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Espiritualidade Quaresmal

A palavra Quaresma vem do Latim quadragésima e é utilizada para designar o


período de quarenta dias que antecedem a festa ápice do cristianismo: a Ressurreição
de Jesus Cristo, comemorada no famoso Domingo de Páscoa. Esta prática data desde o
século IV.

Essencialmente, o período é um retiro espiritual voltado à reflexão, onde os


cristãos se recolhem em oração e penitência para preparar o espírito para a acolhida
do Cristo Vivo, Ressuscitado no Domingo de Páscoa. Assim, retomando questões e
prácticas espirituais, o cristão está renascendo, como Cristo e com Cristo.

Na Quaresma, que começa na quarta-feira de cinzas e termina na quarta-feira


da Semana Santa, os católicos realizam a preparação para a Páscoa e é feito um
esforço para recuperar o ritmo e estilo de verdadeiros fiéis que pretendem viver como
filhos de Deus. O período é reservado para a reflexão, a conversão espiritual. Ou seja,
o católico deve se aproximar de Deus visando o crescimento espiritual. Os fiéis são
convidados a fazerem uma comparação entre suas vidas e a mensagem cristã expressa
nos Evangelhos. Esta comparação significa um recomeço, um renascimento para as
questões espirituais, de crescimento pessoal e de compromisso comunitário. O cristão
deve intensificar a prática dos princípios essenciais de sua fé com o objetivo de ser
uma pessoa melhor e proporcionar o bem para os demais.

Quaresma, tempo de conversão

Quaresma tempo forte de caminhada na nossa conversão em Cristo para o Pai.


Não é um tempo triste mas sim um tempo sério. Um tempo particularmente destinado
para nos confrontarmos com a verdade do que somos. É a verdade a descobrir, mesmo
que seja miséria, o irmos ao fundo de nós mesmos e descobrirmos o que somos, o que
valemos. Tempo de esperança porquanto acreditamos na conversão, acreditamos que
Deus pode transformar os nossos hábitos enraizados, que podemos atacar seriamente
os nossos defeitos criando em cada coração humano espaços de justiça e de perdão.
O homem questiona-se

Quantas vezes nos caminhos do mundo o homem se interroga em termos de


futuro, em termos de fim último. Pressente no seu íntimo que não pertence a estas
paragens, anseia no mais fundo de si mesmo por horizontes de infinito e de plenitude,
experimenta-se contudo ferido de pecado... deseja uma coisa, pratica outra.

O homem sente-se necessitado de conversão, ou seja, desviar o coração dos


ídolos e volta-lo para Deus, fonte de paz.

Tempo de paragem

Quaresma, tempo de paragem. Na vida agitada que levamos, cada vez é mais
difícil pararmos. O cristão se não quer sucumbir à vertigem do estilo de vida nos dias
de hoje tem necessariamente de parar para se reencontrar.

Precisa de fazer "deserto" ou seja estado de encontro consigo mesmo no


encontro com a sua condição de baptizado, de Cristão. A experiência de "deserto"
proporciona-nos a oportunidade de avaliarmos o nosso estado actual de opções
pessoais percorridas, o seu esclarecimento à luz do Ressuscitado, que se revelarão
mais esclarecidas e necessariamente passarão a ser mais assumidas. Todo o contacto
sério e profundo com Cristo, transfigurar-nos-á, o que equivale a dizer que nos
cristificará tomando-nos também a nós filhos dignos do Pai.

O cristão na Quaresma precisa de fazer "retiro", isto é, entrar em si mesmo,


autoquestionar-se nos caminhos que tem percorrido, aprofundar a consciência de
baptizado, de filho de Deus, de membro da Igreja, de templo do Espírito Santo.

Tempo de escuta da Palavra

Tempo forte de escuta da Palavra. A Palavra de Deus é fonte de vida. Ela tem a
capacidade de avivar áleas da nossa vida que porventura estejam adormecidas ou,
quem sabe, até mesmo doentes. Além disso a Palavra de Deus tem de entra1no
coração, ser aceite pela fé e tornar-se vida e isso só é possível quando o cristão se abre
à acção do Espírito Santo, senhor da vida, porque é Ele que no tom íntimo das
consciências nos leva a aceitar a Palavra da Salvação.

No entanto o Espírito exige um certo hábito de interiorização, de escuta do não


evidente nem imediato, de contemplação e discernimento, e não é isto a que nos
vimos habituando, hoje nesta vida dos tempos modernos cheios de palavras mas
tantas vezes alheio à Palavra, à única Palavra de vida eterna.

Porque não, nesta Quaresma, uma vez por semana, nas nossas casas, deixar de
dar a primazia à televisão e dedicar um serão à leitura e à partilha da Bíblia ? Acredito
que seja difícil, mas façamos isso num espírito penitencial, pois a Quaresma é também
tempo forte de penitência que nos purifica criando em nós espaços de conversão e
santificação pessoal.

Tempo de oração

Para nós cristãos o nosso modelo de vida é Cristo. Como é que Cristo viveu a
sua Quaresma? Como é que Cristo atingiu a sua Ressurreição, a vitória final sobre a
morte? Cristo vai para o deserto e vive um tempo forte de escuta do Pai. Através da
oração, no deserto, assume a vontade do Pai identifica-se com ela, faz sua a vontade
do Pai assumindo assim a condição de Filho verdadeiro.

A nossa ressurreição está garantida na Ressurreição de Cristo mas só lá


chegaremos na medida em que O imitarmos e para isso necessário é identificarmo-nos
com Ele, fazendo nossa a sua vida e toda a sua vida foi um "faça-se em Mim segundo a
Tua Vontade, ò Pai".

A Quaresma é tempo forte de oração, de intimidade com Cristo, de comunhão


de vidas, isto é, do colocar a nossa vida na vida do Ressuscitado para que assim a nossa
vida purificada no sangue do cordeiro, lavada do nosso pecado, chegue ao Pai santa e
imaculada.

Nesta Quaresma rezemos a nossa vida: no mais intimo de nós mesmos, na


qualidade das nossas relações com os irmãos, na seriedade da nossa relação com Deus
e um dia semelhantes com Cristo na morte com Ele ressuscitemos para a vida de
plenitude.

Jesus: o deserto e a tentação

Antes de iniciar sua vida pública, logo após ter sido batizado por João no rio
Jordão, Jesus passou 40 dias no deserto.  Esse retiro de Jesus mostra a necessidade
que Ele teve em se preparar para a missão que O esperava.  Contam os Evangelhos que
no deserto Jesus era conduzido pelo Espírito, o que quer significar que vivia em oração
e recolhimento, discernindo a vontade de Deus para Sua vida e como atuaria a partir
de então. No tempo que passou no deserto Jesus teve uma profunda experiência de
encontro com o Pai.  E, tendo vivido intensamente esse encontro, foi tentado pelo
diabo. 

Os Evangelhos falam dum tempo de solidão que Jesus passou no deserto,


imediatamente depois de ter sido baptizado por João: «Impelido» pelo Espírito para o
deserto, Jesus ali permanece sem comer durante quarenta dias. Vive com os animais
selvagens e os anjos servem-n'O (Cf. Mc 1,13).

No fim desse tempo, Satanás tenta-O por três vezes, procurando pôr em causa
a sua atitude filial para com Deus; Jesus repele esses ataques, que recapitulam as
tentações de Adão no paraíso e de Israel no deserto; e o Diabo afasta-se d'Ele «até
determinada altura» (Lc 4, 13).

Os evangelistas indicam o sentido salvífico deste acontecimento misterioso,


Jesus é o Novo Adão, que Se mantém fiel naquilo em que o primeiro sucumbiu à
tentação. Jesus cumpre perfeitamente a vocação de Israel: contrariamente aos que
outrora, durante quarenta anos, provocaram a Deus no deserto (Cf. Sl 95,10), Cristo
revela-Se o Servo de Deus totalmente obediente à vontade divina. Nisto, Jesus vence o
Diabo: «amarrou o homem forte», para lhe tirar os despojos (Cf. Mc 3,27). A vitória de
Jesus sobre o tentador, no deserto, antecipa a vitória da paixão, suprema obediência
do seu amor filial ao Pai.
A tentação de Jesus manifesta a maneira própria de o Filho de Deus ser
Messias, ao contrário da que Lhe propõe Satanás e que os homens (Cf. Mt 16, 21-23)
desejam atribuir-Lhe. Foi por isso que Cristo venceu o Tentador, por nós: «Nós não
temos um sumo-sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas; temos um,
que possui a experiência de todas as provações, tal como nós, com excepção do
pecado» (Heb 4, 15). Todos os anos, pelos quarenta dias da Grande Quaresma, a Igreja
une-se ao mistério de Jesus no deserto (Cf. CIC 538-540).

As tentações que Jesus viveu – e venceu! – nos são apresentadas como aquelas
que também nós vivemos e precisamos vencer.  Jesus havia experimentado o encontro
com o Pai em sua totalidade, no silêncio e na solidão do deserto.  Estava, pois, cheio
do Espírito que Lhe revelava o amor incondicional do Pai e a dimensão inimaginável do
poder desse amor se o vivermos em sua plenitude.  É aqui que a natureza humana se
revela em fragilidade: se pudermos ter um minuto que seja do poder do amor que
existe em nós, o que faremos com esse poder que nos é dado?

O diabo tenta Jesus nas coisas simples, nas vontades mais básicas: a saciedade
da fome, o desejo de poder e riqueza, no querer ser superior a tudo e a todos.  
Sentimentos que todos – homens e mulheres – carregamos em nossos corações. 
Sentimentos que não são ilícitos se canalizados para os seus devidos fins, mas cuja
linha que separa o bom do mau fim é tão tênue que só a vida no Espírito é capaz de
reconhecer e não nos deixar escapar.

Foi por ser plasmado no Espírito, configurado pelo Revelador, que Jesus pode
resistir às tentações que o diabo lhe apresentou.  Diabo que não é uma figura lendária,
mas o desejo que existe dentro do nosso próprio coração e que existiu dentro do
coração daquele que era Deus, mas que foi homem em plenitude.  Porém, a divindade
que existia em Jesus venceu a humanidade e conseguiu, assim, superar o Mal.

Da experiência no deserto certamente Jesus carregou consigo a certeza de que


muito facilmente o Mal nos invade e estraga o que Deus planeja para cada um.   A
certeza de que Ele era apenas o Filho e não o Pai, e que, enquanto Filho, cabia-Lhe a
missão de levar o amor do Pai a cada um de seus irmãos terrenos.  A certeza de que a
vivência no Espírito é a salvação para um mundo cuja oferta de valores diverge em
muito daquilo que o Pai oferece.  A certeza de que são necessários muitos outros
desertos para que se possa tomar o distanciamento, para que se possa ver com os
olhos da alma e os olhos de Deus, para que se possa sentir o calor do Espírito no
coração, para, então, enfrentar a missão e poder ser testemunho vivo do Senhor.

O tratado autobiográfico escrito pela santa italiana Catarina Bolonha – As sete


armas espirituais -, nos oferece ensinamentos “de grande sabedoria e profundo
discernimento” sobre as tentações do diabo: 

1. Ter cuidado e preocupação de trabalhar sempre para o bem.

2. Crer que, sozinhos, nunca poderemos fazer nada de verdadeiramente bom.

3. Confiar em Deus e, por seu amor, não temer nunca a batalha contra o mal, seja no
mundo, seja em nós mesmos.

4. Meditar com frequência nos eventos e palavras da vida de Jesus, sobretudo sua
Paixão e Morte.

5. Recordar-se que devemos morrer.

6. Ter fixa na mente a memória dos bens do Paraíso.

7. Ter familiaridade com a Sagrada Escritura, levando-a sempre no coração para que
oriente todos os pensamentos e todas as ações.

A ascese cristã

Para a quotidiana "conversão ao Evangelho" requer-se constantemente uma


ascese generosa. Esta, portanto, torna-se indispensável também para a dimensão
contemplativa de toda a vida cristã. O ser humano tem uma natureza ferida pelo
pecado e necessita da graça para resgatá-la e da ascese para fortalecer o homem
espiritual e interior.

Deste modo, o cristão – e de modo particular aqueles chamados a uma vida


contemplativa mais intensa, vida interior – dará também testemunho da relação
misteriosa existente entre a renúncia e a alegria, entre o sacrifício e a amplitude de
coração, entre a disciplina e a liberdade espiritual. A busca da intimidade com Deus
leva consigo a necessidade verdadeiramente vital de um silêncio de todo o ser, tanto
para aqueles que têm de encontrar a Deus inclusive no tumulto, como para os
contemplativos. Para se chegar a isto, a uma profunda vida interior, o homem
necessita criar (buscar, facilitar) zonas de silêncio efectivo e disciplina pessoal, para
facilitar o contacto com Deus.

A tônica da verdadeira Espiritualidade se centra na consagração e no amor da


pessoa a Deus, o que inclui um abandono e uma escolha: "Buscai as coisas do alto e
não as da terra" (Cl 3,2) e "mortificai vossos membros terrenos" (v. 5). "Buscai, em
primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça" (Mt 6,33). "Ai de vós, escribas e fariseus
hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho mas não vos
preocupais com o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade" (Mt
23,23)! A verdadeira ascese, por isto, mais do que um caminho em direção a si mesmo,
comporta uma luta em direção aos outros. Faz-se ascese como forma de consagração
e amor. A pessoa se purifica para viver mais desimpedidamente pelos outros e para
Deus.

A Tradição cristã encontrou sua melhor formulação ascética na expressão:


"Nudus nudum Christum sequi", ou seja, seguir nu, despojado, o Cristo nu e
despojado. Em vista disso, o movimento ascético, penitencial, não é uma operação
fechada sobre si mesma, a se stante, como diz o latim. A penitência, em si mesma, não
tem religiosamente nenhum valor. Seria apenas uma dieta espiritual, mas que não
conduziria a endereço algum. A ascese só tem valor quando feita "por amor de", "em
vista a", "em benefício de". Quando recebe apenas o caráter de quem a faz, mas não o
endereço de por quem é feita, a ascese é vazia e perigosa, inútil, suspeita e não
recomendável.

Con-centrados em nós mesmos, não passamos de indivíduos. Des-centrados de


nós e concentrados nos outros, tornamo-nos pessoas. Sobre-centrados em Deus,
transformamo-nos em criaturas divinas. Este processo pode ser doloroso e
corresponde à tríade espiritual bíblica do jejum (con-centração em si), esmola (des-
centração de nós e concentração no pobre) e oração (sobre-centração em Deus). Mas
há outras formas de ascese.
Na ascese da fé, a pessoa se aceita com seus dolorosos e insuperáveis limites,
fraquezas e misérias, dor e desenganos da vida, e com o desfecho da morte,
aparentemente o absurdo e total fracasso da vida. Na ascese moral, a pessoa diz sim
ao bem e não ao mal, abraçando e renunciando ao mesmo tempo. Na ascese
escatológica, a pessoa alimenta uma constante disposição para a partida e uma
iluminada vigilância diante da vida em Deus. Para quem é cristão, existe ainda a ascese
da cruz, que consiste em abraçar o escândalo do calvário, identificando-se com o Cristo
que não afastou o cálice da dor nem fugiu da idiotice da cruz, fazendo-se obediente à
vontade do Pai.

Em conseqüência, parece claro que fazer ascese não consiste em mortificar


simplesmente o corpo, mas em morti-ficar (fazer morrer) o velho Adão ou o animal
que é egoísta, guloso, violento, preguiçoso e cruel em nós. Fazer ascese consiste em
renunciar ao eu não intencionado por Deus e não em tentar ser, simplesmente, mais e
melhor. A verdadeira ascese, pois, visa a fazer-nos mais livres, levando-nos a viver
mais plenamente. Não procura arrancar qualquer erva daninha em nosso jardim
espiritual, mas cultivar os frutos e as flores que ele pode, com a graça de Deus, com a
ajuda dos irmãos e com a coragem pessoal, produzir.

Ao já dito sobre a Presença de Deus, queremos agora associar a simplicidade e


a unidade. Entrar em si mesmo leva consigo a busca de refazer a unidade de nossas
faculdades e potências para que, assim, o homem, que experimenta a dispersão por
causa do pecado – pela graça e o amor, alcance a união com Deus na unidade e na
totalidade de seu ser; para isso, é necessário descer ao coração, confluir todo nosso
ser ao seu centro mais profundo e que ali, Deus seja o centro e o eixo de nossas
potências e faculdades, ou seja: “Que nossas inclinações e faculdades movam-se
unicamente por amor e no amor”. Esta unidade de nosso ser – fruto da paz e da
harmonia interior – implica, pois, superação da divisão interna que experimenta todo
ser humano; ou seja, é necessário reduzir á unidade todas as forças dispersas da alma.

Descansar em Deus, gozar plenamente de seu amor, alcançar a mais alta união
com Deus, esse é o projeto de Deus para o homem; porém, por causa do pecado
original, a natureza humana experimenta a desordem, a desarmonia e anarquia de
suas potências, ou seja, o homem já não tem o pleno domínio de suas faculdades e de
seus sentidos, o pecado fez do homem um ser múltiple e disperso. Em conseqüência
disso, experimentamos conflitos interiores de tipo egoísta, busca apaixonada de
desejos triviais, passamos a viver na superficialidade e ocupamos indevidamente nosso
interior; em suma, o homem já não é livre, não está “orientado totalmente para
Deus”, pois – vítima de todas suas vozes caprichosas que se levantam em seu interior.

Nesse caos interior, fruto da desobediência original, as purificações são mais do


que necessárias e constituem a lei interna da vida contemplativa; elas se apresentam
como o caminho pelo qual o homem re-adquire o domínio sobre si mesmo,
“devolvendo” a Deus o centro de seu ser profundo. Nesta purificação, e consequente
re-unificação, o essencial é não perder a confiança e crer sempre no amor. Esta
reunificação progressiva é obra da graça, em particular das virtudes teologais
infundidas em nosso batismo; porém é necessário também que o homem colabore
por meio da vontade. A graça, então, penetrando em todas as faculdades humanas,
restabelecerá a harmonia perdida. É nessa perspectiva que devemos compreender
tudo o que foi dito anteriormente sobre o recolhimento: re-unir nossas forças visando
“caminhar para o interior do amor com os olhos fixos em Deus”.

A unidade de nosso ser implica uma vida interior fundada na vitória sobre nós
mesmos, na negação de nosso “eu”, com todas suas manifestações “defeituosas”,
guardando nossas forças para o Senhor; é resultado de um processo que tem como
meta recolher todo o ser em Deus, e para isso é necessário que encontremos nosso
mais autêntico “eu”, ou seja, que o conheçamos para que, acolhendo-o com
humildade, o ofereçamos ao Senhor. Portanto, não devemos oferecer resistências,
por obstáculos à purificação da alma: nosso caminhar deve ser um continuo
desaparecer, um “minguar” e um “diminuir” completamente para deixar que Cristo
viva em nós, descendo por essa via é, então, que a pessoa adquirirá a consciência de
seu “nada” e se verá imersa na misericórdia divina que acolhe e transforma todo
coração contrito e humilhado.
Armas espirituais: Oração, jejum e esmola

Todos os anos, a Quaresma oferece-nos uma providencial ocasião para


aprofundar o sentido e o valor do nosso ser de cristãos, e estimula-nos a redescobrir a
misericórdia de Deus a fim de nos tornarmos, por nossa vez, mais misericordiosos para
com os irmãos. No tempo quaresmal, a Igreja tem o cuidado de propor alguns
compromissos específicos que ajudem, concretamente, os fiéis neste processo de
renovação interior: tais são a oração, o jejum e a esmola.

1. O Jejum

No Novo Testamento, Jesus ressalta a razão profunda do jejum, condenando a


atitude dos fariseus, os quais observaram escrupulosamente as prescrições impostas
pela lei, mas o seu coração estava distante de Deus. O verdadeiro jejum, repete
também noutras partes o Mestre divino, é antes cumprir a vontade do Pai celeste, o
qual "vê no oculto, recompensar-te-á" (Mt 6, 18). Ele próprio dá o exemplo
respondendo a Satanás, no final dos 40 dias transcorridos no deserto, que "nem só de
pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4, 4). O
verdadeiro jejum finaliza-se portanto a comer o "verdadeiro alimento", que é fazer a
vontade do Pai (cf. Jo 4, 34). Portanto, se Adão desobedeceu ao mandamento do
Senhor "de não comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal", com o jejum o
crente deseja submeter-se humildemente a Deus, confiando na sua bondade e
misericórdia.

A prática fiel do jejum contribui ainda para conferir unidade à pessoa, corpo e
alma, ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade com o Senhor. Santo
Agostinho, que conhecia bem as próprias inclinações negativas e as definia «nó
complicado e emaranhado» (Confissões, II, 10.18), no seu tratado A utilidade do jejum,
escrevia: «Certamente é um suplício que me inflijo, mas para que Ele me perdoe;
castigo-me por mim mesmo para que Ele me ajude, para aprazer aos seus olhos, para
alcançar o agrado da sua doçura» (Sermo 400, 3, 3: PL 40, 708). Privar-se do sustento
material que alimenta o corpo facilita uma ulterior disposição para ouvir Cristo e para
se alimentar da sua palavra de salvação. Com o jejum e com a oração permitimos que
Ele venha saciar a fome mais profunda que vivemos no nosso íntimo: a fome e a sede
de Deus.

Ao mesmo tempo, o jejum ajuda-nos a tomar consciência da situação na qual


vivem tantos irmãos nossos. Na sua Primeira Carta São João admoesta: «Aquele que
tiver bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu
coração, como estará nele o amor de Deus?» (3, 17). Jejuar voluntariamente ajuda-nos
a cultivar o estilo do Bom Samaritano, que se inclina e socorre o irmão que sofre (cf.
Enc. Deus caritas est, 15). Escolhendo livremente privar-nos de algo para ajudar os
outros, mostramos concretamente que o próximo em dificuldade não nos é
indiferente. Precisamente para manter viva esta atitude de acolhimento e de atenção
para com os irmãos, encorajo as paróquias e todas as outras comunidades a
intensificar na Quaresma a prática do jejum pessoal e comunitário, cultivando de igual
modo a escuta da Palavra de Deus, a oração e a esmola. Foi este, desde o início o estilo
da comunidade cristã, na qual eram feitas colectas especiais (cf. 2 Cor 8-9; Rm 15, 25-
27), e os irmãos eram convidados a dar aos pobres quanto, graças ao jejum, tinham
poupado. Também hoje esta prática deve ser redescoberta e encorajada, sobretudo
durante o tempo litúrgico quaresmal.

O jejum mortifica o nosso egoísmo e nos torna solidários para com que tem
pouco. Além do mais abre o coração ao mandamento de amar a Deus e o próximo,
compêndio de todo o Evangelho.

A prática do jejum contribui a conferir unidade à pessoa, corpo e alma,


ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade com o Senhor. Escolhendo
livremente de privar-se de algo para ajudar o outro, demonstramos concretamente
que o próximo em dificuldade não nos é estranho.

O jejum é, portanto, uma arma espiritual para lutar contra todo apego
desordenado a nós mesmos. Privar-se voluntariamente do prazer do alimento e de
outros bens materiais, ajuda o discípulo de Cristo a controlar os aspectos da natureza
enfraquecida pelo pecado original, e cujos efeitos negativos investem toda a
personalidade humana.
2. A Esmola

A esmola educa para a generosidade do amor

  A prática da esmola, que representa uma forma concreta de socorrer quem se


encontra em necessidade e, ao mesmo tempo, uma prática ascética para se libertar da
afeição aos bens terrenos. Jesus declara, de maneira peremptória, quão forte é a
atração das riquezas materiais e como deve ser clara a nossa decisão de não as
idolatrar, quando afirma: «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Lc 16, 13).

A esmola ajuda-nos a vencer esta incessante tentação, educando-nos para ir ao


encontro das necessidades do próximo e partilhar com os outros aquilo que, por
bondade divina, possuímos. Tal é a finalidade das coletas especiais para os pobres, que
são promovidas em muitas partes do mundo durante a Quaresma. Desta forma, a
purificação interior é corroborada por um gesto de comunhão eclesial, como acontecia
já na Igreja primitiva. São Paulo fala disto mesmo quando, nas suas Cartas, se refere à
coleta para a comunidade de Jerusalém (cf. 2 Cor 8-9; Rm 15, 25-27).

Segundo o ensinamento evangélico, não somos proprietários, mas


administradores dos bens que possuímos: assim, estes não devem ser considerados
propriedade exclusiva, mas meios através dos quais o Senhor chama cada um de nós a
fazer-se intermediário da sua providência junto do próximo. É evidente, no Evangelho,
a admoestação que Jesus faz a quem possui e usa só para si as riquezas terrenas. À
vista das multidões carentes de tudo, que passam fome, adquirem o tom de forte
reprovação estas palavras de São João: «Aquele que tiver bens deste mundo e vir o seu
irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu coração, como pode estar nele o amor
de Deus?» (1 Jo 3, 17).

O Evangelho ressalta uma característica típica da esmola cristã: deve ficar


escondida. «Que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita», diz Jesus, «a fim
de que a tua esmola permaneça em segredo» (Mt 6, 3-4). E, pouco antes, tinha dito
que não devemos vangloriar-nos das nossas boas ações, para não corrermos o risco de
ficar privados da recompensa celeste (cf. Mt 6, 1-2). A preocupação do discípulo é que
tudo seja para a maior glória de Deus. Jesus admoesta: «Brilhe a vossa luz diante dos
homens de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai que está nos
Céus» (Mt 5, 16). Portanto, tudo deve ser realizado para glória de Deus, e não nossa.
De pouco serve dar os próprios bens aos outros, se o coração se ensoberbece com
isso: tal é o motivo por que não procura um reconhecimento humano para as obras de
misericórdia realizadas quem sabe que Deus «vê no segredo» e no segredo
recompensará.

Convidando-nos a ver a esmola com um olhar mais profundo que transcenda a


dimensão meramente material, a Escritura ensina-nos que há mais alegria em dar do
que em receber (cf. At 20, 35). Quando agimos com amor, exprimimos a verdade do
nosso ser: de fato, fomos criados a fim de vivermos não para nós próprios, mas para
Deus e para os irmãos (cf. 2 Cor 5, 15). Todas as vezes que por amor de Deus
partilhamos os nossos bens com o próximo necessitado, experimentamos que a
plenitude de vida provém do amor e tudo nos retorna como bênção sob forma de paz,
satisfação interior e alegria. O Pai celeste recompensa as nossas esmolas com a sua
alegria. Mais ainda: São Pedro cita, entre os frutos espirituais da esmola, o perdão dos
pecados. «A caridade – escreve ele – cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Como
se repete com freqüência na liturgia quaresmal, Deus oferece-nos, a nós pecadores, a
possibilidade de sermos perdoados. O fato de partilhar com os pobres o que
possuímos, predispõe-nos para recebermos tal dom.

Significativo é ainda o episódio evangélico da viúva que, da sua pobreza, lança


no tesouro do templo «tudo o que tinha para viver» (Mc 12, 44). A sua pequena e
insignificante moeda tornou-se um símbolo eloqüente: esta viúva dá a Deus não o
supérfluo, não tanto o que tem como sobretudo aquilo que é; entrega-se totalmente a
si mesma. Este episódio comovedor está inserido na descrição dos dias que precedem
imediatamente a paixão e morte de Jesus, o Qual, como observa São Paulo, fez-Se
pobre para nos enriquecer pela sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9); entregou-Se totalmente
por nós. A Quaresma, nomeadamente através da prática da esmola, impele-nos a
seguir o seu exemplo. Na sua escola, podemos aprender a fazer da nossa vida um dom
total; imitando-O, conseguimos tornar-nos disponíveis para dar não tanto algo do que
possuímos, mas darmo-nos a nós próprios. Não se resume porventura todo o
Evangelho no único mandamento da caridade? A prática quaresmal da esmola torna-
se, portanto, um meio para aprofundar a nossa vocação cristã. Quando se oferece
gratuitamente a si mesmo, o cristão testemunha que não é a riqueza material que dita
as leis da existência, mas o amor. Deste modo, o que dá valor à esmola é o amor, que
inspira formas diversas de doação, segundo as possibilidades e as condições de cada
um.

A Quaresma, pois, convida-nos a «treinar-nos» espiritualmente,


nomeadamente através da prática da esmola, para crescermos na caridade e nos
pobres reconhecermos o próprio Cristo. Nos Atos dos Apóstolos, conta-se que o
apóstolo Pedro disse ao coxo que pedia esmola à porta do templo: «Não tenho ouro
nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te
e anda» (At 3, 6). Com a esmola, oferecemos algo de material, sinal do dom maior que
podemos oferecer aos outros com o anúncio e o testemunho de Cristo, em cujo nome
temos a vida verdadeira. Que este período se caracterize, portanto, por um esforço
pessoal e comunitário de adesão a Cristo para sermos testemunhas do seu amor.

Quaresma: tempo de re-descobrir a misericórdia de Deus (15,


11-32)

Retornar ao Pai misericordioso

Nesta parábola, o Senhor ensina que uma vida de pecado e de egoísmo, no seu sentido
cabal, é a separação do amor, comunhão e autoridade de Deus. O pecador ou desviado
é como o filho mais jovem da parábola, que em busca dos prazeres do pecado,
desperdiça os dotes físicos, intelectuais e espirituais que Deus lhe deu . O resultado é
desilusão e tristeza e, as vezes , condições pessoais degradantes, e, sempre, a falta da
vida verdadeira e real, que somente se encontra no relacionamento correto com Deus.

Antes de um perdido vir a Deus, ele precisa reconhecer seu verdadeiro estado, de
escravidão do pecado e de separação de Deus. Precisa voltar humildemente ao Pai,
confessar seus pecados e estar disposto a fazer tudo quanto o Pai quiser. É o Espírito
Santo quem convence o perdido pecador da sua situação pecaminosa.

A descrição que Jesus faz da reação favorável do pai, diante da volta do filho, ensina
várias verdades importantes :

(1)  Deus tem compaixão dos perdidos por causa da triste condição deles .
(2)  o amor de Deus por eles é tão grande que nunca cessa de sentir pesar por eles
e esperar a sua volta

(3)  Quando o pecador, de coração, volta para Deus, ele sempre está plenamente
disposto a acolhê-lo com perdão, amor, compaixão, graça e os plenos direitos
de um filho. Os benefícios da morte de Cristo, a influencia do Espírito Santo e a
graça de Deus estão à disposição daqueles que buscam a Deus.

(4)  A alegria de Deus pela volta dos pecadores é imensurável.

No versículo 24 – o pai diz : Meu filho estava morto...perdido- “Perdido” é empregado


no sentido de estar perdido em relação a Deus , como “ovelha desgarrada”. A vida
afastada da comunhão com Deus é morte espiritual. Voltar-se para Deus é alcançar
vida verdadeira: “Ora, a vida eterna consiste em que conheçam a ti, um só Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste” (Jo 17,3).

No versículo 28- O filho mais velho se indigna, O filho mais velho representa aqueles
que têm sua religião e que exteriormente guardam os mandamentos de Deus, porém
interiormente estão longe d'Ele e dos seus propósitos para o seu reino.

Entre os humanos, misericórdia designa sentimento de compaixão ou de benevolência


suscitado pela miséria ou desgraça alheia. A Bíblia entende a misericórdia de Deus, não
tanto a partir dos sentimentos, mas a partir da sua fidelidade à aliança.
A força impulsionadora da misericórdia é o amor compassivo e afectuoso de Deus
conforme à aliança que Ele por bondade estabeleceu com o seu povo. Através de
Jesus, a aliança de Deus estendeu-se a toda a humanidade. A sua misericórdia voltou-
se para os humanos, radicalmente incapazes de se salvarem.
Assim, «Cristo (…) revela Deus “rico em misericórdia”. (...) Tornar presente o Pai como
amor e misericórdia constitui na consciência do próprio Cristo ponto fundamental do
exercício da sua missão messiânica. (…). Baseando-se neste modo de manifestar a
presença de Deus (…), Jesus faz da misericórdia um dos principais temas da sua
pregação.

Esta parábola resume os diversos temas e mensagens das parábolas de conversão e


perdão que vimos anteriormente.
Se é especialmente com parábolas que Jesus revela e ilustra a misericórdia de Deus,
entre elas sobressai “a parábola da misericórdia” por excelência, em Lc 15, 11-32.
Costuma-se chamar “parábola do filho pródigo”; na realidade, é a parábola do pai
misericordioso para com os dois filhos. É nela que a «essência da misericórdia divina
aparece de modo particularmente límpido. A parábola do filho pródigo exprime de
maneira simples mas profunda (…) a mais concreta expressão da obra do amor e da
presença da misericórdia no mundo humano» (JOÃO PAULO II, DM, 5 e 6).

Esta parábola é uma radiografia de todo o processo da conversão.

PRIMEIRO MOMENTO: PECADO

1. “Um homem tinha dois filhos”: Paternidade divina e fraternidade humana.

O mundo desta graça construído sobre um esquema de família: consiste na


paternidade de Deus e na fraternidade de todos os homens redimidos por Cristo.

2. “O menor disse a seu pai: Pai, me dê a parte da herança que me corresponde”:


Ruptura com o pai e com os irmãos.

Dentro do quadro de família fundado sobre a graça, o pecado supõe uma ruptura com
o Pai e com os irmãos.

3. “E o pai repartiu os bens”. Respeito à liberdade.

A conduta transigente do pai expressa de algum modo a lógica de liberdade com que
governa Deus aos homens; não quer escravos mas sim filhos.

4. “foi a um país longínquo”. O pecado é afastamento de Deus.

O pecado se completa através de um duplo movimento: dar as costas a Deus e voltar-


se para as criaturas, entregando-se à desfrute desordenado das coisas de Deus contra
Deus mesmo.

5. “Esbanjou todos seus bens”. O pecado é a ruína de todos os valores.

O pecado reporta como triste conseqüência a quebra e a perdida dos valores


espirituais e humanos. O homem retrocede a atitudes de animalidade.

SEGUNDO MOMENTO: ANGÚSTIA, DOR DE CORAÇÃO


1. “Começou a sofrer privações”: Experiência de carência e angústia produzida pelo
pecado.

O pecado provoca estados negativos de vazio e penúria que podem causar reações
saudáveis para a retomada dos valores perdidos.

2. “Então foi e tornou-se servo de um dos habitantes”: Evasão e busca de alternativas


de Deus.(alienações)

O primeiro efeito do estado de angustia produzido pelo pecado pode ser embarcar-se
para novas lonjuras e procurar sucedâneos do bem infinito que se perdeu.

3. “Enviou-o a seu campo para cuidar dos porcos. Ele quis acalmar sua fome com as
bolotas”. Escravidão e abjeção (vileza).

O pecado acaba na escravidão. ”Aquele que peca se torna escravo do pecado” (Jo
8,34).

4. “Mas ninguém as dava”: O pecado isola, vazio e solidão.

Por muito que se engane com suas evasões, não pode o homem receber dos
sucedâneos de Deus o que só Deus pode lhe dar. O afastamento de Deus conduz a um
nada e à fome total.

TERCEIRO MOMENTO: ARREPENDIMENTO, VOLTA E CONVERSÃO

5. “Então caiu em si”: Da angústia à reflexão e da reflexão a descobrir sua verdadeira


identidade como filho de Deus.

Através das experiências negativas derivadas do pecado, o Pai misericordioso


transborda a situação e extrai dela sempre um bem maior. Neste caso foi preparando a
volta do filho rebelde.

Às vezes na vida pareço-me ao filho mais novo, embora sem o corte radical que a
parábola descreve. Ele fez uma aposta errada na roleta da vida e perdeu tudo.
Chegado a um beco sem saída, só tinha uma alternativa ao desespero: fazer o caminho
de retorno. Tomou a decisão correcta, “dando a volta” à sua situação miserável e
voltando ao seio do pai. Foram a meditação e a oração que o repuseram no caminho
direito: «Caindo em si, disse: “Irei ter com meu pai e dir-lhe-ei: pai, pequei contra o
céu e contra ti”.»
A atitude lúcida de pôr-se a caminho da casa do pai corresponde à essência da boa-
nova de Jesus: «Arrependei-vos e acreditai no evangelho» (Mc 1,15; Mt 3,2). Esta
metanoia ou conversão é um deixar de olhar para o passado e um voltar-se para o
futuro, iniciando uma vida nova. A autêntica declaração feita diante do pai é uma das
mais sentidas formulações bíblicas da confissão dos pecados. Mas – note-se – o que o
salvou o filho não foi a confissão; foi o amor entranhado do pai, expresso no seu
abraço, nos beijos efusivos e no acolhimento afectuoso, ainda antes da confissão do
filho.
O filho mais novo é o tipo de pessoa que goza a vida e gosta de a sorver às mãos
cheias, querendo desfrutar dela depressa, mesmo que para se satisfazer tenha de
servir-se de tudo e de todos. É protótipo dos marginais, dos incrédulos, dos proscritos
da sociedade, daqueles que não se permitem o luxo de amar… mas que, quando se
emendam, têm grande capacidade de fazer festa, conscientes de que todos os
prazeres juntos não têm sentido em comparação com a alegria que sentem na casa do
pai. Este filho, não sendo imitável na dilapidação dos dons paternos, é de seguir na
«determinada determinação» de não ficar encarcerado na miséria e de se acolher à
misericórdia do pai.

Outras vezes na minha vida pareço-me ao filho mais velho, descrito como fiel
cumpridor das ordens do pai. O seu problema era pensar a relação com ele segundo a
lógica do contrato, em vez da lógica do amor. Calculista, era incapaz de amar
gratuitamente, dando importância a coisas materiais: «nunca me deste um cabrito…»
Nessa concepção mesquinha da vida, quando as coisas não correm perfeitas, não se
pode ser senão ressentido. E enquanto houver ressentimento não se pode ser feliz. Ele
estava bloqueado pelos seus mecanismos de defesa, especialmente pelo cumprimento
meticuloso dos deveres, que lhe dava orgulho e sentido de perfeição própria. Esse
rigor esterilizou nele a capacidade para compreender o amor. O encerramento dentro
de si próprio cegava-o para a ternura do pai e dava lugar ao rancor. Não percebia que
‘amor só com amor se paga’ (e que isso não é propriamente uma paga); nem que a sua
maior recompensa era estar permanentemente na casa do pai e em comunhão com
ele.
E eu? Dou porque me é dado e para que me seja dado, ou dou como exteriorização de
um amor interior? A figura do filho mais velho ilustra este drama de cada pessoa nas
suas multiformes relações.
O essencial da parábola é o festival da misericórdia, promovido pelo pai, pródigo de
amor. De facto, a história de cada filho termina de forma idêntica, com um apelo
efusivo do pai à necessidade de fazer festa, como forma subtil de perdoar sem fazer
alarde de tão generoso acto.

A regeneração acontece através da misericórdia. Perdoando, cancela objectivamente a


ofensa e dá uma oportunidade completamente nova. O perdão e a alegria do pai
anulam o pecador e fazem renascer o filho. Olha para o filho, não para o seu pecado. A
sua atitude de amor extremo e extremoso deixa entender que é na misericórdia
acolhedora que está o limite para a violência. À luz disto, a minha postura será deixar-
me ser filho perante um pai tão generoso.

Orações:

1. Muitas vezes, Senhor, eu digo:


eu quero,
eu queria.
eu espero...
Abre-me, tu, Senhor, os ouvidos
para que aprenda a escutar
por onde tu me queres conduzir,
o que tu me queres dar
e ajuda-me a dar-te este tempo de presente.
E isto, simplesmente, porque tu és o meu Deus
e eu sou teu filho amado, tua filha querida.  Amém!
2. Deus de minha vida,
tu me chamas para fora do meu cotidiano
e me colocas para dentro do teu amor.
Tu queres que tudo em mim
venha a florescer.
Eu me entrego a ti 
e confio na tua graça
neste tempo todo especial  para mim.  Assim seja.

3. Senhor, nós queremos olhar para ti, para conhecer o Pai.


Da cruz tu nos revelas o Pai.
Revela-nos ,Senhor, o mistério da Cruz,
faze com  que não tenhamos medo,
faze com que nele conheçamos a  Deus,
conheçamos a ti, Filho do Pai,
conheçamos a nós mesmos, pecadores redimidos.
Dá-nos aquela centelha de inteligência que estabeleceste para cada um de nós.
Faze com que a nossa vida seja coerente com aquilo que tu nos dás a conhecer, e
se queres que antes de conhecer vivamos e antes de compreender amemos, dá-
nos o teu Espírito, através de tua morte e ressurreição gloriosa.
Adoramos-te presente no meio de nós, vivo, ressuscitado, glorioso nos séculos.
Amém.

4. Escuta a minha oração, Senhor,


não me deixe sozinho no longo e difícil caminho da minha vida!

Não importa que avancem contra mim


inimigos, doenças, calúnias,
em ti coloco minha confiança e meu amparo.

Quando sinto sobre mim o peso da insegurança,


quando não enxergo o meu futuro,
quando sozinho enfrento a luta contra o mal,
vem,  Senhor, em meu socorro
e sustenta a minha fraqueza!

Longe de mim o medo da noite e do mal,


perto esteja tua luz e esperança,
fortalecendo o meu caminho.

Contigo, Senhor, não tenho medo,


porque tu me amas
e sou precioso aos teus olhos.
Guarda-me como a tua pupila,
esconde-me na tenda do teu coração...

Contigo, Senhor, caminharei  seguro


na incerteza da vida.
No fim da estrada sempre tu me esperas,
e com amor, perdoas meus pecados. Amém.

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