimento, continuam sendo seres frágeis que requisitam cuidados especiais.

“Qualquer agravo, de qualquer ordem, interfere no crescimento e


desenvolvimento. A insistência e a importância (...) de avaliação de
crescimento e desenvolvimento da criança, inclusive para avaliar o agravo
(...) é fundamental. Por isso que quando eu vejo a mãe ou a família entrar, eu
já estou querendo, eu já estou vendo tudo, quem que carrega, quem não
carrega, como carrega, como... Porque? Porque essa informação é
importante até para eu pensar a doença concreta, lá, a bactéria que a

Capítulo 1
119
criança tem. Então, isso faz parte da minha avaliação, porque aí eu vou ver
o quanto que isso está interferindo ou não. Então, crescimento e
desenvolvimento é uma coisa fundamental, eu estou sempre avaliando isso,
porque eu sei que tudo está mexendo, nesse eixo.” [Dra. Cristina]

A fragilidade do corpo infantil encontra seus contornos anátomo-fiosiológicos


redimensionados no espaço familiar, onde se consubstanciam as relações morais,
nutricionais, emotivas, entre outras, que compõem a realidade do crescimento e
desenvolvimento das crianças.

Assim, entre a <<doença concreta>> e o <<processo de desenvolvimento


infantil>> ergue-se um eixo em torno do qual se organiza um campo de interferências entre
uma ótica clínica “biomédica” e uma ótica clínica tocada pelo imaginário da
vulnerabilidade infantil.

Se este “campo de interferências” funda-se na tensão existente entre o corpo


doente e o corpo infantil, a partir da qual a prática pediátrica defronta-se com a contradição
na definição de seu objeto de trabalho, no entanto, a intervenção pediátrica não abre mão do
ideal posto pelo olhar clínico totalizador que abrange completamente a realidade
investigada.

Deste modo, a diversidade encontrada nas diferentes crianças é tomada pela


unidade do ser em desenvolvimento (afinal “tudo” ou “o todo” gira neste eixo), ao mesmo
tempo em que as diferenças de idade, tamanho, comportamento e estado fisiológico destes
seres frágeis são dispostas no espaço da linearidade lógica (estatística) da racionalidade
clínica. A tomada pediátrica do corpo infantil opera, assim, um “fechamento” para qualquer
realidade que não se adeqüe ao espaço lógico-linear próprio ao saber da Clínica.

Rivorêdo (1998) chama a nossa atenção para os processos de idealizações


ocorridos nesta apreensão lógica da infância, em que o olhar médico toma a criança em seu
vir-a-ser:

“Parece-me que o discurso da Puericultura é emblemático da confusão que


a Medicina faz entre objeto e fim. Senão vejamos. As crianças aqui são
enxergadas do ponto de vista adulto, privilegiando para o que elas servem,
ou seja, formar uma sociedade futura de homens vigorosos, sadios. Isto
reforça a idealização do espaço do ser criança, impelindo o pensamento

Capítulo 1
120
para considerá-la menor, miniatura, tabula rasa. Escapam a esta visão
médica pediátrica as especificidades do objeto (...) que é prontamente
idealizado; as prerrogativas para a criança são reduzidas ao fim para elas
pretendido. Desta forma, ela se torna apagada, inencontrável nesse sistema
de idealizações.” (Rivorêdo, 1998: 42)

Sobre este ponto a construção do Estado Nação, em aliança com o processo de


medicalização social, como veremos mais adiante, atua de modo decisivo na maneira como
o desejo adulto orienta a percepção médica sobre a criança, de forma a circunscrevê-la em
suas potencialidades, naquilo que ela promete, no adulto que virá a ser.

O pediatra verifica e constata o estado (estágio) em que se encontra a criança, e,


então, preconiza os cuidados adequados ao seu bom desenvolvimento. Para tal, busca
interferir no cuidado materno, no sentido de garantir as condições necessárias ao bom
desenvolvimento da criança. Porém, este olhar constatador, assertivo, não impede que um
certo grau de incerteza invada o setting médico.

Se ao objetivar o corpo da criança o pediatra apóia-se na idéia de


desenvolvimento, ele espacializa este corpo a partir do objeto de trabalho da Clínica (corpo
doente), mas sempre tensionado a pensar a integralidade do ser infantil. A criança será
encontrada nas tramas familiares em que ganha consistência moral, psicológica e mesmo
corporal.

“O que que é a infância? Acho que a infância é uma fase muito importante
acho que no nosso desenvolvimento (...) hoje ela é muito vivenciada às custas
de muitos estímulos, é uma fase onde você vai preparar aquele indivíduo
que... além de você... ou não prepará-lo, ele vai se preparar. Na realidade,
por mais que a gente fale que a gente prepara alguém, acho que é ele que se
prepara mesmo e... Eu acho que na infância ele aprende os mecanismos que
ele vai utilizar no futuro. Então acho que a infância é onde ele começa a
perceber que ele ouve, que ele enxerga, que ele sente, e outros também
ouvem, enxergam e sentem. E se na infância ele não perceber isso, mais
tarde vai ter reflexo na vida de adulto disso.”[Dr. Marco]

Ao pensarmos a oposição existente entre a visão integral sobre a criança e a


partição de seu corpo efetuada pela clínica, encontramos uma tensão constante para a
prática pediátrica, resultante de uma antinomia presente no objeto de trabalho pediátrico.

Capítulo 1
121
Esta tensão será aqui abordada a partir da disjunção diversidade/unidade, afirmada no
discurso pediátrico.

“Parece-me (...) que não há uma Prática Médica pediátrica (...) isto é, a
aproximação do corpo infantil, para além das tecnologias médicas a seu
tempo, não leva em conta os seres que são as crianças. A Pediatria impõe-se
assimilando da Clínica (..) não apenas a tecnologia e os saberes, mas
também o pensamento sobre o corpo. Se a Clínica (...) advogou por
corporalizar o sujeito, a Pediatria o fez com o corpo infantil; se a Clínica
(...) assimila a tecnologia armada como operação privilegiada para lidar
com as mazelas do corpo doente, a Pediatria o fará com o corpo infantil
doente. Poderia parecer que a Pediatria perdeu uma visão antiga mais
integral da criança e que a tenha perdido no período que se segue ao
advento da Medicina Tecnológica. Penso que isto não possa ser sustentado.
Ao contrário, de fato, esta unicidade ou globalidade na aproximação do
corpo infantil jamais foi suficientemente presente a ponto de tornar-se parte
da prática, quer dizer, se ela surge em um determinado momento como
discurso, como no caso de Pedro de Alcântara que advogava pela visão
integral da criança, a história nas mostra que este pensar não adquire força
para superar o caminho que a história das práticas médicas para as crianças
tomou. É neste sentido que a Pediatria opera uma certa antinomia em
relação ao seu objeto. Ele é uno porque é a criança vista como ser, mas não
o é porque necessita ser dividido em inúmeras partes desde o momento em
que o seu corpo é apreendido pela clínica e seus paradigmas tornando-se
não mais o corpo do doente da criança mas o corpo do doente do pediatra,
para utilizar a tipologia de Mendes Gonçalves (1984).” (Rivorêdo, 1998: 43)

A afirmação da visão integral sobre a criança não desloca o paradigma da


Clínica, pois, ao afirmar a unidade do ser em oposição à fragmentação do corpo inerente à
racionalidade biomédica, na forma de uma tensão a ser resolvida pela organização das
práticas em saúde, não toca no próprio paradigma lógico-racional que orienta o olhar
clínico e que fundamenta o saber médico.

A formulação de modelos de atenção integral à saúde que contemplem a


integridade do ser doente busca solucionar esta tensão sem questionar as próprias fronteiras
existentes na prática médica entre o senso comum e o conhecimento científico, o que acaba
por contornar as contradições existentes entre o conhecimento leigo e o saber profissional
Capítulo 1
122
no campo pediátrico. Tudo se passa como se bastasse aperfeiçoar a comunicação na relação
médico-paciente através de um grande empenho pessoal (médico) realizado no sentido de
aproximar um conhecimento de tipo prático de um conhecimento de tipo teórico.

A idéia de que uma boa “comunicação” garante uma boa relação médico-
paciente permanece como um ponto importante do imaginário médico. Em realidade, tratar
a relação médico-paciente prioritariamente como um problema comunicativo requisita uma
resolução eternamente adiada na clínica, pois aguarda uma fonte incessante de médicos
com “boa vontade” e de “sensibilidade” apurada para lidar com os conflitos humanos que
invadem o setting médico. Desta forma, a contradição estruturada na prática pediátrica, a
partir da qual o olhar disciplinador da clínica pediátrica intervém necessariamente sobre um
corpo fragmentado ao mesmo tempo em que é instado a considerar a criança em sua
integridade (física, moral, emocional), é tratada como uma questão pessoal de adequação
administrativa das relações interpessoais presentes no setting médico.

Se o corpo doente pertence ao domínio da Pediatria, uma vez instrumentada


com o saber da Clínica, sendo seu objeto de trabalho por excelência, a prática clínica
voltada para as crianças é remetida à contradição pela força com que a infância e seus
lugares de espacialização tocam o pediatra – eterno incômodo presente em sua prática dado
pela força e fragilidade da criança.

A integralidade do ser infantil, eternamente considerado no seu vir-a-ser, vem


colada com a caracterização da criança como um ser frágil, manipulável, vulnerável. Daí a
força que o tema da conservação das crianças possui até hoje.

Estas questões não só atravessam como sustentam a prática pediátrica, em suas


diversas configurações. Podemos ver isto na forma como um importante pediatra brasileiro
pensa sobre as divisões internas da pediatria:

“Marcondes (1973) situou a pediatria social como um dos cinco setores da


pediatria (preventiva ou puericultura, clínica, cirúrgica, neonatal e social)
que devem ser intercomunicantes para cumprir a doutrina da área:
propiciar a assistência integral à criança (...) Segundo Marcondes, os
objetivos da pediatria social são o estudo e a assistência globais da criança

Capítulo 1
123
através do conhecimento dos fatores ambientais, psicológicos, econômicos,
sociais e culturais, que incidem sobre o menor e sua família e que podem
predispô-lo a uma determinada doença (...) Tem como metas diminuir o risco
de mortalidade infantil e de morbidade da criança; proporcionar medidas
para a promoção de sua saúde, ‘a fim de realizar seu desenvolvimento
integral e culminar em um adulto normal, feliz e socialmente útil’
(Marcondes, 1973: 23).” (Zanolli & Merhy, 2001: 982-983. Grifos nossos)

Podemos ver como a oposição integralidade/partição do corpo infantil toma


peso na organização disciplinar desta especialidade médica nas constantes reformulações
das divisões internas da pediatria, ocorridas no transcorrer do século XX, que
acompanharam os grandes movimentos de reforma do ensino e da atenção médica.
Conforme exposto por Zanolli e Merhy (2001), estas divisões são justificadas de diferentes
maneiras, mas permanecem fazendo sentido para a manutenção da prática clínica pediátrica
tradicionalmente organizada em torno do atendimento individual focado no corpo doente.

Assim, tais divisões podem ser consideradas como um mero artifício


metodológico para o ensino da especialidade pediátrica nos programas de internato e
residência existentes nas escolas médicas, bem como podem ser consideradas como um
fator facilitador da subespecialização pediátrica.

Mas, de qualquer modo, devemos lembrar que elas colocam em discussão a


oposição diversidade/unidade na definição do objeto de trabalho pediátrico. Aliás, a
compartimentalização de um espaço específico para a abordagem da integralidade da
criança, seja sob a rubrica de puericultura, de pediatria preventiva, ou de pediatria social,
denota a importância desta tensão constitutiva do campo pediátrico, expressa no que foi
chamado anteriormente de antinomia do objeto de trabalho pediátrico.

“No Brasil, a pediatria social é uma área da prática pediátrica que traz, na
sua constituição, propostas reformistas. Aposta na tríplice reforma da
prática pediátrica, da escola médica e do serviço de saúde, influenciada
pelos movimentos políticos mais amplos da área da saúde verificados no país
(...) Os discursos da pediatria social têm uma multiplicidade de origens e de
fundamentos, que chegam muitas vezes a se contrapor. No entanto, todos
confluem para a idéia de reformar a atenção à criança.” (Zanolli & Merhy,
2001: 978)

Capítulo 1
124
Estes autores colocam que a Pediatria Social, assim como aqueles segmentos da
pediatria que estiveram explicitamente voltados para a atenção integral à criança, tem seu
estabelecimento intimamente associado aos movimentos que culminaram na Medicina
Integral, na Medicina Preventiva, na Medicina Comunitária e na Medicina Social, no
transcorrer dos anos 60 e 70, no Brasil, assim como nos Movimentos de Reforma Sanitária
dos anos 80 e, mais recentemente, de Saúde Coletiva, nos anos 90.

Estes movimentos teriam fornecido o referencial teórico-assistencial para a


formação da pediatria social e de seus equivalentes, propondo diversos modelos
assistenciais e pedagógicos a partir dos quais se estabeleceram novas divisões internas no
conhecimento disciplinar pediátrico. Deste modo, a organização das práticas pediátricas
esteve sujeita a uma “ação reformista”, direcionada para a denúncia do seu caráter
fragmentário e de sua conseqüente incompletude, buscando reformular o ensino e a atenção
pediátrica pela afirmação da doutrina da integralidade da criança. Esta tensão constitutiva
do campo pediátrico estaria presente nas diversas formas em que a pediatria organizou suas
práticas acadêmicas e assistenciais.

A puericultura busca definir medicamente o cuidado infantil, apoiada na ótica


firmada pela linha de preocupações definidas pelo tema da conservação da criança. Esta
busca pela definição do cuidado apoiou-se, num primeiro momento, em dispositivos que
compuseram a polícia médica, e, num segundo momento, em dispositivos próximos de um
ideário menos coercitivo, pautado pela educação sanitária. Ambas as estratégias buscaram
pensar o estabelecimento do cuidado tomando a integralidade da criança em termos de seu
desenvolvimento bio-psico-social.

“A medicina social preocupava-se em atuar sobre a estrutura da sociedade,


o sanitarismo sobre o ambiente físico, mas a puericultura quer atuar sobre a
forma pela qual as pessoas pensam e vivem os seus momentos mais
fundamentais, ou seja, na família, no trabalho, no cotidiano (...) Mesmo
desencadeando uma certa ampliação nos serviços de atendimento médico à
criança, a sua força maior estará no entusiasmo e dedicação com que
setores das classes sociais mais elevadas o assumirem como sua ‘missão
civilizadora’, capaz de sanar todos os males sociais. É a sua natureza íntima,
profunda e abrangente de agir que coloca a puericultura muito mais próxima

Capítulo 1
125
do sistema educacional do que a medicina.” (Novaes, 1979:31. Grifos
nossos)

A saúde materno-infantil, por sua vez, apoiando-se no binômio mãe/filho, foi


preconizada por agências internacionais de saúde após a II Guerra Mundial como um
modelo tecno-assistencial especialmente adequado para países com altas taxas de
mortalidade infantil. Este modelo foi trabalhado a partir do planejamento de ações
programáticas que visaram produzir uma espécie de efeito compensatório à vulnerabilidade
política, econômica, cultural e física das mulheres e crianças do chamado terceiro mundo.

“O movimento de medicina preventiva e, posteriormente, a medicina


comunitária (...) partia dos conceitos de multicausalidade e de enfoque de
risco, reforçando-se a atenção materno-infantil. A prática da puericultura
perdeu espaço para a doença: as ações de saúde foram sistematizadas em
normas de atendimento para os atos médicos e para os procedimentos não
médicos, priorizando determinadas populações ou patologias (Freire, 1991;
Marques, 1982).” (Zanolli & Merhy, 2001: 980)

A partir daí, o foco da atenção em saúde da criança, sustentado pela prática


clínico-pediátrica, voltou-se com maior intensidade para a apreensão do corpo doente,
investigado no binômio mãe/filho. Assim, seja no atendimento clínico individual, seja no
monitoramento dos eventos patológicos distribuídos na população, através de estudos
epidemiológicos, o conceito multicausal de doença e o enfoque de risco passaram a
orientar, de modo geral, as ações em saúde. Na década de 70, a medicina preventiva e
comunitária e a crítica ao modelo da “História Natural da Doença” (HND) chamavam a
atenção para a importância da incorporação da perspectiva social para além de uma mera
contextualização do homem no seu “meio ambiente”. Este esforço reafirmou a importância
da saúde materno-infantil, que, não obstante buscar romper com certos limites do modelo
da HND, veio a ser incorporada em termos de conteúdos programáticos executados por
diversos projetos governamentais.

“O Programa de Atenção à Criança, elaborado em 1976 como um dos


programas de assistência médico-sanitária, resultou em um atendimento
público racionalizador e burocrático (...) O programa das AIS [1983] incluía
o Programa de Atenção Integral da Criança e da Adolescente, além das

Capítulo 1
126
ações básicas de saúde (...) este programa compreendia a atenção à saúde
de grupos etários em especial (recém-nascidos e pré-escolares, escolares e
adolescentes), a saúde mental e a suplementação alimentar (...) [Mesmo com
o SUDS e com o SUS] a proposta do Programa de Atenção Integral da
Criança e do Adolescente manteve-se basicamente a mesma, mas a maioria
dos serviços adquiriu características de pronto-atendimento, dificultando a
sua execução, não atendendo às necessidades de saúde da população e não
garantindo a integralidade das ações (Tanaka & Rosenburg, 1990).”
(Zanolli & Merhy, 2001: 980)

Esta descrição sucinta de algumas formas de organização da prática pediátrica e


de certas questões presentes no atendimento clínico desta especialidade ganhará novos
elementos nos comentários que se seguem, quanto ao tema da conservação das crianças e
da constituição do campo pediátrico.

1.8. A conservação das crianças: o discurso médico-pedagógico e a vulnerabilidade


infantil

Ariès (1986), autor de um dos mais proeminentes trabalhos dedicados à


reflexão histórica da construção social da infância moderna, propõe uma análise baseada no
estudo de documentos iconográficos, apreendendo as formas como as crianças são
representadas na longa duração.9

9
Com ênfases diversas, os autores da corrente historiográfica conhecida como Escola dos Annales, dentre os
quais encontra-se Ariès, operacionalizaram em suas análises três planos temporais (diacrônicos): a curta, a
média e a longa duração. Ouçamos Le Goff, um dos mais renomados e bem aceitos representantes desta
corrente na atualidade, referir-se ao principal livro de F. Braudel, Mediterrâneo, descrevendo a curta, a média
e a longa duração:
“[a curta duração] é o ritmo tradicional, a história dos acontecimentos de Felipe II no
Mediterrâneo, da personagem de Felipe II e do seu reino; por baixo, uma história que é a da conjuntura
econômica, das mudanças a médio prazo; por fim, e eis a novidade, uma história lenta que é a da vida
material e a das mentalidades. Creio, além disso, que o fundamento desse tipo de análise tenha sido o ter
mostrado que a base dos diversos ritmos temporais era em última análise a geografia.” (Le Goff, 1986:32)

A História das Mentalidades e, especialmente, os estudos empreendidos por Braudel, têm sido
veementemente criticados na medida em que a ênfase na longa teria imobilizado a dinâmica da história. Le
Goff responde a esta crítica da seguinte maneira: “Talvez, mas esse monstro [do imobilismo] ou quem o
cavalgava esqueceu-se de que a geografia de que se faz uso este tipo de história é uma ciência social. Isto
significa que não é dada uma vez por todas mas é, pelo contrário, uma série de condições ou de ocasiões das
quais os homens e a história dos homens se servem (...)” (Le Goff, 1986:32)

Capítulo 1
127
“[Este trabalho é] uma espécie de ponto inaugural para uma nova
perspectiva antropológica e sociológica nos estudos sobre as crianças e
sobre a infância” (James, 1998:98).

O estudo de Ariès torna-se importante na medida em que propõe o


questionamento da natureza da infância e de sua universalidade histórica e cultural.
Analisando a construção de um estatuto especial para a infância, Ariès percebe que, a partir
do séc. XV, a criança vai começar a distinguir-se como uma entidade específica, e não mais
como uma simples fase do ciclo vital. Desta forma, Ariès documenta algumas mudanças no
plano das sensibilidades humanas implicadas no processo de construção social da infância
moderna.

Ariès critica em seu estudo a caracterização da infância como fenômeno


natural, colocando sérios desafios para a perspectiva tradicional com que o
desenvolvimento e socialização das crianças são apreendidos em diversas correntes
teóricas.

Conforme James (1998), as acepções adotadas pela Psicologia do


Desenvolvimento foram enormemente fragilizadas pela desestabilização da explicação
orgânica e psico-social que serviam como pontos de sustentação para uma tomada
universalizante da infância.

Questiona-se, então, a existência de uma base biológica comum a todas as


crianças, que atuaria como um alicerce permanente a partir do qual seriam construídas
variações psico-sociais, comparáveis entre si e expressas em termos de estágios, etapas e
trajetos marcados em um desenvolvimento infantil normalizado. Ainda que a explicação
orgânica não perca sua legitimidade em uma série de fenômenos humanos, vemos aqui
recolocados os limites entre o natural e o social, numa perspectiva histórica em que a
estrutura das relações humanas é apreendida nas dinâmicas existentes entre a curta, a média
e a longa duração.

“Se a infância não pode mais ser entendida como uma experiência
socialmente invariável para todas as crianças, já que as expectativas sobre o
que a ‘criança’ é variam através dos tempos e das culturas, então podemos

Capítulo 1
128
apontar o desenvolvimento biológico para contextualizarmos as experiências
das crianças. Porém, este não pode ser tomado como determinante destas
experiências. Em suma, o que constitui a infância em qualquer sociedade
vem a ser, deste ponto de vista, uma perspectiva cultural particular da base
biológica da infância.” (James, 1998:99).

Mesmo criticando a tomada biologicista da infância, estes questionamentos


recolocam o problema da unidade/divisão para a explicação sociológica e antropológica,
quando esta tenta compor o quadro sócio-cultural como base contextual para a
variabilidade/permanência de características biológicas e sociais das diferentes populações
de crianças presentes no mundo. Este é um problema que ultrapassa em muito os estreitos
limites das discussões acadêmicas, se pensarmos que diversos órgãos internacionais, tais
como o UNICEF, a OPAS, a OMS, a Save The Children, dentre outros, buscam denunciar
as diversas realidades vivenciadas pelas crianças pela afirmação da universalidade infantil.
Estes órgãos lidam a todo momento com o complexo arranjo das diversas realidades sócio-
econômicas e multiculturais, pautando-se nos principais documentos jurídicos
internacionais para estabelecerem posicionamentos políticos apoiados na noção dos direitos
universais.

O tema da conservação das crianças, claramente abordado nestas iniciativas,


construiu-se através da afirmação da vulnerabilidade física e moral das crianças como um
elemento próprio da infância. As crianças são tomadas como seres extremamente
suscetíveis às influências externas, advindas dos adultos ou do meio social mais amplo que
as cercam. Por isto, a relação entre adultos e crianças deve necessariamente pautar-se pelo
gesto pedagógico. A pedagogia, em sentido amplo, perpassa qualquer prática profissional
dirigida às crianças, não só regulando a aproximação dos adultos em relação às crianças,
mas também afirmando seus espaços próprios de existência.

A partir de Donzelot (1986), podemos ver como este “cercamento” das crianças
foi empreendido na construção de uma sociedade policiada. Este autor mostra como a
infância moderna constituiu-se pelo estabelecimento de trama de relações familiares
reguladas por dispositivos de vigilância tutelar que educam os sentidos da criança.

Capítulo 1
129
Donzelot estuda a gênese do setor social moderno a partir do que constituiu
uma rede institucional dirigida à regulação das relações familiares pelo Estado, de forma a
garantir a conservação das crianças.

Esta rede institucional, de caráter híbrido público-privada, teve como expoente


concreto mais visível, no que se refere explicitamente à infância, o Tribunal de Menores,
porém não se reduz nem culmina nesta figura jurídica. Antes, sim, alastra-se por uma série
de práticas assistenciais e administrativas que, quando tomadas em seu conjunto,
conformam as ações da polícia médica.

O conceito de “polícia médica” é definido, primeiramente, e de modo mais


explícito, na Alemanha, no transcorrer dos séculos XVII e XVIII, sendo formulado em
meio ao desenvolvimento de uma ciência do Estado, em que a grande preocupação
consistia em formar um povo saudável, como sinal de fortalecimento do processo de
consolidação do Estado-Nação. De modo mais pormenorizado, temos que

“Os escritores alemães já usavam, no século XVII, o termo ‘polícia’ Policey,


derivado da palavra grega politeia — a constituição ou administração de um
Estado. A teoria e a prática da administração pública vieram a ser
conhecidas como Polizeiwissenschaft, a ciência da polícia, e a administração
da Saúde Pública recebeu a designação de Medizinalpolizei, ou Polícia
Médica (...) Ao que se sabe, o termo ‘polícia médica’ usou-o pela primeira
vez Wolfgang Thomas Rau (1721-1772), em 1764 [sendo seu uso foi
consagrado na publicação das obras de] Johann Peter Frank (1748-1821) e
Franz Anton Mai (1742-1814)” (Rosen, 1994: 97 e 128)

No processo de construção deste setor social serão produzidos discursos que,


balizados pelas óticas da Pedagogia e da Higiene, dirigem-se às práticas familiares
existentes no transcorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX, em países do mundo capitalista
ocidental. Este olhar higiênico-pedagógico toma as relações familiares como um dos pilares
ordenadores da vida social e acaba por encontrar na criança a possibilidade de instauração
de uma nova ordem social.

“Só as nações imprevidentes descuram a sorte da criança. A grandeza de


uma nação não se mede pelo número de seus regimentos, dos seus
couraçados e monitores, dos seus fortes, mas pela resistência e pela virtude
dos seus homens” (Moncorvo Filho, 1913 apud Novaes, 1979:53)

Capítulo 1
130
A partir dos discursos pedagógico-higienistas serão formuladas uma série de
questões relativas ao ordenamento urbano, à formação de um determinado ethos do
trabalho e, principalmente, à consolidação do Estado Nacional. A criança será apreendida
enquanto um ser infantil propenso aos investimentos sócio-políticos presentes no processo
de formação desta malha institucional produzida em direção às redes de relações familiares.

A definição do estado tutelar a que as crianças foram submetidas passou pelo


estabelecimento de um estatuto específico para a infância, que girou em torno de algumas
questões postas pela eugenia, pelo higienismo, pela puericultura e pela pedagogia. Estas
linhas de pensamento objetivavam a intervenção pública nas tramas familiares e
assistenciais em que se definiam espaços cotidianos de existência para as crianças, a partir
do que muitos enfrentamentos foram gerados na definição de uma série de agentes
legitimados para o cuidado das crianças.

Assim, a construção deste estatuto social da infância passou, necessariamente,


por disputas em torno dos papéis desempenhados pela mãe, pelo pai, pelo médico, pelo
juiz, pelo pedagogo, dentre outros agentes sociais que buscaram definir o estatuto tutelar
das crianças designando-se eles próprios como agentes legítimos para estabelecerem os
cuidados específicos mais adequados a elas.

Donzelot não toma estas investidas institucionais dirigidas às tramas familiares


como algo externo à própria família, pois esta não é tomada nas análises deste autor como
se fosse um ente uno, existente “em si mesmo”. Pelo contrário, a família é tomada em sua
própria dinâmica constitutiva existente nos intercursos institucionais que configuraram a
construção do chamado setor social nos grandes centros urbanos capitalistas modernos do
século XVIII e XIX.

Como salienta Deleuze, a família e a criança, investida sócio-politicamente pelo


pensamento higiênico, não são tomadas por Donzelot como uma ilha isolada, cercada por
instituições e relações sociais que agiriam de forma unívoca sobre ela. A família não é
vista, nas análises de Donzelot, como um motor da evolução social; antes, ela é apanhada
em seu movimento de acoplagem, de interferência e interação com diversas instituições
que, ao longo dos séculos XVIII e XIX, buscaram tecer uma nova trama de relações,

Capítulo 1
131
público-privadas, para ela – tendo a criança como foco principal de atenção. Desta ampla
rede institucional em formação, analisada por Donzelot em suas linhas “puras” (de
preocupações, intervenções, tensões e mutações), emerge uma gama enorme de agentes do
setor público e privado que irão reelaborar os arranjos e relações familiares. Surgirão,
então, novos sentidos para a infância! (Donzelot, 1986: prefácio)

Sua tese central dirige-se ao caráter policiado da sociedade ocidental moderna,


o que dirige suas atenções para a relação indivíduo-sociedade:

“Poder-se-á ver, então, esse primeiro objeto, a família, ocultar-se em


detrimento de um outro, o social, do qual ela é ao mesmo tempo rainha e
prisioneira. São também os procedimentos de transformação da família que
instalam as formas de integração moderna que emprestam às nossas
sociedades seu caráter particularmente policiado. Nesse sentido, a famosa
crise da família, sua crise de liberação, apareceria não tanto como contra a
ordem social atual, mas sim, como uma condição de possibilidade de sua
emergência. Nem destruída nem piedosamente conservada: a família é uma
instância cuja heterogeneidade face às exigências sociais pode ser reduzida
ou funcionalizada através de um processo de flutuação das normas sociais e
dos valores familiares. Assim como se estabelece uma circularidade
funcional entre o social e o econômico. Freud como também Keines.”
(Donzelot, 1986: 13)

Os higienistas irão propor, como locus privilegiado de ação, a reformulação dos


arranjos familiares existentes tanto nas camadas ricas quanto nas pobres. A família será
perscrutada até os seus confins, de onde a mulher surgirá como sujeito propício para servir
de aliado (porta de entrada) às investidas higiênicas. Neste sentido, se a criança é o maior
objeto de investimento do ideário higienista, a mulher servirá de porta-estandarte destes
ideais, garantindo a eficácia do sistema de vigilância higienista.

Não é à toa que esta aliança tática estabeleceu-se, uma vez que as mães
deveriam ser disciplinadas para poderem ordenar suas relações familiares. Assim, a
ingerência médica deve dirigir-se, em primeiro lugar, ao cuidado materno:

Capítulo 1
132
“As grandes preocupações, em sua maioria políticas, e os interesses de
ordem econômica que enchem a vida da nossa população não lhe permite
refletir sobre uma verdadeira calamidade social de que não se fala, ninguém
refletindo sobre as tristes conseqüências que ela acarreta. Quero referir-me
à mortalidade das criancinhas que, ao desabrochar da vida, falecem numa
proporção assustadora, calcando o dízimo mortuário geral e levando ao seio
das famílias, desde as do pobre proletário até as dos abastados, a dor e a
saudade... Entre os fatores que tão rudemente vitimam a infância no início
da sua existência, não se pode deixar de reconhecer as mais graves faltas, a
ausência de necessários cuidados que acarretam as moléstias chamadas
provocadas ou às moléstias evitáveis. São as afecções gastro-intestinais que
mais dizimam os pequeninos, sobretudo na sua primeira idade (...) Mas, em
última análise, em que reside a causa de tão grande mortalidade? À
ignorância das mães, ao analfabetismo que em nossa população domina
numa proporção de 80%, são os vícios do regime, a falta de atenção para os
preceitos hoje reconhecidos ótimos, no modo de criarem-se filhos, que
incontestavelmente agravam o obituário infantil... São as chamadas
moléstias evitáveis, porque a boa higiene e os conhecimentos de que
hodiernamente se dispõe, no terreno da profilaxia, conseguem colocar as
crianças ao abrigo do contágio e, por conseqüência, do perigo desses
morbos que dizimam em tão larga escala” (“Por que as crianças morrem?,
Correio da Manhã, 1906, apud Novaes, 1979:55. Grifos nossos)

Conforme Donzelot, no século XVIII produziu-se uma abundante literatura


acerca da conservação das crianças, escrita, em sua maior parte, por médicos,
administradores públicos e militares. Estes estavam preocupados com a enorme quantidade
de mortes “desnecessárias” de crianças (das classes pobres), num momento em que o
fortalecimento do povo significaria o fortalecimento da nação.

Os costumes educativos da elite e das camadas pobres serão questionados,


principalmente no tocante a três aspectos: o uso equivocado dos hospícios para os menores
abandonados, as condições insalubres encontradas na rede de amas de leite e a
artificialidade com que as crianças da elite eram criadas.

Capítulo 1
133
Em relação aos hospícios, será feita uma dura crítica sobre o incentivo ao uso
perdulário do corpo, já que estes locais apresentavam-se como uma solução moralizadora
para as relações sexuais ilícitas (especialmente da elite), sustentando comportamentos
moralmente condenáveis, tais como relações carnais fora do casamento.

Portanto, se a honra e o patrimônio familiar das elites eram garantidos por uma
rede institucional destinada a minimizar os danos morais das relações ilícitas cometidas por
seus membros, esta administração do “imoral” acabava por onerar econômica e
politicamente o Estado. Isto, porque a captação dos indivíduos, direta ou indiretamente,
envolvidos nestes eventos acabava por incentivar ações que estas instituições deveriam
inibir. Assim, quando as crianças, frutos destas relações ilícitas, eram absorvidas para o
anonimato pelo mecanismo da roda10, as próprias relações ilícitas eram incentivadas, em
prejuízo de um disciplinamento do corpo que colaborasse para o fortalescimento da nação.

Para as elites, preconizava-se uma preocupação com a economia do corpo, que


concretizaria seus objetivos através dos preceitos estabelecidos por uma medicina
doméstica, encabeçada pelo médico de família. Para as camadas populares, os higienistas
reservavam argumentos de economia social, denunciando a irracionalidade administrativa
do governo.

Temos um exemplo disto, quando os higienistas criticam os hospícios para


menores. Segundo eles, ao assumirem uma quantidade enorme de crianças frágeis, mal
nutridas, em condições arquitetônicas e organizacionais pouco salutares, estes hospícios
aumentavam desastrosamente a mortalidade infantil. Deste modo, as crianças aí assistidas
dificilmente sobreviveriam até a idade em que viriam a tornar-se úteis à nação.

10
“Trata-se de um cilindro cuja superfície lateral é aberta em um dos lados e que gira em torno do eixo da
altura. O lado fechado fica voltado para a rua. Uma campainha exterior é colocada nas proximidades. Se
uma mulher deseja expor um recém-nascido, ela avisa a pessoa de plantão acionando a campainha.
Imediatamente, o cilindro, girando em torno de si mesmo, apresenta para fora o seu lado aberto, recebe o
recém-nascido e, continuando o movimento, leva-o para o interior do hospício. Dessa maneira o doador não
é visto por nenhum servente da casa. E esse é o objetivo: romper, sem alarde e sem escândalo, o vínculo de
origem desses produtos de alianças não desejáveis, depurar as relações sociais das progenituras não
conformes à lei familiar, às suas ambições, à sua reputação.” (Donzelot, 1986:30)

Capítulo 1
134
A conclusão deste raciocínio é inequívoca: o Estado tem suas divisas oneradas
de forma predatória, minando as próprias bases sobre as quais deveria apoiar-se — um
povo saudável, uma nação rica.11

As nutrizes ou amas de leite foram largamente empregadas pelos hospícios,


principalmente a partir do momento em que a roda propagou-se de forma desenfreada,
ultrapassando a capacidade de absorção das crianças nas dependências dos hospícios. Neste
momento, as nutrizes do campo foram contratadas para amamentarem uma parcela cada
vez maior de crianças órfãs.

O transporte destas crianças para o campo colaborou para o aumento da


mortalidade infantil12 nos quadros dos hospícios. Além disso, não tardou a serem
levantadas suspeitas acerca da orfandade das crianças enviadas para o campo, sendo
alardeado que muitas camponesas, a fim de aumentarem as rendas da casa, enviavam seus
filhos, recém-nascidos, para a roda. Lá, contando com a cumplicidade remunerada de
funcionárias internas dos hospícios, estas crianças eram recolhidas e enviadas de volta para
suas mães naturais que, contratadas como nutrizes de seus próprios filhos, podiam então
cuidar deles sob as custas do Estado.

Outra crítica severa feita em relação ao sistema de nutrizes afirmava que as


amas de leite que serviam às elites educavam seus filhos de forma moralmente perversa.
Era inadmissível que estas mães entregassem seus filhos às mãos de amas de leite que os
educavam com a sua “baixa moral”.

11
A filantropia buscou fornecer alguns dos elementos necessários para atingir-se este ideal. Neste sentido, o
pensamento filantrópico, que se fortaleceu gradativamente no decorrer dos séculos XVIII e XIX, construiu
seu pensamento em oposição ao espírito caritativo-religioso que impregnava uma série de práticas sociais
desde os tempos medievais, e que, para desespero dos higienistas, estruturava as redes de apoio que
transpassavam as corporações de ofício, a família patriarcal e a sociedade estamental.
12
“A proteção e assistência à primeira infância é assunto que vem preocupando higienistas, filantropos e
poderes públicos em toda a parte, provocando uma série de medidas tendentes a cercar de todas as garantias
esses pequeninos seres que inspiram tanta bondade, justiça e solidariedade. A sociedade moderna não se
pode conservar impassível diante dos sofrimentos dos seus representantes futuros – é uma questão de
solidariedade humana, de interesse pela conservação e aperfeiçoamento da nossa espécie. A mortalidade
infantil é verdadeiramente assombrosa em quase todos os países e verifica-se que ela é tanto mais elevada
quanto menos favoráveis são as condições sociais e mais se afastam das leis naturais no modo da
alimentação infantil. Só há uma idade em que a mortalidade é superior à das crianças na primeira infância –
é depois dos noventa anos!” (Archivos de Assistência à Infância, 1907 apud Novaes, 1979:54)

Capítulo 1
135
Os higienistas denunciavam que a responsabilidade de educar os filhos
pródigos da nação era entregue às mãos de inescrupulosas mercenárias contratadas para
servirem obscena e lascivamente seu leite “azedo” e “ardido” àqueles infantes. Estas
crianças, desprotegidas diante de tamanha devassidão sexual e perversidade moral,
entregavam-se aos “deleites” da criadagem — encontrando seu aconchego entre os
serviçais.

Esta situação agravava-se imensamente diante da ênfase dada pela burguesia


ascendente a uma educação “artificial”, marcada por regras de etiqueta aristocrática. As
elites européias do século XVIII buscavam incitar nas crianças uma forte inclinação pelos
penduricalhos das boas maneiras13, próprios da etiqueta social da sociedade de corte. Com
isso, deixavam de incentivar a formação de um caráter hígido e um corpo disciplinado nas
crianças.14

O principal problema enfrentado pelo pensamento higienista europeu, dos


séculos XVII, XVIII e XIX localizava-se na reestruturação das relações familiares
provocada pelo confronto entre elementos do Antigo Regime, em que a sociedade era
organizada em estamentos, e elementos da modernidade capitalista, em que se rompe com a
ordem estamental, instaurando-se uma sociedade de classes.

Neste confronto, os arranjos familiares das elites e das camadas pobres


européias ganharam novos contornos, na medida em que foram se estruturando no
remodelamento do espaço urbano, reelaborando então antigas formas de existência
encontradas agora em novas linhas de atuação. A construção de uma malha institucional
voltada para as tramas familiares sustenta-se pela instauração de novas tensões entre a casa

13
Temos uma excelente análise acerca da construção de identidades, referidas a um espírito de nacionalidade,
em oposição a uma “cultura de corte afrancesada”, na análise que Norbert Elias faz a respeito do ethos
alemão, em seu clássico livro O Processo Civilizador. Este autor chama a atenção para o surgimento da idéia
de Kultur sendo produzida por uma pequena e média burguesia alemã, que vem se fortalecendo na transição
de um ordenamento social estamental para outro classista, e que reivindica uma identidade alemã que,
gradativamente, vai sendo cunhada na medida em que se instaura a sua modernidade social.
14
Um elemento desta educação artificial das elites, conforme acusavam os higienistas, era o uso de cintas e
faixas nas crianças, pois tolhiam a sua liberdade de movimento, inibindo o desenvolvimento de seus sentidos
Isto incentivava a produção de corpos débeis e de espíritos receosos, pouco ou nada exercitados pela
disciplina higiênica. A fixidez monótona com que era caracterizada a educação corporal vinculada ao uso de
cintas e faixas constituía-se em uma opressão corporal deletéria ao espírito das crianças em que se depositava
o futuro da nação!

Capítulo 1
136
e a rua, o estranho e o familiar, o público e o privado, o labor e o mundo do trabalho, o
campo e a cidade.

Na perspectiva higienista, a urbe era mais do que uma forma de organização das
relações mercantis, sendo muito mais do que um simples local de trabalho ou de moradia.
Mais do que um palco para o desenvolvimento, o espaço urbano constituía o presente da
nação – significava o próprio desenvolvimento.

A produção do espaço urbano, da industrialização, da sociedade policiada,


necessitava de um termo de concretização – as crianças passam a corporificar o futuro da
nação. Duas estratégias de vigilância foram estruturadas enquanto dispositivos educativos
incorporados nas tramas familiares no intuito de disciplinar o corpo infantil: a liberação
protegida e a liberdade vigiada.

“O advento da família moderna centrada no primado do educacional não é,


portanto, efeito da lenta propagação de um mesmo modelo familiar
[burguês] através de todas as camadas sociais, segundo a lógica de sua
maior ou menor resistência à modernidade. Existem, pelo menos, duas
linhas, nitidamente distintas, de promoção dessa preocupação educacional
(...) Tanto numa série como na outra há, certamente, recentramento da
família sobre si mesma, porém, esse processo não tem o mesmo sentido para
cada uma das linhas. A família burguesa constitui-se através de um
retraimento tático de seus membros com o objetivo de recalcar ou controlar
um inimigo do interior: os serviçais. Através dessa coesão ela se atribui um
excesso de poder que a eleva socialmente, permitindo-lhe retornar ao campo
social com mais força, para aí exercer diversos controles e patrocínios. A
aliança com o médico reforça o poder interno da mulher e mediatiza o poder
externo da família. Ao passo que a família popular se amolda a partir de
uma redução de cada um de seus membros aos outros, numa relação circular
de vigilância contra as tentações do exterior, o cabaré, a rua. Ela realiza
suas novas tarefas educativas às custas de uma separação de tudo aquilo que
a situava num campo de forças exteriores. Isolada, ela se expõe, doravante, à
vigilância de seus desvios (...) E a infância? No primeiro caso [da família
burguesa], a solicitude de que é objeto toma a forma de uma liberação
protegida, de um resgate dos medos e pressões comuns. Em torno da criança
a família burguesa traça um cordão sanitário que delimita seu campo de
desenvolvimento: no interior desse perímetro o desenvolvimento de seu

Capítulo 1
137
corpo e de seu espírito será encorajado por todas as contribuições da
psicopedagogia postas a seu serviço e controlado por uma vigilância
discreta. No outro caso [da família popular], seria mais justo definir o
modelo pedagógico como o de liberdade vigiada. O que constitui o
problema, no que lhe diz respeito, não é tanto o peso das pressões caducas,
mas sim o excesso de liberdade, o abandono nas ruas, e as técnicas
instauradas consistem em limitar essa liberdade, em dirigir a criança para
espaços de maior vigilância, a escola ou a habitação familiar.” (Donzelot,
1986: 46-48)

Estes dispositivos de vigilância foram produzidos nos intercursos institucionais


em que os arranjos familiares são remodelados pela disciplinarização dos corpos. Neste
movimento, quando se constituiu um saber específico sobre a infância, é que encontramos
aquela “flutuação” das normas sociais e dos valores familiares no entrecruzamento das
tramas familiares com a malha institucional que giram em torno das crianças.

Assim, o desenvolvimento da nação e a criança como um ser “em


desenvolvimento” tornam-se objetos de investimento pedagógico, higiênico e eugênico,
articulados em uma sociedade policiada, de forma a definir os papéis sociais específicos
dos agentes institucionais legítimos da socialização infantil. Estes agentes procurarão
determinar os cuidados específicos para as crianças, modulando em relação a estas os seus
próprios projetos profissionais e pessoais.

No século XVIII, houve uma intensa produção de livros relativos à criação das
crianças, à sua educação e às formas de medicá-las. São guias, dicionários e livros de
aconselhamentos médico-higiênicos. No século XIX, o tom destes conselhos torna-se
imperativo, assumindo a tensão existente entre o conhecimento leigo e o saber médico.

Toda esta literatura, seus preceitos e medidas, apóiam-se na evidência da


fragilidade da criança e da vulnerabilidade da infância. As crianças devem ser protegidas
contra tudo que é estranho à infância, devem ser conservadas a partir de práticas sociais que
conduzam suas ações, disciplinem seus espíritos e controlem seus desejos.

Capítulo 1
138
A criança aqui não é conduzida a atualizar perpetuamente a sua ancestralidade,
como na sociedade patrimonial, mas é cobrada a corporificar os projetos singulares dos
seus pais. A conservação das crianças visa a sobrevivência da singularidade, garantindo a
interdependência afetiva no ciclo vital familiar.

É neste sentido que Rivorêdo (1998) chama a atenção para o fato das crianças
terem de responder incessantemente aos desejos dos adultos, estabelecendo-se um jogo de
afetos que gravitam em torno da antinomia existente na disjunção infantil/adulto, qual seja:
a criança é livre porque é humana, mas não é livre porque não o é (completamente).

A criança, tomada no seu vir-a-ser, é definida sempre como um ser em


desenvolvimento, orientada para o devir adulto. Todos os seus gestos são observados
pedagogicamente como evidências do estágio deste desenvolvimento. Assim, seus
pequenos gestos – o engatinhar, o balbuciar, o verbalizar – interessam à atenção adulta na
medida em que são compreendidos num jogo estabelecido entre o lúdico e a seriedade,
observado em um imenso trabalho cognitivo, anátomo-fisiológico, psico-motor,
neurológico e mental realizado em seu crescimento – a criança vai “ativando” seus sentidos
em direção ao pólo adulto.

Esta dependência transitória em que a criança encontra suas possibilidades de


existência, uma dependência física e moral demarcada pelo seu estado de incompletude,
autoriza o controle tutelar que se estabelece sobre ela. A evidência da vulnerabilidade do
ser infantil justifica e apóia o olhar pedagógico que localiza cada gesto das crianças. O
cuidado dirigido à criança deve sempre considerar esta vulnerabilidade, para estabelecer-se
como um gesto protetor que venha a conservar as crianças longe daquilo que ameaça sua
integridade física e moral.

É neste sentido que a puericultura vem a estabelecer-se como um olhar voltado


para a conservação das crianças, como organização de uma série de práticas sociais que
encontram nas crianças a possibilidade de objetivar a noção de “desenvolvimento”.

“A Puericultura define-se como a ‘parte das ciências médicas que se ocupa


de cultivar a vida e a saúde das crianças, esforçando-se por que cheguem ao
mundo sadias e fortes e se desenvolvam normalmente, amparando-as e
defendendo-se contra os múltiplos perigos que as ameaçam, em

Capítulo 1
139
conseqüência da ação maléfica dos fatores ambientais e sociais’ (Martagão
Gesteira – 1945). O termo Puericultura é pela primeira vez identificado em
1865, em uma publicação do médico francês Caron, passando, no entanto, a
fazer parte da linguagem médica a partir do final do século XIX, com os
trabalhos do Dr. Pinard.” (Novaes, 1979:2)

Com base na idéia de cultivar este desenvolvimento, a infância é tomada no


discurso da puericultora a partir daqueles elementos que possibilitam o “florescimento” da
vida e das crianças. Portanto, se a alimentação é o grande tema da puericultura, o
tratamento dado a este tema será expandido para a moradia, as atividades, os horários, as
punições, os curativos, os exercícios, as conversas, das crianças.

A oposição entre o natural e o artificial, entre o próprio e o impróprio, entre o


legítimo e o ilegítimo organiza o debate em torno destes diversos temas, e, ademais, orienta
o olhar pedagógico em que a infância é conceituada pelo termo em desenvolvimento.

O entrecruzamento entre a educação dos sentidos e a educação do cuidado irá


conduzir o estabelecimento destes pares de oposição nas linhas de preocupação assumidas
pela puericultura. Os grandes interlocutores desta perspectiva médica sobre o cuidado serão
as mães das crianças.

A relação médico-paciente na pediatria é, assim, pautada por três termos: a


criança, a mãe e o médico. Neste sentido, a puericultura pode

“Referir-se à saúde do lactente ou incluir, praticamente, todas as fases da


vida humana, desde que, interligadas, alguma repercussão têm na vida de
uma criança (...) [transformando-se] num conjunto de regras que dizem
respeito à saúde (...) [Porém] é a criança em início de vida o seu objeto
principal (...) a criança é vista, ouvida e orientada através da mãe. Portanto,
a puericultura fala, de fato, com a mãe, sobre a criança (...) Na pediatria,
por ser a relação em três termos, a complexidade é maior: a criança é, a
mãe fala sobre, sem ser, e o médico pensa e decide.” (Novaes, 1979:3)

A mãe é requisitada pelo médico como informante privilegiada sobre a criança.


Como vimos anteriormente, os sistemas de vigilância característicos de uma sociedade
moderna policiada apóiam-se taticamente na mãe como figura reguladora das relações
familiares em que a criança torna-se localizável para a ótica adulta.

Capítulo 1
140
Como segundo termo da relação médico-paciente no campo pediátrico, a
requisição da presença da mãe no atendimento clínico-pediátrico aponta para a existência
de uma “lacuna” na aproximação do médico em relação à criança. A instauração do saber
médico sobre o corpo infantil é intermediada pelo lugar da interpretação localizado na
família da criança.

A mãe surge como evidência deste vazio existente entre o adulto médico e o
corpo infantil da criança; mas surge, também, como uma solução possível para esta
situação. Ela deve ser interrogada a respeito do cuidado dirigido à criança, ela deve
responder pela criança, apontando os eventos cotidianos pelos quais esta vem passando.

Em outras palavras, a mãe deve informar o médico sobre a existência da criança


localizada em seu cotidiano. Esta existência é compreendida pela anamnese em termos de
sua história clínica. O médico, por sua vez, deve “depurar” as informações fornecidas pela
mãe através das outras etapas que compõem a investigação diagnóstica – o exame físico
e/ou laboratorial – de modo a concluir objetivamente quanto ao quadro clínico da criança.
A subjetividade dos sintomas deve ser rompida pelo pediatra, abrindo espaço para a
objetividade dos sinais clínicos.

Deste modo, vemos como a pediatria, assim como a medicina voltada para os
adultos, opera a redução do corpo enfermo do paciente ao corpo doente do médico,
buscando processar a passagem do campo da subjetividade para aquele da objetividade.

Porém, a redução do corpo infantil ao paradigma mecanicista, presente no


modelo biomédico, não é estabelecida tal qual aquela ocorrida em relação ao corpo adulto.
Quando a criança é definida pela sua vulnerabilidade e tomada em seu devir, ela é
assujeitada15 na ordem médica como um ser “em desenvolvimento”.

Isto traz à tona novamente a questão da partição/unidade do corpo infantil,


quando a prática pediátrica desloca o conhecimento disciplinar da clínica. Este

15
“A forma-sujeito histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem a contradição: é um
sujeito ao mesmo tempo livre e submisso. Ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem
falhas: pode tudo dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la. Essa é a base do que chamamos
assujeitamento (...) Para não se ter apenas uma concepção intemporal, a-histórica e mesmo biológica da
subjetividadade – reduzindo o homem ao ser natural – é preciso procurar compreendê-la através de sua
historicidade. E aí podemos compreender essa ambigüidade da noção de sujeito que, se determina o que diz,
no entanto, é determinado pela exterioridade na sua relação com os sentidos” (Orlandi, 1999α: 50)

Capítulo 1
141
deslocamento é denunciado para o pediatra pela presença da mãe na consulta clínica,
faciliatndo a intermediação entre o corpo doente e o corpo infantil na clínica pediátrica.

A doutrina da integralidade das ações e da globalidade da assistência em saúde


encontra na prática pediátrica um ponto de apoio constantemente desestabilizado pela
própria constituição da especialidade pediátrica e da medicina moderna como um saber
disciplinar. Este saber disciplinar, por sua vez, é deslocado pela apreensão da criança como
um ser em desenvolvimento.

A globalidade do olhar clínico e a partição operada por seu saber invocam uma
situação rica, porém constrangedora, para o pediatra, uma vez que a objetivação da criança
em seu processo de desenvolvimento está condicionada à interferência médica sobre o
cuidado materno.

Vale lembrar que tudo se passa como se fosse um mero problema


comunicativo, em que a incompetência verbal da criança e a sua incapacidade para o
raciocínio lógico introduzissem a intermediação da mãe/família como elemento importante
para a investigação clínica realizada pela ótica pediátrica. Esta intermediação remedia a
impossibilidade do pediatra aproximar-se diretamente da criança, mas, ao mesmo tempo,
insere um fator dificultador no trabalho pediátrico: a figura do “intérprete” implica no
problema da confiabilidade dos dados obtidos.

A percepção adulta projeta seus desejos e idealizações sobre a criança, na


medida em que esta é constantemente tomada num eterno “vir-a-ser” (um bom adulto,
normalizado e normatizado)16, buscando neutralizá-la ao conformar sua natureza ambígua e
polissêmica numa gama de desejos apropriadamente infantis.

16
Tomar a criança no seu devir adulto implica, no caso da pediatria, a considerá-la “hiperativa, hiperpneica,
hiporesistente, etc.” A modulação explicativa entre os determinantes biológicos e sociais formulou-se da
seguinte maneira no início do século, no Brasil: “Para poder atingir este estado de perfeição [dado pela
normalidade adulta] é necessário haver o processo de crescimento, uma força vital transmitida pela
hereditariedade, que a tudo determina. ‘Além dela, algumas condições exteriores e contingentes, como a
alimentação, o modo de vida, podem modificar o crescimento, mas a sua influência é menor do que se diz,
dominando sempre a influência hereditária. Este conceito é verdadeiro para o estado de normalidade, mas
não o é para o estado mórbido, e as doenças podem, com efeito, nós o aprendemos, modificar intensamente o
crescimento, elas podem fazer com que ele cesse, diminua ou aumente, somente elas é que podem
contrabalançar a influência hereditária’ (Marfan, 1901) Por outro lado, as próprias doenças também são,
freqüentemente, determinadas pelas características do indivíduo (as ‘taras’), restando à medicina muito
pouco a fazer. ” (Novaes, 1979:64-65)

Capítulo 1
142
Um dos principais mecanismos que possibilitam a neutralização das opiniões, a
docilização dos movimentos e o controle dos desejos das crianças consistiria no sistema
meritocrático17 (Saraceno, 1977 apud Rivorêdo, 1998) a que elas estão submetidas. Neste
sistema, a ambigüidade polissêmica das crianças é neutralizada no espaço pedagógico que
define sentidos para a infância, tornando-as localizáveis a todo momento em seus atos e
pensamentos.

Tal ambigüidade é contraposta por uma dualidade em que os adultos modulam


seus sentimentos sobre as crianças a partir de uma polarização existente entre a visão
rousseauniana e a agostiniana da infância.

Na primeira, a visão rousseauniana, a infância é associada ao mito do “bom


selvagem”, onde a criança é, por natureza, bela, pura, inocente, assexuada, identificada com
o Bem, atrelada à mulher-mãe (consangüínea) de forma inseparável; já na segunda visão,
agostiniana, a criança é por natureza viciosa e cruel, devendo ser a todo momento corrigida,
contida, disciplinada.

Rivorêdo adota a idéia de que a família veio a constituir-se num reduto protetor
da criança, a partir do qual é disposta uma rede de sujeitos autorizados a cuidar das
crianças, incluindo aqueles profissionais, amigos, ou outros sujeitos a quem é delegado o
olhar familiar vigilante. Todo elemento estranho a este olhar familiar será suspeito,
classificado como ameaçador da integridade física e moral das crianças: o contato das
crianças com o estranho será proibido.

Disto tudo, destaca-se a inclusão da prática pediátrica, enquanto prática social


dirigida a um objeto construído nas interpenetrações discursivas presentes em uma extensa
rede institucional, dentro de um esforço de vigilância panóptica socializadora do corpo
infantil. Este corpo, segundo Rivorêdo, será reduzido a um corpo dócil à manipulação
médica, conforme ocorre na perspectiva biomédica assumida pela Clínica. Porém, ao

17
No sistema meritocrático, a criança “valerá pela possibilidade de respostas positivas que puder dar em
relação a expectativas afetivas e de retorno econômico, entre outras (...) Um sistema dirigido por
especialistas (ou agentes de socialização – principalmente médicos, educadores e moralistas), sob controle
panóptico do Estado e da Família.” (Rivorêdo, 1998: 36)

Capítulo 1
143
mesmo tempo em que esta redução é facilitada pelo estado tutelar da infância, ela é
contraposta pela afirmação da integralidade do ser infantil em desenvolvimento.

Surge aí um certo grau de desconforto na prática pediátrica, pois a criança


merece e requisita um tratamento especial, específico, na atenção médica, mas a clínica não
fornece elementos para a formulação deste tratamento específico. São o sistema
meritocrático e a perspectiva pedagógica que permitem ao pediatra a observação do
cotidiano destas crianças, através das informações fornecidas pela mãe, de modo que ele
opere seu raciocínio gnosiológico de modo a abordar a criança como um ser global.

Embora a Pediatria, a partir do saber disciplinar da clínica, não se constitua em


uma medicina fundamentalmente diferente daquela voltada para os adultos, enquanto uma
prática social ela tem suas condições de produção sujeitas aos deslizes presentes na
tentativa de delinear os cuidados adequados ao pleno desenvolvimento infantil. Isto insere
um diferencial dificultador na relação médico-paciente presente na prática pediátrica: a
criança possui necessidades especiais, porém na ótica clínica ela deve ser reduzida ao corpo
doente do médico pela neutralização de seus desejos, de seus medos, de seus gestos.

O incômodo gerado neste processo de neutralização pedagógica daquilo que


escapa à infância vulnerável definida pelo ser em desenvolvimento é tratado como mero
problema comunicativo. As crianças não verbalizam18, elas impõem a necessidade de
intérpretes autorizados a definir seus sentidos. Elas são, ao mesmo tempo,
impressionantemente manipuláveis e espontâneas, o que coloca um problema de depuração
de mensagens no atendimento clínico.

Para isso, o médico-pediatra deve preencher o vazio que ameaça o domínio do


conhecimento adulto em relação às crianças, estabelecendo uma investigação clínica
minuciosa através da confrontação das informações levantadas no atendimento clínico.

18
O problema de definição da dor em neonatos, colocado como uma dificuldade no estabelecimento de
parâmetros para a detecção de manifestações de dor no corpo infantil, tem se pautado muito nesta
“incapacidade” verbal das crianças. Restaria, segundo esta perspectiva, estimular o aperfeiçoamento de
instrumentos que atravessem este vazio comunicativo de forma a informar assertivamente o saber médico
sobre a sensibilidade infantil. Algumas reflexões importantes sobre o fenômeno da dor em recém-nascidos são
apresentadas em Rivorêdo (1996); para uma apresentação sucinta de alguns instrumentos para mensurar-se a
dor em neonatos, veja-se Gaíva (2001).

Capítulo 1
144
Em uma palavra (de ordem), a criança deve ser total e absolutamente
apreensível, sem margens de erro, sem dúvidas, embora sempre seja fonte de dúvidas: o
desejo deve ser disciplinado, o comportamento normatizado, o sentimento normalizado, o
sentido controlado.

Capítulo 1
145
CAPÍTULO 2

Ato Clínico na Pediatria: contraposições e justaposições na relação médico-


paciente

“Um pediatra faz umas coisas para ver se a pessoa está bem, por exemplo, uma criança está
passando mal e a mãe dessa criança leva a criança para o (a) pediatra para ver se a criança
está com doença ou não. E se ele (a) estiver com uma doença o (a) pediatra manda a mãe
desta criança falar pra criança tomar...”
(A., 2002)*

* Depoimento de um menino de 7 anos, quando solicitado a escrever sobre o pediatra. Grifo nosso.

147
148
INTRODUÇÃO

Relação médico-paciente: um problema a ser investigado.

Conforme é apontado por Nunes (1988), a relação médico-paciente tem sido


firmemente estudada do ponto de vista sociológico ao longo do século XX. Autores de
diversas correntes teóricas dedicaram uma atenção especial ao tema, dentre os quais,
inicialmente, por volta dos anos 30, se destacam Sigerist, por iniciar uma sistematização
histórico-social da relação médico-paciente, e Henderson, pelo pioneirismo no tratamento
sociológico do tema. A seguir, temos a importante contribuição de Parsons (anos 50), que
tratou a relação médico-paciente como um dos capítulos centrais da sociologia médica. Nos
anos 60, encontramos trabalhos importantes desenvolvidos por García, Freidson e Bloom,
retomados e revistos nos anos 70 por Frankenberg, Freidson, Herzlich, Bloom, Miguel,
Gallagher, Waitzkin, Waterman.

Sem nos aprofundarmos em cada uma das perspectivas analíticas adotadas nos
trabalhos realizados por estes autores, buscaremos tratar a relação médico-paciente como
um problema profissional fundamentado na estruturação clínica do olhar médico.

É interessante notar como, desde o trabalho inaugural de Henderson, a noção de


sistema ilumina a abordagem da relação médico-paciente. Para este autor, o relacionamento
interpessoal fundamenta-se em um caráter heterogêneo que caracteriza este sistema social.
Isto se reflete no modo como médico e paciente são tomados pela oposição entre a lógica e
a emoção.

“Um paciente sentado em seu consultório, frente a você, raramente está em


estado de espírito favorável para considerar a significação precisa de uma
proposição lógica (...) O médico deve cuidar-se para que os sentimentos dos
pacientes não influenciem seus sentimentos e sobretudo não modifiquem seu
comportamento e se empenhar para afetar os sentimentos dos pacientes de
acordo com um plano bem estabelecido (...) Ao conversar com um paciente,
você deve prestar atenção, primeiro, ao que ele deseja contar, segundo, ao
que não deseja contar e, terceiro, ao que ele não pode contar” (Henderson
apud Nunes, 1988. Grifos nossos)

Capítulo 2
149
Vemos, assim, como a relação médico-paciente pode ser tratada a partir de um
olhar lançado sobre a sistematização das relações interpessoais, mas, mais ainda, sobre a
regulação dos dizeres estruturados no atendimento clínico. Quando atentamos para “aquilo
que o paciente deseja dizer, aquilo que não deseja dizer e aquilo que não pode dizer”
verificamos que isto é regulado discursivamente pela estruturação clínica da ação médica.
A partir dessa situação podemos começar a pensar sobre algo mais do que as meras
“intenções comunicativas” presentes na relação médico-paciente.

Se a relação médico-paciente traz à tona a discussão acerca do distanciamento


(lógico e emocional) existente entre um ponto de vista leigo e um ponto de vista técnico
sobre o adoecimento, esta discussão apóia-se, fundamentalmente, na compreensão dos
dizeres afirmados, dos sentidos silenciados e do sentido do silêncio na estruturação
discursiva que organiza o ato clínico.

Aliás, não é por acaso que o médico deve “se empenhar para afetar os
sentimentos [e porque não, os dizeres, os silêncios] dos pacientes de acordo com um plano
bem estabelecido”. A idéia de que a ação médica é regulada pela razão e a ação leiga pela
emoção, de modo que a interferência de um sobre o outro deve ser administrada
(controlada) pelo médico, será um ponto de apoio importante para a descrição pediátrica do
ato clínico, conforme poderemos ver neste capítulo.

Vale lembrar que o tema da relação médico-paciente tem sido tratado, muitas
vezes, como um problema comunicativo enunciado fundamentalmente pela oposição
ciência vs senso comum. Em que pesem as relações gerais de subordinação existentes entre
o ponto de vista técnico e o ponto de vista leigo sobre o objeto de trabalho de qualquer
campo profissional, não podemos deixar de estar atentos às condições de produção
específicas do ato clínico (pediátrico), para compreendermos os “acontecimentos”
estruturados na relação médico-paciente.

Encontramos na análise de Helman (1994) sobre os conceitos de saúde e doença


presentes no atendimento clínico, um bom exemplo da abordagem “comunicativa” da
relação médico-paciente. Este autor problematiza a relação médico-paciente a partir da
oposição existente entre a doença medicamente definida (disease) e o processo de
adoecimento vivenciado pelo paciente (illness).

Capítulo 2
150
“Médicos e pacientes vêem os problemas de saúde de maneiras muito
diferentes, ainda que possuam o mesmo background cultural. Suas
perspectivas estão baseadas em premissas diferentes; empregam diferentes
sistemas de prova e avaliação da eficácia do tratamento (...) [Concluindo
que] o problema consiste em como garantir alguma comunicação entre eles
no encontro clinico entre médico e paciente.” (Helman, 1994: 100. Grifos
nossos)

Helman propõe o “aperfeiçoamento” da relação médico-paciente a ser efetuado,


basicamente, através da incorporação da perspectiva leiga sobre o adoecimento na ótica
médica sobre a doença, ocasionando um movimento de “familiarização” do ponto de vista
médico (técnico) em relação ao ponto de vista sustentado pelo paciente (leigo).

“Ao investigar a ‘enfermidade’ (disease), cabe ao médico investigar a


interpretação do paciente e daqueles que o cercam sobre a origem,
significado e prognóstico da condição (...) O médico deve estimular o
paciente a trazer seu modelo explicativo para a discussão. Além disso, deve
reunir informações sobre o background cultural, religioso e social do
paciente (...) a fim de que suas explicações para as doenças sejam
contextualizadas (...) [Assim] o médico deve familiarizar-se com a
linguagem do sofrimento específica do paciente (...) [de modo que] reflita
sempre sobre o papel de seu próprio background social, sua cultura, status
econômico, religião, educação, gênero, preconceitos pessoais e poder
profissional no sentido de melhorar a comunicação com o paciente e na
provisão de uma assistência à saúde efetiva.” (Helman, 1994: 134-5)

Podemos notar como Helman localiza a existência de duas racionalidades


diferentes pertencentes ao médico e ao paciente, que os conduzem a operar diferentes
“sistemas de prova e avaliação do sofrimento”. A distância presente entre estas
racionalidades aumenta quando pensamos que uma delas opera a partir de interpretações
sobre o adoecimento, pautadas por uma determinada <<linguagem do sofrimento>>,
enquanto que a outra opera a partir de explicações sobre o corpo doente, pautadas por um
saber clínico que deve incorporar os signos específicos daquela linguagem, a fim de
efetivar plenamente a assistência (intervenção) médica.

Capítulo 2
151
Santos (1989), concordando com Bachelard, opõe a ciência (epistemé) à
opinião (doxa), afirmando que esta última é formulada pela “experiência imediata”,
enquanto que a primeira fundamenta-se em três atos epistemológicos principais: a ruptura,
a construção e a constatação. Santos entende que estes três princípios atuam conjuntamente
e que, neste sentido, a ciência é construída “contra” o senso comum, na medida em que ao
constatá-lo consegue romper com as amarras da racionalidade ingênua que o caracteriza.
Desta maneira, este autor enfatiza a importância do lugar ocupado pela “vigilância
epistemológica” para o estabelecimento de qualquer conhecimento científico sobre o real.

Porém, à primeira vigilância epistemológica, mantida em relação ao


conhecimento científico (e contra o senso comum), deve sobrevir uma segunda que trate de
reencontrar a positividade do senso comum. Isto porque, segundo Santos, na primeira
ruptura – sobre a qual assenta-se o modelo de racionalidade da ciência moderna – o senso
comum é marcado exclusivamente pela negatividade de um conhecimento frágil e
superficial sobre a realidade, enquanto que o conhecimento científico é elevado aos pilares
da certeza objetiva que atingiria inequivocamente a verdade última do real.

“A ruptura epistemológica bachelardiana interpreta com fidelidade o


modelo de racionalidade que subjaz ao paradigma da ciência moderna (...)
Mas, se interpreta bem o paradigma da ciência moderna, também só é
compreensível dentro dele. Isto é, a ruptura epistemológica bachelardiana só
é compreensível dentro de um paradigma que se constitui contra o senso
comum e recusa as orientações para a vida prática que dele decorrem; um
paradigma cuja forma de conhecimento procede pela transformação da
relação eu/tu em relação sujeito/objeto, uma relação feita a distância,
estranhamento mútuo e de subordinação total do objeto ao sujeito (...) um
paradigma que avança pela especialização e pela profissionalização do
conhecimento, com o que gera uma nova simbiose entre saber e poder, onde
não cabem os leigos, que assim se vêem expropriados de competências
cognitivas e desarmados dos poderes que elas conferem; um paradigma que
se orienta pelos princípios da racionalidade formal ou instrumental,
irresponsabilizando-se da eventual irracionalidade substantiva ou final das
orientações ou das aplicações técnicas do conhecimento que produz;
finalmente, um paradigma que produz um discurso que se pretende rigoroso,
antiliterário, sem imagens nem metáforas, analogias ou outras formas da

Capítulo 2
152
retórica, mas que, com isso, corre o risco de se tornar, mesmo quando falha
na pretensão, um discurso desencantado, triste e sem imaginação,
incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade”
(Santos, 1989: 34-5)

Segundo este autor, para que se estabeleça um deslocamento importante em


relação a esta ordem do discurso científico moderno deve-se ter em conta que

“uma vez feita a [primeira] ruptura epistemológica, o ato epistemológico


mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica [anterior].”
(Santos, 1989: 36)

Esta segunda ruptura epistemológica trataria de desconstruir a ciência,


inserindo-a em uma nova totalidade, em que o senso comum é reencontrado não mais em
sua forma original, mas, sim, reformulado em um conhecimento técnico (techné) que se
converte em uma dimensão da prática social (a qual não se reduz, por fim, à pura razão
instrumental). Advoga-se, nesta perspectiva, a construção de uma “epistemologia
pragmática” que solucionasse as oposições existentes entre a ciência e o senso comum, as
quais distanciam os sujeitos dos objetos de conhecimento.

“Com esta dupla transformação pretende-se um senso comum esclarecido e


uma ciência prudente, ou melhor, uma nova configuração do saber que se
aproxima da phronesis aristotélica, ou seja, um saber prático que dá sentido
e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem (...) uma
configuração de conhecimentos que, sendo prática, não deixe de ser
esclarecida e, sendo sábia, não deixe de estar democraticamente distribuída.
Isto (...) é possível hoje graças ao desenvolvimento tecnológico da
comunicação que a ciência moderna produziu (...) A nova configuração do
saber é, assim, a garantia do desejo e o desejo da garantia de que o
desenvolvimento tecnológico contribua para o aprofundamento da
competência cognitiva e comunicativa e, assim, se transforme em um saber
prático e nos ajude a dar sentido e autenticidade à nossa existência (...) A
hermenêutica da epistemologia é o modo mais adequado de propiciar a
transição para uma epistemologia pragmática. É uma hermenêutica crítica e
sociológica porque privilegia, por contrapeso, a reflexão sobre a verdade
social da ciência moderna como meio de questionar um conceito de verdade
científica demasiado estreito, obcecado pela sua organização metódica e

Capítulo 2
153
pela sua certeza, e pouco ou nada sensível à desorganização e à incerteza
por ele provocadas na sociedade e nos indivíduos.” (Santos, 1989: 41-2)

Tanto em Helman quanto em Santos encontramos um pensamento voltado para


a estruturação da ação social em que as opiniões (doxa) opõem-se constitutivamente aos
conhecimentos científicos (epistemé), sustentados, por sua vez, pela razão instrumental
(techné) que lança um ponto de vista técnico sobre a natureza (real). Se Helman procura
pensar sobre a melhor maneira para aproximar o ponto de vista técnico do ponto de vista
leigo no atendimento clínico organizado no setting médico, Santos, por sua vez, busca
também a melhor forma de concretizar esta aproximação no plano mais amplo das relações
sociais.

Não obstante suas diferenças, ambos autores tratam os conflitos estruturantes da


oposição ciência vs senso comum a partir de seu aspecto comunicativo, propondo, então,
uma solução arquitetada no plano da “pragmática social”, qual seja, a de construir uma
linguagem democrática a partir da qual as diferenças sejam assimiladas e as relações de
subordinação que as organizam sejam anuladas ou, ao menos, minimizadas, no diálogo
entre o “eu” e o “tu”, entre os sujeitos e os objetos de conhecimento.

Trata-se de um tentador projeto de assimilação das diferenças (étnicas,


culturais, econômicas, políticas...), empreendido no sentido de solucionar eternos conflitos
que se recolocam no plano das práticas sociais. Um projeto que idealiza um estado de
não-contradição onde se busca anular o próprio lugar do <<político>> como evidenciação
de diferenças não conciliáveis.

Apesar de denunciar o paradigma mecanicista a partir do qual a razão


instrumental fundamenta a ciência moderna, esta formulação “pragmática” da ação social
(científica) acaba por acenar mais uma vez, através do mito da “sociedade comunicativa”,
com a força técnica de uma razão esclarecida que estrutura um (novo?) olhar totalizador
sobre a natureza (humana) – um olhar, devemos sempre frisar, “cônscio” de seus objetivos
democráticos. Perversa estratégia de absorção e de anulação das “diferenças” e do
“político”, em que o olhar “científico”, imbuído das prerrogativas do saber-poder, lança
sobre si mesmo uma revisão crítica tal que acaba por incrementá-lo com mecanismos de
controle dos conflitos sociais cada vez mais eficazes.

Capítulo 2
154
Torna-se necessário, nesse momento, pontuarmos alguns deslocamentos em
relação ao eixo da pragmática social, relevantes para as análises elaboradas ao longo deste
capítulo. Para tal, vejamos como Pechêux situa epistemologicamente a Análise do Discurso
(AD) em relação às perspectivas teóricas que trabalham fundamentalmente com a noção de
<<sujeito intencional>> e de <<transparência da linguagem>> no trabalho analítico com a
língua.

Inicialmente, Pechêux procura localizar alguns deslocamentos epistemológicos


(importantes para a compreensão do lugar teórico da AD) presentes em diversas
perspectivas teóricas que trabalham a relação língua, sujeito e história em suas práticas
investigativas.

“Se nos basearmos nas designações acadêmicas em uso no CNRS [Centre


Nacional de Recherche Sociale] e na Universidade, a análise de discurso na
França é antes de tudo (...) um trabalho de lingüistas (...) mas também de
historiadores (...) e de alguns psicólogos (...) Salvo por razões externas (de
identificação, datação, origem, confiabilidade...) a historiografia documental
não tematizava pois a discursividade do documento, sua língua, seu estilo ou
sua escrita (...) Por outro lado, a história social das mentalidades, das
sistemas de pensamentos ou das ideologias constitui uma abertura que (...)
supõe trabalhar sobre os textos de outra maneira, colocando em causa a
transparência da língua (...) Como os métodos da Nova História, os da
Arqueologia foucaultiana chegam, por seu lado, a tratar explicitamente o
documento textual como um monumento. Isto é, como um vestígio discursivo
em uma história, um nó singular em uma rede (...) No domínio das pesquisas
sociológicas, podemos constatar que a relação teórica com os ‘materiais’ de
natureza linguageira (oral ou textual) se transformou consideravelmente no
período recente, através do questionamento a propósito do centramento da
análise sociológica sobre os funcionamentos institucionais. Mesmo se
inúmeros sociólogos continuam, de fato, a recorrer a métodos de análise de
conteúdo para a organização das respostas abertas a vastos questionários ou
para a análise extensiva de entrevistas, a ligação subjacente desses métodos
com uma pré-categorização institucional dos materiais conduziu, aí também,
a questionar a atitude documental, encontrando assim a posição que
subentende o projeto da análise de discurso. O interesse pelas formas pré-
institucionais do laço social incitou simultaneamente numerosos

Capítulo 2
155
pesquisadores a tematizarem o registro simbólico, através da análise de
rituais discursivos de assujeitamento, de tomada de palavra, da interpelação,
de troca dialógica, etc (...) Além do contato entre línguas de estatutos sociais
diferentes, os desnivelamentos intralingüísticos entre ‘códigos’ sociais
diferenciados (e tomados em relações de força simbólica de dominação,
resistência, etc.) são objetos de estudos macro-sociológicos (...)
Simultaneamente, o impulso interdisciplinar que suscita atualmente (...) um
interesse crescente pelo estudo dos atos de linguagem, das relações
pragmáticas e dos mecanismos argumentativos, narrativos e descritivos,
desemboca na sociologia em uma micro-sociologia de interações, que se dão
por tarefa analisar as ‘estratégias’ de poder dos sujeitos falantes em
situação, com os ‘cálculos’, conscientes ou não, que essas estratégias
colocam em jogo.”

Pechêux aponta um movimento teórico que se dá em diversas disciplinas das


Ciências Humanas tanto na direção de questionar a transparência da língua e da “atitude
documental” do investigador frente ao seu material empírico (textual, institucional), quanto
na direção de reafirmar a existência de uma pragmática social composta pelo conjunto de
estratégias (consciente ou não) elaboradas por sujeitos que “calculam” suas ações, atitudes,
intenções e interpretações a partir de certos códigos postos em jogo nas interações sociais.

No primeiro caso, encontramos uma ruptura com a subordinação da língua ao


“social”, uma vez que se procura estabelecer uma compreensão da realidade documental,
institucional, textual, discursiva a partir da autonomia relativa (e subsequente inter-relação)
existente entre a língua, o sujeito e a história. No segundo caso, estamos diante da
subordinação da língua aos atos linguageiros (falas) que constituem as interações sociais
cotidianas entre os sujeitos (já dados historicamente de modo exterior à língua).

Vemos, assim, que o interesse das Ciências Humanas pela “discursividade” ou


pela “tomada da palavra” resultou tanto em uma reflexão sobre a relação existente entre o
simbólico, o imaginário e o real, através da qual busca-se compreender a constituição do
sujeito (e dos assujeitamentos) a partir de uma relação não-unívoca entre a língua e a
história, quanto em uma tentativa de compreender a interação social ou a ação social (dos
sujeitos) a partir de uma relação de “espelhamento” (reflexo) existente entre a língua e a
história. É no sentido de destacar os diferentes fundamentos epistemológicos que sustentam

Capítulo 2
156
as práticas investigativas pertencentes às correntes teóricas que lidam com a discursividade
de uma ou outra maneira que Pechêux continua seu comentário.

“O interesse dessa abordagem ordinária, que engaja, em particular, a


possibilidade de análises concretas do registro discursivo-conversacional, no
terreno da Discourse Analysis evocada mais acima, não pode entretanto
mascarar a questão de sua relação, ainda não esclarecida, com as teorias
passavelmente triviais saídas da psicologia social, notadamente americana,
localizada no estudo das relações (verbais e não verbais) observáveis entre
2, 3, ...n sujeitos (...) No contexto filosófico e político evocado acima [anos
60], o projeto da análise de discurso marca uma ruptura com esta
problemática psico-social, pela qual o triplo registro da história, da língua e
do inconsciente permanece literalmente recalcado (...) Por aí a análise de
discurso se encontrou empenhada (...) nas garras de uma tarefa desmedida,
literalmente impossível: a de ‘se explicar’ com o mito omni-eficiente do
sujeito psicológico, ‘mestre em sua morada’ (...) perto de dois limites
externos: o do biológico e o do social. De acordo com o narcisismo universal
do pensamento humano – a menos que se trate de um efeito histórico do
pensamento ‘ocidental’ em sua relação com a idéia de Ciência –, o sujeito é
de direito um estrategista consciente, racional e lógico-operatório, cujos
poderes se encontram limitados de fato na sua emergência progressiva, sua
‘aquisição’ e seu exercício, por coerções biológicas, de um lado (logo a série
de coerções ligadas ao fato de que este sujeito está associado a um
organismo em desenvolvimento em um meio exposto ao aleatório desse
desenvolvimento e às más formações, perturbações e traumatismos de toda a
ordem suscetíveis de afetá-lo) e por coerções sociológicas, de outro lado
(logo a série de coerções ligadas ao fato de que esse sujeito só pode viver em
sociedade, isto é, em cooperação-confronto com o conjunto de seus
congêneres, sujeitos-estrategistas também, não deixando, por isso mesmo, de
aliená-lo no exercício de suas estratégias). No espaço desse mito
psicológico, a história não é outra coisa do que a resultante de uma série de
situações de interações, reais ou simbólicas, a língua não é outra coisa que
uma (fraca) porção dessas interações simbólicas, e o inconsciente não é
outra coisa que a não-consciência afetando negativamente este ou aquele
setor da atividade do sujeito, em função de determinantes biológicas e/ou
sociais mencionadas nesse instante (...) Quando, por exemplo, lingüistas,
historiadores, sociólogos ou politólogos se põem (...) a tematizar o ‘sujeito

Capítulo 2
157
humano’, eles estão bem dispostos a ter confiança nos que se dizem
especialistas: ‘a psicologia’ lhes parece como uma disciplina auxiliar acima
de qualquer suspeita, à qual cada um pode se endereçar para estabelecer
(...) suas próprias representações do tal sujeito e de seu domínio (...)”

Deste modo, Pechêux mostra como este <<sujeito-estrategista>> – próprio às


perspectivas teóricas que tecem suas questões no âmbito do pragmatismo social – está
circunscrito nos limites dados pelo cruzamento entre o biológico e o social. O indivíduo
(sujeito), unidade menor deste entrecruzamento entre a vida biológica e social, está coagido
a agir em relação às intenções postas em jogo por um conjunto de códigos sociais que
devem ser dominados da melhor maneira possível por seus “intérpretes”.

Assim, cada indivíduo deve estar apto a operar estes códigos de maneira a tecer
uma estratégia lógica através da qual procura se valer das coerções do meio (biológico e
social) para fazer prevalecer seu próprio ponto de vista nas suas interações sociais
cotidianas. Esta visão instrumental que caracteriza o pragmatismo social acaba por idealizar
o lugar da lógica na constituição das práticas sociais, propondo, no limite, um sujeito
“mestre em sua morada”.

“[Porém] este domínio tropeça (...) [e na] experiência singular da falha (...)
se marca a tomada inconsciente pela qual o sujeito está submetido à
castração simbólica. Essa ferida narcísica, que não se confunde em absoluto
com os limites inerentes às coerções biológicas ou sociológicas (por
exemplo, o lapso é completamente diferente do fracasso de um
comportamento ou um comportamento fracassado), constitui a estranheza
familiar à qual todo o sujeito humano é confrontado (...) É sobre esse saber
inconsciente que se apoia o analista freudiano em sua prática.”

Assim, estando atento ao lugar necessário (forte) do simbólico na constituição


do sujeito pela relação existente entre a língua e a história, a compreensão da
“discursividade” nos conduz a romper com este sujeito “mestre em sua morada”,
delimitado pelo confronto concreto entre o biológico e o social, em favor de um sujeito que
se constitui a partir de dizeres, que constitui dizeres e é constituído por dizeres, todos eles
afetados pela contradição, pela falha, pelo esquecimento. Ou seja, este sujeito produz
dizeres ao mesmo tempo em que está sujeito aos dizeres que o estruturam (assujeitamento).

Capítulo 2
158
Finalmente, o simbólico remete este sujeito necessariamente à interpretação, uma vez que o
<<dizer>> reclama sentidos (outros) que já estão lá.

É bom lembrar que com isto:

“a análise de discurso não pretende se instituir em especialista da


interpretação, dominando ‘o’ sentido dos textos, mas somente construir
procedimentos expondo o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de
um sujeito (...) Compreende-se que nessa perspectiva a análise de discurso –
não mais que outra disciplina de interpretação – não possa se satisfazer, em
sua relação necessária com a língua, com o inconsciente e com a história,
nem com os ‘observáveis’ discursivos comportamentais, nem com as
estruturas do sujeito epistêmico da psicologia cognitiva. Sobre os universos
discursivos logicamente estabilizados tomados enquanto tal (trata-se
essencialmente do discurso das ciências da natureza, do das tecnologias,
mesmo o dos sistemas administrativos tomados em seu funcionamento
normal), a análise de discurso não tem muito a dizer:(...) [já que] o campo da
análise de discurso, ao contrário, se determina pelo dos espaços discursivos
não estabilizados logicamente, derivando dos domínios filosófico, sócio-
histórico, político ou estético, e logo também o dos múltiplos registros do
cotidiano não estabilizado. Ninguém sabe se um dia, a história, a língua, o
inconsciente serão ‘explicados’ pelo sujeito epistêmico-comportamental, ou
se, ao contrário, as condições concretas de aprendizagem e de controle dos
universos logicamente estabilizados aparecerão eles próprios como
intrinsecamente dependentes das discusividades não-estabilizadas (por
exemplo, o discurso pedagógico que difunde conhecimentos logicamente
estáveis é ele próprio logicamente estável?).” (Pechêux, 1983 in Orlandi,
1999β)

Como será possível constatar ao longo deste capítulo, a análise do ato clínico
pediátrico aqui elaborada procura abordar a relação médico-paciente em sua estruturação
discursiva, o que nos obriga a tratá-la como algo diferente de um mero problema
comunicativo, que deva ser solucionado por um aperfeiçoamento técnico da linguagem
semiológica.

Capítulo 2
159
As diferenças existentes entre a ótica leiga e a ótica médica sobre o
adoecimento e desenvolvimento infantis serão exploradas neste trabalho não somente em
seus pontos de contraposição, mas também em seus pontos de justaposição. Tentaremos
mostrar que a oposição razão vs emoção estruturada no atendimento clínico pediátrico
opera deslizes de sentido entre o cuidado médico e o cuidado materno sustentados por
posições-sujeito afetadas a todo momento pela contradição. Estes deslizes serão buscados
no modo como a infância é tomada pelas formas do discurso pediátrico, em que o silêncio
será um importante ponto para reflexão.

2.1. Os primeiros contatos

“(...) no lidar com o paciente (...) eu nunca tive problema nenhum (...) uma
coisa que foi tranqüilo, tanto enfermaria, pronto-socorro (...) nenhum
problema com a profissão, com o lidar com as pessoas (...) com o fracasso”
(Dra. Cristina)

Vemos como a experiência clínica é problematizada, centralmente, a partir da


relação médico-paciente, quando a maneira do médico lidar com o paciente revela a sua
relação com a própria profissão médica. Esta aproximação pode ser descrita como um
momento de confronto entre um ponto de vista técnico (objetivo) e um ponto de vista leigo
(subjetivo) sobre o corpo doente. Ao longo deste capítulo, veremos como este confronto
coloca para o médico um problema de reafirmação profissional, em que se define a
habilidade de lidar com os pacientes a partir da disjuntiva objetividade/subjetividade. A
relação médico-paciente é, nesta linha argumentativa, considerada uma dimensão da prática
médica associada fundamentalmente a uma capacidade pessoal a ser desenvolvida por cada
profissional.

Assim, cada médico deve desenvolver seu próprio modo de lidar com a
<<profissão>>, lugar da regulação institucional do saber e do dizer, assim como, com as
<<pessoas>>, lugar em que tornam-se presentes para os entrevistados “elementos da vida”
que interferem na ótica pediátrica lançada sobre as crianças.

Capítulo 2
160
Isto não nos dispensa de estarmos atentos ao modo como esta capacidade
desenvolve-se de acordo com as condições de trabalho em que ocorre a relação médico-
paciente. Ou seja, tanto os espaços assistenciais em que se organizam as práticas em saúde
(enfermarias, prontos-socorros, etc.), quanto a estrutura de ensino em que o olhar clínico é
apreendido pelos estudantes definem papéis sociais distintos tanto para o médico quanto
para o paciente. A relação médico-paciente coloca em jogo, necessariamente, os limites
destes espaços institucionais (assistenciais e pedagógicos) em que são configurados alguns
papéis sociais importantes para o atendimento clínico, tais como os de cuidador, aluno,
professor, pai, mãe, filho, doente.

Veremos também, no transcorrer deste capítulo, como a própria prática médica


pode ser compreendida a partir de um olhar organizado pelas estruturas familiares, na
medida em que a relação médico-paciente possui, por exemplo, graus de equivalência entre
as relações professor/aluno, pai/filho e mãe/filho, situando-se, até certo ponto, no mesmo
campo de tensões posto pelas estruturas de parentesco. Isto ocorre num jogo operado entre
as noções de sistema e de boa vontade.

“A frustração de não conseguir resolver tudo, eu (...) não sentia tanto, como
eu vejo que (...) agora o pessoal tem. O limiar de frustração parece que está
mais complicado (...) que a dificuldade está mais avolumada (...) tem uma
dificuldade maior de lidar (...) com a dificuldade (...) Eu acho que a gente
resolvia as coisas, topava, ia atrás e... não tive problema nenhum em lidar
com paciente nenhum. Eu achei foi o esquema da residência muito
estressante (...) uma pressão muito grande (...) uma incapacidade de um
corpo docente (...) de ver a gente um pouco como gente, sabe. Uma coisa
meio, muito impessoal, um trato muito difícil: ‘Tudo bem com você hoje?’
Sabe, bater as mãos nas costas (...) ninguém dá uma pegada uma hora no
colo (...) Então, foi muito barra pesada.” (Dra. Cristina)

Não se trata aqui de avaliarmos se os estudantes de medicina empenham-se ou


não no enfrentamento de dificuldades presentes no ato clínico, mas sim de observarmos
como a relação médico-paciente define-se como um palco de conflitos em que é posta em
jogo a própria estruturação do ensino e da prática médica. A maneira como os alunos lidam
com o paciente está ligada tanto à estruturação da residência médica, burocrática e

Capítulo 2
161
estressante, quanto à conformação de um corpo docente que implementa, nas práticas de
ensino, um modo específico de aproximação com os pacientes, com os profissionais de
saúde, com as especialidades médicas e com os diversos serviços visitados. Enfim, os
alunos são tomados, em sua experiência clínica, por um determinado modo de delinear a
relação médico-paciente, cujos contornos são dados tanto pelo serviço em que se inserem as
práticas pedagógicas, quanto pelo tipo de aproximação que o corpo docente estabelece em
relação à carreira médica.

Assim, a prática clínica encontra na relação médico-paciente um problema a ser


enfrentado num duplo movimento em que se definem, de um lado, o desenvolvimento de
uma habilidade pessoal, e, de outro lado, a estruturação de um ensino e de uma prática
profissionais. Podemos ver isto quando os alunos defrontam-se tanto com professores que
não vêem no paciente nada além de um corpo doente a ser manipulado pelo olhar clínico,
quanto com professores que procuram estabelecer uma relação médico-paciente em que o
olhar clínico busca incorporar algumas percepções leigas sobre o adoecimento. Em ambos
os casos, a relação médico-paciente traz um certo grau de incerteza, numa prática
profissional que se assenta sobre um saber cientificamente estruturado.

É importante notar que a profissão médica está marcada por um caráter


resolutivo que, no limite, deve ser sustentado por uma ação médica individual. Isto ocorre,
na medida em que cada profissional tem o dever de responsabilizar-se pela saúde e bem-
estar de seu paciente, o qual, por sua vez, insere-se em uma relação de dependência tal com
seu médico que passa requisitar deste profissional uma resolução rápida dos “problemas”
que o afligem. Como já vimos no capítulo anterior a Medicina oferece aos seus integrantes
a possibilidade (necessidade) de “salvar vidas”.

Neste cenário, o sentimento de frustração coloca-se com muita força, pois “a


dificuldade em lidar com a dificuldade” (com o paciente, com o corpo docente, com o
corpo doente) impõe-se como uma estrutura que age à revelia dos esforços pessoais dos
estudantes. Neste sentido, mesmo que a maneira de lidar com o paciente seja definida como
uma capacidade pessoal do médico para agir rápida e resolutivamente diante das
dificuldades (“eu nunca tive problema no lidar com paciente... com o fracasso... a gente
resolvia as coisas... mas agora o pessoal tem uma dificuldade maior de lidar com a
Capítulo 2
162
dificuldade”), a noção de sistema permanece compondo uma grande gama de conflitos
próprios à relação médico-paciente.

Vemos isto quando se denuncia que a estruturação do ensino médico leva ao


apagamento da dimensão pessoal dos alunos (e do processo de adoecimento dos pacientes)
diante de um saber clínico pautado pela descoberta clara e objetiva do corpo doente. Este
apagar e acender de luzes ocorrido no atendimento clínico apóia-se em um sistema
pedagógico e assistencial que não reconhece nas angústias e expectativas dos
alunos/pacientes objetos legítimos da atenção médica. Pacientes e alunos não são “pegos no
colo”, não são acolhidos de forma familiar no setting médico, e quando o são é para que a
prática clínica conclua seu trabalho. Esta característica do atendimento clínico certamente
não se consolida de modo absoluto na prática médica, permeada que está por ambigüidades
a partir das quais ganha nuances e sutilezas importantes na clínica pediátrica.

O modo como a Dra. Cristina descreve a resistência da estrutura de ensino dos


programas de residência médica para efetuar a incorporação clínica do processo de
adoecimento como um problema médico a ser trabalhado pela investigação diagnóstica,
indica, até certo ponto, que a relação médico-paciente padece do mesmo mal da relação
professor-aluno: ambas parecem sujeitar os indivíduos a uma relação de dependência
marcada pela oposição de um saber a um não-saber, em que se colocam os limites entre a
segurança e a insegurança, entre a exatidão e a inexatidão. As relações professor-aluno e
médico-paciente estão aparentadas por uma noção de autoridade marcada pela oposição
ativo/passivo.

As marcas de inexatidão identificadas nas histórias pessoais de alunos e


pacientes devem ser sistematicamente apagadas de modo a prevalecer uma visão objetiva
sobre o corpo doente. A falta de interesse de alunos e professores para o acolhimento das
angústias, inseguranças e desejos que interferem no atendimento clínico encontra neste
apagamento um de seus pilares sustentadores.

O ato clínico é tomado ora como fruto de um esforço individual, ora como
resultado de uma estruturação institucional, descrevendo assim um movimento pendular em
que o problema clínico define-se tanto no plano dos embates pessoais, quanto no plano da

Capítulo 2
163
estruturação social da prática médica. Em ambos os casos a clínica é identificada como um
encontro entre indivíduos, marcado pela dimensão face-a-face expressa na relação médico-
paciente. Nesta relação parece recompor-se um encontro eternamente adiado entre o ponto
de vista técnico e o ponto de vista leigo sobre o adoecimento. É perturbadora a forma como
este encontro esbarra na falta de vontade para ensinar, e no excesso de amarras próprias a
um determinado sistema de ensino (saber).

2.2. Os “intermediários” e a disciplinarização da família

Tentaremos compreender, a partir deste jogo entre a falta e o excesso, alguns


limites da prática pediátrica. Um destes limites, apontado pelos entrevistados, diz respeito à
impossibilidade das crianças serem apreendidas no ato clínico sem a presença de
intermediários, e, com isto, sem inscrevê-las num campo de subordinações em que o
cuidado materno passa a manter uma relação de dependência com a ação médica, própria
ao processo de medicalização das relações familiares.

“Então, na realidade, eu acho que uma das coisas que diferencia a própria
Pediatria é essa coisa da puericultura. Desde os próprios (...) quando você
tem o surgimento da Pediatria (...) você tinha a clínica, que fazia adulto e
criança, de repente (...) se percebeu algumas especificidades da criança.
Então você começa a ter uma clínica de crianças, mais voltada pra criança.
O próprio desenvolvimento da Pediatria, ele vai (...) tomar mais corpo a
partir da puericultura. Eu acho que isso que vai diferenciar bastante a
Pediatria. No adulto, eu acho que (...) tentou fazer isso (...) [Mas] a
puericultura tem todo um... baseada na coisa da higiene, na história, tudo...
No adulto, eu acho que um pouco disso tentou também ser feito, entra um
pouco naquela coisa de regrar a vida das pessoas, porque você regra a
criança, mas você está regrando pai e mãe junto, todo seu espaço. E a
Medicina Preventiva teve uma época que começou a fazer isso, de cuidados
mais preventivos (...) [Mas] na Pediatria você consegue incorporar um
pouco das duas coisas. E na clínica de adulto [é] difícil, eu acho que é mais
cindido ainda (...) Então, a Pediatria, eu acho que ela incorpora no próprio
conhecimento dela isso, e as outras áreas não. Acho que a diferença para
mim é mais essa (...) Na Pediatria... faz parte do corpo da Pediatria (...)

Capítulo 2
164
estar interferindo além do corpo e do agente na doença (...) Na clínica de
adulto, mesmo você tendo evoluído... hoje em dia se você pensar em saúde do
trabalhador do jeito que ela é desenvolvida (...) mas a maior parte da
consulta de um paciente adulto (...) o cara não traz esse conhecimento (...) O
pediatra, ele é preparado... você vê o ‘em desenvolvimento’.” (Dra. Zélia)

O que é tratado como uma pura descoberta perceptiva de algo que


aparentemente sempre esteve lá, trata-se, fundamentalmente, de uma construção histórica
possibilitada por uma série de deslocamentos que levaram a afirmar a especificidade do
estatuto infantil nas sociedades modernas. Já vimos como uma malha institucional voltada
para as crianças foi organizada a partir da idéia de uma <<infância protegida>>. Vimos
também como esta institucionalização da infância moderna implicou num processo de
disciplinarização das tramas familiares que compõem sua realidade específica. A Pediatria
visa disciplinar o espaço das relações familiares, organizado em torno da casa em que vive
a criança, de maneira a garantir a existência de uma infância protegida.

“O próprio desenvolvimento da Pediatria, ele vai (...) tomar mais corpo a


partir da puericultura (...) Entra um pouco naquela coisa de regrar a vida
das pessoas, porque você regra a criança, mas você está regrando pai e mãe
junto, todo seu espaço” (Dra. Zélia)

Vemos como “regrar a vida” 1 (das crianças, das famílias) faz parte do corpus
de trabalho pediátrico, na medida em que a Pediatria incorpora uma relação entre a
<<regra>> (norma regular) e <<vida>> (acontecimentos irregulares) pautada pelo discurso
puericultor organizado em torno da noção de <<desenvolvimento>>. Ao contribuir para a
normatização do espaço familiar da criança, o pediatra pretende normalizar o
desenvolvimento infantil, articulando as dimensões curativas e preventivas da ação médica.
Notemos que o “todo” do espaço infantil é atingido pelo olhar pediátrico dirigido às tramas
familiares (disciplináveis), de maneira que a interferência no/do espaço familiar é
incorporada na própria constituição do campo pediátrico.

1
Veja-se Costa, Jurandir Freire (1983). Ordem médica e norma familiar. 3ª ed., Rio de Janeiro: Graal.

Capítulo 2
165
“Na Pediatria você consegue incorporar um pouco das duas coisas
[prevenção e cura] (...) no próprio conhecimento dela (...) faz parte do corpo
da Pediatria (...) estar interferindo além do corpo e do agente na doença
(...) O pediatra, ele é preparado... você vê o ‘em desenvolvimento’.” (Dra.
Zélia)

O confronto entre o ponto de vista técnico e o ponto de vista leigo sobre o


corpo doente, existente na clínica pediátrica, implica em contradições que extrapolam em
muito a simples oposição existente entre um conhecimento objetivo e um conhecimento
subjetivo sobre as crianças. A clínica pediátrica alcança a possibilidade de concretizar seu
ideal, configurado no imaginário de uma atenção integral à criança, quando traz para dentro
do atendimento clínico a relação mãe-filho. Com isto, esta prática médica encontra-se
diante de seu próprio limite, pois o acesso direto à criança está vedado pela inexorável
presença de seus intermediários: a relação materna atravessará necessariamente o olhar
médico lançado sobre as crianças.

“O cuidar (...) ele é interessante (...) você não está cuidando só da criança,
você está cuidando da... você tem toda uma... Se você tem uma mãe que não
está bem, ela não vai cuidar do filho bem.” (Dra. Zélia)

A Pediatria incorpora em sua práxis a interferência sobre um corpo em


desenvolvimento, de modo que o corpo pediátrico passa necessariamente por esta busca
que se dá para além do corpo doente. Neste sentido, o olhar clínico será incessantemente
tocado por tudo aquilo que se encontra entre o corpo doente e o corpo infantil, inclusive por
aquilo que escapa à organização disciplinar de sua prática profissional. Instaura-se, neste
“meio de campo”, a noção de <<cuidado>> como um importante elemento da atenção
pediátrica. Um cuidado “dual” estabelecido entre o pediatra e os familiares da criança.

Não serão raros os momentos em que as dificuldades daí decorrentes são


descritas como frutos de uma má vontade profissional que emperra a boa fluidez da relação
médico-paciente. Em outros momentos, os atritos presentes na relação médico-paciente
parecem ter seus ruídos intensificados por um sistema político (educacional, assistencial)
que se nega a assumir os indivíduos numa trama de relações igualitárias, organizadas pela
noção de “sujeito de direito” (cidadania).

Capítulo 2
166
Tentaremos mostrar que estes limites ou dificuldades apontam para
contradições constitutivas da própria prática pediátrica. Contradições que se estruturam
para além de uma má vontade do médico para humanizar o contato com o paciente. Mesmo
quando esta má vontade ecoa uma certa (in)disposição dos grandes sistemas políticos, sobre
os quais a Pediatria organiza-se enquanto uma prática assistencial, devemos procurar
compreender de que forma os planos das microrrelações e das macroestruturas sociais
interpenetram-se num complexo movimento em que o ato clínico é tomado pela
contradição.

Neste esforço, chamaremos a atenção para a maneira como ocorre um


apagamento sistemático dos impossíveis próprios à prática pediátrica. Mais do que tratar
das dificuldades individuais para lidar com o peso das determinações estruturais, queremos
analisar as formas do discurso e do silêncio que estruturam o atendimento clínico voltado
para as crianças.

“Quando dizemos que há silêncio nas palavras, estamos dizendo que: elas
são atravessadas de silêncio, elas produzem silêncio; o silêncio fala por elas;
elas silenciam.” (Orlandi, 1997: 14)

Assim, quando falamos de uma vontade que se cala diante das dificuldades
encontradas para alterar todo um sistema assistencial, pedagógico, médico, estamos
interessados em compreender de que forma estes sistemas estruturam-se discursivamente,
num jogo existente entre os sentidos e o silêncio. A interdição será analisada no discurso
pediátrico como um elemento constitutivo da prática clínica, e não como um veto à
elaboração da ação médica. Portanto, o trabalho pediátrico será investigado em suas
contradições constitutivas, de maneira a compreendermos alguns dilemas descritos pelos
entrevistados, sem aderirmos a um ponto de vista voluntarista ou determinista sobre a
prática clínica.

“A crítica (...) que foi surgindo no decorrer da residência, eu acho que foi
muito em cima dessa coisa (...) que é própria do sistema. Eu acho que a
gente ainda não resolveu, continua lutando, aí brigando hoje [para]
considerar aquelas pessoas como pessoas, como sujeitos. O tratamento que
é dado à família da criança, é isso [que] chama mais atenção. Então, desde

Capítulo 2
167
que eu estava na enfermaria, ninguém vinha falar (...) ninguém veio ensinar
isso. E não é muito fácil para aprender, porque a orientação que a gente
recebe, no fim, era do R2: “Olha, agora é hora de visita”, coisa que hoje
nem tem, porque as mães ficam junto com as crianças (...) “É hora de visita,
vamos descer pro café porque as mães são muito chatas, porque elas vão
perguntar o que é que os filhos têm (...) Então, isso foi uma coisa (...) que no
início não me chocava. Depois, eu comecei a ter muita crítica dessa postura
(...) tentar mudar um pouco. Mas sabe, do mesmo jeito que hoje é difícil você
mostrar que tem que tratar as pessoas de uma forma adequada e chamar
pelo nome (...) como sujeitos, pessoas que têm uma vida, que gostam ou não
gostam...” (Dra. Cristina)

Seja pela disposição pessoal de alunos e professores para demonstrar uma boa
vontade que venha a preencher “algo faltante” na relação médico-paciente para que os
nomes, os gostos, as histórias dos pacientes sejam finalmente incorporados na prática
médica, seja pela alteração do sistema geral em que se assenta esta prática, o problema da
definição do objeto de trabalho médico coloca-se aqui com toda sua força: o corpo doente
medicalizado joga para o plano restrito das subjetividades, a serem ultrapassadas, todo o
processo de adoecimento vivenciado pelos pacientes. Trata-se de uma incômoda posição
assumida pelos pediatras, qual seja, a de incorporar a sensibilidade leiga sobre o
adoecimento, identificada na ótica materna, a fim de afirmar a soberania do olhar médico
sobre o processo de desenvolvimento das crianças.

É interessante notar que a noção de <<sistema>> aponta para uma


normatização burocrática do ensino médico (R1, R2, R3, Médico assistente, Preceptor), que
define atribuições específicas para cada nível hierárquico profissional, enquanto que a
noção de <<boa vontade>> aponta para a incorporação da vida em sua expressão singular
(os nomes, as histórias, as percepções). A relação entre o saber (médico) e a percepção
(leiga) está crivada tanto pelo modo como cada profissional concebe a sua prática
profissional, como pela estruturação institucional da Medicina. Aqui, também, as metáforas
do Direito e da Vida fazem sentir os seus efeitos.

Capítulo 2
168
As dificuldades vivenciadas pelos graduandos e residentes no transcorrer da
formação médica não são poucas. Como já apontamos anteriormente, desde o momento da
escolha pela carreira profissional são postos em jogo desejos traçados na trajetória escolar e
familiar dos entrevistados. Aqui, mais uma vez, algumas questões relacionadas ao ensino
da prática médica serão compreendidas a partir de uma correspondência existente entre as
relações de dependência estruturadas na casa e na escola. Sair de casa para ingressar no
curso médico implica, dentre outras coisas, em um afastamento dos cuidados, lugares e
gostos que eram familiares aos estudantes.

“Então, você sair da sua família, um ambiente que você tem tudo (...) ir
prum lugar que você não conhece ninguém, porque eu não tinha ninguém, eu
morava sozinha (...) você não poder ter contato com a sua família, isso foi
muito difícil. E também em relação à própria Pediatria, porque, durante a
faculdade, o contato com o paciente é pequeno, o contato com o paciente é
sempre do lado de um staff, do lado do seu professor. Na residência não, na
residência aquele paciente já começa a ser sua responsabilidade. Eu
comecei, na residência em Pediatria, em estágio de berçário. Nossa, eu me
lembro as madrugadas que eu tinha que acordar, pegar três, quatro crianças
que nasciam! Lógico que eu tinha... eu podia chamar o staff , mas, aquele
momento, quem ia primeiro era você. Então, o primeiro contato com o
paciente, o que tinha que fazer, era você que tomava as decisões. E você
sentia a responsabilidade que é um paciente, tinha que falar com a mãe
como é que a criança nasceu, ou então que ela está mal, que ela não vai
poder ir pro quarto, que ela vai ter que ficar no berçário. É também uma
coisa que choca muito. Principalmente saber que você é a responsável por
uma pessoa importante naquele momento, uma pessoa muito importante para
uma outra, que é um filho.”(Dra. Fátima)

Se para incluir-se no corpo médico estes estudantes têm que excluir-se do


domínio familiar, organizado em suas casas, certamente esta ruptura não se faz por
completo nem sem ambigüidades. Portanto, de um lado, se a família se constitui como um
espaço em que se tem <<tudo>>, a faculdade apresenta-se como um espaço em que o
estudante “não conhece” as pessoas, os objetos, o trabalho, o saber-fazer. Por outro lado,
muitas relações familiares são recompostas no setting médico (acadêmico), assim, a relação
de dependência econômica e afetiva que caracteriza a situação das crianças na casa de seus

Capítulo 2
169
pais passa a ser rompida pelo ingresso na carreira médica, ao mesmo tempo em que uma
nova relação de dependência é estruturada no âmbito escolar, quando os professores devem
encaminhar seus alunos por entre as dificuldades próprias do atendimento clínico, servindo
de referência para seu desenvolvimento profissional.

Durante a graduação o contato com o paciente é pequeno e sempre se dá ao


lado do professor. Com o tempo, os alunos vão tendo uma possibilidade maior de atender
os pacientes, mas sempre subordinados a laços de obediência mantidos com o staff. Estar
ao lado de seus professores garante aos alunos a peregrinação por entre os diversos leitos
hospitalares, por entre os diversos serviços ambulatoriais da rede básica de saúde, mas
significa também evidenciar o limite imposto à sua autonomia profissional. Estar do lado
de seus professores leva os internos e residentes a se identificarem com uma ótica objetiva
sobre o atendimento clínico, sobre o cuidado materno.

Quando os residentes começam a ter um contato mais direto com os pacientes,


eles se sentem também mais responsáveis pelas condutas estabelecidas e pelas situações
enfrentadas no atendimento clínico. É neste momento que conseguem integrar as
experiências escolares, adquiridas nos diversos settings médicos por que passaram, em uma
atuação profissional em que sofrem o peso de responsabilizarem-se pela saúde daqueles que
poderiam ser seus “filhos”.

É também neste momento que os alunos devem apreender a importância do


contato inicial com o paciente, aprendendo o que ver e o que dizer nesta ocasião.

“Na residência em Pediatria (...)o primeiro contato com o paciente, o que


tinha que fazer, era você que tomava as decisões. E você sentia a
responsabilidade que é um paciente, tinha que falar com a mãe como é (...)
que ela vai ter que (...) uma coisa que choca muito. Principalmente saber que
você é a responsável por (...) um filho.”(Dra. Fátima)

Mãe e pediatra estão ligados por laços de obrigação a partir dos quais devem
agir de determinada maneira para que sejam estabelecidos os cuidados necessários para a
criança. Não é por acaso que a Dra. Fátima indica o contato com o recém-nascido como um
dos primeiros momentos em que veio a exercitar a “autonomia” profissional conferida pela

Capítulo 2
170
intervenção médica sobre o paciente. Este é um momento crucial para a clínica pediátrica,
quando o médico defronta-se com o nascimento da vida. Todo gesto adulto ganha uma
intensidade enorme diante da evidente fragilidade do bebê. O recém-nascido aponta para a
verdade original da vida, uma vez que tudo começa ali. É aí também que o pediatra
defronta-se com a evidência de que toda vida (criança) possui uma estruturação familiar,
afinal a criança “sob seus cuidados” é “uma pessoa muito importante para uma outra (...) é
um filho”.

O recém-nascido coloca de forma emblemática o enigma que envolve


desafiadoramente a clínica pediátrica: como conhecer os acontecimentos próprios de um
corpo infantil vulnerável às palavras que o cercam?

A pediatria deverá olhar “aquele que não fala”2 através do sinal de sua
evidência corporal. Mas não é o corpo materno a extensão do corpo infantil do recém-
nascido?

Não é à toa que a vulnerabilidade do corpo infantil diante do meio, alardeada


desde os primórdios da puericultura, foi dramaticamente identificada com a perversão
materna: o leite azedo que nutre os filhos da nação deve ser depurado por uma rede
assistencial que venha a impedir a corrupção dos espíritos sadios.3

Ainda que este projeto de medicalização social da infância e,


consequentemente, da relação materna não seja explicitamente tematizado em todos os
momentos da prática pediátrica, certamente ele estrutura um campo de forças em que a
focalização das crianças no atendimento clínico põe em primeiro plano os papéis sociais
familiares.

2
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001). Infância: Etim. Lat. Dificuldade ou incapacidade de falar,
mudez.
3
A forma como a puericultura organizou-se a partir de um projeto de higienização das relações familiares,
voltando suas atenções para o cuidado materno, já foi discutida em capítulo anterior deste trabalho; neste
momento buscaremos analisar alguns aspectos do atendimento clínico definidos, em grande parte, por esta
estruturação do olhar pediátrico.

Capítulo 2
171
Quando perguntada sobre a maneira como o período da residência veio ou não a
alterar de alguma forma a sua visão sobre as crianças, a Dra. Cristina responde que a
residência é marcada por uma pressão muito grande, por uma realidade de trabalho que não
permite que outro objeto senão o corpo doente seja apreendido pela prática médica.

“Deixa eu pensar, aqui, um pouco, depois eu te falo. (silêncio) Então, eu


acho que, assim, a residência não me proporcionou uma grande reflexão em
relação à criança. (...) Não acho que veio da residência, acho que veio mais
para frente, com a profissão, com a profissão (...) os locais que eu acabei me
inserindo, com outro tipo de leitura, com participação em outros espaços de
discussão – os filhos.” (Dra. Cristina)

A realidade, marcada pelas más condições de trabalho do setor público de saúde


e pelo caráter compulsório da prática profissional concretizada na residência médica, acaba
por não deixar espaço para que nada além do núcleo duro do saber clínico apareça diante
dos olhos médicos. Evidencia-se, então, para os entrevistados a redução das crianças a um
corpo doente fragmentado e fragilizado pela ação médica. A pressão para que sejam
cumpridas as tarefas e para que as ações de saúde concretizem uma alta produtividade
(muitos pacientes, muitos alunos), leva a uma situação em que diversos conflitos presentes
na clínica pediátrica são abafados diante da urgência dos prazos, da emergência dos casos e
dos aprendizados e da insuficiência dos quadros docentes, profissionais, assistenciais.

Assim, a reflexão sobre a criança vem com a <<profissão>>, ou seja, com a


experiência clínica posterior ao período escolar, no qual inclui-se a residência pediátrica.
Esta reflexão apóia-se, também, em grande medida, na “participação em outros espaços (...)
[com] os filhos”.

Vejamos como a Dra. Cristina descreve a organização de uma residência


pediátrica que não dá espaço para que os alunos reflitam sobre as crianças sob seus
cuidados.

“Eu acho que a minha vida como profissional alterou mais a visão e a minha
compreensão da criança – o que é que ela é, como ela é, como ela se insere –
[do] que a residência em si. A residência, não sei te explicar (...) por mais
que a gente tentasse (...) é uma pressão tão grande, sabe o que é que parece,

Capítulo 2
172
você fica cumprindo tarefa (...) fica tão envolvido em fazer tudo certo, [em]
não deixar escapar, não fazer errado e prescrever direito (...) [que] não te
dá tempo de refletir (...) naquela criança de um outro jeito sem ser um
doente. Então, você não consegue ver a criança, só vê um doente pequeno.”
(Dra. Cristina)

Refletir sobre a criança não parece uma tarefa a ser assumida pelo médico
residente, ou mesmo por aqueles profissionais pressionados por uma demanda não
compatível com a oferta de serviços. Mesmo assim, entre a demanda e a oferta de serviços,
entre o mercado de trabalho médico e a estratificação sócio-econômica dos pacientes, a
prática pediátrica firmará uma aliança fundamental com seus ideais ao tomar as crianças
como filhos de um universo (familiar) a ser atingido pelo olhar médico.

As crianças – filhos dos pacientes/filhos dos médicos – permitem visualizarmos


a infância de uma sociedade medicalizada. Este aspecto da prática pediátrica é ressaltado
quando o ato clínico ganha condições tais que possibilitam o estabelecimento de uma
atenção mais integral à criança.

Assim, na medida em que os direitos do paciente pediátrico apontam,


atualmente, para uma organização dos serviços de saúde em que a criança é tomada de
modo mais nítido a partir de sua densidade familiar (em contraposição à sua redução a um
mero doente pequeno), vemos como não só as relações familiares são focalizadas de modo
especial pelo olhar médico, mas, também, como os próprios componentes da família do
paciente são trazidos para o setting médico.

Para que a criança apresente-se ao olhar médico como algo mais do que um
simples corpo doente, torna-se necessária a incorporação do elemento lúdico e familiar nos
consultórios e hospitais. Estes elementos compõem uma atenção à saúde organizada em
torno da elaboração de um ambiente propício para que a criança possa ser captada em sua
integridade.

“Até que hoje, a gente discute um monte de coisa, de garantir ensino para
criança internada (...) um espaço de recreação para criança. Porque hoje
ela é criança. Mudou isso (...) a sociedade melhorou, isso eu sou, sou
obrigada a admitir. Então, hoje não se admite que não tenha sala de

Capítulo 2
173
recreação, que você não tenha um trabalho (...) com o pai (...) Entra lá [num
serviço pediátrico] parece a princípio que você está entrando num, num
shopping (...) no Parque da Mônica. Puxa, que avanço isso.” (Dra. Cristina)

O trabalho com os pais e o elemento lúdico são componentes importantes para


recompor o universo familiar da criança, um universo em que ela pode finalmente ser
encontrada. Esta incorporação do espaço familiar infantil torna-se importante tanto para a
apreensão médica do corpo infantil, quanto para o estabelecimento de uma aproximação
familiarizada por parte dos pacientes com relação ao setting médico.

“Porque quando eu fiz residência não tinha criança, tinham doentes


pequenos, que nada sabiam sobre o mundo e o que estava acontecendo com
eles. Não tinham a menor noção.” (Dra. Cristina)

Dentro do universo familiar, medicamente trabalhado, a criança parece ter outro


contato com o mundo, já que não só pode saber algo do que está acontecendo ao seu redor,
como passa a ter o direito de ser criança. Isto parece conferir a ela um conhecimento
específico sobre o mundo, um conhecimento “lúdico” a partir do qual o pediatra pode
reconhecê-la de maneira mais fácil em seu processo de desenvolvimento.

De qualquer forma, o ambiente hospitalar garante ao médico a possibilidade de


apresentar-se como um elemento familiar ao desabrochar e desenrolar da vida infantil, ao
mesmo tempo em que regulamenta a presença materna, de modo incômodo, por vezes, até
mesmo para o próprio estudante.

Os residentes devem incorporar este contato com as crianças e suas mães em


suas práticas profissionais como uma experiência a ser trabalhada num permanente diálogo
entre um saber objetivo e uma percepção subjetiva sobre os cuidados maternos. Assim,
quando a mãe vai a algum serviço de saúde em busca da assistência pediátrica por motivos
que não se justificam segundo a ótica médica, encontraremos uma situação que põe em
xeque as disposições pessoais e o ethos profissional do pediatra. A mãe será afastada ou
aproximada do setting médico de acordo com a maneira como o pediatra lida com os
limites entre a razão e a emoção, presentes no atendimento clínico.

Capítulo 2
174
“[Na] residência você ainda não sabe entender muito bem a mãe, você
entende a criança, sente que a criança tem dor, que ela está chorosa, você
não entende porque que algumas mães descompensam, chegam no seu
consultório gritando... Uma coisa que pediatra inicialmente (...) cem por
cento dos pediatras (...) não entendem porque que três horas da manhã
chega uma mãe lá se queixando (...) Pra você levar uma criança três horas
da manhã no pronto-socorro, você pensa o quê? Ela está morrendo. Não,
mas às vezes ela chega pra dizer que o nariz está escorrendo àquela hora, ou
então que ela não está comendo. Três, quatro horas da manhã! E isso é uma
coisa que, no início pelo menos, eu não conseguia entender. E às vezes a
gente ficava meio possessa, falava agressivo com as mães (...) Mas depois
você começa a se habituar, porque é mãe, não tem como... Você vai viver
isso o resto da sua vida, com vinte anos de profissão vai chegar três horas da
manhã com o nariz escorrendo e a mãe achando que é a doença mais grave
do mundo. O problema é que ela não sabe fazer o diagnóstico diferencial do
que é uma gripe e do que é uma meningite. É o médico olhando a criança.
Eu comecei a entender a partir daí.” (Dra Fátima)

Vemos como a clínica estrutura-se enquanto um olhar que intervém sobre o


paciente na medida em que apreende (e aprende) sua realidade corporal – olhar, entender e
resolver são aspectos interligados da ação médica. Na medida em que a clínica pediátrica
tenciona este olhar com o campo das relações familiares, o pediatra deve incorporar o
hábito de olhar, entender e intervir sobre os “intermediários” que mediam inevitavelmente
sua relação com as crianças.

2.3. Golpe de vista: o que pertence às crianças, o que pertence a seus pais

Podemos notar como olhar a criança apresenta-se para o médico como uma
difícil tarefa a ser enfrentada no atendimento clínico, pois implica em perceber a
sensibilidade infantil e em compreender a racionalidade (ou irracionalidade) materna. O
pediatra deve habituar-se com as defasagens existentes entre a linguagem verbal e o gesto
corporal (linguagem gestual), assim como entre a razão médica e a emoção materna,
lidando com suas próprias emoções de modo a não perder de vista a criança que está sob
seus cuidados.

Capítulo 2
175
Ao lidar com os pais das crianças, o pediatra não deve render-se às próprias
emoções, para que possa finalmente distinguir, do modo mais exato possível, o que
pertence à criança do que pertence aos seus pais. Esta distinção implicará, para alguns dos
entrevistados, em uma identidade do pediatra com as crianças.

“Eu gosto de assumir uma criança como um indivíduo (...) até


[de] assumir esse nível primário de raciocínio: se eu tenho fome
e a criança tem fome, ela é igual a mim. Então eu procuro
muitas vezes até atender às necessidades da criança muito antes
até do que atender às necessidades do pai ou da mãe (...) No
caso (...) de um plantão em que os pais vêm de madrugada para
trazer uma criança que está com febre às vezes há uma semana,
todo pediatra fica nervoso com isso, porque esperou a criança
passar mal... já estava passando mal várias vezes, mas como foi
incômodo eles trouxeram naquele horário.” (Dr. Francisco)

Neste trecho, a situação descrita anteriormente pela Dra. Fátima sofre uma
ligeira modificação. Desta vez, os pais da criança esperaram demais para procurar o auxílio
do pediatra, deixando a situação chegar ao limite de sua segurança (e do sofrimento
infantil), para então requisitarem uma ação médica imediata. A demanda pela atenção
pediátrica será ativada, de acordo com vários entrevistados4, a partir de uma ruptura do
limiar de segurança leiga, ocasionada por um desequilíbrio do universo familiar. Assim,
uma situação antes assimilada na casa destas crianças passa a transbordar, com todos os
seus componentes emocionais, para o setting médico.

Encontramos algumas outras situações em que a demanda pelo cuidado


pediátrico tem sua legitimidade fragilizada perante a ótica médica, que nada mais são do
que variantes de um mesmo tema: a emoção materna impõe conteúdos incontroláveis
dentre os cuidadores das crianças, conteúdos que acabam por ameaçar o pleno
desenvolvimento infantil. Vejamos como os pediatras são afetados em seu trabalho clínico

4
Ver item “Papéis familiares: a casa, o casal e seus filhos”.

Capítulo 2
176
pela emoção expressa na relação médico-paciente presente no atendimento prestado às
crianças:

“Ou às vezes acontece dos pais trazerem a criança e falar: ‘Ah, a gente ia
viajar então a gente trouxe para ver se está tudo bem porque vai... a gente ia
saindo’. Ou eu então no caso, quando eu fazia o internato (...) [que ficava] lá
na frente da praça (...) então o horário [de] domingo à tarde, quando eles
iam passear, era a hora que eles aproveitavam pra ir no posto: ‘Ah, a gente
já estava passando por aqui, eu queria que o senhor visse não sei o
quê’...(risos)... Então, nesses momentos às vezes você vê colegas que
espumam de raiva e tratam mal, às vezes nem atendem, remarcam (...)
Mesmo com raiva dos pais, eu direcionava a minha atenção para criança
(...) aí aquilo valia a pena (...) Quando a criança chegava com febre eu ia
perguntar para criança se ela estava com febre, não pro pai ou para mãe.
Então eu acabava brincando com a criança, mesmo que fosse duas, quatro
horas da madrugada, para poder ter as informações que eu ia precisar.”
(Dr. Francisco)

“Agora, aquela frase que fala que Pediatria é ótimo porque cuidar de
criança é bom, o duro são as mães... Não adianta, se você não consegue ter
uma relação adequada com o pai e com a mãe você também não vai
conseguir cuidar da criança.” (Dra. Zélia)

Fixar-se na criança não só possibilita ao pediatra a obtenção de informações


importantes para o estabelecimento do diagnóstico, mas também lembra que seu
compromisso primeiro é com a proteção da infância. O pediatra deve observar o
desenvolvimento do corpo infantil de maneira a protegê-lo de qualquer ação que venha a
inibir seu amadurecimento. Assim, torna-se justificável e tolerável lidar com as ansiedades
trazidas pelos pais, uma vez que estas interferem de alguma maneira no desenvolvimento
infantil. No entanto, estas ansiedades interferem também na própria ação médica,
perturbando o ideal de clareza que atinge seu olhar.

Se a percepção materna é naturalmente emotiva, sua ação sobre a criança acaba


por revesti-la de uma artificialidade adulta, tomada pelo exagero. Por isto mesmo, as
crianças não devem ser apreendidas no atendimento clínico por uma linguagem complexa,
apoiada em arquiteturas teóricas sofisticadas, ou, mesmo, por uma linguagem permeada por

Capítulo 2
177
fantasias desmesuradas organizadas em torno de imagens adultas, como as de criança
vítima, criança cativante, criança gênio. O pediatra deve contrapor-se ao olhar materno
apresentando-se como um ponto de apoio para uma nova perspectiva lançada sobre a
criança.

Nesta medida, as crianças devem ser tomadas em um gesto simples de


observação, de certa maneira até ingênuo, porque desprovido de malícia ou distorção. O
olhar pediátrico lançado sobre elas dirige-se para a tomada de sua "verdade original", uma
verdade que se recoloca em cada um de seus “pequenos” passos, muito mais do que numa
progressão linear em direção ao mundo adulto. A infância deve ser encontrada naquilo que
ela é, e não naquilo que irá tornar-se quando já não for.

Em realidade, não há como escapar desta dobra temporal em que a infância é


apreendida pelo olhar médico (adulto), no entanto, o pediatra deve se esforçar para conter
alguns dos aspectos negativos implicados no modo como a noção de “devir” orienta as
expectativas adultas lançadas sobre as crianças. O pediatra deve evitar cair nesta armadilha,
em que passado e futuro definem-se em limites imprecisos, quando os cuidadores (leigos)
das crianças imaginam a existência de linhas de continuidade presentes entre cada fase do
evoluir infantil.

Para tanto, o pediatra deve buscar na investigação diagnóstica, especialmente


através da anamnese e do exame físico, reencontrar-se com uma linguagem original do
olhar médico – o Olhar-Infância. As gestualidades corporais de mãe e filho devem ser
investigadas de maneira que os sinais clínicos traduzam este corpo sintomático (este corpo
que fala) como um problema médico. Este é um olhar que aparentemente prescinde de
teoria, estruturando-se na evidência do corpo doente/infantil.

Entre a Medicina Classificatória e a Clínica Moderna estabeleceu-se uma


ruptura entre um olhar voltado para a identificação do adoecimento em suas verdades
essenciais e um outro olhar voltado para localização da sede do corpo doente, revelado em
sua verdade original. No primeiro caso, estamos diante de uma estruturação eminentemente
teórica do olhar médico, no segundo caso este olhar estrutura-se como uma tomada
imediata do corpo doente, que não procura enveredar-se no complexo campo dos
“humores” humanos (vida).

Capítulo 2
178
“O olhar médico não é o de um olho intelectual capaz de perceber, sob os
fenômenos, a pureza não modificável das essências. É um olhar de
sensibilidade concreta, um olhar que vai de corpo em corpo, cujo trajeto se
situa no espaço da manifestação sensível. Para a clínica toda verdade é
verdade sensível (...) Neste nível, todas as regras são suspensas, ou melhor,
as que constituíam a essência do olhar clínico [na medicina classificatória]
são substituídas, pouco a pouco, em uma desordem aparente, pelas que vão
constituir o golpe de vista. O olhar, com efeito, implica um campo aberto e
sua atividade essencial é da ordem sucessiva da leitura: registra e totaliza;
reconstitui, pouco a pouco as organizações imanentes; estende-se em um
mundo que já é o mundo da linguagem, e por isso se aparenta
espontaneamente com a audição e a palavra; forma como que a articulação
privilegiada de dois aspectos fundamentais do Dizer: o que é dito e o que se
diz. O golpe de vista não sobrevoa um campo: atinge um ponto central ou
decisivo; o olhar é indefinidamente modulado, o golpe de vista vai direto:
escolhe, e a linha que traça sem interrupção opera, em um instante, a divisão
do essencial; vai, portanto, além do que vê; as formas imediatas do sensível
não o enganam porque sabe atravessá-las; ele é por essência
desmistificador. Se atinge algo, em sua retidão violenta, é para quebrar,
levantar, retirar a aparência. Não se embaraça com todos os abusos da
linguagem. O golpe de vista é mudo como um dedo apontado, e que
denuncia. O golpe de vista é da ordem não verbal do contato puramente
ideal, sem dúvida, porém mais ferino, no fundo, porque atravessa melhor e
vai mais longe sob as coisas. O olho clínico descobre um parentesco com um
novo sentido que lhe prescreve sua norma e sua estrutura epistemológica;
não é mais o ouvido atento para uma linguagem; é o índice que apalpa as
profundezas. Daí, a metáfora do tato, pela qual continuamente os médicos
vão definir o que é seu golpe de vista.” (Foucault, 1980: 137-8)

A Clínica Moderna estrutura o seu olhar como um golpe de vista que conhece
na medida em que reconhece imediatamente o que se apresenta diante de si. No caso
pediátrico, a criança deve ser conhecida em sua história familiar através do reconhecimento
de sua relação materna, preferencialmente, sem que com isto o pediatra fique “preso” ao
emaranhado das relações familiares. O duplo dimensionamento do corpo doente e do corpo
infantil permite a este profissional manter uma relação de proximidade e distanciamento,
imprescindível ao trabalho clínico.

Capítulo 2
179
Neste sentido, podemos considerar como sendo um ideal da clínica pediátrica a
condição segundo a qual deve apreender em um só “golpe de vista” tanto o corpo doente
quanto o corpo infantil das crianças, sem perder com isto o caráter objetivo de sua
intervenção. Ora, se isto é possível para a ação médica relativa ao corpo doente, no entanto,
este golpe de vista não parece concretizar-se de maneira tão límpida quando a ação médica
objetiva o corpo infantil. Enfim, a clínica pediátrica parece incorporar na ação médica tanto
um <<golpe de vista>> incisivo sobre o corpo doente, quanto um <<olhar>> que busca a
“linguagem” própria ao corpo infantil.

2.4. O papel de doente e o papel de cuidador

As estruturas de parentesco sinalizam para o pediatra a verdadeira dimensão do


problema infantil: a criança reage ao meio aumentando seu repertório (cognitivo,
emocional, psicomotor...) e, por isto mesmo, será sempre referida às relações familiares que
compõem seu mundo interior e exterior. O mundo exterior deve fornecer os instrumentos
necessários ao pleno desenvolvimento infantil, o estímulo para o crescimento da criança,
agindo assim de maneira complementar ao seu próprio corpo.

Vejamos como esta relação de “ação e reação” que parece existir entre a criança
e o seu “meio” (familiar, social) é tematizada pelo Dr. Francisco, quando perguntado a
respeito de alguma teoria que tenha marcado sua visão clínica no campo pediátrico.

“É difícil para eu me prender a uma determinada teoria, porque eu até acho


engraçado você elocubrar muito acerca disso tudo, eu acho interessante
você hipotetizar. Mas o que eu acho mais importante é (...) – mesmo que você
tenha um recém-nascido, ou até um adolescente que briga com o pai e a mãe,
e muitas vezes ele vai querer fazer as coisas exatamente o contrário do que
os pais querem –, (...) sempre assumi-lo como um indivíduo igual a mim, de
igual pra igual. Então, na verdade eu não acho que seja uma criatura sem
alma e nem que seja um ser humano em formação. Na verdade o que ele
tem é um repertório mais restrito, mas não que ele ainda tenha que aprender
coisas pra ser um adulto (...) tanto que a gente vê que o que a criança vai ser
quando crescer é em função do meio, é o quanto é estimulada. Então, é

Capítulo 2
180
numa dessas que eu assumo para mim que você não vai... não é... a criança...
não está faltando nada pra criança exercer as suas potencialidades, o que
está faltando é arsenal, é instrumento. E isso, na verdade, se o
ambiente não der ela vai ser completamente tolhida das suas capacidades.”
(Dr.Francisco)

Esta relação complementar, em que o mundo interior da criança deve


ser suportado pelo seu mundo exterior, chama a atenção deste pediatra para uma
outra relação de complementaridade. A Pediatria parece prescindir de um arsenal
teórico que venha a elucidar a “psicologia infantil” (mentalidade/psiquismo), mas
deseja conhecer os aspectos psico-sensoriais e cognitivos “em formação” na
criança.

“Muito mais me atraem os conhecimentos que se têm acerca do aprendizado


da criança, da parte (...) tanto psicomotora (...) quanto psíquica. Muito mais
isso do que chegar e falar a respeito de Psicologia da criança em específico.
Por isso me atraía muito, quando eu estava na Pediatria, a parte de
puericultura, que era justamente o desenvolvimento da criança. Então, a fase
que começava a chupar chupeta, que comia papinha, a fase que ia
engatinhar... E eu olhava e falava: ‘Puxa, por quê?!’ E lá, a tônica da escola
(...) era muito fisiológica, então explicava que a criança iria engatinhar na
medida que começasse a [estimulação?] dos nervos dos membros inferiores
(...) Pra mim isso marcou muito, porque você percebia que na verdade a
criança não fazia tudo aquilo que esperavam que a criança fizesse porque
ainda não tinha as ferramentas, mas o potencial já tinha dentro dela.”
(Dr. Francisco)

Vemos aqui como a própria realidade psíquica da criança é remetida ao seu


desenvolvimento psico-motor, quando a sua instrumentalização neuro-sensorial deve
orientar as expectativas adultas em relação ao processo de desenvolvimento infantil. As
relações existentes entre a dimensão biológica e a dimensão social da criança devem ser
apreendidas por um olhar que consiga visualizar os aspectos fisiológicos, anatômicos e
psicológicos presentes em cada um de seus passos. O olhar pediátrico deve compreender de
que forma estes diversos aspectos integram o processo de desenvolvimento infantil.

Capítulo 2
181
Não interessa tanto ao pediatra conhecer a complexidade psíquica da criança no
sentido de intervir analiticamente sobre ela, antes importa para a ação médica compreender
de que forma esta dimensão integra-se num movimento maior em que floresce o
desenvolvimento infantil. O pediatra deve conhecer o instrumental infantil e arquitetar um
conjunto de ações que fortaleçam este instrumental.

Mais do que um exercício preparatório para as idades vindouras, trata-se aqui


de um esforço disciplinador dos sentidos, pautado pela idéia de <<bem-estar>>. O pediatra
deve prevenir os pais a respeito das potencialidades infantis e de seu desenrolar específico,
assim como deve aproveitar o caráter moldável da criança para regrar suas condutas,
sempre no sentido de garantir o seu bem-estar presente e futuro. O pediatra deve, por fim,
auxiliar a criança a incorporar o papel de doente, identificando no conjunto das
potencialidades infantis o ponto de apoio possível para o restabelecimento de seu
bem-estar.

“Então isso é o que me atrai, é o que é mais atraente pra mim na criança.
Tanto que (...) o fato de ser pediatra (...) uma das outras tônicas é justamente
o aspecto preventivo, é (...) permitir o aflorescer de todas as capacidades
que a criança tenha. Enquanto que, se você for um geriatra, você vai tratar
um indivíduo que tem as doenças porque ele se maltratou durante [a] vida
toda. E é o contrário na Pediatria, você vai tratar de trazer toda a situação
pra criança exercer o máximo do potencial que ela tem (...) Medicina pra
mim [é mais] do que tratar as seqüelas de uma vida ruim, desregrada.
Muitas vezes você vai poder ensinar pra criança como viver bem e ela vai
poder usufruir isso mais. Mesmo a criança que tenha uma doença, um
câncer, um doente terminal, o que é importante pra mim é que ela viva bem
até o momento em que ela não esteja mais em capacidade de aproveitar a
vida. Mas não dopada com remédio, ou mesmo internada. Isso é que é o
interessante no meu dia-a-dia (...) que me acaba atraindo pra Oncologia.
Não é nem tanto o desafio de curar a doença dele, mas é o fato de deixar a
criança bem enquanto... mesmo enquanto doente. Muitas vezes tem
tratamento que vai durar dois, três anos, cinco anos, se você não fizer a
criança [ficar] bem você não vai estar tratando dum indivíduo.
(Dr. Francisco)

Capítulo 2
182
A noção de prevenção parece ganhar uma grande amplitude no campo
pediátrico, na medida em que o caráter vulnerável, germinal e, portanto, moldável do
crescimento e desenvolvimento infantil garante ao pediatra a possibilidade de interferir de
maneira decisiva em sua disciplinarização corporal. As potencialidades infantis devem ser
exercitadas de maneira a alcançarem um optimum em seu processo de desenvolvimento.

O pediatra deve incentivar o “florescimento” das potencialidades infantis,


estimulando sua manifestação e orientando a maneira como a família, a escola e toda a
gama de agentes sociais responsáveis pelas crianças devem encarar o seu processo de
desenvolvimento. O <<desregramento>> corporal adulto pode ser evitado ou minimizado
por um olhar médico atento a cada fase do processo de desenvolvimento infantil. Neste
sentido, incentivar, estimular e exercitar são termos remetidos ao campo da
disciplinarização corporal da infância. Este é um campo tomado pela noção de ensino,
afinal o pediatra deve “ensinar as crianças a viver bem”.

Ensinar este “viver” para as crianças implica no estímulo de suas


potencialidades específicas, mesmo quando elas se encontram adoecidas ou debilitadas
física ou mentalmente. É muito importante que o pediatra intensifique seus esforços em
situações clínicas em que o viver e o adoecer tocam-se de maneira dramática e visceral,
como é o caso dos pacientes terminais.

O pediatra deve se esforçar para ensinar o papel de doente para estas crianças,
indicando-lhes maneiras de exercer suas potencialidades específicas, mostrando-lhes que
elas mantém capacidades próprias à vida. Quando a criança não for mais capaz de assumir
este vínculo com o viver, então o médico deve questionar-se sobre a probidade ética de uma
intervenção médica que garante única e exclusivamente a manutenção mecânica da vida de
seu paciente. Ou, ao menos, ele deve estar ciente que está diante de um <<doente
pequeno>> que, conforme afirmado anteriormente pela Dra. Cristina, não conduz à
apreensão clínica da criança.

Talvez até de maneira mais forte do que no caso adulto, só é admissível optar
pela internação hospitalar e por uma administração medicamentosa pesada para as crianças,
na medida em que estas providências venham a garantir um bem-estar e uma conseqüente

Capítulo 2
183
melhora em sua qualidade de vida. O tratamento hospitalar invasivo deve justificar-se como
uma medida de proteção para a criança, a partir da qual ela possa manter uma relação
fundamental com a vida. A presença de seus familiares no setting médico e o exercício de
suas potencialidades específicas rivalizam aqui com a simples manutenção mecânica de seu
corpo biológico.

O pediatra deve evitar ao máximo manter as crianças em uma vida “artificial”


em que não possam mais ser reconhecidas em suas manifestações próprias. A noção de
bem-estar permeia esta preocupação pediátrica, um bem-estar alcançado pela relação
complementar mãe/filho e pediatra/criança, a partir da qual os papéis sociais de
<<doente>> e de <<cuidador>> trafegam pelo imaginário da infância protegida.

Cuidar da criança significa garantir seu bem-estar familiar, afinal não é o


espaço familiar aquele próprio à infância? Somente a partir deste seu vínculo com a vida é
que a criança pode ser atendida pelo pediatra como um indivíduo estruturado para além do
corpo doente. Distinguir o cuidado materno do cuidado médico implica em estabelecer
linhas divisórias entre o corpo infantil e o corpo materno, sem jamais perder de vista suas
ligações originais.

2.5. A questão pediátrica: um problema de linguagem

A interpelação do olhar pediátrico pela relação materna, denotada pela presença


da mãe no atendimento pediátrico como elemento de intermediação entre a criança e o
pediatra, põe em causa o lugar da interpretação. Assim, quando a Dra. Cristina é
questionada sobre a existência de alguma especificidade do ato clínico pediátrico, são
lembrados de imediato os limites impostos ao olhar médico quando o pediatra procura
acessar de modo direto as crianças. Para o pediatra, lidar com a interpretação materna
implica em remeter a palavra a um lugar de desconfiança, uma vez que os dados devem ser
reencontrados em suas verdades originais.

Capítulo 2
184
“Ah, eu acho que ele tem uma característica primeiro que é assim, na
dependência da faixa etária (...) você tem maior dificuldade de ter um
contato direto com a criança. Quer dizer, os dados que você obtém, a
informação que você obtém acaba sendo intermediada por um responsável,
na maioria das vezes a mãe que vai ter uma expectativa (...) O significado
que vai ter pra cada sintoma (...) que ela vai falar (...) já é mediado. Quer
dizer que ela vai interpretar (...) ela vai trazer de um determinado jeito pra
você.” (Dra. Cristina)

Esta intermediação rompe com a possibilidade do saber clínico acessar de modo


direto o paciente através de um raciocínio “distribucionista”, em que as disjunções
sintomas/sinais e subjetividade/objetividade são tratadas como pares de oposição cujos
pólos identificam-se quer com um ponto de vista técnico (médico) quer com um ponto de
vista leigo (paciente) sobre o adoecimento.

A manipulação do corpo doente com o mínimo de resíduos possíveis – quando


os graus de incerteza da prática médica seriam diminuídos na medida em que o pólo
subjetivo da relação médico-paciente fosse identificado de forma isolada na figura do
paciente – é inviabilizada no atendimento pediátrico pela presença materna.

A mãe traz um terceiro termo para a relação médico-paciente, erigindo-se mais


um campo de subjetividades a ser atingido e controlado, pelo saber médico, através das
operações diagnósticas e terapêuticas em que o corpo doente deve ser objetivado. Porém,
mais do que somar cumulativamente graus de subjetividade à relação médico-paciente, a
presença materna reestrutura o atendimento clínico, evidenciando um do pilares
sustentadores da clínica pediátrica: a criança não fala, ou, pelo menos, não fala sozinha.

“O que traz também depende de coisas dela, então, o quanto que incomoda
uma febre para uma pessoa (...) para uma mãe, e o quanto que incomoda
para uma outra mãe, em que momento que rompe a segurança dela de ficar
com a criança, e levar no profissional (...) Cada criança que (...) vem, vem
por uma história contada por uma outra (...) Isso é um dado totalmente
diferente de um adulto que (...) também vai interpretar e vai trazer coisas,
mas aí é ele com você, e no caso da criança, você vai estar lidando com a
família.” (Dra. Cristina)

Capítulo 2
185
A relação de dependência estabelecida entre a descoberta do corpo doente da
criança e das “coisas da mãe” aponta para um cruzamento de subjetividades (médico-mãe-
criança) em que as histórias clínicas e pessoais interpenetram-se, compondo condições
específicas para o horizonte clínico (diagnóstico e terapêutico). Explorar este horizonte em
todo sua extensão será uma tarefa a ser exercitada permanentemente, constituindo-se em
um difícil exercício para os residentes e profissionais em início de carreira.

“[Esta] é uma peculiaridade do atendimento da criança, acho que essa


questão está colocada em qualquer tipo de atendimento, mas assim, no caso
da criança ela é mais intermediada. Então, as interpretações, as
representações que tem na família com relação à criança, à doença, às
fantasias, à expectativa que tinha da criança na família, (...) nossa, para
você entender isso e conseguir lidar com esse tipo de coisa (...) é muita
janela (...) [Na] residência a gente aponta (...) chama muito a atenção dos
residentes: ´Olha, lógico que não vai resolver agora, não vão conseguir
sacar isso de uma forma muito fácil, mas vai atrás porque (...) não existe
essa criança sem ter uma inserção, e uma representação dentro da casa, da
família e do meio aí que ela vive’.” (Dra. Cristina)

As crianças aproximam-se do consultório médico a partir de “uma história


contada por outra pessoa”, sendo apreendidas pelo pediatra a partir de sua história familiar.
Portanto, são silenciadas as possibilidades de sentido que escapam a uma tomada do corpo
infantil que não esteja referida a seu universo familiar. A anamnese deve ser dirigida de
maneira a revelar a sensibilidade materna sobre o adoecimento da criança. Vejamos como o
Dr. Ricardo fornece mais elementos para pensarmos sobre esta questão.

“Então, sabe que isso aí é janela (...) Cada dia mais eu chego à conclusão
que um bom pediatra se faz com muitos anos de trabalho. Mas trabalho,
assim, trabalho de... de cuidador, de acolhimento. Acolhe a criança, acolhe
a família. Então, às vezes eu estou passando a visita, passo visita lá no
pronto-socorro ou na enfermaria (...)com os alunos residentes e eles contam
uma história (...) Eu tenho um hábito, de alguns anos para cá, de sentar do
lado da mãe [e] tirar a história de novo. E aí é gozado, como a mãe sente
(...) que você dá [uma] segurança maior, de estar mostrando... Muda a
história, ela consegue ser mais clara porque você vai dirigindo de acordo
com a linguagem que ela entende, e você com o tempo vai aprendendo,

Capítulo 2
186
tirando dela o que é mais importante. E os residentes ficam até surpresos
porque aquilo não foi colocado na história que eles tiraram: ‘Mas como?!
Ela na me falou isso!’. Mas é a abordagem. O residente vem de cima pra
baixo, vem em pé, a mãe sentada. E você senta do lado, explica: ‘Como é
que você está? Você está mal acomodada aqui? Como é que você está se
sentindo?’. Quer dizer, ela se sente mais valorizada. Isso eu tento mostrar...
eu acho que é com o tempo que você vai adquirindo essa prática, essa
prática de tirar a história bem feita... Eu tento passar isso, lógico, com a
prática que eu tive, passar pros residentes, pros alunos, mas às vezes isso
fica difícil dado o modo de maturidade profissional, o cara está mais
interessado em aprender a fisiopatologia de determinada doença do que de
sentar com uma mãe, acolhê-la... as angústias, o que ela está sentindo, ali,
internada com o seu filho e um monte de criança em volta.” (Dr. Ricardo)

A incorporação do papel de cuidador pelo pediatra leva-o a deixar de falar “de


cima para baixo” para “sentar do lado da mãe” estabelecendo uma relação (parcial) de
cumplicidade entre o cuidado médico e o cuidado materno dirigido à criança. Ao invés de
guiar-se pela fisiopatologia de uma determinada doença, o pediatra maduro deve conduzir a
consulta clínica de maneira a incorporar aspectos da sensibilidade leiga sobre o
adoecimento que venham a ampliar o escopo do olhar médico. Para isto, o pediatra deve
incorporar a linguagem específica do corpo sintomático (“a linguagem que ela [mãe]
entende”). É esta dissimetria existente entre a “linguagem” dos sintomas e dos sinais
clínicos que o pediatra é instado a trabalhar em sua experiência profissional ao incorporar o
papel social de “cuidador” da criança.

“Um bom pediatra se faz com muitos anos de trabalho (...) mas trabalho (...)
de cuidador, de acolhimento. Acolhe a criança, acolhe a família.”
(Dr. Ricardo)

Como vemos, o papel de cuidador assumido pelo pediatra implica em uma


justaposição entre a <<criança>> e a <<família>> a partir de um deslize de sentido presente
na apreensão pediátrica do relato (emoção) materna.

A clareza e segurança trazidas pela presença do pediatra junto à mãe consolida-


se à medida em que a experiência profissional mostra claramente a dimensão viva do
adoecimento infantil. “Tirar” a história do paciente não significa sacar informações
Capítulo 2
187
isoladas, mas sim enveredar com cautela na inexatidão do relato materno, significa também
incorporar a emoção à razão, por um processo que explicita, ao mesmo tempo em que
explica (para a mãe, para o residente) a situação ou problema a ser investigado
clinicamente.

“A mãe sente (...) que você dá [uma] segurança maior, de estar mostrando...
Muda a história, ela consegue ser mais clara porque você vai dirigindo de
acordo com a linguagem que ela entende, e você com o tempo vai
aprendendo, tirando dela o que é mais importante (...)E você senta do lado,
explica: ‘Como é que você está? Você está mal acomodada aqui? Como é
que você está se sentindo?’. Quer dizer, ela se sente mais valorizada. Isso eu
tento mostrar (...) Eu tento passar isso, lógico, com a prática que eu tive,
passar pros residentes, pros alunos.” (Dr. Ricardo)

Quando o pediatra apreende a emoção materna, ele deve conduzi-la a partir de


um ponto de vista racional (técnico) que demonstra conhecer os liames próprios do relato
materno, fixando-se assim somente naquilo que mais lhe interessa. Podemos notar que a
ação médica está circunscrita pelos termos “mostrar/ explicar/ dirigir/ tirar”, todos eles
verbos que revelam o caráter incisivo da intervenção pediátrica. Aliás, é importante
lembrarmos que estes verbos estão aparentados parafrásticamente a termos tais como:
demonstrar, explicitar, evidenciar/ ensinar, esclarecer/ conduzir, controlar, direcionar/
retirar, separar, isolar, circunscrever.

O trabalho pediátrico apresenta-se aqui, antes de mais nada, como um trabalho


com a Linguagem, e aí é que reside o grande “aporte tecnológico” (desejado) para
dimensionar o corpo infantil.

“A linguagem que a gente usa para (...) tirar a história (...) não é suficiente
nem para entender adulto (...) muito menos para conseguir observar a cri...
[criança] E isso, você vai aprendendo, a capacidade de observação, a
sensibilidade, como que a criança fica dentro do consultório, quer dizer,
como é que é a relação com a mãe, se ela tolhe a criança, se ela (...)
mostra.” (Dra. Cristina)

Capítulo 2
188
A inserção da criança no espaço familiar mantém o fio condutor que liga a
criança ao mundo, dentro do consultório pediátrico. As crianças, frutos da humanidade,
devem ser buscadas nas relações de parentescos que mantém sua ligação com o mundo. O
universo familiar abre-se para o olhar médico como um mundo a ser objetivado em relações
pedagogicamente controladas e clinicamente dimensionadas numa estruturação da infância
operada pela apreensão, diagnóstica e terapêutica, de um corpo em desenvolvimento. O
alcance deste olhar clínico é enorme, mas a habilidade para operá-lo é algo que também
deve ser desenvolvido com o tempo da experiência profissional.

Algumas conclusões preliminares evidenciam-se, então, para o pediatra: não há


como olhar para as crianças sem vê-las como <<filhos>>; ser mãe (ou pai) é, dentre outras
coisas, estruturar-se como alguém tomado pela emoção; por fim, se ser mãe é padecer no
paraíso, então o pediatra deve aliviar as dores maternas, mostrando-lhe seus próprios
exageros, salvaguardando, assim, o “bem-estar” das crianças.

O confronto do relato materno com o exame diagnóstico deve revelar uma


sensibilidade clínica que perceba os conflitos familiares para melhor conhecer o processo
de desenvolvimento infantil. Neste ponto, estamos diante de mais um jogo entre a falta e o
excesso, uma vez que (1) falta uma <<Linguagem>> específica que venha preencher o
vazio que se interpôs entre o médico e a mãe, (2) ao mesmo tempo em que existe um mau
uso tecnológico dos instrumentos de investigação clínica, expresso tanto pelo excesso de
exames diagnósticos que invadiram a prática clínica, quanto pela falta de qualidade
assistencial decorrente de uma organização das práticas em saúde marcada pela
desigualdade social.

A insuficiência tecnológica apresentada pelo saber clínico para a apreensão do


corpo infantil em sua densidade familiar, circunscrita por uma anamnese estritamente
voltada para o dimensionamento do corpo doente, deve abrir-se para o desenvolvimento de
uma sensibilidade médica que busca incrementar seu instrumental diagnóstico e terapêutico
com a compreensão de uma linguagem em que a criança é, finalmente, encontrada – a
linguagem não verbal permite que o gesto materno soe ao ouvido médico.

Capítulo 2
189
“Eu acho que essa é uma grande peculiaridade, essa intermediação (...) [o]
aguçamento de entender uma outra linguagem que a criança está te
passando, que não é a verbal (...) Isso está presente sempre, eu acho que
numa consulta que você fizer com um adulto isso também está colocado,
você começar a observar, a entender, mas (...) na criança isso fica mais
claro, até porque num determinado momento ela não fala...” (Dra. Cristina)

Quando perguntada sobre o que mais a atrai na prática clínica, a Dra. Fátima
responde da seguinte maneira:

“O que me atrai, primeiro, é o fato [de] que a criança, ela tem toda... você
não explora ela só verbalmente. Eu acho que ela é muito mais aberta à
exploração médica (...) você reconhece uma criança quando ela está bem,
quando ela está mal, quando ela está deprimida, quando ela está alegre. Eu
acho que a criança, ela é mais transparente, ela é muito mais transparente
do que o adulto, você consegue visualizar as coisas melhor (...) Atender
adultos (...) é dificílimo (...) eles dizem uma coisa mas você acha que
realmente não é aquilo. Por quê? Porque eu sou pediatra, eu sou... eu sou
acostumada a pegar o que a mãe fala mas também ver se o que aquela mãe
fala está realmente refletindo o que aquela criança tem. Eu acho que a
criança é mais transparente. Pediatria trabalha mais com isso. Esse é o
ponto que me atrai, que você vê um paciente que não fala nada mas você vê
tudo sobre ele, enquanto às vezes tem tanto adulto que fala tudo o que pensa
e você às vezes não consegue fazer um diagnóstico.” (Dra. Fátima)

Salta aos olhos como a noção de “transparência” faz sentido para uma ação
médica que se constitui entre o <<olhar>> e o <<golpe de vista>>, entre a investigação e a
intervenção, entre a descoberta e a constatação do “corpo em movimento”, do “corpo que
fala”, da “linguagem” dos sintomas e dos sinais. Esta metáfora ótica que descreve a criança
como um ser translúcido diante do olhar pediátrico faz-se sentir também nos termos
empregados pela Dra. Fátima para apontar o que é “ser pediatra”.

“Eu sou pediatra (...) eu sou acostumada a pegar o que a mãe fala mas
também ver se o que aquela mãe fala está realmente refletindo o que aquela
criança tem” (Dra. Fátima)

Capítulo 2
190
Nesta formulação, vemos como o trabalho pediátrico trata de pegar a fala da
mãe e ver de que maneira isto se reflete na realidade infantil (corporal). Neste caso, “pegar/
ver/ explorar/ reconhecer” são todos eles termos que procuram referir uma ação médica que
procura refletir sobre a realidade infantil ou, antes, aprendê-la a partir de seu reflexo
corporal. Como “família” parafrástica destes termos podemos apontar: apreender, agarrar,
manipular/ olhar, investigar, enfocar/ averiguar, verificar, avaliar/ identificar, estipular,
determinar.

A família da criança é chamada para o palco de conflitos da clínica pediátrica,


de maneira que a mãe passa a ocupar o centro da atenção médica, tanto em um movimento
de afastamento, quanto numa tentativa de aproximação. Em ambos os casos, a mãe é
identificada como fonte de incômodo e preocupação. Incômodo quando pergunta demais,
interferindo de modo excessivo na prática médica; mas, também, quando mostra, pela sua
ausência, o limite da ação médica, evidenciando uma falta, um “vazio” no atendimento
clínico. Preocupação porque a mãe deve ser devidamente apreendida no foco de atenção
pediátrico, seja ela aproximada ou afastada do primeiro plano da ação médica.

“E um deles [professor] me chamou muito a atenção e falou: ‘Como é que


está o...?’ Eu lembro até hoje o nome do paciente, V. ‘Ah, ele teve...’ e eu
toda R1... ‘febre tantas vezes...e não sei o que’. E ele ‘Não, mas, ele tá
rindo?’ E aí eu falei: ‘Rindo?!’ ‘É, ele está brincando? Como é que está?’
‘É... mais ou menos.’ “E a mãe dele já veio aí?’ ‘E a mãe?! Veio, né.’

E aí você fala: ‘Quem é esse cara que está perguntando outras coisas?’ (...)
Eu achei legal, porque foi (...) uma das poucas pessoas... Eu faço questão até
hoje de falar, porque foi ele que deu... ‘Pô, é mesmo! Como é que não vai
falar com a mãe do moleque!?’ ‘Então chama que eu quero conversar.’

Foi a primeira vez que eu vi um professor pedindo para chamar uma mãe
para conversar, para discutir que ele ia fazer a cirurgia, como que ia ser,
quais seriam as perspectivas. E aí, deu meio que um... um es... um esta... um
esta... um estalo mesmo. ‘Então, tá tudo errado. Olha o que a gente tá
fazendo aqui’.” (Dra. Cristina)

Capítulo 2
191
A passagem de um momento em que a mãe é afastada como alguém que
atrapalha a conduta médica, requisitando justificativas e explicações sobre a assistência
prestada às crianças, para um momento em que a mãe é aproximada como um elemento
fundamental da atenção prestada às crianças, parece assentar-se numa prática profissional
iluminada muito mais pela “boa vontade” pessoal do que por uma mudança do “sistema”
educacional, profissional. Afinal, o aprendizado de uma prática clínica que problematiza o
processo de adoecimento, incorporando a dimensão familiar como um de seus elementos
mais importantes, parece estar na dependência de esforços isolados de professores
interessados na atenção integral à saúde.

“Se a criança vai com queixa de dor de cabeça, (...) recorrente, dor
abdominal... Quando você percebe que tem alguma coisa emocional (...)
[tem que] tentar buscar isso, tentar conversar. Conversar mesmo com o pai e
a mãe para ver como é que é o dia-a-dia do cara, tentando junto com eles ir
vendo o que dá para fazer para melhorar o contato com a criança, com o
adolescente.” (Dra. Zélia)

A percepção da realidade emocional da criança conduz o pediatra a tentar


conversar com seus pais para ver seu cotidiano. Diante da falta do corpo doente o pediatra
deve rastrear o ponto de inflexão causador do mal-estar infantil, tateando sua dimensão
familiar. Na verdade, aqui a ação médica é pautada muito mais por um acompanhamento do
processo de desenvolvimento infantil, afinal o pediatra deve ir vendo a criança em seu
cotidiano. Este monitoramento não é despretencioso, mas, sim, associa-se diretamente a um
fazer, afinal o pediatra é responsável por melhorar o contato com a criança, tanto o seu
contato profissional, quanto o contato “leigo” materno e/ou paterno.

Se o dimensionamento das crianças para além do corpo doente biomédico passa


pela “boa vontade” dos profissionais, ao mesmo tempo, para concretizar-se, passa também
pela noção de “sistema”, pois a prática clínica voltada para as crianças deve tomá-las a
partir de um ordenamento social necessariamente presente em seu ambiente familiar. Isto
ocorre na estruturação de uma prática pediátrica tocada profundamente pela estruturação do
sistema familiar, pedagógico, médico, organizado em torno da idéia de infância protegida,
onde a criança torna-se localizável.

Capítulo 2
192
2.6. Silêncio e palavras: abertura e fechamento do olhar pediátrico

Até agora, vimos como o olhar pediátrico lançado sobre as crianças é


intermediado pela sensibilidade materna, uma vez que a clínica pediátrica assenta-se sobre
o fato das crianças não falarem sozinhas. Vimos, também, como a investigação diagnóstica
é tratada, fundamentalmente, como um problema de Linguagem; e que a noção de
interpretação implica em um jogo de contraposições e justaposições empreendidas no
campo das relações familiares entre a ótica médica e materna sobre o adoecimento e
desenvolvimento infantis.

Para a análise que se segue, desdobraremos a constatação de que <<as crianças


não falam sozinhas>> em dois enunciados:

• <<As crianças não falam>>

• <<As crianças falam a partir de suas mães>>

Em relação ao primeiro enunciado, podemos dizer que, se no atendimento


pediátrico a relação médico-paciente é estruturada como um problema de linguagem
definido pela constatação de que <<a criança não fala>>, então a infância acena para a
existência do silêncio.

É importante destacarmos que, em consonância com as análises de Orlandi


(1997), a noção de silêncio não se define aqui pela mera ausência de palavras, mas, antes, a
partir de alguns efeitos observáveis discursivamente. Estes efeitos apontam para a
existência dos deslizes de sentidos ligados ao conceito de silêncio fundador, na medida em
que:

“O silêncio não é mero complemento de linguagem. Ele tem significância


própria. E quando dizemos fundador estamos afirmando esse caráter
necessário e próprio. Fundador não significa aqui ‘originário’ nem o lugar
do sentido absoluto. Nem tampouco que haveria, no silêncio, um sentido
independente, auto-suficiente, preexistente. Significa que o silêncio é
garantia de movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio. O
silêncio não é pois, em nossa perspectiva, o ‘tudo’ da linguagem. Nem o

Capítulo 2
193
ideal do lugar ‘outro’, como não é tampouco o abismo de sentidos. Ele é,
sim, a possibilidade para o sujeito trabalhar sua contradição constitutiva, a
que o situa na relação do ‘um’ com o ‘múltiplo’, a que aceita a reduplicação
e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre remete a
outro discurso que lhe dá realidade significativa (...) Finalmente, se a
reflexão sobre o silêncio nos mostra a complexidade da análise de discurso,
já que por ela podemos nos debruçar sobre os efeitos contraditórios da
produção de sentidos na relação entre o dizer e o não-dizer, essa reflexão
nos ensina também que, embora seja preciso que já haja sentido para se
produzir sentidos (falamos com palavras que já tem sentidos), estes não
estão nunca completamente lá. Eles podem chegar de qualquer lugar e eles
se movem e se desdobram em outros sentidos.” (Orlandi, 1997: 22-24)

Ao mesmo tempo, estes efeitos apontam para os silenciamentos dos sentidos,


produzidos pela afirmação de um único modo de dizer (política do silêncio). Neste caso,
defrontamo-nos com duas formas do silêncio:

“[O] silêncio constitutivo, que nos indica que para dizer é preciso não dizer
(uma palavra apaga necessariamente “outras” palavras); o silêncio local,
que se refere à censura propriamente (aquilo que é proibido dizer em uma
certa conjuntura).” (Orlandi, 1997: 24)

Assim, aqueles enunciados, apresentados acima, apontam não só para a


existência do silêncio fundador, mas também para existência de alguns silenciamentos
estruturados na apreensão pediátrica da infância. Passemos, então, para a análise do
segundo enunciado: <<as crianças falam a partir de suas mães>>.

Seja diante de um recém-nascido ou de um pré-escolar (que já domina


minimamente a linguagem verbal), o olhar pediátrico lançado sobre o processo de
adoecimento e desenvolvimento infantis é iluminado, de modo privilegiado, a partir da
apreensão de sua relação materna. Assim, todo sentido definido pela apreensão pediátrica
da infância é regulado pela inscrição da criança na sua relação materna.

Lembremos que o conceito de silêncio constitutivo aponta para o fato de que


todo dizer implica em um não-dizer, uma vez que produz apagamentos de sentidos outros
(Orlandi, 1997). Seguindo esta linha de raciocínio, podemos afirmar que o olhar pediátrico

Capítulo 2
194
opera um ordenamento médico do silêncio infantil, segundo o qual a criança é apreendida
necessariamente a partir de sua relação materna. Ou seja, o olhar pediátrico apreende a
Infância a partir do silenciamento de qualquer sentido que não esteja remetido à relação
materna da criança ou, de forma mais ampla, à sua relação “filial” com o mundo.

Deste modo, na clínica pediátrica o não-dizer infantil assenta-se decisivamente


sobre o dizer materno. Portanto, o silêncio infantil é remetido ao todo da relação materna,
recomposto pela relação complementar verbal/não-verbal. Dentro desta perspectiva, parece
que, finalmente, o velho ideal da visão integral sobre a criança pode ser plenamente
atingido por uma linguagem semiológica que incorpora a relação materna no ato clínico.
Esta incorporação ocorre através de um mecanismo de inclusão e exclusão operado pela
oposição verbal/não verbal, em que, à semelhança do “leito de Procusto”, corta os excessos
maternos e expande o corpo infantil em sua densidade familiar, diante do olhar pediátrico.

Neste sentido, se o silêncio infantil é remetido ao todo da relação materna, a


relação complementar mantida pela oposição verbal/não-verbal, no atendimento clínico
pediátrico, remete a linguagem semiológica ao ideal do todo da linguagem. Ou seja, a
linguagem semiológica pediátrica que tudo interpreta – na medida em que o silêncio e a
palavra revelam o gesto materno – apresenta-se como um sistema panóptico que visa
apreender a criança em sua integralidade, pressupondo necessariamente que todos os
sentidos que significam o corpo doente e o corpo infantil estejam compreendidos em seu
sistema de signos diagnósticos e terapêuticos.

Os deslizes de sentido ocorridos entre o cuidado materno e o cuidado


pediátrico, melhor discutidos mais adiante, indicam que este ideal é sustentado a partir de
uma série de silenciamentos.

Vejamos como a articulação destas diversas formas do silêncio presentes na


atenção pediátrica é estruturada a partir de um olhar médico crivado pelo ideário da
Infância Protegida.

Capítulo 2
195
2.7. A clínica pediátrica como um trabalho de tradução

O pediatra experiente deve acolher as angústias familiares para que a ação


médica estabeleça uma intervenção eficaz sobre o corpo infantil, a partir da qual a
elaboração do papel de cuidador leva a uma reelaboração dos cuidados destinados às
crianças. Para tal, o pediatra deve ter uma estrutura técnica e emocional tal que lhe
possibilite manter uma relação de distanciamento e proximidade com os pais das crianças.

Vejamos como o Dr. Ricardo descreve alguns aspectos da formação pediátrica


ligados ao trabalho com uma linguagem, a partir dos quais a razão e a emoção atuam,
conjuntamente, sobre os limites entre a ação médica e a atuação leiga no atendimento
clínico.

“Não é só sair tecnicamente bom, ele tem que ter uma estrutura emocional
pra agüentar essas demandas (...) [que] têm um impacto enorme; tem que
absorver e não bater e reverberar, não pode ricochetear em você, você tem
que absorver e sair com ele todo traduzido numa tranqüilidade. Sendo
autêntico mas com tranqüilidade. Então isso é complicado, fazer isso todos
os dias (...) trabalhar assim. Então, a questão do emocional (...) não pode ser
frio mas também não pode se incorporar todas as angústias, senão você
pira, não trabalha.” (Dr. Ricardo)

À estrutura técnica do trabalho pediátrico soma-se uma estrutura emocional em


que o pediatra se inscreve em um sistema de “obrigações” pautado por uma espécie de
economia das trocas simbólicas existente entre os cuidadores técnico e leigo das crianças.
Assim, o pediatra deve agir de modo comprometido com a incorporação parcial (mediada
pela razão) das “angústias” trazidas pelos acompanhantes das crianças.

Esta intermediação da razão pela emoção e da emoção pela razão deve ser
operada em um sistema de trocas simbólicas em que o impacto do trabalho pediátrico
(sobre médico e paciente) seja revertido em uma intervenção controlada pelo pediatra. Isto
possibilita ao pediatra apresentar-se enquanto um “cuidador técnico” que fornece um ponto
de apoio seguro para o “cuidador leigo” das crianças.

Capítulo 2
196
A utilização da metáfora mecânica para descrever esta intervenção dá conta do
caráter incisivo da prática pediátrica, assim como, chama a atenção para a presença dos
choques, dos conflitos e das tensões aí encadeados.

Assim, uma primeira situação, em que tanto a razão e a emoção quanto o


médico e o paciente são dispostos em lugares diametralmente opostos, deve convergir para
outra, em que o confronto (não elástico) da ótica técnica e da ótica leiga sobre o corpo
infantil produza novos contornos para o papel social de cuidador das crianças. Ainda que a
oposição conhecimento técnico vs não-técnico continue a atuar no setting médico, a partir
deste confronto temos uma situação em que razão e emoção se encontram intimamente
associadas tanto para o pediatra quanto para os acompanhantes das crianças.

Se a investigação diagnóstica pediátrica é tratada prioritariamente como um


problema de Linguagem, o trabalho pediátrico apresenta-se aqui, especificamente, como
um trabalho de tradução, em que diversas linguagens devem convergir para um mesmo
lugar – a proteção da infância.

A exploração diagnóstica da oposição existente entre uma linguagem verbal e


uma linguagem não-verbal na investigação clínica possibilita a realização deste trabalho de
tradução, na medida em que permite configurar uma ótica médica sobre o cuidado materno,
a qual se apresenta como um contraponto ao relato leigo sobre o adoecimento infantil.

“Você tem mãe e pai que não deixam o filho abrir a boca. Então, mesmo
uma criança maiorzinha, às vezes a gente tenta conduzir a consulta
conversando com a criança e você não consegue. Então às vezes você
precisa pedir pra sair, você conversa só com a criança. Dependendo do tipo
de coisa que é pra conversar você precisa tirar... Você pergunta pra criança
a mãe responde antes, aí você precisa tirar a mãe (...) Mas no bebezinho é
importante a gente estar conversando com (...) a mãe porque tem que
aprender algumas coisas da criança E historicamente a gente tirou isso das
pessoas, de estarem cuidando da sua saúde, tal... Então a gente tem que
devolver isso. Então a gente conversa com a mãe (...) Um nenezinho que
nasceu é uma pessoa a mais que vai vir, estava dentro da barriga lá
quietinho, já estava sofrendo alguma coisa, mas na hora que ele vem é uma
pessoa a mais que vai interferir no relacionamento do casal, que vai

Capítulo 2
197
interferir... se tem outro irmão, com o outro irmão (...) Tem que trabalhar
essas coisas e a mãe estar tentando buscar essa comunicação com o nenê
(...) Ela vai ter que intermediar algumas dessas coisas mesmo, não tem jeito.
É ela que vai te trazer o que ela acha que a criança está sentindo, quando a
criança é pequena e ela não está sabendo se expressar melhor ali. Tem
algumas formas de expressar que a gente vai traduzindo, o choro, essas
coisas, que você aprendendo a traduzir se aquilo está confortável ou
desconfortável. Mas o que é de fato, é que é a mãe que vai te ajudar muito
nisso. E a criança, como ela vai começando a melhorar a expressão dela, é
você estar buscando isso (...) se você tenta falar e não consegue você tenta
buscar desenho, buscar... trazendo historinha de alguma coisa, você vai
buscando isso nela. E o pai junto, eu acho que o importante é... Agora, é
muito mais fácil quando você percebe que o pai ajuda, mesmo que o pai... o
casal esteja separado, não esteja... Mas se tem um pai que é muito mais
presente no cuidado da criança é muito mais fácil isso, pra criança e pra
mulher.”(Dra. Zélia)

Quando a semiologia pediátrica estrutura-se a partir da disjunção verbal/não


verbal, vemos como o trabalho pediátrico lida com a existência do silêncio de maneira a
significá-lo a partir da relação materna.

Toda informação verbal será objeto de desconfiança médica, enquanto que a


gestualidade corporal das crianças será tomada como uma fonte fidedigna para a
interpretação semiológica do corpo infantil. As crianças são elogiadas pela sua
<<transparência>>, em contraposição à <<opacidade>> adulta. De um lado, os pediatras
localizam a tranqüilidade, a sinceridade, a ingenuidade, e, de outro, a ansiedade, a
dissimulação, a perversidade. No entanto, é bom lembrarmos que a transparência infantil
apóia-se necessariamente na interpretação do gesto materno, o qual, portanto, também deve
apresentar-se de modo transparente para o pediatra.

Seja lançando um olhar de superfície sobre o gesto corporal, seja enveredando


na espessura do relato verbal, toda palavra e todo gesto apreendidos pelo olhar pediátrico
devem revelar a relação materna visceral que liga a criança ao mundo (familiar, médico).
Nenhum gesto deve ser desprezado, nenhuma informação deve ser afastada. Mesmo
quando a verbalização adulta incomoda, ela deve ser “traduzida” em dizeres (aprender,

Capítulo 2
198
entender, expressar) que conduzam a uma ação terapêutica (ensinar, saber, explicar) sobre o
corpo infantil.

O fato da <<linguagem verbal>> adulta ser tratada com desconfiança pelo


pediatra não relega a um segundo plano o lugar da palavra na investigação diagnóstica.
Esta suspeição lançada sobre o relato materno apóia-se na premissa de que o “corpo fala”.
Neste sentido, o relato leigo sofre um efeito de suspensão para que o silêncio infantil seja
traduzido em palavras que (re)signifiquem o cuidado materno. Portanto, o silêncio infantil
ganha importância para a ótica médica somente na medida em que fizer sentido na
linguagem semiológica pediátrica.

“Numa certa perspectiva, a dominante nos estudos dos signos, se produz


uma sobreposição entre a linguagem (verbal e não-verbal) e significação.
Disso decorreu um recobrimento dessas duas noções, resultando uma
redução pela qual qualquer matéria significante fala, isto é, é remetida à
linguagem (sobretudo verbal) para que lhe seja atribuído sentido.”
(Orlandi, 1997: 32)

A exaltação da <<transparência>> da criança assenta-se, curiosamente, sob a


possibilidade de traduzir cada gesto corporal em palavras que acessem de modo mais
eficiente o corpo infantil. Por outro lado, a impossibilidade trazida por este silêncio implica
também na necessidade de controlar a fala da mãe, refreando a deriva interpretativa
expressa pelo “exagero” materno.

A oposição verbal/não-verbal possibilita a redução do silêncio a um papel


complementar da linguagem na investigação diagnóstica, na medida em que é remetido ao
vazio existente entre a palavra médica e o corpo infantil – um vazio a ser preenchido pela
significação do gesto materno.

“É a visibilidade (legibilidade) que se configura e nos configura. A


linguagem se constitui para asseverar, gregarizar, unificar o sentido (e os
sentidos). Quer dizer: a identidade – coerência, totalidade, unicidade –
produzida pela nossa relação com a linguagem nas faz visíveis e
intercambiáveis (familiares à espécie humana).” (Orlandi, 1997, 36)

Capítulo 2
199
Porém, como já vimos, o silêncio não é o “Outro” complementar da linguagem,
ele não vem recompor o todo de um sistema imperfeito ou danificado. O silêncio aponta
para os deslocamentos entre o dizer e não-dizer, para os diferentes campos de tensões
existentes entre as formações discursivas, para a errância dos sentidos e dos sujeitos.

Na mesma medida em que o trabalho pediátrico de tradução do gesto materno


tenta controlar os sentidos produzidos na apreensão clínica da infância, ele se apóia em
deslizes de sentidos entre o cuidado médico e o cuidado materno possibilitados pelas
tensões existentes entre diversas formações discursivas: pedagógica, direito, econômica...

Assim, se este trabalho de tradução objetiva estranhar o cuidado materno, ao


mesmo tempo em que procura “familiarizar” o cuidado médico, ele não está isento do
efeito contraditório a partir do qual deslizes de sentido são produzidos através da força
exercida pelas diferentes “formações discursivas” e pela existência do “silêncio” no
discurso pediátrico. Nas próximas sessões deste capítulo, teremos uma oportunidade melhor
para descrevermos como isto ocorre, ao explorarmos, mais claramente, os
entrecruzamentos existentes entre o sistemas médico, familiar, escolar, capitalista.

2.8. “Mal-estar” do trabalho pediátrico

De maneira geral, vimos como o pediatra deve incorporar no atendimento


clínico a sensibilidade materna para o estabelecimento de uma atenção integral à criança.
Isto acontece, fundamentalmente, porque a relação materna é constitutiva do processo de
desenvolvimento infantil e atravessa o olhar pediátrico, mantendo com ele pontos de
contraposição e de justaposição.

De maneira mais específica, vimos como a investigação clínica deve identificar


as defasagens existentes entre a linguagem verbal e a linguagem gestual presentes no
atendimento clínico a fim de tecer um diagnóstico preciso sobre o adoecimento infantil. Ao
identificar estas desfasagens, o pediatra consegue elucidar com o que a relação materna
intervém sobre o processo de desenvolvimento infantil.

Capítulo 2
200
Assim, o trabalho pediátrico procura, em grande parte, regular o exagero
materno para proteger as crianças do caráter insidioso mantido pelas palavras adultas
(familiares) com relação ao corpo infantil. O trabalho pediátrico deve traduzir o corpo
infantil, oferecendo novos pontos de apoio para o cuidado leigo. A resolução médica dos
conflitos é sempre provisória e não deixa de expor as contradições próprias de uma
profissão tocada pelo campo das relações familiares.

Na medida em que o pediatra busca manter uma relação de transparência com


a criança, ao revelar o gesto materno que o aproxima do corpo infantil, este profissional
instaura uma nova opacidade no atendimento clínico. Isto porque inscreve a criança na
ordem do discurso pediátrico estabelecido sobre o seu processo de desenvolvimento. Ou
seja, o controle da vulnerabilidade do corpo infantil às palavras adultas, estruturadas no
ambiente familiar, implica na afirmação de uma vulnerabilidade equivalente estruturada no
setting médico.

Esta configuração do trabalho pediátrico explica, de certa maneira, o mal-estar


sentido pelos pediatras na tentativa de elaborar uma atenção integral à criança. Este mal-
estar pode ser localizado em três aspectos da clínica pediátrica: aquele descrito pela
oposição existente entre o corpo doente e o corpo infantil, aquele definido pelo caráter
emocional do relato materno, aquele descrito pelo processo de medicalização do cuidado
materno. Todos os três ligam-se basicamente ao caráter vulnerável do corpo infantil.

O mal-estar que afeta o trabalho médico, em decorrência da oposição corpo


doente ao corpo infantil, trata de afirmar a vulnerabilidade da criança frente à ingerência
médica sobre o seu processo de adoecimento e de desenvolvimento. Isto porque afirma a
importância da perspectiva médica para o estabelecimento dos cuidados imprescindíveis ao
seu pleno desenvolvimento físico e mental.

O mal-estar que afeta o trabalho médico em decorrência da presença ou


ausência da mãe no consultório pediátrico interfere na concretização do trabalho de
tradução da ótica leiga para a ótica médica sobre a criança, assim como na instauração de
um ordenamento médico das normas familiares. Este trabalho de tradução torna-se tanto
mais complexo quanto implica em uma apreensão do gesto materno que não se dá através

Capítulo 2
201
da pura oposição excludente entre um ponto de vista técnico e um ponto de vista leigo
sobre o corpo infantil.

Finalmente, quando levado ao seu extremo, este trabalho não deixa de causar
um certo mal-estar entre os pediatras, quando alguns entrevistados denunciam a crescente
dependência mantida pela mãe com relação ao pediatra, em vista de um incisivo processo
de medicalização social do cuidado materno.

O mal-estar do pediatra diante do relato materno e da mãe diante do discurso


pediátrico devem convergir para um mal-estar diante da “infância desprotegida”
(vulnerável ao ordenamento adulto).

Em contrapartida, podemos dizer que o bem-estar sentido pelo pediatra com


relação à transparência infantil apóia-se numa retomada do cuidado materno. Nesta
retomada, o olhar pediátrico realiza uma breve abertura para a presença do silêncio infantil,
para então ocorrer um rápido fechamento a qualquer sentido que não seja orientado pela
medicalização da relação materna. Em realidade, o grande encontro desejado no
atendimento pediátrico será aquele ocorrido entre o cuidado materno e o cuidado médico.

Porém, estes movimentos não são controláveis por uma consciência individual
onisciente que viria a manipular toda a significação discursiva. Como já vimos, o silêncio
estrutura-se discursivamente, assim como o próprio discurso (ou estruturação discursiva)
pressupõe o silêncio. Assim, o silêncio não se constitui em matéria visível, devendo ser
compreendido pelos seus efeitos (que afetam o trabalho pediátrico), na medida em que
possibilita o movimento do discurso na contradição entre o “um” e o “múltiplo”, entre a
coesão e a dispersão.

Aliás, esta vontade definitiva que nos diz que há algo que devemos reter na
vida, um sentido que sempre nos escapa, coloca-nos diante da errância dos sentidos. A
presença do silêncio acena de modo fugaz em cada palavra que procura remetê-lo ao
visível, sua força não reside em uma solidez concreta, mas em um movimento de
desestabilização de qualquer sentido solidificado.

Capítulo 2
202
Os deslizes de sentido e os deslocamentos discursivos presentes na relação da
língua com a história (contradição) não atestam uma imperfeição lingüística, mas, sim,
apontam para a existência de um exterior da língua, que nada mais é do que seu impossível:
<<tudo não pode ser dito>> (Lalangue/Lacan). Aqui é quebrada a idéia de uma língua
descrita como um <<repertório>> estruturado enquanto um sistema homogêneo de signos.
Não há relação de complementaridade entre o “um” e o “múltiplo”, entre o silêncio e o
discurso. Trata-se de uma relação contraditória que aponta para pequenos movimentos nas
estruturas, uma vez que estas não estão fundadas sobre sistemas fechados (semiológicos ou
outros).

“Para tratar da questão do silêncio, já que é impossível observá-lo


(organizá-lo), podemos usar duas ordens de metáforas: a do mar e a do eco.
Em ambas jogam a grande extensão e um certo movimento que retorna e, ao
mesmo tempo, produz um deslocamento. ‘O final da onda que o mar sempre
adia’ (...) Como para o mar, é na profundidade, no silêncio, que está o real
do sentido. As ondas são apenas o seu ruído, suas bordas (limites), seu
movimento periférico (palavras). (Orlandi, 1997: 35)

Entre a afirmação do cuidado médico e do cuidado materno teremos a


oportunidade de ver como a infância é definida a partir de silêncios e silenciamentos que
ecoam seu caráter vulnerável. O caráter frágil e fugaz das crianças, definido pela
vulnerabilidade infantil ao meio exterior (adulto, familiar, médico), deve ser investigado
não somente nas formas assertivas em que o olhar pediátrico visa objetivar o corpo infantil,
mas também nos deslocamentos de um corpo disciplinar que se move em direção ao caráter
fugaz de seu objeto de trabalho.

2.9. Papéis familiares: a casa, o casal e seus filhos

Ser pai e ser pediatra propicia um entrecruzamento de olhares em que uma


prática profissional reafirma sua aliança com o mundo da vida familiar. Quando perguntado
se o fato do pediatra ter filhos interfere na sua prática profissional, Dr. Ricardo aponta para
a importância da paternidade como uma experiência relevante para a ótica médica lançada
sobre as crianças. Aliás, a própria demanda pelos cuidados médicos deve ser compreendida
Capítulo 2
203
nas estruturas familiares que fornecem condições específicas para a conformação do
cuidado materno/paterno.

“Ah, com certeza! Eu não tenho dúvida! Eu não tenho duvida porque é muito
mais uma questão de... não é abordagem de doença (...) é comportamental
mesmo, é coisa do comportamento infantil, comportamento da criança. Você
só consegue ser um bom pediatra se você está vivendo do lado de uma
criança dia e noite, sabendo que o pai que acorda à noite, o que ele está
sentindo, chega com essa angústia para você, com olheira. Se você não
viveu isso você vai menosprezar, ou hipervalorizar a queixa, você não
consegue passar a sua experiência. Eu acho muito difícil. Até dou um
louvor, a quem conseguiu ser um bom pediatra não tendo filho. O Boldrini,
por exemplo, não teve filho. Hoje é nome de centro de referência aí da
América Latina. Mas isso aí são exceções. Acho que a maior parte das
pessoas, pra ter uma boa atuação, tem que ter uma vivência em casa com as
crianças.” (Dr. Ricardo)

A experiência paterna forneceu para este pediatra a possibilidade de


compreender o que sente um pai diante de um filho doente, o que lhe permite distinguir a
falta (de conhecimento) do excesso (de fantasia) dos pais para configurar o adoecimento da
criança. Além disso, o fato deste pediatra ter filhos permite-lhe passar a sua experiência de
pai/pediatra para a família da criança, autorizando-o a falar não somente a partir da razão,
mas também da emoção. O alcance do ato clínico é então ampliado, construindo-se ligação
entre médico e paciente em que o ponto de vista técnico e o ponto de vista leigo encontram-
se articulados de modo anterior à consulta médica na experiência pessoal do próprio
pediatra. A vivência “em casa” com as crianças permite ao pediatra a aproximação com o
lugar primeiro de existência da infância – a família.

Aqui, mais uma vez, vemos como os planos da sensibilidade leiga e da


profissional tocam-se pela conformação do corpo infantil em sua densidade familiar. A
vivência pessoal do médico, tenha ele filhos ou não, interfere em sua prática clínica sob um
duplo aspecto: em primeiro lugar, porque na consulta pediátrica são estabelecidos jogos
simbólicos em que ser pai e ser mãe torna-se uma matéria relevante para a prescrição dos
cuidados médicos; em segundo lugar, porque a vivência da paternidade e da maternidade,

Capítulo 2
204
seja através dos filhos que temos ou dos filhos que fomos, consiste em uma experiência que
organiza o olhar médico voltado para o dimensionamento familiar do corpo infantil.

Ambos os aspectos devem auxiliar a compreensão do campo de tensões que


compõe a inserção da criança em sua casa, chamando a atenção do olhar médico para a sua
realidade familiar.

“Quer dizer, o que faz ela levar a criança no médico, em que momento (...)
qual o papel que essa criança desempenha dentro da casa. Então, (...) a
criança que é um problema, e precisa ter aquele problema para que outras
questões não sejam discutidas dentro da casa. Então, deposita toda angustia
dentro de um mal relacionamento do casal (...) cria-se um problema na
criança, porque aí todo mundo fica em cima daquilo e não (...) Chega lá e
tampa (...) Então você tem que ir percebendo isso, como abordar, entender o
papel que a criança tem dentro da casa. E isso você realmente vai
aprendendo com o tempo.” (Dra. Cristina)

Se a criança não fala ou não pode falar sozinha de si mesma, ela fala a partir de
sua dimensão familiar, por isto mesmo ela fala sobre e sob a casa em que ganha espaço o
seu processo de desenvolvimento. A criança fala sobre a casa em que vive, sobre o
casamento de seus pais, sobre as relações de parentescos que compõem seu universo
familiar.

Conhecer as crianças sem tocar este universo é tornar precária a intervenção


clínica; ater-se ao relato materno para informar-se sobre este universo redundaria em iludir-
se em um reino de fantasias. Ao pediatra cabe a árdua tarefa de separar o joio do trigo
nestes jogos em que os planos da fantasia e da realidade põem em relevo conflitos
específicos que dão densidade ao corpo familiar.

Descobrir a “criança-problema” ou a criança em que são “depositados” os


problemas implica em uma refletir (problematizar) sobre a situação da criança em sua casa.
O pediatra lança mão de sua sensibilidade para aproximar-se da emoção familiar e, assim,
compreender melhor os conflitos que estão interferindo no desenvolvimento infantil.

“Então você tem que ir percebendo isso, como abordar, entender o papel
que a criança tem dentro da casa.” (Dra. Cristina)

Capítulo 2
205
É significativo o fato desta aproximação ser descrita como um gesto que se
formula antes no campo da percepção do que no do saber. Afinal, este é um dos raros
momentos em que a ação médica não está circunscrita pela explicação.

A dificuldade encontrada pelos pediatras para acessarem de modo direto as


crianças é indentificada, entre outros elementos, com a capacidade demonstrada pelas
crianças em adaptarem-se fielmente às dinâmicas familiares, assumindo padrões
comportamentais cuja normalidade ou anormalidade só pode ser compreendida pela
observação dos conflitos próprios à estrutura familiar em que a criança é localizada. A
grande capacidade de adaptação ao meio em que vive leva a criança a certos graus de
somatização dos conflitos familiares em que se define sua inserção no mundo.

“Eu acho que essa coisa de adaptação da criança em situações de conflito


interno e familiar, ela se adapta muito, e às vezes nem consegue somatizar,
talvez fique subliminar, a gente não faz diagnóstico, a não ser quando a
coisa está muito clara: maus tratos, negligência, abandono. Mas eu acho que
a criança consegue até administrar bem as questões de conflito. E, se você
ver a incidência que a gente tem, que chegam com essa demanda, de conflito,
é muito pouco. E a gente sabe, em toda casa tem. A criança consegue
abordar melhor, trabalhar melhor com essas questões do que um adulto. Ela
responde mesmo diferente, à perda, à morte (...) Mas quando a coisa está
muito grave mesmo, aí sim. Acho que a gente só consegue fazer diagnóstico
quando a coisa está mesmo muito complicada (...) [quando] tem que ter
intervenção, risco de maus tratos... risco não, já tem [que ter] definido o
diagnóstico de maus tratos.” (Dr. Ricardo)

Somente quando estes conflitos são somatizados é que os problemas no cuidado


materno tornam-se mais visíveis para o pediatra. Mesmo assim, a maleabilidade do corpo
infantil diante da intervenção adulta (familiar, pediátrica) e sua conseqüente capacidade
para absorver as perdas e os conflitos dificultam a formação de um quadro diagnóstico bem
definido, inviabilizando, em parte, a investida médica sobre o corpo familiar.

“Acho que a gente só consegue fazer diagnóstico quando a coisa está


mesmo muito complicada (...) [quando] tem que ter intervenção”(Dr. Ricardo)

Capítulo 2
206
O estabelecimento do diagnóstico parece associar-se à capacidade de
intervenção pediátrica sobre o corpo infantil/doente, uma vez que torna-se mais difícil
consolidar o diagnóstico quando a situação vivenciada pela criança não autoriza a clara
identificação de um quadro clínico a partir do qual a ação médica seja legitimada.

Aliás, existe um conjunto inesgotável de aspectos a serem investigados pelo


pediatra na tentativa de delinear os limites entre o corpo doente e o corpo infantil. O olhar
médico dirige-se para a casa da criança como um espaço em que pode trabalhar estes
limites através da observação das diferenças sociais que fornecem inserções específicas
para as crianças, conferindo modos específicos de adoecer.

“Você tem que ensinar o aluno a ver isso. Porque essa determinação que
você tem no processo saúde-doença, eu acho que tem duas coisas que são
fundamentais aí. Eu acho que primeiro é olhar essa coisa pela perspectiva
da saúde, não da doença. A doença faz parte, então não é nela. E a segunda
é o quanto que essas diferenças interferem nesse processo saúde-doença.
Determinação (...) de inserção de classe que vai ter o jeito de cada problema
de manifestar. E isso é tão escarrado! Quando a gente vai aprendendo a ver
não tem como não ver! Então, (...) uma criança (...) com anemia, por
exemplo, (...) você tem que fazer uma história alimentar (...) e tem que dar o
remédio. Então você tem que saber como é que você vai dar esse remédio, o
que tem em casa para comer, o que não tem, se a mãe trabalha, de que hora
a que hora, que hora que vai dar o remédio, que hora que não vai. Se está
dando o remédio. Às vezes você está tratando, tratando, descobre que não
está dando o remédio. Aí você conversa, vê de novo o que está acontecendo e
tal. Esses dias atrás (...) a gente fez exame e ainda não estava bom. Aí eu fui
conversar com ela (...) “Mas ele engole o remédio ou ele cospe?”, “Ele
cospe tudo, doutora!” (risos). Esqueci de perguntar se ela engolia. Ela
estava dando, estava fazendo tudo direitinho, mas eu esqueci de perguntar se
ela estava engolindo. Então, se você não fica atento pra essas coisas, dança
(...) A outra que não sabe ler direito, ou sabe ler mas não lembra (...) Então
você tem que saber do que está acontecendo com as pessoas pra poder estar
inclusive podendo (...) Não adianta você prescrever, a gente só cuida (...) Se
as pessoas não estão envolvidas nesse processo, não consegue. E você tem
que estar desenvolvendo autonomia aí com a mãe podendo cuidar.”
(Dra. Zélia)

Capítulo 2
207
Conhecer a <<casa>> torna-se um caminho seguro para que a intervenção
médica alcance uma eficácia terapêutica que atinja as dinâmicas familiares nos pontos de
inflexão em que se definem os processos de adoecimento infantil. Assim, <<a doença faz
parte...>> do objeto de trabalho pediátrico, <<.... mas não é nela....>> que o olhar médico
vem a reconhecer o todo de seu objeto. A pediatria deve estar atenta ao processo saúde-
doença, ao processo de desenvolvimento infantil, ao processo de construção do cuidado
materno. Aí reside a possibilidade de encontrar a criança em sua integralidade.

O pediatra <<deve saber (clínica, família)... o que está acontecendo (doença,


adoecimento)... para poder... (tratar/doença, cuidar/criança)>>. Esta quase onisciência
reclamada pelo pediatra inclui conhecer desde pequenas informações, tais como se a
criança engole ou não o remédio, até um conhecimento sobre como a mãe apreende as
orientações médicas. O pediatra deve estar atento ao comportamento materno dentro e fora
do consultório médico.

A visualização das singularidades que modulam o “jeito de cada problema se


manifesta” implica em uma experiência profissional que dificilmente já está elaborada
pelos residentes, por isto mesmo os professores devem esforçar-se para demonstrar aos
alunos como abordar o paciente, de modo a incrementar o olhar pediátrico com elementos
próprios da vida das crianças.

“Você tem que ensinar o aluno a ver isso (...) Quando a gente vai
aprendendo a ver não tem como não ver!” (Dra. Zélia)

Uma vez que o pediatra apreenda o exemplo dado por seus professores sua
prática clínica não mais deixará de ser tocada pelas tensões constitutivas do trabalho
pediátrico.

É interessante como o lapso presente na variação pronominal <<ele/ela>>,


presente no depoimento da Dra. Zélia, expressa o modo ágil como a atenção pediátrica
volta-se do filho para a mãe e da mãe para o filho, chegando, mesmo, a fundir ambos os
termos numa só relação: as crianças só podem ser compreendidas a partir da relação
materna.

Capítulo 2
208
“ ‘Mas ele engole o remédio ou ele cospe?’, ‘Ele cospe tudo, doutora!’
(risos). Esqueci de perguntar se ela engolia. Ela estava dando, estava
fazendo tudo direitinho, mas eu esqueci de perguntar se ela estava
engolindo.” (Dra. Zélia)

Assim, interessa ao médico avaliar como a intervenção pediátrica está atingindo


as dinâmicas familiares pela observação do processo de medicalização do cuidado materno.
Não importa somente reconhecer as formas como os diferentes meios (sociais, familiares)
interferem no processo de desenvolvimento infantil, deve-se agir sobre estes meios de
diferentes formas, a fim de garantir uma certa normalização do cuidado materno.

Não cabe à Medicina revolucionar as condições materiais de existência, uma


vez que as diferenças sócio-econômicas apresentam-se como uma grade que garante uma
estratificação social do desenvolvimento infantil. Porém, como <<as diferenças interferem
no jeito de cada problema se manifestar>>, a Pediatria não pode omitir-se diante desta
situação, devendo, assim, conhecê-la naquilo que interfere em seu trabalho: o cuidado
materno é o ponto concreto em que a clínica pediátrica ganha a possibilidade de intervir
amplamente sobre o processo de desenvolvimento infantil.

“Não adianta você prescrever, a gente só cuida (...) Se as pessoas não estão
envolvidas nesse processo, não consegue. E você tem que estar
desenvolvendo autonomia aí com a mãe podendo cuidar.” (Dra. Zélia)

A autonomia materna é ambiguamente produzida num processo de acoplagem


da ótica leiga à ótica médica, em que ocorrem pontos de desestabilização de ambas as
perspectivas, na medida em que a emoção e a regra formam um duo em que o cuidado
(médico/materno) define-se como condição primeira do pleno desenvolvimento infantil.
Assim, surge com força a idéia de que o médico deve garantir o envolvimento da criança, da
mãe, da família nesse processo ambíguo em que a ótica médica afirma-se (e firma-se) sobre
o cuidado materno (leigo), no sentido de desenvolver a autonomia familiar.

Quando o professor da Dra. Cristina pergunta se aquele menino estava


brincando e se sua mãe estava ao seu lado, vemos como a criança é pensada a partir de sua
relação materna (necessária) com o mundo. Esta passagem é indicativa também do modo
como o universo infantil é configurado pelo elemento lúdico que permite localizar as
Capítulo 2
209
crianças em seu processo de desenvolvimento. Isto ocorre, seja através de brincadeiras
didáticas em que a aprendizagem de habilidades e conhecimentos é visada de modo
explícito, seja em jogos infantis em que são experimentados papéis sociais diversos.5

De um lado, o desenvolvimento da autonomia do cuidador leigo associa-se ao


reconhecimento do universo familiar da criança. De outro lado, a ação pediátrica se
desenvolve como algo mais do que a mera prescrição de condutas a serem assumidas pelos
acompanhantes de seus pacientes – abrindo-se, assim, para a possibilidade de incorporar o
“cuidado” das crianças – quando envolve seus cuidadores em um ato clínico que leva em
conta as suas peculiaridades.

Desta forma, para que o pediatra inscreva-se como “cuidador técnico” de seus
pacientes ele deve estar atento para a maneira como os acompanhantes das crianças
constituem-se, eles próprios, enquanto “cuidadores”.

O pediatra deve lembrar que o corpo familiar não é homogêneo, e, portanto,


deve ser considerado em suas diferenças. Os papéis sociais do pai e da mãe estabelecem
distinções importantes para a investigação pediátrica, na medida em que se definem,
também, a partir do papel de cuidador da criança. De maneira geral, a consulta clínica é
afetada pelo acompanhante da criança, seja ele seu pai, sua mãe, ou mesmo seus “afins”.

“O acompanhamento, (...) como explicar tudo, muda. E essas pessoas são


diferentes na relação com a criança, um pai, como que ele é, quer dizer, o
quanto de angústia (...) Há uma tendência de que a mãe é uma pessoa mais
presente, é a pessoa que dá mais segurança nesse momento de consulta
dessa criança, um vizinho, uma outra pessoa (...) se não tiver nenhum
vínculo, também, é sempre uma pessoa mais distante. O pai tende a não ser
a pessoa que sabe de todas as coisas (risos) dos filhos, isso é uma coisa mais
ou menos comum, vai perguntar e eles não sabem.” (Dra. Cristina)

Em primeiro lugar, importa para o olhar pediátrico entender qual a relação


mantida por um pai ou uma mãe com seu filho, na medida em que se torna possível a partir
daí a compreensão da realidade familiar da criança, e, consequentemente, dos papéis sociais
de doente e cuidador construídos neste fluxo entre a casa e o consultório médico. Mas
também importa ao pediatra perceber como é o comportamento de um pai ou de uma mãe

5
Polícia e Ladrão, Duro e Mole, Cabra Cega, Passa Anel...

Capítulo 2
210
na consulta clínica, e, desta forma, compreender qual a sua importância no espaço
terapêutico.

O pai tende a não saber as informações requisitadas pelo pediatra a respeito do


adoecimento das crianças, uma vez que seu vínculo com os filhos não lhe confere o papel
de cuidador privilegiado. As mães, dentro de toda a sua inexatidão, é que oferecem maior
segurança a uma conduta médica adequada às necessidades da criança. Aliás, segundo os
entrevistados, a mãe é o acompanhante mais presente nas consultas pediátricas.

“É geralmente a mãe, nem sempre, pai traz bastante, até essa coisa do
desemprego... Mas (...) tem mais pai (...) quando você trabalha em pronto-
socorro” (Dra. Zélia)

A relação com o mundo do trabalho e o papel de chefe de família conferem ao


pai a posição de provedor e não de cuidador das crianças. Ainda que a situação atual de
desemprego leve a uma maior disponibilidade dos pais para acompanharem seus filhos nas
consultas médicas, será preferencialmente em casos de maior gravidade (excepcionais) que
o pai vem a atuar explicitamente como cuidador de seus filhos.6

“Na nossa sociedade, o pai é pouco envolvido no cuidado da criança. Eu


acho que ultimamente está sendo mais envolvido (...) [Mas] quando o pai
vai, às vezes não sabe informar direito o que está acontecendo. Mas tem pai
que sabe tudo. Mas na maior parte das vezes não sabe. Porque ele está
envolvido pouco, ainda, com a criança, com o cuidado da criança (...) Aí
você tenta trazer, mostrar a importância. Uma coisa que a gente tenta fazer
nas consultas das crianças, desde pequenininha, é tentar ver se o pai vai
junto na consulta. Mas isso é complicado porque às vezes o cara perde o
emprego. E mesmo a mãe, você precisa tomar cuidado com o quanto você
pede de retorno pra criança porque senão ela perde o emprego. Então você
tem que tomar alguns cuidados aí. Mas é interessante, eu sempre converso
com as mães porque a mulher às vezes não deixa o marido participar
também do cuidado da criança. Então, quando que o marido pode estar
ajudando, tal, a gente sempre tenta fazer um pouco disso.” (Dra Zélia)

6
É importante dizer que nos referimos aqui ao papel de cuidador estritamente ligado ao adoecimento infantil,
sem querermos abordar qualquer outra dimensão da relação paterna.

Capítulo 2
211
Vemos como os papéis sociais de cuidador e de provedor da criança implicam
não só em diferentes relações com a criança, mas também garantem lugares diferentes no
atendimento clínico. A proeminência da mãe como cuidadora natural de seus filhos parece
coadunar-se harmonicamente com a ausência do pai na casa, ou, ao menos, na consulta
pediátrica.

Assim, se o envolvimento do pai no atendimento pediátrico é fragilizado por


um papel social de cuidador paterno que não contribui para a formulação de um olhar
atento ao desenvolvimento e adoecimento infantis, também a própria atenção pediátrica não
se preocupa em desenvolver o cuidado paterno para além de seu lugar secundário no âmbito
médico e familiar, a não ser em casos especiais.

“Olha, sinceramente, a gente tem uma experiência, aqui no nosso (...) meio
social, (...) com pai, muito ruim. Ou ele não está presente porque ele está
trabalhando mesmo, ou ele não está presente porque dentro daquela
estrutura familiar ele (...) não tem importância nem do ponto de vista de
ganho financeiro nem de cuidador dos filhos, ali, [para] ajudar a mãe em
casa. Porque é uma estrutura extremamente machista, o papel está delegado
à mãe, cuidar dos filhos, e raramente a gente consegue tirar alguma coisa a
mais quando é um vizinho ou um parente que traz. A não ser nas crianças
que estão institucionalizadas, que vêm com a pessoa que está encarregada
delas, o responsável. Mas... é totalmente diferente tirar uma história com a
mãe, tirar uma história com o pai ou com o tio (...) Às vezes (...) é muito
comum os pais que ficam com as crianças, os separados, [que] vêm o fim de
semana com a criança – o pai. Aí você tenta tirar uma história, ele fala:
‘Mas eu peguei ele ontem. Não sei. Olha, de ontem para cá ele está com isso,
mas não sei o que aconteceu antes’. Mas aí você fala (...) [que] a história
tinha que ter um dado anterior: ‘Não dá pro senhor ligar pra...?’ [E o pai
então responde]: ‘Não, não. Não converso com ela...’ (...) É o que eu falei,
tirar água de pedra, porque você tem poucos dados porque é o pai que
trouxe, que pegou a criança pouco tempo [e] tem que devolver domingo à
noite com medo da mãe dar uma dura porque ele devolveu a criança pior do
que pegou, e ele leva lá no pronto-socorro. Quer dizer, é muito diferente, eu
acho que a mãe é o ponto-chave, a estrutura realmente... na nossa
sociedade, essa que vive em volta da gente, que freqüenta nosso hospital...
Em clínica privada não, às vezes o pai chega e fala muito melhor até que (...)

Capítulo 2
212
a mãe. Tem pais que cuidam dos filhos, [pois] a mãe está trabalhando. Eu
atendo umas crianças (...) [em consultório, por] convênio, particular, e às
vezes a mãe é a estrutura-chave na família, ela que trabalha e o pai que
acaba cuidando das crianças. Então, quando ela vem, ela vem com os filhos
mas com o pai junto pra falar o que está acontecendo, porque ela se sente
na obrigação, como mãe, de estar lá presente. Mas ela precisa da ajuda do
pai pra mostrar a história.” (Dr. Ricardo)

Mesmo quando as transformações do mundo do trabalho imprimem novas


dinâmicas nos arranjos familiares, vemos como o papel de cuidador das crianças continua
sendo melhor identificado na figura materna. A mãe que trabalha sente-se na obrigação de
acompanhar seus filhos na consulta médica, mesmo quando o pai sabe informar melhor o
pediatra sobre o processo de adoecimento da criança. O próprio fato da mãe ter-se
distanciado das atividades “inerentes” ao cuidado materno certamente interessa à
investigação pediátrica sobre o adoecimento e desenvolvimento infantil.

Ademais, quando o cuidador da criança não a acompanha na consulta médica o


trabalho clínico torna-se árduo, e a intervenção pediátrica é restringida, em grande parte,
por uma investigação diagnóstica que procura “tirar água de pedra”, limitando-se a extrair
informações esparsas a serem complementadas de maneira muito frágil com os exames
físicos e/ou laboratoriais. A ação médica não atinge o corpo familiar da criança, assim
como dificilmente apreende plenamente seu processo de adoecimento/desenvolvimento, se
não se defronta com o cuidador das crianças, único sujeito com quem o cuidado médico
pode completar-se.

Assim, quando perguntado se o fato do acompanhante ser sua mãe, seu pai ou
um vizinho interfere na consulta pediátrica, Dr. Gustavo nos responde o seguinte:

“Completamente. Não é a experiência de centro de saúde (...) não é essa a


minha experiência, [mas] quem vai, em geral, se é primeiro filho é sempre a
mãe com a avó materna, e eventualmente a babá. Às vezes o pai vai junto. Se
não é o primeiro filho, não necessariamente vai a avó, ou vai a babá ou o
pai. Mais recentemente os pais começaram a participar melhor. E não foi
raro o pai levar a criança. E não foi raro a babá levar a criança com o
motorista, o que eu achava sempre muito ruim (...) [porque a mãe não

Capítulo 2
213
pôde] abrir um espaço na sua agenda de executiva. Ficava imaginando
quanto de afeto ela tinha para dar pra esse filho em casa, porque nem isso...
Achava isso muito triste, mas [é] um sinal dos tempos. Agora, a maior parte
do tempo o meu interlocutor, ou a pessoa que levava, foi sempre a mãe,
muito raramente irmã ou tia, às vezes ia a avó só, mas muitas vezes foi só
babá e motorista. E eu achava isso horrível, mas dava toda a atenção. Aí ele
ligava para a mãe, explicava, mas não era igual, não era igual. Ou a mãe
ligava só pra se tranqüilizar. E aí você percebia que a mãe que contava com
a criança não era a mãe biológica, era mesmo a babá, o pai não era mesmo
o pai, era mesmo o motorista. E isso é triste de você ver. Mas eu lidava assim
mesmo. Então dou orientação pro motorista, dou orientação pra babá, faz
uma bruta diferença porque (...) eu aprendi isso (...) você tem que dar
orientação pra quem está cuidando, não é pra mãe, é pra quem está
cuidando. Então eu fazia muita questão de explicar direitinho pra babá ou
pra enfermeira (aspas enfermeira), lá, enfim, atendente que levou, toda
atenção. Para mãe eu explicava, está com tal problema, receitei tal coisa e
tal, agora, o detalhe não era para mãe, era pra quem levou lá mesmo.”
(Dr. Gustavo)

A infância requisita que o estranho seja tornado familiar. Assim, a Pediatria tem
que ultrapassar as dificuldades apontadas pela Clínica na relação médico-paciente, para
encontrar-se com o elemento familiar que traz com maior força o dimensionamento do
corpo infantil – a maternidade ou a relação materna que ultrapassa a mãe biológica.

Mesmo quando o cuidador privilegiado da criança não é a sua mãe biológica,


aquele que ocupar este lugar será objeto de interesse na consulta pediátrica, na medida em
que possibilita a intervenção médica sobre o cuidado materno. Para que a babá e o
motorista sejam tomados como os interlocutores privilegiados do pediatra, eles têm que ser
necessariamente remetidos aos papéis sociais de mãe e pai da criança.

Este arranjo familiar, em que as relações maternas e paternas são recompostas


entre os empregados da casa, será o grande locus da intervenção médica. Tentemos
entender um pouco melhor a tristeza demonstrada pelo Dr. Gustavo ao descrever tal
situação.

Capítulo 2
214
Em primeiro lugar, aponta-se aí uma falta de afeto da mãe pelos seus filhos
como única explicação possível para que os cuidados maternos sejam delegados de maneira
tão enfática para a babá das crianças. Esta falta de afeto aparece como um <<sinal dos
tempos>> que se associa não somente ao fato do trabalho feminino, atualmente, estruturar-
se de maneira a exigir uma dedicação cada vez maior das mulheres ao mundo do trabalho,
mas que, antes de mais nada, associa-se de maneira especial a um crescente desinteresse
pela condição materna.

“Eu cobrava responsabilidade das mães e as mães na época não gostavam


muito de cuidar de filho. Elas estavam mais interessadas no crescimento
profissional. Isso nos anos oitenta, acho que agora, de noventa e cinco, seis,
pra cá, eu tenho pego uma geração de mães mais... Assim, muitas já vêm
com essa opção: ‘Eu vou cuidar da criança’. Está deixando de trabalhar
meio período e cuidando do filho. Ou algumas [até mesmo] parando no
primeiro ano de vida [da criança] (...) Na verdade, hoje eu tenho um
consultório muito selecionado, porque essas mães que vão indicando (...)
todo mundo sabe como eu trabalho, então (...) pode ser que a minha amostra
não seja a tendência das mães brasileiras (...) de dizer que as mães hoje
estão optando mais pela maternidade, ou com menos sofrimento [do] que as
mães da década de oitenta [que] dificilmente faziam a opção pela
maternidade, [pois] elas faziam a opção pela profissão mesmo.”
(Dra. Mônica)

Vemos, neste trecho, como a condição materna está marcada pela noção de
“sofrimento”, na medida em que estar interessada no crescimento do seu filho rivaliza com
o investimento em seu crescimento profissional. Por sua vez, abdicar do compromisso com
o cuidado materno implica em prejuízo ao crescimento e desenvolvimento de seu filho.

Em segundo lugar, a condenação do lugar ocupado pelos empregados da casa


na criação das crianças ressoa uma antiga denúncia alardeada pelos higienistas de séculos
anteriores a respeito do caráter perverso implicado na introdução das amas de leite e da
criadagem doméstica na vida familiar das elites.

Capítulo 2
215
Conforme já vimos, à medida em que o elemento materno estrutura até certo
ponto o atendimento pediátrico, ele será, a um só tempo, um objeto estranho e familiar ao
setting médico. Desta forma, ainda que a babá não seja a mãe biológica da criança, ela deve
ser aproximada na consulta clínica de maneira a tornar-se familiar diante do olhar médico.

Outro ponto de destaque na colocação do Dr. Gustavo trata de lembrar o


importante papel desempenhado pelas avós maternas na orientação do cuidado materno,
principalmente para aquelas mães de “primeira viagem”. Tal como a presença do pediatra
traz uma maior segurança para as mães, na medida em que possibilita a conformação de um
olhar assentado no saber clínico, a avó materna sinaliza a presença da tradição cultural,
expressa pelos cuidados baseados em uma longa experiência acumulada através das
gerações.

2.10. Público e privado: assistência e clientela

A força com que os conflitos decorrentes do estabelecimento do lugar da mãe


no atendimento pediátrico permeiam e constituem condições de produção específicas para o
ato clínico voltado para as crianças pode ser percebida claramente quando observamos
como a contraposição Corpo Doente X Processo de Adoecimento inscreve a própria
Pediatria num sistema de saúde em que os limites entre o público e o privado são postos em
jogo a todo momento. Tornar o estranho familiar e tomar o espaço privado da vida –
formado por sentimentos e comportamentos envoltos em uma atmosfera de intimidade –
como um objeto a ser normatizado publicamente, não será tarefa fácil e sem pesares no
fazer pediátrico.

“Nenhuma discussão (...) com o paciente e com a família, no caso, com a


criança (...)[era] muito ruim esse lado, na residência (...) com muitos
avanços hoje, que até o fato da mãe permanecer do lado da criança hoje,
que é (...) uma conquista (...) hoje é um direito, a mãe (...) não pode separar.
E tem que dar condições que inclui lugar, comida, tomar banho (...) Era um
(...) abismo, você fazia o que queria e não dava satisfação pra família (...)
isso é um negócio horrível. Então, o atendimento da enfermaria tinha essa
característica, a criança ia a óbito, [e] você, como residente, um R1, R2, vai

Capítulo 2
216
lá dar a notícia sem preparo (...) mostrando a despreocupação que havia.
Melhorou um pouco isso, hoje tem uns grupos (...) de psicólogos, discutindo,
fazendo grupo (...) [Mas era] assim: ‘Ó, agora avisa a mãe lá e vê se
consegue a autópsia, porque pra gente é importante’, entendeu. Então, uma
coisa muito ruim, porque, você não tinha nem como falar aquilo, não tinha
preparo, e isso mostra uma despreocupação, um descompromisso mesmo,
com aquelas pessoas que eram objeto de estudo. Então, essa coisa do objeto,
era o que eram (...) continua sendo, mas pelo menos agora não é
politicamente correto falar isso abertamente: ‘Vai lá e vê se consegue a
autópsia’. Ninguém fala isso. Pode até pensar (...) mas não fala. Naquela
época era claro, quer dizer, paciente do sistema público é objeto de estudo.
Então, hoje, ninguém fala isso. Pode até pensar e agir como, mas não fala
pelo menos. E naquela época era uma coisa natural.” (Dra. Cristina)

A clínica pediátrica requisita a presença de elementos que mostrem que a


criança escapa necessariamente ao estreitamento em que o processo de adoecimento reduz-
se aos estreitos limites do corpo doente. A presença materna garante, a princípio, a recusa
desta redução, mas, no entanto, sem evitá-la por completo. Isto porque esta redução é
concretizada mesmo quando censurada em um contexto político em que ela pode até ser
“pensada” mas não “falada” (explicitada).

A denúncia da inexistência de uma preparação prévia para noticiar a morte de


um filho para a sua mãe expressa muito bem esta situação: o residente deve dizer para a
mãe que a criança “foi a óbito”, mostrando-lhe, se possível que esta perda será recuperada
pedagogicamente pela realização da autópsia. Tarefa árdua esta que pesa nas cabeças dos
residentes, demonstrar que, diante do desaparecimento da vida, permanece um corpo doente
que merece ser revelado, ainda que na evidência da morte.

À mãe deve ser concedido o direito de permanecer ao lado do filho, garantidas


as condições básicas para a sua estada no setting médico. Ademais, sua presença deve ser
requisitada pelo olhar pediátrico, em troca do que a mãe deve ceder o passo para o
caminhar terapêutico, concedendo seu filho ao olhar médico (inclusive em sua morte). Este
grau de exigência não é facilmente tolerável, sequer pelos profissionais responsáveis por
realizar tal tarefa. Os residentes sentem uma incrível falta de preparo para enfrentar esta
situação, desamparados que estão diante da fragilidade da vida que se desfaz diante de seus
olhos, na mesma medida em que se constrói o olhar médico sobre a doença.
Capítulo 2
217
A denúncia das más condições de trabalho que colocam médico e paciente num
lugar menor (especialmente na Pediatria!), subjugados pela ótica de uma produtividade
taylorista-fordista que impede o compromisso com a vida, põe em jogo mais uma vez as
noções de sistema e de boa vontade. Isto ocorre na medida em que o político é descrito em
termos de uma <<decisão/juízo>>, que passa tanto pela estruturação geral dos serviços de
atenção à saúde, quanto pela discussão sobre o tipo de assistência destinada para os
pacientes do setores público e privado de saúde.

“No pronto-socorro as condições de atendimento eram desumanas (...)


continua ruim (...) ele continua exatamente igual até um ano atrás (...)
mostrando que (...) é uma decisão, de fazer política, de fazer o pronto-
socorro ser ruim (...) A gente trabalhava de pé, no atendimento (...) chama-se
o paciente pra atender não é numa salinha, era um salão cheio de mesinhas
e divã alto, porque pediatria no fim acaba sendo pequeno, numa sala
grande cabe um monte. E aí, a gente atendia de pé o dia inteiro. E os
pacientes também de pé (...) a mãe de pé, você de pé (...) Pronto-socorro é
pra ser esse lixo mesmo, faz de qualquer coisa aí (...) essas pessoas merecem
só isso mesmo, não têm direito a uma coisa melhor. E... isso continua (...) a
questão é ideológica aí por trás (...) no ambulatório era onde a gente atendia
(...) um pouco melhor (...) porque é um lugar que você (...) não tem uma
pressão de demanda tão grande (...) e aí a gente acho que se sentia um
pouco mais médico, fazendo uma coisa mais adequada.

[Sobre o estágio em Centro de Saúde]Era aquela coisa de atender


população carente. Então ‘Ah, vamos lá atender no postinho, quem não tem
muita coisa pra... outro lugar pra ir’. E atendia bem porque não tinha uma
pressão... muita pressão de demanda, era um lugar mais tranqüilo, a gente
passava o dia, tinha um almoço bom (...) uma coisa meio bucólica aí (...)
Não que fosse um projeto claro, dentro do departamento (...) mas a gente
gostava, os residentes todos gostavam por causa disso. Depois, acabou
melhorando um pouco mais e politizando esse trabalho, mostrando que não é
só isso (...) faz parte... é um sistema local.” (Dra. Cristina)

A discussão em torno dos direitos do paciente e do trabalhador de saúde


certamente ganhou novos contornos a partir do Movimento Reforma Sanitária, que
contribuiu para a construção de um sistema de saúde pautado por formulações jurídico-

Capítulo 2
218
políticas bastante avançadas, presentes na Constituição de 1988 e consolidadas pela
regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS), quando da aprovação da Lei 8.080, em
1990.

Não obstante este novo estatuto político-jurídico do sistema de saúde brasileiro,


o qual fornece uma configuração institucional inédita para as ações em saúde, permanecem
ainda os ecos de um “saber” e de um “fazer” construídos numa longa tradição assistencial
que somente teve abalado alguns de seus pilares sustentadores. Assim, o comentário da
Dra. Cristina mostra como uma determinada caracterização dos serviços de saúde, mesmo
quando criticada, não perdeu a sua atualidade: aos pobre cabe a pobreza de serviços, de
conhecimentos, de recursos, de compromisso, resultando em uma “pobreza” da atenção
pediátrica.

A demanda vivida no setor público oprime tanto os profissionais quanto os


usuários dos serviços de saúde, devendo ser contida e bem administrada. Diante disto, ainda
que, por vezes, seja naturalizada a oferta de uma assistência precária aos que “não têm para
onde ir”, através de um atendimento clínico em que os conflitos próprios à atenção
pediátrica são vividos de maneira rude e simplista, a Dra. Cristina não deixa de condenar
este estreitamento do trabalho pediátrico. Um estreitamento segundo o qual as demandas
devem ser contidas pela falta de recursos e pela contenção dos excessos (de gastos, de
ações, de demandas, de conflitos) produzidos nas relações interpessoais. Neste cenário
impera a afirmação de que não há espaço para outra realidade de trabalho e de assistência à
saúde senão aquela marcada por uma heteronomia que anula a ação individual diante do
peso de um “evidente” determinismo social.

2.11. Auto-cuidado: entre o social e o biológico

A relação entre o tipo de atendimento prestado nos setores público e privado de


saúde e o desenvolvimento do auto-cuidado também será tematizada pela idéia da falta e do
excesso, quando o olhar pediátrico associa as condições sócio-econômicas de seus
pacientes a diferentes processos de desenvolvimento infantil. Conforme veremos a seguir, o

Capítulo 2
219
desenvolvimento do auto-cuidado pode ser tratado no atendimento pediátrico como uma
questão de <<condicionamento>> determinado pelas diferentes condições de existência
fisiológica, familiar e social da criança.

“É, a gente faz isso [desenvolver o auto-cuidado] a partir de um ano e nove,


um ano e dez [meses], quando começa o controle dos esfíncteres (...)
controle do cocô e xixi (...) é um condicionamento, você acaba
condicionando a criança a ter determinados atos (...) tem a vontade, tem o
ato voluntário de evacuar e fazer xixi, procurar (...) deixar sem a fralda pra
ele começar a se habituar a se sentir molhado e mostrar (...) o piniquinho
(...) ele tem que estar aprendendo. Aí começa a coisa do se vestir, a partir de
três [anos], ele começa (...) [a querer] por (...) aquela roupa, não quer por
outra roupa. E a partir de quatro, cinco, ele tem realmente (...) [que começar
a] colocar sozinho, amarrar sapato (...) não consegue às vezes, põe o velcro.
Então eu acho que começa a partir dos dois já esse condicionamento do auto
cuidado. E a gente sente um atraso nas crianças que chegam em
consultório, são mais atrasadas, lógico, e as crianças que chegam na nossa
porta do hospital, têm que se virar muito mais rápido. Então você [tem]
criança não só se auto cuidando mas também carregando o irmãozinho.
Então você vê um de dez anos que chega, ele carrega a criança de oito, nove
meses (...) [porque] a mãe está (...) segurando outro (...) Quer dizer, ele
aprendeu a cuidar do outro também. Então vai na marra. Mas eu acho que
começa a partir de dois [anos] essa orientação.” (Dr. Ricardo)

Vemos, neste trecho, como o controle do esfíncter permite um controle inicial


(parcialmente autônomo) da criança sobre sua própria <<vontade>> corporal. Assim, sua
realidade fisiológica abre-se para a afirmação de hábitos a serem estimulados pelos seus
cuidadores. A capacidade de aprendizado do auto-cuidado irá variar de acordo com a sua
inserção social e familiar. A ação do meio condiciona a criança a assumir determinados
comportamentos, conforme as situações que lhe são impostas.

Assim, entre o excesso e a escassez encontramos um meio que procura garantir


o desenvolvimento do auto-cuidado, ainda que em ritmos diferentes, conforme os
condicionantes da vida das crianças. A passagem pelos serviços de saúde será decisiva para
a definição dos processos de socialização implicados no desenvolvimento do autocuidado.
Entre as <<crianças de hospital>>, encontramos um aprendizado do auto-cuidado muito

Capítulo 2
220
mais rápido do que aquele encontrado entre as <<crianças de consultório>>. Isto ocorre
porque as primeiras têm que aprender “na marra” as práticas corporais que auxiliam a
proteção da sua infância. Estas crianças devem ajudar suas mães e o pediatra a serem
cuidadas devidamente, cuidando de si e de seus irmãos, especialmente, na busca de uma
rede assistencial que venha a incentivar seu pleno desenvolvimento. Já as crianças que
chegam ao consultório (privado) estão envolvidas de tal maneira numa liberdade vigiada
que acabam por sofrer um protecionismo que ironicamente adia o desenvolvimento de
comportamentos que demonstrem a sua autonomia para tratar com as dificuldades com que
não estão familiarizadas.

“Eu acho que sem dúvida o auto-cuidado só vai sendo possível com o
crescimento da criança. E eu acho que não é uma coisa, (...) com os adultos
também assim, não é uma coisa que se resolve na consulta. Eu acho que isso
na consulta pode haver um reforço da parte do profissional (...) mas, às
vezes, num programa de televisão, essa coisa da mídia, esse tipo de
informação, na coisa da educação pra saúde, se trabalha muito com isso (...
) E não é dando palestrinhas, falando, entendeu (...) Então, assim, eu acho
que nesse sentido o pediatra, isoladamente, ele tem um papel muito
limitado. Então, acho que a escola é importante pra isso (...) A Sociedade de
Pediatria está propondo que as escolas incluam nos currículos uma
discussão de saúde (...) junto com ciências (...) [Isso] tem um impacto maior
do que você falar numa consulta (...) A criança vai incorporando, lê, olha na
televisão, passa num programa que tem uma aceitação (...) não é um médico
te falando (...) ‘Olha, tem uma matéria, tem um pessoal bacana, a gente é de
uma linha que (... ) é pra começar a andar e fazer isso melhor’ (...) Ele tem
que buscar outras formas (...) é intersetorial. Se ele for uma pessoa que tem
uma atividade isolada dentro de um consultório, é muito limitada, não vai
conseguir fazer grandes coisas.” (Dra. Cristina)

Se a Pediatria constitui-se em um dos mais importantes componentes de uma


malha institucional que visa garantir a existência de uma infância protegida, não será por
acaso que ela encontra na Escola um forte aliado para atingir o corpo infantil para além das
condições de produção do ato clínico dirigido às crianças. A Escola alinha-se como mais
um componente importante desta malha institucional, responsável por estruturar um corpo
didático em que as crianças são tomadas como objeto de investimento educacional. O

Capítulo 2
221
corpo didático escolar intervém (pedagogicamente) sobre o corpo infantil, podendo,
inclusive, influir no estabelecimento do auto-cuidado.

“A gente tem uma experiência de trabalhar (...) com creche, pré-escola,


escola e grupo de adolescente também (...) Trabalhar com os professores,
(...) mais até do que direto com a criança, deles estarem ensinando para a
criança cuidar da sua saúde. Então, por exemplo, pegar a criança da pré-
escola, eles brincam brincadeira de pegar no corpo, duro-mole. Então,
ensinar pra criança o que que é duro-mole. Então, assim, ensinar o auto-
conhecimento do corpo. O que é osso, o que é músculo, porque que você fica
mole, duro. Então a gente teve um trabalho, a gente conversou com as
professoras da pré-escola sobre anatomia. ‘Quando você mexe aqui, é
músculo, é osso, tal...’. E ela no dia-a-dia passar esse conhecimento para
criança. E aí investir nisso, investir nesse conhecimento do corpo e no
conhecimento do corpo como um todo. E aí você entra na questão da
sexualidade, porque sexo é mais uma parte do corpo, como é que você vai
lidar com isso. Então, tentar trabalhar inclusive isso. É uma experiência
super interessante que a gente fez lá. Então a gente trabalhava com o
professor para que no dia-a-dia ele trabalhasse com eles (...) [As crianças]
ficam lá na escola (...) tomam lanche, então vão ter que lavar as mãos. Por
que tem que lavar a mão?! (...) Não tem que falar para o moleque ‘tem que
lavar a mão e pronto!’, ele tem que entender porque que tem que lavar a
mão. Ele passa a achar que é importante lavar a mão (...) E com as crianças
maiores, adolescente, escolar, a gente às vezes via o que eles queriam
discutir também. Então algumas coisas a gente discutia com eles ou senão
(...) passava o conteúdo para o professor (...) estar trabalhando com eles
depois (...) Eu acho que é um jeito da gente ir desenvolvendo essa
capacidade das pessoas estarem se cuidando (...) se conhecendo.”
(Dra. Zélia)

Neste trecho, vemos como a Pediatria está marcada pela injunção de trabalhar
com... a mãe, o pai, a criança, o professor, etc. O trabalho pediátrico está necessariamente
marcado por estas intermediações que permitem estabelecer a rápida passagem entre os
aspectos biológicos e sociais que afetam o desenvolvimento infantil. Um ponto concreto em
que podemos localizar a força destas intermediações no trabalho pediátrico é evidenciado
pela formulação a gente tem que... trabalhar, conversar, investir, explicar, passar
(transmitir).

Capítulo 2
222
Vemos assim como estas intermediações implicam em um sistema de
obrigações (prestações e contra-prestações) em que os cuidadores devem investir na
demonstração de um corpo didático para as crianças, afinal, estas também devem “entender,
conhecer, lidar” pedagogicamente com seu próprio corpo (“inclusive” com sua sexualidade,
“porque o sexo é mais uma parte do corpo”).

2.12. Conhecimento cultural vs conhecimento escolar

“Não dá para atender as pessoas sem entender em que espaço estão, e tem a
ver com a linguagem, eu acho que (...) começa daí, você ter uma linguagem
que se torne acessível e compreensível. E ao mesmo tempo saber (...)
entender o que é que essas pessoas estão falando (...) E [nível] cultural
também, quer dizer (...) a importância que determinadas coisas têm. E a
gente que atende muito na área pública, você acaba atendendo (...) um nível
sócio-econômico mais baixo, e pessoas (...) até muito diferente você atender
alguém que acabou de um norte, nordeste, que (...) acredita em determinadas
coisas, culturalmente pensa algumas coisas, que a criança tem um papel na
vida dela, e, e alguém que é daqui, de outro nível, que viveu outra situação
(...) com mais escolaridade e tal.” (Dra. Cristina)

Tratar aquele conflito existente entre o saber clínico e o conhecimento leigo


como uma oposição disposta pela disjunção escolar/não-escolar será apenas umas das
figuras lançadas para compreender o campo de tensões que se arma no atendimento clínico.
Temos aqui, neste jogo entre um <<conhecimento cultural>> e um <<conhecimento
escolar>>, a delimitação da percepção leiga sobre o corpo, sobre o adoecimento, sobre a
saúde, enfim, sobre a própria vida, relacionada à trajetória familiar que compõe o universo
social do paciente (mãe-pai-criança).

Ambas as figuras tratam de caracterizar um conjunto de “saberes” que orientam


as práticas corporais da população atendida. A aproximação entre o conhecimento cultural
e o conhecimento escolar propiciada pelo confronto do saber clínico com a percepção leiga
não resolve os conflitos da relação médico-paciente, antes evidencia a sua presença.
Veremos adiante a perplexidade com que a Dra. Cristina identifica um vazio que se forma
neste confronto.

Capítulo 2
223
“Então o que a gente percebe que (...) as pessoas muitas vezes (...) elas
tiveram muitas petas [sic], sem substituir por nada, essa é a impressão que
eu fico. Porque ela vem achando que tal coisa é importante, que tal
procedimento a mãe falou que devia ser feito quando a criança nasce, uma
porção de coisas. Aí ela chega aqui você fala: ‘Olha, não é verdade, isso não
é, isso não é (risos)’. E aí fica um... acho que é um vazio, que ela perde
algumas coisas que acreditava, e a gente não oferece muitas coisas pra, pra,
pra ela estar se... tendo o pé no chão. Porque aquilo estava bom, estava
acomodado, acreditava naquilo. De repente você fala: ‘Não’. Ficou com
febre, ‘mas não [foi] por causa daquilo?, ‘Não, não é isso. Isso é um virus...’
Então (...) até que ponto que você, a hora que você desfaz algumas questões
culturais aprendidas aí e não substitui por alguma coisa mais palpável. E
[isso] traz uma insegurança muito grande.” (Dra. Cristina)

O aprendizado de alguns “conhecimentos culturais” expressos em valores


próprios a determinados segmentos ou grupos sociais parece ser alvejado pelo saber clínico
na medida em que se apresenta como uma via de interferência sobre o estabelecimento do
cuidado materno. É importante notar como esta dupla interferência, circunscrita tanto pela
diversidade cultural dos pacientes, quanto pela unidade de um saber que se estrutura como
uma abordagem científica e especializada sobre o desenvolvimento infantil, é descrita em
termos de um conhecimento sobre o processo de adoecimento, operado pelas disjunções
<<verdadeiro/falso>> e <<concreto/abstrato>>.

Assim, o conhecimento cultural informa uma percepção corporal assentada


num conjunto de valores regionais em que as mães “acomodam” seus gestos, suas
preocupações, seu modo de agir. Estes valores são tomados como pertencentes à ordem das
crenças a partir das quais as mães ganham “terreno firme” para cuidar de seus filhos: “elas
tiveram muitas petas mas a gente diz não para algumas coisas em que elas acreditavam”
(Dra. Cristina)

É interessante como esta pediatra identifica a construção de um <<vazio>> que


se interpõe entre médico e paciente, ao procurar informar as mães sobre uma visão
científica sobre o adoecimento. As mães já não têm o pé no chão, perdem uma percepção
concreta sobre a vida, assim como perdem a chance de concretizarem os gestos que as
ligam à sua terra, à sua trajetória familiar. As explicações médicas sobre o adoecimento

Capítulo 2
224
parecem não se aproximarem dos sentidos próprios às trajetórias pessoais destas mães,
restringindo-se a um campo abstrato demais para atingi-las. No entanto, o fazer pediátrico
põe em xeque o cuidado materno de maneira muito concreta, afirmando preceitos de
puericultura, noções de higiene, conceitos clínicos e explicações sobre o processo de
adoecimento.

Quando o saber clínico entende que a percepção leiga é orientada


prioritariamente por um conhecimento concreto sobre a vida, baseado em experiências
familiares a partir das quais se reafirma um conjunto de fazeres (crenças), o pediatra fecha-
se imediatamente para qualquer incorporação do cuidado materno que não seja subjugada
pela ordem médica.

A noção de <<vazio>> aponta para a evidência de um incômodo que


permanece na relação médico-paciente: <<as mães aprendem com a vida, mas não com o
saber>> e <<o saber médico descontrói a sensibilidade materna>>. Aqui estamos diante da
presença de uma contradição em que a prática pediátrica deve negar a legitimidade do
conhecimento materno para afirmar a sua importância na elaboração do cuidado dirigido às
crianças. A permuta entre estes dois modos diversos de interpretar o cuidado materno
parece estar bloqueada por uma dupla incapacidade: incapacidade materna de compreender
um conhecimento abstrato demais para seus conceitos “culturais”, incapacidade do
conhecimento médico fazer-se entender sem lapsos, sem faltas, sem vazios.

Mesmo diante deste bloqueio podemos observar a ocorrência de uma permuta


específica ocorrida entre a ótica pediátrica e a leiga, uma vez que o caráter impreciso da
“aprendizagem cultural” remete ao plano da percepção e da impressão a visão da Dra.
Cristina sobre a relação médico-paciente.

“Então o que a gente percebe que (...) elas tiveram muitas petas [sic], sem
substituir por nada, essa é a impressão que eu fico (...) acho que é um vazio,
que ela perde algumas coisas que acreditava, e a gente não oferece muitas
coisas pra (...) ela estar se... tendo o pé no chão (...) Então (...) você desfaz
algumas questões culturais aprendidas aí e não substitui por alguma coisa
mais palpável.” (Dra. Cristina)

Capítulo 2
225
Mesmo assim, o que se tira, o que se dá, o que se perde e o que se substitui
aparece para o pediatra como uma pura oposição em que médico e paciente permanecem
em um mesmo lugar. Parece que falta uma linguagem específica para intermediar este
encontro entre mães e pediatras, que viesse a estabelecer uma ponte firme entre o
conhecimento médico e a percepção leiga sobre as crianças.

O ideal de uma língua universal fala alto aqui, como em outros lugares7,
assediando o molde científico dos saberes médicos com as formas de um discurso
totalizador que se fecha para a possibilidade do deslize, da falha, do acaso. O corpo humano
universal possui uma consistência anátomo-fisiológica que expressa bem a noção de
unidade, porém o corpo infantil em desenvolvimento possui um estado não-acabado que
deve ser apreendido em sua densidade familiar, conduzindo a ótica médica em meio à
diversidade cultural de seus pacientes.

“É lógico que é um extremo, mas só para te dar um exemplo que a gente


vivenciou um caso, agora, que a gente está atendendo uma criança do
Xingú, (...) olha o dilema cultural, uma criança síndrome e a gente estava
discutindo o caso, que a criança está indo e voltando do Xingú aqui para São
Paulo. E o pai parece que se alfabetizou e [é] líder do movimento
[indígena]. Então, o que a gente percebeu é que não estão conseguindo dar
conta de cuidar da criança e não saber que papel que essa criança vai ter na
sociedade deles. Porque até há bem pouco tempo atrás houveram várias
tribos (...) [que] a criança nasceu com algum problema eles iam enterrar e
iam resolver o problema. Porque não é para viver alguém com uma
síndrome, com uma deficiência. E está tudo certo, porque não foram... não
são assassinos, nem negligentes, nem nada.” (Dra. Cristina)

É muito interessante o modo como a Dra. Cristina descreve este caso,


mostrando como uma situação assentada em certos padrões culturais é deslocada pela
inserção de um conhecimento escolar que passa a atuar num campo de percepção
desestabilizado pelo saber clínico. O papel que a criança desempenha na casa dos pais ou
numa sociedade indígena parece usufruir de uma estabilidade garantida por uma integração

7
Esperanto, Ação Comunicativa...

Capítulo 2
226
maior dos cuidados em um sistema de crenças legitimadas socialmente8. Esta situação
altera-se diante de um conhecimento escolar que provoca na sensibilidade indígena o
surgimento de um elemento perturbador incluído num processo de transformação social,
neste caso, descrito como uma aculturação. Este processo de “aculturação” só pode ser
entendido, no exemplo dado pela Dra. Cristina, levando-se em conta o modo como a
intervenção de um sistema jurídico-moral que regula o estatuto da infância atinge médico e
paciente.

Nesta situação, não é possível para o índio (paciente) enterrar seus deficientes
(e suas deficiências), nem para o branco (médico) admitir na formação do papel social de
cuidador a presença de uma ambigüidade perturbadora que atrapalhe a execução de uma
ação terapêutica precisa, que se traduza em cuidados adequados para aquela criança. Os
índios não podem ser condenados por seu sistema de crenças, mas uma vez que este não se
localiza inteiramente para além do conhecimento escolar, ele deve ser “readequado” (leito
de Procusto) dentro de novos parâmetros, de modo que o cuidado paterno/materno não seja
tomado por ambigüidades nocivas à criança.

8
Um senso comum muito difundido entre conhecimentos populares e eruditos sobre as sociedades indígenas é
o de tomá-las como um corpo social homogêneo, onde as individualidades não têm lugar de existência e as
identidades acoplam-se com funções sociais precisas. Descreve-se uma sociedade de iguais, onde a diferença
cumpre uma função orgânica de permanência de uma estrutura social. Este mito democrático que mistura a
idéia de uma assembléia permanente com uma hierarquia harmônica das identidades sociais associa-se
ironicamente com uma visão utilitarista em que cada indivíduo existe para cumprir uma função na sociedade.
Assim, as sociedades indígenas são caracterizadas por estruturar-se em uma lista fixa de papéis sociais rígidos
que exerce o poder de extrair de qualquer particularidade individual um grau maior de generalidade coletiva
que garante uma coesão social fortalecida. O mito do bom selvagem conjuga-se com o do paraíso perdido,
com a diferença de que, no primeiro, a procriação restringe-se à perpetuação do mesmo, não cabendo aí a
enunciação do cuidado materno para além de sua auréola natural, enquanto que, no segundo, os filhos do
desejo humano são o sinal de sua decadência, ao mesmo tempo que prometem e evidenciam a sua
transformação.

Capítulo 2
227
“Aí eles resolveram cuidar, mas ao mesmo tem... Porque esse pai ainda não
é tão índio assim, de repente, porque ele está convivendo... Então, algumas
coisas do branco foram passadas. Mas aí eles realmente não conseguem
cuidar direito, porque, porque... E a gente foi se perguntando o que é que
vai ser dessa criança nessa tribo (...) Ele não enxerga, não serve pra cassar,
não serve para... para que vai servir, que representação vai ter essa criança
naquela sociedade? Estávamos muito ansiosos, quer dizer: ‘O que é que a
gente faz?’ Não sei, porque ficou um meio termo, eles nem enterraram a
criança, e nem estão conseguindo fazer o que a gente faria. Então ele... e é
isso que você tem que entender na hora de atender, não adianta xingar o
pobre do índio: ‘Ah, o sr. é um cafajeste, não está cuidando...’ Não é isso,
claro que não é. Então, eu estou te dando um extremo, mas isso está
colocado em diferentes graus em todas as culturas: a questão do cuidar ou
não cuidar, o como cuidar, o que que é cuidar. Às vezes, para pessoa está
respondida a necessidade, e do ponto de vista técnico, entre aspas, talvez
não esteja.” (Dra. Cristina)

A clínica pediátrica nega a possibilidade da definição leiga do cuidado materno


apoiar-se em um conhecimento estruturado para além do plano das crendices circunscritas
pelos grupos de convívio das mães, enquanto que a definição médica deste cuidado
apresenta-se como um conhecimento técnico, inacessível à percepção leiga, tendo assim de
ser traduzido didaticamente de modo a garantir que o gesto pediátrico atravesse o vazio
existente entre um e outro termo da relação médico-paciente.

Assim, “a questão do cuidar ou não cuidar, o como cuidar, que é que é cuidar às
vezes, para a pessoa, está respondida (...) e do ponto de vista técnico (...) talvez não esteja”
mas “é isso que você tem que entender na hora de atender” (Dra. Cristina). O atendimento
clínico pediátrico deve lidar centralmente com a questão do cuidado/cuidador de modo a
propiciar a formulação de um entendimento sobre os próprios conflitos existentes entre o
ponto de vista técnico e leigo no setting médico. Entender e atender parecem confluir para
uma mesma ação interventiva que garante uma passagem entre o médico e o paciente.

Porém, na disposição assimétrica em que um saber opõe um conhecimento


exato a uma percepção difusa sobre o corpo, a clínica pediátrica esquece que aquilo que “a
mãe (avó) falou que devia ser feito quando a criança nasce” (Dra. Cristina) define

Capítulo 2
228
condições importantes para a própria construção do conhecimento médico sobre o cuidado
materno. Afinal, a figura materna não fala apenas para as mães que atuam na posição de
pacientes no ato clínico, mas também para aqueles que professam o próprio saber médico.
As mães que tivemos, as mães que seremos e as mães que terão nossos filhos passeiam
miticamente pelas cabeças de médicos e pacientes, surtindo efeitos específicos sobre as
práticas discursivas que estruturam a clínica pediátrica.

Assim, podemos dizer que esta clínica não sofre a falta de uma linguagem
intermediária que viesse a aproximar o ponto de vista técnico do leigo, ou mesmo, que
lograsse incorporar definitivamente a percepção leiga no plano epistêmico do conhecimento
científico. Mas, sim, que a clínica pediátrica sofre as conseqüências das contradições
produzidas no entrecruzamento de uma prática profissional (regida pela figura do Direito)
com o fluxo da Vida: mãe, pai, filho, casa, rua, corpo, que se mostram para o pediatra como
elementos subjetivos da relação médico-paciente identificados como conteúdos emotivos
incontroláveis pertencentes aos “cuidadores leigos” das crianças (“conhecimento cultural”).

A todo momento, o ideal de completude do saber clínico buscará afirmar-se


reduzindo o corpo infantil a um universo familiar normalizável. Para que isto ocorra, o
pediatra terá de lidar com a diversidade sócio-cultural que informa a percepção leiga sobre
o cuidado materno.

“Médico é muito autoritário, muito onipotente (...) E a gente percebe assim


que nas orientações (...) não faz esse compartilhamento de conhecimento, e
aí (... ) quanto mais culturalmente essa pessoa tá afastada do profissional a
tendência é que menos se faça isso. Então você coloca uma barreira muito
grande, eu acho, você não deixa a pessoa se colocar, colocar as razões.
Então, em coisas mínimas, tipo dar ou não dar um remédio tão na hora,
como devia (...) Como se fosse muito fácil fazer isso, no cotidiano, na vida da
pessoa que foi trabalhar, o ônibus não sei quantas horas (...) cumprir
aquelas normas, as orientações, ou (...) obedecer a orientação, é [algo]
muito valorizado pelo profissional. Mas ele descontextualiza a família das
outras preocupações, das outras necessidades (...) Então, tem muito choque,
muito atrito. E eu acho que isso cria uma barreira e não caminha para nada,
essa consulta de fato não acontece (...) Faz a receita, sei lá, o cara pega
mas não aconteceu nada, porque ele não teve de fato uma troca, uma

Capítulo 2
229
orientação compartilhada, quer dizer, ‘Como é que você está? Como é que
você está lidando com isso ?’ O aleitamento materno tem muito isso, mãe vai
(... ) tantas horas (... ) Ninguém pergunta da mãe, principalmente, como é
que ela está (...) E isso é muito ruim, porque o profissional que está
trabalhando, está atendendo a criança, ele tem que atender essa criança
dentro de um contexto familiar, de uma complexidade de relações muito
grande.” (Dra. Cristina)

A sensibilidade materna – sua percepção corporal relativa à gestação e à


amamentação dos filhos, suas concepções a respeito dos cuidados estabelecidos em relação
à criança – vem à tona no atendimento clínico em termos de um pensamento cultural que
deve ser controlado a fim de não atrapalhar o bom andamento da investigação diagnóstica e
da conduta terapêutica. Aliás, quando se propõe uma <<orientação compartilhada>>, em
que podemos perceber um evidente interesse na percepção materna sobre o cuidado relativo
à criança, procura-se evitar que a consulta pediátrica venha a resumir-se a um receituário
que pouco ou nada interfere na âmbito familiar da criança. Assim, o pediatra deve inclusive
deslocar o centro da ação médica de um conhecimento técnico pautado unicamente pelo
corpo doente, afinal:

“[O] médico é muito autoritário, muito onipotente (...) [mas] a


gente...”(Dra. Cristina)

Chama a atenção no trecho acima o movimento de aproximação e afastamento


da Dra. Cristina com relação ao caráter da ação médica propiciado pela variação
pronominal eu, você, ele. Assim, se a obediência à ordem médica no processo de
normalização dos cuidados familiares é muito valorizada pelo “profissional”, esta
valorização parece causar uma certa inquietação na Dra. Cristina, já que ela procura
excluir-se, em parte, desta “tendência” que atingiria preferencialmente à ele/você
(profissional médico).

“Porque o profissional que está trabalhando, está atendendo a criança, ele


tem que atender essa criança dentro de um contexto familiar, de uma
complexidade de relações muito grande.” (Dra. Cristina)

Capítulo 2
230
Atender (e entender) o paciente pediátrico em sua densidade familiar,
interferindo, para tal, nas linhas em que se inscreve o papel de cuidador das crianças,
permanece ainda como um empreendimento (necessário) que desafia o olhar pediátrico a
desestabilizar a oposição existente entre o conhecimento técnico e leigo, de modo a abrir-se
às contraposições e justaposições concretizadas entre o campo profissional pediátrico e o
campo das relações familiares.

2.13. Clínica pediátrica: arte ou técnica?

Neste momento, podemos refletir sobre a oposição existente entre a ótica leiga
e a ótica médica existente no atendimento clinico-pediátrico, a partir de alguns elementos
expostos ao longo deste capítulo.

No transcorrer do texto, mostramos como a relação médico-paciente,


estruturada no atendimento pediátrico, implica em contraposições e justaposições existentes
entre o cuidado médico e o cuidado materno dirigido à criança.

Vimos como o trabalho pediátrico é descrito pelos entrevistados,


fundamentalmente como um trabalho de tradução entre diferentes linguagens presentes no
atendimento clínico. Este trabalho implica na produção de diferentes versões sobre a
realidade infantil, que se revestem de uma fidedignidade tanto maior quanto melhor
revelarem a verdade original do corpo infantil, qual seja: <<a criança fala necessariamente
a partir de sua relação materna>>.

Ainda que um dos aspectos da relação médico-paciente seja o comunicativo,


analisamos, preferencialmente, uma série de conflitos presentes no atendimento pediátrico,
que apontam para a realidade discursiva do atendimento clínico. Neste sentido, insistimos
em afirmar que o trabalho pediátrico estrutura-se necessariamente em sistemas abertos à
presença dos deslizes, falhas e lapsos próprios à relação do discurso com a história.

Consequentemente, a linguagem semiológica não foi tomada como um sistema


de signos estruturado internamente de modo coerente do ponto de vista lógico e, por este
motivo, fechado em si mesmo. Visto desta maneira, o problema semiológico seria
solucionado através de um mero aperfeiçoamento técnico da linguagem médica, na medida

Capítulo 2
231
em que a elaboração de uma “linguagem intermediária” viesse a aproximar ao máximo
médico e paciente, sem perturbar a divisão existente entre aquele que sabe e aquele que não
sabe.

Neste ponto da discussão, parece evidente a fragilidade da premissa assumida


em alguns estudos sociológicos, segundo a qual a semiologia médica opõe-se à “semiologia
leiga” por uma relação de exclusão sustentada, basicamente, pela oposição existente entre a
ciência e o senso comum. Frente aos diversos depoimentos aqui analisados, apontou-se a
impossibilidade de reduzir o problema da relação médico-paciente na clínica pediátrica à
mera oposição Razão vs Emoção.

Por fim, a intersecção entre os diversos sistemas que configuram o atendimento


pediátrico – quais sejam, o sistema médico, familiar e escolar – modula um conflito
intrínseco à Pediatria que é dado pela sua tentativa de proteger a infância, regulando o
cuidado materno, ao mesmo tempo em que esta profissão é permanentemente tocada por
esta mesma infância.

Devemos ter em conta que não é possível um aperfeiçoamento técnico da


relação médico-paciente que venha a neutralizar os conflitos inerentes à estruturação clínica
da infância. Mesmo quando são buscadas estratégias para integrar o cuidado materno e o
cuidado médico em uma linguagem intermediária que possibilite uma negociação do
diagnóstico e da conduta terapêutica, a prática clínico-pediátrica continua sendo sustentada
por dizeres, não-ditos e silêncios que se inscrevem em cada um dos gestos que buscam
apreender as crianças, de modo que estas são tomadas em uma certa regularidade
discursiva.

Finalizamos este capítulo lembrando que a construção pediátrica da infância é


operada a partir da tensão existente entre um núcleo duro de saberes e um campo
profissional definido pela experiência clínica. Assim, se o olhar clínico apresenta-se como
um ponto de vista técnico sobre o corpo doente, este ponto de vista é permanentemente
deslocado por uma prática profissional que é tocada pela densidade familiar do corpo
infantil.

Capítulo 2
232
O pediatra deve demonstrar coragem para enfrentar uma gama grande de
problemas agravados pelo caráter vulnerável das crianças, e, por isto mesmo, deve
desenvolver uma sensibilidade apurada para apreender as tramas sutis em que as crianças (e
seus cuidadores) estão inscritas. Tecer as linhas investigativas e as condutas terapêuticas na
clínica pediátrica certamente é uma arte a ser aprimorada com o tempo, mas que nunca
deixará de impor e de expor seus limiares de inquietação àqueles que a realizam.

Capítulo 2
233
CAPÍTULO 3

A infância no consultório

“Eu daria tudo que tivesse/ prá voltar aos dias de criança/ Eu não sei porque que a gente
cresce/ se não sai da gente essa lembrança.”

(Ataulfo Alves, “Meus Tempos de Criança”)

235
236
INTRODUÇÃO

As imagens e as fases da infância: o olhar do pediatra.

Vimos até agora como a prática clinica na área pediátrica é atravessada pela
relação materna, de forma que o “ato clínico a três”, mais do que simplesmente agregar
cumulativamente novos níveis de dificuldades ao atendimento clínico, implica em um
importante deslocamento no olhar médico em direção à tomada do corpo infantil. Assim, a
oposição existente entre o corpo doente e o processo de adoecimento, inerente à prática
médica, é tensionada de modo específico no atendimento pediátrico pelo campo das
relações familiares. Procuramos apontar como, a partir do entrecruzamento do campo
pediátrico com o campo das relações familiares, são produzidos deslizes de sentido entre o
papel de cuidador leigo e especializado da criança.

Neste momento, dedicaremos uma atenção especial às classificações pediátricas


da infância, conforme observadas nos depoimentos dos entrevistados. Embora já tenhamos
tocado em alguns pontos importantes para a discussão que se segue, procuraremos refletir
mais profundamente sobre a demarcação pediátrica da infância, mostrando como o
atendimento clínico organiza-se de acordo com a localização da criança em seu processo de
desenvolvimento.

Conforme já discutimos anteriormente, a relação médico-paciente pode ser


tratada como um problema médico dimensionado tanto por fatores circunstanciais que
envolvem as diversas práticas profissionais individuais, quanto pela organização estrutural
da profissão médica. Ademais, chamamos a atenção para o modo pelo qual a relação
médico-paciente existente no atendimento pediátrico é estruturada tanto por elementos
intrínsecos, quanto por elementos extrínsecos ao saber clínico, na medida em que é
concretizada em um jogo de exclusões e inclusões existentes entre o campo das relações
familiares e o campo pediátrico. Isto é, os movimentos de contraposição e justaposição da
ótica leiga e da ótica médica sobre as crianças apontam para algumas tensões constitutivas
da própria prática clínica estruturada no campo da Pediatria.

Um problema central formulado na prática pediátrica será o da descrição da


criança em suas diversas fases de crescimento e desenvolvimento. Tal é a centralidade deste
problema na Pediatria que chega mesmo a motivar a formulação de algumas divisões

Capítulo 3
237
internas neste campo profissional, visando focalizar de modo mais especifico, por exemplo,
o recém-nascido (neonatologia) e o adolescente (hebiatria).

Encontraremos entre a fase inicial e final da infância uma fase intermediária –


escolar – apontada como um momento de relativa tranqüilidade para o trabalho médico. De
qualquer forma, cada uma destas fases será descrita em termos de uma cadência de
acontecimentos em que a infância é categorizada, ao mesmo tempo em que a prática clínica
é encadeada pela noção de desenvolvimento infantil.

A realidade fluida, dinâmica, fugaz da infância torna-a um objeto de difícil


apreensão. Categorizar a infância não consiste em um empreendimento tranqüilo, retilíneo
e sem ambigüidades. Veremos como os pediatras deparam-se com a evidência da falta de
marcas (lingüísticas, físicas, conceituais) para designar a infância de modo assertivo, diante
da qual se lançam em uma categorização da infância, fundamentalmente, a partir de sua
relação materna.

Esta aparente escassez de marcas distintivas da infância expressa


sintomaticamente uma certa dificuldade médica em lidar com critérios que beiram a
imprecisão, a emoção, o fluxo da vida. Apesar disso (ou talvez por isto mesmo), a imagem
da criança formada na tipologia pediátrica da infância não será nada difusa ou dispersa.
Pelo contrário, é impressionante como os depoimentos dos entrevistados formam um
uníssono em relação à descrição das fases da infância e de suas implicações para o
atendimento clínico.

3.1. Tomada do desenvolvimento: da imagem parada à imagem em movimento

As dificuldades existentes para elaborar uma definição assertiva (e definitiva)


sobre a infância, ou para encontrar marcos seguros que orientem a ação médica na sua
jornada em direção ao corpo infantil, conduzem o olhar pediátrico em um duplo
movimento. Entre a deriva racionalista das definições jurídicas da infância e a deriva
empirista das observações de todas as variações das realidades infantis, o pediatra deve
encontrar um porto seguro para firmar seu olhar.

Capítulo 3
238
O pediatra deve atar-se (mais uma vez) ao eixo das relações familiares para
lidar com as variações e as regularidades próprias à infância. Ao longo deste capítulo,
teremos a oportunidade de ver mais claramente como o eixo familiar intercepta o eixo da
Educação (dos corpos, das sensibilidades, dos sentidos) na clínica pediátrica, de maneira a
ocasionar que a tensão existente entre o corpo doente e o corpo infantil estabeleça uma
certa ambigüidade nas fronteiras existentes entre os aspectos biológico e social da infância.

“Você pode ter muitas maneiras de definir a infância. Eu não sei, não tenho
muita clareza do que é a infância não. O que eu posso dizer por exemplo é
que a infância é uma coisa muito recente para eu saber direito o que ela é.
[A] criança era um adulto em miniatura, até no vestir (...) [E então] falou:
(...) ‘olha, espera aí, precisa educar (...) não é só ensinar artes marciais.´
Isso é fim do séc. XVIII. Então vamos dizer que (...) temos aí (...) duzentos e
poucos anos com a noção de infância... [E] se a gente prestar atenção, deve
ter aí uns cem anos ou menos [a] adolescência. Então eu digo que a noção
(...) de criança [é] determinada e culturalmente modificada. Então infância,
por exemplo na classe média-alta brasileira, talvez eu saiba dizer para você.
[Já a] infância de um coitadinho que mora no Vale do Jequitinhonha, (...)
[de uma] criança que começa a ajudar a mãe a catar coisa ...”
(Dr. Gustavo)

A dificuldade para definir a infância está associada, conforme apontado no


trecho acima, ao seu recente processo de construção social. Além de lembrar que a infância
moderna construiu-se historicamente apenas nos últimos duzentos anos e a adolescência,
nos últimos cem anos – períodos estreitos para transformações tão grandes no plano das
idéias e das sensibilidades – o Dr. Gustavo entende ser importante ter em conta que estas
noções são determinadas e modificadas culturalmente. Portanto, a realidade social da
infância confere-lhe um caráter complexo, na medida em que as estruturas familiares,
políticas e simbólicas que configuram as diversas infâncias devem ser investigadas em suas
variantes culturais.

Podemos depreender do comentário deste pediatra que para refletirmos sobre a


Infância devemos não somente averiguar as variações correntes nas diversas realidades
infantis, mas também compreender de que modo a Educação funciona como um dos pilares
sustentadores da própria infância, na medida em que apóia de modo importante os
processos de socialização das crianças.
Capítulo 3
239
Temos aqui um permanente jogo entre a afirmação da heterogenia social
(diferença) da infância, apontada pelas noções de cultura e classe social, e a afirmação de
uma homologia estrutural (equivalência) existente entre as diversas realidades infantis,
expressa pela educação dos sentidos infantis assentada no real da infância: <<a criança fala
a partir da sua relação materna>>.

Esta injunção infantil, estruturada no campo pediátrico na interpretação clínica


do gesto materno, apóia-se na apreensão pedagógica da sensibilidade das crianças no
sentido de traduzir os sentimentos, os ressentimentos, as vontades, os desejos, as atitudes, e
porque não, os dizeres que se colocam entre os adultos e as crianças.

Não é menor o lugar da Educação neste processo de construção social da


infância, afinal de contas a socialização das crianças nas sociedades modernas é instituída
amplamente por um gesto pedagógico pautado pelo saber escolar. Portanto, não é por acaso
que o Dr. Gustavo descreve a passagem da sociedade de corte (adulto miniatura, artes
marciais) para a sociedade de classes, apontando uma mudança no lugar ocupado pela
Educação nos processos de socialização infantil.

Veremos como, mesmo diante de uma suposta <<falta de marcos>> para


balizar os limites existentes entre a infância e a idade adulta, a inserção no mundo do
trabalho e no sistema escolar oferece alguns parâmetros importantes para os entrevistados
pensarem suas diferenças.

“A gente trabalha com a infância... mas eu acho que não tem um marco. Eu
não tenho muito essas coisas definidas. Eu acho que vai mudando a forma de
você estar lidando com eles. Porque se você está pensando na criança como
um... respeitando essas fases dela de uma forma que ela está nessa fase e (...)
vai desenvolver algumas coisas ali, e aquilo é importante pra ela naquele
momento. [E] não porque ela depois vai ser alguém... Não muda muito no
jeito de você estar vendo isso, porque se você pensar na criança como um
ser que não tem capacidade de fazer nada, que você vai resolver tudo pra
ela (...) [então] você põe marcos mais definitivos nisso. Então, a partir do
momento que o cara termina tal coisa ele vai conseguir trabalhar, ou se ele
já consegue se expressar de alguma outra forma. Então aí eu acho que tem
mais marco (...) Mas... eu não saberia te dizer (...) Acho que eu nunca pensei

Capítulo 3
240
isso... Você tem os clássicos, então, hoje em dia, se considera infância até
dez anos, de dez anos a vinte anos, adolescência. A definição da
Organização Mundial de Saúde hoje trabalha assim: até dez, infância, de
dez a vinte, adolescência. Mas acho que isso muda muito. Você pega, por
exemplo, catorze anos de idade, você pega a menininha e o menininho (...)
tanto do ponto de vista físico... E isso é outra coisa, nem sempre a
maturidade física acompanha a maturidade emocional, social, depende de
todas essas interações com o meio. E às vezes você pega uma criança de
oito, nove anos de idade, que nem fisicamente está madura para nada, e que
tem às vezes uma maturidade de entender coisas da vida muito mais do que
um adulto. De vez em quando a gente se assusta com uma coisa que a
criança fala perto da gente (...) Isso é muito dinâmico, não consigo (...)
Agora (...) do ponto de vista oficial até dez anos é infância e de dez a vinte é
adolescência.” (Dra. Zélia)

Se o lugar de criança é na escola e não desempenhando atividades de trabalho


adulto, isto não quer dizer que ela deve ser pensada como um ser incapaz, ou sem realidade
própria, ou, mesmo, que sua “formação” visa apenas capacitá-la para o mundo (do
trabalho) adulto. Pelo contrário, as crianças devem ser buscadas naquilo que elas são e não
naquilo que virão a ser. Assim, por mais que sejamos impelidos a tomar as crianças em seu
vir-a-ser, ao pensarmos em seu processo de desenvolvimento, devemos nos preocupar em
conhecê-las em suas especificidades, devemos conhecê-las em suas diversas fases.

Ainda que a educação favoreça o desenvolvimento infantil, ela inevitavelmente


incentiva as idealizações adultas acerca do futuro das crianças. Daí a importância do
pediatra estar atento para as especificidades próprias de cada fase da infância, assim como
estar sensível às peculiaridades apresentadas por cada criança. Os marcos infantis não são
fixos, eles são tão dinâmicos quanto a própria realidade infantil.

Uma maneira de demarcar a infância é estipulando parâmetros jurídicos para a


definição de seus limites etários. Assim, temos que o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) inicia suas disposições da seguinte maneira:

“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao


adolescente.

Capítulo 3
241
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze
anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos
de idade.

Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente


este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.”
(ECA, Lei no. 8.069, 1990)

Mas devemos lembrar que o processo de desenvolvimento infantil possui uma


densidade específica que não é circunscrita unicamente por esta disposição normativa, uma
vez que, conforme a Dra. Zélia, as interações da criança com seu meio social interferem
sobremaneira no estabelecimento de sua maturidade física, emocional e moral. O
atendimento pediátrico deve diagnosticar a maneira pela qual estas interações modulam o
desenvolvimento infantil. Como veremos mais adiante, para cada fase da infância teremos
um tipo de atendimento pediátrico estruturado em direção à apreensão do corpo infantil.

3.2. Algumas “tomadas” sobre os pares de oposição na infância

Conforme já vimos, o atendimento pediátrico organiza-se, fortemente, a partir


da disjunção verbal/não-verbal. Assim, podemos identificar uma primeira grande divisão
estabelecida no atendimento pediátrico quando a criança é localizada a partir de diferentes
linguagens estruturadas na clínica pediátrica.

Vejamos como responde a Dra. Fátima, quando perguntada se é importante


manter as crianças informadas sobre seu processo de adoecimento (diagnóstico e
prognóstico):

“Olha, depende muito da criança. Eu já tive dois tipos de criança. Em geral,


também, depende da idade, as crianças maiores (...) de sete anos de idade
(...) elas não querem cobrir, eu acho que elas querem saber o que elas têm,
qual é o tipo de tratamento, se vai doer ou não vai, se vai cair o cabelo... Em
contrapartida, as crianças menores (...) não têm nem como verbalizar isso
pra elas. Mas, do meu ponto de vista... eu acho que as crianças (...) são
muito mais abertas ao tratamento do que a família. Porque eu acho que
para a criança, quando você diz assim: ‘Quer tratar ou não quer?’ Ela diz
‘quer’ e acabou.” (Dra. Fátima)

Capítulo 3
242
O acesso verbal da criança às condutas diagnósticas e terapêuticas apresenta-se
como um marco para a ação pediátrica, na medida em que requisita atitudes e preocupações
diferentes por parte deste profissional na execução do atendimento prestado. Mais do que
informar ou não os pacientes a respeito de sua situação de saúde, a disjunção verbal/não-
verbal leva os pediatras a estabelecerem demarcações importantes para a estruturação do
atendimento clínico.

Vejamos como esta disjunção mantém uma relação de equivalência importante


com a oposição pensamento lógico/pensamento mágico na estruturação clínica da Infância:

“Tive [apenas] uma censura (...) [nos] trinta e dois anos da minha vida.
Uma menina com cinco anos que chegou aqui, até nessa sala aqui. Eu falei
que (...) [ela] era bobinha com cinco anos. E bobinha no sentido de dizer
que com sete anos você já tem... Ela [mãe] tinha uma menina de cinco e uma
de oito, me lembro bem. E eu falei que a de cinco era bobinha. Bobinha
porque o pensamento dela é mágico. E a de oito, ela já tem um pensamento
lógico, ela já sabe o que está fazendo. Mas a pequena não, a pequena (...)
tem estímulos, mas ela não pensa... ela não tem resposta. É como eu falei
para ela, uma criança de cinco anos, ela pode aprender a nadar, ser uma
exímia nadadora, mas na hora do risco ela morre, porque ela não tem
iniciativa de sair do risco (...) Bobinho porque acredita em Papai Noel,
bobinho porque os pais são os espelhos dele. Sete anos já contesta! Mas a
pequena adora separar pai e mãe. Se você está conversando com... você tem
a sua sobrinha, na hora que você conversa com a sua irmã ela não te tira do
meio da conversa? Não quer que a conversa seja pra ela?” (Dra. Carla)

O desenvolvimento do pensamento lógico rompe com uma situação anterior em


que a criança responde a estímulos sem avaliar racionalmente a situação em que se
encontra. No pensamento mágico, a criança vive em um reino de fantasias, em que não
demonstra uma iniciativa própria e, portanto, uma individualidade que se contraponha ao
meio em que está inserida. A criança está inscrita numa relação de espelhamento com seus
pais (idolatria), uma vez que o mundo familiar compõe grande parte de seu universo
perceptivo. Deste modo, a criança confunde-se com o universo familiar, sendo identificada
pelo pediatra como expressão dos conflitos estruturados no campo das relação familiares.

Capítulo 3
243
A oposição entre o pensamento lógico e o pensamento mágico opera uma
relação de exclusão mantida entre o <<saber>> e a <<percepção>>. Uma das irmãs,
mencionada no episódio relatado pela Dra. Carla, está sujeita ao campo dos
condicionamentos mentais binários do tipo “estímulo-resposta”, enquanto a outra afasta-se
desta condição na medida em que sabe avaliar as diferentes situações enfrentadas
cotidianamente sem “afogar-se” de modo confuso em seu meio social.

A confrontação do reino das crenças fantasiosas com o reino dos saberes


assertivos remete à oposição estabelecida entre um <<conhecimento cultural>> e um
<<conhecimento escolar>>. Vejamos, então, como esta oposição atua na magia e na lógica
do desenvolvimento infantil.

“O que é a infância? Acho que a infância é uma fase muito importante (...)
no nosso desenvolvimento, é uma fase onde... hoje ela é muito vivenciada
(...) às custas de muitos estímulos. É uma fase onde você vai preparar
aquele indivíduo (...) Na realidade, por mais que a gente fale que a gente
prepara alguém, acho que é ele que se prepara mesmo e... Eu acho que na
infância ele aprende os mecanismos que ele vai utilizar no futuro. Então
acho que a infância é onde ele começa a perceber que ele ouve, que ele
enxerga, que ele sente, e outros também ouvem, enxergam e sentem. E se na
infância ele não perceber isso, mais tarde vai ter reflexo na vida de adulto
disso.” (Dr. Marco)

A criança que demonstra inscrever-se em um pensamento lógico, de certa


maneira recusa o acondicionamento de sua sensibilidade em um simples mecanismo binário
de pensamento (estímulo-resposta). Isto porque a construção de seu processo de
individualização apóia-se no desenvolvimento de mecanismos mais complexos que irão
estruturar sua vida adulta, garantindo-lhe um futuro promissor. O fato destes mecanismos
serem produzidos necessariamente “às custas de muitos estímulos” não é apenas irônico,
mas, também, mostra que cada fase da infância deve necessariamente apoiar-se na plena
manifestação das relações de dependência que marcam a fase anterior.

Provavelmente, um dos “custos” de inscrever-se na realidade infantil talvez seja


o de ser interpretado a partir de um gesto pedagógico que incentiva o desenvolvimento
infantil, ao mesmo tempo em que mostra como seus mecanismos de formação estruturam-
se a partir da sua relação de dependência com o cuidado materno.

Capítulo 3
244
O processo de socialização infantil implica em muitos <<custos>> para as
crianças, uma vez que o processo de desenvolvimento infantil fundamenta-se
discursivamente em dizeres que subalternizam sua sensibilidade às expectativas adultas.
Sem dúvida, um dos pontos mais evidentes desta subalternização é dado pelo caráter tutelar
da infância. Não obstante, também podemos pensar na maneira como a ótica adulta busca
incessantemente localizar as crianças em seu processo de desenvolvimento – a partir das
oposições linguagem verbal/não-verbal, pensamento mágico/lógico ou conhecimento
cultural/escolar – como um esforço revelador de importantes pontos de concretização da
criança como sujeito.

3.3. Individualidade infantil?

Uma das formas deste esforço é dada pela identificação do adulto com o lugar
da permanência e da criança com o lugar do movimento, sendo que o desenvolvimento
infantil deve encaminhar a criança em seu processo de individualização.

“O adulto é uma pessoa que já passou pela infância. E o que é infância? A


infância é lotada de fases. Você tem a fase do recém-nascido (...) a fase do
pré-escolar, a fase do escolar, a fase do adolescente pra depois ele ser
adulto... a juventude, para depois ser adulto. Então é um desenvolvimento, e
rápido (...) Eu sempre digo: ‘Neném de colo é um ano, gente!’ Depois vai ser
neném de chão. Neném de chão... é mais fácil você lidar (...) Neném com um
ano já é de chão. Então eu digo, neném de colo é uma coisa, neném de chão
é outra. E digo por que coco de neném fede, por que você não deve fazer
determinadas dietas, dar determinados alimentos. Então eu acho que criança
(...) é um ser em desenvolvimento porque a gente sempre diz assim, a gente
traz muita mágoa da nossa juventude.” (Dra. Carla)

Se as crianças são tomadas pelas relações familiares que conformam seu espaço
específico de existência, elas também devem ser consideradas em suas características
individuais. As próprias mágoas sentidas ao longo da infância possibilitam a construção de
uma individualidade infantil, constituindo-se em marcos da história pessoal da criança.

Capítulo 3
245
Outras marcas de individualidade serão reconhecidas desde cedo nas crianças;
especialmente no caso das crianças pequenas, a denotação destas características pode
aparecer em termos de um ímpeto inato que se apresenta na forma de um dom.

“Ah, quando trazem o ímpeto (...) você tem que deixar aflorar, não pode
inibir ou coibir, você tem que deixar (...) Eu tenho uma criança com quatro
anos que ela canta pra mim. Vem cantar pra mim (...) e é entoada. O que eu
vou dizer para mãe? Isso é dom, não fabricou ela. Eu tenho criança aqui
com dois anos sabendo essas coisas todinhas de [cores] (...) Então a mãe
gosta quando eu digo que o filho dela é gênio, eu melhoro muito a auto-
estima da mãe.” (Dra. Carla)

A demonstração deste dom deve ser estimulada para que as potencialidades


infantis encontrem uma possibilidade cada vez maior de se manifestarem. Aliás, torna-se
importante mostrar para a mãe que ela deve ter orgulho deste florescimento no processo de
desenvolvimento de seus filhos.

Os limites existentes entre as realidades psicológica e biológica das crianças


parecem um tanto nebulosos nesta descrição da individualidade infantil, uma vez que
ambas as dimensões são moduladas pela inserção familiar das crianças. As interações com
o meio continuam aqui a delimitar sua especificidade cultural e a educação de seus
sentidos.

3.4. Estados binários da criança, da mãe...

As mães devem compreender que seus filhos são altamente suscetíveis às suas
atitudes, dependentes que são dos cuidados maternos. Desta forma, mesmo estes ímpetos
naturais requisitam o estímulo do meio familiar da criança para ganharem um espaço
relevante em suas vidas.

Ademais, as mães devem ter em conta que esta relação de dependência não
deve gerar um drama familiar fomentado por culpas, medos e opiniões que venham a
obrigá-la a um estado de permanente vigília, estabelecido no sentido de resguardar seus

Capítulo 3
246
filhos de qualquer perturbação que possam sofrer. O pediatra deve demonstrar para as mães
que seus filhos possuem uma existência própria, ainda que extremamente dependente dos
cuidados maternos.

“[As fases da infância] são muito importantes e muito diferentes, a questão


do recém-nascido, o mais que você tem que fazer é mostrar para mãe se ele
tem ou não tem uma doença de base; a questão é você conseguir demonstrar
pra mãe que ela pode ir dormir que ele não vai morrer, provavelmente.
Senão a mãe fica o tempo todo acordada (...) e no fim ela fica ansiosa, ela
fica cansada (...) ela vira uma pilha (...) Aí o neném só chora (...) aí está
instalado (...) todo mundo dá palpite (...) Como é que você consegue
convencer a mãe que ela deve continuar insistindo para amamentar [porque
a] cólica do neném (...) vai melhorar com o tempo, não é nada grave, ele não
está sofrendo tanto assim (...) [Tem que] mostrar para mãe que bebê novo
só tem duas situações, ou ele está dormindo quieto ou ele está acordado
chorando, e não quer dizer que ele está sofrendo terrivelmente. O choro do
bebê não tem o mesmo significado do nosso.” (Dr. Gustavo)

O pediatra deve agir rapidamente, de maneira a evitar ao máximo a


interferência de parentes e amigos no estabelecimento do cuidado materno, demonstrando
para a mãe os limites em que se inscreve a sua própria condição materna; e, com isto, ele
deve apontar os cuidados necessários indicados para a fase em que se encontra seu filho.

As mães devem compreender que o bebê possui somente duas situações, ou está
dormindo quieto ou está acordado chorando. Elas devem compreender que o choro do bebê
não possui a mesma realidade de um choro adulto, pois as crianças possuem uma estrutura
binária de existência, que se distancia bastante da sensibilidade adulta. Deste modo, estas
crianças estão imersas em um estado de simplicidade que não deve ser perturbado pelas
elucubrações interpretativas maternas, sustentadas em sua rede social de convívio.

A ação do pediatra deve visar a adaptação da família a esta realidade binária,


conduzindo desde cedo a atenção materna para a especificidade da realidade infantil,
auxiliando assim na reordenação das relações familiares instaurada pela presença dos filhos
na casa.

Capítulo 3
247
“Então, como é que você ajuda a mãe, a família, a se adaptar frente a uma
nova situação que nunca mais vai ser a mesma. Uma coisa é você não ter
filho, outra coisa é ter. Completamente diferente para o resto da vida. A
minha filha mais velha está casada, mora com o marido na casa dela. E
basta ela não aparecer uma semana lá em casa [que] eu pergunto para
[minha esposa]: ‘Escuta, aconteceu alguma coisa com a [nossa filha]?’. Não
quero nem saber, ela tem que ir lá! Agora, ela sente muita falta de ir lá em
casa, e ela fica triste com isso. Ao mesmo tempo ela sabe que agora ela é
outra pessoa, casou. Então, você conseguir mostrar o que significa ter um
nenê novo em casa, como é que cuida dele (...) Se o pediatra não ajudar
direito. E tem que ser loguinho, desde que nasceu, por isso o meu interesse
no berçário.” (Dr. Gustavo)

Estar ou não casada, ter ou não ter filhos, ser ou não ser mãe, são todas estas
situações distintas que inserem o indivíduo em uma rede de obrigações específicas. O filho
que fomos ou o filho que somos, o filho que temos ou que desejamos serão elementos que
informam o cuidado pediátrico e materno.

Ser mãe implica em abdicar de uma situação anterior, assumindo então a


responsabilidade por alguém que depende inteiramente de seus cuidados. Esta relação de
dependência entre mãe e filho só será quebrada aos poucos (pelo pediatra), e não sem
sofrimento, continuando a ressoar, inclusive, quando os filhos já atingiram a idade adulta.
Afinal, mesmo não sendo mais criança, a filha do Dr. Gustavo mantém uma relação
umbilical com a casa de seus pais, uma relação rompida somente até certo ponto pelo seu
casamento.

3.5. As fases da infância e a organização do atendimento pediátrico

Passaremos de agora em diante a discutir a maneira como as diversas fases da


infância oferecem dilemas e desafios específicos que irão estruturar o atendimento
pediátrico. Encontramos, geralmente, nos relatos dos entrevistados, a seguinte demarcação
da infância:

“O que eu, a gente operacionaliza (...) é o lactente até dois anos, pré-escolar
até cinco, seis anos, e aí escolar, de sete para nove, e aí depois adolescente
(risos), que essa divisão ela existe.” (Dra. Cristina)

Capítulo 3
248
A descrição das fases da infância no atendimento pediátrico aponta para o
movimento de ruptura progressiva com a condição de dependência da criança com relação
ao cuidado materno. Cada sinal desta ruptura deve ser explorado e até estimulado pelo
pediatra, no sentido de consolidar uma relação autônoma da criança com seu meio familiar.
Vejamos como o Dr. Marco descreve a participação da criança no atendimento pediátrico,
de acordo com as fases da infância:

“De forma grosseira, talvez desse para dividir em três etapas (...) até dois
anos, de dois até oito (...) depois de oito até daí para frente. Até dois anos eu
acho que a criança participa muito mais com gestos, expressões daquilo que
está acontecendo, chora, ela vai manifestar clinicamente o que
eventualmente está acontecendo com os sintomas, é falta de ar, é febre, a
mãe é que vai principalmente transmitir isso para você e é ela que vai te
falar: ‘Olha, está acontecendo isso, isso e isso, notei tal e tal mudança’. Aí
entre dois e cinco anos, ela te fala já algumas coisas, ela já te passa dados
importantes, ela fala: ‘Dói aqui, dói acolá, eu estou tendo cansaço, estou me
sentindo mal, estou me sentindo quente.’ Então a mãe começa a ter o cordão
umbilical, (...) com o médico, começa a ser quebrado. Nessa hora é
interessante porque a mãe tenta interferir, também, porque na realidade ela
está sentindo que a criança está crescendo e ela quer falar: ‘Não... ’. Ela
quer mandar na doença também. E aí você tem que realmente triar... e eu
particularmente uso, a partir de dois anos, muito já informação da própria
criança. Ela é muito confiável, acho que vale à pena usar a informação
dela.” (Dr. Marco)

Três fases da infância são claramente marcadas pelo grau de dependência


demonstrado pela criança em relação ao cuidado materno, três fases que apontam também
para os graus de dependência do pediatra em relação ao relato materno. Quando a mãe
sente que seu domínio sobre o universo infantil é ameaçado pelo processo de “aquisição”
verbal de seus filhos, ela tentará interferir na doença e, por conseqüência, no cuidado
médico destinado às crianças.

Vemos nesta situação como são complexas as relações de subordinação


existentes entre o ponto de vista leigo e o ponto de vista técnico sobre o corpo doente/corpo
infantil das crianças. Isto porque entre o cuidado médico e o cuidado materno ocorre um
duplo jogo de interferências que são configuradas de acordo com a fase da criança.

Capítulo 3
249
O relato materno torna-se objeto de desconfiança médica não somente quando a
criança ainda não verbaliza – momento este em que a gestualidade materno-infantil deve
revelar a verdade sobre o adoecimento da criança –, mas, também, quando a criança
verbaliza, apontando sintomas mais confiáveis para o pediatra do que aqueles identificados
no relato materno. Esta desconfiança está baseada tanto no caráter interpretativo do relato
materno (apoiado em sua rede social de convívio), quanto na inscrição da criança em uma
existência binária (linguagem verbal/não-verbal, personalidade angelical/endiabrada,
pensamento lógico/mágico), a partir da qual, mesmo quando fantasia uma situação de
adoecimento, (a criança) é tomada pelo olhar médico em sua simplicidade translúcida, não
oferecendo resistência ao saber clínico.

3.6. Lactente

A primeira fase descrita pelos entrevistados (lactente) é aquela circunscrita pelo


gesto da amamentação, quando a relação harmônica entre mãe e filho, existente no período
gestacional, parece manter-se em parte através da ligação umbilical da criança ao cuidado
materno. Mãe e filho devem alimentar-se deste momento crucial para o desenvolvimento
infantil.

“[O] Lactente, tem aí essa dependência da mãe, pelo próprio nome, então é
um bebezão, pequeno até ficar mais ou menos grande, mas permanente
dependente.” (Dra. Cristina)

A fase do lactente diz respeito a uma dependência extrema do bebê em relação


à sua mãe, uma fase em que todo sintoma deve ser investigado através de um exame
médico alerta às mais variadas possibilidades de adoecimento. A imprecisão dos sintomas
do lactente deve ser trabalhada por um olhar médico preciso, que busque rastrear qualquer
agravo à saúde da criança através da sua fisionomia e, principalmente, da verificação de
alterações em seus sinais vitais.

Capítulo 3
250
“O recém-nascido você tem que prestar muita atenção (...) principalmente
no aspecto da criança, na cara mesmo, se ela está em bom estado, em mal
estado, ver sinais vitais. Eu acho que no recém-nascido, no lactente, criança
até dois anos, é o momento em que você mais ver sinais vitais, porque a
criança não se expressa verbalmente, então você tem que procurar dados
além do que ela puder... pode falar (...) Os sinais vitais aqui são mais
importantes, freqüência cardíaca, freqüência respiratória, pressão...”
(Dra. Fátima)

O atendimento prestado ao <<recém-nascido>> parece direcionar a atenção


pediátrica prioritariamente para o seu exame físico e laboratorial, porém, certamente, o
olhar pediátrico lançado sobre o <<lactente>> extrapola em muito o mero
dimensionamento biomédico da criança. Um exemplo disto será dado pela forma com que o
choro do bebê é interpretado pela Dra. Mônica.

“Uma criança de nove meses até dezoito, ela chora muito no exame físico,
porque elas percebem essa agressão. Elas começam a entender que não
fazem mais parte do corpo da mãe, então elas choram. Porque eu estou
agredindo, eu estou cutucando. Mas daí: ‘Olha, mãe, você segure aqui no
que for possível, não segure com muita força porque senão ela vai reagir
mais. Só para não bater no aparelho.’ Alguma coisa assim (...) [Mas] esses
capetinhas que viram o consultório do avesso, também, eu já sou um pouco
mais dura, eu não deixo, porque senão o consultório não dura mais do que
uma consulta.” (Dra. Mônica)

O choro atrapalha a consulta, mas pode ser controlado pelo gesto materno. Para
tal, a mãe deve segurar o bebê para o pediatra, apresentando-o ao olhar médico em um
gesto tranqüilo que acalme a criança. A vulnerabilidade do recém-nascido é extrema, assim
a ação (médica e materna) de conter o recém-nascido pode ser tomada pela criança como
uma agressão. Neste modo de interpretar o choro da criança, o progressivo processo de
ruptura com a dependência relativa aos cuidados maternos constituiria, assim, a principal
fonte do incômodo infantil presente nas primeiras fases da vida.

A oscilação das imagens <<criança angelical>> e <<criança capeta>> aponta


para a condição binária da criança nesta fase da vida, compreendendo que o lactente
alcança o céu e o inferno na sua relação materna. Estas imagens identificam a maneira

Capítulo 3
251
como os comportamentos da criança são condicionados pelos cuidados maternos; assim, as
crianças podem querer virar do avesso o consultório pediátrico quando o cuidado materno
não media adequadamente o cuidado médico, requisitando do pediatra a imposição de
limites ao seu comportamento.

A criança pré-escolar experimenta a autonomia relativa ao corpo materno de


uma maneira mais tranqüila, gerando menos angústia para a mãe e para o pediatra. A
verbalização infantil possibilita uma localização mais precisa dos sintomas e sentimentos
vivenciados pelas crianças; diante disto, tanto o pediatra como a mãe da criança sentem-se
mais tranqüilos para identificar o adoecimento infantil e determinar os cuidados
necessários. Estas mudanças imprimem diferentes formas de acionar o cuidado médico e de
estruturar o atendimento clínico voltado para as crianças.

“Você tem uma fase aí de pré-escolar, em que a criança já tem uma


atividade autônoma, ela já se desliga mais, é capaz de fazer coisas (...) É
uma fase até que reduz um pouco o trabalho (...) O cuidado fica mais fácil
numa criança pré-escolar. E escolar é um molequinho, uma menininha fácil
da gente conversar (risos). Então (...) são três momentos, um de extrema
dependência, que tende a (...) dar respostas muito globais, gerais, você tem
dificuldade de localizar sinal, sintoma, que é a fase que gera mais angústia,
de maior procura de serviço pediátrico. Então, uma gripe numa criança de
cinco meses tem uma repercussão e cria uma ansiedade completamente
diferente de uma gripe numa criança de sete, a mãe não procura o serviço:
‘Ah, é gripe, ah, toma um chá, toma não sei o quê, toma uma Novalgina e
acabou.’ Com cinco meses ela fica desesperada, porque a criança chora, o
tempo todo, ela não sabe o que [a criança] tem, vai mamar tosse e vomita.
Então (...) fica um caos, não dorme a noite inteira, chora a noite inteira, fica
no colo o dia inteiro (...) cria muita (...) ansiedade. E aí a gente tem que lidar
com isso, quer dizer, são momentos diferentes que criam ansiedades e
angústias muito diferentes.” (Dra. Cristina)

O pediatra deve situar a criança em seu processo de desenvolvimento e lidar


com os dilemas específicos de cada uma de suas fases, portanto atender um recém-nascido,
um pré-escolar, um escolar ou um adolescente requisita deste profissional formas
diferenciadas de organizar a ação médica.

Capítulo 3
252
Para que a mãe e o pediatra possam definir melhor os cuidados destinados ao
recém-nascido, eles têm que compreender a sensibilidade infantil e interpretar seu modo
peculiar de expressão (binário). No momento em que a mãe não sabe realizar tal
interpretação, o pediatra deve agir rapidamente para que não seja rompido o equilíbrio
mínimo necessário no ordenamento do cuidado materno, evitando assim a instauração do
<<caos>> nas relações familiares.

A extrema dependência do recém-nascido em relação ao cuidado materno é


tratada na clínica médica através de uma relação de dependência correspondente existente
entre o cuidado médico e o cuidado materno, a partir da qual deve ser estabelecida uma
firme aliança entre os cuidadores leigos e especializados da criança, no sentido de assegurar
uma maior proteção ao bebê. Ambos se sentem angustiados frente à fragilidade do recém-
nascido e do caráter <<inespecífico>> ou pouco exato de sua “linguagem gestual”.

De um lado, encontramos uma mãe que requisita do olhar pediátrico uma


avaliação médica (do recém-nascido) que permita redefinir e apoiar seus cuidados em
critérios respaldados por um profissional que possui um saber que lhe é inacessível sobre o
corpo doente. De outro lado, encontramos o pediatra que procura alicerçar seu olhar em um
instrumental diagnóstico que visa estabelecer a tomada mais objetiva possível do estado de
saúde do recém-nascido. Neste sentido, são estabelecidos protocolos que orientam o exame
médico neste percurso em direção à imprecisão dos sinais clínicos do lactente.

“Eu acho que a pior fase (...) [em] que a criança está mais vulnerável, onde
ela apresenta os sinais mais inespecíficos (...) [em que] a gente tem mais
dificuldades de lidar... de lidar não, de fazer um diagnóstico preciso, é o
primeiro ano de vida (...) Principalmente os três primeiros meses, [em] que
qualquer sinal pode ser de uma doença grave. Tanto que a gente tem
protocolos de atendimento na urgência de acordo com a faixa etária. Nessa
faixa etária, tem o cuidado com tudo isso, com todos esses sinais. Nessa
[outra fase] você já (...) [fixa a atenção em] poucos sinais. E vai até a hora
que a criança consegue verbalizar. Então o primeiro ano é o pior (...) o
segundo ano fica mais fácil, a criança interage mais com o atendente mas
chora muito, e às vezes dificulta um pouco o diagnóstico (...) No primeiro
ano não chora tanto, interage bem com a gente mas é difícil você
caracterizar bem a clínica. No segundo ano ela chora demais, é difícil

Capítulo 3
253
examinar, mas de longe você consegue às vezes saber com que tipo de
doença ela está, e até a história fica um pouco mais clara porque ela começa
a localizar os sintomas.” (Dr. Ricardo)

Veremos mais adiante como é visível a predileção que muitos dos entrevistados
mantém em relação ao atendimento prestado ao recém-nascido. Mesmo apresentando sinais
clínicos inespecíficos, o recém-nascido parece possibilitar a construção de uma relação
médico-paciente atraente para o pediatra. Provavelmente, isto tem a ver com a extrema
vulnerabilidade do recém-nascido em relação ao meio físico e social, conformando-se em
um corpo infantil bastante dependente e suscetível à ação médica.

A linguagem semiológica, apoiada em protocolos que visam apreender os sinais


clínicos inespecíficos apresentados pelo recém-nascido, procura substituir provisoriamente
a linguagem verbal que será desenvolvida posteriormente por parte da criança. A lacuna
existente entre o pediatra e o recém-nascido deve ser preenchida por um exame médico que
compense a falta da linguagem verbal e a conseqüente imprecisão na localização dos
sintomas.

No entanto, por mais que o exame médico fundamente-se em um ponto de vista


técnico lançado sobre o corpo doente, o pediatra deve interferir no cuidado materno, se
quiser garantir uma maior proteção ao recém-nascido. Afinal, como já dissemos, nesta fase
da vida o corpo da mãe e do filho parecem guardar ainda uma relação umbilical própria do
período gestacional. O gesto da amamentação aponta emblematicamente para a condição de
dependência em que mãe, filho e pediatra se encontram.

“O primeiro ano de vida tem muito a ver com o aspecto propriamente físico,
crescimento, peso, estatura... tem muito a ver também com desenvolvimento
(...) você tem aqueles marcos de desenvolvimento que são ainda muito no
sentido propriamente neurológico: se firmou a cabeça, se sorrir, se olha a
mão, se permanece sentado com apoio, se está engatinhando (...) Primeiros
passos, fala as primeiras palavras. Tudo isso aí vai acontecer no primeiro
ano de vida. Você tem que estar alerta, medir perímetro cefálico, você tem
que ser capaz de diagnosticar precocemente problemas. Isso eu acho que é
a atuação no primeiro ano de vida. Como é que é a alimentação, como é que
é o desmame. São coisas que se não forem bem feitas não têm uma segunda

Capítulo 3
254
vez boa, é só aquela (...) O Winnicot dizia que você tem que ajudar a mãe a
saber o que é uma mãe suficientemente boa. O que é? É aquela que no
primeiro momento dá tudo, porque ela é Deus. Recém-nascido, se ele está
alimentado e saciado ele está no céu, nirvana, e se ele está com fome ele
está morrendo, não tem meio termo. E quem satisfaz completamente isso é a
mãe. E é o tempo todo. O Winnicot fala que a mãe suficientemente boa é
aquela que sabe dar tudo o que o neném precisa, e, sabe se afastar
progressivamente. E você ajuda a mãe a fazer isso, o se afastar
progressivamente... Você ajuda a conciliar trabalho com maternidade, ou
maternagem: ‘Aí, eu vou voltar a trabalhar! Vou ter que levar o meu neném
pra creche ou pro berçário! Como é que vai ser?!’ (imitando mãe chorosa).
Bom, vai precisar trabalhar? Vai. Pronto. Como é que a gente resolve isso?
Como é que obtém o melhor resultado possível disso, em vez de ficar jogando
cinza na cabeça?” (Dr. Gustavo)

Podemos notar que se formam linhas de complementaridade entre a mãe, a


criança e o pediatra, fundamentais ao estabelecimento dos cuidados médico e materno
dirigidos ao recém-nascido.

Em primeiro lugar, a emoção materna deve se associar à razão médica para que
o recém-nascido seja avaliado em seu processo de desenvolvimento. Assim, ao examinar os
aspectos fisiológicos e morfológicos do recém-nascido, o pediatra deve detectar
precocemente agravos à saúde que perturbem o pleno desenvolvimento infantil.

Deste modo, mesmo quando o pediatra mede o perímetro cefálico do bebê ou


verifica os seus sinais vitais, ele está buscando identificar seus “primeiros passos, suas
primeiras palavras”, aferindo assim o andamento de seu processo de desenvolvimento.

É a partir da apreensão da relação materna que o pediatra pode compreender se


a criança está sendo encaminhada para o desenvolvimento de uma autonomia relativa ao
corpo materno ou para a continuidade de uma relação de dependência que não será
admitida em fases posteriores.

Em segundo lugar, neste período da vida, a relação existente entre a mãe e seu
filho é marcada por uma disposição binária de sentimentos, momentos, desejos e
necessidades. Ou o bebê está no céu ou no inferno, não há lugar para o “meio termo” ou

Capítulo 3
255
para as posições intermediárias entre a infância e a idade adulta (que marcarão outras fases
da vida, em especial a adolescência). A criança parece estar praticamente “colada” à sua
mãe, restando a esta “padecer no paraíso”.

Este paraíso, em que mãe e criança experimentam uma união fundamental, deve
ser rompido através do afastamento progressivo assumido por uma mãe que sabe abdicar de
sua ascendência sobre a criança, sempre em favor do desenvolvimento infantil. Caso isto
não ocorra, a relação de extrema dependência mantida entre mãe e filho pesará de tal modo
em suas vidas que terminará por prejudicar o próprio desenvolvimento infantil, condenando
ambos a uma relação circular que não encontra nenhum sinal diacrítico que venha a alterar
sua configuração binária. Cabe ao pediatra mostrar para a mãe a diferença entre uma
relação materna sadia ou doentia, assim como suas implicações para a formação de seu
filho.

Podemos apontar, ainda, uma terceira relação de dependência mantida entre o


pediatra e a mãe da criança. Esta dependência funda-se na relação complementar existente
entre o corpo infantil e o corpo materno, a partir da qual o olhar pediátrico só pode atingir
um destes termos se objetivar (também) o outro. Quanto mais a criança for vulnerável aos
cuidados maternos, tanto mais o pediatra deverá intervir na relação materna, de modo a
garantir o bom desenvolvimento infantil.

Esta situação é indicada pelo Dr. Gustavo quando afirma que somente a mãe
“satisfaz completamente” a criança, experimentando com ela a oscilação entre o céu e o
inferno, concluindo que o pediatra deve intervir na relação materna para incentivar o
estabelecimento de uma autonomia relativa entre mãe e filho ao longo do desenvolvimento
infantil. Se entre mãe e filho há uma relação de complementaridade importante para o
trabalho pediátrico, esta deve ser trabalhada a partir de um caráter também complementar,
instaurado entre o cuidado especializado (médico) e o cuidado leigo (materno).

Por fim, resta lembrar que estas relações de dependência e complementaridade


tornam-se mais claras no atendimento ao recém-nascido, uma vez que o lactente aponta
veementemente para o tema da origem da vida. Como afirma o Dr. Gustavo, “não existe

Capítulo 3
256
uma segunda vez (tão) boa” para que a intervenção pediátrica atinja o corpo infantil ao
intervir no cuidado materno.

A imagem do lactente abraçado ao seio materno sendo progressivamente


afastado de uma relação simbiótica com a vida, de maneira que possa assumir uma
gradativa autonomia (relativa aos cuidados maternos) e responsabilidade sobre seus atos
(auto-cuidado), certamente expressa de modo muito claro uma certa maneira de encarar o
desabrochar dos “primeiros passos e das primeiras palavras” da criança.

O recém-nascido parece manter uma relação materna com o mundo que oscila
entre o céu e o inferno, entre a saciedade e a completa frustração, cabendo ao pediatra
interpor-se nesta situação de modo a incentivar a instauração de novas sensibilidades
infantis, próprias à linguagem verbal, ao pensamento lógico, ao conhecimento escolar. O
nascimento da vida individual e social é descrito aqui como um processo pautado, em
grande parte, pela educação dos sentidos.

A extrema vulnerabilidade do recém-nascido leva o pediatra a querer se


aproximar o mais rápido possível dos primeiros momentos de vida da criança, uma vez que
aí são definidos encaminhamentos cruciais para o desenvolvimento infantil: o cuidado
médico deve se fazer presente junto ao cuidado materno em seus “primeiros passos e suas
primeiras palavras”, de maneira a fundamentá-lo num conjunto específico de dizeres.

O caráter moldável da criança e do cuidado materno, identificado em seus


primeiros momentos de configuração, aparece assim como um dos fatores explicativos da
ênfase dada no trabalho pediátrico para o atendimento do recém-nascido. A possibilidade
de intervir de maneira definitiva neste momento decisivo da vida da criança é muito
valorizada na clínica pediátrica.

“O meu trabalho mais forte é puericultura. Então, nos primeiros dois anos
de vida [é] que a gente tem um contato mais freqüente com a mãe. Eu marco
nos primeiros seis meses, a mãe vem mensalmente, depois vem a cada dois
meses até um ano (...) depois de dois anos uma vez por ano, para rotina. E
nas intercorrências que elas trazem as crianças. Então o meu atendimento
mais freqüente é com lactentes de zero a dois anos. Eu tenho atendimento até

Capítulo 3
257
doze anos, que seria da faixa da pediatria. E por força da demanda, eu
estou atendendo adolescência, também, até esses aí de vinte e não sei
quantos anos que me chamam de tia... me ligam da faculdade... (risos) Esses
dias atrás eu tive que atender um menino de vinte e um anos que já veio
grande aqui para mim. Eu não consegui me livrar dele, eu tive que dobrá-lo
em quatro pra ele caber na minha mesa aqui. Porque a minha mesa já é
pretensiosa, tem um metro e setenta. A mesa de pediatra... essa mesa,
quando eu mandei fazer a vinte anos atrás, todo mundo deu risada. Falaram:
‘Ah, mas que mulher mais pretensiosa. Vai botar bebê de cinqüenta
centímetros, mandou fazer uma mesa de um e setenta!’ Mas eu tinha essa
concepção de atender até doze anos (...) Mas hoje atendo até mais que doze.
A parte da adolescência, eu não tenho especialização, então (...) eu estou
como eu fiz no começo da carreira, tentando correr atrás das informações
para poder atender essa clientela que eu não consigo passar pra frente,
porque não tem um clínico geral na cidade! Não tem clínico geral! Tem
cardiologista, pneumo, não sei o quê. (...) E quando um jovem de vinte anos
tem uma febre ele vai aonde?! Então, eu acabo atendendo aqui no
consultório. Mas não é uma faixa que eu goste de fazer não, eu prefiro
atender (...) os menores mesmo.” (Dra. Mônica)

De maneira geral, a relação de dependência existente entre mãe e filho no início


do processo de desenvolvimento infantil requisita uma atenção maior do pediatra. Aos
poucos, esta atenção vai se convertendo num acompanhamento mais espaçado, conforme a
criança vai crescendo. O pediatra é incorporado como um elemento familiar a este processo
de desenvolvimento, na medida em que ele se apresenta como um contraponto importante à
ótica materna. A familiaridade do pediatra em relação às crianças que estão sob seus
cuidados é denotada ao ser chamado de “tia/tio”; este tratamento, muitas vezes, perdura
inclusive quando seus pacientes já estão ingressando na idade adulta. Esta relação familiar,
construída ao longo do tempo, parece ir ganhando graus crescentes de estranhamento
conforme a criança vai se inscrevendo no universo adulto.

As fases anteriores à adolescência parecem ser apreendidas com maior


tranqüilidade na clínica pediátrica, requisitando do olhar pediátrico uma sensibilidade
acurada para dimensionar nitidamente o processo de desenvolvimento infantil. Este olhar
recoloca-se a cada fase da infância, a partir de um mesmo ponto: o grau de autonomia ou de

Capítulo 3
258
dependência da criança em relação aos seus cuidadores regula a estruturação de uma ação
médica que procura interferir sobre o cuidado leigo.

“Então, o segundo ano de vida é o ano (...) da autonomia, de querer fazer


tudo sozinho, de andar, de comer com a colher, de se lambuzar, começar a
tirar a fralda, controlar esfíncter, tudo isso é muito importante... Já está no
berçarinho, na escolinha. Como é que é essa relação com outras crianças,
com adultos? Você vai acompanhar tudo isso. Aí você começa a acompanhar
o desenvolvimento da linguagem. O pediatra tem que acompanhar. Ensinar
a mãe que não tem que falar tatibitati pro filho: ‘Ah, pipipi, ah, bibizinho da
mamãezinha!’. O cara vai falar (...) tudo errado dali a pouco. Ou ter
paciência com a gagueira transitória de uma criança, saber que aquilo é
natural e é comum, não vai se manter” (Dr. Gustavo)

Da mesma maneira que a criança encontra na escola um importante espaço de


socialização com outras crianças, marcado fundamentalmente pelo gesto pedagógico,
também a mãe deve encontrar no espaço clínico uma ação pedagógica que a oriente em seu
papel de cuidador.

3.7. Escolar

“A fase mais tranqüila que eu acho é o pré-escolar e o escolar. É uma


tranqüilidade (...) [São] poucas as doenças (...) De dois a três não é tão
difícil, tem bastante doença mas é mais localizada. Agora, a fase mais
tranqüila é de três até mais ou menos uns dez anos. Por quê? Ele fala, tem
pouca doença. As doenças são... quando aparecem, são mais floridas, são
mais sintomáticas. Você trabalha muito mais a questão da prevenção de
doença (...) prevenção de acidentes, prevenção de doença infecciosa,
vacinação... é muito fácil trabalhar nessa idade.” (Dr. Ricardo)

Salta aos olhos a utilização, por parte dos entrevistados, da denominação <<pré-
escolar>> e <<escolar>> para designar a fase da vida que se estende mais ou menos dos
três aos dez anos. Sem nos enveredarmos por interpretações aprofundadas sobre estes
termos, não podemos deixar de notar a clara alusão ao campo da Educação como um ponto
de apoio importante para o processo de desenvolvimento infantil.

Capítulo 3
259
Vimos em passagens anteriores a importância alcançada pela verbalização
infantil no atendimento clínico para o estabelecimento das condutas diagnósticas e
prognósticas assumidas pelo pediatra. Mencionou-se, também, em capítulo anterior, o
caráter complementar mantido entre a Pediatria, a Escola e a Mídia no sentido de favorecer
a incorporação do auto-cuidado por parte das crianças.

Estes aspectos justificariam, em parte, a utilização do termo <<escolar>> para


descrever esta fase da infância. Porém, mais do que imaginar as possíveis conotações deste
termo, podemos considerá-lo um indício da maneira como a clínica pediátrica estrutura-se a
partir de um ponto de vista pedagógico lançado sobre o desenvolvimento infantil e sobre o
papel de cuidador da criança.

Este papel deve ser primeiramente apreendido pela mãe, cuidadora privilegiada
da criança ao longo de sua vida (especialmente na primeira fase da infância). A seguir, este
papel deve ser delegado, em parte, à escola, onde a criança passa por momentos
importantes em seu processo de desenvolvimento. Em ambos os casos, encontramos no
gesto pedagógico um ponto de apoio importante para a construção do papel de cuidador da
criança. Aliás, a própria ótica pediátrica apresenta-se como um contraponto à ótica leiga, na
medida em que se apóia duplamente numa perspectiva pedagógica; ou seja, enquanto
cuidador especializado da criança, o pediatra procura instruir o cuidado leigo a partir dos
conhecimentos aprendidos na sua formação escolar e consolidados na sua experiência
profissional.

Cada fase da criança exigirá um aprendizado diferente por parte da criança e de


seus cuidadores, assim:

“Bom, você lidar com recém-nascido é uma coisa. Recém-nascido, de zero a


seis meses, mamando no peito não tem doença. Mamando no leite
modificado não tem doença. Uma criança com cinco anos, ela pouco vai ter
doença. Ela é pré-escolar, ela come pouco. Então ela come pouco, ela cresce
pouco, engorda pouco. E ela precisa mais é de substâncias energéticas, por
isso que é a idade das doenças. Então a gente trabalha mostrando para mãe
que dificilmente uma criança de cinco anos vai adoecer, se ela cuidar da
dentição, se ela fizer o exame oftalmológico, ela vai aprender mais fácil,

Capítulo 3
260
fazendo a prevenção de não mamar deitado, explicando... Uma coisa que
eles se preocupam muito é com órgãos genitais, então precisa ficar fazendo
exercício (...) [mas] o pintinho eu não mexo até sete anos. Quer dizer, a
gente tem um monte de coisas para dizer, e que aquela idade de cinco anos
fica uma idade que a mãe tem que exigir aquilo que ele pode dar, porque às
vezes a mãe fica cobrando e a gente não cobra. Então gera um conflito com
a criança. Mas nessa idade é natural, então... E vacinações. É uma consulta
(...) muito mais ampla no sentido de puericultura do que de doença porque
não tem.” (Dra. Carla)

Assim, a mãe deve saber que a criança pré-escolar, apesar de geralmente não
querer comer, precisa ingerir alimentos energéticos para favorecer seu crescimento. O
pediatra deve compreender as necessidades das crianças e de seus pais, e aprender a hora
certa de tocar em certos temas relativos ao desenvolvimento infantil.

A mãe deve exigir das crianças a demonstração de seus aprendizados,


incentivando a progressiva consolidação de novos conhecimentos e habilidades, enquanto
que o pediatra deve exigir da mãe a reelaboração dos cuidados leigos prestados à criança,
de modo a favorecer o desenvolvimento infantil.

Da mesma forma, cada fase da infância exigirá um determinado cuidador da


criança:

“A minha filha mais nova (...) foi pra escola com dois anos, olha que
pecado!... (risos)... Mas ficou seis meses na escola porque (...) [O primeiro]
já estava (...) [na] escola, foi com (...) cinco anos, (...) [o segundo] foi com
quatro. E aí eu acabei pondo [minha filha] com dois, mas ficou [apenas] seis
meses porque ela mais chorava do que qualquer coisa. Daí, tirei da escola e
ela ficava (...) com uma vizinha, que teve (...) um vínculo muito positivo com
ela (...) [Isto durou] até ela fazer quatro anos (...) [então] ela foi pra
escola.” (Dra. Mônica)

No caso do lactente e do pré-escolar, a criança deve ter como cuidadores


preferenciais a mãe ou alguém próximo em sua rede de convívio que venha a recompor, em
certa medida, o ambiente doméstico e as relações familiares vividos em sua casa. Já no caso
de crianças maiores, a escola aparece como a grande instituição socializadora das crianças,
quando outra gama de preocupações atingirá os cuidadores desta criança.

Capítulo 3
261
“Idade escolar, as preocupações são muito menos agora com a questão
mesmo física (...) tem aquele que é baixinho, tem aquele que é muito gordo
(...) Aí vem o período da pré-puberdade. A mãe vem, assim, com onze, doze
anos, trazer o menino e: ´Olha, estou preocupada, até o meu marido queria
vir junto, mas eu estou muito preocupada.´ ´Mas ele está bem?´; ´ Não, ele
está bem!´; ´Ele come bem?´; ´Não, ele come bem!´; ´Como é que ele está
indo na escola?´; ´Não, ele está indo bem na escola! Mas eu estou muito
preocupada!´; ´Mas, olha, então me explica porque que você está tão
preocupada!´ Aí no fim [eu] descobria que (...) todo mundo está dizendo que
ele tem o pinto muito pequeno. Pronto. E isso é uma coisa horrível, o pai
está preocupado, não sabe que o desenvolvimento peniano é muito sui
generis (...) Por exemplo, um cara que está na pré-puberdade, o pintinho
dele é do tamanho que ele tinha quando nasceu, e se ele for meio gordinho,
aquela gordura pré-pubiana esconde o pinto do infeliz. Pronto... pronto: ‘O
meu filho é capão!’ E aí você tem que explicar: ´Não, olha, ele vai se
desenvolver, vai ter uma hora...´; ´Ah, mas o primo dele tem a mesma
idade...´; ´É, mas o adolescente... a adolescência (...) a puberdade acontece
em idades diferentes de pessoa pra pessoa, então você começa a ter... A
menina tem a ver com a coisa da menarca, da primeira menstruação.´ E
assim vai, o tempo todo...” (Dr. Gustavo)

Na medida em que a socialização escolar assenta-se, geralmente, sobre um


sistema pedagógico meritocrático, ela exige das crianças e de seus cuidadores a localização
de diferenças e semelhanças no desenvolvimento infantil a partir de um quadro
comparativo, em que os <<escolares>> devem demonstrar um bom desempenho (físico,
emocional, cognitivo...).

3.8. Adolescente

“Têm vários pediatras que estão atendendo e se dedicando e estudando mais


a adolescência, porque está se considerando aí que é o profissional que atua
nessa área. Não há nada, nenhum problema (...) [de] um clínico, de repente,
resolver fazer isso também. Mas tem até dentro da Sociedade de Pediatria
Brasileira, em São Paulo, tem um grupo de (...) pediatras que trabalham com
adolescência tentando apontar aí as principais questões dentro dessa área.

Capítulo 3
262
Então, para mim é o que a Pediatria acha (risos) e consagrou, que [a
infância] vai até os dezenove anos, na verdade, (...) e [o] adolescente por
definição, segundo a OMS, é de de dez à dezenove. Então, se a gente for
falar [de] criança que não é adolescente, até nove seria uma fase da
infância, e dez à dezenove seria pros adolescentes, segundo a definição.”
(Dra. Cristina)

Os entrevistados afirmam veementemente uma falta de preparo para atender os


adolescentes. Porém, se vêem obrigados a atendê-los, já que esta é uma fase da vida que
começa a ganhar uma especificidade própria, não encontrando guarida nem entre os
clínicos gerais, nem entre os especialistas que trabalham com adultos. A atenção médica
voltada para o adolescente desafia o olhar pediátrico na medida em que atender este “quase
adulto” implica em uma mudança crucial no ato clínico, qual seja: o lugar ocupado pelo
acompanhante (cuidador) do paciente pediátrico é deslocado no atendimento dos
adolescentes, instaurando-se então um novo “problema de linguagem” diante do pediatra.

“[O] aguçamento de entender essa outra linguagem, essa percepção (...)


[a] relação da mãe com a criança, da família, é uma coisa que você vai
adquirindo, é uma peculiaridade muito clara (...) A não ser na adolescência,
que começa a procurar, que o adolescente vai ao profissional sozinho, até
então, nunca você atende uma criança sozinha, sempre tem essa
intermediação (...) esse jogo, essa interpretação, essa relação que (...) está
no meio (...) E aí você tem que ir sacando isso.” (Dra. Cristina)

O atendimento do adolescente torna-se um problema complexo para o pediatra,


uma vez que coloca este profissional diante de um paciente que desloca o lugar ocupado
pelos intermediários na consulta pediátrica. O próprio adolescente incorpora uma situação
intermediária entre a infância e a idade adulta, configurando-se em um objeto complexo
que requisita uma preparação especial do olhar médico. Por isto mesmo, as dificuldades
encontradas pelos pediatras no atendimento dos adolescentes serão tratadas,
principalmente, como decorrência de uma falha na formação médica – faltam tópicos
específicos sobre a adolescência no currículo pediátrico que tratem de definir uma
semiologia do adolescente. Neste sentido, torna-se muito importante apontar as principais
questões que organizam o atendimento médico prestado a esta fase da vida, destacando a
conformação da adolescência no âmbito mais amplo das relações sociais.

Capítulo 3
263
“Eu acho que tem essa coisa do próprio (...) ponto de vista social, na
nossa sociedade, a criança não pode fazer um monte de coisa, ela é
totalmente dependente do adulto. Por mais que você queira... mesmo
com seus filhos, tentar deixá-los mais responsáveis de alguma coisa...
das coisas... Mas (...) você tem todo um contexto social nessa
sociedade que não deixa ele (...) E o adolescente fica no
intermediário, na nossa sociedade. A criança não pode nada e o
adolescente pode algumas coisas... e o adulto... também não sei o
quanto ele pode (risos) (...) Mas, do ponto de vista da estruturação da
sociedade moderna, isso é muito definido, de toda proteção que você
tem com a criança... Eu acho que isso fez com que todo esse jeito da
criança ser encarada no mundo da gente fosse mudando. Agora,
infelizmente, hoje em dia o pessoal também está preocupado muito
com o adolescente nessa coisa do consumo, o pessoal se especializa
nos consumos pra cada fase mais do que em qualquer outra coisa.”
(Dra. Zélia)

Como podemos notar no depoimento acima, a situação liminar (intermediária)


incorporada pelo adolescente deve ser compreendida a partir de um sistema de proteção à
infância em que encontramos um determinado arranjo entre o saber, o fazer e o dizer. Ao
adolescente atribui-se a dupla inscrição no corpo adulto e no corpo infantil, fato este que o
impulsiona tanto em direção a uma rede de proteção em que é apanhado numa trama
específica de subordinações estruturadas entre seus cuidadores, quanto em direção ao
mundo do trabalho, do consumo, das atribuições adultas que apontam para um novo
conjunto de obrigações.

A adolescência apresenta-se ao pediatra como uma fase cuja especificidade


rompe não só com a relação de dependência com o cuidado materno, mas também com uma
rede de subordinações em que o cuidado médico visa atingir prioritariamente o cuidado
materno.

Ao atender o adolescente, o pediatra depara-se com uma fase da infância cuja


densidade psicológica e sexual rompe com uma determinada estruturação da consulta
clínica. O adolescente encontra-se em uma situação de liminaridade com relação à

Capítulo 3
264
sensibilidade adulta que obriga o olhar pediátrico a trilhar um difícil caminho em direção
ao seu corpo (ainda) infantil.

O olhar pediátrico é conduzido a um novo campo de subordinações


estabelecidas entre o cuidado médico e o cuidado materno, em que a autonomia do
adolescente se apóia, em grande parte, em uma espacialização específica de sua sexualidade
nas relações familiares. O corpo infantil não cabe mais dentro do espaço das relações
afetivas “assexuadas” (neutras); afinal, o adolescente evidencia corporalmente e conquista
moralmente a sua estruturação sexual nas relações sociais mantidas com seu grupo de
convívio.

“No caso da adolescência tem (...) [o] adolescente precoce, tardio. O cara
que tem treze anos e um metro e noventa e que não cabe na carteira da
classe e que tenta esconder a sua altura excessiva para não ficar muito
diferente de todo o resto da classe, que tem eventualmente treze anos
também (...) Já tive caso assim. O cara teve que usar colete de aço porque
ele entortou a coluna para tentar esconder o tamanho dele. [E] menina que
de repente tem mama muito grande, a gente chama de ‘baixa-com-bustão’,
isso pode ser muito ruim, pode exigir de repente uma plástica. E esse tipo de
questão (...) de natureza (...) muito mais psicológica, muito mais afetiva (...)
a questão de atender adolescente, a questão então da atividade sexual...
Permitiu ou não a presença da mãe e do pai no consultório junto...
Diferente... Acho que eu fui capaz de trabalhar isso legal porque, nos últimos
anos, no meu consultório eu recebia muito ex-cliente que trazia o filho.
Muito. O que eu dizia: ´Bom, o cara não ficou com raiva de mim!´, entendeu,
´O cara gostou da orientação (...) precisou (...) traz o filhinho para eu olhar´
(...) [Isto é] indicativo pra mim de que [fui] capaz de dar um atendimento
diferenciado para momentos diferenciados no crescimento,
desenvolvimento.” (Dr. Gustavo)

Pela primeira vez, o pediatra deverá pedir aos pais de seu paciente para saírem
momentaneamente do consultório médico; pela primeira vez, também, os direitos do
paciente pediátrico apontam não mais para a incorporação familiar da criança no setting
médico, mas sim para a estruturação de um atendimento individualizado, que acaba por
limitar a tutela médica e familiar sobre a criança.

Capítulo 3
265
A adolescência desafia, assim, a especialidade pediátrica, que responderá, não
sem incômodos, a partir de uma posição muito clara: os adolescentes requisitam seu espaço
específico na sociedade, portanto eles merecem seu próprio médico (especialista) – o
Hebiatra.

“Aí começa a adolescência... (risos)... E a nossa Hebiatria (...) o pediatra


(...) o hebiatra, que trabalha adolescência... É complicado, acho [por] que a
gente não está preparado. Eu tenho uma dificuldade de trabalhar com
adolescente. Eu tenho adolescente em casa, mas eu tenho uma dificuldade de
trabalhar principalmente [porque] (...) a gente tem que ter uma formação...
formação psicológica, lógica de abordagem, ética com o doente. Porque hoje
em dia você sabe que (...) se ele consegue resolver um problema, ele mesmo,
se ele acha que aquele problema ele pode resolver, você não pode divulgar
para os pais, você está proibido, ele tem autonomia. Quer dizer, eu acho que
a gente não está preparado ainda para isso. Existe uma legislação que dá
essa autonomia para o adolescente se não tem risco de vida para ele. Ele é
dono do seu nariz nas questões que dizem respeito à sua saúde. A saúde dele
importa a ele, você faz uma entrevista individual, depois mais uma
entrevista com a mãe, porque o adolescente com a mãe é super calado, a
gente não consegue trabalhar. Então é uma fase difícil. Acho que é até mais
difícil que o primeiro ano. Porque a gente não tem essa formação na
faculdade. Acho que devia ser uma outra abordagem. Essa síndrome normal
da adolescência devia ter um preparo, um curso, uma psicoterapia, de como
abordar, como chegar no problema. A gente sempre acaba pedindo...
quando não tem doença efetiva, pedindo um apoio pra área de psicologia.”
(Dr. Ricardo)

Certamente, a oscilação entre os termos pediatra e hebiatra ocorrida no


momento de designar o médico do adolescente, tal qual podemos observar no trecho acima,
expressa a instauração de uma ruptura parcial com uma determinada estruturação do
atendimento clínico voltado para as crianças. Mesmo a experiência pessoal do Dr. Ricardo
parece não levar a um melhor conhecimento sobre a construção do papel de cuidador
(especialista) do adolescente.

Capítulo 3
266
Sugere-se que o adolescente possui uma densidade psicológica que ultrapassa
ou limita o saber pediátrico operado no seu atendimento clínico. Mas, mais importante do
que isto, o próprio papel de cuidador é deslocado no atendimento médico do adolescente. A
autonomia do adolescente implica em um cerceamento da ação pediátrica, na medida em
que recusa, até certo ponto, a organização do ato clínico a partir da tensão existente entre o
cuidado médico e o cuidado materno.

A relação materna continua a importar na elaboração do diagnóstico e da


terapêutica adotada pelo pediatra, seja pelo fato do adolescente calar-se diante de sua mãe,
seja pelo fato de não ser dispensada uma entrevista com a mãe após a consulta individual
do adolescente. Porém, estamos diante de uma nova organização do ato clínico, em que a
aproximação do pediatra em relação ao adolescente irá apoiar-se na descrição de uma
“síndrome normal da adolescência”, que explicaria o processo de silenciamento do
adolescente em sua relação materna.

Aquela tensão mantida entre o corpo doente e o corpo infantil, constitutiva da


atenção pediátrica organizada em torno do lactente e do escolar, é deslocada no
atendimento do adolescente, na medida em que este é tangenciado pelo corpo adulto. Desta
maneira, a clínica pediátrica – estruturada num sistema de proteção à infância e sustentada
na impossibilidade do cuidado médico estabelecer-se prescindindo do cuidado materno –
tem abalado um de seus pilares sustentadores, respondendo imediatamente com a denúncia
da falta de preparo para lidar com a adolescência.

Não obstante todo este incômodo sentido pela maior parte dos entrevistados, a
Dra. Carla demonstra grande apreço no atendimento dos adolescentes.

“Ah, o adolescente eu adoro (...) adolescente eu adoro! Eu acho que toda


idade infantil. Porque, como eu tive um filho, eu curti o meu filho [a] cada
idade. Quando ele ficou adolescente aí então que eu fui estudar mais ainda.
Eu estudava a adolescência (...) tudo sobre adolescência eu comecei a
estudar porque eu tinha ele ali. E eu acho o seguinte, adolescente, eu digo o
crescimento, o desenvolvimento, a voz, como é que ele vai crescer, as
glândulas que fazem ele crescer, por que acontece a barba, quando é que ele
cresce o tronco, por que ele tem que dormir cedo, por que o adolescente

Capítulo 3
267
acorda sem querer comer (...) Por que ele não pode dormir com o cabelo
molhado, por que ele tem que melhorar a sua voz, porque todo adolescente é
narcisista, ele adora cantar (...) Então como ele cuidar da voz (...) Como é
que a mãe vai lidar com isso. Então é uma consulta bem abrangente.” (Dra.
Carla)

É interessante notar que a satisfação encontrada por esta pediatra no


atendimento dos adolescentes dirige-se, em grande parte, para a possibilidade de explicar
para a mãe de seu paciente quais as peculiaridades apresentadas no desenvolvimento
infantil nesta fase da vida. Aqui, mais uma vez, ocorre um entrecruzamento intenso entre a
experiência profissional e familiar do pediatra na prática clínica, de maneira que a ação
médica pauta-se fortemente na possibilidade de interferir no papel de cuidador de seu
paciente.

“Porque eu acho que a gente para criar um adolescente a gente tem que
exigir dele (...) A coisa mais difícil é você aprender a ler. E o que eu vejo é
muita evasão na escola, como eu vejo [isso] no adolescente. Mas sabe o que
é? Porque eu acho que as mães não olham a lição das crianças. Elas não se
interessam pelos filhos. Porque o mínimo que você interessa é a criança
estar bem na escola, é o mínimo que você interessa. Eu sempre digo para
todos eles, seja pobre, seja rico: ‘Tome a lição! Você está cansado? Tome a
lição!’ Porque isto faz com que a criança melhore.” (Dra. Carla)

O pediatra encontra no campo da educação um forte ponto de apoio para a


estruturação da ação médica voltada para a adolescência. Assim, ele pode orientar o
cuidado materno de maneira a enfocar o processo de escolarização do adolescente, assim
como pode tratar das questões relativas à sua socialização a partir de um ponto de vista
pedagógico. No tocante a este último ponto, temos uma quantidade enorme de programas
de educação em saúde que visam informar os adolescentes sobre os riscos à saúde inerentes
a certos estilos de vida, objetivando formar determinados comportamentos sexuais, de
consumo, entre outros, que venham a protegê-los em seu dia-a-dia.

“Quando você pensa em adolescente você fica pensando (...) no consumo ou


pensando que ele pode engravidar ou pegar uma (...) Você tem esses
chavões.” (Dra. Zélia)

Capítulo 3
268
O pediatra deve estar alerta, inclusive, quanto aos exageros presentes numa
visão estereotipada da adolescência que redunda sempre nos mesmos chavões. Neste
sentido, a Dra. Mônica faz os seguintes comentários a respeito do indicador “escolaridade”,
quando nos conta manter um firme desejo de investigar a adolescência (última fase da vida
a contar com a atenção pediátrica):

“Aqui no Brasil a gente usa muito a escolaridade. Eu acho que a


escolaridade não é um... não dá uma medida do sucesso de um indivíduo,
não é mesmo (...) Tanto que pediatras que têm pós-graduação fazem coisas...
[Eles] que têm um alto grau de escolaridade e (...) na “visão” são bastante
falhos. Mas eu mediria na fase final de adolescência, dezoito, vinte anos... Eu
tenho muita curiosidade de pegar indivíduos entre dezoito e vinte anos, que
já estariam terminando essa faixa, vamos dizer, pediátrica de
desenvolvimento, crescimento, e fazer uma pergunta só: ‘Você é feliz?’.
Você não acha que daria uma boa medida: ‘Você é feliz?’ Eu acho que assim
os resultados seriam bem interessantes (...) [se] fizermos essa pergunta para
os adolescente. Se você fizer essa pergunta para o início da adolescência
você vai ter outros resultados, porque eles estão em fase de turbulência.
Então, a maioria não... Eu acho que não seria só o do ser, mas teria toda...
Você estaria medindo outras relações, do grupo, da família, da escola.
Porque o adolescente tem essa característica grupal. Então eu acho que você
perguntar assim para um adolescente, ‘Você é feliz’, ele vai fazer um enfoque
(...) na casa, na escola, no grupo social, no clube. Mas não vai fazer... Agora
com dezoito a vinte anos, que ainda não entrou no mercado, na maioria das
vezes, eu acho que daria, assim, uma boa... ” (Dra. Mônica)

De qualquer modo, o olhar pediátrico volta-se para a apreensão do processo de


socialização corrente nas interações mantidas pelos adolescentes com o seu grupo de
convívio, a sua família e a escola. O adolescente é descrito, geralmente, pela sua
característica <<grupal>>, assim como pelo aspecto turbulento de seus sentimentos.
Quando a Dra Mônica propõe “medir” a adolescência a partir de indicadores que
extrapolem a objetividade de seu corpo doente ou de seu corpo de conhecimentos, vemos
como ela é impelida a marcar o início e o fim da adolescência pela passagem de um período
de contestação da ordem social e familiar até chegar à sua inserção no mundo do trabalho.

Capítulo 3
269
Mais uma vez, vemos como não há um parâmetro técnico que aponte de modo
definitivo os limites entre uma e outra fase da infância. Aliás, os pediatras entrevistados
lembram de modo recorrente que tanto a infância, em geral, mas, particularmente a
adolescência, devem ser compreendidas em seu caráter histórico mais amplo, de maneira a
compreender o modo pelo qual as práticas institucionais e familiares elaboradas em direção
às crianças definiram um estatuto social específico para ela.

“Eu tenho que dizer que tecnicamente a adolescência faz parte da infância
(...) é (...) parte da infância. A infância (...) começa (...) [com a]
representação que uma mulher (...) Quando você está namorando (...) você
começa eventualmente (...) vai querer passar muitos anos com essa pessoa e
(...) disso pode resultar filhos, você já começa a representar, você já começa
a fazer uma imagem (...) A questão que vai da concepção até (...) tem a ver
com [o ponto de vista] cultural, de quem está falando sobre essa infância.
Então, no máximo, eu posso dizer que na visão de um pediatra que é de
classe média-alta, que mora (...) [em uma grande cidade], infância é isso que
eu estou te falando (...) [este conceito] usado para representar o ser humano
em formação, muito ligado ainda com a questão biológica, física do seu
crescimento, da sua maturação... Porque parou de crescer (...) aí (...) eu não
posso mais estar falando de infância. Apesar de que eu estou falando de
pessoas ainda em desenvolvimento... esse desenvolvimento que acaba
quando acaba o crescimento. O cara virou um ser humano lógico, e com
uma certa autonomia (...) A infância acaba mais cedo ou mais tarde de
acordo também com a classe social [Mas] quanto que o trabalho pode ser
visto como uma atividade... O adolescente que trabalha, [a] criança que
trabalha, pedindo [esmolas]... Será que eu ainda estou podendo falar de
criança, um cara que ajuda a sustentar a família, ou que sustenta a família!
Tem cara de treze, catorze anos aí que é o provedor da família, será que
ainda é criança?! Definir criança (...) tem haver com isso... com o papel
social. Eu tenho que ter um pouco de... para delimitar essa criança. Primeiro
porque criança começa muito antes, como eu te falei, nem nasceu, [está] no
útero materno, mas já estamos falando de criança, das crianças... Eu queria
ter [filhos mas] (...) depois percebi que ia ser muito difícil. Então, eu levei
(...) anos para ter uma filha e (...) [depois] para ter um segundo. Aí eu falei:
´Bom, agora eu estou com quarenta anos´ (...) aí desisti. Então a minha
representação de família teve que ser corrigida Então o meu conceito aí de
criança, de infância, acabou sendo o resultado de uma pré-definição, talvez

Capítulo 3
270
até de um preconceito, que é temperado pela sua experiência de vida. Então
eu diria que eu não sei dizer o que que é infância (...) É por aí. Mas você (...)
pega [o] Ariès falando da história da vida privada, você vê o pessoal que
fala de infância... Adolescência... A minha avó casou com treze anos, com
quinze já tinha um filho. Nunca foi considerada uma adolescente grávida.
Porque em mil novecentos e nada era assim que usava. Então esse conceito é
histórico e culturalmente determinado. Eu acho que... a adolescência ficou
mais visível por exemplo quando você começa a ter um tempo muito longo
entre a menarca, ou a pubarca, e terminar de estudar. Não está
trabalhando, vai começar a trabalhar. Nego começa a trabalhar com vinte e
quatro, vinte e cinco, vinte e seis anos, não é assim?” (Dr. Gustavo)

Realmente, entender os processos sociais que nos permitem falar, hoje em dia,
em uma adolescente grávida, passa necessariamente por um olhar que permita
compreendermos a construção histórico-discursiva desta realidade. Compreender de que
forma estruturou-se historicamente uma determinada sensibilidade infantil em oposição a
uma sensibilidade adulta resulta em um trabalho analítico complexo que extrapola os
propósitos das considerações aqui elaboradas.

Entre o incômodo apresentado pelos pediatras ao atender o <<adolescente>>, a


tranqüilidade em atender o <<escolar>> e a preferência, demonstrada por vários
entrevistados, para atender o <<recém-nascido>>, encontramos diferentes maneiras do
atendimento clínico organizar-se a partir do olhar pediátrico lançado sobre a infância.
Tentamos apontar neste capítulo de que maneira a estruturação clínica da infância resulta
em uma determinada tipologia pediátrica construída sobre suas diversas fases.

É importante destacar que, se a complexidade do exame médico do recém-


nascido reside tanto no caráter inespecífico dos sintomas quanto no alto grau de
vulnerabilidade da criança, o próprio recém-nascido é tomado pelo pediatra como um ser
cuja existência binária recobre-se de uma simplicidade ímpar em relação às outras fases da
vida. O recém-nascido não exige interpretações profundas de seu estado de espírito, de suas
emoções, de seus pensamentos, já que a satisfação de suas necessidades e de seus desejos é
alcançada por um simples gesto materno que o proteja das intempéries de um mundo
estranho e das intemperanças dos adultos que o cercam. O pediatra deve preocupar-se em
orientar a mãe antes que o cuidado materno seja conduzido de acordo com o <<pensamento
cultural>>, sustentado nas redes de convívio da família do recém-nascido.
Capítulo 3
271
Já no caso da criança escolar, a complexidade do atendimento clínico reside na
confrontação da linguagem verbal adulta e infantil, assim como na localização da criança
diante da oposição <<pensamento lógico>> vs <<pensamento mágico>>. Não obstante o
atendimento pediátrico prestado ao escolar diferir daquele prestado ao recém-nascido, aqui,
também, o paciente pediátrico (escolar) é elogiado pela simplicidade com que se oferece ao
olhar médico, revelando-se sem equívocos na autenticidade de seus comportamentos. A
criança é sincera (evidente) mesmo quando tenta camuflar algum sentimento, pensamento
ou situação.

Por fim, o atendimento clínico do adolescente apresenta ao pediatra um


paciente de alta complexidade, na medida em que instaura um deslocamento na
estruturação própria da clínica pediátrica. Isto ocorre na medida em que o próprio lugar do
cuidador é deslocado na atenção médica voltada para o adolescente.

Os deslizes de sentido correntes entre a definição do papel do cuidador leigo e


especializado dos adolescentes são colocados em um novo campo de subordinações
estruturado na prática clínica. Os adolescentes apontam claramente a contradição central
em que se apóia a prática clínica pediátrica: lançar um olhar especializado sobre as
crianças, organizado em termos de uma clínica geral, que deve apreender o processo de
desenvolvimento infantil, estabelecendo um relação complementar entre o cuidado
especializado e o cuidado leigo, de maneira a controlar sua vulnerabilidade à sensibilidade
adulta.

O atendimento do adolescente implica na reelaboração do caráter vulnerável do


corpo infantil ocorrida em uma estrutura clínica que permite, finalmente, o acesso direto do
pediatra ao seu paciente. Qual não será o espanto deste profissional ao encontrar-se
afastado de toda a sensibilidade pediátrica construída ao longo de sua experiência clínica,
vendo-se isolado na tarefa de atender um paciente que já <<fala>> a partir de outros lugares
que não o da sua vulnerabilidade ao cuidado médico-materno? Qual não será o desconforto
do pediatra ao ver rompida sua tradicional aliança com o cuidado materno, tendo, assim,
que se reorganizar para lidar com a opacidade adulta apresentada pela linguagem lógica e
emocional deste seu novo paciente?

Capítulo 3
272
CONCLUSÃO

’Ter um quarto só seu’ é um desejo, mas também um controle. Inversamente, um mecanismo


regulador é habitado por tudo que dele transborda, fazendo romper-se de dentro.”

(Deleuze in: Donzelot, 1986)

273
274
Neste momento, cabe retomar alguns pontos centrais desta investigação,
destacando, em primeiro lugar, que a análise discursiva da clínica pediátrica permitiu
trabalharmos um duplo aspecto das relações existentes entre a infância e a Pediatria, qual
seja, de um lado, compreendemos alguns funcionamentos discursivos que estruturam o
atendimento clínico voltado para as crianças, e, de outro lado, pudemos identificar uma
tipologia das fases do desenvolvimento infantil própria à construção pediátrica da infância.

Vale lembrar que a perspectiva teórica que orientou esta investigação – a


Análise do Discurso (Orlandi, 1999) – possibilitou lançarmos um olhar sensível à
estruturação discursiva do material empírico, a partir do qual compreendemos algumas
relações constitutivas da clinica pediátrica em que são postos em jogo os limites entre o
papel de “cuidador leigo” e de “cuidador especializado” das crianças.

O fato do pesquisador ser sociólogo poderia representar pelo menos dois tipos
de dificuldades à realização desta pesquisa: em primeiro lugar, poderia constituir obstáculo
à utilização do referencial teórico adotado, uma vez que a Análise do Discurso está mais
fortemente vinculada ao campo da Lingüística; em segundo lugar, poderia prejudicar a
aproximação do pesquisador em relação objeto de estudo investigado, uma vez que a
clínica pediátrica é estruturada no campo médico.

No entanto, o caráter interdisciplinar desta perspectiva analítica permitiu


abordarmos o objeto de estudo, proposto nesta pesquisa, sem que fosse necessário adotar
um ponto de vista que partisse fundamentalmente do campo da Lingüística ou da Medicina.
Aliás, na medida em que a Análise do Discurso constitui-se enquanto um dispositivo
teórico de análise interpretativa da materialidade discursiva, fundamentado em alguns
conceitos centrais dos campos da Lingüística (língua), do Marxismo (história) e da
Psicanálise (sujeito), ela possibilita ao pesquisador trabalhar questões que se colocam em
diversos campos do conhecimento.

No transcorrer desta pesquisa estávamos interessados na compreensão do objeto


de trabalho da clínica pediátrica, perguntando-nos, de forma central, pelos modos com que
a infância é significada no discurso pediátrico.

Conclusão
275
A análise das trajetórias escolares e profissionais dos entrevistados permitiu
localizarmos a presença de pontos de convergência e divergência no material empírico
analisado, o que, na verdade, não impossibilitou a identificação de uma certa regularidade
no discurso pediátrico. Foi possível, então, olharmos a experiência clínica dos entrevistados
a partir destas suas trajetórias, identificando o modo como a tensão existente entre a
apreensão do corpo infantil e a apreensão do corpo doente das crianças se dirige para a
questão do cuidado/cuidador.

Como vimos, esta tensão se dá na interseção do campo pediátrico com o campo


das relações familiares, de modo a produzir deslizes de sentido entre o papel de cuidador
“leigo” e “especializado” da criança. Em outras palavras, o pediatra é interpelado na prática
clínica pela posição-sujeito materna/paterna, assumindo o papel de cuidador especializado
das crianças, sem se esquecer, com isto, da injunção “profissional” que o obriga a assumir
um ponto de vista técnico sobre o desenvolvimento infantil.

Buscamos identificar no material empírico algumas marcas discursivas que


apontam para o processo de silenciamento infantil presente na apreensão pediátrica do
gesto materno, concretizado por oposições tais como <<pensamento mágico X pensamento
lógico>> ou <<linguagem não-verbal X linguagem verbal>>. Desta maneira, o corpo
infantil é apreendido na relação complementar que mantém com seu meio social, familiar,
escolar, médico. A vulnerabilidade do corpo infantil sujeita as crianças a terem seus
mínimos gestos interpretados a partir de pares de oposições que tratam de localizá-las em
um processo de desenvolvimento marcado pelo gesto adulto pedagógico.

As relações complementares existentes tanto entre a criança e seu “meio


social”, quanto entre os seus cuidadores “leigo” e “especializado”, apontam para o plano
ideal em que clínica pediátrica deve elaborar uma atenção integral à criança, mantendo uma
relação médico-paciente harmônica.

Porém, na medida em que o próprio da infância – seu caráter vulnerável que


impõe uma tomada da criança sempre “em relação à... (gesto materno, ação médica,
possibilidades futuras, etc.)” – está ligado a um limite intrínseco da clínica pediátrica – a
impossibilidade de atender a criança sem que o olhar médico seja intermediado pelo corpo

Conclusão
276
doente/infantil –, o ideal da atenção integral à criança implica necessariamente em
silenciamentos de sentidos que apontam para o efeito da contradição na prática clínica
pediátrica.

Ao mesmo tempo em que a presença dos acompanhantes da criança no


atendimento clínico configura os limites da ação pediátrica, impondo ao médico um
trabalho de “tradução” sobre o corpo infantil, esta mesma presença possibilita a ampliação
da intervenção pediátrica, na medida em que viabiliza a interferência médica sobre o
cuidador leigo da criança.

Mostramos como esta configuração da clínica pediátrica é alterada pela


incorporação do atendimento ao adolescente, quando o olhar pediátrico é desafiado a lidar
com o caráter ambíguo de um corpo “quase” adulto. Vimos, então, como o pediatra
encontra sérias dificuldades para definir seu papel de cuidador no momento em que,
finalmente, pode acessar de modo direto o seu paciente. Esta situação rompe com a
estruturação do atendimento clínico pediátrico distanciando o olhar médico do corpo
infantil.

É importante lembrarmos que o saber clínico organizado em torno do corpo


doente conduz a uma identificação do trabalho médico com o “curar” em contraposição ao
“cuidar”. Assim, na medida em que as linhas de complementaridade existentes entre o
pediatra-mãe/pai-criança são rompidas no atendimento clínico do adolescente, parece
inviabilizar-se a formulação da cuidado pediátrico, em favor de uma ação médica pautada
exclusivamente pelo “curar” (corpo doente).

Afinal, libertar-se das relações de dependência que estruturam estas linhas de


complementaridade significa romper com as próprias condições de produção do ato clínico
pediátrico, de maneira que o trabalho pediátrico passa a perder a sua especificidade em
relação ao trabalho médico geral. Diante da fragilização do caráter vulnerável e tutelar do
corpo infantil, dificilmente identificado no adolescente, e da conseqüente minimização da
interseção existente entre o campo pediátrico e o campo das relações familiares no
atendimento clínico, torna-se polêmica a incorporação do Hebiatra na Pediatria.

Conclusão
277
Acreditamos que este trabalho propôs alguns pontos importantes para
pensarmos as relações existentes entre a infância e a Pediatria. Seria interessante investigar
mais profundamente a construção social do adoecimento e do desenvolvimento infantil a
partir das percepções das próprias crianças e de seus familiares. Certamente, tal
investigação pontuaria de modo decisivo as reflexões aqui apresentadas acerca da prática
pediátrica. Ao longo desta pesquisa, pudemos compreender como cuidar de crianças
implica não só na busca de conhecimentos técnicos sobre o desenvolvimento infantil, mas
em uma grande habilidade para lidar com as artimanhas de um olhar protetor que empenha
adultos e crianças nas razões e desrazões da vulnerabilidade infantil.

Conclusão
278
REFERÊNCIAS
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Bibliografia Complementar

289
ANEXOS

291
ANEXO I

ROTEIRO DE ENTREVISTAS

ROTEIRO TEMÁTICO:

a) Identificação.
b) Formação e trajetória profissional.
c) Ato clínico.
d) Concepção saúde/doença.
e) Infância.
f) Fechamento.

ROTEIRO DE PERGUNTAS:

a) IDENTIFICAÇÃO. (este item deverá ser efetuado antes do início da entrevista


gravada, sendo registrado em uma ficha de dados)

1. Nome e idade.
2. Formação profissional (local e ano de conclusão da graduação e residência).
3. Ocupação atual (local, instituição, cargo/função).

b) FORMAÇÃO E TRAJETÓRIA PROFISSIONAL. (A partir deste item inicia-se a


entrevista gravada)

4. Por favor, eu gostaria que o Sr. (a) falasse sobre os motivos que o levaram a
ingressar na área da saúde e a optar pela medicina como carreira profissional.

5. O Sr. (a) poderia fazer um breve relato sobre o seu período de graduação? Quais
eram os seus principais interesses e dificuldades naquela época?

6. Quais eram, naquele período, as suas preocupações em relação à profissão médica?

7. Como foi surgindo o seu interesse pela pediatria?

8. Em que momento decidiu-se pela especialidade pediátrica? Nesse momento, qual era
a sua visão sobre este ramo da atividade médica?

Anexos
293
9. Fale-me, por favor, do seu período de residência médica, especialmente de
experiências marcantes desse período.

10. O que foi mudando, no transcorrer desse período, em relação ao seu modo de
encarar a pediatria? O que foi se reafirmando?

11. O Sr. (a) poderia descrever-me como era o atendimento clínico durante a residência
em pediatria? O que o Sr (a) trouxe dessa experiência para a sua prática atual?

12. Quais eram os grandes desafios naquele momento (residência)? A quais


preocupações estavam associados estes desafios?

13. Eu gostaria que o Sr. (a) falasse um pouco sobre alguns pontos importantes ou
significativos que marcaram a sua trajetória profissional? Estes pontos podem ser
tanto episódios públicos que vieram a direcionar a sua carreira, quanto experiências
de cunho mais pessoal e particular que tenham se constituído em alguma vivência
marcante para seus conceitos sobre a profissão.

14. Quais os seus planos para o futuro profissional?

c) ATO CLÍNICO.

15. Conte-me um pouco, por favor, sobre o seu cotidiano de trabalho.

16. O Sr. (a) poderia falar-me um pouco sobre a atualização de conhecimentos na


prática pediátrica?

17. Como a prática clínica pediátrica, hoje em dia, está lidando com os recursos
tecnológicos disponíveis no atendimento das crianças? De que forma isto interfere na
relação médico-paciente?

18. O que o atrai no atendimento de crianças? E o que lhe causa inquietação neste
atendimento?

19. O Sr. (a) pode comentar um pouco sobre a situação do ato clínico dentro da
pediatria? Existe algo que diferencie o atendimento de crianças do atendimento de
adultos? Comente.

20. Quando ou por que, em geral, a criança é levada à consulta médica? Quais as
diferenças entre a visão do médico e do paciente e familiares a respeito das
necessidades em saúde?

21. O grau de parentesco ou de proximidade da pessoa que acompanha a criança


influencia a consulta? Explique.

Anexos
294
22. Caso existam, quais são os problemas enfrentados em relação à consulta e
seguimento do tratamento, de acordo com a origem cultural ou sócio-econômica de
seus pacientes?

23. Dependendo da idade do paciente, como o Sr. (a) vê a participação da criança no


momento da consulta? Como é esta participação?

24. Quais as dificuldades existentes para que a terapêutica indicada seja completamente
seguida?

25. Quando, na sua opinião, as crianças passam a responsabilizarem-se pelas suas


próprias questões de saúde (auto-cuidado)? O atendimento pediátrico busca
incentivar e/ou gerenciar este processo de responsabilização? De que forma isto
ocorre?
d) CONCEPÇÃO SAÚDE/DOENÇA.

26. Quando o Sr. (a) percebe que está doente?

27. Quando isto ocorre, a quem o Sr. (a) recorre?

28. Quando o Sr. percebe que está com saúde?

29. Por que as crianças adoecem?

30. É comum a existência de práticas “populares” de cura dentre os seus pacientes?


Qual a sua visão sobre isto?

e) INFÂNCIA.

31. Qual a faixa de idade que na sua opinião compreende o período da infância?

32. Como o Sr. (a) caracterizaria este período da vida?

33. O Sr. (a) poderia contrapor a infância à outros períodos da vida?

34. O que é a infância?

35. O Sr. (a) tem filhos? Gostaria de ter? Por que?

36. O fato de ter ou não filhos influencia de alguma maneira a prática pediátrica? Por
que?

Anexos
295
f) FECHAMENTO.

37. Se o Sr. (a) pudesse mudar algo no atendimento em saúde à criança, o que o Sr. (a)
mudaria?

38. O Sr. (a) teria alguma coisa que gostaria de falar a respeito dos assuntos abordados
e/ou da maneira como a entrevista foi realizada? Por favor, se for o caso eu gostaria
de ouvi-lo (a).

Anexos
296
ANEXO II

LEGENDA DAS TRANSCRIÇÕES

“ ” → delimita a fala do entrevistado

(...) → indica supressão de um trecho do depoimento

... → indica pausa ou interrupção da frase por parte do entrevistado

[ ] → indica inserção de uma ou mais palavras por parte do pesquisador

‘ ’ → destaca algum trecho da fala do entrevistado de forma a melhorar sua

inteligibilidade (pe., diálogos mimetizados, palavras inusuais, etc.)

negrito → palavra ou trecho destacado pelo pesquisador em vista de seu significado


para a análise

Anexos
297

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