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Jürgen Habermas
1.
Essas duas alternativas não parecem possíveis pela intuição. A ideia de direitos humanos
extraída nos direitos básicos não pode nem ser imposta ao legislador como limitação, nem
ser meramente instrumentalizada como requisito funcional para propósitos legislativos. O
autor considera os dois princípios como igualmente originais. Um não é possível sem o
outro, mas eles não impõem limites entre si.
No entanto, nem Rousseau nem Kant puderam achar uma forma não ambígua de usar o
conceito de autonomia para a justificação da democracia constitucional. O primeiro
relacionou vontade e razão atrelando o processo democrático à forma abstrata e universal
da lei, enquanto o segundo tentou alcançar essa relação subordinando o direito à
moralidade.
O autor pega o estudo de Frank Michelman para alegar que o alegado paradoxo ora
estudado pode ser resolvido na dimensão do tempo histórico.
2.
Em sistemas como dos EUA e da Alemanha foi instituído uma instituição independente
responsável por escrutinar a constitucionalidade da legislação parlamentar. Nesse contexto,
a função e o status da corte acendem o debate sobre a relação entre democracia e rule of
law. Nos EUA há longos debates sobre a legitimidade da Suprema Corte, pois republicanos
(civil republicans) arrepiam-se com o poder de uma elite de especialistas jurídicos de anular
decisões de um parlamento eleito democraticamente, embora esses especialistas não
estejam legitimados democraticamente e possam apenas chamar sua competência técnica
em matéria de interpretação constitucional (ex. Jeremy Waldron).
Frank Michelman vê esse problema no Ministro William Brennan, uma figura comandante na
jurisprudência americana. Segundo Michelman, Brennan é um liberal que defende
liberdades individuais em termos moralistas fortes; um democrata que radicaliza direitos de
participação e quer dar voz àqueles sem voz e marginalizados, bem como à oposição; um
social democrata que é altamente sensível a questões de justiça; e, finalmente, um pluralista
que, indo além da concepção liberal de tolerância, pleiteia por uma política aberta à
diferença e ao reconhecimento cultural, racial e religioso das minorias. Colocando a paleta
do pragmatismo americano para representar Brennan como modelo do republicanismo
contemporâneo, Michelman quer acentuar a questão aqui analisada: quando um
democrata convicto com essa mentalidade, numa posição de ministro de suprema corte,
não tem hesitação em fazer uso extensivo do dúbio instrumento do judicial review, então
talvez a jurisprudência que ele forme exponha o segredo de como alguém pode combinar
o princípio da soberania popular com o constitucionalismo. Michelman usa Brennan como
exemplo de um juiz responsivo que se qualifica como democraticamente acima de
suspeição quando se trata de interpretação da constituição, pois ele dá suas decisões da
melhor forma que pode e de acordo com sua consciência apenas após ouvir
pacientemente às visões diferentes das discussões empreendidas na sociedade civil e na
esfera política. A interação com um público maior contribui para a legitimação
democrática dos juízes. Michelman parece ser guiado pela intuição de que o cerco
discursivo de um tribunal por uma sociedade mobilizada tem consequências favoráveis
para ambos os lados. Para a corte, que sempre decide de forma independente, a
perspectiva dos especialistas é ampliada junto à base de justificação das suas decisões; para
os cidadãos, cujas opiniões influenciam a corte, a legitimidade das decisões é ao menos
aumentada.
Para julgar se esse modelo resolve o paradoxo em questão, há que se analisar, por um lado,
o papel cognitivo realizado pela ofensiva discursiva como meio para abrir a esfera legal
pública para a prática da corte e, por outro, a contribuição funcional que esse discurso
supostamente tem para a aceitação social da decisão. No entanto, o autor acredita que
razões pragmáticas e circunstâncias históricas são mais decisivas para determinar como o
papel da supervisão judicial é mais bem estabelecido em determinado contexto.
Para a questão estudada, o autor considera mais interessante a forma como Michelman
chega ao seu modelo de juiz responsivo do que a proposta em si. Michelman essencialmente
debate contra três posições (Dworkin, Robert Post e Habermas).
Para a visão liberal, o processo legislativo democrático requer uma forma específica de
institucionalização legal para levar a uma regulamentação legítima. O “direito básico” (basic
law) é introduzido como a condição necessária e suficiente para o próprio processo
democrático – e não para seus resultados. A relação entre democracia como fonte de
legitimidade e um constitucionalismo que não precisa de legitimação democrática não é, no
entanto, um paradoxo, pois regras constitutivas que inicialmente fazem a democracia
possível não podem restringir a prática democrática da maneira como normas externas
impostas. Condições possibilitantes não podem ser confundidas com condições restritivas.
3.
4.
Ao invés de recorrer a um realismo moral, o autor propõe que entendamos esse regresso
como um inteligível caractere orientado ao futuro da constituição democrática: uma
constituição que é democrática é um projeto de construção de tradição com a marca de
um começo claro. Todas as gerações posteriores têm a tarefa de atualizar a ainda não
fechada substância normativa do sistema de direitos contido no documento original da
constituição. Nos EUA é possível vislumbrar indícios dessa constituição dinâmica (com
momentos “hot” caracterizados por um espírito reformador de reformas bem-sucedidas).
5.
Para demonstrar que democracia e constitucionalismo não são paradoxais, deve-se explicar
o senso de que direitos básicos como um todo são constitutivos do processo de
autolegislação.
A teoria discursiva, assim como a contratual, simula uma condição original: um número de
pessoas aleatórias de forma livre entra numa prática de elaboração de uma constituição.
Seus votos contam igualmente, e eles devem satisfazer três outras condições: i) são unidos
por uma resolução comum de legitimamente regular sua futura vida conjunta por meio de
uma lei positiva; ii) estão prontos e aptos a participar de discursos racionais; iii) fazer com
que essa prática seja explícita.
Como querem realizar suas intenções por meio da lei, os participantes devem criar um
sistema de estatutos para garantir que todo membro futuro conte como detentor de
direitos individuais. Esse sistema só pode ocorrer se três categorias de direitos forem
concomitantemente introduzidas (requisitos para a existência do direito): i) direitos
básicos resultantes de uma elaboração autônoma do direito pela maior medida possível de
igual liberdade individual de ação de cada pessoa; ii) direitos básicos resultantes de uma
elaboração autônoma do status de um membro numa associação voluntária de
consociados legais; iii) direitos básicos resultantes de uma elaboração autônoma do direito
de cada indivíduo de igual proteção sob a lei. Esses são a base necessária.
Como eles querem uma sociedade autorregulada, percebem que precisam de um quarto
tipo de direito: direitos básicos (que emergem da elaboração autônoma do direito) a uma
oportunidade igual de participar na political law-giving. Nesse contexto, aqueles cidadãos
focados nessa elaboração devem perceber o que em geral deve ser regulado, dada as
circunstâncias históricas, e quais direitos são necessários para lidar com essas matérias
necessitadas de regulamentação. E isso só pode ser realizado tendo em vista dados
empíricos, pois somente é possível pensar na solução de um problema quando este é
vislumbrado.
6.
Como autonomia não se confunde com liberdade arbitrária de escolha, o rule of law não
precede a vontade do soberano, nem a suas questões. Ao invés disso, o rule of law está
inscrito na política autolegislativa, assim como o imperativo categórico – a ideia de que
apenas axiomas universais são legítimos e razoáveis no sentido de mostrar igual respeito por
cada pessoa. No entanto, enquanto o indivíduo moralmente ativo prende sua razão à ideia
de justiça, a razoável autovinculação da soberania política significa que este último se
prende à lei legítima. A razão prática articulada no rule of law é atrelada às características
constitucionais do direito moderno, o que explica porque a complicação da soberania
popular e do constitucionalismo é refletida na relação entre autonomia dos cidadãos e
autonomia privada dos indivíduos: um não pode ser realizado sem o outro.
Assim como a moralidade, leis legítimas também protegem a autonomia igualitária de cada
pessoa: ninguém é livre enquanto todos não aproveitarem igualmente a liberdade. Mas a
positividade da lei necessita de uma interessante separação na autonomia que não possui
análogo na esfera moral: o caráter vinculante dos sistemas normativos legais, não apenas na
esfera interna do que é bom para todos, mas também das decisões coletivas de
autoridades que fazem e aplicam a lei. Isso resulta numa necessária distinção conceitual
entre os autores que elaboram e aplicam a lei e aqueles que são seus sujeitos. Assim, a
autonomia que aparece na esfera moral derivada de uma fonte se manifesta na esfera legal
na forma dupla da autonomia pública e privada.
Desse modo, apenas quando a autonomia privada dos indivíduos está segura é que os
cidadãos estão em posição de fazer o uso correto de sua autonomia política. Desse modo é
que a interdependência da democracia e do constitucionalismo pode ser elucidada à luz
dessa relação de complementaridade entre autonomia civil e privada: cada uma é
alimentada pelos recursos que tem da outra.