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Lavoura arcaica:
silêncio e imagens poéticas de André
EDUARDO NAVARRETE*

Resumo
O objetivo é analisar o romance Lavoura Arcaica do escritor Raduan Nassar
sob o enfoque do silêncio e das imagens poéticas. Mais precisamente, nos
ateremos aos diálogos do narrador protagonista André, buscando em seu
discurso o modo como se dão certos silenciamentos e como são construídos
alguns conjuntos de imagens. Ao fim, concluímos que tais recursos estéticos
são a camuflagem de certas verdades ocultas do narrador.
Palavras-chave: Silêncio; Imagens poéticas; Raduan Nassar.
Abstract
The purpose is to analyze the novel Lavoura Arcaica of the writer Raduan
Nassar from the standpoint of silence and poetic images. More precisely, we
will keep the dialogues of the narrator protagonist André, seeking in his
speech the way they give certain silences and how some sets of images are
built. At the end, we concluded that such aesthetic features are the
camouflage of certain truths hidden from the narrator.
Key words: Silence; Poetic images; Raduan Nassar.

* EDUARDO NAVARRETE é Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá.


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Personagem André – Filme Lavoura Arcaica

Introdução livro Lavoura Arcaica, seu único


romance, para discutir como é abordada
aí a questão do silêncio. O objetivo é
“... Corremos graves riscos quando falamos” analisar como se articulam imagens
Raduan Nassar poéticas e silêncios, como que da ligação
inerente entre os dois emergem os
Se há uma palavra que serve para significados literários.
descrever Raduan Nassar com precisão Para tanto, o artigo foi dividido em três
essa palavra é silêncio. Pode parecer partes. Na primeira, é realizada uma
paradoxal que um escritor, ou seja, discussão teórica, trazendo à baila os
alguém que tem como matéria-prima a textos que embasam e definem os
palavra, receba a pecha de silencioso, conceitos de silêncio e imagens poéticas.
mas tanto em sua vida pessoal quanto em Na segunda, já tratando especificamente
sua obra, Nassar foi um mestre na do personagem André, verificamos como
articulação do não dizer. Abandonou a ele, no diálogo com seu irmão Pedro,
carreira de escritor no auge dela, guarda silêncio, sempre evitando a
precisamente no momento em que era palavra.
considerado um dos grandes do Brasil e
recebia diversos prêmios e traduções, E, por fim, na terceira parte, abordamos
sendo que daí em diante fechou-se em um as imagens poéticas e buscamos
mutismo só quebrado por raras compreender como as imagens que André
entrevistas cujas respostas eram sempre usa em seus dois diálogos capitais no
muito lacônicas e secas. romance – com o pai e com o irmão mais
velho – servem para gerar uma neblina
Seus poucos textos – ele escreveu apenas que oculta sua grande verdade. Veremos,
três livros, todos relativamente curtos –, então, que as imagens também, ao seu
sempre construídos com uma linguagem modo, são uma forma de silenciamento.
enxuta e elíptica, carregada de sentidos
não ditos, é um primoroso exemplar de
que a literatura pode dizer muito com
pouco. Neste artigo, selecionamos seu
Silêncio e imagens: conceitos poesia não viveria, pois ela é linguagem
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transfigurada. Só através da imagem é
Antes entrar diretamente no texto de que a linguagem se transforma em
Nassar, cabe aqui alguns esclarecimentos poesia” (PINHEIRO, 1983, p.14). É,
teóricos. Nosso objetivo, como foi dito, é como se vê, um conceito muito amplo
trabalhar com as questões da imagem que abrange figuras de linguagem como
poética e do silêncio em Lavoura metáforas, metonímias, etc., mas que
Arcaica. Neste sentido, é necessário serve aos fins a que nos propomos nesta
realizar alguns apontamentos pesquisa.
preliminares com vistas a definir estes
dois conceitos que irão nortear a feitura Já para precisar o conceito de silêncio
desse artigo. com que trabalharemos recorreremos aos
textos Os Limites do Método e da
Para definir imagem será usado o texto da Observação e Silêncio, Sujeito, História:
Maria Sampaio Lúcia Pinheiro chamado Significando as Imagens, ambos
Poesia e Imagem, contido no livro presentes no Livro As Formas do
Vivência Lírica. Aqui a autora diz que Silêncio: No Movimento dos Sentidos, de
existem duas correntes totalmente opostas Eni Orlandi. Nestes escritos, a
quando se trata de dizer o que é imagem pesquisadora procura, através de uma
poética: a primeira toma a imagem como abordagem que ela chama de perspectiva
algo que transcende a poesia, como uma discursiva, conceber o silêncio de uma
criação do espírito, um fenômeno do ser, maneira positiva, afirmativa, se opondo,
algo que seria do domínio da metafísica assim, a uma abordagem mais tradicional
ou da psicanálise; e a segunda, voltando e negativa do silêncio.
às costas para questões de transcendência,
afirma que a imagem é puramente um Essa maneira não negativa de encarar o
fenômeno linguístico e literário, feito de silêncio evita tomá-lo, a exemplo do que
palavras de nosso código. Haveria, se faz na filosofia, como o silêncio do
portanto, entre os autores que estudam não significado, do nada, da morte, o que
imagens, uma oposição, sendo que, em o excluiria de seu campo de análise. A
geral, se adota uma ou outra daquelas intenção de Orlandi, ao contrário, é ver o
posturas. silêncio como um formador de sentidos:
“a partir dessa concepção não o
Acreditamos, contudo, que essa oposição definimos negativamente em relação à
dicotômica entre a transcendência e a linguagem (o que ele não é) mas em sua
imanência linguísticas estabelecida por relação constitutiva com a significação, o
Pinheiro não é absoluta, uma vez que a que ele é” (ORLANDI, 1997, p.44).
imagem pode ser as duas coisas ao
mesmo tempo, isto é, pode ter uma Para a pesquisadora, portanto, os sentidos
dimensão imanente e outra transcendente. só surgem da articulação entre linguagem
Então, creio que se pode partir de uma e silêncio. O silêncio é necessário,
conceituação bastante básica, mas que essencial, para as significações de um
contempla ambas as perspectivas. dado texto tanto quanto as próprias
palavras – é o que ela denomina de
Tomaremos imagem poética, portanto, silêncio fundante. Ao lado da análise das
como algo “anterior ao pensamento” e palavras é preciso, desse modo,
que produz uma aproximação entre coisas compreender o silêncio, isto é, seus
opostas ou distanciadas entre si, violando, modos de significar, de produzir sentido.
assim, o código convencional da Há, na perspectiva de Orlandi, uma
linguagem. “Sem os desvios a imagem, a política do silêncio, isto é, o silêncio, bem
como as palavras, é produzido a partir de Para se compreender esse silêncio, é
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dados interesses dos sujeitos. necessário compreender a situação, o
contexto narrativo em que ele se
Com efeito, tal dimensão considera que, encontra. A trama toda do livro é
dado que o sentido é sempre produzido a arquitetada sobre o amor incestuoso entre
partir de um lugar, de uma posição do André e Ana, sua irmã. André abandonou
sujeito, tal sujeito, quando diz algo, está a casa depois que Ana recusou sua
necessariamente não dizendo outras proposta de manter um relacionamento
coisas. Em outros termos, expressar um clandestino, às escondidas, longe dos
sentido é não deixar que outros venham à olhos da família. Ele estava em um quarto
tona: “há pois uma declinação política da de pensão quando Pedro, seu irmão mais
significação que resulta no silenciamento velho, vai busca-lo. Logo que se
como forma de não calar mas de fazer encontram dá-se entre eles um diálogo
dizer ‘uma coisa’, para não deixar dizer cheio de subentendidos e de imagens
‘outras’” (ORLANDI, 1997, p.55). O enigmáticas. André contém uma verdade
dizer, assim, sempre pressupõe um calar. explosiva que não pode ser revelada. O
amor entre os dois irmãos é um segredo
André: o silêncio que poderia botar abaixo toda a estrutura
daquela rígida família.
Iniciaremos pela abordagem do silêncio
e, posteriormente, no debruçaremos sobre O incesto é um tabu universal, talvez seja
a análise das imagens. Mas de que o grande tabu da humanidade, mais forte
silêncio, especificamente, iremos tratar? que todos os outros, uma vez que se
O romance Lavoura Arcaica comporta acredita que ele é uma ameaça à própria
diversas aberturas quando o tema é o espécie humana. Os amores proibidos na
silêncio. Poderíamos, de fato, comentar a literatura, em geral, sempre giraram em
respeito silêncio da personagem Ana, que torno de uma interdição classista, isto é,
não profere uma palavra sequer durante os amantes pertenciam à classes
toda a narrativa, ou poderíamos tratar do diferentes, o que impossibilitava a
silêncio da linguagem do livro como um realização de tal amor e significava uma
todo, que é marcado por elipses e por ameaça à ordem social. Temos, nesse
uma concisão vocabular. sentido, os exemplos dos romances da
Porém, em vez disso, iremos nos ater ao primeira fase de Machado de Assis e
silêncio do protagonista André, que não é Romeu e Julieta. No caso de Lavoura
um silêncio de um mutismo absoluto, Arcaica, contudo, o amor incestuoso não
mas, sim, um silêncio que se manifesta, é só uma ameaça à ordem social, como
como Orlandi (1997) afirma, quando se também à própria manutenção da espécie
diz uma coisa para não deixar dizer humana. Trata-se, pois, de algo muito
outras. Vamos operar, portanto, dentro mais perigoso.
daquilo que a autora denomina de política Por isso, a verdade de André, a qual ele
do silêncio, tal como se expressa na fala tem que silenciar, é explosiva, tanto que
do narrador protagonista. Mais no momento em que ela vem à tona,
especificamente, ainda, o foco será os Iohána, seu pai, assassina Ana e, além
diálogos que André tem com o irmão disso, Nassar sugere que o patriarca tenha
logo no início da narrativa e com o pai já se matado ao fim. É uma verdade que tem
perto do fim depois de ele ter retornado à de ser silenciada a todo custo. O que é
casa. Os dois diálogos são cruciais para a feito, a princípio, pela própria recusa da
narrativa e dominam boa parte do livro. fala, pelo silêncio propriamente dito. Em
vários trechos do início ele, relembrando diálogo inicial travado com o irmão, ele
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sua conversa com o irmão, adverte o prefere calar. Porém, essa vontade vai
leitor de que poderia dizer certas coisas, crescendo à medida que bebem vinho e
mas que optou por nada dizer. A primeira que caminha a conversa. Até que chega o
vez em que ele toca no assunto, logo após momento em que ele estoura. Há uma
ter aberto a porta para Pedro, ele gradação nesse silêncio, em que a
demonstra certo temor em deixar essa vontade de falar vai tornando-se cada vez
verdade escapar: mais irreprimível até o ponto em que ele
não suporta mais e rompe com o
... voltamos a nos olhar e eu disse
“não te esperava” foi o que eu disse silenciamento. As coisas que ele dirá no
confuso com o desajeito do que dizia desenrolar da trama, entretanto, também
e cheio de receio de me escapar não representam uma forma de silêncio.
importava com que eu lá fosse dizer Como afirmou Orlandi (1997), em termos
(NASSAR, 1989, p.11). de política do silêncio, os textos (em
sentido amplo) dizem uma coisa para não
Em outro momento, mais à frente, ele é
deixar dizer outras. A fala de André irá
invadido por impulso de falar, mas
representar, paradoxalmente, uma forma
conseguiu se conter:
de silenciar sua verdade explosiva. As
E foi uma onda curta e quieta que me imagens que utilizará em seu discurso
ameaçou de perto, me levando impulsivo atuarão nesse sentido.
quase a incitá-lo num grito “não se
constranja, meu irmão, encontre logo a André: as imagens
voz solene (...)”, mas me contive,
achando que exortá-lo, além de inútil,
No decorrer da análise nos deparamos
seria uma tolice (NASSAR, 1989, p.17). com dois grandes conjuntos de imagens
em Lavoura Arcaica. Pode,
Sua ânsia por falar o leva, na sequência, a evidentemente, existir outros, mas esses
fazer a mesma coisa: diz que cogitou em dois são, em nosso entender, os
dizer algo, mas optou por não dizer: principais, uma vez que são bastante
(...) E surpreso, e assustado, senti recorrentes: imagens relacionadas à
que a qualquer momento eu poderia doenças e imagens bucólicas.
também explodir em choro, me
ocorrendo que seria bom aproveitar
Com relação a esse último, constatamos
um resto de embriaguez que não se que ele perpassa o romance todo e, quem
deteriora espantar com sua chagada sabe, boa parte da obra de Nassar, não só
para confessar, quem sabe porque Lavoura Arcaica se passa no
piedosamente, “é meu delírio, campo, bem como Um Copo de Cólera,
Pedro, é meu delírio, se você quer mas porque a maneira que o narrador
saber”, mas isso foi só um passar encontra para descrever lugares, coisas,
pela cabeça um tanto tumultuado pessoas, sensações, etc., está, muitas
que me fez virar o copo em dois vezes, referenciada em coisas
goles bem rápidos, e eu que achava pertencentes ao mundo rural. Ele faz
inútil dizer fosse o que fosse, passei
aquilo que a Maria Sampaio (1983) diz
a ouvir (NASSAR, 1989, p.18).
ser próprio da construção de imagens
Em diversas outras partes, André voltará poéticas: aproxima coisas distanciadas,
a falar dessa inutilidade do dizer, dessa estabelecendo algum princípio de
inutilidade da palavra. Talvez porque o semelhança (no caso, aproxima coisas,
diálogo não poderia resolver, de nenhum pessoas, sensações, etc., às coisas do
modo, sua situação. Ao contrário, falar a campo), transfigurando, assim, a
complicaria mais ainda. Então, nesse linguagem convencional. É mais do que
claro que esta disposição do autor para retirando do incesto toda a impureza, toda
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usar o mundo camponês como uma carga moralmente negativa, a ele
espécie de lente através da qual ele associada desde os primórdios da
enxerga a vida vem de sua experiência humanidade. A construção dessa imagem,
como homem do campo, como indivíduo portanto, tem uma função bastante
oriundo de uma família de forte tradição precisa. Ao associar esses dois universos
campestre. – a caça e o incesto –, André pretende
conferir inocência à Ana e a si mesmo.
O melhor exemplo para ilustrar a
presença de imagens deste tipo é de um O outro conjunto de imagens ao qual nos
pássaro típico dos meios rurais e que é referimos, o das doenças, é o que guarda
carregado de simbolismos. Ele aparece relação profunda com o silêncio. Na
em uma cena que acontece quando Ana primeira parte do livro, durante o diálogo
se apresenta para André na casa velha e com o irmão, ele se mantém em silêncio
eles consumam o incesto. André usa a até não suportar mais e, sob efeito do
imagem de uma pomba para se referir à vinho, irrompe ensandecido, espumando
Ana, rememorando os tempos de menino pela boca, e fala de si mesmo como de
em que as caçava: um epiléptico. Sua irrupção, seu sair do
silêncio, se dá sintomaticamente logo
Voltando ao quarto onde eu ficava, após Pedro falar sobre a falta que Ana
mal entrei voei para a janela, sentia dele: “eu berrei transfigurado, essa
espiando através da fresta (Deus!):
transfiguração que há muito devia ter-se
ela estava lá, não longe da casa
debaixo do telheiro selado que
dado em casa ‘eu sou um epiléptico’ fui
cobria a antiga tábua de lavar (...) e explodindo...” (NASSAR, 1989, p.41). É
eu me lembrei das pombas, as um momento em que ele se define como
pombas da minha infância (...) e um doente.
fiquei imaginando que para atraí-la
de um jeito correto eu deveria ter Há diversas outras cenas em que ele, do
tramado com grãos de uva uma mesmo modo, fala de si mesmo como de
trilha sinuosa até o pé da escada (...) um enfermo, como um portador de uma
e a cada bico e a cada ponto, doença maligna, um câncer, etc. É claro
tremendo depois as asas, que ele está usando a doença, a epilepsia,
ameaçando as penas em recuo, até como uma metáfora para seu amor/desejo
que, transpondo o arco da peneira, incestuoso. Porém, o irmão toma ao pé da
u, doce alimento faria esquecer, letra vendo-o realmente como um louco.
projetada na terra, a grade da sua E o ser visto como um louco pelo irmão
tela (NASSAR, 1989, p.96-100).
dava certa liberdade para André, já que o
Durante todo o capítulo 17 ele vai louco sempre pode dizer qualquer coisa
trabalhar com essa imagem que associa sem ser levado a sério. E foi, assim, tido
Ana a tal pássaro e descreve o encontro por demente, que André, quase ao fim da
entre ambos na casa velha como o conversa com o irmão, em transe, revela
momento em que ele, menino, capturava sua verdade. Mas agora suas palavras não
as tais aves na armadilha de uma peneira. têm mais peso, são vistas por Pedro como
Se considerarmos que a pomba é delírios, como expressões da sua loucura:
tradicionalmente símbolo da pureza, da “Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana
paz, e que André é um menino, pode-se a minha fome” explodi de repente
concluir que tal descrição do ato amoroso num momento alto, explodindo
e sexual incestuoso que se deu nesse num só jato violento meu carnegão
momento, é identificado a um ato puro, maduro e pestilento, “era Ana a
minha enfermidade, ela a minha muitos trabalham, geme o tempo todo,
loucura, ela o meu respiro, a minha 119
esgotam suas forças, fazem tudo que é
lâmina, meu arrepio, meu sopro, o possível, mas não conseguem apaziguar
assédio impertinente dos meus sua fome” (NASSAR, 1989, 159).
testículos” (NASSAR, 1989, Obviamente, o leitor sabe que essa fome
p.110).
de que André fala se refere, na verdade,
A metáfora da doença, da epilepsia, da ao amor proibido que ele sente pela irmã,
loucura, que André usa para definir sua amor este que ele tem que manter em
condição, para definir o incesto (este segredo. Iohána, porém, desconhecendo
seria tão ameaçador à espécie, à família, tal paixão secreta e informado pelo irmão
quanto uma doença ao organismo), de que ele provavelmente estava enfermo,
camufla sua verdade, serve para silenciá- entende a metáfora em sentido literal,
la. É um dizer que abafa, digamos assim, crendo que André realmente falava da
outros dizeres. fome como a falta de alimentação:
O pão contudo sempre esteve à
E o silêncio de André prossegue na mesa, provendo igualmente a
segunda parte do livro – O Retorno – por necessidade de cada boca, e nunca
meio de uma outra imagem que ele te foi proibido sentar-se com a
utilizará com frequência, qual seja, a da família, ao contrário, era esse o
fome. Se a primeira parte foi marcada por desejo de todos, que você nunca
um intenso diálogo entre ele e Pedro, a estivesse ausente na hora de repartir
segunda terá um de seus pontos o pão (NASSAR, 1989, p.161).
culminantes na conversa que André tem Na sequência, André chega a esclarecer
agora com seu pai Iohána. Trazido de que não é deste tipo de fome de que ele
volta à casa depois de uma partida fala, mas o pai não pode compreender o
aparentemente sem motivos, o que se passa e crê que o filho realmente
protagonista terá de se haver com o esteja acometido de alguma doença:
patriarca que, na tradicional mesa de
jantar, lhe interrogará sobre as razões de - Não falo deste alimento, participar
sua fuga. E, assim como antes, ele só da divisão deste pão pode ser em
permanecerá em seu silêncio, dizendo certos casos simplesmente uma
certas coisas para impedir que outras crueldade: seu consumo só prestaria
para alongar a minha fome; tivesse
venham à tona, fazendo, inclusive, de seu
de sentar-me à mesa só com esse
silêncio uma filosofia: “Não acredito na fim, preferiria antes servir-me de
discussão de meus problemas, não um pão acerbo que me abreviasse a
acredito mais em troca de pontos de vista, vida.
estou convencido, pai, de que uma planta
nunca enxerga a outra” (NASSAR, 1989, - Do que é que você está falando?
p.162). - Não importa.

E, de fato, André não quer que seu pai o - Você blasfemava.


enxergue como ele realmente é, não quer - Não, pai, não blasfemava, pela
que ele saiba de seus sentimentos. Para primeira vez na vida falava como
manter essa camuflagem, ele lançará mão um santo.
da metáfora da fome. Quando seu pai o
- Você está enfermo, meu filho...
inquire sobre o porquê de sua fuga, ele
(NASSAR, 1989, p.161).
responde que o fez por que estava
cansado de dedicar-se, de trabalhar, e não Para o pai, portanto, André é vítima de
ter saciada sua fome: “Acontece que alguma perturbação. E é, por isso, que ele
interpreta suas palavras como uma grande Considerações finais
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confusão de ideias. A estratégia de
Vemos com esta exposição que Raduan
André, nesse sentido, funciona, e ele Nassar usou em Lavoura Arcaica o
consegue manter o amor incestuoso em
silêncio como um recurso estético de
segredo, ele diz sem dizer:
extrema importância. Foi somente graças
- Não vejo como todas essas coisas ao silêncio de André, tanto inicialmente
se relacionam, vejo menos ainda quando ele se nega a falar quanto
por que te preocupam tanto. Que é posteriormente quando fala por meio de
que você que dizer com tudo isso? imagens enigmáticas aos olhos de seus
- Não quero dizer nada. interlocutores, que o segredo do incesto é
- Você está perturbado, meu filho. mantido e que o conflito dramático pôde
se desenrolar. Podemos dizer, até mesmo,
- Não, pai, eu não estou perturbado que sem tal recurso o romance não
(...). poderia existir. Pois senão houvesse
- Quero te entender, meu filho, mas estratégias de silenciamento por parte do
já não entendo nada (NASSAR, protagonista não seria possível a
1989, p.165). manutenção do segredo. E sem o segredo
O silêncio só será quebrado quando não haveria o conflito que foi o motor da
Pedro, que havia ficado ensimesmado narrativa. A prova disso é que quando a
com as coisas que André lhe tinha dito, verdade vem à tona, ou seja, quando se
sobretudo com as referências obscuras descobre o amor proibido entre os
feitas à irmã, vê Ana dançar raivosamente irmãos, o romance acaba de forma
com as quinquilharias das prostitutas que trágica. O fim do silêncio significou o fim
o irmão conheceu e que já havia lhe da estória.
mostrado. Nesse momento, ele percebe
que há algo entre Ana e André e não
Referências
demora muito para intuir que se trata de
um amor proibido. Então, ele denuncia os NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
dois para o pai que assassina a própria
filha. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do
silêncio: No movimento dos sentidos. 4. ed.
Campinas: UNICAMP, 1997
SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. Vivência
lírica. São Paulo: Editora do Escritor, 1983.

Recebido em 2016-03-12
Publicado em 2016-06-15

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