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O governo contrarrevolucionário de Jair Bolsonaro

O cientista político Bernard Harcourt, em sua obra “A


contrarrevolução” (BASIC BOOKS: 2018), demonstra como se
impôs nos Estados Unidos o modelo de governo de contra-
insurgência pelo Presidente Donald Trump e sua descrição serve para
descrever o modelo de governo de Jair Bolsonaro: assim como
Trump nomeia para diretor geral da Organização Internacional das
Nações Unidas para as Migrações alguém que faz comentários anti-
mulçumanos, no Brasil, Sérgio Camargo é nomeado para Presidência
da Fundação Palmares dizendo que a escravidão é benéfica para os
negros. A conclusão de Harcourt para os EUA serve para o Brasil
“cada vez mais, nosso governo está transformando seus próprios
cidadãos e residentes em um inimigo interno. Uma nova maneira de
pensar está se firmando. Uma nova maneira de
governar”(HARCOURT: 2018).

Não é exatamente isso que acontece no Brasil quando, em meio a


uma pandemia jamais vista, o Ministro da Saúde Nelson Teich é
demitido justamente por defender o isolamento e por recusar
recomendar o uso da cloroquina indiscriminadamente? Harcourt diz
que o modelo de contra-insurgência é o modelo anterior de governar
em guerras de larga escala. A guerra sempre é a dos campos de
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batalha, em larga escala, em diferentes frentes, com teatro de


operações e compromissos militares. Nos Estados Unidos, entretanto,
ocorre a transição da guerra de larga escala no campo de batalha para
as lutas anticoloniais, e após, para a guerra contra o terrorismo. A
guerra de contra-insurgência é definida como uma guerra não
convencional, anti-guerrilha ou moderna, e segundo Harcourt,
envolve operações estratégicas quase cirúrgicas, com uso de tecnologia
de informação, políticas de eliminação direcionadas a minorias e uso
de técnicas psicológicas nas quais o alvo não é um inimigo externo,
mas interno. Mais: é o modo de funcionamento da imaginação
política.

A descrição das características não corresponde ao que está


ocorrendo no Brasil com a pandemia? Não vivemos uma guerra não
apenas com o vírus, mas com o supremo mandatário da nação? Cada
gesto do presidente não é pensado como ato de guerra ao cidadão
comum? Da “fritura” do Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta,
que defende, ao contrário do presidente, o isolamento e a recusa da
cloroquina como medicamento às políticas do Ministro do Meio
Ambiente Ricardo de Aquino Salles que põem em risco a situação das
reservas indígenas ou do ex-ministro da Educação Abraham
Weintraub, que desarticulam a pesquisa universitária, as ações do
governo Jair Bolsonaro podem ser definidas pela teoria da contra-
insurgência de Harcourt porque se referem a uma guerra declarada ao
cidadão comum. O autor apresenta a definição de política do
comandante francês na Argélia, David Galula que expressa bem o
princípio básico do exercício do poder político na guerra de contra-
insurgência:

“Em qualquer situação, seja qual for a causa, haverá uma minoria
ativa para a causa, uma maioria neutra e uma minoria ativa contra a
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causa. A técnica do poder consiste em contar com a minoria


favorável para reunir a maioria neutra e neutralizar ou eliminar a
minoria hostil” HARCOURT: 2018).

Não é exatamente o que é feito pelo presidente Jair Bolsonaro


desde sua posse, ao reunir a minoria de extrema-direita com a maioria
hostil ao PT para neutralizar ou eliminar, como o próprio presidente
já afirmou textualmente, à esquerda? O ponto central da lógica
política contra insurgente, de um governo que se dedica a lutar contra
parte de seu próprio povo, está em ser reconhecido como legítimo
pela maior parte da população, o que ocorre no Brasil com aqueles
que não se comprometem com a esquerda, o que inclui, uma camada
passiva significativa da sociedade. Em se tratando de uma pandemia,
até quando o Presidente contará com o apoio de uma sociedade
passiva que a cada dia vê aumentar seu número de mortos? Por isso, a
queda de Teich e a indicação de um novo Ministro da Saúde, que,
segundo o Presidente, seguirá suas orientações, servem de teste final
para o governo contra insurgente de Jair Bolsonaro.

A questão é: como é possível a instalação tão rápida no Brasil de


uma lógica contra insurgente? Nos Estados Unidos o autor afirma que
esse processo de transformação vem desde as guerras coloniais e
estabelece-se em três ondas de transformação histórica: a primeira,
militarmente no Vietnã e Afeganistão; a segunda, nos assuntos
externos e a terceira dentro do próprio país, num processo que iniciou
nos anos 60. No Brasil, o processo reduz-se a três momentos
excepcionais: a derrubada da presidente Dilma Rousseff, acusada de
“pedaladas fiscais”, os movimentos de 2013 e a eleição de Jair
Bolsonaro. Sem uma política externa ofensiva como a americana, à
experiência de contra-insurgência no Brasil é construída a partir da
experiência da etapa final da transição americana, de forma doméstica,
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numa espécie de guerra não convencional que usa dos mesmos


artifícios da contra-insurgência americana: uma produção de
informação – via redes de whatsapp, erradicação da participação da
esquerda no processo político e pacificação psicológica das massas
pela apresentação de um político que “vem para tirar o PT do poder”.

Essa estratégia combina elementos da segunda e terceira etapa


americana, já que possibilita o aumento da presença das forças
militares não no campo de batalha, mas no de governo, estabelece
novas frentes contra opositores do sistema, resultando na conclusão de
que Jair Bolsonaro aplica as táticas de contra-insurgência contra a
população, notadamente os mais pobres, vítimas de exclusão e
beneficiários de direitos que conflitam com os interesses do capital. O
resultado é aproximação da experiência brasileira à americana, com o
surgimento de um modelo de governo de contra-insurgência imposto
em solo brasileiro na ausência de qualquer insurgência ou revolta
interna. A política de contra-insurgência de Jair Bolsonaro começa a
aparecer no dia 16 de março de 2020, quando morre a primeira
vítima de Covid-19 no Brasil, mas suas características não seguem
exatamente o modelo americano porque inovam em alguns aspectos.

O primeiro deles é a perversão no uso da informação. Ao contrário


da experiência americana, que valoriza o conhecimento dos dados
sobre a população, conhece as conexões de internet para
compreender a minoria ativa a ser combatida, a experiência brasileira,
ao contrário, desvaloriza o conhecimento, parte para a produção de
Fake News e desvaloriza o saber universitário e a pesquisa. Ao invés
de coletar informações em massa como faz o governo americano,
trata-se de desinformar em massa.
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O segundo aspecto é a adoção de uma estratégia sutil de


erradicação. Enquanto que nos Estados Unidos Harcourt destaca o
privilégio dado à identificação e erradicação da minoria de oposição,
descriminando quem era amigo e inimigo com uso inclusive de
diversas formas de violência se necessário, da prisão à deportação, no
caso brasileiro a estratégia sutil de erradicação passa pela redução do
espaço político de lideranças críticas e pela desconstrução do papel da
esquerda e da memória das conquistas sociais de governos e esquerda.
O governo no Brasil conta com expressivo número de bolsonaristas,
que da mesma forma como nos Estados Unidos, são as minorias a
serviço do governo “Ao contrário dos soldados convencionais, essas
minorias são perigosas não por causa de sua presença física em um
campo de batalha, mas por causa de sua ideologia e lealdade”, assinala
Harcourt (2018).

O terceiro aspecto é o uso dos mesmos objetivos e recursos da


experiência americana, a obtenção do apoio de uma maioria passiva.
Como nos Estados Unidos, no Brasil a população torna-se o campo
de batalha na conquista de seus “corações e mentes”, o que é
facilitado pelo nível da digitalização da vida social que visa acostumar
às novas técnicas digitais de guerra psicológica e propaganda. Como
assinala Harcourt, é o mesmo universo classe média de YouTubes,
NetFlix, postagens e tweeds do Facebook cujo efeito não percebido
pela esquerda brasileira é a desradicalização em massa das pessoas, a
transformação dos estilos presidenciais tanto de Trump como de
Bolsonaro em uma espécie de… reality show! Essa adaptação das
estratégias usadas pelos Estados Unidos na Guerra do Iraque e do
Afeganistão é a forma de apropriação do paradigma de contra-
insurgência pelo governo Jair Bolsonaro, que gradualmente, como nos
Estados Unidos, termina por moldar a forma de seu governo,
transformando cidadãos em alvos de estratégias de contra-insurgência,
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principalmente contra a população através de uma minuciosa


desconstrução dos cargos de governo pela total incompatibilidade
entre a natureza dos nomeados e a sua função. Daí a extração
direcionada de lideranças intelectuais dos diversos órgãos do governo,
o esforço contínuo para impedir o exercício de direitos de minorias, a
nomeação de incompetentes para cargos de alto escalão, etc.

Harcourt assinala que o governo americano destina neste período


para o Departamento de Defesa, segundo o jornal The Washington
Post, cerca de US$ 420 milhões que, somados aos equipamentos,
pode chegar a US$ 5,1 bilhões para emprego em práticas de contra-
insurgência. Ao mesmo tempo, em diversos estados, aprova legislação
que facilita uso de drones armados, armas menos letais e bombas
robôs para praticantes daquilo que o governo considera crimes de
estado. Enquanto que os Estados Unidos usam as mesmas técnicas
que usam no Iraque ou no Afeganistão contra seus cidadãos, no Brasil
as táticas resultaram não no investimento no setor militar, mas no
investimento no setor bancário que chega a março a representar
aportes de 1,5 trilhão ou 16% do PIB, segundo reportagem de Marina
Barbosa e Rosana Hessel publicada no jornal Correio Brasiliense,
enquanto reportagem de Alexandro Martello publicada no site G1
afirma que o Ministério da Saúde teve reduzido seu orçamento em
cerca de nove bilhões em 2019 por conta do contingenciamento. Isso
significa que, na mesma estratégia política contra insurgente, há a
adoção de diferentes formas de matar: a primeira, direta e letal, pelo
fortalecimento do aparato militar; a segunda indireta, pelo
enfraquecimento do sistema responsável por salvar vidas.

Como nos Estados Unidos, a prática de contra-insurgência tem


longa história. Enquanto nos Estados Unidos surge sob o governo de
Edgar Hoover, que autoriza o FBI a usar táticas contrarrevolucionárias
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contra os Panteras Negras, no Brasil surge durante a Ditadura Militar,


com as práticas contra insurgentes adotadas contra os opositores do
regime. Os inimigos internos acumulam-se ao longo da história
brasileira em maior ou maior grau no período até o seu fim com a
abertura política. O governo Jair Bolsonaro é o primeiro a tratar
indistintamente, esquerda, jornalistas, povos indígenas, negros e
defensores de direitos humanos como inimigos internos em apenas
um governo. Nesse sentido, faz o mesmo que o presidente americano,
transforma comunidades inteiras em objeto do paradigma do inimigo
interno que, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, não
enfrenta uma polícia hipermilitarizada, mas desvios e desmandos nas
políticas públicas e sociais.

É assim que Jair Bolsonaro, como nosso Donald Trump, mobiliza


um número de bolsonaristas fanáticos, alavanca-os contra os seus
inimigos internos como fazem os bolsonaristas que atacam grupos e
pesquisadores que realizam pesquisa da UFPEL em várias cidades do
país pelo simples fato de estarem encarregados de realizar uma
pesquisa para avaliar a dimensão da expansão da Covid-19 como
mostra reportagem de Guilherme Justino ao site Folhapress. Isso só
acontece pelo fato do próprio Presidente da República incentivar não
apenas uma postura contrária a argumentos da comunidade médica,
como também a formação de fileiras de adeptos cegos as suas ideias.
Os pesquisadores não são insurgentes que devem ser suprimidos, são
pesquisadores em busca de dados para as políticas públicas. Ao invés
de possibilitar o surgimento de lobos solitários, como acontece nos
Estados Unidos, indivíduos que abraçam o discurso radical, aqui se
trata de uma alcateia solitária, grupos de indivíduos que chegam a
atingir, como em São Paulo, com tiros, os prédios onde moram
manifestantes contrários às políticas de Jair Bolsonaro como mostra
reportagem de Rodrigo Rodrigues ao site G1.
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Harcourt está certo em sua descrição da contra-insurgência


americana e é notável o quanto sua descrição se assemelha ao que
acontece no Brasil. Isso sugere uma conclusão ainda pior que a do
autor, a de que devemos enfrentar o paradigma da contra-insurgência
como característica a mais dos regimes populistas de direita, modo de
governar sem insurgentes, sem uma minoria ativa que lute, contra
revolução sem revolução. Por isso é preciso, tanto quanto nos Estados
Unidos como no Brasil, enfrentar esta nova realidade para pará-la,
pois o único interesse revolucionário agora é preservar vidas.

O neoviralismo como discurso de governo

O filósofo Jean-Luc Nancy cunha o termo neoviralismo em artigo


recente para o Jornal Liberation onde transcreve em saúde os
princípios do neoliberalismo econômico e social. O neoviralismo está
presente no discurso de Jair Bolsonaro quando diz que é um erro
fugir do vírus através do confinamento, de que é preciso deixar o vírus
contagiar, para assim, com o menor custo econômico possível,
adquirir a chamada imunidade de rebanho, assim “o custo humano
seria limitado a uma ligeira aceleração de mortes previsíveis antes da
pandemia”, diz o filósofo (NANCY: 2020).

O neoviralismo usa figuras e fontes para dominar o discurso


daqueles que tem o poder e, como diz Nancy, os demais são
simplesmente …otários!. Não é como o governo vê os brasileiros?
Veja-se a sucessão de presepadas com o ex-Ministro da Saúde Nelson
Teich, cujas ligações com a medicina privada e grandes corporações
são demonstradas e que chega ao ministério com a intenção de
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reescrever a história: não é o que se vê em seu discurso de posse,


como se soubesse tudo o que se faz numa pandemia? Teich defende
de forma abstrata ideias sobre isolamento, afirma que há
afrouxamento onde é possível até que o dia em que sabe de um
regramento novo proposto pelo próprio Presidente da República,
liberando salões de beleza, sem o seu conhecimento. Não é a prova
de que o Presidente é, em primeiro lugar, um neoviralista convicto?

Outros exemplos de discursos viralistas durante a pandemia. Veja-


se o problema de que o vírus mata principalmente idosos. Esta já é
uma questão conhecida e o ministro da Saúde Nelson Teich afirma
achar natural a escolha de Sofia que faz com que se abandone um
idoso em preferência de um jovem para usar um respiradouro, já que
este é mais produtivo, notável exemplo de argumento neoviralista.
Pior, o ministro coloca outro argumento neoviralista, a do que fazer
com tantos respiradores após a pandemia, de que é economicamente
inviável sua aquisição, argumento neoviralista que esconde sua sombra
neoliberal.

O que fazem na realidade os neoviralistas? Eles assumem seu


espirito neoliberal e fazem comércio com o vírus, com o uso de
argumentos que beiram a animalidade pela ênfase que dão aos fatores
econômicos no meio da pandemia. Pior, grotescamente surrupiam o
discurso médico para justificar suas necessidades econômicas: não foi
exatamente isso que fizeram Jair Bolsonaro e uma dezena de
empresários que vão em carreata ao STF defender a saúde
dos…CNPJs? Para Nancy, trata-se do efeito do círculo vicioso da
tecnociência médica, quanto mais sabemos curar a nós mesmos, mais
isso é feito a custa de surgimento de novas doenças mais complexas e
rebeldes. No fundo, para o autor, é da natureza que se trata “o
problema está na própria ideia de sociedade, em seus objetivos e em
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suas apostas”(NANCY:2020). Enquanto o objetivo da sociedade for a


exploração do ambiente natural, novas pandemias surgirão.

Outro argumento neoviralista aparece no discurso da Secretaria de


Cultura Regina Duarte, na estigmatização de uma sociedade incapaz
de suportar a morte “todos morrem”, diz a atriz que esquece não
apenas os mortos do Regime Militar, mas o fim do ritual dos velórios,
que liga o natural ao transcendental, impedidos pelo contexto de
pandemia.

Para Nancy, o vírus vêm para lembrar que há limites para o aquilo
que o homem pode fazer. Não é mais possível explorar, de forma
irresponsável, os recursos naturais e humanos para produzir e
acumular dinheiro como único objetivo. Os neoviralistas só ouvem o
tilintar das moedas do mercado, continuam arrogantes e superiores
como Regina Duarte, incapazes de perceber a realidade e a
complexidade do momento em que vivemos. Os neoliberais usam o
discurso neoviralista como arma contra o confinamento, forma de
expressar seu ressentimento e, segundo Nancy, de serem contrárias à
solidariedade e demandas sociais como a defesa da natureza contra a
economia:

“Ele quer abortar qualquer desejo de mudança neste mundo auto


infectado. Ele quer que nem a livre empresa nem o livre comércio,
incluindo vírus, sejam ameaçados. Ele quer que tudo isso continue
em círculos, alimentando-se do niilismo e da barbárie com que
essas supostas liberdades são mascaradas” (NANCY: 2020).

Com Jair Bolsonaro como Presidente e com uma legião de


apoiadores de suas ações na contramão das medidas sanitárias, não
surpreende que o vírus produz mais vítimas no Brasil do que na
China, onde se origina a pandemia, e na Itália, por onde passou. A
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inspiração europeia não é apenas de nossa colonização, mas da


semelhante desordem entre o Brasil e a Itália no trato da pandemia. É
só olhar como Itália teve difícil adaptação ao vírus e como as
indecisões contribuem naquele país para gerar milhares de mortos. O
Brasil ocupa o lugar da Itália como centro da epidemia, acumula os
efeitos não apenas da vinda de viajantes, turistas ou a negócios, mas da
forma como a administra. Há uma diferença: enquanto que na Itália
ainda é um clima de “salve-se quem puder”, o Brasil é o único país
que quer salvar o vírus: não é isso que significa as tentativas sucessivas
de liberação do comércio, retorno imediato à normalidade? Não é
esta a linha do Presidente da República, que com seus arroubos do
que acredita ser melhor para todos produz nossa contaminação e salva
o vírus da extinção?

Agamben e Nancy criticam a repetição da necessidade de medidas


excepcionais que fazem do vírus o componente de uma narrativa pró-
golpe político, de imperativo para controle das massas e tomada do
poder. Por isso a negação é a contrapartida dessa narrativa. Não é o
que se vê no governo Jair Bolsonaro que, exatamente como o
Presidente da Tanzânia, John Magufulli, continua a minimizar a
gravidade do vírus? Norberto Paredes, em artigo para a BBC News,
descreve as medidas de Magufulli e que se assemelham as de
Bolsonaro: questionamento da ciência, abandono da apresentação de
atualizações diárias sobre o surto, demissão de autoridades da área de
saúde e denúncia de armações contra seu governo. Só falta Bolsonaro
fazer algo que Magufulli fez: pedir para a sociedade que reze para o
coronavírus desaparecer.

Como afirma Nancy, não é suficiente erradicar o vírus em si se o


domínio político e econômico continuar do mesmo jeito “A
brutalidade infecciosa do vírus se espalha sob a forma de brutalidade
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gerencial” (NANCY: 2020). Esse gerencialismo neoliberal se


manifesta quando emerge a necessidade de escolher quem tem direito
ao tratamento, quando se fala de que ricos voam para obter as vagas
disponíveis em outros estados, o que revela a notável injustiça social e
econômica de nosso país. Como assinala Nancy, o vírus atesta uma
ausência, mas no caso brasileiro, ausência de quê? De objetividade na
tomada de decisão pois confinamento e distância não estão sendo
aplicados em função do objetivo de salvar vidas, mas de salvar a
economia “A lupa viral acentua os traços de nossas contradições e
limitações. É um princípio da realidade que bate à porta dos
princípios do prazer. A morte a acompanha” finaliza (NANCY:2020).

“Big Dad” ou a psicanálise dos bolsonaristas

Michel Schneider é um psicanalista e escritor conservador. É


acusado de ter considerações psicanalíticas reacionárias, inclusive
homofóbicas. Ainda assim é autor de uma extensa obra e recebeu o
prêmio Globe de Cristal por seu romance Marylin, de grande sucesso
de vendas. Schneider é, portanto um intelectual que deve ser lido com
ressalvas, mas uma de suas obras chama a atenção. Intitulado Big
Mother: psicopatologia da vida política (ODILE JACOB: 2005),
Schneider propõe uma interpretação psicanalítica para a vida política
atual. O título do livro é também o capítulo inicial que ele denominou
L‟Etat sans pères ni repères e significa, que segundo ele, vivemos num
mundo assimbólico: a dissolução que vemos na política vem para
ocupar o espaço de nossas preocupações contra as dores da vida. Para
Schneider, o Estado deixou de ser o guardião da Lei para ocupar
outro lugar, o lugar simbólico da grande mãe, papel de quem se
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espera compreensão, algo que na política brasileira remete de forma


similar a representação do mito de Getúlio Vargas como pai dos
pobres. O argumento da importância de um sentimento básico na
relação da autoridade máxima com seus cidadãos é válido para os dias
do governo de Jair Bolsonaro por que explica as razões que levam
suas emoções a terem tanta visibilidade na vida pública: basta ver os
arroubos, palavrões e expressões do Presidente em uma reunião
ministerial que veio a público recentemente para perceber que, neste
governo, mais do que a razão o que vale é a emoção. Porquê?

O argumento de Schneider é importante para pensar que o recurso


à emoção por nossos governantes é um esforço para realizar uma
operação simbólica. Se a sociedade se maternaliza, quer dizer,
necessita de um apoio materno, o Estado também. Schneider adverte
que o Estado Big Mother implica em consequências e oferece uma
boa pista: pensemos em que consiste hoje a coisa pública. Para o
autor, a perda dos limites entre a vida publica e privada na gestão do
Estado Big Mother é a sua principal consequência, pois permite dotar
o estilo neoliberal que acompanha o processo de desregulamentação
da sociedade, do trabalho e das instituições de um sentido “maternal”,
que são sempre para o “bem” da sociedade quase como se o capital
estivesse fazendo um favor a nos... explorar!.

Vamos imaginar a hipótese provocadora de que o mesmo


argumento psicanalítico de Schneider possa ser aplicado ao governo
Jair Bolsonaro. Se pudéssemos fazê-lo, o governo Jair Bolsonaro
encarna o contrário do que define o autor em seu livro, um Estado
Big Dad. Ele é a nova forma de implantação do ideário neoliberal
onde a diferença é a criação de um imaginário onde a publicização da
vida do presidente quer ocupar esse lugar de Pai, paternagem que
substitui a maternagem proposta por Schneider com a característica
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especial de que esse imaginário não espera compreensão, mas o


contrário, ira, punição e autoridade. Essa forma de exercício do poder
transparece no gestual do presidente, no uso de palavrões, nos seus
arroubos, nas constantes atitudes que são apropriadas a um pai
autoritário no seu lar, mas que são diretamente aplicadas por uma
autoridade no exercício de seu poder no espaço público, nas reuniões
ministeriais e junto à imprensa. A ideia é sugerir que o presidente Jair
Bolsonaro, no espaço do exercício da política, exerce no campo
simbólico um ingrediente da ordem do conflito psíquico. Os sujeitos
que hoje o apoiam, chamados bolsonaristas, encontram sua razão de
ser na submissão à identificação simbólica do presidente igualada a
uma figura paterna autoritária e não complacente.

Isso acontece porque, para Schneider, de uma fora geral, a


sociedade está num processo diagnosticado como de perda do
simbólico. Como no atentado terrorista de 11 de setembro que afetou
a onipotência americana, a pandemia está aí para trazer a mensagem
de que a morte está de volta, o que provoca o processo de
dessimbolização de parcela dos cidadãos, os apoiadores de Jair
Bolsonaro. Para a psicanálise, a relação com a morte é estruturante da
ordem simbólica e sua resolução é fundamental para a constituição do
sujeito. Sua negação implica em dessimbolização e frente a uma
expansão crescente da pandemia e de suas vítimas, a morte retorna
como elemento desestruturante do imaginário coletivo. Daí o fato de
que o “pai da nação” é a figura simbólica renegada pelo Presidente da
República, que é seguida por parte da população também que não
aceita o limite dado a sua existência. O discurso de Jair Bolsonaro, de
que “é uma gripezinha”, reduz a fatalidade da Covid 19, minimiza o
papel dos dados estatísticos que alertam para a sua letalidade e
provoca a perplexidade porque diz que parcela da sociedade não
aceita o fato que a pandemia coloca-nos diante da possibilidade da
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morte. Simbolicamente, o Pai autoritário diz que “não há nada a


temer”, que a morte do coronavírus não existe e com isto, torna-se
salvador das angústias de todos aqueles incapazes de resolver também
sua relação com a finitude da existência.

O argumento é interessante por que fornece um sentido para o que


é sem sentido, as práticas irracionais de aliados de Jair Bolsonaro. Se
vivemos a dissolução da política como lugar da perda do simbólico,
entendemos por que o governo dá a si a função de administrar vida
dos cidadãos diminuindo os riscos econômicos, reduzindo o efeito das
estatísticas e atacando a universidade e seus especialistas. Para o
governo, em relação à pandemia, é “vencer ou vencer”, mas a verdade
é que a pandemia é que está vencendo. O governo alimenta o
individualismo da sociedade que diz que, se um cidadão morre “é sua
culpa, antes ele do que eu”, que compõe o pensamento da extrema-
direita, que esquece que faz pesar sobre o sujeito o ônus da derrota,
que esquece que a culpa das mortes também é das políticas públicas
de saúde do governo.

Schneider diz que a perda do simbólico é comparável aos buracos


na camada de ozônio: ainda que haja vida no planeta, produz
problemas. Da mesma forma, os buracos no simbólico abrem e
enfraquecem a camada de nossa consciência que protege a vida da
mente. A função simbólica, dizem os psicanalistas, permite a cada um
passar pela experiência de se constituir como sujeito de cultura, nos
produz e individualiza como pessoa. Quando a política se dissolve,
quando deixa de ser o exercício do cidadão na polis para se
psicologizar, se torna o lugar de exercício de funções psíquicas, de
expressões da psiquê e produz-se uma transformação nas estruturas
sociais. A política deixa de ser... política e se transforma noutra coisa.
Byung-Chul Han denomina de Psicopolítica, título de um de seus
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livros, o que leva os apoiadores de Jair Bolsonaro a rejeitarem o


argumento da razão e desenvolverem um sentimento de dever em
relação ao Presidente que passa por cima das exigências inerentes a
vida em sociedade. Não é essa a imagem que fica após um cidadão,
defensor de Jair Bolsonaro, que retira as cruzes de uma manifestação
que representa os mortos pelo Covid 19 no Rio de Janeiro como
mostra matéria de Raoni Alves ao G1? E não vimos no mesmo
instante, o ato de um taxista que teve o filho morto pela mesma
doença, recolocar as cruzes e pedir respeito aos mortos? Este gesto
não é a exigência de respeito que a vida em sociedade exige? Um
cidadão vive a política como uma aberração sentimental na qual deve
lealdade a um líder perverso; outro cidadão vive a política como
relação de distância com o outro, daí a necessidade respeito. A cena
mostra que vivemos tempos de produção de sujeitos desestabilizados
psiquicamente, faltam a muitos cidadãos as referências para que possa
construir sua própria ficção, condição de ser um sujeito. Na
subjetivação autoritária, o “big Dad” constitui sujeitos liberados do
medo, com poder de julgar os demais.

A sociabilidade familiar sustenta a crença de que as relações


verdadeiras acontecem no seu interior. Não é possível uma politica
séria por imitação de relações familiares, que transpõe valores
familiares para o campo público. Não é justamente o que faz o clã
familiar de Jair Bolsonaro? Seu objetivo é torna-se a família de... má
referência, espécie de talk-show do poder. A política passa a ser
definida pela relação pessoal de seu governante com seus familiares,
seus subalternos e o mundo e parte da população acredita que esta é a
forma verdadeira da política, seguir um líder irracional capaz de tomar
decisões pessoais sobre tudo, apagamento das fronteiras entre vida
pública e privada. A ideia é que a pessoalidade do governante é capaz
de representar as escolhas da sociedade esconde um populismo que
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interessa ao modo de pensar neoliberal porque simula as aspirações


do todo social sob os interesses de sua parte mais reacionária. Sob o
véu de uma “franqueza da intimidade” definida pelo jargão “é o jeito
do presidente”, Jair Bolsonaro se isenta de todo o conteúdo
ideológico, moral e ético de suas ações - ele é apenas aquele que dá as
respostas de demanda da sociedade - da pior parte da sociedade.

É o que acontece quando vemos Jair Bolsonaro indo a botecos


para tomar um lanche, almoçando de bandejão em algum país e
passando a mão no rosto sem qualquer higiene, sinais gritantes da vida
pessoal desmedida, que na concepção do sociólogo Richard Sennet
em sua obra Respeito a formação do caráter em um mundo desigual
(Record, 2004) aponta para uma vida pública esvaziada porque há a
necessidade de fronteira entre o público e o privado independe da
vontade humana, da vontade do Presidente, ele deve impô-la por
respeito ao cargo, pois se não o fizer, o político está sempre ameaçado
de ser descoberto em sua dissimulação, em seus comportamentos
inadequados. Não é o que acontece quando a crítica aponta que Jair
Bolsonaro testa os limites das instituições, daí as idas e vindas de suas
iniciativas, essa dissimulação presente, por exemplo, na tentativa e
renúncia de intervenção nas universidades? Sennet em O declínio do
homem público: as tiranias da intimidade (Cia as Letras, 1999) afirma
que a autenticidade é um valor importante na política, o que significa,
segundo o autor “resultado da superposição do imaginário privado
sobre o imaginário público”(SENNET: 1999, p.41). Não é isso que
vemos quando Jair Bolsonaro diz palavrão em reuniões que devem
ser formais, quando fala de forma grosseira com jornalistas quando
deve ser respeitoso, esse jeitão grosso não é o que outorga uma
autenticidade reconhecida como valor pela extrema-direita? O
paradoxal é que, mesmo quando o presidente reivindica
autenticidade, ser um sujeito de si mesmo, “sujeito” no sentido
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filosófico significa subjectus, aquele que, por definição, está


submetido. Submetido a quê? Não a sociedade, a quem deve atender
as necessidades básicas, o que não faz com a pandemia, mas ao
imperativo do exercício de simulações, Fake News, de que é
dependem sua capacidade de orquestrar conflitos.

Ao contrário do que pensam seus defensores, Jair Bolsonaro pode


ser tudo, menos um politico autônomo livre. O investimento na
necessidade de expor seus sentimentos marca o discurso do
presidente e por isso, vida pública e privada deixam de serem espaços
separados em sua gestão. Muitos autores, entre eles Byung Chul Han,
em Psicopolítica, criticam a política feita a partir dos sentimentos por
que incentiva a violência das massas como sinônimo de autenticidade.
Expressão da fragilidade da política, do desinteresse pela politica, é o
reconhecimento de que o individuo não participa das questões da
cidade. Diz a respeito o psicanalista Dany Robert Dufour em A arte
de reduzir as mentes:

“Eu faço, em suma, a hipótese que este novo estado do capitalismo


é o melhor produtor do sujeito esquizoide, este da pós-
modernidade. Na tendência à dessimbolização que nós vivemos
presentemente, não é mais o sujeito crítico colocando à sua frente
uma deliberação conduzida em nome do imperativo moral da
liberdade, o sujeito que convém, não é mais também o sujeito
neurótico tomado numa culpabilidade compulsiva, é um sujeito
precário, acrítico e psicotizante, que é, daqui em diante requerido –
eu compreendo por “psicotizante” um sujeito aberto a todas as
flutuações identitárias e, por via de consequência, pronto para
todas as ramificações do mercado. “O vivo do sujeito dá
progressivamente lugar ao vazio do sujeito, um vazio aberto a todos
os ventos”.
J O R G E B A R C E L L O S | 217

Não é assim que imaginamos a consciência política da extrema


direita, que vai às ruas apoiar as iniciativas do Presidente, como uma
espécie de sujeito vazio de sentido aberto a tudo o que divulga a
autoridade máxima do pais de ignorância, do seu discurso em defesa
da cloroquina aos apelos para invadir hospitais? Como explicar a
dedicação dessas massas de extrema-direita para atender o desejo do
Presidente se não pela encarnação desse big Dad sem limites, sem
qualquer tentativa de defesa de qualidade de vida e precaução quanto
à expansão da epidemia? Esse culto ao líder político, o novo Pai da
nação, é o culto a um Pai malévolo que não se preocupa com a saúde,
com os bons costumes e com a palavra e, se pensamos nos efeitos
desse imaginário simbólico sobre uma parcela da população na
produção de comportamentos associais, o que temos é uma difusão
que imita o vírus.

O vírus é uma pandemia real e uma metáfora social como Jean


Baudrillard usa a metáfora biológica na obra A Transparência do Mal
(Papirus, 1990) para falar de toda a sociedade. As falas de Jair
Bolsonaro são uma espécie vírus que circula nas mentes de extrema-
direita, sem restrições, sem críticas, que provoca e justifica a
sociabilidade agressiva, irracional, elemento para a superação da
distinção entre natureza e cultura: chama a atenção a dissolução da
naturalidade em que a violência é assumida pela extrema direita. Você
a vê no choque que produz as suas agressões na classe médica, onde
médicos e enfermeiros, além de enfrentar o vírus, tem de enfrentar os
defensores de Jair Bolsonaro nas portas dos hospitais, prova da
dissolução dos limites que definem as categorias sociais, consequência
da dissolução da política.

Pior, o contexto descrito nem se aproxima do mundo previsto por


Robert Castel, em sua obra A Gestão dos Riscos (Francisco Alves,
218 | T E M P O S D E P A N D E M I A

1987) que descreve a substituição da política, na ordem pós-


disciplinar, pelo uso de tecnologias de administração de risco - não é
esse o caminho dos grandes países que hoje são capazes de identificar,
à distância, por meios eletrônicos, o simples aumento da temperatura
corporal em suas políticas de combate ao coronavírus? O Brasil, ao
contrário, dá um passo atrás, seu imaginário big Dad não é o de uma
sociedade pós-moderna de mercado, é o de uma sociedade pré-
moderna de mercado. Não é o que se vê na manifestação de uma
dúzia de militantes de extrema direita em Brasília, com suas tochas e
gestos à maneira da Ku-Klux-Klan em pleno século XXI, se não o
símbolo desta sociedade pré-moderna, primitiva, que libera seus
instintos, que se quer oferecer como novo modelo de liberdade?
Quando é que expor seus instintos em público, suas piores
manifestações em vida, assumir riscos sem quaisquer preocupações
com as prescrições científicas ou cuidado na pandemia é sinal de que
evoluímos? “Estamos em pandemia? Abram os shoppings!”, eis a
palavra de ordem de empresários da extrema direita.

Uma parcela da sociedade composta por integrantes de extrema


direita vem emergindo no espaço público e não sabe mais em nome
do que ou de quem fala. Ela segue o grupo, segue a manada, segue
um líder, como se diz. Para Schneider, esta situação nova é
característica da ausência de um enunciador coletivo com legitimidade
e credibilidade para tornar possível ao sujeito encontrar-se na situação
necessária à condição subjetiva que é a de ser interpelado e de
responder. A militância de extrema direita não interpreta, não
responde a algo, apenas age. Aqueles que seguem as máximas do
Presidente manifestam seu desamparo, ausência de referências
positivas, como se estivessem fora do lugar no processo de
dessimbolização que os livra de qualquer relação com a morte ou
troca concreta que fundamenta uma relação humana e generosa. É
J O R G E B A R C E L L O S | 219

triste: vivemos o processo galopante de desumanização de parcela da


sociedade.

Reflexões sobre a reação brasileira ao coronavírus

Em 19 de março, no início do confinamento geral na Europa para


conter a expansão do COVID-19, o filósofo Pierre Dardot e o
sociólogo Christian Laval publicam sua interpretação da situação da
pandemia na mídia francesa Mediapart. Sua análise do contexto da
soberania do Estado e definição da importância do acesso aos serviços
públicos como um direito fundamental da cidadania é importante
para refletir sobre a condução do controle da pandemia no Brasil e o
papel da presidência da república nesse processo. Para os autores de
Comum, ensaio sobre a revolução no século XXI, a pandemia do
coronavírus é um teste para as capacidades das organizações políticas
de enfrentarem as consequências da estrutura econômica porque é a
síntese de uma crise de saúde global, econômica e social

“Teste no duplo sentido da palavra: dor, risco e perigo, por um


lado; exame, avaliação, julgamento por outro. O que testa a
pandemia é a capacidade das organizações políticas e econômicas
de lidar com um problema global vinculado às interdependências
individuais, ou seja, afetando a vida social mais básica”. (DARTOD
& LAVAL:2020).

Dardot & Laval fazem duas observações iniciais para avaliar a


capacidade dos estados em responder a pandemia. A primeira é o
reconhecimento da capacidade do Estado Nacional como organização
220 | T E M P O S D E P A N D E M I A

soberana para enfrentar uma epidemia global através de medidas


autoritárias para limitar o contato, semelhantes ao estado de
emergência, como ocorreu na Itália, Espanha e França e a sua atuação
no combate a importação do vírus do exterior. Para os autores,
disciplina social e protecionismo nacional são os eixos da luta contra a
pandemia e representam a soberania a partir da dominação interna e
externa. A observação é importante para avaliar a ação promovida por
Jair Bolsonaro no governo federal, pois ele não atende o primeiro
requisito de soberania proposto pelos autores porque rejeita as
medidas de controle e limitação de contato, ponto de conflito com
seus ministros de saúde Henrique Mandetta e Nelson Teich e
responsável pela demissão de ambos. Deve ser reconhecida também a
incapacidade do presidente de impedir a importação do vírus do
exterior, já que os aeroportos permaneceram abertos durante a
pandemia, ocorrendo à redução dos voos pela diminuição da
demanda de mercado e cancelamento de viagens. A segunda
observação de Laval & Dardot refere-se ao fato de que o Estado deve
ser capaz de ajudar empresas de todos os tamanhos a passar pela
pandemia

“prestando assistência e garantias nos créditos necessários para


evitar a falência e manter sua força de trabalho o maior tempo
possível. O estado não tem mais escrúpulos em gastar sem limite
"salvar a economia”(DARDOT & LAVAL:2020).

Esta atitude é notável para governos neoliberais que até um dia


antes tem verdadeira obsessão pelas limitações orçamentárias e pela
redução da dívida pública, e pedem agora desesperadamente hospitais
de campanha e aumento de leitos nos serviços de emergência,
inclusive particulares. “Os estados de hoje redescobrem as virtudes da
intervenção, pelo menos quando se trata de apoiar a atividade de
J O R G E B A R C E L L O S | 221

empresas privadas e garantir o sistema financeiro” (DARDOT &


LAVAL: 2020). É isso que acontece no Brasil? A resposta é não.
Primeiro, há um investimento maciço no sistema financeiro, com
auxílio ao sistema bancário com transferências financeiras
astronômicas e após, dos financiamentos prometidos aos pequenos
empreendedores, pouco chega a seu destino devido às dificuldades
impostas pelo mesmo sistema bancário responsável pela
administração dos repasses governamentais e finalmente, o próprio
Ministro da Fazenda, Paulo Guedes, na gravação da reunião do dia 22
de abril que veio a público recentemente, afirma que “nós vamos
ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes
companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas
pequenininhas”, como registra Rafael de Lara para o site de notícias
IG. Não é o oposto do que apontam Laval & Dardot?

A conclusão é que o governo não atende nenhum dos pré-


requisitos necessários de um estado soberano para o enfrentamento
adequado da pandemia. Por quê? Mesmo considerando que em
nenhum momento, nos países mais atacados pela pandemia, as ações
de seus governantes não possam ser confundidas com o fim do
neoliberalismo, para os autores a questão central que deve ser
transposta para o Brasil é se o presidente é capaz de usar os recursos e
as prerrogativas de estado soberano, tanto internas como externas,
para enfrentar a pandemia. Isto é necessário porque o coronavírus
afeta o país no princípio básico de solidariedade social, inscrito na
Constituição, mas as ações do presidente merecem críticas por que
vão na contramão deste princípio.

Primeiro vemos a indiferença institucional do Presidente frente à


gravidade da pandemia, que ocupa no Brasil o lugar que tem a
xenofobia institucional dos estados europeus como descrevem os
222 | T E M P O S D E P A N D E M I A

autores. Ocorre no Brasil o que ocorreu entre os estados europeus.


Lá, os países da União Europeia agiam de maneira dispersa em
relação à disseminação do coronavírus enquanto que no Brasil, é a
união que age independente e na contramão do que desejam diversos
prefeitos e governadores preocupados com a pandemia. Não é o
Presidente que, inclusive, ameaça liberar o comércio por decreto
naqueles estados e municípios que se recusassem a promovê-lo, que
foi barrado por uma decisão do STF como registra o jornalista André
Shalders para o jornal BBC News Brasil, em Brasília?

Os estados brasileiros reagem como os países europeus reagiram,


só que de maneira dispersa e indiferente às diretrizes presidenciais de
combate à disseminação do coronavírus. Eles fazem como os países
europeus, trancados em seus territórios para proteger suas populações
das medidas federais que relaxam o combate ao vírus. O mapa dos
primeiros países enclausurados também se sobrepõe de forma
significativa ao da xenofobia do estado, Fernando Haddad é nosso
Victor Orbán, e da mesma forma que este último vê que há duas
frentes da guerra, a da migração e do coronavírus, Haddad vê que há
duas guerras “guerra contra o vírus e a contra o... verme!”, como
registra a jornalista Waleska Andrade no site Leia Já.

Sem uma orientação federal baseada em evidências médicas, resta


a cada estado e município administrar a sua própria política sanitária
sem coordenação e solidariedade do Presidente da República ou do
Ministério da Saúde com as populações mais pobres. Não é a mesma
situação descrita pelos autores para o que acontece com os países
europeus, onde cada país se vira como pode para enfrentar a
pandemia, e também vê desaparecer a solidariedade internacional?
Como a Itália, abandonada pela França e Alemanha, estados
J O R G E B A R C E L L O S | 223

brasileiros como o Amazonas é abandonado pelo governo federal a


sua própria sorte, condenando a morte milhares de pessoas.

No dia onze de março, quando o diretor-geral da Organização


Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declara ao mundo
que estamos lidando com uma pandemia, o presidente minimiza a
declaração dizendo que “outras gripes mataram mais”. A preocupação
do diretor geral da OMS quando a inação dos países se aplicava
diretamente ao Brasil. Laval & Dardot concordam com a análise do
especialista em pandemia Suerie Moon, codiretor do Centro Global
de Saúde do Instituto de Pós-Graduação em Estudos e
Desenvolvimento Internacionais, segundo a qual:

“A crise pela qual estamos passando mostra a persistência do


princípio da soberania do estado nos assuntos mundiais (...) Mas
não é surpreendente. A cooperação internacional sempre foi frágil,
mas ainda mais há cerca de cinco anos, com a eleição de líderes
políticos - especialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido -
que aspiram a se retirar da globalização (...) Sem a perspectiva
global fornecida pela OMS, nos encontramos em um desastre (...)
Portanto, lembre aos líderes políticos e de saúde de todo o mundo
que a abordagem global à pandemia e a solidariedade são
elementos essenciais que incentivam os cidadãos a agir com
responsabilidade” (DARDOT & LAVAL: 2020).

A análise não cabe como uma luva as perspectiva do presidente


sobre o coronavírus? Não é sua posição abandonar a perspectiva
global da OMS, abordagem dada pelas autoridades médicas nos
demais países à pandemia, e ainda rejeitar qualquer princípio de
solidariedade social quando afirma que alguns irão morrer? Quer
dizer, ainda que a OMS passe as informações corretas desde o início
224 | T E M P O S D E P A N D E M I A

de janeiro, bem como recomendações para controle precoce e radical


da epidemia, elas são pouco relevantes para o presidente porque seu
interesse é o desenvolvimento econômico e não na solidariedade com
os mais pobres.

Veja-se mais uma vez o caso do Ministério da Saúde na gestão de


Henrique Mandetta e Nelson Teich. Ambos tentam acompanhar as
determinações da OMS, contrariam o presidente com a defesa do
distanciamento social e manutenção do isolamento, mas não
conseguem implantar exames de rotina como na Coréia e nem
prefeitos e governadores conseguem programar a contenção absoluta
como ocorre na Itália e China. O presidente demonstra interesse em
reagir às críticas com a escolha fatalista e cripto-darwiniana - a
expressão é de Dardot &Laval - da chamada estratégia imunidade de
rebanho, similar a protagonizada por Boris Johnson na Grã-Bretanha
no início da pandemia, um caminho de passividade distinto das
medidas restritivas que países como França e Alemanha demoram a
tomar

“Baseando-se em uma „mitigação‟ ou „atraso‟ da epidemia ao


achatar a curva de poluição, esses países desistiram de mantê-la sob
controle desde o início por meio de triagem sistemática e
contenção geral da população, como foi feito em Wuhan e na
província de Hubei. Essa estratégia de imunidade coletiva envolve
aceitar que 50 a 80% da população está contaminada de acordo
com as previsões dos líderes alemães e do governo francês. É como
aceitar a morte de centenas de milhares ou mesmo milhões de
pessoas que deveriam ser as „mais frágeis‟” (DARTOD &
LAVAL:2020).
J O R G E B A R C E L L O S | 225

Por que o Brasil dividiu-se em seguir as orientações da OMS?


Depois de dois ministros da saúde nomeados, a militarização do
ministério da saúde trouxe, para satisfação do presidente, a
oficialização da cloroquina como medicamento inclusive para
pacientes iniciais, contrariando as orientações da OMS. O medo das
autoridades é, no plano econômico, a transferência para o Brasil da
imagem da epidemia na China, que paralisou os poderes econômicos
numa interrupção da produção e do comércio jamais vistas. O temor
das elites econômicas de uma crise financeira e econômica está na
pressão exercida pelas elites sobre os governantes: governadores que
hesitam nas medidas mais restritivas veem disparar o número de
mortos, como no Amazonas, situação que lembra a hesitação vivida na
Alemanha, França e nos Estados Unidos, que ocorre por que as
autoridades cedem às pressões dos agentes econômicos. Dardot &
Laval afirmam que o argumento pelo relaxamento das medidas
restritivas baseia-se na ideia de que, se os indivíduos são forçados
muito rapidamente a seguir medidas severas de isolamento, logo
relaxam quando é mais necessário. A ideia dos autores é que, ao
contrário,

“é preciso incentivar os indivíduos, sem forçá-los, a tomar as


decisões corretas „pressionando‟, ou seja, por meio de influências
suaves, indiretas, agradáveis e opcionais, sobre um indivíduo que
deve permanecer livre para tomar suas próprias decisões. Esse
„paternalismo libertário‟ na luta contra a epidemia resultou em duas
orientações: por um lado, a rejeição da coerção do comportamento
individual e, por outro, a confiança nos „gestos de barreira‟: ficar
longe, lavar mãos, cubra bem ao tossir, tudo isso por interesse
próprio. O compromisso com o incentivo leve e voluntário era
arriscado, não se baseava em dados científicos que demonstrassem
226 | T E M P O S D E P A N D E M I A

sua relevância em uma situação epidêmica. Isso levou ao fracasso


que conhecemos“(DARDOT & LAVAL: 2020).

Por isso o presidente constantemente se refere a opção entre a


morte de CNPJs, relativos a empresas, e a de CPFs, os cidadãos. Esta
atitude não é semelhante a do presidente francês Emmanuel Macron,
que também se recusa a tomar medidas de contenção logo de início
da pandemia? Tanto Macron como Bolsonaro compartilham a ideia
de preservar apenas os grupos de riscos, a diferença é que o primeiro
reconhece o erro e volta atrás e o segundo não. Dardot & Laval
chamam a esta posição de paternalismo libertário, maneira sutil de
“discordar das medidas draconianas que necessariamente afetariam a
economia”(DARDOT & LAVAL: 2020).

O problema é que Bolsonaro, ao contrário de Macron, não


reconhece seu erro e, ao contrário das autoridades políticas que fazem
uma virada impressionante em suas posições, como o presidente
francês, que em 12 e 16 de março já fala em retroceder com a ideia de
„abnegação patriótica‟ contra a pandemia, pois „estamos em guerra‟, e
representa a figura do estado soberano que se manifesta da maneira
mais extrema contra a pandemia em defesa dos cidadãos, aqui, o
estado soberano brasileiro é apenas garantir a sobrevivência do capital
privado. Quer dizer, como afirma Dardot & Laval “de repente, e
quase milagrosamente, Emmanuel Macron tornou-se um defensor do
estado social e da saúde pública, alegando a impossibilidade de
reduzir tudo à lógica do mercado” (DARDOT & LAVAL: 2020),
atitude que passa a ser aplaudida por todos, inclusive pela esquerda
daquele país. No Brasil, ao contrário, após a divulgação do vídeo da
reunião ministerial de 22 de abril, veem-se imagens do presidente em
novo passeio por Brasília, onde para comer um cachorro-quente e
onde ouve as primeiras manifestações populares contra sua política.
J O R G E B A R C E L L O S | 227

Se Macron é capaz de dar uma resposta em termos de estado


soberano, ainda que tardia, ao apelo por um choque à favor dos
hospitais, como o que recebe em uma visita a um em 27 de fevereiro,
Bolsonaro, mesmo com a defesa de seus próprios ministros da saúde
em suas quedas sucessivas, é incapaz de fazer o mesmo. Enquanto que
na França, como afirma Dardot & Laval, a defesa dos serviços
públicos e salvar a saúde pública tornam-se uma das prerrogativas de
estado para além da lógica de mercado, os autores questionam uma
definição que merece ser analisada para o Brasil: “é realmente
evidente que o conceito de serviço público em si exige o de soberania
do Estado, como se o primeiro fosse baseado no segundo e as duas
noções fossem inseparáveis uma da outra?” (DARDOT & LAVAL:
2020). Para Dardot & Laval, soberania significa literalmente
superioridade em relação às leis que limitam o poder do Estado, em
relação a outros países ou seus próprios cidadãos:

“O Estado soberano se coloca acima dos compromissos e


obrigações que pode livremente contrair e revogar como desejar.
Mas o Estado, considerado uma pessoa pública, só pode atuar por
meio de seus representantes, que supostamente incorporam sua
continuidade além da duração do exercício de suas funções.
Portanto, a superioridade do Estado significa efetivamente a
superioridade de seus representantes em relação às leis, obrigações
e compromissos que podem obrigá-lo de maneira duradoura. E é
essa superioridade que é elevada à categoria de princípio por todos
os soberanos”(DARDOT & LAVAL: 2020).

Para Dardot & Laval a questão é se a reivindicação do estado


soberano se aplica independentemente da orientação política de seus
governantes, que atuam como representantes de estado
independentemente de sua ideia de soberania do estado. Isto é,
228 | T E M P O S D E P A N D E M I A

comparativamente, se há uma tensão entre as políticas a serem


desenvolvidas pela França no contexto da pandemia e as propostas
pela Comunidade Europeia em detrimento da soberania francesa, que
resulta na recusa de Macron de suas obrigações internacionais de
respeito, por exemplo, aos direitos humanos, no Brasil, esta tensão é
interna entre o presidente, de um lado, e governadores e prefeitos de
outro, como se viu no uso de palavrões em direção a estas últimas
autoridades na reunião do dia 22 de abril.

Felizmente, o STF retirou o álibi presidencial de encarnação de


autoridade soberana ao afirmar que os estados e municípios, e não o
governo federal, é que são soberanos em relação às medidas a serem
adotadas na condução do combate a pandemia, impedindo o
presidente de interferir no que for decidido por estas autoridades.
Seguindo a linha de Dardot & Laval, o problema é que o presidente
se acredita isento de obrigações soberanas que o cargo imputa em
relação à pandemia, sente que o exercício do poder passa pela defesa
da sua opinião privada como política pública, pois precisa garantir a
liberalidade que só beneficia o mercado. O ponto essencial da
definição de Dardot & Laval para o caso brasileiro é sua definição de
natureza pública dos serviços públicos

“nessa expressão, „público‟ é absolutamente irredutível ao „estado‟.


Porque o publicum, aqui designado, refere-se não apenas à
administração do estado, mas a toda a comunidade brasileira que
inclui também todos os cidadãos: serviços públicos não são serviços
estatais no sentido de que o Estado poderia dispor deles como bem
entender, nem são uma projeção do Estado, mas são públicos no
sentido de que estão “a serviço do público” (DARDOT & LAVAL:
2020).
J O R G E B A R C E L L O S | 229

É nesse sentido que o presidente não pode dispor da maneira que


quiser, ou impor a sua opinião, sobre as políticas públicas do
Ministério da Saúde como o fez para impor a cloroquina como
medicamento básico de tratamento “Em outras palavras, o Estado e os
governantes devem aos governados, longe de ser um favor que o
Estado faz aos governados” (DARDOT & LAVAL: 2020).

Este é o ponto. Para fundamentar essa ideia, os autores localizam


no pensamento do advogado Léon Duguit, importante teórico dos
serviços públicos do início do século XX, a definição que serve para
compreender os deveres daqueles que governam os governados e que
constitui a base do que é chamado de serviço público:

“Na sua opinião, os serviços públicos não são uma manifestação do


poder do Estado, mas um limite do poder de governo. São eles
que fazem os governantes estarem a serviço dos governados,
impõem obrigações aos governantes que também são impostas aos
seus agentes, e são estas que dão origem ao conceito de
responsabilidade pública. Por essa razão, os serviços públicos
emergem do princípio da solidariedade social, imposto a todos, e
não do princípio da soberania, incompatível com o da
responsabilidade pública” (DARDOT & LAVAL: 2020).

A passagem explica o pensamento do Presidente. Ele pretende


tratar da maneira que quer a prestação dos serviços de saúde e não
entende que seu limite é dado pelas obrigações que o ministério da
saúde assume em relação à população e que são determinadas pelas
diretrizes da OMS e não pela sua opinião... presidencial! Por isso, ao
defender, não apenas a cloroquina, mas o fim do isolamento, o
presidente foge de sua responsabilidade pública para atender
interesses do capital que se manifesta sob a forma de sua opinião
230 | T E M P O S D E P A N D E M I A

pessoal e, com isso, nega o princípio de solidariedade social a que


deve se submeter. Seu argumento, é claro, é insuficiente, pois dizer
que ele é o presidente, que é ele que decide porque o povo o colocou
neste cargo não se sustenta. Por isso, frente à expressão “nós não
estamos aqui à toa”, como o Presidente disse na reunião do dia 22 já
citada, ali expressa também, como apontou a Professora Doutora Celi
Pinto em seu artigo recente intitulado Nós não estamos aqui para
brincadeira (PINTO: 2020), esse “nós” representa o interesse do
capital frente à indiferença sepulcral dos presentes aquele encontro
aos interesses da sociedade, manifestado pelo silêncio quando o
próprio Ministro da Saúde, Nelson Teich, aponta as estratégias de seu
ministério na condução da pandemia na mesma reunião do dia vinte e
dois de abril. Não foi neste momento, como muitos memes apontam,
que “caiu a ficha” para o ministro de que aquela reunião não é
convocada para discutir o principal problema do país, as necessidades
da pandemia, mas para discutir estratégias para os problemas do
capital, como deixou claro o ministro do meio ambiente?

A reunião ministerial do dia vinte e dois de abril revela que o


governo trabalha com uma concepção de serviços públicos que nada
tem a ver com o exercício da soberania para busca de benefícios para
os cidadãos comuns, ao contrário, é uma ficção para colocar no seu
lugar, no lugar da soberania do Estado, a soberania do...capital no
interior do estado. A defesa do ministro Paulo Guedes da privatização
do Banco do Brasil, como já fez de outros patrimônios econômicos
nacionais, dá bem o exemplo disso “o direito dos cidadãos aos
serviços públicos é o grande pendente do dever dos serviços públicos
que recai sobre os representantes do Estado” afirmam Laval & Dardot
(2020). É esse argumento irrecusável que mostra a distância entre as
manifestações do presidente e da mesma forma, a diferença de
comportamento dos cidadãos brasileiros, que mostram seu apego aos
J O R G E B A R C E L L O S | 231

profissionais envolvidos na luta diária contra o coronavírus em suas


homenagens e manifestações, que reconhecem seu valor

“o apego dos cidadãos aos serviços públicos, em particular os


serviços hospitalares, não é de forma alguma uma aderência à
autoridade ou poderes públicos em suas diferentes formas, mas um
apego a serviços cujo objetivo essencial é atender às necessidades
do público” (DARDOT & LAVAL:2020).

Sequer o presidente é capaz de, como o presidente francês, sugerir


que questiona o modelo de desenvolvimento brasileiro, como fez o
presidente francês após a crise, ainda que sua crítica continue cética
quanto à redução da destruição do planeta e o crescimento da
desigualdade. Ao contrário, Bolsonaro não tem receio em aceitar “a
enorme conta para salvar a economia" e o próprio ministro da
economia Paulo Guedes, a quem o Presidente disse estar em perfeita
sintonia, sinaliza que a conta será paga também pelos funcionários
públicos e pequenos empreendedores. Graças ao vídeo divulgado,
como dizem os autores de Comum “algo mudou, o que significa que
nada pode ser completamente como antes” (DARDOT &
LAVAL:2020), o que aqui significa que o governo possui uma
distinção muito grande entre o seu plano de governo, às vésperas da
eleição, e o que está realizando. Dois aspectos ficam claros para
milhões de pessoas: de que a opinião do presidente em termos de
saúde pública vale mais que a opinião dos técnicos e que o papel dos
agentes públicos como instituições é facilitar a vida dos
empreendedores privados, principalmente o grande capital financeiro
e agroexportador.

A conclusão dos autores é que, com tais políticas de saúde, termina


o que os autores apontam como “o papel dos serviços públicos como
232 | T E M P O S D E P A N D E M I A

instituições comuns capazes de implementar uma solidariedade vital


entre os seres humanos”, fica claro que, na reunião ministerial do dia
vinte e dois de abril, é evidente a falta de humanidade de nossos
governantes, a ideia que os bens comuns do país estão a serviço do
capital privado. Por isso, a fala do próprio ministro da agricultura dá o
tom do tipo de política que o povo enfrenta, a que aproveita a
pandemia como cortina de fumaça para reduzir a legislação de
proteção à natureza, o patrimônio público entregue a inicia privada,
quando, ao contrário, para enfrentar esta pandemia, é preciso que os
ministérios trabalhem conjuntamente, coordenando meios e
conhecimentos no sentido dado pelos autores de Comum:

“a cooperação deve ser a regra absoluta. Saúde, clima, economia,


educação, cultura... não devem mais ser considerados propriedade
privada ou propriedade estatal: devem ser considerados bens
comuns do mundo e instituídos politicamente como tais”
(DARDOT & LAVAL:2020).

Assim, as iniciativas da sociedade organizada, dos governadores e


prefeitos em defesa do cidadão frente à pandemia cumprem mais o
papel da soberania do que as práticas do governo federal. No caso
brasileiro, vale a conclusão dos autores “Uma coisa é certa: a salvação
não virá de cima” (DARDOT & LAVAL:2020).

Os dados como arma de enfrentamento ao vírus

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de omitir dados da Covid


19 coloca o país numa espécie G3 da negação da informação, junto
J O R G E B A R C E L L O S | 233

com a Venezuela e Coréia do Norte. Informação transparente não é


um direito, é uma espécie de profilaxia, quanto mais sabemos os
números oficiais, os locais com mais infectados e a concentração nos
hospitais, mais a sociedade tem uma atitude apropriada ao contexto.
Muitos agem inapropriadamente porque nem todos somos dotado de
razão, mas os dados da pandemia tendem a agir em nossa consciência
para justificar nossos cuidados.

Para o Presidente os números provocam pânico, daí o esforço em


escondê-los, conta-los de uma forma favorável, o que piora a sua
situação “se escondem a verdade de nós, é porque é tudo muito mais
sério do que parece”, diz o Ph. D. em física Paolo Giordano em sua
obra No Contágio (2020). Isso ocorre porque o Presidente tem um
relacionamento não resolvido com cidadãos, especialistas e
instituições. Não confia nos cidadãos porque são muito emotivos, nos
especialistas porque dizem a verdade que não quer ouvir e nas
instituições porque teimam em contrariá-lo e isso só atrai mais
desconfiança para seu governo e suas políticas.

Reportagem de Daniel Mariani, Diana Yukari e Flávia Faria


publicada na Folha de São Paulo aponta que a decisão do presidente
ocultará ao menos 44% do número de mortos de Covid-19, pois esta é
a percentagem daqueles cujo resultado do exame vem dias após o
falecimento, e portanto, não entram nas estatísticas governamentais. É
o descompasso que existe entre a data da morte, o resultado do exame
e a notificação. Por isso a data de notificação é o parâmetro universal
de acompanhamento de uma pandemia “Com isso tem-se a falsa
impressão de que os óbitos estão em queda e medidas de prevenção
sejam relaxadas indevidamente, aumentando a contaminação”, dizem
seus autores (FSP: 2020).
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Como no Salmo 90,12, onde se lê “Ensina-nos a contar nossos dias


e alcançaremos um coração sábio”, vivemos a epidemia contando
infectados, curados, mortos, internações e todos os efeitos da
pandemia. O Salmo sugere, entretanto, que contemos algo diferente,
os dias de isolamento para dar valor a eles, o que dá um novo
significado aos dados do contágio. Para o Presidente, os dados são
uma desgraça mas eles só dizem como e onde estamos. Falta
sabedoria ao presidente em suas ações e isso impede ainda mais de
retomar nossa vida.

Os dados falam do sofrimento de uma nação. Enquanto a


epidemia se mostra cada vez mais complexa, o governo se mostra cada
vez mais refratário à complexidade. Tudo isso só aumenta o caos
colossal no enfrentamento da pandemia, já que agora, o presidente
quer escapar das garras da matemática, da própria racionalidade, mais
uma prova de este é o governo mais irracional que já tivemos.

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