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CAPÍTULO I

NOÇÕES DE
ANTROPOLOGIA E
CULTURA

Objetivo Geral

Descrever o surgimento da Antropologia


evidenciando o seu objetivo de estudo, suas
características e sua relação com a prática
pedagógica.

Apontar o que é cultura, etnocentrismo e relativismo


cultural e a importância da compreensão desses
conceitos para a prática pedagógica.

Educação a Distância
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 13

ANTROPOLOGIA CULTURAL
C
Seção 1 A
P
Í
Objetivos específicos: T
U
š descrever o surgimento da Antropologia e
seu campo de abordagem; L
O
š definir a Antropologia Cultural e apresen-
tar o seu campo de estudo;
I
š assinalar as contribuições da etnografia para
a pesquisa em educação;

Caro professor-aluno!

Você já ouviu falar sobre Antropologia e sobre o surgimento


dessa ciência? Talvez você nunca tenha ouvido falar sobre Antropolo-
gia, mas possivelmente já tenha assistido a filmes em que antropólo-
gos aparecem realizando escavações e medindo crânios. Essa imagem
não corresponde ao objeto de estudo desta ciência e nem ao que os
antropólogos fazem atualmente. É um pouco dessa história que con-
taremos brevemente aqui. Vejamos como tudo começou.
A Antropologia é uma ciência que surgiu no final do século XIX
e, assim como a Sociologia, que você já estudou, tinha como preocu-
pação compreender as mudanças pelas quais passavam as sociedades.
Os primeiros antropólogos queriam entender por que sociedades e
grupos humanos eram tão diferentes uns dos outros.1 Aliás, podemos
1 Lembremos que,
registrar que a preocupação com a diversidade cultural é uma carac- no final do século
terística dos grupos humanos. Quando, por exemplo, você viaja, quer XIX, enquanto os
países na Europa se
seja para uma cidade vizinha, ou para um lugar mais distante, não industrializavam e
tem por hábito observar costumes diferentes? Pois bem, o que, para se urbanizavam, as
realidades sociais
todos nós, “passa” como curiosidade acerca de costumes estranhos, eram bem diferentes
tornou-se, no início do século XX, objeto de estudo da Antropologia na América e na
África.
– o estudo das semelhanças e das diferenças humanas.

Educação a Distância
14 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Tal preocupação faz com que essa ciência seja considerada,


num certo sentido, um estudo antigo. Conforme relata Khuckhon
(1972), vários pensadores da Antigüidade deixaram suas impressões
sobre os costumes humanos. Herodoto, “o pai da História”, que
também pode ser chamado de o “pai da Antropologia”, descreveu
minuciosamente as características físicas e os costumes dos citas,
dos egípcios e de outros povos; Tácito, o historiador romano, reali-
zou um estudo sobre os germanos; e estudiosos chineses escreveram
relatos sobre uma tribo de homens de olhos claros que andavam
pela fronteira noroeste da China.
Foi, porém, a partir das Grandes Navegações, na Idade Mo-
derna, que a percepção da diferença ganhou mais ênfase e marcou
o encontro com o “outro”, o “estranho”. Através do processo de
conquista, os europeus se depararam com um Novo Mundo, perce-
bendo que, além-mar, havia outras terras, outras paisagens, outro
clima, mas, principalmente, outros povos que viviam de modo com-
pletamente diferente dos seus costumes. Os viajantes, missionários,
comerciantes, naturalistas, médicos, do início da exploração, relata-
ram o choque do encontro com a diferença em cartas, diários e
2 A partir da
outros documentos, mostrando uma mistura de encantamento, des-
chegada dos euro- confiança e curiosidade.2 Esses relatos contribuíram para uma ati-
peus, no século XV, e tude que colocava a cultura européia como o exemplo mais elabo-
com os processos de
dominação e con- rado de civilização humana e as outras culturas, por serem diferentes,
quista por eles eram consideradas atrasadas e inferiores, ou, ainda, não-civilizadas.
empreendidos,
ocorreu o genocídio
das populações
Etimologicamente, a palavra Antropologia vem do grego,
indígenas. O anthropus=homem, e logos=estudo, e significa “estudo do homem”.
genocídio é crime
contra a humanida-
Como ciência da humanidade, procura conhecer cientificamente
de, crime que o ser humano em sua
consiste em destruir, totalidade, ou seja, le-
total ou parcialmente,
um grupo nacional, vando em considera-
étnico, racial ou ção as suas múltiplas
religioso, ou seja, o
genocídio é a dimensões em socieda-
negação da diversi- de. Essa característica
dade cultural.
da Antropologia lhe
confere três aspectos:
a) Ciência Social - pro-
põe-se a conhecer o ser
Urna funerária guarani do sítio arqueológico "Aldeia
da ZPE" - Imbituba - Acervo da UNESC. Foto: Fabiana humano como elemen-
Comerlato. to constitutivo dos gru-
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 15

pos estruturados; b) Ciência Humana – concentra-se especifica- C


mente no estudo do ser humano como um todo: história, religi- A
ões, usos e costumes, filosofia, linguagem, criações etc.; c) Ciên-
cia Natural – interessa-se pelo estudo e pelo conhecimento P
psicossomático do ser humano e de sua evolução. Í
De acordo com essas perspectivas, a Antropologia possui três T
dimensões: biológica, quando se preocupa com aspectos físicos do U
ser humano; sociocultural, voltada para questões sociais e culturais;
e filosófica, a partir do momento em que procura responder ao
L
questionamento: o que é o homem? O
Devido à diversidade dos campos de interesse da Antropologia,
ela se constitui em uma ciência, dividindo-se em várias áreas, preci- I
sando da colaboração de outras ciências, mas, apesar disso, mantendo
sua unidade em torno de seu foco de interesse: o homem e a cultura.
Muitos estudiosos, como filósofos, historiadores, biólogos,
geógrafos e sociólogos, entre outros, também manifestam interes-
se em relação ao estudo do ser humano. Diante disso, apresenta-
se um questionamento: o que os antropólogos fazem de diferente
em relação ao estudo do homem?
Para responder a essa questão, o antropólogo estadunidense
Felix Keesing (1969) apresenta algumas proposições gerais. Primei-
ro: a Antropologia se concentra em torno das semelhanças e das
diferenças entre os seres humanos. Segundo: enquanto outros estu-
dos sobre a humanidade centram-se em análises dos povos ditos
“civilizados”, especialmente os do Ocidente moderno, os antropó-
logos voltam-se para os povos longínquos, os inicialmente chama-
dos de “primitivos”. Alguns, entretanto, ainda têm freqüentemente
aplicado os métodos de estudo da Antropologia para analisar a so-
ciedade “moderna”. Terceiro: para ampliar a compreensão sobre as
diferenças e semelhanças entre os seres humanos modernos, a pes-
quisa antropológica tem estendido sua análise além da história es-
crita (cerca de seis mil anos), mediante estudos sobre as origens e a
evolução dos seres humanos e de seus costumes na época pré-alfa-
bética. Quarto: as concepções antropológicas sobre as perspectivas
de espaço e de tempo em torno dos estudos sobre os seres humanos
levam em consideração as características físicas (biológicas), cultu-
rais e sociais. Quinto: a Antropologia fornece análises gerais sobre
os seres humanos e seus comportamentos em todas as dimensões,

Educação a Distância
16 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

colaborando de diversas maneiras com as várias ciências (Biologia,


Psicologia, Sociologia, História, Economia, e outras).
Nas primeiras décadas de constituição da Antropologia, seus
estudos centravam-se em torno das populações não pertencentes à
“civilização ocidental”, mas, no século XIX, os antropólogos perce-
beram que o objeto de estudo que tinham definido para a sua ciên-
cia (as sociedades não pertencentes à sociedade ocidental) estava
desaparecendo, devido ao desenvolvimento da sociedade industria-
lizada, capitalista. Isso provocou uma crise de identidade no con-
texto antropológico, apresentada pela seguinte questão, registrada
por Paul Mercier (1974): será que a “morte do primitivo” irá causar
a morte daquele que se dedica ao seu estudo, o antropólogo? A essa
questão foram, e ainda são, oferecidas várias respostas.
A primeira argumenta que o antropólogo aceita o seu fim e
reconduz o interesse em torno de outras ciências da humanidade, como
a Sociologia, a História etc. A segunda argumenta que ocorre um
redirecionamento na busca de um outro objeto de estudo: o campo-
nês, que é considerado um “selvagem” dentro da própria civilização e
que foi deixado de lado pelas outras áreas das ciências humanas. A
terceira, enfim, pontua que o antropólogo segue um caminho que,
inclusive, não exclui o anterior, no sentido de afirmar a especificidade
de sua ciência e de sua prática, não mais através de um objeto de
estudo constituído (o selvagem, o camponês), mas mediante uma abor-
dagem de estudo específica. Com isso, o objeto de estudo da Antropo-
logia deixa de estar ligado a um espaço geográfico, a uma cultura ou a
um momento histórico particular, passando a enfocar o estudo do
homem inteiro, em todos os seus estados e em todas as épocas.
Assim, para que possamos “fazer” Antropologia, devemos levar
em consideração as múltiplas dimensões dos seres humanos em so-
ciedade. Utilizando o método comparativo, a investigação antropo-
lógica busca explicar semelhanças e diferenças biológicas, psicológi-
cas, culturais e sociais, existentes entre os seres humanos. Como
registram Marconi e Presotto, o estudo da Antropologia

engloba as formas físicas originárias e atuais do ho-


mem e suas manifestações culturais. Interessa-se,
preferencialmente, pelos grupos simples, cultural-
mente diferenciados, e também pelo conhecimento
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 17

de todas as sociedades humanas, letradas ou ágrafas, C


extintas ou vivas, existentes nas várias regiões da A
Terra. Atribui-se ao antropólogo a tarefa de proce-
der à generalização, formação e desenvolvimento
P
das sociedades e culturas humanas (1987). Í
T
Como você pôde perceber, a Antropologia, como ciência da U
humanidade e da cultura, possui um vasto campo de investigação.
Em termos espaciais, abrange toda a terra habitada; quanto ao tem- L
po, compreende pelo menos dois milhões de anos e todos os povos O
socialmente organizados. Para isso, divide-se em três áreas de estu-
do, com objetivos bem delineados e motivações teóricas próprias:
Antropologia Física ou Biológica, Antropologia Geral ou Arqueoló- I
gica e Antropologia Cultural.
A Antropologia Física ou Biológica estuda a evolução do ser
humano, desde seu surgimento na África e migração para outros
continentes, numa jornada até os dias atuais. O objetivo é compre-
ender como os processos de evolução biológica e social contribuí-
ram para que nos tornássemos o que somos hoje. Para isso, esses
antropólogos trabalham, por exemplo, com fósseis, pequenos frag-
mentos de ossos, costelas, maxilares, crânios e fêmures, que ajudam
a reconstruir a história. Para realizar os estudos, contam com o auxí-
lio de outras ciências como a Biologia, a Arqueologia e a Genética.

A Antropologia
Geral ou Arqueológica
estuda os vestígios deixa-
dos pelas sociedades já
desaparecidas procuran-
do reconstruir sua histó-
ria. Para isso, os arqueó-
logos realizam pesquisas
da cultura material des-
Escavação no sambaqui “Porto do Rio Vermelho II” sas sociedades: utensíli-
- Florianópolis. Data: 1999. Foto: Fabiana Comerlato.
os, vestimentas, constru-
ções, objetos variados. Você já ouviu falar sobre as ruínas de Pompéia
– a cidade que foi “engolida” por um vulcão? Pois é, quando foi
descoberta, a partir de escavações dos arqueólogos, muito se soube

Educação a Distância
18 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

dos costumes dos povos da Antigüidade. Da mesma forma, várias


escavações realizadas no Brasil têm revelado quem foram e como
viviam os povos que aqui chegaram há milhares de anos.
A Antropologia Cultural, por sua vez, concentra seu estudo
nas culturas humanas, procurando revelar diferentes aspectos da
sua organização passada, presente e futura, constituindo seu objeto
de análise: a religião, a guerra, os costumes alimentares, a organiza-
ção política, a vida sexual, o parentesco entre outros fatores. É a
área mais ampla da ciência antropológica, pois seu estudo abrange
o ser humano como ser cultural, isto é, como produtor de cultura,
no tempo e no espaço, suas origens e desenvolvimento, semelhan-
ças e diferenças. Por essa razão, é esse enfoque que priorizamos nes-
te Caderno, com o objetivo de demonstrar a importância e a rique-
za da diversidade cultural humana. 3 Como ciência social, a
Antropologia Cultural aborda o “problema da relação entre modos
3 Para você saber de comportamento instintivo (hereditário) e adquirido (por apren-
mais sobre as outras
áreas da Antropolo-
dizagem), bem como os das bases biológicas gerais que servem de
gia, veja as suges- estrutura às capacidades culturais do homem” (HEBERER, 1967).
tões de livros no final
desta seção. O campo de estudo da Antropologia Cultural abrange várias
instâncias a seguir discriminadas.
Arqueologia – Estuda as culturas do passado, extintas, e que
representam momentos humanos não registrados pela escrita. Pro-
cura reconstruir o passado do ser humano e da cultura por meio de
vestígios e de restos materiais que resistiram à destruição ao longo
do tempo.
Etnografia - Área que procura fazer uma descrição detalhada
das características das sociedades humanas.
Etnologia – Estudo das sociedades a partir dos dados coletados
e oferecidos pelo etnógrafo. A etnologia é

eminentemente comparativa, preocupa-se com a aná-


lise, a interpretação e a comparação entre as mais
variadas culturas existentes, considerando suas se-
melhanças e diferenças. Enfatiza as inter-relações de
homem e meio-ambiente, indivíduo e cultura, na ten-
tativa de compreender a operosidade e [as] mudanças
das mesmas (MARCONI e PRESOTTO, 1987).
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 19

Lingüística - Estudo das várias linguagens, como os dialetos, e C


também das novas técnicas modernas de comunicação. A
Folclore – Estudo da cultura espontânea das sociedades hu- P
manas sejam elas rurais ou urbanas. Preocupa-se com as manifesta-
ções culturais materiais e espirituais que surgem espontaneamente e
Í
permanecem entre os povos. T
Antropologia Social – Apresenta estudos sobre processos cul- U
turais e a estrutura social. Seu campo de interesse está centrado em L
torno da sociedade humana, levando em conta as diferenças que O
existem entre os grupos humanos; ocupa-se de instituições sociais
como a família, a economia, a política, a religião, a justiça, relacio-
nando-as em um conjunto integrado. I
Cultura e Personalidade – Apresenta uma análise antropológica
que inter-relaciona cultura e personalidade. Esse estudo dispensa a
compreensão do indivíduo isolado e do indivíduo como simples re-
ceptor e portador de cultura; entende que o indivíduo é um sujeito
de mudança cultural, portanto desempenha um papel dinâmico e
inovador na sociedade humana. Como afirmam Marconi e Presotto
(1987), concebe o homem como “participante de uma sociedade de
caracteres constitucionais (biopsicológicos) e de experiências
socioculturais próprias. Isso confere ao indivíduo um tipo de perso-
nalidade que vai determinar ações e reações, pensamentos e senti-
mentos, enfim, o seu comportamento na busca de melhor adaptação
ou questionamento dos valores socioculturais do grupo”.
Dentre todos os campos de abrangência da Antropologia Cul-
tural, interessa-nos especificamente a Etnografia. Mas o que é uma
etnografia?
ETNOGRAFIA é o conjunto de técnicas utilizadas pelos antro-
pólogos, as quais visam a descrever detalhadamente a vida cotidiana
das populações estudadas. A partir da observação participante, os
pesquisadores observam povos de culturas muitas vezes diferentes da
sua e procuraram revelar, através da descrição dessas culturas, as con-
cepções de tais povos, o que são eles, o que pensam que estão fazendo
em suas ações históricas e com que finalidades o fazem.
Este método de pesquisa foi inaugurado por Malinowiski, em sua
pesquisa entre os povos do arquipélago de Trobriand, em Nova Guiné.
Vejamos como Malinowiski inicia sua descrição do trabalho de campo

Educação a Distância
20 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

na Introdução do seu livro “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” e


quais os pontos básicos que apresenta para realizar uma etnografia.

Imagine-se, o leitor, repentinamente sozinho, em


meio a todo o seu equipamento, em uma ilha tropi-
cal perto de uma aldeia nativa, enquanto a lancha
ou o escaler que o trouxe vai-se afastando no mar
até sumir de vista. [...] Suponha que, além disso,
você é um principiante, sem experiência, sem nada
para orientá-lo e ninguém para ajudá-lo, seja por-
que o homem branco está temporariamente ausen-
te, seja porque não pode, ou porque não quer per-
der tempo com você. Essa é uma descrição exata do
meu início do trabalho de campo no litoral sul da
Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visitas
que fiz às aldeias durantes as primeiras semanas;
do sentimento de desânimo e desespero após o com-
pleto fracasso de muitas tentativas obstinadas, mas
inúteis, de tentar entrar em contato mais íntimo
com os nativos e de conseguir algum material de
pesquisa (MALINOW; SKI, 1922).

Nesse pequeno trecho, percebemos o espanto que sentia o autor


ao iniciar seu trabalho de campo. Embora as observações sejam do
início do século, ainda hoje, quando os antropólogos iniciam o traba-
lho de campo, sentem-se da mesma forma sem saber por onde come-
çar, diante do desconhecido e do exótico. Na seqüência, vejamos os
apontamentos que o autor faz para realizar uma boa etnografia.
Segundo Malinowiski, os princípios metodológicos podem ser
agrupados em três tópicos principais. Primeiramente, o pesquisador
deve ter objetivos científicos e conhecer a moderna etnografia. Em
segundo lugar, deve criar condições adequadas ao trabalho, o que
significa viver entre os nativos, acompanhar seu dia-a-dia. Esse pro-
cedimento implica participar da vida da aldeia, esperar pelos acon-
tecimentos festivos, ter interesse pessoal pelo que os nativos dizem e
fazem e pelos pequenos acontecimentos na aldeia. E, por último,
deve efetuar a coleta, o registro e a manipulação dos dados. Neste
ponto, o autor sugere que o pesquisador adote o princípio de anotar
sistematicamente todas as suas observações de campo ao longo do
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 21

dia. Para isso, deve, além de andar com um bloco de notas, utilizar C
fotos ou filmes para registrar os eventos que observa. À noite, essas A
observações devem ser transcritas para um diário de campo, onde o
autor deve registrar também suas impressões e observações sobre os P
eventos dos quais participou. É a partir desses registros que o antro- Í
pólogo vai reconstruir essas culturas. T
Como você leu, o trabalho de Malinowiski consistia, portan- U
to, em descrever como viviam os povos do arquipélago de Trobriand
e quais os sentidos que davam para a sua existência. O autor nos
L
apresenta uma descrição da organização da tribo, como é sua cultu- O
ra, seu dia-a-dia, os comportamentos que são estabelecidos para o
grupo e o que eles fazem. Dessa forma, o objetivo era captar o
ponto de vista nativo, sua relação com a vida e sua visão de mundo. I
Todos esses procedimentos realizados por Malinowiski torna-
ram a pesquisa de campo muito mais detalhada, inaugurando um
procedimento metodológico denominado: observação participante.
Essa técnica caracteriza-se principalmente por um convívio prolonga-
do com o objeto de estudo, o que implica aprender a língua, apren-
der a conviver com os costumes, os rituais, aprender a participar de
eventos, aprender a ouvir e a conversar. Desse modo, o “exótico” – os
costumes estranhos dos nativos – passou a fazer sentido, tornando-se
familiar na medida em que, através da observação, compreendemos
como funciona, qual a lógica da cultura investigada. Através dessa
técnica, é possível apreender as categorias inconscientes que ordenam
o universo cultural investigado, possibilitando ao etnógrafo perceber
a cultura como uma “totalidade integrada” de significados e, assim,
proceder analiticamente à investigação da realidade cultural.
Quando Malinowiski publicou o resultado de suas pesquisas,
em 1922, a obra logo se tornou um sucesso. O livro é de leitura
muito agradável e parece trazer os nativos para perto, ou seja, sua
descrição da vida dos trobrianeses, particularmente de suas cerimô-
nias, permitiu que, mesmo quem nunca tivesse ido a Nova Guiné,
compreendesse como vivia aquele povo.
Como você estudou anteriormente, os europeus, quando co-
nheciam povos de culturas diferentes, principalmente as culturas
mais simples, as chamadas primitivas, em geral classificavam esses
povos como atrasados, ou sem cultura. O trabalho de Malinowiski
(e de vários outros antropólogos) demonstrou que todos os povos

Educação a Distância
22 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

têm cultura e que as práticas estranhas para nós devem ser analisa-
das no lugar ou no contexto em que acontecem.
Mas você devem estar pensando que ainda estamos muito dis-
tantes das realidades que enfrentamos na escola, instituição em que
se encontram pessoas com diferentes níveis sociais, vindas de luga-
res diferentes, de etnias diferentes. O que o trabalho de Malinowiski,
ou melhor, a técnica de observação participante pode nos ensinar?
Como pode nos ajudar a compreender nosso cotidiano escolar?
É claro que o campo de Malinowiski – as ilhas na Nova Guiné
– era bem diferente do campo que se apresenta hoje, não só para
você, professor ou professora, mas também para os antropólogos
contemporâneos. Embora já não existam sociedades como as que os
primeiros antropólogos estudaram, o campo de estudos da Antro-
pologia permaneceu e passou a se ocupar não apenas das sociedades
longínquas e exóticas, mas com a nossa própria sociedade. No caso
específico da Antropologia brasileira, há uma vasta produção sobre
as chamadas sociedades complexas: as cidades, as pessoas, os grupos
sociais, as instituições sociais, as associações, as mudanças de com-
portamento, os conflitos sociais e tantos outros temas tornaram-se
objeto de investigação antropológica.
A Antropologia desenvolvida no meio urbano utiliza as técnicas
da observação participante e do trabalho de campo para descrever a
vida cotidiana nas cidades, procurando compreender diferentes te-
mas como: os grupos de imigrantes que se estabeleceram no Brasil
mantendo alguns dos seus hábitos; a revolução nos costumes provocada
pelos movimentos de juventude nos anos 60; ou, ainda por que o
carnaval e o futebol são tão importantes para os brasileiros. Essas e
tantas outras questões sociais, uma vez selecionadas para a pesquisa,
levam o antropólogo a campo para observar, conversar com as pessoas
que participam desses eventos, registrar suas observações e procurar
descrever como funcionam ou qual o sentido desses eventos.
Nesse sentido, insere-se a contribuição de Malinowisk para
sua prática pedagógica. Convidamos você a olhar para o local onde
trabalha, utilizando-se das técnicas da Antropologia. O que
Malinowiski e outros autores podem nos ensinar é procurar com-
preender a realidade escolar pensando que tal realidade, como em
outras instituições sociais, produz sentidos, revela valores, normas,
mudanças e preconceitos presentes numa sociedade. Na escola, en-
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 23

contramos sujeitos de diferentes classes, etnias, sexo, idade, que C


estão em constante relação social. Esse é, portanto, um microcosmo A
social para o qual podemos tentar olhar, o qual podemos tentar
descrever e interpretar, ou seja, trata-se de um bom lugar para reali-
P
zarmos uma etnografia, uma descrição detalhada do cotidiano da Í
escola para conhecer melhor quem são os sujeitos, quais as relações, T
quais os lugares e quais as pessoas que ocupam. Fazer uma etnografia
da escola torna-se uma tarefa complexa e, ao mesmo tempo, muito U
interessante, na medida em que ela revela a realidade da escola. L
O

PARA SABER MAIS

1. Para aumentar seu conhecimento sobre o que você estu-


dou até o momento, sugerimos que assista aos seguintes filmes:

Os mistérios da humanidade;
Guerra do fogo.

2. Para leituras complementares, sugerimos:

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo:


Brasiliense, 2000.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São
Paulo: Abril Cultural, 1984 (Coleção Os Pensadores).

3. Se você realizar uma pesquisa na internet, sugerimos os se-


guintes sites:
www.abant.org.br
www.antropologia.com.br
www.filo.uba.ar/argos/antpor.htm
www.filosofia.org/gur/antropol.htm
www.cnca.gov.mx/cnca/inah/antropologia/menu.html

Educação a Distância
24 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Atividades - A antropologia cultural.

30 minutos.

1. Após a leitura desta seção, faça um breve relato sobre como


surgiu a Antropologia e sobre o seu objeto de estudo.

Comentário
Nesta atividade, você deverá ressaltar que a Antropologia surgiu no século
XIX e, nesse estágio inicial, estava preocupada em explicar a existência de se-
melhanças e de diferenças entre os seres humanos. No século XX, o objeto de
estudo da Antropologia passou a ser a preocupação com a diversidade cultural
dos seres humanos. Utilizando o método comparativo, a investigação antropológi-
ca procura explicar as semelhanças e as diferenças biológicas, psicológicas, cul-
turais e sociais, existentes entre os seres humanos.

2. Com base no estudo que você realizou nesta seção, caracte-


rize a Antropologia Cultural.

Comentário
Nesta atividade, você deverá argumentar que a Antropologia Cultural estuda
as culturas humanas, na tentativa de revelar diferentes aspectos de sua organiza-
ção no passado e no presente. Essa parte da ciência antropológica tem como
objeto de análise: a religião, a guerra, os costumes alimentares, a organização
política, a vida sexual, o parentesco etc. É a área mais ampla da Antropologia,
visto que seu estudo abrange o ser humano na dimensão cultural, e, portanto,
procura compreendê-lo, no tempo e no espaço, conhecendo suas origens, seu
desenvolvimento, suas semelhanças e diferenças.Você deverá também ressaltar
que uma das finalidades da Antropologia Cultural consiste em demonstrar a impor-
tância e a riqueza da diversidade cultural dos seres humanos.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 25

C
A
P
Í
RESUMO
T
U
L
Nesta seção, apresentamos a Antropologia O
como uma ciência que surgiu no final do século
XIX e que, naquele momento inicial, tinha como
preocupação compreender as mudanças pelas I
quais passavam as sociedades. A diversidade
cultural, característica dos grupos humanos, cons-
tituiu-se como um dos objetos de estudo da An-
tropologia: os primeiros antropólogos queriam
entender por que os grupos humanos eram tão
diferentes e, no século XX, passaram a estudar a
existência das semelhanças e das diferenças en-
tre eles. A Antropologia Cultural, por sua vez, con-
centra seu estudo nas culturas humanas procu-
rando revelar diferentes aspectos da sua organi-
zação no passado e no presente. A Antropologia
tem como objeto de estudo a religião, a guerra, os
costumes alimentares, a organização política, a
vida sexual, o parentesco entre outros aspectos
do comportamento humano. É a área mais ampla
da Antropologia e seu campo de estudo abrange
o ser humano como um ser cultural, isto é, como
um ser que produz cultura, no tempo e no espaço.

Educação a Distância
26 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

CULTURA E EDUCAÇÃO
Seção 2

Objetivos específicos:

š descrever o desenvolvimento de diferentes


concepções de cultura;
š indicar a diferença entre o etnocentrismo e
a relativização cultural, mostrando suas implica-
ções na organização escolar;
š identificar o papel da educação na forma-
ção e na socialização do ser humano.

Nesta seção, iremos fazer uma breve discussão sobre alguns


conceitos importantes para a reflexão de sua prática pedagógica:
cultura, etnocentrismo e relativização cultural. As considerações so-
bre tais aspectos pretendem mostrar que os seres humanos produ-
zem vários significados para sua existência, ou seja, constroem cul-
turas e valores no contexto das relações sociais estabelecidas no
cotidiano. Nesse sentido, podemos também fazer uma reflexão so-
bre as diferentes culturas e atitudes que fazem parte do dia-a-dia da
escola, porque o conhecimento sobre essas diferenças é importante
para combater as práticas etnocêntricas que teimam em transfor-
mar as diferenças em desigualdades.
Como você estudou, desde o século XIX tem ocorrido uma preo-
cupação sistemática em estudar as culturas humanas, com o objetivo
de compreender as sociedades modernas e industrializadas, quanto com
o objetivo de conhecer a realidade dos povos não-industrializados, aqueles
que foram “contactados” devido ao desenvolvimento do capitalismo.
Essa preocupação, contudo, não produziu uma definição clara e aceita
por todos a respeito do que seja cultura.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 27

MAS, AFINAL, O QUE É CULTURA? C


A
Ao iniciar esta análise, convém dizer que existe uma variedade P
de definições de cultura, apresentadas tanto pelo senso comum como
por diferentes ciências e cientistas. Conforme Kelle e Kovalzón Í
(1985), por exemplo, a literatura ocidental até o início dos anos T
1970, apresentava cerca de 250 concepções de cultura. Por essa
razão, é que entendemos muita “coisa” por cultura. Comumente,
U
porém, cultura é associada a estudo, educação, formação escolar. L
Vejamos um exemplo disso através das seguintes expressões: “Felipe O
não tem cultura porque não sabe ler nem escrever” ou “Cláudia é
muito culta, pois estudou muito e lê muitos livros”.
I
O conceito de cultura também está associado a manifestações
artísticas, como o teatro, a música, a pintura, a escultura. Como
também está relacionado à nacionalidade ou a grupos étnicos, como
quando falamos da cultura alemã, da cultura açoriana, da cultura
indígena, da cultura africana, da cultura judaica, da cultura muçul-
mana, referindo algumas características desses povos. Cultura, ain-
da, pode ser entendida, como aquilo que diz respeito a festas e
cerimônias tradicionais, a lendas e crenças de um povo, ou à sua
maneira de se vestir, de alimentar-se, ou ao seu idioma.
A partir dessa discussão, podemos iniciar a nossa exposição so-
bre cultura, com uma contribuição de Marilena Chauí (1989). Essa
autora afirma que o termo cultura vem de colore, expressão latina, e
significa o cultivo de plantas ou tudo aquilo relacionado à terra, ou
ao cuidado com ela para torná-la habitável e agradável aos humanos.
Já no século XVIII, a palavra cultura passou a ser relacionada à
idéia de civilização e, conseqüentemente, à noção de progresso. Com
isso, foi associada à idéia de conhecimento acumulado, refinamen-
to, desenvolvimento dos povos.
Essa noção de cultura relacionada à civilização foi introduzida
na Antropologia, em 1865, por Edward Tylor. Esse autor buscou
apoio nas ciências naturais, visto que considerava a cultura como
um fenômeno natural, e afirmou que: “cultura, tomada no seu sen-
tido etnográfico amplo, é um complexo que inclui conhecimento,
crenças, arte, moral, lei, costumes ou qualquer outra capacidade ou
hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”.

Educação a Distância
28 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

(TYLOR,1958). Esse conceito de cultura recebeu influência do


evolucionismo unilinear4, lançado na Europa por Charles Darwin
(1809 – 1882) na obra “A origem das espécies”. O que isso signifi-
ca? Significa que Tylor acabou por aplicar às sociedades humanas o
4 A concepção de
cultura com base no mesmo princípio da natureza. Dessa forma, para o autor,
evolucionismo
unilinear considera
que todas as culturas as instituições humanas eram tão distintamente
deveriam passar
pelas mesmas estratificadas quanto a terra sobre a qual o homem
etapas de evolução, vive. Elas se sucedem em séries substancialmente
o que tornaria
possível classificar uniformes por todo o globo, independentemente de
cada sociedade etnia e linguagem - diferenças essas que são compa-
humana conforme
uma escala que iria
rativamente superficiais, mas moduladas por uma
da menos desenvol- natureza humana semelhante, atuando através das
vida para a mais
desenvolvida.
condições sucessivamente mutáveis da vida selva-
gem, bárbara e civilizada (MERCIER, 1974).

Esse princípio de cultura evolucionista concebe a evolução da


humanidade de uma maneira uniforme. Tal evolução aconteceria
de tal forma que todos os grupos humanos teriam de percorrer as
mesmas etapas que já tinham sido percorridas pelas “sociedades
mais avançadas”. Essa abordagem unilinear, de uma linha única,
considerava que cada sociedade seguiria o seu curso histórico atra-
vés de três estágios: selvageria, barbarismo e civilização. Qual o pro-
blema dessa definição?
O problemático nessa concepção de cultura evolutiva5 está no
5 O conceito de fato de ela partir do princípio de que todas as culturas humanas
cultura evolutiva está
ligado ao aspecto passariam pelas mesmas fases de evolução e que, portanto, existiria
orgânico, ao desen- um único caminho “natural” para o progresso que, para os euro-
volvimento da
dimensão biológica. peus, significava o enquadramento em seu sistema econômico, po-
lítico, social e cultural do final do século XIX e do início do século
XX. Essa idéia defendia a existência de uma história universal para
um homem universal. Isso consiste no pressuposto de que todos os
povos teriam necessariamente que passar pelos mesmos caminhos
de desenvolvimento tecnológico e cultural, e que as diferenças cul-
turais seriam uma conseqüência do atraso em que esses povos se
encontravam na marcha em direção ao progresso.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 29

Outro problema é que essa concepção de cultura estava mais C


preocupada com a igualdade existente na humanidade do que com a A
diversidade cultural. Por essa razão, acabou considerando a existência
da diversidade como o resultado da desigualdade de estágios existen- P
tes no processo de evolução. Com isso, estabelece-se, grosso modo, Í
uma escala de civilização que simplesmente coloca as nações européi- T
as em um dos extremos do desenvolvimento e as tribos “selvagens”,
ou povos ditos longínquos, no outro extremo, o de povos não-desen- U
volvidos. Já o restante da humanidade teria de ser classificada entre L
esses dois limites. Ao se estabelecer a escala evolutiva da humanida- O
de, efetivava-se um processo discriminatório através do qual as dife-
rentes sociedades humanas eram classificadas hierarquicamente, de
modo a estabelecer um evidente privilégio às culturas européias. Esse I
tipo de comportamento acabou servindo para justificar o colonialismo
europeu na África, na Ásia e nas Américas, visto que os europeus
acreditavam que, com a colonização, estariam levando progresso e
civilização aos povos “primitivos” e “atrasados”.
Antropólogos contemporâneos como Frans Boas (1858 – 1949),
Bronislaw Malinowiski (1884 – 1942) e Margareth Mead (1935)
buscaram reagir contra essa noção de cultura ao considerarem que
não é possível falarmos de cultura no singular, mas de culturas e que,
mais do que isso, conceberam que todos os grupos humanos constro-
em suas existências baseados em valores, normas, maneiras de agir,
padrões de comportamento, enfim, baseados em sua cultura.
Em oposição à concepção evolucionista de cultura, Frans Boas
(1896) desenvolveu a teoria do particularismo histórico, segundo a
qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos
diferentes eventos históricos pelos quais os povos passam, de forma
que não pode ser reduzida à estrutura dos três estágios, selvageria,
barbarismo e civilização.
Malinowiski (1922), ao pesquisar o povo Trobriand da
Melanésia, e Franz Boas, realizando os seus estudos sobre os índios
norte-americanos, conceberam que os grupos humanos que estuda-
vam não eram sobreviventes do passado. Não eram “povos primiti-
vos”, mas grupos humanos que tinham suas próprias regras em rela-
ção a casamento, religião, alimentação, vestimenta etc. Possuíam
uma língua própria e uma forma específica de educar os filhos e as
filhas e de estabelecer relações de parentesco. E que, portanto ti-

Educação a Distância
30 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

nham uma história particular e uma forma diferente de viver e de


interpretar o mundo; possuíam um sentido, uma lógica própria que
deveria ser compreendida a partir da visão dos próprios grupos.
Assim, a principal contribuição desses antropólogos foi con-
ceber que as diferenças entre as culturas não eram o resultado de
um processo evolutivo linear e universal, mas, sim, de modos parti-
culares como os homens e as mulheres organizaram as suas existên-
cias e deram uma configuração própria às suas vidas em sociedade.
Já o antropólogo estadunidense Clifford Geertz, ao buscar uma
definição de cultura, considerou que ela é um sistema de símbolos
e significados e deve ser considerada como um “conjunto de meca-
nismos de controle, planos, receitas, regras instruções (a que os téc-
nicos de computadores chamam “programa”) para governar o
comportamento”(GEERTZ, 1989). Nessa perspectiva, todos os se-
res humanos estão geneticamente aptos para receberem um progra-
ma a que chamamos cultura. O autor afirmou que um dos mais
significativos fatos da existência humana está na “constatação de
que todos nascemos com um equipamento para viver mil vidas, mas
terminamos no fim tendo vivido uma só!” (GEERTZ, 1989) Isso
significa que a criança, ao nascer, está apta a ser socializada em
qualquer cultura existente, mas essa possibilidade é limitada pelo
contexto real e específico em que de fato ela crescer.
Assim, toda a nossa ação social, seja na esfera do trabalho, das
relações conjugais, da produção econômica e artística, do sexo, da
religião, das formas de dominação e solidariedade, tudo nas cultu-
ras humanas é constituído segundo códigos e convenções a que cha-
mamos cultura. E estudar a cultura é, portanto, estudar um código
de símbolos partilhados pelos membros dessa cultura.
Um outro antropólogo estadunidense, Alfred Kroeber (1879
– 1960), em seu artigo “O Superorgânico”, mostrou que, graças à
cultura, a humanidade distanciou-se do mundo animal. Mais do
que isso, pela cultura o homem passou a ser considerado um ser que
está acima de suas limitações orgânicas.
Não podemos ignorar que o ser humano, como descendente
da ordem dos primatas, dependa muito do seu sistema biológico.
Para se manter vivo, por exemplo, independentemente do sistema
cultural ao qual pertence, o homem precisa satisfazer um número
específico de funções vitais, como a alimentação, o sono, a respira-
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 31

ção, a atividade sexual etc. Mesmo essas funções, que são comuns a C
toda humanidade, são satisfeitas de maneira diferente nas várias A
culturas, portanto é essa grande variedade de realização de um nú-
mero tão pequeno de funções que faz com que o ser humano seja
P
considerado um ser predominantemente cultural. Í
Kroeber (1989) ainda acrescenta que o ser humano é o resul- T
tado do meio cultural em que foi socializado. Ele é o herdeiro de U
um longo processo acumulativo que reflete o conhecimento e a
experiência adquirida pelas inúmeras gerações que o antecederam.
L
E o manuseio adequado e criativo desse patrimônio cultural favore- O
ce as inovações e as invenções, as quais, portanto, não são os resulta-
dos das ações isoladas de um gênio, mas das construções que repre-
sentam o esforço de toda uma comunidade.
I
Um último ponto de vista sobre cultura, que apresentamos
aqui, refere-se à concepção formulada pelo Materialismo Histórico-
dialético, para o qual existe uma relação imediata entre cultura e
atividade humana. Com isso, estamos definindo cultura como nor-
mas, idéias, valores, que são determinados historicamente e passa-
dos às gerações futuras, ou seja, a cultura é criada pelos seres huma-
nos, deriva da produção material e espiritual, implica as normas,
valores e mecanismos que regulam as relações humanas. Como a
cultura é produto e resultado da atividade dos seres humanos, ela é
estabelecida como um modo próprio de seu desenvolvimento e deve
ser examinada como uma união da atividade material e espiritual.
Conforme Kelle e Kovalzón (1985), essa unidade da atividade ma-
terial e espiritual apresentada pelo Materialismo Histórico-dialético
é que estabelece a base da existência do homem e da sociedade,
portanto não há uma cultura material e uma cultura espiritual,
assim como não é possível separar o trabalho físico do trabalho
intelectual. É por isso que as sociedades e a cultura que caracteriza
tais sociedades se transformam no desenvolver do processo históri-
co, por isso não podemos considerar a cultura como um dado está-
tico, ou seja, que permanece sempre inalterado. É a partir das rela-
ções sociais e do contexto histórico em que vive um determinado
povo que a cultura se transforma.
Gostaríamos, ainda, de “dizer” que o ser humano não nasce
dotado das aquisições históricas da cultura. Isso resulta do desen-
volvimento das gerações humanas, não é uma aquisição incorpora-

Educação a Distância
32 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

da às disposições naturais dos seres humanos, mas incorporada ao


mundo que o rodeia, às grandes obras da cultura humana. E, con-
forme Alexis Leontiev (1959), somente apropriando-se da cultura
no decurso da sua vida é que os seres humanos adquirem proprieda-
des e faculdades verdadeiramente humanas. Esse é um processo
que coloca o ser humano, “por assim dizer, nos ombros das gerações
anteriores e eleva-o muito acima do mundo animal”.

VOCÊ JÁ OUVIU FALAR EM ETNOCENTRISMO E


RELATIVIZAÇÃO CULTURAL?

Você estudou, até o momento, que os homens sempre se preo-


cuparam com a existência de diferenças. Em alguns momentos his-
tóricos e ainda hoje, ao se deparar com diferentes formas de viver e
de ver o mundo, os homens acabaram por atribuir alguns juízos de
valor ao universo que os cerca. Essa observação nos remete a um
conceito importante: o etnocentrismo.
Conforme Rocha (1994), o etnocentrismo pode ser definido
como uma visão de mundo em que o nosso próprio grupo é tomado
como centro de tudo, visão segundo a qual todos os outros grupos
são pensados e sentidos através de nossos valores, nossos modelos,
nossas definições do que seja a existência. No plano intelectual, o
etnocentrismo pode ser identificado na dificuldade de pensarmos a
diferença; já no aspecto afetivo, é percebido nos sentimentos de
estranheza, de medo e de hostilidade.
A questão cultural do etnocentrismo pode ser manifestada pela
busca por conhecer os mecanismos, as formas, os caminhos e as
razões pelos quais tantas e tão profundas distorções se perpetuam
nas emoções, nos pensamentos, nas imagens e nas representações
que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós. Como uma
espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica, temos o exem-
plo do choque cultural. Em um extremo, está um grupo, o do “eu”,
o “nosso” grupo, que se alimenta de forma igual, veste-se de manei-
ra semelhante, gosta de coisas parecidas, vivencia problemas da mes-
ma natureza, acredita nos mesmos deuses, constitui matrimônio de
igual forma, habita no mesmo estilo de residência, tem uma mesma
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 33

concepção de poder e atribui à vida um significado comum e seme- C


lhante, sob muitas formas, aos componentes desse grupo. De re- A
pente, porém, deparamo-nos com o “outro”, o grupo do “diferen-
te” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou, quando P
as faz, é de forma tal que não a reconhecemos como possível. E Í
muito mais, esse grupo do “outro” sobrevive à sua maneira, gosta de T
sua maneira de ser, porque está no mundo e, ainda que diferente,
existe e tem o direito de ser e de existir tal como é. U
O etnocentrismo se estabelece quando o grupo do “eu” trans-
L
forma a sua visão de mundo como a única possível ou, mais O
disfarçadamente (se houver necessidade), concebe tal visão como
sendo a melhor, a natural, a superior, a certa. Nisso, o grupo do
“outro” passa a ser reconhecido como o engraçado, o absurdo, o I
anormal, ou o ininteligível.
O etnocentrismo de fato é um julgamento de valor da cul-
tura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”. Isso faz
com que o “outro” e sua cultura, os quais são o foco de nosso
olhar social, passem a ter apenas uma representação, uma ima-
gem distorcida e manipulada da maneira como entendemos a
realidade. Negamos ao “outro” o mínimo de autonomia necessá-
ria para que ele possa falar de si mesmo. E, por não poderem
dizer algo sobre si mesmos, os diversos “outros” passam a ser
representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas
ideológicas de determinados momentos.
Nesse contexto, a sociedade do “eu” é representada como a
melhor, a superior. É representada como o modelo de cultura e de
civilização por excelência. É o espaço em que existe o saber, o traba-
lho, o progresso. Já a sociedade do “outro” é concebida como atra-
sada e, portanto, o espaço da natureza. Aos “outros” diz-se que são
selvagens, bárbaros. São qualquer coisa, menos humanos, pois, sob
essa ótica, tal condição nos é exclusiva.
As nossas atitudes frente a grupos sociais com os quais convive-
mos nas grandes cidades estão, muitas vezes, repletas de resquícios
6 Entendemos por
de atitudes etnocêntricas. Muitas vezes rotulamos e aplicamos este- “estereótipos” os
reótipos6 para nos dirigir às diferenças que confrontamos em nosso clichês ou chavões
aplicados a gestos
cotidiano. Um exemplo disso são as idéias etnocêntricas dirigidas às ou comportamentos
“mulheres”, aos “negros”, aos “empregados”, aos “colunáveis”, aos considerados
estranhos.
“doidões”, aos “surfistas”, às “dondocas”, aos “velhos”, aos “caretas”,

Educação a Distância
34 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

aos “vagabundos”, aos gays e a todos os demais “outros” com os


quais temos familiaridade. Isso é uma espécie de “conhecimento”,
um “saber” baseado em formulações ideológicas, saber que, no fun-
do, transforma a diferença pura e simples num juízo de valor peri-
gosamente etnocêntrico.
Existe, todavia, uma atitude que se contrapõem ao etnocentrismo:
uma perspectiva relativizadora em relação às diferenças culturais.

MAS O QUE É RELATIVISMO CULTURAL?

O relativismo cultural é uma nova maneira de se posicionar


diante das diferenças culturais, e isso trouxe uma mudança aos
estudos antropológicos. A partir do momento em que tais estudos
procuraram não apenas conhecer de perto os costumes dos dife-
rentes povos, mas buscam estudá-los para principalmente
compreendê-los conforme os seus próprios valores, começamos a
imprimir uma atitude relativizadora. Isso permitiu conhecer e en-
tender o significado de diferentes costumes para melhor conviver
com aquilo que às vezes nos parece tão estranho e exótico.
Relativizar, portanto, é não transformar a diferença em hierar-
quia, não valorar os seres humanos com base em critérios de
superiorioridade e de inferioridade, ou conceber diferentes cultu-
ras sob uma perspectiva dicotômica de bem e mal; é preciso vê-las
sob sua dimensão de riqueza, o que decorre da diferença.
Quando vemos que as verdades da vida são menos uma
questão de essência das coisas, e mais, uma questão de posição:
estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto
não na sua dimensão absoluta, mas no contexto em que aconte-
ce, estamos relativizando. Quando compreendemos o “outro”
sob seus próprios valores e não tendo como parâmetro os nossos
valores, estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas
do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento,
capaz de ter um fim ou uma transformação. Isso significa ver as
coisas sob uma perspectiva inter-relacional. Ver que a verdade
está mais no olhar do que naquilo que é olhado.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 35

Assim, a diferença deixa de ser uma ameaça e passa a ser C


uma alternativa. A diferença deixa de ser a hostilidade do “outro” A
e passa a ser a possibilidade de o “outro” abrir-se para o “eu”. Com
isso, o ser da sociedade do “eu” e o ser da sociedade do “outro”
P
passam a estar mais perto do espelho, no qual as diferenças se Í
olham como escolha, esperança e generosidade. Dessa forma, tais T
diferenças passam a estar bem mais distantes das hierarquias que
produzem formas de dominação. U
É importante, no entanto, destacar, que defender uma perspec-
L
tiva relativizadora não significa dizer que tudo é relativo. Como des- O
taca Fonseca (1999), ninguém acha bonito ser pobre, visto que nada
justifica a falta de opções, ou a carência em que vive a maior parte da
população brasileira. Assim, como nem todas as tradições da cultura
I
popular são apreciáveis, tampouco devemos recomendar que elas se-
jam rigorosamente preservadas. Relativização cultural, portanto, pas-
sa a ser uma viagem de mão-dupla em que o conhecimento de outros
costumes, de outra cultura, deve nos levar a repensar os nossos pró-
prios valores e conceitos, visto que eles não são os únicos.
Assim como a concepção de cultura e de percepção da dife-
rença transformou-se ao longo do processo histórico, a educação
também não é a mesma em todos os tempos e em todas sociedades.7
Em Atenas, por exemplo, a educação visava a formar cidadãos de 7 Você estudou
espíritos delicados, prudentes, sutis, embebidos da graça e da har- sobre essas ques-
tões na Disciplina
monia, capazes de gozar o belo e os prazeres da pura especulação; já de História da
em Roma, na Antigüidade, desejava-se que as crianças se tornassem Educação.

homens de ação, apaixonados pela glória militar, indiferentes no


que tocasse às letras e às artes. Na Idade Média, a educação era
cristã antes de tudo; na Renascença, a educação assumiu um caráter
leigo, voltado para os estudos literários e humanísticos e, na
Modernidade, a educação esteve voltada para as contribuições cien-
tíficas e para a adequação das pessoas às necessidades do capital.
Atualmente, se compararmos as diversas sociedades, veremos
que os objetivos da educação são diferentes: entre os indígenas do
Brasil, por exemplo, a educação é pragmática, voltada para o apren-
dizado de funções que o indivíduo vai desenvolver quando adulto;
na sociedade capitalista, predomina a orientação individualista, em
que a competição é um processo básico; na sociedade socialista,
parece prevalecer a orientação coletiva, com ênfase à solidariedade

Educação a Distância
36 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

e à cooperação para objetivos comuns. Mesmo no interior de uma


mesma sociedade, existem vários tipos de educação. Na sociedade
indiana, por exemplo, a educação varia de acordo com as castas.
Atualmente, em nossa sociedade, podemos observar que a educa-
ção da cidade não é a mesma do campo, que varia também de
acordo com a profissão para a qual o indivíduo é preparado, ou de
acordo com sua religião etc.
Apesar de todas essas distinções, há um aspecto que parece ser
comum a todas as formas de educação: inculcar nas novas gerações
idéias, sentimentos e práticas que, segundo a sociedade, são capazes
de transformar essas crianças em adultos.
Atualmente, a escola é a instituição especializada na educação
das novas gerações. Sua finalidade específica consiste em colocar à
disposição dos educandos, mediante atividades sistemáticas e pro-
gramadas, o patrimônio cultural da humanidade. Pressupomos que
esse patrimônio, no que consiste de mais importante, esteja con-
centrado nas matérias escolares, entretanto nem sempre isso acon-
tece, visto que o currículo escolar, geralmente, não inclui as
experiências humanas das diferentes referências culturais, mas ape-
nas aquelas que mais interessam aos grupos dominantes e represen-
tam um padrão de comportamento e de civilização a ser seguido.
Além disso, a escola reflete, em grande parte, as significativas
desigualdades da organização social em que está inserida: uns poucos
cidadãos de nível socioeconômico mais elevado, ultrapassam todos os
níveis do ensino escolar, enquanto a grande maioria, filhos de traba-
lhadores, não consegue vencer as barreiras e perde-se pelo caminho,
principalmente durante as séries iniciais. Nós, educadores compro-
metidos com a mudança social, temos de lutar em prol da escolarida-
de para a cidadania, para que nossos educandos recebam formação
escolar adequada e, com isso, possam atingir melhores níveis de cons-
ciência social, inclusive se concebendo como sujeitos históricos, a
ponto de passar a viver reconhecendo, respeitando e sabendo com-
partilhar suas vivências com os outros, com os diferentes.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 37

C
A
PARA SABER MAIS
P
1. Para aumentar seu conhecimento sobre o que você estu-
Í
dou até o momento, sugerimos que assista aos seguintes filmes: T
A tribo da caverna do urso; U
Os deuses devem estar loucos; L
E a luz se fez. O
2. Para leituras complementares, sugerimos:

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. I


13 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

3. Se você realizar uma pesquisa na internet, sugerimos os se-


guintes sites:

www.mnaah.perucultural.org.pe
www.mec.gov.br/sef/articul/projetos.shtm
www.geocities.com/complexidade/marioka.htlm
www.unesc.org/delegates/brasil/pt/diversidade.shtml

Atividades - Cultura, etnocentrismo e relativização cultural.

45 minutos.

1. Após a leitura do texto sobre as definições de culturas, pesquise


sobre as concepções de cultura que permeiam sua escola e estabeleça
uma diferenciação entre o conceito antropológico de cultura e as
noções que o senso comum alimenta sobre esse mesmo tema.

Educação a Distância
38 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Comentário
A sua resposta deve comentar as contribuições de cultura apresentadas por
Tylor, Boas, Malinowski, Geertz, Kroeber e pelo Materialismo Histórico-dialético,
em oposição às noções que associam cultura a estudo, formação escolar, mani-
festações artísticas e, ainda, a festas, cerimônias tradicionais, lendas ou a carac-
terísticas de grupos étnicos.

2. Caro educador-aluno, faça uma diferenciação entre o


etnocentrismo e a relativização cultural. Em seguida, argumente sobre
a importância do debate acerca desses dois conceitos, no que diz respei-
to à análise e ao convívio com as diferenças no cotidiano escolar.

Comentário
Você deverá considerar que o etnocentrismo concebe o próprio grupo como o
centro e o único referencial de avaliação dos outros. Já a relativização cultural
consiste em compreender os padrões sociais como relativos ao grupo a que per-
tence o indivíduo. Esse debate é importante no sentido do reconhecimento e do
melhor convívio com as diferenças presentes na escola.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 39

C
A
P
RESUMO Í
T
U
L
Nesta seção, tratamos basicamente do conceito de cultura. O
Vimos que a cultura é um conceito complexo, porque sobre ele
existe uma variedade de definições. Ressaltamos a existência
das definições apresentadas pelo senso comum, o debate sobre I
cultura apresentado pela Antropologia e pelo Materialismo His-
tórico-dialético. Na Antropologia, destacamos basicamente o con-
ceito de cultura evolucionista apresentado por Tylor, que relacio-
na a cultura à civilização, assim como destacamos as contribui-
ções de Boas, Malinowisk e Geertz. Boas, Malinowisk, mediante
as suas pesquisas de campo, conceberam que as diferenças en-
tre as culturas não eram o resultado de um processo evolutivo
linear e universal, mas, sim, de modos particulares como os ho-
mens e as mulheres organizaram as suas existências. Já o antro-
pólogo Geertz, ao apresentar a sua definição de cultura, consi-
derou que ela é um sistema de símbolos e significados e que
deve ser considerada como um “conjunto de mecanismos de con-
trole, planos, receitas, regras instruções (a que os técnicos de
computadores chamam de programa) para governar o comporta-
mento”. Segundo o Materialismo Histórico-dialético, a cultura é
produto e resultado da atividade produtiva dos seres humanos
sobre o mundo. E como a produção não se separa da própria vida
dos homens e das mulheres, a cultura tem de ser concebida como
uma união da atividade material e espiritual.
Reconhecemos que a nossa cultura é construída no contexto
das relações sociais e, a partir disso, convidamos você, educador-
aluno, a refletir sobre as diferentes culturas que fazem parte do
cotidiano da escola, porque entendemos que o conhecimento des-
sas diferenças é importante para combater as práticas etnocêntricas
que temem em transformar as diferenças em desigualdades.

Educação a Distância
40 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

RAÇA, ETNIA E IDENTIDADE ÉTNICA


Seção 3

Objetivos específicos:

š caracterizar a diferença entre racialismo e


etnicidade, no contexto histórico em que tais con-
ceitos foram formulados;
š explicar o que é raça, etnia e identidade ét-
nica e sua relação com as doutrinas raciais, o pre-
conceito, os estigmas e os estereótipos.

Nas seções anteriores, você estudou conceitos importantes para


pensar sua prática pedagógica, como etnografia, cultura,
etnocentrismo e relativização cultural. Nesta seção, vamos continu-
ar nossa discussão sobre como, a partir do século XIX, o Ocidente
procurou compreender e administrar as múltiplas culturas e os po-
vos com quem pas-
sou a travar relações
e de como essas vi-
sões ainda estão pre-
sentes em nosso co-
tidiano e acabam
por se refletir em
nossa prática peda-
gógica. Nesse senti-
do, dois conceitos
são importantes:
racialismo e
“Operários” – Tarsila do Amaral (1933).
etnicidade.
Podemos dizer que raça é um conceito recente, construído no
final do século XVI. Primeiramente, o conceito de raça remeteu
para a idéia de um conjunto de pessoas ligadas por uma origem
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 41

comum, ou seja, pessoas que vêm de um mesmo local. Já no século C


XIX, o conceito de raça passou a adotar uma conotação biológica, A
ou seja, raça passou a ser usada no sentido de tipo de seres humanos
que se diferenciam por causa de características físicas e por capaci- P
dades mentais. Em finais do século XIX, o conceito de raça se mo- Í
dificou, passando a significar subdivisões da espécie humana que se T
diferenciam porque seus membros estão isolados de outros indiví-
duos pertencentes à mesma espécie. Em todos esses casos, o concei- U
to de raça esteve relacionado com uma característica estritamente L
biológica. Esse biologismo, no entanto, gerou problemas sérios à O
humanidade, e o conceito passou a ser recusado pela Biologia no
pós-guerra, como resultado efetivo da tragédia ocasionada na Se-
gunda Guerra Mundial, com a emergência principalmente do Na- I
zismo. As diferenças biológicas e a sua relação direta com inferiori-
dade/superioridade possibilitaram que povos inteiros, como os
judeus, fossem submetidos a tragédias históricas como o genocídio
promovido pelos nazistas. Por isso mesmo, depois da Guerra, alguns
cientistas sociais passaram a considerar raça um grupo de pessoas
que, numa dada sociedade, é socialmente diverso de outros grupos
em virtude de certas diferenças físicas. A atribuição direta à genéti-
ca foi suprimida e, em seu lugar, foi trazida à tona a idéia de que
essas características físicas têm um sentido social reforçado através
de crenças, valores e atitudes. Na falta de marcas físicas, esses gru-
pos deveriam ser chamados de “étnicos”.
Segundo Rex (1983), o conceito de raça sistematiza, na verda-
de, duas condições: de igualdade estrutural entre grupos humanos
convivendo numa mesma região e de uma ideologia que legitima as
desigualdades, as quais, por sua vez, são justificadas pela naturali-
zação da ordem social.
Mas o que significa tudo isso?
Isso significa dizer que o conceito de raça, isolado, não nos diz
nada. Não nos diz, porque ele é um conceito construído em
determinado contexto e sob a ação de determinadas ideologias. Dessa
maneira, só podemos entender esse conceito se o relacionamos com
as desigualdades raciais que o justificam, no nosso caso, se o
relacionamos com o racismo e com as relações raciais. Precisamos
saber qual é o campo ideológico em que o conceito de raça atua.

Educação a Distância
42 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Assim, é mais interessante utilizarmos o conceito de racialismo,


que é uma teoria relacional, na medida em que considera que exis-
tem, entre os grupos humanos, características hereditárias que os
diferenciam, as quais são partilhadas por membros da humanidade,
permitindo a tais membros dividirem-se em um número pequeno
de raças, de maneira a compartilharem determinados traços e ten-
dências que não existem em outra raça. Esses traços, no entanto, são
dotados de uma essência racial que ultrapassa características físicas
e remete diretamente à cultura, a regras de pertença grupal que
dependem da história e da localização geográfica e social.
Assim, em resumo, raça seria um sistema de marcas físicas –
hereditárias – associadas a uma essência, que consiste em valores
morais, intelectuais e culturais, ou seja, apesar de o conceito de
racialismo remeter para a idéia de sangue, seu veículo transmissor é
a cultura, o que significa que essas regras de transmissão podem
variar de acordo com os diferentes racialismos.
Mas o que quer dizer tudo isso?
Isso quer dizer que o conceito de raça só faz sentido no âmbito
de uma ideologia, ou seja, relacionado aos sentidos subjetivos que
as pessoas dão às suas ações. Isso quer dizer que o conceito de raça
só tem significação sociológica quando sai do caráter exclusivamen-
te biológico e se relaciona ao comportamento dos homens uns em
relação aos outros, quando a raça é sentida como uma característica
comum, não como simples parentesco, mas como pertença social-
mente condicionada a relações de dominação.
Ainda assim, raça “tem muito a ver” com disposições raciais
hereditariamente transmissíveis e com hábitos de vida ligados à tra-
dição. Raça é uma forma de carisma ou estigma grupal baseado na
crença de uma herança genética que define o valor moral, intelec-
tual e psicológico de um indivíduo ou grupo. Segundo Guimarães
(1999), esse tipo de estigma é predominante na situação social dos
negros sul-africanos e americanos, por exemplo. Segundo ele, não
se pode viver nos EUA sem pertencer a uma raça.
Já a pertença étnica, ou a etnia, refere-se a um tipo diferente
de sociabilidade marcada pelos vários estilos de vida que determi-
nam as hierarquizações sociais. Essas características, no entanto, só
têm legitimidade quando a formação dos grupos étnicos está sus-
tentada no fato de que existem grupos estranhos a esses costumes.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 43

Quais fatores reforçam os grupos étnicos? C


Segundo Max Weber, cuja teoria você já estudou no Caderno A
de Sociologia I, os fatores que formam as comunidades étnicas são a P
língua e a religião. São elas que autorizam essas comunidades a com-
partilharem um mesmo código e as mesmas regras de conduta e de
Í
comportamento de vida. Ainda assim, podem existir, dentro de uma T
mesma comunidade étnica, dialetos e religiões que diferenciam tais U
comunidades, e isso nós podemos ver claramente nos países que fo-
ram colonizados, como é o caso de muitos países africanos.
L
O
O grupo étnico não se baseia em traços, mas nas relações soci-
ais, nos construtos sociais dos significados que são atribuídos à pro-
dução, à manutenção e ao aprofundamento das diferenças. I
A identidade étnica, que se liga à vida em comum étnica,
constrói-se a partir da diferença, ou seja, os indivíduos atraídos a
determinado grupo só se sentem pertencentes porque repudiam
aqueles que são percebidos como intrusos, como estrangeiros. As-
sim, não é o isolamento que faz as pessoas se reunirem em grupos
étnicos, mas o reconhecimento da diferença em outros indivíduos
que, em última instância, estabelecem fronteiras étnicas.
O conceito de etnicidade nasceu no campo da Sociologia norte-
americana do início do século XX ligada à teoria assimilacionista, ou
seja, ao processo de incorporação dos imigrantes às cidades norte-
americanas. Assimilação tem a ver com o estágio em que, depois do
conflito e da competição entre as relações étnicas e raciais, passamos
a perceber uma interpenetração e uma fusão que permitem a integração
de diferentes grupos em uma vida cultural em comum. Segundo essa
8 A transculturação
teoria, a assimilação estaria completada quando os nativos e os es- do étnico
trangeiros compartilhassem os mesmos sentimentos, as mesmas lem- corresponde a um
enfrentamento entre
branças e as mesmas tradições. A tendência, segundo autores dessa os imigrantes e a
teoria como Park e Burgess, seria a assimilação completa dos imigran- sociedade que os
acolhe, processo em
tes, acompanhada do desaparecimento dos grupos minoritários. Esse que a interação
movimento é chamado de a transculturação do étnico.8 entre esses parcei-
ros pressupõe o
O que vimos acontecer na realidade, no entanto, não foi a aculturamento dos
imigrantes e suas
tendência ao universalismo e à padronização dos modos de vida aceitação por essa
pregados pelas teorias assimilacionistas. Ao invés de se reforçarem mesma sociedade
que os acolhe.
através dos tempos, esses modos de vida foram perdendo vigor com

Educação a Distância
44 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

9 Sobre a “Socieda- a emergência da sociedade global.9 Segundo Gordon (1964), a per-


de Global” reveja o tença étnica não perdeu vigor na sociedade norte-americana com o
Caderno 2 de
Sociologia. advento da modernização, do contrário as subsociedades mantive-
ram-se sustentadas nas diferenças culturais e na identidade étnica
que forneciam aos membros uma rede de organização e de relações
informais disponível para todos os setores da vida social, ou seja, a
aculturação prevista na sociedade contemporânea não se realizou.
Mesmo que as diferenças culturais tenham perdido um pouco de
sua nitidez e mesmo que algumas diferenças foram niveladas pelas
instituições e pelo modo de vida da sociedade moderna, a despeito
desse processo de racionalização e de uniformização cultural, as an-
tigas diferenças étnicas não só não foram abolidas como se torna-
ram fonte de ações coletivas.10
A sociedade global, por fim, salientou ainda mais a consciência
10 Entre 1956 e
1966, os negros étnica como maneira de valorizar o pluralismo cultural diante de
americanos, além uma sociedade que busca a uniformização. As sociedades passaram a
dos movimentos
pelos direitos civis, ser valorizadas também por um composto de grupos que primam
foram assumindo, pela identidade cultural, grupos que deixam de ser considerados imi-
também, o caráter de
tomada de consciên- grantes para assumirem o status de componentes da sociedade.
cia, o que impulsio-
nou segmentos Assim, no “Novo Pluralismo”, a importância dos grupos étnicos
brancos entre é acentuada na definição das identidades sociais e no valor do
feministas, estudan-
tes, gays e lésbicas, pertencimento a determinado grupo étnico. A identidade étnica pas-
ativistas antiguerra, sa a ser uma das bases para a participação na vida política e social.
a começarem a lutar
por suas demandas
e necessidades.
A partir de 1970, houve uma verdadeira etnização dos grupos
Você estudará sobre na sociedade norte-americana. A reivindicação dos negros por seu
essa questão no
próximo capítulo.
reconhecimento como grupo étnico, como afro-americanos, fez com
que os brancos também reivindicassem a sua etnicidade e se identi-
ficassem como wasp – brancos, anglo-saxões, puritanos – renunci-
ando seu estatuto privilegiado de não-étnicos. Essa confrontação
visou a promover a redução das tensões raciais entre negros e bran-
cos. A ideologia da etnicidade correspondeu, então, na década de
1970, a um movimento ideológico dotado de uma dimensão essen-
cial e universal da identidade humana.
Dessa maneira, em resumo, podemos dizer que a etnia refere-
se a um estigma baseado na identidade cultural, regional ou nacio-
nal de grupos. Segundo Guimarães (1999), essa caracterização é
predominante na África do Sul por causa da herança do Apartheid,
que pretendeu encobrir as motivações raciais pelas subdivisões ét-
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 45

nicas e nacionais dos negros. No Brasil, as etnias não são, geralmen- C


te, importantes no que se refere à situação dos negros porque apare- 11 Essas caracte- A
cem de forma diferenciada, por meio de identidades nacionais este-
reotipadas tais como “baiano”, “paraíba”, “nordestino”.11 Nos EUA,
rísticas estereotipa-
das podem ser P
sua importância é maior entre a população negra principalmente,
encontradas em
vários de nossos Í
que reivindica sua identidade como afro-latina, ou como não-negra filmes nacionais
como, por exemplo, T
e, nesse caso, como constituída por cidadãos Asians ou Latinos. em “Central do
Brasil”. U
Temos, entretanto, de levar em consideração que o apelo à
identidade étnica pode tanto ser um caminho para a tolerância e a
L
democracia como para a intolerância e o racismo, fatos que pode- O
mos observar pelo mundo em um tempo no qual têm emergido
ódios étnicos violentos acentuados por aspectos religiosos que têm
levado a verdadeiras tragédias históricas.12 I
12 Entre esses
ódios étnicos,
podemos citar a
tensão entre Oriente
e Ocidente, entre
palestinos e israe-
lenses, a emergên-
cia dos movimentos
PARA REFLETIR neonazistas etc.

Guimarães (1999) sugere a categoria cor como um ele-


mento importante para o entendimento das relações soci-
ais no Brasil, na medida em que ela se relaciona direta-
mente com a hierarquização social. Para ele, cor é, no país,
mais que um traço fenotípico (pigmentação); dela também
participa uma série de características físicas, tais como
tipo de cabelo e traços fisionômicos (formato do nariz, for-
mato dos lábios) que definem os grupos raciais.
Assim, cor seria um tipo de estigma que se baseia na apa-
rência física de um indivíduo e que dá a medida de proximi-
dade ou afastamento deste ou daquele grupo racial. Não é
só uma escala de valores estéticos, mas também uma es-
cala de valor intelectual e moral. Segundo Guimarães, essa
categoria atua no Brasil tanto no plano individual, como no
coletivo. O censo brasileiro, por exemplo, considera a cor
das pessoas para formar os grupos de cor, e esses gru-
pos de cor têm sido o critério dominante para demarcar as
fronteiras entre os grupos no país.

Educação a Distância
46 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

PARA SABER MAIS

1. Para aumentar seu conhecimento sobre o que você es-


tudou até o momento, sugerimos que assista aos seguintes fil-
mes:
A Lista de Schindler;
O holoucasto;
A cor púrpura;
Mississipi em chamas;
A cor do amor.

2. Para leituras complementares, sugerimos:

CUNHA, Manuela Carneiro. Negros estrangeiros. São Paulo:


Editora Brasilense,1987.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1998.

3. Se você realizar uma pesquisa na internet, sugerimos os se-


guintes sites:

http://www.cfh.ufsc.br/~nuer/pesquisa.html
h t t p : / / w w w. c i e n c i a s s o c i a i s j a . h p g . i g . c o m . b r /
fichamento12.html
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 47

Atividades - Racialismo e etnicidade. C


A
30 minutos.
P
1. Após os estudos que você realizou nesta seção, procure expli- Í
car, nas linhas a seguir, qual é a diferença entre racialismo e etnicidade.
T
U
L
O

Comentário
Você acertou a questão se definiu racialismo como uma teoria relacional, que
considera que existem entre os grupos humanos características hereditárias que
os diferenciam de outros grupos. Esses traços, no entanto, são dotados de uma
essência racial que ultrapassa características físicas e remete diretamente à cul-
tura, a regras de pertença grupal que dependem da história e da localização geo-
gráfica e social. Já etnicidade é uma teoria também relacional, mas que se dife-
rencia do racialismo porque se refere a um tipo diferente de sociabilidade marcada
pelos diferentes estilos de vida que determinam as hierarquizações sociais. Es-
sas características só têm legitimidade quando a formação dos grupos étnicos
está sustentada no fato de que existem grupos estranhos a esses costumes, ou
seja, a identidade depende do reconhecimento do outro.

Educação a Distância
48 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

2. Relacione os termos estudados abaixo à sua respectiva


conceituação:

I - RAÇA; ( )Tipo de estigma que se baseia na aparência


física de um indivíduo e que dá a medida de
proximidade ou afastamento deste ou daquele
grupo racial.
II - ETNIA; ( ) Etnicidade dos brancos norte-americanos,
que significa brancos, anglo-saxões, puritanos.
III - COR; ( ) Valoriza a importância dos grupos na
definição das identidades sociais e no valor do
pertencimento a determinado grupo étnico.
IV - NOVO ( ) Seria um sistema de marcas físicas -
PLURALISMO; hereditárias - associadas a uma essência, que
consiste em valores morais, intelectuais e
culturais.
V-
( ) Refere-se a um estigma baseado na
TRANSCULTU-
identidade cultural, regional ou nacional de
RAÇÃO DO
grupos.
ÉTNICO;
VI - WASP. ( ) Corresponde a um enfrentamento entre
imigrantes e a sociedade que o acolhe, processo
em que a interação entre esses parceiros pressupõe
o aculturamento dos imigrantes e suas aceitação
por essa mesma sociedade que os acolhe.

Comentário
Você acertou a questão se relacionou a seqüência: III, VI, IV, I, II e V. É impor-
tante que você compreenda essas conceituações para dar embasamento as futu-
ras discussões sobre etnicidade e racialismo.
NOÇÕES DE ANTROPOLOGIA E CULTURA 49

C
A
P
RESUMO Í
T
U
L
Você estudou, nesta seção, a diferença entre o que é raça,
etnia e identidade étnica, assim como a diferença entre
O
racialismo e etnicidade. Vimos que raça seria um sistema de
marcas físicas – hereditárias – associadas a uma essência,
que consiste em valores morais, intelectuais e culturais.
I
Racialismo, remete para além da idéia de sangue, a
diferenciação racial teria como seu veículo transmissor, a
cultura, o que significa que essas regras de transmissão podem
variar de acordo com os diferentes racialismos. Já a pertença
étnica, ou a etnia, refere-se a um tipo diferente de sociabilidade
marcada pelos vários estilos de vida que determinam as
hierarquizações sociais. Assim, a identidade étnica, que se liga
à vida em comum étnica, constrói-se a partir da diferença. O
conceito de etnicidade sustenta-se nas diferenças culturais e
na identidade étnica, que fornecem aos membros uma rede de
organização e de relações informais disponível para todos os
setores da vida social. A identidade étnica passa a ser uma
das bases para a participação na vida política e social. A etnia,
então, refere-se a um estigma baseado na identidade cultural,
regional ou nacional de grupos.
Vimos também a importância da categoria cor para o en-
tendimento das relações sociais no Brasil, na medida em que
ela se relaciona diretamente com a hierarquização social. Cor
é, no país, mais que um traço fenotípico (pigmentação); dela
também participa uma série de características físicas, como
tipo de cabelo e traços fisionômicos (formato do nariz, formato
dos lábios), traços que definem os grupos raciais. Assim, cor
seria um tipo de estigma que se baseia na aparência física de
um indivíduo e que dá a medida de proximidade ou afastamento
desse ou daquele grupo racial.

Educação a Distância
CAPÍTULO II

O MULTICULTURALISMO:
USOS E SENTIDOS.

Objetivo Geral
Identificar o que são as políticas sociais conhecidas
por “multiculturalismo” e o respeito às diferenças
culturais entre os indivíduos e entre os grupos sociais,
percebendo a constituição dessas lutas no contexto
mundial e no contexto brasileiro.
Perceber a dificuldade para combater o preconceito
racial no Brasil devido ao “mito da democracia racial”.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 53

O MULTICULTURALISMO
Seção 1

Objetivos específicos:

š apontar as características das lutas de dife-


rentes grupos sociais em favor do reconhecimen-
to de suas diferenças culturais;
š explicar o que é “multiculturalismo”;
š identificar as múltiplas maneiras de perceber C
a diferença cultural entre os seres humanos, no
A
período que corresponde aos séculos XVIII e XIX,
nas sociedades ocidentais, e sua relação com a cons- P
tituição da cidadania como um direito, apontan- Í
do as implicações e os limites dessa concepção. T
U
L
Você estudou, no capítulo anterior, alguns conceitos como O
cultura, raça, etnia e identidade étnica, importantes para pensar
não somente sua prática pedagógica, mas, também, as relações en-
tre esses conceitos e seu cotidiano como cidadão, assim como as II
relações com o cotidiano de sua comunidade. Além disso, esses
conceitos também irão ajudar você a pensar e a discutir sobre um
dos temas mais atuais do nosso mundo: o direito à diferença e à
cidadania cultural. Você até pode estar se perguntando: o que isso
“tem a ver” com minha prática pedagógica?
Para responder a essa questão, que tal fazermos, primeiramen-
te, um exercício de reflexão? Vamos lá! Hoje, possivelmente, você
deve ter passado o dia no seu trabalho, seja na escola ou no exercí-
cio de qualquer outra atividade. Você já parou para observar o quanto
são diferentes as pessoas que convivem com você em seu dia-a-dia?
Você já observou como elas apresentam diferentes maneiras de se
vestir, possuem diferentes religiões, hábitos culturais e que provêm

Educação a Distância
54 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

de diferentes descendências? Se você conseguiu perceber a diferen-


ça, um pequeno passo foi dado no sentido de compreender o con-
teúdo que estudaremos a seguir. Todos nós, seres humanos, somos
diferentes, pois possuímos referenciais culturais diferentes. E, com
certeza, o direito a ter suas especificidades culturais respeitadas tem
“tudo a ver” com a prática pedagógica, na medida em que não
podemos tratar a todos os nossos alunos como iguais, porque eles
são diferentes, e, por isso mesmo, importantes.
A discussão sobre o direito à diferença e à cidadania cultural,
embora tenha sido intensamente debatida a partir dos anos sessenta,
nos Estados Unidos e no Canadá, intensificou-se nas últimas déca-
das, devido aos efeitos da Globalização13, isto é, a integração mundial
13 Sobre o tema das economias, dos meios de comunicação de massa e das políticas
“Globalização”,
sugerimos que você governamentais. Neste mundo globalizado, uma antiga concepção de
retome leituras no nação, vista como culturalmente homogênea - uma só língua, uma só
Caderno de Sociolo-
gia. história, uma só cultura, uma só raça etc. deixou de fazer sentido.
No meio desse debate, está, também, uma visão de cidadania
formada a partir de dois movimentos históricos políticos e culturais
importantes: o Iluminismo e a Revolução Francesa14, os quais lan-
çaram uma série de idéias fundamentais e que estão presentes no
14 Sobre o nosso cotidiano. Uma delas é a de que todo ser humano é um indi-
Iluminismo e a
Revolução France-
víduo naturalmente livre e igual a todos os outros.
sa, sugerimos que
você retome leituras Será, porém, que essas noções que influenciam o nosso modo de
nos Cadernos de vida ainda são adequadas? São capazes de satisfazer os desejos de ho-
História da Educa-
ção e de Sociologia mens e de mulheres de diferentes regiões do planeta? Será que essa
respectivamente. noção de cidadania, de que somos todos livres e iguais, é suficiente para
fundamentar nossa prática pedagógica? Seremos mesmo todos iguais?
Vamos pensar um pouco sobre a realidade brasileira. Você deve
lembrar que, até recentemente, a escola era concebida, juntamente
com a família, como referência na formação do cidadão. Nessa ins-
tituição, as disciplinas História, Educação Moral e Cívica, Organi-
zação Social e Política do Brasil, entre outras, apresentavam uma
visão homogeneizada do Brasil e dos brasileiros. O que isso signifi-
ca? Em outras palavras, podemos dizer, que éramos descritos como
indivíduos que faziam parte de uma civilização formada a partir da
herança cultural européia, reelaborada pelo contato com “outros”
povos, no caso, leiamos, índios e negros.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 55

Ainda hoje, essa visão está muito presente. Em razão das Co-
memorações dos 500 anos da “Descoberta do Brasil”, por exem-
plo, alguns comerciais de televisão apresentavam a imagem de
que nosso país era mestiço, ou seja, formado por um “cadinho” de
raças e culturas. Uma jovem nação, com “apenas 500 anos”, criou
inúmeros heróis e nela, em comparação com outros povos, os ci-
dadãos vivem em harmonia e paz. Discutiremos mais especifica-
mente sobre essa questão na seção 2.
Nos últimos 25 anos do século XX, entretanto, surgiram novos
movimentos sociais urbanos e rurais, que, têm questionado essa ima-
gem idílica do país. As feministas e os militantes anti-racistas ti-
nham, e continuam tendo, dificuldades para se identificar com os
“grandes varões” da pátria. Podemos dizer que heróis nacionais como
Duque de Caxias, D. Pedro II, Marechal Deodoro da Fonseca ou C
Rui Barbosa não têm significado efetivo para eles.
A
Esses grupos reivindicam uma política de reconhecimento,
tanto das suas diferenças, das suas várias identidades, como de
P
suas desvantagens e desigualdades sociais, decorrentes da discri- Í
minação social de gênero, de raça, de orientação sexual e de ori- T
gem regional, mas essas reivindicações não têm ocorrido apenas
no Brasil. Trata-se de um movimento mundial. U
Exemplo disso é
L
que, nos últimos anos, O
vários conflitos bélicos
têm se espalhado pelo
mundo, tendo como
II
causa fundamental di-
ferenças étnicas. Na
Europa, uma das ten-
sões acontece, por
exemplo, na Espanha.
Estado multinacional, Atentado do Grupo ETA na Espanha.
resultado da anexação
de vários povos por parte dos reis de Castela e de Aragão no século
XV, a Espanha enfrenta há décadas ação “terrorista”, seqüestros,
assaltos, explosões de bombas em lugares públicos, atos promovidos
por um grupo autodenominado ETA, sigla em basco para “Pátria
Basca e Liberdade”. Na região da antiga Iugoslávia, principalmente

Educação a Distância
56 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

no Kosovo, lutam entre si sérvios e albaneses. Em Ruanda, no con-


tinente africano, confrontam-se tutsis e hutus. Trata-se de uma série
de guerras, guerrilhas, massacres, que espalham dor, medo e sofri-
mento atingindo muita gente.
Em países como Brasil, Colômbia, Guatemala, Venezuela, África
do Sul, em conseqüência da expansão européia, pelo planeta, da
colonização, da escravização e do tráfico de milhões de pessoas atra-
vés do Oceano Atlântico, os descendentes dos colonos europeus,
autodenominados brancos, assumiram o controle da quase totali-
dade dos bens necessários à vida. Já na França, na Holanda, na
Inglaterra, na Alemanha e em Portugal, as tensões são outras. Os
habitantes de ex-colônias dessas nações, fugindo da fome e da misé-
ria, movidos pelo desejo de uma vida melhor e atraídos por propa-
gandas governamentais daqueles países na década de 1960, procu-
ram manter suas culturas de origem, produzindo enfrentamentos
com as culturas nativas tidas como nacionais.
O que esses confli-
tos nos mostram? Eles
evidenciam que, por
toda parte do planeta,
povos, maiorias e/ou mi-
norias, têm exigido o re-
conhecimento de suas
especificidades culturais,
de suas desigualdades so-
ciais, o que exige das ins-
tituições públicas, polí-
ticas, que levem em
conta os múltiplos mo-
dos de ser e de estar no
mundo que caracterizam
essas populações. Como
alternativa de luta em fa-
vor de suas
especificidades culturais,
diferentes instituições
vêm procurando desen-
Manifestação pelos direitos dos gays em São volver ações conhecidas
Paulo – 02/06/02. por “multiculturalismo’.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 57

Mas o que é multiculturalismo? Trata-se de uma série de ações


institucionais desenvolvidas na sociedade civil (a população organiza-
da em associações, sindicatos, centros comunitários etc.) e nos diver-
sos níveis de poder da República, ações voltadas para a compreensão
do problema das diferenças e para a elaboração de projetos capazes
de fazer frente aos mecanismos que permitem a reprodução das desi-
gualdades. A palavra multiculturalismo é um termo típico do con-
texto do mundo globalizado e se constitui em um dos mecanismos
para lutar contra toda forma de intolerância e em favor de políticas
públicas capazes de garantir os direitos civis básicos a todos.
Essas idéias, porém, são bastante combatidas. Nos EUA, por
exemplo, os principais opositores são aqueles que defendem as idéias 15 Essas idéias
liberais15, ou seja, idéias de que todos os homens têm o direito de foram elaboradas no
século XVIII e XIX e
usufruir, de forma incondicional e irrestrita, dos frutos do seu traba- expressavam o C
lho. Para tanto, os cidadãos precisam de outros direitos, leia-se, preci- modo como os
sam de liberdades: liberdade de ir e vir, de livre manifestação de mercadores compre- A
endiam e se coloca-
opinião, de reunião, de petição etc. São os chamados direitos civis. vam no mundo. O P
liberalismo consti-
Assim, se cada indivíduo é um cidadão livre, igual a seus concidadãos, tuiu-se numa Í
e pode progredir através do seu trabalho, as instituições públicas, a doutrina de direito
seu turno, devem ser neutras. Assim, independentemente de nossas público, baseada no T
respeito ao indivíduo
identidades particulares, deve ser levada em conta somente a nossa e a propriedade. U
condição de cidadãos, ou seja, nossa condição de igualdade.16 L
Perguntamos, entretanto, a você: será que somos todos iguais? O
Ao fazermos esse questionamento, gostaríamos que você refletisse so- 16 Você lembra os
princípios da
bre a sua sala de aula ou sobre a comunidade em que vive. Será que Revolução France-
todos possuímos as mesmas referências culturais? Temos todos as mes- sa: Liberdade, II
Igualdade e
mas condições sociais? Será que seu aluno afro-descendente vê o mun- Fraternidade?
do a partir dos mesmos referenciais culturais do teuto-brasileiro?
Ora, é preciso que tomemos cuidado no sentido de perceber
as diferentes identidades dos sujeitos com quem convivemos em
nosso dia-a-dia. Se tomarmos por identidade a visão que tem uma
pessoa de quem ela é e suas características definidoras fundamen-
tais como ser humano, o falso ou a falta de reconhecimento dessa
identidade pode causar danos.
Vamos explicar melhor para você através do relato de um filme
muito interessante ao qual sugerimos que você assista. O filme é
dirigido por Steve Spelberg e se chama Amistad (1998). Os aconte-
cimentos se passam no ano de 1839, quando 53 homens e mulheres

Educação a Distância
58 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

da África Ocidental se rebelaram em alto mar na costa de Cuba.


Mataram quase todos os tripulantes e, enganados, foram parar nos
Estados Unidos. Presos, acusados de pirataria e de homicídio, torna-
ram-se o centro de
uma grande batalha
judicial. Em um de-
terminado momen-
to do filme, duran-
te as comemorações
da primeira decisão
favorável aos africa-
nos, descobriram
que o governo dos
E.U.A, sob pressão
Imagem do filme Amistad. dos parlamentares
representantes do
Sul escravista, decidira apelar do veredicto para uma instância supe-
rior. Um dos africanos, Cinquê, não se conformou, pois, para ele,
em sua língua mande não se conjuga os verbos no aspecto condicio-
nal, ou seja, para ele, ou você fazia ou não, alguma coisa. O termo
“poderia”, assim, não tinha nenhum sentido na língua mande.
Através desse exemplo, o que queremos pontuar é que a cultura é
o modo através do qual nós nos situamos no mundo. Desse modo, o
não-reconhecimento das formas específicas que cada indivíduo tem de
viver o cotidiano pode ser uma forma de prisão que acaba por encerrar
os indivíduos em um modo de ser falso, deformado e redutor.
Nesse sentido, poderíamos questionar: afinal, os luteranos e os
judeus possuem ou não o direito de guardar o “sábado”? As Teste-
munhas de Jeová têm ou não direito de não aceitar a transfusão de
sangue, mesmo em casos de risco de vida? Devemos chorar, de acor-
do com o preceito cristão, ou festejar, segundo os preceitos tradicio-
nais de vários povos africanos, o enterro dos nossos mortos?
Sob uma perspectiva multiculturalista, os Estados democráticos têm
a obrigação de contribuir para que os grupos que se encontrem em des-
vantagem, os chamados grupos minoritários, possam conservar as suas
culturas contra as interferências das culturas majoritárias ou de massas.
Dessa forma, uma política voltada para o reconhecimento da
diferença, exige que as instituições públicas não passem por cima
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 59

das particularidades. Afinal, existem muitas maneiras de viver a


vida em uma sociedade. E o mais interessante é que, quando “apre-
endemos” e compreendemos o outro, podemos perceber com niti-
dez o que somos e os valores que norteiam a nossa vida.
O professor Luís Alberto Gonçalves, em seu estudo sobre discri-
minação racial em escolas públicas de Minas Gerais, ao perguntar aos
docentes sobre a presença de desigualdades e da prática de exclusão,
ouviu de seus interlocutores quase sempre a mesma resposta: “Nesta
escola, não existe racismo, nós tratamos todos os alunos como iguais”.
Mas será que a questão é tratarmos todos os alunos como iguais?

PARA VOCÊ REFLETIR C


A
Em grupo ou individualmente, faça um pequeno estudo
sobre algum grupo em desvantagem na sua comunidade
P
(mulheres, pessoas portadoras de deficiência física, ido- Í
sos, populações indígenas, afro-descendentes etc.), pro-
curando identificar seus principais problemas, quais as or- T
ganizações de defesa de seus direitos e a existência ou
não de ações governamentais voltadas para o atendimen-
U
to dessas necessidades específicas. L
O

Como vimos, a perspectiva multiculturalista aponta para o 17 Você viu, nos


Cadernos de II
reconhecimento e para o respeito pela diferença. Mas o que seria, Sociologia e História
então, uma política de reconhecimento, a ação pública voltada para da Educação, que o
Antigo Regime,
o reconhecimento das especificidades culturais e sociais? Ou me- também conhecido
lhor, o que faz com que, no mundo atual, identidade e reconheci- como Absolutismo
Monárquico, foi um
mento tenham sentido para nós? E, portanto, de certa forma, per- tipo de organização
mite-nos compreender as reivindicações de respeito à diferença como social e política que
emergiu na Europa
legítimas e possíveis de serem atendidas pelo poder público? ocidental entre os
séculos XV e XVI.
A compreensão de duas mudanças históricas importantes pode Tratava-se de um
nos ajudar a responder a essas questões. A primeira delas é a quebra das Estado feudal
centralizado, no
hierarquias sociais típicas do Antigo Regime 17, que tinham por base a qual o Príncipe se
honra, sendo possuída somente pela nobreza, grupo social preferido constituía no centro
de todo poder.
pelo rei, e que possuía liberdades e imunidades, enquanto a maioria da
população não poderia aspirar a nenhum reconhecimento público.

Educação a Distância
60 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Em contraposição a essa idéia, no contexto histórico do


Iluminismo, foi instituída uma política de reconhecimento centrada
na idéia de dignidade da pessoa humana. Dignidade que, ao con-
trário da honra, é compartilhada por todos os cidadãos. Tal política,
inspirada nas idéias de Rousseau aponta para uma política homogê-
nea de bem-estar comum e que implica uma identidade universal
de todos os cidadãos.
Mas o fato de concebermos todos os cidadãos como iguais
perante a lei não implica que eles tenham as mesmas condições
econômicas e sociais. Neste momento, ocorre uma segunda mu-
dança, ou seja, quando reconhecemos que os fatores sociais e eco-
18 Agenda Social:
aqui entendida como
nômicos impediam populações inteiras de viver plenamente seus
uma série de temas direitos, o que as transformou em grupos cidadãos de “segunda clas-
sociais debatidos
pelos movimentos
se”. Assim, milhões de trabalhadores no mundo, principalmente no
sociais, governo e século XX, em suas revoltas e revoluções, deslocaram a agenda soci-
partidos políticos.
al18 da polícia para outras instâncias estatais.
Isso resultou, em vários países, principalmente europeus e
norte-americanos, no estabelecimento de um conjunto de políti-
cas públicas19 voltadas para a garantia de uma renda mínima aos
19 Políticas Públi- cidadãos abaixo da linha de pobreza. Na administração de Bill
cas: você estudou Clinton (1993/2000), por exemplo, os EUA estavam preocupa-
sobre esta questão
no Caderno de dos com o surgimento de uma nova forma de exclusão. As dificul-
Políticas Públicas. dades dos pobres em ter acesso aos equipamentos e aos conheci-
Sugerimos que você
retome sua leitura. mentos necessários, acesso à internet, estavam estimulando a
segregação digital, com resultados nefastos para a cidadania.
O que queremos pontuar é que a política de reconhecimento
não pode continuar “cega” às diferenças entre os cidadãos. O direi-
to à diferença freqüentemente redefine a não-discriminação, ou
seja, exige que as distinções sejam a base de um tratamento diferen-
cial. Esse é, por exemplo, o princípio que rege o Direito do Consu-
midor. Na medida em que as empresas são mais fortes que os consu-
midores individuais, a sociedade exige dessas empresas que provem
não ter cometido nenhuma ação capaz de lesar tais consumidores –
trata-se da inversão do ônus da prova.
Motivado por essa política, o Congresso Nacional, sensibilizado
pela ação dos movimentos de mulheres, decidiu acrescentar, na
legislação eleitoral, a exigência de um percentual mínimo, por partido
político, de candidaturas femininas ao parlamento. Essa medida foi
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 61

tomada de forma a estimular a participação das mulheres na vida


política. E, o que é interessante, obrigar os dirigentes partidários a
se preocuparem com esse problema.
Nessa perspectiva, a cidadania não pode pretender ser uma
identidade geral, construída sob o princípio de que todos são iguais.
Cada pessoa é única; um indivíduo é criativo e criador de si mesmo
e, ao mesmo tempo, transmite cultura, que difere de acordo com as
referências e identificações passadas e presentes; cada pessoa é re-
sultado das relações que estabelecemos com os outros. Em outras
palavras, a identidade humana se forma em resposta às nossas rela-
ções e inclui os diálogos que temos com quem convivemos.
O que queremos pontuar é que não estamos sozinhos, exilados
dentro de nossas próprias cabeças. Descobrimos nossas individuali-
dades na medida em que interagimos no mundo com outras pesso- C
as e com outras formas de vida. Eis a importância do respeito a A
diferentes experiências culturais. Nos encontros e desencontros com
os “outros”, tomamos consciência do que seja uma “boa” vida... P
Í
T
PARA VOCÊ REFLETIR
U
Para você, o “respeito à diferença” põe em risco a liberda-
L
de de cada indivíduo? O

II

Educação a Distância
62 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Texto Complementar

O texto abaixo, “A política de reconhecimento”, de


Charles Taylor, desencadeia algumas reflexões importantes
para o aprofundamento da discussão sobre o
multiculturalismo e as políticas de reconhecimento. Além
disso, pode nos ajudar a refletir um pouco sobre nossa práti-
ca pedagógica, pois aponta a importância de reconhecermos
e respeitarmos as diferenças entre os sujeitos, o que implica
reconsiderar nossa relação com os alunos. Leia o texto com
atenção e, depois, discuta em seu grupo de estudos as idéias
principais do autor.
“Alguns aspectos da política atual estimulam a necessi-
dade, ou, por vezes, a exigência, de reconhecimento. Pode-
mos dizer que a necessidade é, no âmbito da política, uma
das forças motrizes dos movimentos nacionalistas. E a exi-
gência faz-se sentir, na política de hoje, de determinadas
formas, em nome dos grupos minoritários ou “subalternos”,
em algumas manifestações de feminismo e naquilo que ago-
ra, na política, designamos por “multiculturalismo.
A exigência de reconhecimento nesses últimos casos ad-
quire uma certa premência devido à suposta relação entre
reconhecimento e identidade, significando este último ter-
mo qualquer coisa como a maneira como uma pessoa se de-
fine, como é que suas características fundamentais fazem
dela um ser humano. A tese consiste no fato de a nossa
identidade ser formada, em parte, pela existência ou
inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo reco-
nhecimento incorreto dos outros, podendo uma pessoa ou
um grupo de pessoas serem realmente prejudicados, serem
alvo de uma verdadeira distorção, se aqueles que os rodeiam
refletirem uma imagem limitativa, de inferioridade ou de
desprezo por eles mesmos. O não-reconhecimento ou o re-
conhecimento incorreto pode afetar negativamente, pode
ser uma forma de agressão, reduzindo a pessoa a uma ma-
neira de ser falsa, distorcida, que a restringe.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 63

Assim, algumas feministas afirmaram que, nas socieda-


des patriarcais, as mulheres eram induzidas a adotar uma opi-
nião depreciativa delas próprias. Interiorizaram uma imagem
da sua inferioridade, de tal maneira que, quando determina-
dos obstáculos reais à sua prosperidade desapareciam, elas
chegavam a demonstrar uma incapacidade de aproveitarem
as novas oportunidades. E, além disso, estavam condenadas a
sofrer pela sua debilitada auto-estima. Também surgiram ar-
gumentos semelhantes em relação aos negros: [...] a socieda-
de branca projetou durante gerações uma imagem de inferio-
ridade da raça negra, imagem essa que alguns de seus membros
acabaram por adotar. Nessa perspectiva, a sua autodepreciação
torna-se um dos instrumentos mais poderosos da sua própria C
opressão. A primeira coisa que deveriam fazer era expiar essa
identidade imposta e destrutiva. Recentemente, afirmou-se A
o mesmo sobre os indígenas e os povos colonizados, em geral. P
Pensa-se que, desde 1492, os europeus têm vindo a projetar
desses povos uma imagem de seres um tanto inferiores,
Í
‘incivilizados’, e que, através da conquista e da força, conse- T
guiram impô-la aos povos colonizados [...]. U
Perante essas considerações, o reconhecimento incorre- L
to não implica só uma falta de respeito devido. Pode tam-
bém marcar suas vítimas de forma cruel, subjugando-as atra-
O
vés de um sentimento incapacitante de ódio contra elas
mesmas. Por isso, o respeito devido não é um ato de gentileza II
para com os outros. É uma necessidade humana vital. [...]”
TAYLOR, Charles. A política de reconhecimento. Ir:
TAYLOR, Charles. El multiculturalismo: examinando a po-
lítica de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
p.45-46.

Educação a Distância
64 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

PARA SABER MAIS

1. Para aumentar seu conhecimento sobre o que você es-


tudou até o momento, sugerimos que assista aos seguintes fil-
mes:
Amistad;
Um grito de liberdade;
Antes da chuva.

2. Para leituras complementares, sugerimos:


HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio
de Janeiro: DP&A Editora, 1998.
MACLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez
Editora/Instituto Paulo Freire, 1997 .
PANDOLFI, Dulce Chaves, CARVALHO, José Murilo, CARNEI-
RO, Leandro Piquet, GRYNSPAN, Mário (Orgs.). Cidadania, justiça
e violência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

3. Se você realizar uma pesquisa na internet, sugerimos os


seguintes sites:
http://www.cefetsp.br/~eso/sexofragilkurz.html
http://www.geledes.com.br/texto2.htm
http://www.filosofia.pro.br/textos/gutmann.htm
http://www.filosofia.pro.br/textos/strike.htm

Atividades - Multiculturalismo: a luta pelo direirto de ser


diferente.

20 minutos.

Agora que você já estudou o que é o multiculturalismo e as políti-


cas de reconhecimento através das quais diferentes grupos sociais rei-
vindicam seus direitos, tente responder às questões abaixo, com suas
próprias palavras. Lembre-se de que o objetivo é que você compreenda
as questões e que elabore seu pensamento em forma discursiva.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 65

1. Explique o que é o “multiculturalismo” e em que contex-


to histórico teve início este movimento. Argumente de que forma as
ações multiculturais podem auxiliar no combate às desigualdades.

Comentário
Sua resposta deve compreender as idéias de luta pela diversidade cultural e o
direito à cidadania no contexto dos movimentos de direitos civis nos Estados
Unidos e no contexto da luta anti-racista.

C
2. Do ponto de vista multiculturalista, qual é a tarefa dos A
Estados democráticos? P
Í
T
U
L
Comentário O
Em sua resposta, tem de estar presente a idéia da garantia da cidadania e do
direito à diferença.
II
3. Aponte os limites e as possibilidade do princípio jurídico
e político da premissa “todos são iguais perante a lei”.

Comentário
Importante discutir que o respeito à igualdade não pressupõe a transformação
de todas as pessoas em seres idênticos, mesmo porque existem características
culturais específicas de cada indivíduo.

Educação a Distância
66 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

RESUMO

Atualmente, vários movimentos sociais no Brasil e no mundo


têm questionado a visão homogeneizada das suas sociedade e
reivindicam uma política de reconhecimento, tanto de suas dife-
renças, de suas múltiplas identidades, como de suas desvanta-
gens e desigualdades sociais, oriundas da discriminação social
de gênero, de raça, de opção sexual e de origem regional. As ações
dessas diferentes instituições são conhecidas por
“multiculturalismo”. Nesse sentido, é obrigação dos Estados de-
mocráticos contribuir para que os grupos que se encontrem em
desvantagem possam conservar as suas culturas contra as inter-
ferências das culturas majoritárias ou de massas. A política volta-
da para o reconhecimento da diferença exige que as instituições
públicas não passem por cima das particularidades. Afinal, exis-
tem muitas maneiras de viver a vida em uma sociedade. E o mais
interessante é quando “apreendemos” e compreendemos o outro,
ocasião em que podemos perceber com nitidez o que somos e os
valores que norteiam a nossa vida.
Esse movimento de reconhecimento das especificidades cul-
turais e das desigualdades sociais é resultado de duas mudan-
ças de pensamento. Primeiramente, a desconstrução da idéia de
direito por hierarquia social e honra, característica do Antigo Re-
gime, questionada a partir da instituição de uma política de reco-
nhecimento centrada na idéia de dignidade da pessoa humana,
compartilhada por todos os cidadãos. A segunda, quando reco-
nhecemos que os fatores sociais e econômicos impediam popula-
ções inteiras de viver plenamente seus direitos, o que transforma-
va a todos em cidadãos de segunda classe. A contraposição a
essa idéia resultou num conjunto de políticas públicas voltadas
para a garantia de uma renda mínima aos cidadãos abaixo da li-
nha de pobreza.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 67

MOVIMENTOS EMANCIPATÓRIOS E DE LUTA


PELO RECONHECIMENTO DE DIREITOS
Seção 2

Objetivos específicos:

š pontuar a existência de diferentes movimen-


tos emancipatórios e de lutas por direitos e afir-
mação de suas identidades;
š explicitar a importância dos movimentos
emancipatórios e de luta pelo reconhecimento C
de direitos, para uma melhor compreensão de A
sua realidade escolar. P
Í
T
Os movimentos emancipatórios e de luta pelo reconhecimento U
de direitos, tais como o feminismo, os movimentos homossexuais, L
os movimentos dos afro-descendentes, das populações indígenas e
dos possuidores de necessidades especiais, revelam raízes históricas O
e se constroem no cotidiano. Procuram lutar por libertação e, ao
mesmo tempo, denunciam a existência das várias formas de opressão II
às quais foram e continuam sendo submetidos.
Esses movimentos se organizam em torno de suas
especificidades e em relação a um princípio que lhes é comum: a
busca da superação das desigualdades sociais e da discriminação.
Com isso, estão contribuindo na luta por uma nova sociedade.

O MOVIMENTO FEMINISTA

O Feminismo como um movimento social organizado de com-


bate à opressão feminina foi constituído no século XIX. Somente
na virada do século XX, no entanto, as manifestações contra a opres-

Educação a Distância
68 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

são e a discriminação das mulheres adquiriram maior expressividade


diante do chamado “sufragismo”, ou seja, da reivindicação voltada
para a conquista do direito ao voto por parte mulheres. Espalhan-
do-se por vários países ocidentais, conforme Louro (1997), o
sufragismo é conhecido como a “primeira onda” feminista.
Conforme Alves e Pitanguy (1991), a partir de 1960 o feminis-
mo ressurgiu como um movimento de massas que se converteu, a
partir da década de 1970, numa inegável força política e de enorme
potencial de transformação social. Começou nos EUA e, depois, de-
senvolveu-se em outros países capitalistas ricos do Ocidente, inicial-
mente em um ambiente de classe média educada, para, depois, espa-
lhar-se entre as classes subalternas. Nesse contexto, formou-se,
coletivamente, uma consciência feminina responsável por sinais de
mudanças significativas, tanto no que se refere às expectativas das
mulheres a respeito delas mesmas, quanto no que se refere ao seu
lugar no espaço privado da família e ao respeito por seu papel públi-
co na sociedade. Esse foi o “novo feminismo” (ou “segunda onda”
feminista), que esteve preocupado com questões sociais e políticas,
tomando a “igualdade entre homens e mulheres [como] um conceito
que se tornou o principal instrumento para o avanço legal e
institucional das mulheres ocidentais” (HOBSBAWM, 1995), além
de voltar-se para as produções propriamente teóricas. O ressurgimen-
to do movimento feminista nesse universo contemporâneo expres-
sou-se mediante grupos de conscientização de direitos, marchas e
protestos contra a opressão e a discriminação,inserindo-se no contex-
to dos movimentos pelos direitos civis das minorias nos EUA.
Conforme Alves e Pitanguy (1991), o movimento feminista é
organizado e publicamente visível, mas também se manifesta no
espaço doméstico, no trabalho e em todos os lugares nos quais as
mulheres procuram estabelecer relações interpessoais e nas quais a
dimensão feminina seja diminuída ou desvalorizada. Afirmam as
autoras que o movimento feminista

busca repensar e recriar a identidade de sexo sob


uma ótica em que o indivíduo, seja ele homem ou
mulher, não tenha que se adaptar a modelos
hierarquizados, e onde as qualidades “femininas”
ou “masculinas” sejam atributos do ser humano em
sua globalidade. Que a afetividade, a emoção, a ter-
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 69

nura possam aflorar sem constrangimentos nos ho-


mens e serem vivenciadas, nas mulheres, como atri-
butos não desvalorizados. Que as diferenças entre
os sexos não se traduzam em relações de poder que
permeiam a vida de homens e mulheres em todas
as suas dimensões: no trabalho, na participação po-
lítica, na esfera familiar etc...

No contexto do movimento feminista contemporâneo, foi in-


troduzido, por estudiosas/os das questões femininas, o conceito de
gênero, usado para abordar as diferentes construções históricas
estabelecidas em relação a homens e a mulheres.
A historiadora Joan Scott (1995) afirma que o conceito de
gênero serve para determinar tudo que é social, cultural e histori- C
camente estabelecido sobre as diferenças percebidas entre os se-
xos. Além disso, enfatiza o caráter fundamentalmente social das A
distinções baseadas no sexo, bem como enfatiza as diferenças P
existentes entre homens e mulheres, diferenças construídas cultu- Í
ralmente. Nesse sentido, o conceito de gênero é utilizado como
uma ferramenta de análise das marcas históricas atribuídas à mas- T
culinidade e à feminilidade, como um mecanismo político U
contestador da dominação e da opressão sobre as mulheres. L
Oliveira (1999) considera que o uso do conceito de relações de O
gênero contribui para acabar com a ambigüidade da cultura patriar-
cal sobre o uso do termo sexo, que se baseia na naturalização e na
biologização desse mesmo conceito, evocando um destino social e II
uma desigualdade sexual, enquanto que gênero conduz a uma pers-
pectiva de relações e representa uma elaboração cultural sobre o
sexo. Nesse sentido a autora afirma: “relações de gênero, portanto,
[são] uma construção cultural e social e, como tal, representa[m]
um processo contínuo e descontínuo da produção dos lugares de
poder do homem e da mulher em cada cultura e sociedade”
Conforme Costa (2001), o conceito de gênero trazido para o
espaço escolar, possibilita a reflexão sobre diferenças entre ho-
mens e mulheres como construção histórico-cultural. Desse modo,
é possível combater, na escola, a exclusão ou a resistência de alu-
nas e alunos no que se refere à participação nas várias atividades
escolares, comportamentos decorrentes de restrições justificadas

Educação a Distância
70 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

unicamente pelo fato de serem meninas ou meninos, sendo consi-


derados fracos, ou portadores de algum “desvio feminino”, bem
como motivando o questionamento acerca das representações de
base hierárquica entre homens e mulheres.
Nunes e Silva (2000) concebem que o estudo de gênero na escola
visa a educar para a compreensão significativa e igualitária da identida-
de de homens e mulheres, a compreensão da identidade do masculino
e do feminino, como construções psico-históricas da condição huma-
na, iguais em suas energias humanizadoras e “diferentes em suas expres-
sões culturais subjetivas e ontológicas. Ser homem e ser mulher seriam
duas formas de ser da pessoa humana, de ser essencialmente humano,
com características sociais e psicológicas distintas”.
As relações de gênero na escola, conforme Costa (2001),
são um desafio no sentido de conscientizar acerca da necessida-
de de uma reflexão mais ampla sobre as relações entre
professor(as) e alunos(as) no cotidiano, procurando superar a edu-
cação sexista e combater o preconceito de sexo. Essa é uma de-
manda teórica de combate à violência simbólica e real sobre as
mulheres, decorrente do movimento feminista.

O MOVIMENTO HOMOSSEXUAL

No contexto
em que foi gestada a
segunda fase do Mo-
vimento Feminista,
deu-se a organização
do movimento ho-
mossexual, o que
aconteceu em torno
da afirmação da
identidade homosse-
xual, bem como do
Passeata do movimento homossexual em São Paulo, combate a precon-
contra toda a forma de intolerância.
ceitos e discrimina-
ções aos/às homossexuais. A militância homossexual, inserida em
outros movimentos sociais urbanos de minoria, torna públicas as
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 71

práticas homossexuais. Uma das reivindicações fundamentais do


movimento homossexual consiste em tornar visíveis os homosse-
xuais em espaços públicos, visto que suas práticas sexuais são nor-
mais, além de lutar pelos direitos e pelo reconhecimento da cida-
dania dos homossexuais.
Mas quem são os homossexuais?
Homossexual é quem ama e sente atração pela pessoa do mes-
mo sexo; heterossexual é, o contrário, quem ama (ou gosta de) pes-
soas do sexo oposto; e bissexual é a pessoa que ama pessoas de
ambos os sexos e com ela mantém relações sexuais. A palavra gay
também é usada como sinônimo de homossexual e significa “ale-
gre”. Os gays, no entanto, nem sempre têm motivos para serem
chamados de “alegres” visto que têm de conviver com amarguras e
discriminações postas pela sociedade heterossexual.20 C
Ser homossexual não é crime. Essa é uma importante informa- A
ção que você, educador ou educadora e estudante, deve saber. Não 20 O
heterossexismo
P
existe no Brasil nenhuma lei que condene os homossexuais simples-
mente pelo fato de serem homossexuais. Nem a Constituição Fede-
define como normal,
natural e única
Í
ral do Brasil nem o Código Penal Brasileiro exercem qualquer forma
possibilidade de
orientação sexual a
T
de condenação à homossexualidade, no entanto o preconceito e a hererossexualidade. U
discriminação aos homossexuais são proibidos pelas leis brasileiras.
Caso algum policial, autoridade, diretor de escola, professor ou
L
mesmo qualquer pessoa venha a insultar, agredir, prender ou discri- O
minar algum cidadão pelo fato de ser homossexual, você deve reagir
contra isso denunciando tais comportamentos em uma delegacia,
ou às Comissões de Direitos Humanos, aos jornais e mesmo a gru- II
pos homossexuais mais próximos. A Constituição Federal do Brasil
estabelece que “qualquer preconceito de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação” constituem cri-
me, portanto criminoso é quem pratica a discriminação anti-ho-
mossexual e não quem vivencia a homossexualidade, a qual não é
doença, e isso é importante que você saiba, pois muita gente
desinformada afirma que se trata de uma doença física ou psicoló-
gica. Já a Ciência postula o contrário: é normal ser homossexual.
Até mesmo Freud, importante médico, psiquiatra, psicólogo e filó-
sofo afirmou: “A homossexualidade não é nada [de] que alguém
deva envergonhar-se. Não é vício nem degradação. Não pode ser
considerada doença!” ( FREUD Ir: MOTT, 1998).

Educação a Distância
72 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Conforme Mott (1998), desde 1985, o Conselho Federal de


Medicina, e desde 1990, a Organização Mundial de Saúde retira-
ram a homossexualidade da Classificação Internacional de Doen-
ças. Com isso, ela passou a ser entendida por esses organismos da
área da saúde como uma expressão sexual tão normal, natural e
saudável quanto a heterossexualidade e a bissexualidade.
Nas últimas décadas, Associações Científicas estadunidenses e
brasileiras, entre as quais a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência – SBPC e a Associação Brasileira de Antropologia, aprova-
ram resoluções que afirmam que “nada distingue os homossexuais
dos heterossexuais, a não ser a orientação do desejo sexual; nada
distingue gays e lésbicas dos demais cidadãos relativamente a capa-
cidade intelectual, honestidade e demais valores sociais“ (MOTT,
1998). De forma geral, afirma-se que nada distingue um homosse-
xual dos demais, a não ser pelo fato de eles amarem e praticarem
vivências sexuais com pessoas do mesmo sexo, tendo em vista que a
sociedade toma como parâmetro os heterossexuais, que preferem
práticas sexuais com pessoas do sexo oposto.
Assim, só mesmo com base no preconceito e na intolerância
justifica-se a tentativa de pais e educadores de tentar “curar” ou
reprimir a vivência homossexual dos jovens e adolescentes. E, como
a homossexualidade não é crime e nem doença, impedir ou discri-
minar a livre orientação sexual, passa a ser considerado “tirania,
crueldade, abuso do poder e desrespeito aos direitos humanos.
Nunca pratique nem seja cúmplice da abominável discriminação
dos homossexuais” (MOTT, 1998).
Você educador(a) aluno(a), em sua prática pedagógica, não
deve, portanto, educar para a repressão, para a reversão ou para a
camuflagem da homossexualidade; deve contribuir para que a pes-
soa conheça seus próprios desejos e viva a sua sexualidade, seja ela
heterossexual, bissexual ou homossexual, de maneira gratificante,
realizadora e prazerosa.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 73

MOVIMENTOS DE AFRO-DESCEDENTES

Devido aos movimentos emancipatórios e de descolonização


ocorridos na África e devido aos alarmantes níveis de opressão em
que se encontra a população afro-descendente nos EUA, como você
estudou anteriormente, a partir dos anos 1960, surgiram organiza-
ções de vanguarda articuladas em torno do combate ao racismo.
Movimentos afro-descendentes, nos EUA, como Black Power, Pan-
teras Negras, Mulçumanos Negros e muitos outros, sob a liderança
de Malcon X, Luther King Jr., Frantz Fanon e outros, contribuíram
para a formação da militância afro-descendente no Brasil. Essa
militância também se deparou com a dificuldade imposta pela su-
posta democracia racial brasileira.
As idéias dos movimentos afro-descendentes que foram C
introduzidas no Brasil, inicialmente em São Paulo, entre o final dos
anos 1960 e durante os anos 1970, fizeram com que nossos mili-
A
tantes percebessem a necessidade de lutar contra a discriminação. P
Desse modo, eles passaram a reivindicar direitos civis dos quais es- Í
tavam excluídos e que poderiam integrar a população afro-descen-
dente à sociedade brasileira, além de se conscientizarem acerca da T
necessidade de se auto-afirmarem como afro-descendentes. U
Conforme Silva (2001), no entanto, a questão da auto-afirma- L
ção ocorreu na contramão de um processo de embranquecimento O
dos afros-descendentes. Esse processo se deu como resultado do “efei-
to letárgico produzido pelas ideologias racistas no inconsciente coleti-
vo das populações negras, levando-as a superestimar padrões brancos II
de comportamento em detrimento de suas próprias identidades”.
Acrescenta, ainda, o autor, que esse processo de embranquecimento
denunciado por muitas lideranças afro-descendentes, contribui como
uma das maneiras mais danosas e eficazes, em favor da violência
racial, promovendo a despolitização sobre o racismo, além de “esti-
mular um olhar desfocado da ‘sociedade’ no tocante à baixa ‘auto-
estima’ dos negros”. Desse modo, os negros são levados a pensar que é
a sua baixa “auto-estima” que produz a sua exclusão social e não o
contrário, que é a exclusão social que constrói a baixa “auto-estima”.
No final da década de 1970, a postura assumida pelo movimento
afro-descendente em São Paulo produziu efeito na militância afro-des-
cendente em várias regiões do Brasil, de modo que isso pode ser obser-

Educação a Distância
74 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

vado nas várias reorganizações afro-descendentes do país. Em 1970,


surgiu, em pleno ato público contra a violência racial, o Movimento
Negro Unificado - MNU. O MNU se consolidou como uma entidade
nacional e assumiu uma função de vanguarda no movimento afro-
descendente no Brasil. Surgiram, também, inúmeras outras entidades,
tais como o Instituto de Pesquisa da Cultura Negra – IPCN, no Rio de
Janeiro, O Centro de Defesa do Negro – CEDEN, no Estado do Pará,
o Centro de Cultura Negra – CCN, no Estado do Maranhão, o Movi-
mento Negro da Amazônia – MOAM no Estado do Amazonas e o Axé
Dudu, grupo de homossexuais negros da Bahia, em Salvador, o Grupo
dos Palmares no Rio Grande do Sul, entre outros.
A partir da militância dos movimentos afro-descendentes, intensi-
ficou-se, no Brasil, a luta pela auto-afirmação da população afro-brasilei-
ra, o combate ao racismo e a luta por políticas de ação afirmativa como
forma de correção de desvantagens da população afro-descendente,
provocadas pela discriminação. No Brasil, existe uma enorme dívida his-
tórica com essa população, dívida que precisa ser corrigida.
Um outro aspecto decorrente da militância afro-brasileira é o pro-
cesso de questionamento dos nomes ocidentais. Com isso, várias crian-
ças afro-brasileiras recém nascidas passaram “a ser registradas com no-
mes africanos. O Brasil hoje não é apenas o país das Marias ou dos
Josés, mas, forçosamente, o país das Dandaras e dos Kwames, também.
Um país que precisa reconhecer a sua diversidade, [...] a diferença
étnica e cultural que dá a dimensão da cultura brasileira” (SILVA, 2001).

MOVIMENTO INDÍGENA

Ao longo de cinco séculos, a população americana presenciou


o extermínio das populações indígenas. Estima-se que, por volta de
1500, existiam aproximadamente cerca de oitenta milhões de habi-
tantes indígenas na América, que falavam em torno de duas mil
línguas diferentes. Dessa população originária, segundo o pesquisa-
dor Tzevetan Todorov, cerca de setenta milhões foram dizimados
apenas nos primeiros cem anos de colonização européia. Isso se
constitui, de certa forma, o maior genocídio da História da huma-
nidade, para o qual foram utilizados métodos de extermínio co-
muns ainda hoje, tais como: epidemias, fome, deslocamento,
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 75

confinamento, guerras e trabalhos forçados. Quando os europeus


chegaram ao Brasil, viviam aqui cerca de novecentos povos indíge-
nas, totalizando uma população superior a seis milhões de habitan-
tes, vivendo de Norte a Sul do Brasil. A ocupação européia foi,
então, concretizada e, sob as ruínas de milhares de aldeias e sob
milhões de cadáveres daqueles que ousaram resistir à ocupação, efe-
tivaram-se vários impérios na Europa.
Atualmente, no Brasil, estima-se a existência de um total de apro-
ximadamente quinhentos mil indígenas, pertencentes a 235 povos,
falando cerca de 180 línguas. Essa população indígena vive em quase
todo o território nacional, em aldeias ou em periferias de cidades, com
tradições, línguas, crenças, formas de viver e de pensar diferentes.
O Brasil possui uma enorme dívida histórica com os povos
indígenas, devido ao longo processo de extermínio que dizimou C
cerca de 665 povos e devido à ocupação de suas terras, ou seja, A
ainda hoje são negados aos povos indígenas, que sobreviveram ao
extermínio, os direitos fundamentais à terra e a um futuro autôno- P
mo como povos étnica e culturalmente diferentes. Í
Os movimentos indígenas espalhados pelo país pretendem lu- T
tar pelas comunidades indígenas, com a finalidade de assegurar os U
direitos históricos dos índios à terra, bem como procuram promover
projetos de futuro autônomo para os indígenas, respeitando as suas
L
próprias diferenças étnicas e culturais. O
Os movimentos indígenas buscam ressaltar a importância de
suas culturas e organizações sociopolíticas por meio da afirmação de II
suas identidades e dos seus direitos históricos. A luta dos movimentos
indígenas, construídos, ampliados e fortalecidos nas últimas décadas,
busca reconquistar a plenitude do controle sobre seus territórios, re-
conhecimento dos seus direitos, bem como a vivência de suas cultu-
ras e a possibilidade de construção de uma vida plena, livre e digna.
As mais de duzentas organizações indígenas locais e regionais
consolidam-se como importantes instrumentos de lutas, em torno
dos interesses dos diferentes povos indígenas. Diante disso, estabe-
leceram alguns princípios que devem nortear seus desafios. São eles:
√ a construção da unidade do movimento indígena em tor-
no de estratégias comuns para fortalecer a autonomia dos diferentes
povos indígenas;

Educação a Distância
76 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

√ a mobilização permanente até demarcação e garantia de


todas as terras indígenas;
√ o fortalecimento das bases indígenas e dos seus mecanis-
mos de controle sobre as organizações indígenas;
√ a aprovação do novo estatuto dos Povos Indígenas, resga-
tando as propostas construídas pelo movimento indígena na sua
história de lutas;
√ a aliança com os setores que lutam contra o modelo eco-
nômico vigente e que vêm se aglutinando em torno do Fórum Soci-
al Mundial;
√ o apoio aos processos de ressurgimento de povos indíge-
nas e aos índios na cidade;
√ a mobilização em favor dos povos isolados ameaçados de
extinção.

MOVIMENTO DAS PESSOAS COM NECESSIDADES


ESPECIAIS.

Por muito tempo, a deficiência foi encarada como castigo divino,


e o sujeito deficiente era motivo de comiseração e de cuidados
assistencialistas; na maioria das vezes, era encarado como um ser espe-
cial e considerado como revelador da ira divina. Na Idade Média, as
deficiências passaram a ser temidas como se os seus portadores fossem
espíritos malignos. Muitas vezes eram vistos como pessoas más, permi-
tindo que a aparência tivesse extrema relevância e determinação.
Já no período Iluminista, iniciaram-se estudos sobre os “defi-
cientes” e sobre sua adaptação ao meio social. O mundo contempo-
râneo, cada vez mais padronizado, sistêmico e alienante, apresenta
como uma das suas características a corrida desenfreada pelo pa-
drão de beleza e pela perfeição humana, o que é diariamente incen-
tivado pela mídia, levando, assim, os sujeitos que não se enquadram
nos padrões a se defrontarem com a segregação social. Dessa forma,
o indivíduo que é visto como diferente vivencia duas situações: uma
em que é considerado como aquele que não consegue adequar-se às
exigências e às regras de convivência na sociedade; outra em que
não pode exercer livremente as suas diferenças.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 77

No que diz respeito ao comportamento social diante dos dife-


rentes, Marques (1999) “aponta para a existência de uma tendên-
cia à padronização do desempenho das pessoas, no tocante a seu
comportamento ético, a sua estética e a todos os aspectos que favo-
reçam a absolutização da normalidade. Tal tendência objetiva esta-
belecer os limites permitidos e excluir o indesejável”.
Conforme Ross (1998), a discriminação repercute profunda-
mente no imaginário dos grupos excluídos, que acabam introjetando
a ideologia dominante, tornando-se apáticos e resignados com sua
suposta condição de inferioridade. Aceitar a igualdade genérica pode
promover também a inércia. Essa é a atitude de quem concebe o
diferente como o igual, mas se esquece das adaptações que seriam
necessárias no âmbito do trabalho, da escola e em outros espaços
para que ele pudesse desfrutar dessa igualdade. C
A educação das pessoas com necessidades especiais passou por A
momentos históricos bem diferenciados. Durante o Império, os espa- P
ços que deveriam ser educacionais desempenharam muito mais a fun- Í
ção de asilos. Com a Proclamação da República, houve uma prolife-
ração de instituições filantrópicas assistenciais que ainda estavam T
longe de ter um enfoque pedagógico. A partir da década de 50, co- U
meçam a aparecer no Brasil associações da Sociedade Civil que cria- L
ram seus próprios estabelecimentos de ensino para pessoas considera-
das deficientes buscando, com isso, suprir a falta desse tipo de serviço O
e minimizar a ineficácia do Estado. Essas instituições tinham um
caráter segregador e, sob a bandeira de proteger e de suprir necessida- II
des, mantinham essas pessoas longe do convívio social.
Atualmente, a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Naci-
onal, Lei n.º 9.394, coloca a educação das pessoas com necessida-
des especiais como uma modalidade de ensino oferecida preferen-
cialmente na rede regular de ensino, oferecendo diferentes
alternativas de atendimento e perpassando transversalmente todos
os níveis de ensino, desde a Educação Infantil ao Ensino Superior.
“Contudo o mero direito jurídico não produz o novo sujeito políti-
co, não materializa formas organizativas, não expressa necessidades
nem institucionaliza bandeiras de luta e de resistência”(ROSS, 1998).

Educação a Distância
78 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

A igualdade de direitos garantida por leis que deveria ampliar


possibilidades de inserção social está distante de efetivar essa con-
quista, pois, com um falso pretexto de proteger regras, princípios,
funcionamento e diretrizes, a escola acaba por excluir aqueles que
se diferenciam dos demais. A escola tem assumido o papel de um
organismo “avaliador” que auxiliará o Sistema Educacional a sepa-
rar os doentes dos sadios, os bons dos ruins, os viáveis dos inviáveis.
“Se não há nenhuma razão plausível para segregar os seres humanos
à base da idade, do sexo, da religião ou da cor da pele, também não
o deve haver à base da capacidade de aprendizagem. Não há ne-
nhum direito humano que o justifique” (FONSECA, 1991).
Se buscarmos a realidade da exclusão no contexto escolar, po-
deremos descobri-la sem muita procura, embora, às vezes, ela esteja
disfarçada em discursos de igualdade. Alunos pobres, negros,
malcheirosos, questionadores, lentos ou muito ativos enquadram-se
rapidamente no rol dos excluídos, porque são diferentes.
Desse modo, a cidadania que reclamamos para as pessoas com
necessidades especiais aponta na direção da humanização plena do
homem, superando seu estado atual de fragmentação, redução e
inferiorização. “(...) isso representa a necessidade de superar as for-
mas empíricas de educação, os conteúdos curriculares de orienta-
ção meramente manipulativos, as doses homeopáticas de escolari-
dade e as estratégias isoladas e espontaneístas de participação
travestidas pelo discurso e da igualdade da integração”(ROSS,1998).
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 79

Leitura complementar:

Vejamos um pequeno texto sobre a auto-afirmação pro-


duzido por Steve Biko, num diálogo com o advogado David
Soggot:
Soggot: - Quando se usa uma frase como “Negro é lin-
do”, então, esse tipo de frase combina com os princípios da
Consciência Negra?
Biko: - Combina sim.
Soggot: - Qual a idéia que está por trás de um slogam
como esse? C
Biko: Acho que a intenção é de que esse slogam sirva, e
A
ele está servindo, a um aspecto muito importante em nossa P
tentativa de alcançar a humanidade. A gente está enfrentan- Í
do as raízes mais profundas da opinião do negro sobre si mes-
mo. Quando a gente diz: ”Negro é lindo”, o que na verdade T
está dizendo para ele é: Cara, você está bem do jeito que você U
é, comece a olhar para si mesmo como ser humano”. Agora, L
na vida africana especialmente, isso tem também certas
conotações; as conotações sobre o modo como se maquiam O
etc., que tendem a ser uma negação do seu vocabulário e, de
certo modo, uma fuga de sua cor. Elas [as negras] usam cre- II
mes para clarear a pele, usam creme para alisar o cabelo etc.
Acho que, de certo modo, elas acreditam que seu estado natu-
ral, que é um estado negro, não é sinônimo de beleza. Assim,
só podem chegar perto da beleza se a pele delas for a mais
clara possível, se os lábios ficarem bem vermelhos e as unhas
[ficarem] bem cor-de-rosa. De modo que, em um certo senti-
do, a expressão “Negro é lindo” desafia precisamente essa crença
que faz com que alguém negue a si mesmo.

(BIKO, Steve. Escrevo o que eu quero.São Paulo: Ática,


1990.)

Educação a Distância
80 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

PARA SABER MAIS

1. Para aumentar seu conhecimento sobre o que você es-


tudou até o momento, sugerimos que assista aos seguintes fil-
mes:

A vida em preto e branco;


Um grito de liberdade;
Amazônia em chamas;
Malcon X.

2. Para leituras complementares sugerimos:

ALVES, Branca Moreira e PITANGUY, Jacqueline. O que é feminis-


mo. 8 ed, São Paulo: Brasiliense, 1991.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero sexualidade e educação: uma pers-
pectiva pós-estrutural. Petrópolis: Vozes, 1997.

3. Se você realizar uma pesquisa na internet, sugerimos os se-


guintes sites:

www.cimi.org.br
www.museudoindio.org.br
www.consciencia.br/reportagens/501anos/br07.htm
www.ufmt.br/revista/arquivo/revio/movimentos_sociais
www.mulheresnegras.org/milma.html
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 81

Atividades - Os movimentos pelos direitos civis e a práti-


ca pedagógica.

40 minutos.

1. Com base no estudo que você realizou nesta seção, elabore


um breve relato sobre as características dos movimentos de mulhe-
res, homossexuais, afro-descendentes e indígenas.

C
A
Comentário P
Nesta atividade, você deverá ressaltar a luta e os princípios defendidos por Í
esses movimentos no sentido do reconhecimento de direitos, visibilidade, afirma-
ção e possibilidade de transformação da realidade social.
T
U
2. De que maneira o estudo dos movimentos emancipatórios e L
de luta pelo reconhecimento de direito e de auto-afirmação, que O
você estudou nesta seção, podem contribuir para a reflexão de sua
prática pedagógica?
II

Comentário
A sua resposta deverá estar centrada em torno do reconhecimento e do respeito
à diversidade cultural, no seu espaço escolar, em vista da possibilidade de constru-
ção de uma vida autêntica e digna a todos os sujeitos que vivenciam a escola.

Educação a Distância
82 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

RESUMO

Nesta seção, apresentamos os movimentos emancipatórios


e de luta pelo reconhecimento de direitos, tais como: feminismo,
movimentos homossexuais, afro-descendentes, indígenas e de
possuidores de necessidades especiais. Enfatizamos que tais mo-
vimentos constroem a sua luta no cotidiano em prol da libertação
e contra as várias formas de opressão a que estão submetidos.
Esses movimentos têm especificidades e princípios comuns, tais
como a superação das desigualdades sociais e da discrimina-
ção. O Feminismo é um movimento social organizado de comba-
te à opressão feminina. Já o movimento homossexual se organi-
zou em torno da afirmação da identidade homossexual, bem como
no combate a preconceitos e a discriminações aos/às homosse-
xuais. Uma das reivindicações fundamentais do movimento ho-
mossexual consiste em tornar visíveis os homossexuais em es-
paços públicos, visto que suas práticas sexuais são normais, além
de lutar pelos direitos e pelo reconhecimento da cidadania dos
homossexuais. A homossexualidade também não é doença e nem
crime. Criminoso é quem pratica a discriminação. O movimento
afro-descendente foi introduzido no Brasil, inicialmente em São
Paulo, entre o final dos anos 1960 e no decorrer dos anos 1970,
com o objetivo de lutar contra a discriminação. O movimento afro-
descendente no Brasil passou a reivindicar direitos civis dos quais
os afro-descendentes estavam excluídos, além de conscientizar
a comunidade acerca da necessidade de se auto-afirmarem como
afro-descendentes. A partir da militância dos movimentos afro-
descendentes, intensificou-se no Brasil a luta pela auto-afirma-
ção da população afro-brasileira, o combate ao racismo e a luta
por políticas de ação afirmativa, como uma forma de correção das
desvantagens que atingem essas populações devido à discrimi-
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 83

nação. Os movimentos indígenas lutam pelas comunidades


indígenas com a finalidade de assegurar os direitos históri-
cos dos índios à terra, bem como procuram promover proje-
tos de futuro autônomo para os indígenas, respeitando as
suas próprias diferenças étnicas e culturais.Os movimentos
indígenas buscam ressaltar a importância de suas culturas
e das organizações sociopolíticas por meio da afirmação de
suas identidades. A luta dos movimentos indígenas,
construídos, ampliados e fortalecidos nas últimas décadas, C
reivindica a possibilidade de construção de uma vida ple- A
na, livre e digna para os povos indígenas. Com esses prin-
cípios de luta, os movimentos de emancipação, reivindica- P
ção de direitos e de auto-afirmação estão contribuindo para Í
o processo de construção de uma nova sociedade.
T
U
L
O

II

Educação a Distância
84 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

O CASO BRASILEIRO: O MITO DA


DEMOCRACIA RACIAL
Seção 3

Objetivos específicos:

š discutir as desigualdades raciais no Brasil e


os problemas para implantação de políticas pú-
blicas de promoção da igualdade;
š apontar as especificidades do discurso brasi-
leiro referente à questão das diferenças culturais e
étnicas, indicando a influência desse discurso na
elaboração do mito da democracia racial.

Você já percebeu que nossa sociedade possui, como principal


característica, a diferença entre as pessoas? Ou você ainda alimenta
a visão de que o Brasil é constituído por uma população homogênea
e que todos somos iguais?
Pois bem, se você ainda atribui um caráter homogêneo à
sociedade brasileira, é importante desconstruirmos esta visão. E
uma das maneiras de fazermos isso é tentar compreender em que
momento histórico surgiu o discurso de que o Brasil é mestiço e
de que maneira esse discurso acaba por camuflar, dissimular e,
incentivar o preconceito e a discriminação para com os diferentes
grupos étnicos existentes em nosso país.
Sempre, em diferentes períodos históricos, os seres humanos
procuraram explicar sua realidade ou justificar algo, em função
dos acontecimentos específicos que vivenciavam, e isso se aplica
também à percepção da diferença.
Você deve lembrar, por exemplo, no século XVI, no contexto
de descoberta do Novo Mundo pelos povos europeus, que esses
povos olhavam para o novo continente, maravilhados com a nature-
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 85

za exuberante e assustados com sua população, pois era difícil com-


preender costumes tão estranhos, como, por exemplo, a nudez, a
poligamia e, principalmente, o canibalismo. Esse contexto foi palco
de diversas polêmicas sobre a idéia da diferença ou da igualdade
entre os homens. Outro momento específico de discussão da dife-
rença deu-se no início do século XIX, fundamentado pelo ideal da
Revolução Francesa de “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, como
você viu anteriormente. Através dele, finalmente, os homens chega-
ram à conclusão de que afinal e sobretudo eles são todos iguais.
Nesse mesmo contexto, contrapondo-se a essa idéia, alguns
teóricos iniciaram a elaboração de um discurso de detração da Amé-
rica21, estabelecendo-se a tese da inferioridade racial do novo conti-
nente. Havia uma crença muito grande no progresso, concebendo-
o sob um ideal de civilização típico da Europa Ocidental, ou seja, C
fundamentado na industrialização e na tecnologia. 21 Exemplo disso
deu-se, em 1749, A
Além disso, Charles Darwin publicou “A origem das espécies”,
que defendia uma série de conceitos, como a sobrevivência do mais
quando o Conde de
Buffon, através dos P
apto, a luta das espécies e a adaptação. Essas teorias acabaram sen-
três primeiros
volumes da Historie Í
do utilizadas não só para pensar a natureza, mas também para pen- Naturelle, lançou a
tese da “debilidade” T
sar as relações entre os homens. É aí que se iniciou o grande proble-
ma, ou seja, a teoria da evolução de Darwin foi utilizada para
ou “imutabilidade”
do continente U
justificar, no contexto da Revolução Industrial, uma nova concep-
Americano. Esse
autor naturalista L
ção de natureza e sociedade. A natureza era o lugar onde as diferen- elaborou seu
discurso sobre o O
tes espécies lutavam pela posse de recursos, de acordo com as leis de Novo Mundo, “sem
seleção natural e da sobrevivência dos mais fortes. A sociedade, por nunca ter pisado

sua vez, era o lugar onde os indivíduos competiam por empregos e


neste continente”
(MORITZ, 1996). II
as firmas, por negócios. Assim, desigualdades sociais, poder da bur-
guesia e capitalismo, refletiam as leis da própria natureza. O que
isso significa? Que a ordem social e as desigualdades sociais vão ser
justificadas pela biologia e explicadas pela natureza. Dessa forma, o
evolucionismo tornou-se um paradigma da época e passou a justifi-
car a diferença entre os homens.
As teorias raciais surgidas nos últimos dois séculos foram resulta-
do de uma tentativa de compreensão da diversidade humana por
parte dos intelectuais ocidentais. Tais teorias produziram uma doutri-
na denominada de racialismo. Trata-se da concepção de que existem
características hereditárias, possuídas por membros de nossa espécie,
que nos permitem dividir tal espécie num pequeno conjunto de ra-

Educação a Distância
86 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

ças. Nessa visão, todos os membros dessas raças compartilham entre


si certas características físicas, incluindo-se inclinações morais e inte-
22 De acordo com lectuais, compondo uma essência racial, não encontrada em nenhu-
essa perspectiva, no
contexto de uma ma outra raça, e que deveria ser conservada. No melhor dos casos,
Europa em movimen- cada uma das raças teria uma mensagem a dar ao mundo.
to, carregada nas
costas de vapores,
encouraçados e
Qual o problema dessa concepção de que a humanidade é com-
locomotivas, a posta de diferentes raças? A questão é que o racialismo acabou por
grande China dos
Manchus, com seus
servir de pressuposto para outras teorias chamadas de racismo, que
navios de junco, os passaram a fazer distinções morais entre os membros de diferentes
milhares de samurais raças. Em suas diferentes versões racistas, o racialismo foi responsável
japoneses, as castas
indianas, os rituais por muito sofrimento no mundo, já que se opõe ao reconhecimento
religiosos entre os da condição humana de todos os seres de nossa espécie. O racismo se
povos africanos não
passariam de constitui como elemento chave na legitimação de todas as formas de
manifestações de intolerância e opressão de um povo sobre outro.
diferentes graus de
inferioridade racial.
As inúmeras teorias raciais ganharam peso institucional, orien-
tando as ações governamentais e científicas, num contexto da in-
23 Você deve
dustrialização e da emergência do Imperialismo. Tratavam de negar
lembrar que, por o princípio da igualdade natural entre homens e mulheres, partin-
cerca de trezentos do do pressuposto de que havia diferentes raças e uma hierarquia
anos, a escravidão
imperou no Brasil. entre elas: superior e inferior.22
Nesse período, todas
as atividades, tanto Qual a influência dessas teorias no contexto brasileiro?
rurais quanto urba-
nas, eram realizadas Nossos teóricos dialogaram diretamente com as teorias do
por africanos e afro-
descendentes. evolucionismo, do determinismo social e racial. No contexto final do
século XIX, no Brasil, isto é, com o término da escravidão e o início
24 Em 1872, no da República, o discurso de determinismo racial invadiu o país.23 O
Brasil, 72% da país possuía uma grande massa de afro-descendentes que assustavam
população era
mestiça (MORITZ, as elites brancas dirigentes. Assim, formulou-se o discurso de que o
1996). “Atualmente, o fato de o país ser mestiço constituía-se como um traço representativo
Brasil tem a maior
população negra da degeneração. Os mestiços eram tidos como exemplo da inferiori-
fora da África e a dade racial, e, portanto, a miscigenação levaria ao fracasso do Brasil
segunda maior do
planeta. A Nigéria, como nação24. Qual a solução encontrada pelos teóricos para que o
com uma população Brasil seguisse rumo ao progresso e à civilização?
estimada de 85
milhões, é o único Durante a Primeira República (1889/1930), o Estado brasilei-
país do mundo com
uma população ro, preocupado em colocar o país no caminho da civilização, o atual
negra maior que a primeiro mundo, empenhou-se num árduo esforço para, através de
brasileira”. Ver: http://
www.minc.gov.br/ um aumento dos estoques raciais europeus, promover o branquea-
textos/olhar/ mento do país. Assim, a doutrina racialista norteou a política de imi-
culturanegra.htm
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 87

gração européia e os processos de modernização dos espaços urbanos


nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Não por acaso, a primeira política
de saúde pública efetivamente intensa e ampla preocupou-se com a
erradicação da febre amarela que parecia atingir, no início do século,
principalmente, imigrantes recém-chegados, e deixou sem ataque o
“colera” e a tuberculose que vitimaram milhares de afro-descenden-
tes. Em última instância, tais ações, aliadas ao debate sobre a raça e a
inferioridade dos mestiços, acabaram por abortar a questão da cida-
dania, permitindo uma reafirmação das hierarquias sociais. Em ou-
tras palavras contribuíram para excluir as populações não-européias
do acesso à riqueza, ao poder e ao prestígio.

C
PARA VOCÊ REFLETIR
A
“Sem dúvida, não podemos fazer uma separação mecâni- P
ca entre um problema social que afeta todos os oprimidos
da sociedade, os brancos e os não-brancos, e a questão
Í
racial. Brancos pobres e negros pobres são ambos víti- T
U
mas da mesma causa. A libertação de ambos passa pela
mesma solução, mas não liberta o negro dos efeitos do
racismo que, antes de ser uma questão econômica, é uma
questão moral e ontológica. Numa sociedade como a nos-
L
sa, as questões de raça e de classe mantêm entre si uma O
certa dialética. Mas não há como modificar a condição so-
cial do negro sem atacar diretamente a discriminação raci-
al” (MUNANGA, 1996). II

Foi na década de 1930 que este cenário de pavor da mestiçagem,


vista como um empecilho para o progresso do país, transformou-se,
surgindo, assim, o mito da democracia racial, tão profundamente
arraigado entre nós. Mas o que é o “mito da democracia racial” e
como se constituiu?
Constituiu-se no Estado Novo, quando o governo, com o obje-
tivo de construir uma identidade para a nação, adotou a miscigena-
ção como símbolo. Assim, esse problema transformou-se num traço
de nossa singularidade: aquilo que nos diferencia dos outros. Somos

Educação a Distância
88 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

portanto, todos brasileiros, um povo ordeiro, pacífico e alegre, surgi-


do da mistura de três raças: os índios, os negros e os portugueses. Por
isso a nação brasileira, oficialmente, desconhece a discriminação de
raça, de origem, de credo e é tolerante em relação às diferenças. A
mestiçagem torna-se, nesse contexto, uma das peças ideológicas mais
importantes da democracia racial brasileira. Essa representação aju-
dou na construção de um pensamento em que nosso país é caracteri-
zado por uma única identidade e pela unidade da nação.
Um grande aliado na
construção dessa representa-
ção foi Gilberto Freyre, que,
em seu trabalho “Casa-gran-
de e senzala” (1930), elabo-
rou um quadro idealizado
para a escravidão brasileira,
instituindo a idéia de que, no
Brasil, a escravidão teria se
constituído como uma “boa
escravidão”, com a relação
paternal dos senhores para
com seus escravos fiéis e ami-
25 O mito é enten- gos. Assim, Freyre instituiu a
dido, aqui, no idéia de que a mestiçagem
sentido antropológi-
co, significando uma brasileira ocorreu através de
narrativa que visa a O mestiço, símbolo da identidade brasileira. uma relação social pacífica e
apaziguar conflitos, 1934. Pinacoteca do Estado/SP.
tensões e contradi- harmoniosa.
ções a serem
resolvidos no nível Apesar de existir uma representação tal qual descrita anterior-
da realidade. Esse mente, isso não impede de existir uma outra, que atribui a índios e
mito fundador da
nação impõe um negros os males da nação por serem preguiçosos, assim como não
vínculo com o impede a consideração dos nordestinos como atrasados e das mu-
passado como
origem, que está lheres como inferiores, ou seja, o “mito 25 da democracia racial”
sempre presente, torna-se fundamental no sentido de ocultar e dissimular o precon-
como se a realidade
não se transformas- ceito, ajudando, inclusive, a dificultar a formação da consciência e
se, ou seja, situa-se da identidade política dos membros dos próprios grupos oprimidos.
além do tempo.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 89

PARA SABER MAIS

No Brasil, “oficialmente, negros e mestiços constituem cerca de


45% da população total. Embora estejam presentes culturalmente, eles
constituem a categoria mais ausente e invisível social, política e eco-
nomicamente. [...] Um projeto nacional de construção de uma verda-
deira democracia não pode ignorar a diversidade e as múltiplas identi-
dades que compõem a sociedade brasileira. O reconhecimento da
pluralidade, o respeito pelas identidades e pelas diferenças não é uma
questão romântica e meramente retórica; exige a representação dos
outros, dos excluídos, nas instituições públicas e nos diversos seto-
res da vida nacional. Mas como discutir a representação dos outros
se não admitirmos primeiramente que somos também racistas?”
(MUNANGA, 1996)
C
A
Ao instituirmos um ideário de negação da existência de “ra- P
ças”, já que somos um povo miscigenado, fundimos rapidamente Í
esse ideário com uma política de negação do racismo como fenô-
meno social, o que acaba por forjar, manter e reproduzir diferenças T
e privilégios. Tal ideário, combinado com longos períodos de U
autoritarismo político (1930-45/1964-1985), contribuiu para per- L
petuação de um silêncio criminoso sobre as múltiplas violências
que atingiram de forma brutal as populações não-européias. O
Não por acaso, a primeira legislação anti-racista, a famosa Lei
Afonso Arinos, Lei 1.390/51, que definia a prática de preconceito II
como contravenção penal, partia do pressuposto de que o Brasil não
era uma sociedade racista. Os poucos casos de agressão eram consi-
derados apenas uma manifestação de preconceito racial, atitude
individual, tornada contravenção penal, um ato ilícito de pequena
gravidade, que, como tal, deveria receber uma punição branda.
Somente, a partir da Constituição “Cidadã” de 1988, com a
criminalização de atos de racismo, é que todo um arcabouço jurídi-
co passou a ser organizado de modo a redefinir e a combater a
exclusão racial. Para o Direito Penal Brasileiro, a prática da discri-
minação e do preconceito por raça, etnia, cor, religião ou procedên-
cia nacional consiste em um delito previsto na lei 7.716/89, altera-
da pela lei 9.459/97. As referidas legislações foram promulgadas

Educação a Distância
90 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

em consonância com o art. 5º, inciso XLI, que estabeleceu, em foro


Constitucional, a prática do racismo como crime inafiançável e im-
prescritível, sujeito à pena de reclusão.
A Lei 9.459, de 13.05.1997, corrigiu a Lei 7.716, de
15.01.1989, modificando os artigos 1º e 20, e revogando o art. 1º
da Lei 8.081 e a Lei 8.882, de 03.06.1994. Além de punir, com
penas de até cinco anos de reclusão e multas, os crimes resultantes
de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou pro-
cedência nacional, introduziu no art.140 do Código Penal, o pará-
grafo terceiro, tipificando a injúria, com utilização de elementos
relacionados a raça, cor, etnia, religião ou origem, com penas de
reclusão de um a três anos, mais multas.

PARA SABER MAIS

1. Para aumentar seu conhecimento sobre o que você estu-


dou até o momento, sugerimos que assista aos seguintes filmes:
Cor púrpura;
Passagem para a Índia.

2. Para leituras complementares sugerimos:


CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na História do Bra-
sil: mito e realidade. São Paulo: Editora Ática, 1994.
MAIO, Marcos e SANTOS, Ricardo Ventura dos (Org.). Raça,
ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB, 1996.
SCHWARCZ, Lilia M. (Org.) Raça e diversidade. São Paulo:
Edusp, 1996.

3. Se você realizar uma pesquisa na internet, sugerimos os se-


guintes sites:
http://www.minc.gov.br/textos/olhar/culturanegra.htm
http://www.cefetsp.br/~eso/leibrasilracismo.html
http://www.cefetsp.br/~eso/facepreconceito.html
http://www.intelecto.net/cidadania/nada.htm
h t t p : / / w w w. t e r r a . c o m . b r / i s t o e / 1 6 5 7 / b a r s i l /
1657_preconceito_oculto.htm
http://www.uem.br/~urutagua/02jairo.htm
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 91

Atividades - O mito da democracia racial.

20 minutos.

A atividade que segue tem como objetivo específico que


você aprofunde seus conhecimentos a respeito do estabelecimento
das teorias raciais e do “mito da democracia racial” no Brasil.
1. De acordo com o texto, defina o que é uma raça e aponte
a diferença entre racismo e racialismo.

C
A
P
Í
T
U
L
O

Comentário II
Uma raça é formada por um grupo populacional considerado geneticamente
singular no interior de uma espécie biológica. O termo também pode ser percebido
como sendo as diferentes partes que compõem a humanidade. Racialismo é a
doutrina que concebe a humanidade como podendo ser dividida em um pequeno
grupo de raças passíveis de serem apreendidas através de atributos físicos como
cor de pele e formato de nariz, boca e cabelo. Já o racismo é uma prática de poder
através da qual uma pessoa é privada de seus direitos como cidadã devido ao seu
pertencimento a um determinado grupo étnico.

2. De acordo com o que você leu, explique a emergência


das teorias raciais nas sociedades ocidentais, comentando a relação
entre as teorias raciais e a implementação do processo de branquea-
mento da população brasileira.

Educação a Distância
92 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

Comentário
É importante refletir que as teorias raciais surgiram no século XIX no auge da
expansão do capitalismo e foram fundamentais para negar a igualdade natural entre
os homens e justificar a dominação européia de seus descendentes sobre povos,
nações e continentes inteiros. Discutir a política governamental baseada nas teori-
as raciais que previa o branqueamento do país através de uma combinação de
abolição da escravidão africana com a importação em massa de europeus.

3. Comente o que é o “mito da democracia racial” e como


ele se constituiu.

Comentário
Em sua resposta tem de estar presente a idéia do contexto histórico do supri-
mento do mito da democracia racial, segundo o qual o fato de o Brasil ser constituido
pela mistura de raças (negro, índio e o branco), invalida a existência de raça. Se
não existe raça, não existe racismo.
O MULTICULTURALISMO: USOS E SENTIDOS 93

RESUMO

As teorias raciais dos últimos dois séculos foram fruto de


uma tentativa de compreensão da diversidade humana por parte
dos intelectuais ocidentais. Tais teorias produziram uma doutrina
denominada de racialismo: a concepção de que existem carac-
terísticas hereditárias, possuídas por membros de nossa espé-
cie, que nos permitem dividir tal espécie num pequeno conjunto
de raças, cujos membros compartilham entre si certos traços e C
tendências que nada têm em comum com membros de nenhuma
outra raça. As teorias raciais que ganharam peso institucional e A
se disseminaram pelo século XIX, negavam o princípio da igual- P
dade natural entre os homens e as mulheres. No chamado “Novo
Mundo”, tais teorias foram responsáveis por uma racialização de
Í
inúmeras tensões sociais e pela legitimação de todas as formas T
de intolerância e de opressão. U
No Brasil, essas teorias acabaram ajudando na formulação
do discurso de que o fato de o país ser mestiço constituía-se como
L
um traço representativo da degeneração e que levaria ao fracas- O
so do país como nação. Assim, a solução encontrada no período
foi o branqueamento da população, através do incentivo à imigra-
ção. Na década de 1930, a mestiçagem, de problema e empeci- II
lho para o progresso do país, tornou-se um traço positivo, pois a
jovem nação adotou a miscigenação como símbolo. Somos por-
tanto, todos brasileiros, um povo ordeiro, pacífico e alegre, sur-
gido da mistura de três raças: os índios, os negros e os portugue-
ses, por isso a nação desconhece oficialmente a discriminação
de raça, origem, credo e é tolerante em relação às diferenças. A
mestiçagem torna-se nesse contexto uma das peças ideológicas
mais importantes da democracia racial brasileira. Essa represen-
tação ajudou na construção de um pensamento em que nosso

Educação a Distância
94 ANTROPOLOGIA CULTURAL E MULTICULTURALISMO

país é caracterizado por uma única identidade e pela unida-


de da nação. O “mito da democracia racial” torna-se funda-
mental no sentido de ocultar e de dissimular o preconceito,
ajudando, inclusive, a dificultar a formação da consciência e
da identidade política dos membros dos próprios grupos opri-
midos, Isso porque, ao instituirmos um ideário de negação
da existência de “raças”, já que somos um povo miscigenado,
fundimos rapidamente tal ideário com uma política de nega-
ção do racismo como fenômeno social, que acaba por forjar,
manter e reproduzir diferenças e privilégios.

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