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CONSTITUTIONAL DEMOCRACY: A PARADOXICAL UNION OF CONTRADITORY PRINCIPLES?

Jürgen Habermas

1.

A concepção moderna de democracia difere da clássica, em razão da sua relação com um


tipo de direito que apresenta três características: positivo, compulsório e individualista. Esse
direito é produzido pelo legislador, sancionado pelo estado e pretende resguardar
liberdades individuais. Na concepção liberal, a autodeterminação democrática dos cidadãos
pode ser realizada apenas por meio desse direito. Assim, a ideia de rule of law, antes
atrelada à ideia de direitos humanos, aparece à cena com a soberania popular como um
segunda fonte de legitimação. Essa dualidade levanta o questionamento sobre como
princípio democrático e constitucionalismo se relacionam.

Na concepção clássica, as leis da república expressam a vontade irrestrita da união dos


cidadãos. Essa lei, independentemente de corresponder ou não com o ethos comunitário,
alcança sua validade apenas pelo próprio processo de formação de vontade dos cidadãos.
Por outro lado, o princípio do exercício constitucional do poder parece estabelecer limites à
soberania popular de autodeterminação. O rule of law requer que a formação de vontade
democrática não viole direitos humanos que tenham sido positivados. Essas duas fontes de
legitimação competem, ainda, de outras formas. Liberalismo e republicanismo discordam se
é a liberdade dos modernos ou a dos antigos que deve ter prioridade na ordem de
justificação. O que vem primeiro: as liberdades individuais dos membros da sociedade
mercantil moderna ou os direitos de cidadãos democráticos a uma participação política?
Para a justificação normativa de uma democracia constitucional ser consistente parece que
um entre esses dois princípios, direitos humanos e soberania popular, deve liderar. Assim,
para que seja legítima, uma lei deve estar em conformidade com os direitos humanos ou ser
emitida de acordo com a formação da vontade democrática.

Essas duas alternativas não parecem possíveis pela intuição. A ideia de direitos humanos
extraída nos direitos básicos não pode nem ser imposta ao legislador como limitação, nem
ser meramente instrumentalizada como requisito funcional para propósitos legislativos. O
autor considera os dois princípios como igualmente originais. Um não é possível sem o
outro, mas eles não impõem limites entre si.

Rousseau e Kant formularam essa intuição no conceito de autonomia. A ideia de que os


destinatários da lei devem também ser aptos a entender a si próprios como autores não dá
aos cidadãos uma permissão voluntarista para tomar qualquer decisão que queiram. A
garantia legal de que cada um deve agir da forma como bem entender é o centro da
autonomia privada, não pública. Ao invés disso, baseado nessa liberdade de escolha, aos
cidadãos é concedida uma autonomia no sentido de uma razoável formação de vontade,
mesmo que essa autonomia possa apenas ser aproveitada, e não legalmente requerida
deles. Eles devem se obrigar apenas às leis elaboradas depois de atingir uma vontade
comum através do discurso. A ideia de autolegislação engendra uma relação interna entre
vontade e razão de tal forma que a liberdade de todos depende da consideração igualitária
da liberdade individual de cada cidadão para tomar decisões. Assim, apenas as leis que se
baseiam no interesse equivalente de cada um podem encontrar razoável concordância de
todos.

No entanto, nem Rousseau nem Kant puderam achar uma forma não ambígua de usar o
conceito de autonomia para a justificação da democracia constitucional. O primeiro
relacionou vontade e razão atrelando o processo democrático à forma abstrata e universal
da lei, enquanto o segundo tentou alcançar essa relação subordinando o direito à
moralidade.

O autor pega o estudo de Frank Michelman para alegar que o alegado paradoxo ora
estudado pode ser resolvido na dimensão do tempo histórico.

2.

Em sistemas como dos EUA e da Alemanha foi instituído uma instituição independente
responsável por escrutinar a constitucionalidade da legislação parlamentar. Nesse contexto,
a função e o status da corte acendem o debate sobre a relação entre democracia e rule of
law. Nos EUA há longos debates sobre a legitimidade da Suprema Corte, pois republicanos
(civil republicans) arrepiam-se com o poder de uma elite de especialistas jurídicos de anular
decisões de um parlamento eleito democraticamente, embora esses especialistas não
estejam legitimados democraticamente e possam apenas chamar sua competência técnica
em matéria de interpretação constitucional (ex. Jeremy Waldron).

Frank Michelman vê esse problema no Ministro William Brennan, uma figura comandante na
jurisprudência americana. Segundo Michelman, Brennan é um liberal que defende
liberdades individuais em termos moralistas fortes; um democrata que radicaliza direitos de
participação e quer dar voz àqueles sem voz e marginalizados, bem como à oposição; um
social democrata que é altamente sensível a questões de justiça; e, finalmente, um pluralista
que, indo além da concepção liberal de tolerância, pleiteia por uma política aberta à
diferença e ao reconhecimento cultural, racial e religioso das minorias. Colocando a paleta
do pragmatismo americano para representar Brennan como modelo do republicanismo
contemporâneo, Michelman quer acentuar a questão aqui analisada: quando um
democrata convicto com essa mentalidade, numa posição de ministro de suprema corte,
não tem hesitação em fazer uso extensivo do dúbio instrumento do judicial review, então
talvez a jurisprudência que ele forme exponha o segredo de como alguém pode combinar
o princípio da soberania popular com o constitucionalismo. Michelman usa Brennan como
exemplo de um juiz responsivo que se qualifica como democraticamente acima de
suspeição quando se trata de interpretação da constituição, pois ele dá suas decisões da
melhor forma que pode e de acordo com sua consciência apenas após ouvir
pacientemente às visões diferentes das discussões empreendidas na sociedade civil e na
esfera política. A interação com um público maior contribui para a legitimação
democrática dos juízes. Michelman parece ser guiado pela intuição de que o cerco
discursivo de um tribunal por uma sociedade mobilizada tem consequências favoráveis
para ambos os lados. Para a corte, que sempre decide de forma independente, a
perspectiva dos especialistas é ampliada junto à base de justificação das suas decisões; para
os cidadãos, cujas opiniões influenciam a corte, a legitimidade das decisões é ao menos
aumentada.

Para julgar se esse modelo resolve o paradoxo em questão, há que se analisar, por um lado,
o papel cognitivo realizado pela ofensiva discursiva como meio para abrir a esfera legal
pública para a prática da corte e, por outro, a contribuição funcional que esse discurso
supostamente tem para a aceitação social da decisão. No entanto, o autor acredita que
razões pragmáticas e circunstâncias históricas são mais decisivas para determinar como o
papel da supervisão judicial é mais bem estabelecido em determinado contexto.

Para a questão estudada, o autor considera mais interessante a forma como Michelman
chega ao seu modelo de juiz responsivo do que a proposta em si. Michelman essencialmente
debate contra três posições (Dworkin, Robert Post e Habermas).

Para a visão liberal, o processo legislativo democrático requer uma forma específica de
institucionalização legal para levar a uma regulamentação legítima. O “direito básico” (basic
law) é introduzido como a condição necessária e suficiente para o próprio processo
democrático – e não para seus resultados. A relação entre democracia como fonte de
legitimidade e um constitucionalismo que não precisa de legitimação democrática não é, no
entanto, um paradoxo, pois regras constitutivas que inicialmente fazem a democracia
possível não podem restringir a prática democrática da maneira como normas externas
impostas. Condições possibilitantes não podem ser confundidas com condições restritivas.

A conclusão de que a constituição é inerente à democracia é plausível. Mas o argumento


colocado como justificação é inadequado, pois refere apenas parte do direito básico – a
parte constitutiva da formação de opinião (direito a participação política e comunicação).
Mas os direitos a liberdade compõem o centro dos direitos básicos, ou seja, aqueles direitos
que garantem a condução de uma vida livre e a procura da felicidade. Esses direitos têm um
valor intrínseco e não podem ser reduzidos à função instrumental que podem ter no
exercício dos direitos políticos. Assim, esses direitos não podem ser justificados com a
alegação de que tornam a democracia possível (somente podem fazê-lo os direitos políticos
e de participação, mas estes não são os únicos que compõem os direitos básicos).

Segundo a visão republicana, a substância da constituição não compete com a soberania


apenas quando emerge de um processo inclusivo de opinião e de formação de vontade.
Para estar seguro, deve-se conceber a autodeterminação democrática como um processo
não coercitivo de autocompreensão ético-política empreendida pela população
acostumada à liberdade. Sob essas condições, o rule of law permanece intocável porque
ganha reconhecimento como um componente integral do ethos democrático. Quando
baseados nas motivações e atitudes dos cidadãos, os princípios constitucionais são menos
coercitivos e mais duradouros do que os mecanismos formais que impedem a alteração da
constituição por uma maioria tirânica.

3.

A concepção republicana se altera quando a expectativa da razão conectada com uma


opinião democrática autolimitativa muda de uma base fixada nos recursos de um consenso
de valor existente para as propriedades formais do processo democrático. Neoaristotélicos
apostam na qualidade liberal na força de construção da tradição de uma forma democrática
de vida; Neokantianos radicalizam a ideia de que os direitos humanos são inerentes, com a
concepção de que os direitos básicos são respostas que vão ao encontro das demandas de
uma comunicação política entre estranhos e abrigam a presunção de que os resultados são
racionalmente aceitáveis. A constituição assume, assim, o senso procedimental de
estabelecer formas de comunicação que provenham para o uso público da razão e um justo
balanço de interesses de maneira consoante com a necessidade regulatória e a questão
contextual. Porque esse conjunto de condições possibilitantes deve ser realizado por
intermédio do direito, esses direitos abrangem tanto liberdades liberais quanto direitos de
participação política.

Apesar de simpático à concepção de democracia deliberativa e suas assunções básicas,


Michelman não considera essa concepção como uma solução para o aparente paradoxo
entre democracia e rule of law. O paradoxo parece continuar quando voltamos ao ato da
confecção da constituição e perguntamos se a teoria discursiva nos permite conceber a
opinião da constituição como um processo democrático sem constrições.

Ao autor propôs anteriormente que entendamos as bases normativas da democracia


constitucional como resultado de um processo deliberativo de tomar decisões que os
fundadores utilizaram com o objetivo de criar uma associação voluntária e
autodeterminativa de cidadãos livres e iguais. Desse modo: i) somente podem ser
considerados legítimos os resultados sobre os quais os participantes igualmente autorizados
na deliberação concordem racionalmente; e ii) os participantes se comprometem com o
direito como um mediador para regular sua vida comum; o modo de legitimação por meio
de um consentimento geral sob condições discursivas percebe a concepção kantiana da
autonomia política apenas em conexão com a ideia de leis coercitivas que concedem
liberdades individuais.

Quanto à objeção de Michelman à tentativa de reconciliação procedimentalista entre a


soberania popular e os direitos humanos, para lidar com essa objeção é necessário estar
claro sobre as consequências de tentar explicar a forma de constitucionalismo democrático
em termos de institucionalização legal do alcance da rede de discurso. Os discursos públicos
precisam ser temporal, social e materialmente especificados em relação à formação da
opinião pública na esfera pública e em corpos legislativos e em relação à correção legal e à
informação material dos processos de decisão nas cortes ou administrações.

4.

É essa dimensão legal do processo de estabelecimento de formas de comunicação (process


of stablishing forms of communication) a que Michelman se refere quando argumenta que
a prática de elaboração constitucional não pode ser reconstruída com base na teoria
discursiva. A razão é que essa aproximação não pode evitar a circularidade da
autoconstituição legal.

A legitimidade procedimental de um resultado de um discurso depende da legitimidade das


normas de acordo com as quais esse tipo de discurso foi especificado e estabelecido dos
pontos de vista material, temporal e social. Se a legitimidade processual é o estandarte,
então o resultado de eleições, decisões parlamentares e de cortes é a princípio colocado sob
suspeição de que seja equivocado, em razão da deficiência das normas – o que faria um
regresso ad infinitum.

Ao invés de recorrer a um realismo moral, o autor propõe que entendamos esse regresso
como um inteligível caractere orientado ao futuro da constituição democrática: uma
constituição que é democrática é um projeto de construção de tradição com a marca de
um começo claro. Todas as gerações posteriores têm a tarefa de atualizar a ainda não
fechada substância normativa do sistema de direitos contido no documento original da
constituição. Nos EUA é possível vislumbrar indícios dessa constituição dinâmica (com
momentos “hot” caracterizados por um espírito reformador de reformas bem-sucedidas).

Embora se fale desse projeto aberto, no sentido de um projeto de aprendizado, é necessário


reconhecer que os estandartes permanecem os mesmos, podendo estes ser alcançados por
uma apropriação razoável da constituição e da história da interpretação. O projeto continua
o mesmo. Esse laço consiste na prática compartilhada a que recorremos quando nos
empenhamos em chegar a um entendimento racional do texto da constituição. A elaboração
da constituição é um ato performativo de grande importância, graças ao qual cada cidadão
pode se referir aos textos e decisões dos fundadores de forma crítica.

5.

Para demonstrar que democracia e constitucionalismo não são paradoxais, deve-se explicar
o senso de que direitos básicos como um todo são constitutivos do processo de
autolegislação.

A teoria discursiva, assim como a contratual, simula uma condição original: um número de
pessoas aleatórias de forma livre entra numa prática de elaboração de uma constituição.
Seus votos contam igualmente, e eles devem satisfazer três outras condições: i) são unidos
por uma resolução comum de legitimamente regular sua futura vida conjunta por meio de
uma lei positiva; ii) estão prontos e aptos a participar de discursos racionais; iii) fazer com
que essa prática seja explícita.

Como querem realizar suas intenções por meio da lei, os participantes devem criar um
sistema de estatutos para garantir que todo membro futuro conte como detentor de
direitos individuais. Esse sistema só pode ocorrer se três categorias de direitos forem
concomitantemente introduzidas (requisitos para a existência do direito): i) direitos
básicos resultantes de uma elaboração autônoma do direito pela maior medida possível de
igual liberdade individual de ação de cada pessoa; ii) direitos básicos resultantes de uma
elaboração autônoma do status de um membro numa associação voluntária de
consociados legais; iii) direitos básicos resultantes de uma elaboração autônoma do direito
de cada indivíduo de igual proteção sob a lei. Esses são a base necessária.

Como eles querem uma sociedade autorregulada, percebem que precisam de um quarto
tipo de direito: direitos básicos (que emergem da elaboração autônoma do direito) a uma
oportunidade igual de participar na political law-giving. Nesse contexto, aqueles cidadãos
focados nessa elaboração devem perceber o que em geral deve ser regulado, dada as
circunstâncias históricas, e quais direitos são necessários para lidar com essas matérias
necessitadas de regulamentação. E isso só pode ser realizado tendo em vista dados
empíricos, pois somente é possível pensar na solução de um problema quando este é
vislumbrado.

Portanto, necessária a distinção de dois estágios: o primeiro, que envolve a explicação


conceitual da linguagem de direitos individuais no qual a prática compartilhada de uma
associação autorregulamentada de pessoas livres pode se expressar, onde o princípio da
soberania popular pode ser corporificado; e o segundo, que envolve a realização desse
princípio. Dessa forma é que o princípio da soberania popular pode ser identificada como
parte e parcela da ideia de government by law.

6.

Como autonomia não se confunde com liberdade arbitrária de escolha, o rule of law não
precede a vontade do soberano, nem a suas questões. Ao invés disso, o rule of law está
inscrito na política autolegislativa, assim como o imperativo categórico – a ideia de que
apenas axiomas universais são legítimos e razoáveis no sentido de mostrar igual respeito por
cada pessoa. No entanto, enquanto o indivíduo moralmente ativo prende sua razão à ideia
de justiça, a razoável autovinculação da soberania política significa que este último se
prende à lei legítima. A razão prática articulada no rule of law é atrelada às características
constitucionais do direito moderno, o que explica porque a complicação da soberania
popular e do constitucionalismo é refletida na relação entre autonomia dos cidadãos e
autonomia privada dos indivíduos: um não pode ser realizado sem o outro.
Assim como a moralidade, leis legítimas também protegem a autonomia igualitária de cada
pessoa: ninguém é livre enquanto todos não aproveitarem igualmente a liberdade. Mas a
positividade da lei necessita de uma interessante separação na autonomia que não possui
análogo na esfera moral: o caráter vinculante dos sistemas normativos legais, não apenas na
esfera interna do que é bom para todos, mas também das decisões coletivas de
autoridades que fazem e aplicam a lei. Isso resulta numa necessária distinção conceitual
entre os autores que elaboram e aplicam a lei e aqueles que são seus sujeitos. Assim, a
autonomia que aparece na esfera moral derivada de uma fonte se manifesta na esfera legal
na forma dupla da autonomia pública e privada.

O direito moderno compulsório pode demandar apenas que seus destinatários se


comportem daquela maneira, independentemente de suas motivações. Como a lei não
pode obter obediência legal apenas por “respeito à lei”, a autonomia privada pode ser
garantida apenas na por meio de liberdades individuais que autorizem uma vida autônoma e
permitam as considerações morais de outros, mas não obriguem alguém a fazer além do que
é compatível com a liberdade igualitária dos demais. Desse modo, autonomia privada toma a
forma de uma liberdade de escolha garantida legalmente. Ao mesmo tempo, no papel das
pessoas que agem moralmente, pessoas legais (de lei) devem também poder seguir uma lei
por respeito à lei. Por isso, uma lei válida (existente) deve também ser legítima, o que
ocorre apenas quando foi elaborada de forma legítima, ou seja, de acordo com os
procedimentos de opinião democrática que justifiquem a presunção de que o resultado é
racionalmente aceitável. O direito à participação pública está vinculado à expectativa de uso
público da razão: como colegisladores democráticos, os cidadãos não podem ignorar a
demanda informal de se orientar em direção ao bem comum. O quanto exposto faz parecer
como se a razão prática tivesse seu lugar apenas no exercício da autonomia política que
permite que os destinatários se sintam como coautores legislativos. Na verdade, a razão
prática é utilizada na forma da autonomia privada tanto quanto na política, isto é: ambas são
tanto meios para o outro quanto são fins para si mesmos. A demanda pela orientação para o
bem comum, conectada à autonomia política, é também uma expectativa racional na
medida em que apenas o processo democrático garante que indivíduos privados atinjam um
gozo equitativo das suas liberdades individuais.

Desse modo, apenas quando a autonomia privada dos indivíduos está segura é que os
cidadãos estão em posição de fazer o uso correto de sua autonomia política. Desse modo é
que a interdependência da democracia e do constitucionalismo pode ser elucidada à luz
dessa relação de complementaridade entre autonomia civil e privada: cada uma é
alimentada pelos recursos que tem da outra.

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