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Capítulo 6

FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR
Álvaro Réa Neto

INTRODUÇÃO
CORAÇÃO
Eletrofisiologia do coração
Ciclo cardíaco
Circulação coronária
Débito cardíaco
CIRCULAÇÃO SISTÊMICA
Fluxo sanguíneo
Controle da circulação sistêmica
Controle da pressão arterial
FISIOLOGIA DO TRANSPORTE DE OXIGÊNIO
Transporte de oxigênio
Cascata de oxigênio
Transporte de oxigênio no sangue
Uso metabólico do oxigênio pelas células
Troca de gases no tecido
O equivalente circulatório
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

35
36 Parte II ❑ MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA

INTRODUÇÃO CORAÇÃO
O sistema cardiovascular circula o sangue através dos va- O coração é composto por quatro câmaras e divide-se em
sos e capilares pulmonares e sistêmicos com o propósito de dois lados, direito e esquerdo, cada um dotado de um átrio e
troca de oxigênio, gás carbônico, nutrientes, produtos de de- um ventrículo.1 Os átrios agem como reservatórios de sangue
gradação e água nos tecidos periféricos e nos pulmões.1,2 Ele venoso, possuindo leve ação de bombeamento para o enchi-
é composto pelo coração e dois sistemas vasculares: as circu- mento ventricular. Em contraste, os ventrículos são as grandes
lações sistêmica e pulmonar (Fig. 6-1). O coração, por sua vez, câmaras de propulsão para a remessa de sangue à circulação
possui os ventrículos direito e esquerdo que funcionam como pulmonar (ventrículo direito) e sistêmica (ventrículo esquerdo).
bombas em série, ejetando sangue através de dois sistemas O ventrículo esquerdo é de formato cônico e tem a missão de
vasculares – a circulação pulmonar de baixa pressão, onde gerar maior quantidade de pressão do que o direito, sendo,
ocorre a troca gasosa (captação de oxigênio e liberação de gás portanto, dotado de parede muscular mais espessa. Quatro vál-
carbônico pela hemoglobina circulante nas hemácias), e a cir- vulas asseguram a direção única do fluxo do átrio para o ventrí-
culação sistêmica que distribui sangue aos órgãos individuais, culo (valvas atrioventriculares, tricúspide e mitral) e depois para
suprindo as suas demandas metabólicas.1 O fluxo e a pressão as circulações arteriais (valvas semilunares, pulmonar e aórtica).
sanguínea estão sob intenso controle do sistema nervoso au- O miocárdio é composto por células musculares que podem so-
tônomo. frer contração espontânea e também por células marca-passo e
Este sistema cardiovascular tem muitas funções diferen- de condução dotadas de funções especializadas.
tes, dependendo dos tecidos e órgãos que recebem seus su-
primentos.1,2 A transferência de oxigênio e gás carbônico en- Eletrofisiologia do coração
tre os pulmões e os tecidos periféricos parece ser o papel A contração do miocárdio resulta de uma alteração na volta-
fundamental deste sistema.3,4 Mas os vasos gastrointestinais gem, através da membrana celular (despolarização), que leva ao
absorvem nutrientes dos intestinos e perfundem o fígado. A surgimento de um potencial de ação.1,2 A contração miocárdica
circulação renal é essencial para a manutenção da hemosta- normalmente ocorre como resposta a esta despolarização (Fig.
sia da água e eletrólitos e eliminação de produtos de degra- 6-2). Este impulso elétrico inicia-se no nodo sinoatrial (SA), com-
dação celular e o sistema cardiovascular, também é funda- posto por uma coleção de células marca-passo, localizado na jun-
mental na distribuição dos líquidos nos diversos comparti- ção do átrio direito com a veia cava superior. Tais células especia-
mentos extracelulares, na distribuição de hormônios nos ór- lizadas despolarizam-se espontaneamente, ocasionando uma
gãos-alvo e no transporte de células e substâncias essenciais onda de contração que passa cruzando o átrio. Após a contração
para a imunidade e coagulação. atrial, o impulso sofre um retardo no nodo atrioventricular (AV),
localizado na parede septal do átrio direito. A partir daí, as fibras
de His-Purkinje promovem a rápida condução do impulso elétri-
co através de suas ramificações direita e esquerda, ocasionando
AD AE quase que simultaneamente a despolarização de ambos os ven-
trículos num tempo de aproximadamente 0,2 segundo após a
chegada do impulso inicial no nodo sinoatrial. A despolarização
VD VE da membrana celular miocárdica ocasiona grande elevação na
concentração de cálcio no interior da célula, que por sua vez cau-
AP VP sa contração através da ligação temporária entre duas proteínas,
actina e miosina. O potencial de ação cardíaco é mais prolongado
que o do músculo esquelético, e durante esse tempo a célula mi-
ocárdica não responde a novos estímulos elétricos.2

+30
1 Potencial de ação
Capilares
pulmonares
Grandes Artérias 2
Contração
veias
3
mV 0

Vênulas Arteríolas 4
-90

Capilares 250 ms
sistêmicos Fig. 6-2. Potencial de ação ventricular seguido de contração
Fig. 6-1. Estrutura esquemática do sistema cardiovascular. mecânica.
Capítulo 6 ❑ FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR 37

Ciclo cardíaco gue ejetado é conhecido como volume de ejeção. Ao final


As relações entre os eventos elétrico e mecânico do ciclo desta fase ocorre o relaxamento ventricular e o fechamento
cardíaco estão resumidas na Figura 6-3. das valvas pulmonar e aórtica (2ª bulha cardíaca). Após o rela-
xamento isovolumétrico, as pressões ventriculares diminuem
Existe um ciclo semelhante em ambos os lados do cora- mais do que as pressões atriais. Isso leva à abertura das valvas
ção, mas as pressões do ventrículo direito e das artérias pul- atrioventriculares e ao início do enchimento ventricular dias-
monares são menores que as do ventrículo esquerdo e aor- tólico. Todo o ciclo então se repete na seqüência de outro im-
ta.1,2,4 Sístole refere-se a contração e diástole a relaxamento. A pulso a partir do nodo sinoatrial.
contração e o relaxamento podem ser isométricos, quando
ocorrem alterações na pressão intraventricular sem modifica-
ção no comprimento das fibras musculares. O ciclo inicia-se
Circulação coronária
no nodo sinoatrial com uma despolarização que leva à contra- O suprimento cardíaco do miocárdio é fornecido pelas ar-
ção do átrio. Durante este tempo o fluxo sanguíneo no interi- térias coronárias que correm pela superfície do coração e divi-
or dos ventrículos é passivo, mas a contração atrial aumenta o dem-se em ramos colaterais para o endocárdio (camada inter-
seu enchimento em 20 a 30%. A sístole ventricular ocasiona o na do miocárdio).1,4
fechamento das valvas atrioventriculares (1ª bulha cardíaca) A drenagem venosa é efetuada principalmente através do
sendo que a contração é isométrica até que as pressões intra- seio coronário no átrio direito, mas uma pequena porção de san-
ventriculares tornem-se suficientes para abrir as valvas pulmo- gue flui diretamente nos ventrículos através das veias de Tebésio,
nar e aórtica, dando início à fase de ejeção. O volume de san- liberando sangue não oxigenado para a circulação sistêmica.

Fig. 6-3. Ciclo cardíaco.


120
Pressão aórtica

80
Pressão (mmHg)

Pressão
ventricular

Pressão atrial
0

QRS
Eletrocardiograma

P T

Pulso venoso a c v
jugular y
x

Fonocardiograma S1 S2

Enchimento Contração Contração Ejeção Relachamento Enchimento


ventricular atrial ventricular ventricular ventricular ventricular
isovolumétrica isovolumétrico
38 Parte II ❑ MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA

A extração de oxigênio, pelos tecidos, está na dependência do Contratilidade


Inotrópicos

consumo e da oferta. O consumo de oxigênio do miocárdio é


Exercício físico
aumentada Estímulo simpático
mais elevado que o dos músculos esqueléticos (no miocárdio são D

Volume sistólico
extraídos 65% do oxigênio arterial, nos músculos esqueléticos, A
Normal

25%). Assim, qualquer aumento na demanda metabólica do mio- Contratilidade


Hipóxia e hipercapnia
Isquemia miocárdica
cárdio deve ser compensado por uma elevação do fluxo sanguí- B diminuída Depressão cardíaca
Estímulo vagal
neo coronário. Esta resposta é local, mediada por alterações do C
tônus da artéria coronária, com apenas uma pequena participa- Choque cardiogênico

ção do sistema nervoso autônomo.


Pré-carga

Débito cardíaco Fig. 6-4. Lei cardíaca de Starling e curvas de Starling relacionando
pré-carga com volume sistólico para diferentes estados de
O débito cardíaco (DC) é o produto entre a freqüência contratilidade.
cardíaca (FC) e o volume sistólico (VS).4,5

DC = FC ! VS
ventricular (pré-carga). Observe aqui que o aumento da con-
tratilidade ocasiona maior débito cardíaco, para uma mes-
Para um homem com 70 kg os valores normais são: FC =
ma quantidade de volume diastólico final do ventrículo (cur-
72/min e VS = 70 ml, fornecendo um rendimento cardíaco de
va D).
aproximadamente 5 litros/minuto. O índice cardíaco (IC) é o
Na condição patológica do coração (curvas C e D) o débi-
débito cardíaco por metro quadrado da área de superfície cor-
to cardíaco não se eleva mesmo quando o volume diastólico
poral. Os valores normais variam de 2,5 a 4,0 litros/min/m.6
final do ventrículo atinge níveis elevados.
A freqüência cardíaca é determinada pelo índice de velo-
" Pós-carga: é a resistência à ejeção (propulsão) ventricular
cidade da despolarização espontânea no nodo sinoatrial (ver
ocasionada pela resistência ao fluxo sanguíneo na saída do
acima), podendo ser modificada pelo sistema nervoso autô-
ventrículo.2,4,5 Ela é determinada principalmente pela resis-
nomo. O nervo vago atua nos receptores muscarínicos redu-
tência vascular sistêmica. Esta é uma função do diâmetro das
zindo a freqüência cardíaca, ao passo que as fibras simpático-
arteríolas e esfíncteres pré-capilares e da viscosidade san-
cardíacas estimulam os receptores beta-adrenérgicos, elevan-
guínea; quanto mais estreito ou mais contraído os esfíncte-
do-a.
res ou maior a viscosidade, mais elevada será a resistência e,
O volume sistólico é o volume total de sangue ejetado conseqüentemente, a pós-carga. O nível de resistência sistê-
pelo ventrículo durante uma sístole e é determinado por três mica vascular é controlado pelo sistema simpático, que por
fatores principais: pré-carga, pós-carga e contratilidade, con- sua vez controla o tônus da musculatura da parede das arte-
siderados a seguir: ríolas, regulando o diâmetro. A resistência é medida em uni-
" Pré-carga: é o volume ventricular no final da diástole. A eleva- dades de dina/segundo/cm.5 A série de curvas do volume sis-
ção da pré-carga leva ao aumento do volume de ejeção. A tólico com diferentes pós-cargas está mostrada na Figura 6-5,
pré-carga depende principalmente do retorno do sangue demonstrando a queda do débito cardíaco quando ocorrem
venoso corporal.3,5 Por sua vez, o retorno venoso é influencia- aumentos nas pós-cargas (desde que a freqüência cardíaca
do por alterações da postura, pressão intratorácica, volume não se altere).
sanguíneo e do equilíbrio entre a constrição e dilatação (tô- As curvas mostram o comportamento do coração em di-
nus) no sistema venoso. A relação entre o volume diastólico ferentes estados de contratilidade, iniciando a partir da si-
final do ventrículo e o volume de ejeção é conhecida como tuação cardíaca normal até o choque cardiogênico.5 Essa
Lei Cardíaca de Starling, determinando que o volume sistóli- condição surge quando o coração se torna tão afetado pela
co seja proporcionalmente relacionado ao comprimento ini- doença que o débito cardíaco mostra-se incapaz de manter a
cial da fibra muscular (determinado pela pré-carga). Esta perfusão dos tecidos. Também são mostrados os níveis ele-
ilustração gráfica consta na Figura 6-4. vados impostos pela atividade física ou a adição de inotrópi-
A elevação do volume na fase final da diástole (volume cos que requisitam uma elevação correspondente do rendi-
diastólico final) distende a fibra muscular, aumentando as- mento cardíaco.
sim a energia de contração e o volume de ejeção até um pon- " Contratilidade: representa a capacidade de contração do mi-
to de sobredistensão, quando então o volume de ejeção não ocárdio na ausência de quaisquer alterações na pré-carga ou
se eleva mais ou pode até efetivamente diminuir.2,4,5 O débi- pós-carga.4,5 Em outras palavras, é a “potência” do músculo
to cardíaco também aumenta em paralelo com o volume sis- cardíaco. A influência mais importante na contratilidade é a
tólico, se não ocorrer alteração na freqüência cardíaca. do sistema nervoso simpático. Os receptores beta-adre-
A curva A ilustra, no coração normal, a elevação do débi- nérgicos são estimulados pela noradrenalina liberada pelas
to cardíaco através do aumento no volume diastólico final terminações nervosas, aumentando a contratilidade. Um e-
Capítulo 6 ❑ FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR 39

CIRCULAÇÃO SISTÊMICA
Os vasos sanguíneos sistêmicos dividem-se em artérias,
arteríolas, capilares e veias.2,7 As artérias carregam sangue aos
Contratilidade órgãos sob altas pressões, enquanto que as arteríolas são va-
aumentada
sos menores dotados de paredes musculares que permitem
Volume sistólico

um controle direto do fluxo através de cada leito capilar (Fig.


6-6). Os capilares são constituídos por uma camada única de
células endoteliais cujas paredes delgadas permitem trocas de
Normal nutrientes entre o sangue e os tecidos. As veias promovem o
retorno do sangue, a partir dos leitos capilares, até o coração
e contém cerca de 70% do volume sanguíneo circulante con-
Contratilidade trastando com os 15% representados pelo sistema arterial. As
veias atuam como reservatórios e o tônus venoso é importan-
diminuída

te no processo de manutenção do retorno do sangue em dire-


Pós-carga ção ao coração; por exemplo, no caso de hemorragia grave
Fig. 6-5. Relação entre o volume sistólico e a pós-carga. quando o estímulo simpático ocasiona venoconstrição.

Fluxo sanguíneo
feito semelhante pode ser observado na adrenalina circulan- A relação entre o fluxo e a pressão motriz é dada através
te e em drogas como digoxina e cálcio. A contratilidade é re- da fórmula de Hagen-Poiseuille, a qual estabelece que o fluxo,
duzida pela hipóxia, isquemia do miocárdio, doença do mio- no interior de um tubo, é proporcional a:
cárdio e pela administração de beta-bloqueadores ou agen-
tes antiarrítmicos.
O débito cardíaco sofre modificação para adaptar-se às Pressão motriz ! raio 4
alterações das demandas metabólicas corporais.4,5,6 Os ren- Comprimento ! viscosidade
dimentos apresentados por ambos os ventrículos devem ser
idênticos e também iguais ao retorno venoso do sangue cor- Nos vasos sanguíneos o fluxo é de caráter pulsátil ao in-
poral. O equilíbrio entre o débito cardíaco e o retorno veno- vés de contínuo e a viscosidade varia com a velocidade do flu-
so pode ser observado durante o processo de resposta à ati- xo.7 Assim, a fórmula não é estritamente aplicável, mas serve
vidade física. Quando o músculo é exercitado, os vasos san- para ilustrar um ponto importante: pequenas modificações
guíneos sofrem dilatação devido ao aumento do metabolis- no raio do vaso resultam em grandes alterações no fluxo. As
mo e incremento do fluxo sanguíneo. Isso promove eleva- alterações na velocidade do fluxo, tanto nas arteríolas como
ções no retorno venoso e na pré-carga do ventrículo direito. nos capilares, são devidas a modificações do tônus e conse-
Conseqüentemente, maior quantidade de sangue será libe- qüentemente da circunferência dos vasos, principalmente, e
rada para o ventrículo esquerdo, elevando o débito cardía- por modificações na pressão motriz e na viscosidade do san-
co. Também haverá aumento na contratilidade e na freqüên- gue. A variável comprimento aqui não é manipulável e é relati-
cia cardíaca devido à atividade simpática associada à ativida- vamente fixa. A pressão motriz é a diferença entre a pressão
de física, aumentando, conseqüentemente, o débito cardía- de entrada e a pressão de saída num determinado segmento.
co para compensar as necessidades dos tecidos. Por exemplo, num leito capilar ela é a diferença entre a pres-

Grandes Fig. 6-6. Distribuição das pressões dentro da


circulação sistêmica.
120 artérias Pequenas
Pressão arterial média (mmHg)

artérias
100 PMAo

80 Arteríolas

60

40 Capilares
Vênulas
20 Veias
PVC

103 200 100 3 100 103


Diâmetro interno ("m)
40 Parte II ❑ MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA

são arteriolar e a pressão venular. Neste caso, ela pode tam- soconstrição por estimulação de receptores beta-adrenérgi-
bém ser chamada de pressão de perfusão capilar. cos e colinérgicos, mas apenas na musculatura esquelética. A
A viscosidade descreve a tendência do líquido a resistir ao elevação do fluxo sanguíneo que aporta ao músculo toma par-
fluxo.2,4,5 Em fluxos lentos, as células sanguíneas vermelhas te importante da reação de “combate ou fuga” quando há pre-
tendem a se juntar, aumentando a viscosidade, e a permane- visão de atividade física (exercício).
cer na área central do vaso. A porção de sangue mais próxima Hormônios circulantes como a adrenalina e angiotensina
à parede do vaso (que irriga os ramos colaterais) apresentará, II são potentes vasoconstritores, mas provavelmente ocasio-
assim, um valor menor de hematócrito. Esse processo é co- nam pouco efeito agudo no mecanismo de controle cardio-
nhecido como deslizamento plasmático. A viscosidade sofre vascular. Por outro lado, fatores derivados do endotélio de-
redução na presença de anemia e o resultante incremento na sempenham papel importante no controle local do fluxo san-
velocidade do fluxo auxilia na manutenção do transporte de guíneo. Tais substâncias podem tanto ser produzidas como
oxigênio aos tecidos. modificadas no endotélio vascular e incluem a prostaciclina e
o óxido nítrico, ambos potentes vasodilatadores. O acúmulo
Controle da circulação sistêmica de metabólitos como CO2, K+, H+, adenosina e lactato ocasio-
O tônus das arteríolas determina a velocidade do fluxo nam vasodilatação. Essa resposta constitui-se, provavelmen-
em direção aos leitos capilares.7 Uma série de fatores influen- te, num importante mecanismo de auto-regulação, processo
cia o tônus arteriolar incluindo o controle autônomo, hormô- pelo qual o fluxo sanguíneo, através de um órgão, é controla-
nios circulantes, fatores próprios do endotélio e concentração do localmente permanecendo constante mesmo quando sub-
local de metabólitos. metido a amplo espectro de pressão de perfusão. A au-
Controle autônomo é amplamente dependente do siste- to-regulação desempenha papel importante principalmente
ma nervoso simpático que inerva todos os vasos à exceção nas circulações cerebral e renal.8,9
dos capilares. As fibras simpáticas provêm dos segmentos to-
rácico e lombar da medula espinhal onde são controladas pe- Controle da pressão arterial
lo centro vasomotor da medula, que por sua vez é dotado de A pressão arterial sistêmica é submetida a um controle
zonas distintas de vasoconstrição e vasodilatação. Embora cuidadoso no sentido de manutenção da perfusão tecidu-
exista uma descarga simpática basal adequada para a manu- al.2,4,5 A pressão arterial média (PAM) leva em consideração o
tenção do tônus vascular, um aumento desse estímulo afeta fluxo sanguíneo pulsátil das artérias e constitui-se no melhor
mais alguns órgãos do que outros (Fig. 6-7). valor de medida para o grau da pressão de perfusão de um ór-
Com isso ocorre uma distribuição do sangue a partir da gão. A PAM é definida por:
pele, músculo e vísceras para o cérebro, coração e rins.4,7,8 A
elevação da descarga simpática constitui-se numa das respos-
tas à hipovolemia, por exemplo, em casos de perdas sanguí- PAM = Pressão arterial diastólica + pressão de pulso/3
neas graves com o propósito de proteger o suprimento san-
guíneo dos órgãos vitais. A influência simpática predominante onde a pressão de pulso é a diferença entre as pressões
é a vasoconstrição através dos receptores alfa-adrenérgicos. arteriais sistólica e diastólica.
No entanto, o sistema simpático também pode ocasionar va- A PAM é o produto entre o débito cardíaco (DC) e a
resistência vascular sistêmica (RVS).
Resistência vascular

100
PAM = RC ! RVS
Pele

50
Se o débito cardíaco decresce (p. ex.: quando o retorno
30 venoso diminui na hipovolemia) o valor da PAM também dimi-
nuirá, a não ser que surja um aumento compensatório da RVS
Músculo através da vasoconstrição das arteríolas.5,9 Essa resposta é
10 mediada por barorreceptores, sensores especializados da
pressão, localizados no seio carotídeo e arco da aorta e conec-
5 Rim tados ao centro vasomotor. A diminuição da pressão sanguí-
3 nea ocasiona redução de estímulo nos barorreceptores e con-
seqüente redução na descarga que esses remetem ao centro
Cérebro Basal vasomotor. Isso causará aumento da descarga simpática, le-
1 vando à vasoconstrição, aumento do índice cardíaco e da con-
Coração tratilidade, além da secreção de adrenalina. Da mesma manei-
0 2 4 6 8 10 ra, elevações da pressão sanguínea estimulam os barorrecep-
Fig. 6-7. Resposta vascular ao estímulo simpático. tores ocasionando elevação da descarga parassimpática car-
Capítulo 6 ❑ FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR 41

díaca, através dos ramos do nervo vago, desacelerando o co- ente do sangue oxigenado para todos os órgãos. A convecção
ração. Também ocorre redução da estimulação simpática nos continua sendo importante para a distribuição do oxigênio
vasos periféricos levando à vasodilatação. mesmo dentro da rede de microvasos. A difusão é um meca-
As respostas dos barorreceptores propiciam o controle nismo eficiente de transporte de oxigênio em pequenas dis-
imediato da pressão sanguínea; se a hipotensão for prolonga- tâncias (frações de mícron) e é o meio de transporte de oxigê-
da, outros mecanismos entram em operação, como a libera- nio dos pequenos vasos e capilares para as células.
ção de angiotensina II e aldosterona, a partir dos rins e glân- Uma das observações mais interessantes e intrigantes
dulas adrenais, permitindo a retenção circulatória de sais e com relação ao transporte de oxigênio através dos capilares é
água e mais vasoconstrição. o alto grau de heterogeneidade da perfusão neste nível.6,8
Esta heterogeneidade se expressa pela grande variabilidade
FISIOLOGIA DO TRANSPORTE DE OXIGÊNIO na velocidade de trânsito das hemácias e pelo número de he-
O sistema cardiovascular deve suprir continuamente os mácias que transitam pelos capilares na unidade de tempo.
tecidos de nutrientes para sustentar a vida. Nossas células são Isto se deve a falta de uniformidade nas dimensões dos capila-
incapazes de armazenar oxigênio e necessitam deste substra- res nos diversos tecidos.
to para gerar continuamente energia nas mitocôndrias e sus- Uma das funções mais importantes do sistema circulató-
tentar forças vitais, como o gradiente eletroquímico das rio é fornecer uma oferta adequada de oxigênio (DO2) a todos
membranas celulares, as contrações musculares e a síntese de os tecidos do organismo.6,8,9 Vários mecanismos existem para
macromoléculas complexas.9 A falta de oxigênio pode causar regular esta oferta em resposta às constantes modificações
lesão tecidual direta devido à exaustão de ATP ou outros in- nas necessidades. Nas situações de exercício, há um aumento
termediários de alta energia necessários para a manutenção global na DO2, regulada principalmente pelo sistema nervoso
da integridade estrutural das células. Além disso, lesões celu- autônomo com aumento na contratilidade e na freqüência
lares também podem ser intensificadas por radicais livres cardíaca e aumento no débito cardíaco. Na microcirculação, o
quando a oferta de oxigênio segue um período de disóxia aumento na perfusão em resposta a um tecido com demanda
com acúmulo de adenosina e outros metabólitos celulares. aumentada por oxigênio se dá por dois mecanismos: 1. uma
Em organismos unicelulares, a captação de O2 e a elimina- diminuição na resistência dos vasos pré-capilares, e 2. um au-
ção de CO2 podem ser realizadas por difusão simples a partir mento na taxa de extração de oxigênio.7,8
do meio ambiente por causa das distâncias curtas de difusão.
Entretanto, organismos mais complexos, como o homem, Cascata de oxigênio
com grandes distâncias para o transporte de gases, as limita- A pressão parcial de oxigênio (PO2) apresenta uma queda
ções de difusão são sobrepujadas com estruturas especifica- progressiva desde o ar ambiente até o interior das células, um
mente projetadas para entregar O2 e remover CO2 das bilhões preço pago pelos animais multicelulares de grande porte (Fig.
de células do nosso corpo.6 O modo ativo de vida do homem 6-8).6,10 A PO2 no ar ambiente ao nível do mar é de aproxima-
requer uma disponibilidade abundante e contínua de O2 para damente 159 mmHg (PiO2 no ar ambiente). Entretanto, no ar
a energia necessária para trabalhar e dar apoio à vida. Várias inspirado há uma queda na PO2 para 149 mmHg, à medida
estruturas ajudam a realizar esta tarefa:6 1. os pulmões e sua que o vapor de água é adicionado ao ar inspirado na via aérea
rede de capilares que proporcionam uma grande área de su- superior. A PO2 alveolar é de aproximadamente 104 mmHg
perfície para troca de gases com ar de ambiente; 2. a hemoglo- porque ar inspirado é diluído quando misturado com ar alveo-
bina que funciona como portadora especializada para aumen-
tar a capacidade de carregar O2 através do sangue; e 3. um sis-
tema circulatório, que consiste no coração e no sistema vas- PO2
cular que transporta o sangue entre os capilares de troca pul-
monares e teciduais. 150

Transporte de oxigênio
A microcirculação tem um papel importante na oxigena- 100
ção tecidual porque é através de suas paredes que o oxigênio
atravessa do sangue para atingir as células dos tecidos perifé-
ricos.7 Cada tecido possui uma arquitetura da microvasculatu-
ra que lhe é característica e que, provavelmente, foi adaptada 50
para as necessidades específicas daquele tecido. O oxigênio
trafega pelo sistema circulatório dos pulmões até às células,
por convecção e difusão.8 Convecção é o processo pelo qual
grandes quantidades de oxigênio podem ser transportadas Ar Traquéia Alvéolo Aorta Capilar Interstício Célula
em grandes distâncias (macroscópicas). Os grandes vasos do quente
sistema circulatório são responsáveis pela distribuição efici- Fig. 6-8. Cascata de oxigênio.
42 Parte II ❑ MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA

lar rico em CO2. Posteriormente, há mais um declínio na PO2 alta tensão de oxigênio. O conteúdo arterial de oxigênio
entre o alvéolo (PAO2) e o sangue arterial (PaO2), o que é deno- (CaO2) é dado pela seguinte fórmula:9
minado de diferença alvéolo-arterial de O2 (D(A-a)O2), a qual,
geralmente, é menor que 10 mmHg. Isto se deve ao peque-
CaO2 = (Hb ! SaO2 ! 1,34) + (PaO2 ! 0,0031)
no shunt fisiológico intrapulmonar (cerca de 2% do débito
cardíaco). No sangue arterial, a PO2 normal é entre 95 e 100
mmHg no nível do mar. onde, Hb é a concentração de hemoglobina no sangue
O transporte de moléculas livres de oxigênio entre dois (em g/dl), SaO2 é a saturação arterial de oxigênio (em%), 1,34 é
pontos é descrito pela primeira lei da difusão de Fick, que diz a capacidade máxima de oxigênio que 1 g de Hb é capaz de
que a força de movimento é a diferença de PO2 entre os dois carregar, PaO2 é a pressão parcial arterial de oxigênio e 0,0031
pontos.8,9 O local mais fácil de transporte de oxigênio do san- é o coeficiente de solubilidade do oxigênio no plasma. Em
gue para os tecidos é através dos capilares, devido a sua pare- uma pessoa normal, o CaO2 é (15 ! 0,98 ! 1,34) + (95 !
de mais fina (praticamente uma única camada de células en- 0,0031), ou 19,69 + 0,29, ou aproximadamente 20 ml de
doteliais), maior superfície de contato (relação volume/área), O2/dl de sangue arterial. Embora quase todo o oxigênio seja
baixa velocidade das hemácias circulantes e uma menor dis- transportado ligado à Hb, a PaO2 é essencial porque é ela que
tância de difusão entre os capilares e as células parenquimato- determina a quantidade de oxigênio carregado pela hemoglo-
sas. No começo do século passado, Krogh formulou um con- bina (e, portanto, o conteúdo arterial de oxigênio).11
ceito matemático simples no qual os capilares eram rodeados As hemácias são uma forma ideal de transporte de oxigê-
por um cilindro concêntrico de tecido e este modelo foi usado nio. A hemácia tem a forma de um disco bicôncavo, o que per-
para predizer a magnitude da diferença de PO2 necessária mite expansão de volume e diminuição nas distâncias de difu-
para suprir o cilindro com oxigênio e transportar oxigênio até são extracelular.6,10 A membrana da hemácia é livremente per-
as camadas mais externas do cilindro. Entretanto, nos últimos meável a H2O, CO2 e O2, e exibe consideravelmente mais per-
30 anos, foi demonstrado que há perda de oxigênio já pelos meabilidade a ânions que a cátions. Esta membrana é imper-
vasos pré-capilares, embora os capilares continuem a ser os meável à hemoglobina (Hb), seu principal constituinte. É a he-
principais vasos de oxigenação tecidual.8 Uma parte conside- moglobina dentro da hemácia que se combina com o O2 e o
rável do oxigênio perdido pelas arteríolas pré-capilares é para transporta aos tecidos. Cada molécula de Hb é capaz de se
as vênulas pós-capilares contíguas às arteríolas. Por isso, a PO2 combinar com 4 moléculas de oxigênio. Isto fornece uma ca-
capilar é bem mais baixa que a das pequenas artérias. Em situ- pacidade máxima de combinação de 1,34 ml de O2/g de Hb.
ações de grande consumo de oxigênio ou de hipoperfusão, Quando oxigênio combina-se com a Hb, ela é apropriada-
uma parte considerável do oxigênio celular pode vir direto mente denominada de oxiemoglobina (oxi-Hb). Quando a Hb
das arteríolas.8 está totalmente livre de O2 ela tem uma afinidade relativa-
Fisiologicamente, quando o sangue arterial sai dos pul- mente baixa para o O2. Entretanto, as cadeias de polipeptídio
mões e alcança a microcirculação, sua PO2 ainda é cerca de 95 da Hb interagem de tal maneira que uma vez tendo a primeira
mmHg, mas nos capilares e no líquido intersticial a PO2 média molécula de O2 se unido à Hb, há um aumento na facilidade
é de 40 mmHg e somente cerca de 23 mmHg dentro das célu- de união com outras moléculas de O2. Esta característica ex-
las. A PO2 capilar média é a mesma do líquido intersticial e, plica a curva de dissociação de oxiemoglobina na forma sig-
conseqüentemente, a PO2 média das vênulas também é de 40 moidal (Fig. 6-9).6 A quantidade de O2 que se une à Hb é rela-
mmHg. Portanto, fisiologicamente, existe uma tremenda dife- cionada à PO2 do plasma adjacente. No capilar pulmonar nor-
rença de pressão inicial (cerca de 40 para 23 mmHg), o que mal, a PO2 do plasma é normalmente quase o mesmo da PO2
leva o oxigênio a se difundir muito rapidamente do sangue alveolar.11 A extensão da combinação do O2 com a Hb é deno-
aos tecidos.6,9,10 minada de saturação da Hb e é medida em porcentagem da
capacidade total (SO2). A curva de dissociação de oxiemoglo-
Transporte de oxigênio no sangue bina é formada pela plotagem da SO2 como uma função da
Quando o sangue do capilar pulmonar se equilibra com ar PO2. A Hb torna-se aproximadamente 100% saturada com o O2
alveolar, a quantidade de oxigênio fisicamente dissolvida no (SO2 = 100%) quando a PO2 atinge cerca de 250 mmHg. Nor-
plasma é de apenas 0,3 ml de O2/100 ml de sangue (0,3 vol%). malmente, a Hb arterial encontra-se tipicamente 97,5% satura-
É esta pequena quantidade de oxigênio que é medida na PO2 da (SaO2 de 97,5%) em uma PO2 alveolar normal de 95-100
de 95 mmHg. Quase todo o oxigênio transportado pelo san- mmHg por causa da forma rara sigmoidal da curva de dissoci-
gue está reversivelmente ligado à hemoglobina contida den- ação da oxi-Hb. O sangue venoso da artéria pulmonar tem
tro das hemácias.9,11 Dentro dos níveis normais de hemoglo- uma PO2 normal de 40 mmHg e a SvO2 normal é de 75%.
bina, 98% do oxigênio contido no sangue está ligado nesta Então, o conteúdo de O2 aumenta no pulmão de cerca de 15
forma. Então, o movimento das hemácias representa uma for- ml/dl de sangue para 20 ml/dl. Normalmente, um paciente
ma substancial de transporte de oxigênio. A baixa solubilida- adulto com cerca de 70 kg, 15 g/dl de Hb e débito cardíaco de
de do oxigênio no plasma resulta numa quantidade negligen- 5 l/min, acrescenta 250 ml de oxigênio no sangue do capilar
ciável de seu transporte no sangue, exceto sob condições de pulmonar por minuto.9
Capítulo 6 ❑ FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR 43

SO2%
pH = 7,40 curva é muito inclinada para baixo, e relativamente plana aci-
100 ponto A ma desta PO2.
90 A P50 é definida como a PO2 do sangue em que 50% da Hb
pH = 7,38 D(a-v)SO2 está saturada de oxigênio. Normalmente, a P50 normal é de
26,6 mmHg. A curva de dissociação de oxi-Hb é também ca-
80 ponto V
D(a-v)PO2
70 paz de se desviar à direita ou à esquerda.6,8,10 Um aumento na
60 PCO2 do sangue ou na concentração do íon de hidrogênio
50 ! H+, PCO2 (acidemia) desvia a curva para a direita, ao passo que uma di-
! Temp. minuição em PCO2 ou alcalemia desvia a curva para a esquer-
! 2,3 DPG
da. Estes desvios na dissociação de oxi-Hb devido às variações
40
30 na PCO2 ou no pH do sangue são denominados de efeito Bohr.
20 P50 = Um aumento na temperatura do sangue ou na concentração
27 mmHg
10 38°C
O2 fisicamente eritrocitária da 2,3-difosfoglicerato (2,3-DPG) também desvi-
am a curva de dissociação de oxi-Hb para a direita, enquanto
dissolvido no plasma

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 110 120 130 uma diminuição na temperatura ou na 2,3-DPG desviam a cur-
PO2 (mmHg) va para a esquerda. Uma mudança na curva de dissociação de
oxi-Hb para a direita significa que mais O2 é liberado para uma
Ponto V Ponto A dada diminuição na PO2. Dito de outra forma, uma mudança
(Artéria pulmonar) (Veia pulmonar) na curva para a direita indica que a afinidade de Hb para O2 é
PVO2 = 40 mmHg PaO2 = 100 mmHg reduzida, de modo que para uma dada PO2 no plasma, mais
SvO2 = 75% SaO2 = 97,5% O2 é libertado da Hb para os tecidos. Em contraste, uma mu-
CvO2 " 15 ml/dl CaO2 " 20 ml/dl dança na curva para a esquerda significa que mais O2 será uni-
Fig. 6-9. Transporte de oxigênio. do a Hb (afinidade aumentada) para uma dada PO2 e menos O2
está disponível aos tecidos ou é libertado da Hb para uma
dada PO2.
A forma de sigmoidal da curva de dissociação de oxi-Hb
Pouca mudança significativa ocorre na porção de associa-
tem importância fisiológica tanto para carregar a Hb de O2
ção da curva de oxi-Hb com os desvios para a direita ou a es-
nos pulmões quanto para descarregar O2 nos capilares tecidu-
querda, mas grandes modificações ocorrem na porção de dis-
ais.6,10 Notem que a porção superior da curva, entre uma PO2
sociação da curva.6 Desvios da curva para a direita significam
de 70 a 100 mmHg, é quase plana. Esta porção da curva fre-
maior PO2 no plasma para um mesmo conteúdo de O2 no san-
qüentemente é referida como a parte de associação da curva
gue. Esta maior PO2 plasmática na periferia aumenta o gradi-
porque é importante no carregamento de O2 (a associação do
ente de oxigênio entre o capilar e as células, facilitando a ofer-
O2 com a Hb) no capilar pulmonar. A parte de associação da
ta de O2. Um tecido com aumento do seu metabolismo, como
curva assegura uma oxigenação da maior parte da Hb mesmo
um músculo esquelético em exercício, tem aumento na libera-
quando a PO2 alveolar é diminuída devido à altitude ou a do-
ção de CO2 local, queda no pH microvascular e aumento na
ença pulmonar. A SO2 diminui de 97,5% numa PO2 de 100
temperatura pelo aumento do metabolismo. Todos estes efei-
mmHg para 92% numa PO2 de 70 mmHg, ou seja, uma mudan-
tos facilitam a liberação do oxigênio pela hemoglobina na mi-
ça de apenas 1,0 ml/dl no conteúdo O2 de sangue. Assim, esta
crovasculatura e garantem uma oxigenação tecidual fisio-
porção plana da curva de dissociação de oxi-Hb assegura um
lógica.1,9
carregamento quase normal da Hb com O2 mesmo quando a
PO2 alveolar é abaixo do normal.6
Uso metabólico do oxigênio pelas células
Por outro lado, a parte inclinada da curva, entre uma PO2 de
20 a 50 mmHg, é denominada a porção de dissociação da cur- Se o fluxo sanguíneo para um determinado tecido tor-
va. A porção de dissociação da curva é importante nos capila- na-se aumentado ou seu metabolismo diminui, a PO2 intersti-
res teciduais onde uma quantia grande de O2 pode ser descar- cial aumenta, assim como a PO2 venular. A PO2 intersticial e
regada com uma mudança relativamente pequena na PO2. Por venular diminuem se houver queda do fluxo sanguíneo (vaso-
exemplo, uma diminuição no PO2 de 50 a 20 mmHg reduz o constrição, queda do débito cardíaco etc.) ou se o metabolis-
conteúdo O2 de sangue para mais de 10 ml/dl ou aproximada- mo tecidual aumentar desproporcionalmente ao fluxo. Em
mente 50%. Assim, uma porção relativamente grande do O2 suma, a PO2 tecidual é determinada pelo equilíbrio entre a
carregada pela Hb estará disponível para uso pelos tecidos taxa de oferta de oxigênio aos tecidos e a taxa de consumo de
mesmo com uma mudança relativamente pequena na PO2. Em oxigênio por eles mesmos.1,7,8
outras palavras, a Hb libera uma quantia relativamente grande O oxigênio, sendo incapaz de ser armazenado, é constan-
de O2 para uma mudança pequena no PO2.8 A transição da temente consumido pelas células. Portanto, a PO2 intracelular
porção de associação para a porção de dissociação da curva é sempre menor que a PO2 capilar e intersticial. Também, em
ocorre normalmente numa PO2 ao redor de 60 mmHg. A muitos casos, existe uma considerável distância entre os capi-
44 Parte II ❑ MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA

lares e as células. Isto explica porque a PO2 normal intracelular


Quadro 6-1. Fatores que afetam a oferta de O2 e a remoção
pode variar desde valores tão baixos quanto 5 mmHg quanto de CO2 dos tecidos
valores próximos aos 40 mmHg dos capilares, com uma média
de 23 mmHg. Desde que valores muito baixos de até somente 1. Fluxo de sangue tecidual
1 a 3 mmHg de pressão de oxigênio podem suportar um me- 2. Número de capilares perfundidos
tabolismo celular aeróbio, pode-se ver que uma PO2 de 23 3. Gradiente de PO2 ou PCO2 entre os capilares e as células
mmHg é mais que adequada e fornece uma considerável re- 4. Desvios da curva de dissociação da oxi-Hb
serva de segurança.6 5. Concentração da hemoglobina no sangue
Somente uma pequena quantidade de PO2 é necessária
para que as reações químicas normais intracelulares ocorram.
A razão para isto é que o sistema de enzimas respiratório é um outro meio de aumentar a entrega de O2 a um tecido. Um
movimentado mesmo quando a PO2 intracelular é tão baixa aumento no gradiente de pressão parcial entre o capilar e o
quanto 1 a 3 mmHg. Numa PO2 neste nível, a disponibilidade tecido também aumenta a entrega de O2. As mudanças na cur-
de oxigênio deixa de ser o fator limitante para o metabolismo va de dissociação de oxi-Hb com relação às mudanças no
aeróbio. O principal fator limitante a partir daí passa a ser a equilíbrio ácido-básico característico do sangue também po-
concentração de ADP (difosfato de adenosina).6,10 Mesmo que dem alterar a entrega de O2 aos tecidos. Da mesma forma, um
a disponibilidade de oxigênio aumente, seu consumo aumen- aumento no número de hemácias ou no hematócrito (e con-
tará somente se a concentração de ADP intracelular aumentar, seqüentemente na concentração de hemoglobina) também
o que significa um aumento nas necessidades de energia devi- aumenta a quantia de O2 entregue aos tecidos. Muitos dos fa-
do a um consumo aumentado do ATP celular. Somente em tores que aumentam a entrega de O2 também facilitam a re-
condições de hipóxia extrema a disponibilidade de oxigênio moção do CO2 (Quadro 6-1).6
torna-se um fator limitante para o metabolismo aeróbio.
Quando o oxigênio é utilizado pelas células, a maior par- O equivalente circulatório
te dele torna-se dióxido de carbono com um aumento na Todos os tecidos consomem O2 a uma taxa particular (VO2)
PCO2 intracelular. A partir daí, o CO2 difunde-se das células e têm taxas típicas de fluxo de sangue em repouso.6,9,11 O equi-
para os capilares até os pulmões, onde ele é eliminado pela valente circulatório (CEO2) reflete quão bem o fluxo de sangue
ventilação alveolar.11 Então, em cada ponto da cadeia de está equilibrado para o consumo de oxigênio do tecido (Qua-
transporte de gases, o CO2 é transportado na direção exata- dro 6-2).6 Como uma referência, o CEO2 para o corpo inteiro é
mente oposta da do oxigênio. A maior diferença é que o CO2 calculado dividindo-se o débito cardíaco total pelo consumo de
difunde-se 20 vezes mais rapidamente que o oxigênio e, por- oxigênio total do organismo (VO2). O CEO2 para o corpo todo é
tanto, necessita de diferenças ainda menores de pressão par- aproximadamente 20 (Quadro 6-2). Se algum órgão específico
cial.11 tem um CEO2 maior que 20, pode-se considerar que ele está hi-
Normalmente, a PCO2 intracelular é de 46 mmHg, a PCO2 perperfundido para o seu VO2. Neste caso, a captação de oxigê-
intersticial e capilar é de 45 mmHg e a PCO2 arterial é de 40 nio e a diferença arteriovenosa de O2 seriam pequenas (é o que
mmHg. O fluxo de sangue capilar e o metabolismo tecidual ocorre com os rins, por exemplo). Por outro lado, órgãos como
afetam a PCO2 intersticial de forma exatamente oposta a que o coração têm um CEO2 muito baixo e são considerados hipo-
afetam a PO2.10 perfundidos com relação ao seu consumo de oxigênio. Um
CEO2 baixo resulta em uma grande diferença arteriovenosa de
Troca de gases no tecido O2 e uma PvO2 relativamente baixa. Estes tecidos têm uma taxa
Os tecidos em constante metabolismo estão usando O2 e de extração de oxigênio aumentada.
produzindo CO2. As células necessitam de um estoque contí- Como se pode notar na tabela, órgãos ou tecidos diferen-
nuo de O2 para metabolismo aeróbio e requerem remoção tes exibem CEO2 com larga variação. Entretanto, o sangue de
contínua de CO2 para conservar o equilíbrio ácido-básico. O todos os tecidos, mesmo com CEO2 bem diferente, mistura-se
fluxo de sangue é essencial tanto para transportar como para no coração direito e na artéria pulmonar de modo que a dife-
manter um gradiente de concentração de O2 e remoção de rença no conteúdo arteriovenoso de O2 de todo o corpo é de
CO2 nos capilares teciduais. Nos capilares, o O2 difunde-se aproximadamente 5,0 ml/dl em repouso. O sangue venoso
para a célula, enquanto a difusão de CO2 está na direção inver- misto entra no capilar pulmonar para oxigenação com um
sa. Ambos gases movem entre o tubo concêntrico de células conteúdo de O2 de 15,0 ml/dl e uma PO2 de 40 mmHg. Assim,
por difusão simples em resposta a um gradiente de concen- aproximadamente três quartos dos locais de ligação do O2 na
tração. Vários fatores podem agudamente ou cronicamente hemoglobina já estão ocupados antes de oxigenação iniciar
aumentar a oferta de O2 ou a remoção de CO2 dos tecidos.1,8 no capilar pulmonar. Isto indica que em repouso, apenas um
O fluxo de sangue é o principal fator que afeta a oferta de quarto do conteúdo arterial total de O2 foi removido pelos te-
O2 aos tecidos.7 Um aumento no fluxo de sangue tipicamente cidos perfundidos pela circulação sistêmica. Assim, muitos te-
resulta em um aumento equivalente na entrega de O2. Au- cidos podem extrair O2 adicional se necessário mesmo sem
mentar o número de capilares abertos ao fluxo de sangue é aumentar o fluxo de sangue, apenas aumentando a taxa de ex-
Capítulo 6 ❑ FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR 45

Quadro 6-2. Equivalente circulatório

CaO2-CvO2 CvO2 (ml/dl)


Órgão VO2 (ml/min) Q (ml/min) CEO2 (ml/dl) CaO2 = 20 PvO2 (mmHg)

Cérebro 46 700 15,3 6,5 13,0 34


Coração 30 250 8,4 11,6 8,0 22
Abdome 50 1.400 28 3,5 16,0 47
Rins 17 1.100 65 1,5 18,0 64
Músculos 50 850 17 6,0 13,5 36
Pele 12 400 33,3 3,0 16,5 49
Miscelânea 45 300 6,6 15,6 4,0 14
Total 250 5.000 20 5,0 15,0 40

tração de oxigênio da hemoglobina.9 Entretanto, a reserva de foundations of critical care. Baltimore: Williams and
conteúdo de O2 de sangue é mais alta em alguns órgãos (pele) Wilkins, 1993, 119-139.
6. Nunn JF: Applied respiratory physiology. 3. ed. London:
que em outros (cérebro), como refletido por seus respectivos Butterworth, 1987. 207-239P.
CEO2. 7. Berne RM, Levy MN. The microcirculation, in
cardiovascular physiology. 8. ed. St Loius: Mosby, Inc,
2001. 155-174.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 8. Pittman RN: The microcirculation and tissue oxygenation.
1. Matthews LR: Cardiopulmonary anatomy and physiology. In: Sibbald WJ, Messner KFW, Fink MP. Tissue oxygenation
Philadelphia: Lippincott, 1996. in acute medicine. Berlin: Springer-Verlag, 1998. 36-54.
2. Aaronson PI, Ward JPT: The cardiovascular system. Oxford: 9. Bartlett RH. Oxygen kinetics: integrating hemodynamics,
Blackwell Sciences, 1999. respiratory, and metabolic physiology. In: Bartlett RH.
Critical care physiology. Boston: Little, Brown and
3. Singer M, Grant I. ABC of intensive care. Chicago: BMJ
Company, 1996. 1-23.
Books, 1999.
10. Guyton AC, Hall JE. Human physiology and mechanisms of
4. Power I, Kam P. Principles of physiology for the disease. 6. ed. Philadelphia: W.B. Saunders Company,
anaesthetist. Arnold Publishers, 2001. 1997. 324-336.
5. Schlichtig R. O2 Uptake, critical O2 delivery and tissue 11. West JB. Respiratory physiology, the essentials. 5. ed.
wellness. In: Pinsky MR, Dhainaut JFA. Pathophysiologic Baltimore: Williams & Wilkins, 1995. 71-88.
Capítulo 17

FISIOLOGIA RESPIRATÓRIA
Álvaro Réa Neto

INTRODUÇÃO
ANATOMIA
Laringe
Traquéia e brônquios
Pulmões e pleura
Suprimento sanguíneo
MECANISMO DA RESPIRAÇÃO
Vias motoras
Controle central
PROCESSO RESPIRATÓRIO
Volumes respiratórios
Resistência/complacência
Trabalho da respiração
Difusão
Ventilação/perfusão e “Shunt”
Surfactante
Transporte de oigênio
Circunstâncias especiais
Exercício
Altitude
Causas de hpóxia
FUNÇÕES PULMONARES NÃO-RESPIRATÓRIAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

129
130 Parte III ❑ MONITORIZAÇÃO RESPIRATÓRIA

INTRODUÇÃO T6. A maioria de sua circunferência é composta por uma série


Todos os tecidos do organismo necessitam de oxigênio de cartilagens em forma de C, sendo que o músculo traqueal,
para produzir energia e estão dependentes do seu suprimen- correndo na vertical, forma a face posterior.
to contínuo para manter suas funções normais.1 O gás carbô- Quando a traquéia bifurca-se, o ângulo do brônquio prin-
nico é o principal produto final da utilização do oxigênio e cipal direito é menos angulado, em relação à traquéia, do que
também necessita ser continuamente retirado das vizinhan- o esquerdo. Com isso, materiais que porventura sejam aspira-
ças desses tecidos. dos tendem a dirigir-se mais para o pulmão direito.5,6 Além
A principal função dos pulmões é de realizar a troca gaso- disso, o brônquio do lobo superior direito emerge a apenas
sa contínua entre o ar inspirado e o sangue da circulação pul- 2,5 cm da carina, necessitando de acomodação específica em
monar, suprindo oxigênio e removendo gás carbônico que é casos de intubação endobrônquica.
eliminado dos pulmões através da expiração.1-3 A nossa sobre-
vivência depende da integridade, eficiência e manutenção Pulmões e pleura
desse processo, mesmo na vigência de alterações patológicas O pulmão direito divide-se em três lobos (superior, médio
ou de um ambiente desfavorável. Para isso, o desenvolvimen- e inferior), ao passo que o esquerdo em apenas dois (superior
to evolucionário produziu diversos mecanismos complexos e e inferior), com divisões posteriores para os segmentos bron-
uma boa compreensão da fisiologia respiratória torna-se es- copulmonares (em número de 10 à direita e 9 à esquerda). No
sencial para a segurança do paciente internado numa Unidade total existem 23 divisões das vias aéreas entre a traquéia e os
de Terapia Intensiva. alvéolos.4,6 A parede dos brônquios contém musculatura lisa e
tecido elástico, bem como cartilagens nas vias maiores. A mo-
ANATOMIA vimentação gasosa se faz por convecção ou através de um flu-
xo de maré nas grandes vias aéreas, contrastando com a difu-
O trato respiratório estende-se da boca e do nariz até os
são que ocorre nas visa aéreas menores (além da divisão 17)
alvéolos.4 As vias aéreas superiores filtram as partículas aéreas
(Fig. 17-1).
e umidificam e aquecem os gases inspirados. A permeabilida-
A pleura é uma camada dupla que reveste os pulmões; a
de (desobstrução) da via aérea, no nariz e cavidade oral, é
que entra em contato com o pulmão propriamente dito é
mantida primordialmente pelo esqueleto ósseo, mas na farin-
chamada de pleura visceral, a que reveste a cavidade torácica
ge torna-se dependente do tônus dos músculos da língua, pa-
lato mole e paredes da faringe.
Z
Laringe Traquéia
A laringe situa-se ao nível das vértebras cervicais supe- 0

riores, C4-6, e seus principais componentes estruturais são as


Espaço morto anatômico

cartilagens tiróide, cricóide e aritenóides, às quais se junta a


Zona de condução

1
epiglote, que se assenta na abertura laringiana superior.4 Tais
Brônquios
principais

estruturas são conectadas por uma série de ligamentos e


músculos que, através de uma seqüência coordenada de a- 2
ções, protegem a entrada da laringe dos materiais sólidos e lí-
3
quidos envolvidos na deglutição, assim como regulam a ten-
são das cordas vocais para a fonação (fala). A técnica compres- 4
siva da cricóide assenta-se no fato de que sua cartilagem tem
a forma de um anel completo, utilizado para comprimir o esô- Brônquios de
fago (situado posteriormente) contra os corpos vertebrais transição

C5-6, prevenindo a regurgitação do conteúdo gástrico para a


faringe, principalmente nos momentos em que o paciente se
encontra inconsciente. As cartilagens tiróide e cricóide estão 17
conectadas anteriormente através da membrana cricotiróide Brônquíolos
Zona respiratória
Zona de difusão

18
por onde o acesso à via aérea pode ser obtido em situações respiratórios
emergenciais.
19

20
Traquéia e brônquios 21
A traquéia estende-se abaixo da cartilagem cricóide até a Sacos 22
carina, ponto onde ocorre sua divisão para os brônquios es- alveolares
querdo e direito (em adultos: 12 a 15 cm de comprimento e 23
diâmetro interno de 1,5 a 2,0 cm).4 Na expiração, a carina si-
tua-se ao nível de T5 (5ª vértebra torácica) e na inspiração em Fig. 17-1. Vias respiratórias.
Capítulo 17 ❑ FISIOLOGIA RESPIRATÓRIA 131

denomina-se pleura parietal.4 Em circunstâncias normais, o caso de exercícios, a expiração torna-se ativa através da con-
espaço interpleural, entre as duas camadas, contém apenas tração dos músculos da parede abdominal e os intercostais
uma pequena quantidade de líquido lubrificante. Os pulmões externos.4 Esses mesmos músculos também são acionados
e a pleura estendem-se, anteriormente, logo acima da quando se efetua a manobra de Valsalva.
clavícula até a altura do 8º arco costal, lateralmente ao nível
da 10ª costela e posteriormente até T12. Controle central
O mecanismo que controla a respiração é complexo. Exis-
Suprimento sanguíneo te um grupo de centros respiratórios localizados na base do cé-
Os pulmões são dotados de duplo suprimento sanguí- rebro que produz a atividade respiratória automática.2,4 Essa
neo, a circulação pulmonar, para trocas gasosas com os alvéolos será regulada, principalmente, pela descarga de quimiorrecep-
e a circulação brônquica para suprimento do parênquima (teci- tores (ver abaixo). Este controle pode ser suprimido pelo con-
do) do próprio pulmão.3,4,6 A maior parte do sangue da circu- trole voluntário a partir do córtex cerebral. Os atos voluntários
lação brônquica é drenada para o lado esquerdo do coração, de segurar a respiração, ofegar ou suspirar constituem-se em
através das veias pulmonares, sendo que essa quantidade de exemplos de tal controle voluntário. O principal centro respi-
sangue não-oxigenado faz parte do shunt fisiológico normal ratório situa-se no assoalho do 4º ventrículo, dotado de gru-
do organismo. O outro componente desse shunt fisiológico pos neuronais inspiratório (dorsal) e expiratório (ventral). Os
vem das veias de Thebesian que drenam parte do sangue co- neurônios inspiratórios atuam automaticamente, mas os ex-
ronário diretamente às câmaras cardíacas. piratórios são utilizados apenas durante a expiração forçada.
A circulação pulmonar constitui-se num sistema de baixa Os dois outros centros principais são o centro apnêustico,
pressão (25/10 mmHg) e baixa resistência, capaz de acomodar que estimula a inspiração, e o centro pneumotáxico que en-
qualquer aumento substancial no fluxo sanguíneo sem acarre- cerra a inspiração inibindo o grupo neuronal dorsal (citado
tar grandes alterações na pressão graças aos mecanismos de acima).
distensão vascular e recrutamento de capilares não perfundi- Os quimiorreceptores que regulam a respiração têm loca-
dos.3,4 O principal estímulo capaz de produzir aumento mar- lização central e periférica.1,2 Normalmente, o controle é exer-
cante da resistência vascular pulmonar é a hipóxia. cido pelos receptores centrais localizados na medula espinhal
que respondem à concentração de hidrogênio iônico do líqui-
MECANISMO DA RESPIRAÇÃO do cefaloespinhal (LCE). Esta é determinada pelo CO2 que se
Para gerar fluxo aéreo é necessário um gradiente de pres- difunde livremente através da barreira hematocerebral (BHC)
são.1,3,6 Na respiração espontânea, o fluxo inspiratório é con- a partir do sangue arterial. A resposta é rápida e sensível a pe-
seguido através da criação de uma pressão subatmosférica quenas alterações do CO2 arterial (PaCO2). Além desses, exis-
nos alvéolos (da ordem de 5 cmH2O durante a respiração em tem quimiorreceptores periféricos localizados nos corpos ca-
estado de repouso) através do aumento no volume da cavida- rotídeos e aórticos, a maioria dos quais responde às quedas
de torácica, sob ação da cadeia de músculos inspiratórios. Du- de O2 e alguns também às elevações do CO2 arterial. O grau de
rante a expiração, a pressão intra-alveolar torna-se levemente hipoxemia necessária para ocasionar uma ativação significati-
mais elevada do que a pressão atmosférica resultando no flu- va dos receptores de O2, de modo diferente daquela ocasiona-
xo de gás em direção à boca. da em circunstâncias normais, é < 60 mmHg.3 Estes recepto-
res são ativados, por exemplo, na respiração em altitudes ele-
Vias motoras vadas ou na falta de resposta ao CO2 (quando a PaCO2 torna-se
cronicamente elevada ocorre embotamento da sensibilidade
O principal músculo responsável pela geração de pressão do receptor central). Nesse caso, o bicarbonato plasmático
intratorácica negativa, que ocasiona a inspiração, é o diafrag- (HCO3) também estará elevado.2,4
ma; uma lâmina musculotendinosa que separa o tórax do ab-
dome.2,4 Sua porção muscular é periférica e insere-se nas cos-
telas e vértebras lombares, sendo que a porção central é ten-
PROCESSO RESPIRATÓRIO
dinosa. A inervação é suprida pelos nervos frênicos (C3-5) res-
ponsáveis pela contração que desloca o diafragma em direção Volumes respiratórios
ao conteúdo abdominal, forçando-o para baixo e para fora. Os Os inúmeros termos utilizados para descrever a excursão
músculos intercostais externos produzem o esforço da inspira- (movimentação) pulmonar durante o repouso e na respiração
ção adicional (inervados pelos nervos intercostais T1-12) e pe- maximizada estão mostrados na Figura 17-2.1-3
los músculos acessórios da respiração, esterno-mastóide e esca- O volume corrente (500 ml) multiplicado pela freqüência
leno, embora o último tenha importância apenas durante o respiratória (14 movimentos respiratórios/minuto) consti-
exercício ou em processos de estresse respiratório. tui-se no volume minuto (cerca de 7.000 ml/min). Nem todo o
Durante o estado de repouso a expiração é um processo volume corrente toma parte na troca respiratória, já que o
passivo, dependente do recolhimento elástico do pulmão e processo só é iniciado quando o ar, ou gás, alcança os bron-
da parede torácica. Quando a ventilação é aumentada, no quíolos respiratórios (a partir da divisão 17 da árvore respira-
132 Parte III ❑ MONITORIZAÇÃO RESPIRATÓRIA

Fig. 17-2. Volumes respiratórios


em repouso e forçados. Volume de
reserva
inspiratória
Capacidade (3.000ml)
inspiratória
Capacidade (3.500ml)
Capacidade vital Volume
pulmonar (4.600ml) corrente
total (450-550 ml)
(5.800ml)
Volume de
reserva
Capacidade espiratória
residual (1.100 ml)
funcional
Volume (2.300ml) Volume
residual residual Homem de 70 kg
(1.200ml) (1.200 ml)

tória). Acima deste nível a passagem aérea funciona apenas quando deslizam entre si, durante a respiração). O aumento
como condutora e seu volume é conhecido por espaço morto da resistência, resultante de um estreitamento das vias aéreas
anatômico. O volume do espaço morto anatômico é de aproxi- como no broncoespasmo, leva à doença obstrutiva das vias
madamente 2 ml/kg ou 150 ml nos adultos, aproximadamente aéreas.
30% do volume corrente. A porção do volume corrente que Complacência denota a capacidade de distensão (elastici-
toma parte da troca respiratória, multiplicada pela freqüência dade) e no conceito clínico refere-se à combinação entre o
respiratória é conhecida como ventilação alveolar (cerca de pulmão e a parede torácica, sendo definida como a alteração
5.000 ml/min). do volume por unidade de pressão alterada. Quando a com-
A capacidade residual funcional (CRF) é o volume do ar placência é baixa os pulmões tornam-se mais rígidos sendo
que permanece nos pulmões no final de uma expiração nor- necessário esforço maior para inflar o alvéolo. Condições clí-
mal.3 O ponto no qual ela ocorre (portanto, o valor da CRF) é nicas que pioram a complacência, tais como a fibrose pulmo-
determinado através do equilíbrio entre as forças elásticas in- nar, ocasionam doença pulmonar restritiva.
ternas do pulmão e as forças externas da caixa respiratória (a A complacência também pode variar no interior do pul-
maior parte através do tônus muscular). A CRF diminui no de- mão de acordo com o grau de insuflação como demonstrado
cúbito supino, obesidade, gravidez e anestesia, embora não na Figura 17-3. Uma complacência baixa pode ser observada
ocorra diminuição importante com o passar da idade. A CRF tanto em volumes baixos (pela dificuldade inicial do pulmão
reveste-se de particular importância nos períodos anestési- em inflar) quanto também em volumes elevados (devido à
cos, a saber:5 1. durante a apnéia, constitui-se no reservatório limitação da expansão da cavidade torácica).1,2,3 Um melhor
do suprimento de oxigênio para o sangue; 2. quando ela dimi- grau de complacência pode ser observado no ponto médio da
nui, a distribuição da ventilação dentro dos pulmões sofre al- expansão.
teração, ocasionando desequilíbrio com o fluxo sanguíneo
pulmonar (desequilíbrio V/Q); 3. se diminuir abaixo de deter-
minado volume (capacidade de fechamento) ocorre fecha-
mento da via aérea levando ao shunt (ver adiante Ventila- V
ção/Perfusão/Shunt).
Ápice
Resistência/complacência
Na ausência de esforço respiratório, o pulmão repousará Zona V
P
no ponto da CRF. Para mover-se a partir dessa posição e gerar intermediária
o movimento respiratório, deverão ser considerados os as-
pectos que se opõem à expansão pulmonar e ao fluxo aéreo,
tornando necessária a interferência da atividade muscular.1,2,5 V
Base
São eles: a resistência da via aérea e a complacência do pul- P
mão e da parede torácica.
dV
Complacência =
Resistência das vias aéreas constitui-se na reação con-
dP
V
trária ao fluxo aéreo através das vias aéreas condutoras. P
Ocorre principalmente nas grandes passagens aéreas (até as P
divisões 6-7), além da contribuição fornecida pela resistência Fig. 17-3. Curva de complacência para diferentes níveis de
tecidual (produzida pela fricção entre os tecidos pulmonares, insuflação pulmonar.
Capítulo 17 ❑ FISIOLOGIA RESPIRATÓRIA 133

Trabalho da respiração
Dentre as duas barreiras limitantes da respiração, resis- Início do Fim do
tência aérea e complacência, apenas a primeira requer produ- capilar capilar
ção de trabalho efetivo para ser sobrepujada.3,5,6 A resistência
da passagem aérea ao fluxo está presente durante a inspira- Alvéolo
ção como também na expiração e a energia necessária para CO2
O2 (Normal)
sobrepujá-la, que representa o trabalho da respiração, é dissi-
pada na forma de calor. O2 (Exercício)
Embora, durante a expansão pulmonar, também seja ne-

Pressão parcial
O2 (Anormal)
cessário energia para vencer a complacência, ela não contri-
bui para o trabalho efetivo da respiração e não sofre dissipa-
ção, mas é convertida em potencial energético nos tecidos
elásticos distendidos. Uma parte dessa energia estocada é uti-
lizada para efetuar o trabalho da respiração produzido pela
resistência aérea durante a expiração.
O trabalho da respiração pode ser mais bem representa-
do através de uma curva de pressão/volume do ciclo respira-
tório (Fig. 17-4) que mostra os diferentes caminhos para a ex-
0 0,25 0,50 0,75

piração e inspiração conhecidos como histerese.2,3,7 O trabalho


Tempo no capilar(s)

total da respiração dentro de um ciclo é a área contida na alça. Fig. 17-5. Tempo de difusão do O2 no capilar pulmonar em
condições normais e nas doenças pulmonares.

Difusão
Os alvéolos possuem uma enorme superfície de área para quantidade disponível de tempo para a troca gasosa. Dessa
efetuar a troca gasosa com o sangue pulmonar (entre 50-100 forma os portadores de doença pulmonar são incapazes de
m2) e são dotados de uma membrana delgada pela qual os ga- oxigenar por completo o sangue pulmonar, apresentando as-
ses devem difundir. A solubilidade do oxigênio é tal que sua sim uma limitação da habilidade de exercício.
difusão através da membrana alveolocapilar normal consti-
tui-se num processo rápido e eficiente.3,6 Em condições de re- No caso do dióxido de carbono, cuja difusão através da
pouso, o sangue capilar pulmonar entra em contato com o al- membrana alveolocapilar é 20 vezes mais rápida que a do oxi-
véolo por cerca de 0,75 segundos, atingindo completo equilí- gênio, os fatores acima relacionados são menos capazes de
brio com o oxigênio alveolar logo após cerca de um terço de influenciar na troca entre sangue e alvéolo.
seu caminho ao longo desse percurso. Mesmo havendo doen-
ça pulmonar, que restringe a difusão, ainda haverá tempo sufi- Ventilação/perfusão e “Shunt”
ciente, geralmente, para o completo equilíbrio do oxigênio Numa situação ideal, a ventilação liberada de uma deter-
no repouso (Fig. 17-5). No entanto, durante o exercício físico, minada área pulmonar seria suficiente para propiciar a troca
o fluxo sanguíneo pulmonar é mais rápido, diminuindo a completa entre oxigênio e dióxido de carbono com o sangue
que perfunde essa área. Mas no pulmão normal, nem a venti-
lação (V) ou a perfusão (Q) são distribuídas uniformemente
V
através da superfície, combinando-se, porém, de modo equili-
Trabalho da inspiração
brado, sendo que as bases recebem quantidades substancial-
mente maiores de V e Q do que os ápices pulmonares (Fig.
Trabalho da expiração
17-6).2,3,5
Em relação à perfusão, a distribuição através do pulmão
Expiração depende amplamente dos efeitos da gravidade. Assim, na po-
sição ereta, a pressão de perfusão nas bases pulmonares é
igual à pressão média da artéria pulmonar (15 a 20 cmH2O)
acrescida do valor da pressão hidrostática entre a principal ar-
Inspiração téria pulmonar e a região da base (aproximadamente 15
cmH2O). Nos ápices pulmonares, a diferença da pressão hi-
drostática é subtraída da pressão da artéria pulmonar, resul-
tando num valor muito baixo da pressão de perfusão. Tal valor
pode, por vezes, ficar abaixo da pressão no alvéolo acarretan-
P do compressão do vaso e interrupção intermitente do fluxo
Fig. 17-4. Trabalho da respiração. sanguíneo durante a diástole.5
134 Parte III ❑ MONITORIZAÇÃO RESPIRATÓRIA

Ventilação (V) arterial (hipoxemia). Uma vez fornecida ventilação adequada


Perfusão (P) nessa área de baixo V/Q, a hipoxemia será normalmente corri-
gida através do aumento da FiO2 que restaura a liberação de
oxigênio alveolar em níveis suficientes para a completa oxige-
nação corporal.
O desequilíbrio V/Q é muito comum durante a sedação,
Q
pois a CRF decresce levando a uma alteração da posição do
pulmão na curva de complacência. Assim, os ápices estarão
posicionados na porção mais favorável da curva, enquanto as
V
bases estarão localizadas na porção menos favorável, na parte
mais baixa da curva.
No desequilíbrio extremo da relação V/Q, uma área pul-
monar que não receba perfusão apresentará o índice V/Q de
valor (infinito) referido como espaço morto alveolar que em
conjunto com o espaço morto anatômico forma o espaço mor-
to fisiológico. A ventilação do espaço morto constitui-se, efeti-
Base Ápice vamente, num desperdício da ventilação.3,5
pulmonar pulmonar Por outro lado, uma área pulmonar que não receba venti-
Fig. 17-6. Distribuição da Ventilação e da Perfusão dentro do lação, por fechamento ou bloqueio da passagem aérea, apre-
pulmão normal. sentará índice V/Q de valor zero, sendo designada como shunt.
O sangue emergirá de uma área de shunt com a PO2 venosa
A distribuição da ventilação através do pulmão depende inalterada (40 mmHg), ocasionando grave hipoxemia arterial.
da posição de cada área na curva de complacência, logo no Essa hipoxemia não pode ser corrigida através do aumento
início da inspiração normal “em onda de maré” (ponto da em FiO2 mesmo em 100% uma vez que a área de shunt não re-
CRF). Como as bases situam-se numa porção de melhor com- cebe ventilação alguma.3,5
placência da curva, em relação à porção ocupada pelos ápices, As partes pulmonares bem ventiladas não conseguem
recebem, portanto, maior alteração de volume a partir da al- compensar as zonas de shunt, pois a hemoglobina encontra-se
teração de pressão aplicada e conseqüentemente maior grau quase completamente saturada numa PO2 normal. Um au-
de ventilação.3,5 mento da PO2 desse sangue não será capaz de aumentar subs-
Embora a disparidade entre bases e ápices seja menor tancialmente o conteúdo de oxigênio.
para a ventilação do que para a perfusão, no final ocorre uma Portanto, no caso de shunt, a oxigenação adequada ape-
boa combinação V/Q e uma eficiente oxigenação do sangue nas poderá ser restabelecida através da restauração da venti-
que passa através dos pulmões. lação nessas áreas, a partir de medidas fisioterápicas, como a
Distúrbios que interferem nessa distribuição ocasionam pressão expiratória final positiva (PEEP) ou CPAP, que liberam
desequilíbrio da relação V/Q (Fig. 17-7).2,3,5 Numa área de baixo o bloqueio das passagens aéreas e reinsuflam áreas pulmona-
índice V/Q, o sangue que passa por ela será oxigenado por in- res colapsadas. Uma vez que a capacidade de fechamento (CF)
completo, causando redução do nível de oxigênio no sangue aumenta progressivamente com a idade, sendo também ele-
vada nos recém-natos, tais pacientes encontram-se sob condi-
Desequilíbrio ventilação – Perfusão
ção de risco durante procedimentos anestésicos ou sedativos,
já que a CRF pode tomar um valor abaixo da CF, resultando no
CO2 = 0
bloqueio da passagem aérea e shunt.3,7,8
B A C
Surfactante
O2 = 40 O2 = 100 O2 = 150
Qualquer superfície líquida apresenta uma tensão super-
CO2 = 50 O2 = 40 CO2 = 40 CO2 = 0
ficial com tendência das moléculas dessa superfície em se
agregar.3,6 Por esta razão, quando a água repousa sobre uma
CO2 = 45 superfície, ocorre a formação de gotas arredondadas. Se a
tensão superficial for reduzida, adicionando pequena quanti-
0 NORMAL ! dade de um saponáceo, as gotas entrarão em colapso e a água
formará uma película delgada.
Diminuição Aumento
da relação da relação
VA/Q VA/Q Quando a superfície de um líquido é esférica, ela age no
(Perfusão sem ventilação) (Ventilação sem perfusão) sentido de gerar uma pressão no interior dessa esfera, de
Fig. 17-7. Distúrbios da relação V/Q intrapulmonar normal (A). acordo com a lei de Laplace: P = 2T/R, onde P é a pressão, T é
Do shunt total (B) até a ventilação de espaço morto alveolar (C). a tensão e R é a resistência.6
Capítulo 17 ❑ FISIOLOGIA RESPIRATÓRIA 135

A película do revestimento líquido alveolar exibe uma PO2, o decréscimo posterior resultará em queda dramática da
tensão superficial que aumenta a pressão nos alvéolos (au- saturação de Hb.
mentos mais elevados nos alvéolos menores do que nos maio- Diversos fatores podem alterar a afinidade da Hb por
res). O surfactante é a substância secretada pelas células epi- oxigênio, resultando na movimentação da curva para a direita
teliais alveolares do tipo II que diminui, de modo intenso, a (acidose, aumento na temperatura ou na concentração da
tensão superficial dessa superfície respiratória. A substância é 2,3-DPG) ou para a esquerda (Hb fetal, alcalose, diminuição na
um fosfolipídio (dipalmitol lecitina) e apresenta os seguintes temperatura ou na 2,3-DPG).6,9 O grau de intensidade da
benefícios fisiológicos: aumento da complacência pulmonar; curva de dissociação da oxiemoglobina é dado através da P50,
redução na tendência que os alvéolos menores apresentam o nível de PO2 no qual a Hb encontra-se saturada em 50%.
em esvaziar-se dentro dos maiores acarretando colapso, e re- A movimentação da curva para a direita diminui a afinida-
dução no extravasamento de fluido, a partir dos capilares pul- de da Hb por oxigênio. Isso é fisiologicamente útil para os te-
monares, para o interior dos alvéolos através do aumento que cidos, onde o ambiente levemente ácido estimula a descarga
a tensão superficial imprime no gradiente de pressão hidros- do oxigênio a partir do sangue – Efeito Bohr. Um desvio da
tática dos capilares para os alvéolos. curva à esquerda aumenta a afinidade da Hb por oxigênio,
ocasionando saturação elevada em determinada PO2. Isso aju-
Transporte de oxigênio da a descarga de oxigênio nos capilares pulmonares (levemen-
Partindo do índice atmosférico de 159,6 mmHg (21%) ou te alcalinos) sendo de grande vantagem para o feto onde o ní-
21 kPa, o valor da pressão parcial do oxigênio (PO2) sofre 3 vel da PO2 é baixo.
etapas de declínio antes de alcançar o sangue arterial.3,8,9 Pri- Um grama de Hb, completamente saturada, pode carregar
meiramente o ar inspirado é umidificado no trato respiratório até 1,34 ml de oxigênio. Numa PO2 de 100 mmHg a Hb estará
superior. A pressão do vapor d'água saturado (47 mmHg) re- normalmente saturada de oxigênio em 97%.6,9 Se a concentra-
duz a PO2 para um valor em torno de 148 mmHg. Nos alvéo- ção de Hb for de 150 g/l (15 g/100 ml), o sangue arterial com-
los, a troca contínua de dióxido de carbono por oxigênio re- portará aproximadamente 200 ml de oxigênio por litro de san-
duz a PO2 para 108 mmHg e finalmente o pequeno shunt fisio- gue. Num débito cardíaco de 5 l/min, a quantidade disponível
lógico, normalmente presente, reduz a PO2 para aproximada- de oxigênio na circulação periférica será de 1.000 ml/min. Des-
mente 100 mmHg. Portanto, fisiologicamente, a PO2 alveolar ses, aproximadamente 250 ml/min são utilizados no repouso
(PAO2) normal num paciente respirando ar ambiente no nível perfazendo uma saturação de Hb no sangue venoso de 75%.
do mar é cerca de 100 mmHg.
A quantidade de oxigênio dissolvido no plasma é de ape-
Esta PAO2 pode ser calculada a partir da equação de gás
nas 0,03 ml/litro/mmHg. Quando ar ambiente é respirado ela é
alveolar:3,6 PAO2 = (PiO2 – 47) – (PACO2/R), onde PAO2 é a pres-
de apenas 3 ml/litro, podendo ser substancialmente elevada
são parcial de oxigênio dentro do alvéolo, PiO2 é a pressão
através da utilização da pressão hiperbárica, que torna possí-
parcial do oxigênio no gás inspirado, PACO2 é a pressão parcial
vel alcançar um nível adequado para o suprimento das neces-
do gás carbônico dentro do espaço alveolar e R é o quociente
sidades teciduais (respiração de oxigênio 100% em pressão de
respiratório, geralmente ao redor de 0,8.
3 atmosferas). Esse procedimento pode ser utilizado para su-
Depois de ocorrida a transferência de oxigênio, através
prir a oxigenação nas situações em que a Hb do paciente mos-
da membrana capilar alveolar, torna-se necessária a presença
trar-se insuficiente ou ineficaz.
de um sistema eficiente de transporte para os tecidos que se
utilizam do oxigênio para a respiração celular.9 O conteúdo de
oxigênio no sangue representa a soma do oxigênio ligado à Circunstâncias especiais
hemoglobina (Hb) e daquele dissolvido no plasma (que pouco O estudo das diversas respostas e adaptações fisiológicas
contribui para o total). A Hb é uma grande proteína composta específicas, que ocorrem como resposta às alterações das cir-
por 4 subunidades, cada qual contendo o íon ferroso (Fe2+) cunstâncias normais, torna-se útil no sentido de compreender
dentro da fração heme. Até 4 moléculas de oxigênio são de forma mais clara os diferentes mecanismos fisiológicos já
capazes de se ligar, reversivelmente, a cada molécula de Hb, descritos anteriormente. São elas:
uma em cada íon ferroso. O principal fator determinante da
quantidade de oxigênio ligado à Hb é a PO2 (ver capítulo de fi- Exercício
siologia cardiovascular).
O achatamento inicial da curva ocorre porque a ligação Durante a atividade física o consumo de oxigênio pode
da primeira molécula de oxigênio ocasiona uma leve alteração elevar-se a partir de 250 até 3.000 ml/min 6. As alterações em
estrutural na Hb facilitando ligações subseqüentes das demais resposta a essa demanda aumentada de oxigênio incluem:
moléculas.9 O formato da curva significa que a queda na PO2, Aumento no débito cardíaco, na ventilação e na extração
a partir do valor arterial normal, imprime pouco efeito na do oxigênio a partir do sangue.
saturação de Hb (portanto no conteúdo de oxigênio) até que a Acima de determinado nível, o suprimento de oxigênio
porção mais íngreme da curva seja alcançada, geralmente, por não consegue atingir o grau de necessidade, ocorrendo então
volta de 60 mmHg. No entanto, uma vez alcançado tal nível de o metabolismo anaeróbio que leva à produção de ácido lático.
136 Parte III ❑ MONITORIZAÇÃO RESPIRATÓRIA

Altitude quado, o suprimento aos tecidos estará comprometido. Ini-


A resposta aguda à baixa PO2 arterial, resultante da expo- cialmente a oxigenação tecidual é mantida através do au-
sição a altitudes elevadas, é regida pela ação dos quimiorre- mento na extração de oxigênio do sangue, mas com a piora
ceptores periféricos que ocasionam a hiperventilação (bem da perfusão tecidual este mecanismo torna-se insuficiente
como aumento do débito cardíaco).6 A conseqüente queda da instalando-se a hipóxia dos tecidos.
PCO2 alveolar leva ao aumento da PO2 alveolar (através da ! Hipóxia citopática ou histotóxica: descreve a situação em que
equação dos gases alveolares) elevando a PO2 arterial. No en- os processos metabólicos celulares encontram-se diminuí-
tanto, o decréscimo associado na PCO2 arterial reduz a in- dos, bloqueando a utilização do oxigênio pela célula, mes-
fluência dos quimiorreceptores centrais, limitando a resposta mo quando o suprimento de oxigênio aos tecidos está nor-
hiperventilatória. Tal efeito indesejado é reduzido através de mal. A causa mais conhecida de hipóxia citopática é a intoxi-
um mecanismo de compensação metabólica, que surge no cação por cianeto que inibe a citocromo-oxidase.
decorrer de 2-3 dias, envolvendo o aumento da excreção renal
de HCO–3 com a queda subseqüente dos níveis de HCO–3 plas- FUNÇÕES PULMONARES NÃO-RESPIRATÓRIAS
mático e da CRF. Enquanto a função principal dos pulmões consiste na tro-
Respostas posteriores que melhoram o transporte do ca respiratória de gás, eles também desempenham outros im-
oxigênio incluem a elevação da concentração de 2,3-DPG na portantes papéis fisiológicos, incluindo:2,6 reservatório de
hemácia, levando ao desvio à direita da curva de dissociação sangue disponibilizado para a compensação circulatória, fil-
da oxiemoglobina, e a policitemia. tragem da circulação (trombos, microagregados etc.), ativida-
de metabólica como ativação da angiotensina I e sua transfor-
Causas de hipóxia mação na angiotensina II e inativação da noradrenalina, bradi-
Hipóxia indica uma situação em que os tecidos são cinina, serotonina e prostaglandinas e atividade imunológica
incapazes de processar as reações oxidativas normais devido como ativação do macrófago alveolar e secreção de IgA no
à falência no suprimento ou na utilização do oxigênio. Suas muco dos brônquios.
causas podem ser agrupadas em 4 categorias:5,9
! Hipóxia hipoxêmica: é definida como uma PO2 inadequada no REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
sangue arterial. Isso pode ser resultado de uma PO2 inade- 1. Levitzki MG. Pulmonary physiology. 4. ed. New York:
quada do ar inspirado (como na altitude), hipoventilação (de McGraw-Hill, 1995.
causas periférica ou central) ou por transferência alveoloca- 2. Nunn JF. Applied respiratory physiology. 3. ed. London:
pilar inapropriada (no shunt ou no desequilíbrio da relação Butterworth, 1987. 207-239p.
V/Q). 3. West JB. Respiratory physiology, the essentials. 5. ed.
! Hipóxia anêmica: o conteúdo de oxigênio do sangue arterial Baltimore: Williams & Wilkins, 1995. 71-88p.
está quase todo ligado à Hb. Na presença de anemia grave, 4. Matthews LR. Cardiopulmonary anatomy and physiology.
Philadelphia: Lippincott, 1996.
portanto, o conteúdo de oxigênio diminuirá proporcional-
5. Power I, Kam P. Principles of physiology for the
mente ao grau de redução na concentração de Hb, mesmo anaesthetist. London: Arnold Publishers, 2001.
que a PO2 permaneça normal. O mecanismo compensatório 6. Guyton AC, Hall JE. Human physiology and mechanisms of
normal que restaura o suprimento de oxigênio é a elevação disease. 6. ed. Philadelphia: W.B. Saunders Company,
do débito cardíaco, mas quando esse não puder mais ser 1997. 324-336p.
mantido ocorrerá a hipóxia tecidual. Condições nas quais a 7. Davidson C, Treacher D. Respiratory critical care. London:
ligação entre a Hb e o oxigênio torna-se comprometida, Arnold Publishers, 2002.
como na intoxicação por monóxido de carbono, ocasionam 8. Griffiths MJD, Evans TW. Respiratory management in
critical care. Navarra: BMJ Publishing Group, 2004.
redução do transporte de O2 de forma semelhante ao que
9. Schlichtig R. O2 uptake, critical O2 delivery and tissue
ocorre na anemia. wellness. In: Pinsky MR, Dhainaut JFA. Pathophysiologic
! Hipóxia circulatória ou estagnante: na ocorrência de falência foundations of critical care. Baltimore, Williams and
circulatória, mesmo se o conteúdo de oxigênio estiver ade- Wilkins, 1993. 119-139p.
Capítulo 23

FISIOLOGIA NEUROLÓGICA
Álvaro Réa Neto

INTRODUÇÃO
PRESSÃO INTRACRANIANA
PRESSÃO DE PERFUSÃO CEREBRAL
FLUXO SANGUÍNEO CEREBRAL
AUTO-REGULAÇÃO
ACOPLAMENTO METABÓLICO
DIÓXIDO DE CARBONO
OXIGÊNIO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

183
184 Parte IV ❑ MONITORIZAÇÃO NEUROLÓGICA

INTRODUÇÃO líquor.3,4,6 De acordo com a doutrina de Monro-Kellie, todos


Muitos pacientes criticamente doentes se apresentam os três componentes estão em um estado de equilíbrio
com doenças neurológicas graves ou desenvolvem complica- dinâmico. Se o volume de um dos componentes aumenta, o
ções neurológicas.1 Uma grande parte destas complicações volume de um ou mais dos outros componentes deve di-
resultam de hipoperfusão cerebral.2 Por isso, o conhecimento minuir ou a pressão intracraniana irá aumentar. Dentro dos
da fisiologia do fluxo sanguíneo e do consumo de oxigênio ce- ventrículos, a pressão intracraniana deve ser menor que 15
rebral é importante para aqueles que trabalham em unidades mmHg.
de terapia intensiva. Os principais elementos dentro do crânio são o encéfalo
(80%), sangue (10-12%) e líquor (8-10%).3,4,6 O volume total é de
Qualquer injúria neurológica pode ter conseqüências de-
cerca de 1600 ml. Como o crânio pode ser visto fisiologi-
vastadoras. Lesão neurológica definitiva do tecido cerebral
camente como uma caixa rígida cheia de líquido, se o volume
com seqüela permanente pode ocorrer no momento da injúria
de um de seus constituintes aumentar, a pressão dentro do
primária.3 Mas o risco de injúria neurológica adicional por alte-
crânio deverá aumentar a não ser que algum de seus elemen-
ração da dinâmica intracraniana também é alto e dependente
tos líquidos possa escapar. E este não pode ser o cérebro, mas
de hipertensão intracraniana e de vários outros fatores poten-
o sangue ou o líquor.
cialmente deletérios.4-6 Um grande número de alterações clíni-
Se o cérebro aumenta de volume, algum sangue ou líquor
cas pode afetar a dinâmica cerebral e o cérebro secundaria-
deverá escapar de dentro do crânio para que a pressão não se
mente, ampliando a injúria primária. Muitas dessas alterações
eleve. Quando isto não puder mais ocorrer, a PIC irá se elevar
podem ser prevenidas ou tratadas precocemente, aumen-
acima de seu valor normal (5-15 mmHg). Normalmente, a
tando a chance de recuperação neurológica desses pacientes.1
resposta inicial é uma redução no volume de líquor do crânio.
Nisso reside a importância do conhecimento da fisiologia e da
O líquor é desviado para dentro do saco espinhal. Desta for-
monitorização neurológica e a suas conseqüentes interven-
ma, a PIC é inicialmente controlada. Se o processo patológico
ções efetivas.
inicial progride com mais aumento de volume, sangue venoso
Alguns dos fatores envolvidos na injúria neurológica rela- dos seios e eventualmente mais líquor podem ser forçados a
cionada às alterações da dinâmica cerebral incluem hiper- sair do crânio. Quando este mecanismo de compensação é
tensão intracraniana, regulação do fluxo sanguíneo cerebral, exaurido, qualquer aumento maior de volume intracraniano
formação de edema cerebral e alterações no líquor.4,7 Uma irá causar um rápido aumento da PIC.
compreensão fisiopatológica plena dos princípios subjacen- As relações entre as variações de volume e de pressão
tes à dinâmica cerebral é essencial para o manejo adequado dentro do crânio são representadas na Figura 23-1. Ela indica
dos pacientes neurológicos graves. que um aumento no volume com pouca mudança de pressão
As alterações fisiológicas que mantêm o fluxo sanguíneo ocorre até um certo ponto, quando pequenos aumentos de vo-
cerebral (FSC) e acomodam as alterações no volume cerebral lume acarretam grandes aumentos de pressão. Este ponto
são relativamente complexas, mas fáceis de se entender. Gran- geralmente indica que os mecanismos de compensação se tor-
des avanços no atendimento dos pacientes com graves doen- naram exauridos e uma fase de aumento da PIC compensada
ças cerebrais têm se desenvolvido nos últimos 10-15 anos e ba- foi sucedida por uma fase descompensada.3
seiam-se fundamentalmente na compreensão das regras fisio- É interessante notar que esta curva clássica representa as
lógicas básicas e do processo fisiopatológico subjacente.1,7,8 alterações de pressão quando um único compartimento
O cérebro é capaz de suportar apenas períodos muito dentro do crânio varia, neste caso, o líquor. Na prática, quan-
curtos de isquemia, diferentemente dos rins, do fígado e dos do o aumento do volume cerebral ocorre por um tumor ou
músculos, por exemplo.2,7 Então o FSC deve ser mantido para hematoma, a curva é menos íngreme. Gradientes de pressão
assegurar uma oferta constante de oxigênio e glicose, além de se desenvolvem dentro da substância cerebral e, dependendo
retirar os produtos do metabolismo cerebral.1,8 A manutenção
do FSC depende de um equilíbrio entre a pressão dentro do
crânio, a pressão intracraniana (PIC) e a pressão arterial do
sangue (PAM). É importante manter um FSC relativamente
constante. Assim, quando a PAM diminui, alguns mecanismos Complacência
fisiológicos são ativados para manter o FSC e evitar isquemia Elastância
= dV
neuronal. Este processo é denominado de auto-regulação e dP = dP
PIC

será melhor explicado posteriormente. Da mesma forma, se a


dV

PAM se eleva, o FSC também deve ser mantido senão o cére-


bro incharia pelo aumento do FSC e a PIC se elevaria.
V
PRESSÃO INTRACRANIANA
O crânio possui, nos adultos, um compartimento rígido Fig. 23-1. Curva de Langfitt que expressa a relação entre pressão e
preenchido com 3 componentes: tecido cerebral, sangue e volume intracraniano.
Capítulo 23 ❑ FISIOLOGIA NEUROLÓGICA 185

da complacência e da compressibilidade das estruturas adja- este aumento no volume de sangue venoso num cérebro criti-
centes e do desenvolvimento de hérnias cerebrais, a curva se camente inchado irá levar a um rápido aumento na PIC. Na
torna geralmente menos abrupta. Aumentos de volume prática é imperativo assegurar que estes pacientes mante-
cerebral localizado podem levar a herniações cerebrais inter- nham a cabeceira da cama elevada a 30º e a cabeça seja manti-
nas ou externas, acarretar torções do tronco cerebral e lesão da numa posição neutra. Isto melhora a drenagem venosa
cerebral irreversível (Fig. 23-2).4,5 sem interferência significativa da pressão arterial. A drena-
A complacência intracraniana é de grande importância gem venosa é passiva e maximizada se garantida que nenhu-
para a manutenção da dinâmica intracraniana.2,4 Complacên- ma interferência existe no fluxo livre através das jugulares.
cia intracraniana é a capacidade do crânio de tolerar aumen-
tos no volume sem um aumento correspondente na pressão PRESSÃO DE PERFUSÃO CEREBRAL
intracraniana. Quando a complacência é adequada, um au-
mento no volume do tecido cerebral, de sangue ou de líquor A pressão de perfusão cerebral (PPC) é definida como a di-
não produz inicialmente aumento na pressão intracraniana. ferença entre a pressão arterial média (PAM) e a pressão veno-
Quando a complacência é diminuída, mesmo um pequeno sa jugular (PVJ).2,7 Como esta última é difícil de ser medida e é
aumento no volume de qualquer componente intracraniano é influenciada pela PIC, a PVJ geralmente é substituída pela PIC
suficiente para causar uma grande elevação na pressão intra- na avaliação da PPC. A PAM é a pressão arterial diastólica mais
craniana. um terço da pressão de pulso (diferença entre a pressão sistó-
A extensão da elevação da PIC decorrente do aumento do lica e diastólica). A PAM então está entre as pressões diastólica
volume intracraniano é determinada pela complacência ou e sistólica, mais próxima da diastólica. Ela é usada como uma
compressibilidade do conteúdo intracraniano.4 Quando a estimativa da “cabeça de pressão” que perfunde o cérebro.
complacência é baixa, o conteúdo é pouco compressível e a
PIC irá se elevar bastante mesmo que com pequenos aumen- PPC = PAM ! PIC
tos de volume. A complacência também afeta a elastância ou a
distensibilidade da parede dos ventrículos. Quando a elastân-
cia é reduzida, a distensibilidade da parede dos ventrículos é A PPC normal é de cerca de 80 mmHg, mas quando reduzi-
reduzida e, portanto, mais rígida. Conseqüentemente, haverá da abaixo de 50 mmHg aparecem sinais evidentes de isquemia
uma maior variação de pressão para uma mudança de volume. e atividade elétrica reduzida.1,7 Existem alguns estudos em pa-
Se um cateter estiver inserido dentro de um dos ventrículos cientes com trauma cranioencefálico (TCE) que mostram um
laterais, esta complacência poderá ser avaliada pela injeção aumento da mortalidade ou de seqüelas neurológicas quando a
cuidadosa de 1 ml de solução salina isotônica e subseqüente PPC cai abaixo de 60-70 mmHg. A monitorização da saturação
verificação da variação de pressão. Se a elevação de pressão do bulbo jugular (SjvO2) pode ser usada para avaliar a adequa-
for maior que 5 mmHg, então o paciente está numa fase avan- ção do fluxo sanguíneo cerebral (FSC).1,2,8 A SjvO2 é a saturação
çada à direita da curva pressão-volume intracraniano, de bai- venosa do sangue que deixa o cérebro na base do crânio e sua
xa complacência e sem mais capacidade de compensação.3,6 variação normal é entre 65-75%. Se o FSC está diminuído abaixo
O volume de sangue contido dentro dos seios venosos é de um nível crítico, o sangue venoso que deixa o cérebro irá de-
reduzido a um mínimo como parte do processo de compensa- monstrar também uma diminuição na SjvO2. Mais especifica-
ção. Entretanto, se o fluxo livre de sangue venoso for impedi- mente, quando a PPC é inadequada para o consumo de oxigê-
do, mesmo que por algumas razões corriqueiras (tosse, au- nio cerebral, a SjvO2 cai demonstrando uma maior extração de
mento da pressão intratorácica, veias jugulares obstruídas), oxigênio pelo cérebro.

HÉRNIAS CEREBRAIS Fig. 23-2. Principais herniações cerebrais.


Falx cerebri Artéria cerebral anterior

Giro do cíngulo
Ventrículo lateral
1- Injúria cerebral primária
3º ventrículo
2- Edema cerebral 3 2

3- Hérnia do giro do cíngulo Artéria


1
cerebral Hipocampo
4- Hérnia de Húncus posterior
5- Kernohan Kernohan Tenda do cerebelo
5 6 4
6- Hérnia central 7
7- Hemorragias de Duret

8- Hérnia de amígdalas
Hemorragias
de Duret Artéria cerebral
posterior
8

Amígdalas Foramen magnum


cerebelares
186 Parte IV ❑ MONITORIZAÇÃO NEUROLÓGICA

FLUXO SANGUÍNEO CEREBRAL do raio dos vasos de resistência (r4), e inversamente propor-
O cérebro recebe aproximadamente 750 ml/min de sangue cional ao comprimento da árvore vascular (l) e a viscosidade
arterial ou cerca de 15% do total do débito cardíaco em repou- do sangue (#). A PPC é o estímulo primário para as alterações
so, e tem cerca de 20% do consumo de oxigênio corporal.1,2,7 de auto-regulação, mediada principalmente pelos vasos de
Sob condições normais, este suprimento sanguíneo permane- resistência.
ce relativamente constante. Em pacientes com uma injúria intracraniana, essencial-
O fluxo sanguíneo cerebral (FSC) é definido como a mente três padrões de fluxo podem ser vistos: hiperêmico,
velocidade do sangue através da circulação cerebral.5 Uma vez normal e oligoêmico.1,5 Hiperemia pode causar edema na área
determinado o FSC, é possível calcular a oferta e o consumo envolvida e predispor a sangramento. Também pode causar
de oxigênio cerebral (Fig. 23-3).2,5 O FSC normal é de 50-60 isquemia de áreas adjacentes pelo fenômeno de roubo.
ml/100 g/min, variando desde 20 ml/100 g/min na substância Oligoemia aumenta a vulnerabilidade da área envolvida a
branca até 70 ml/100 g/min em algumas áreas da substância isquemia.
cinzenta. Crianças entre 2 e 4 anos têm fluxos mais altos, ao Sob circunstâncias normais, 30 a 40% do oxigênio consu-
redor de 100-110 ml/100 g/min, e que se “normalizam” ao mido pelo cérebro é necessário para manutenção da sua in-
longo da adolescência. Se o FSC cair, ocorrerá primeiro uma tegridade celular,1,2 enquanto o restante é utilizado para rea-
diminuição da função neuronal e, posteriormente, lesão irre- lizar trabalho eletrofisiológico. A energia necessária para a
versível. Se, entretanto, o FSC se elevar acima de limites fisio- manutenção da integridade celular do neurônio é direta-
lógicos, edema cerebral e áreas de hemorragia podem apare- mente relacionada à temperatura cerebral (Fig. 23-4).2 Em
cer. Desta forma, o FSC deve ser mantido dentro de valores geral, um declínio de 10ºC está associado com uma queda na
normais apesar das flutuações da PPC.1 taxa de consumo de oxigênio cerebral em 50% (isto significa
De acordo com a lei de Ohm, o fluxo é diretamente rela- um Q10 de 2, ou seja, a mudança no consumo de oxigênio
cionado com a pressão de perfusão e inversamente relacio- associada com a alteração na temperatura cerebral). Na prá-
nado com a resistência cerebrovascular.2,7 Os principais vasos tica clínica isso significa que a depressão metabólica produ-
de resistência cerebral são as pequenas artérias e as arte- zida pela hipotermia pode fornecer alguma proteção cerebral
ríolas, as quais são capazes de alterar em até 300% seu diâ- em pacientes adequadamente selecionados. Da mesma
metro normal. O FSC é mantido e regulado pelas variáveis forma, uma elevação na temperatura pode aumentar o risco
presentes na lei de Poiseuille, a qual relaciona o fluxo fisio- de lesão cerebral permanente.
lógico e as variáveis anatômicas do sistema cerebrovascular:
Modificações no nível de atividade elétrica do cérebro
também alteram o consumo de oxigênio (Fig. 23-4).1,2 Depres-
Q = !P " r4/8 l # são profunda da atividade, como a produzida por doses eleva-
das de barbitúricos ou benzodiazepínicos, suficiente para ge-
Desta forma, o fluxo (Q ou FSC) é diretamente propor- rar eletroencefalogramas com atividade suprimida, podem di-
cional ao gradiente de pressão (!P ou PPC) e à quarta potência minuir até a metade o consumo de oxigênio. Pelo contrário,

Fig. 23-3. Fluxo sanguíneo


Fluxo sanguíneo Atividade funcional
cerebral normal e seus limites cerebral (FSC) da célula
funcionais. 100%
FSC Clínica
(ml/100g/min)

> 60 Hiperemia
Função
normal
50-60 Normal (± 55)

30-40 EEG lento


Limiar de fluxo
para disfunção
20-30 Metab. anaeróbico 35%
Preservação da Limiar de fluxo para
Paralisia fisiológica integridade estrutural lesão da membrana
15-20
20%

Lesão
< 10-15 Morte celular
irreversível
0%
Capítulo 23 ❑ FISIOLOGIA NEUROLÓGICA 187

Fluxo sanguíneo cerebral tro de limites fisiológicos. Estes ajustes são regulados prin-
cipalmente pela demanda metabólica, pela inervação sim-
pática e parassimpática e pela concentração de algumas subs-
tâncias como adenosina, óxido nítrico, PaO2 e PaCO2.7
Normalmente a auto-regulação mantém o FSC normal en-
tre uma PAM de 50-60 a 130-140 mmHg. O FSC normal de
50-60 ml/100 g/min a uma PAM de 80-100 mmHg pode ser
mantida às custas de vasodilatação (quando a PAM cai até um li-
mite de 50-60 mmHg) ou vasoconstrição arteriolar cerebral
Sedação Acordado Convulsão
Consumo de oxigênio (quando a PAM se eleva até um limite de 130-140 mmHg), o
(ml.100g-1min) que protege o cérebro de isquemia ou hiperemia, apesar das
6,8
flutuações fisiológicas da PPC (Fig. 23-5).2,5,7 Nos pacientes com
Consumo de oxigênio

hipertensão arterial crônica, tanto os limites inferiores quanto


5,1 superiores são mais elevados. O uso agressivo de anti-hiper-
tensivos pode diminuir a PAM para valores normais mas abaixo
3,4 da capacidade de auto-regulação, podendo comprometer sig-
nificativamente o FSC.
1,7
Temperatura °C
Pacientes com TCE, isquemia cerebral ou agentes vasodi-
latadores (anestésicos voláteis, nitroprussiato de sódio) po-
27 37 47 dem ter diminuição ou perda da auto-regulação cerebral e o
Fig. 23-4. Efeitos da atividade cerebral e da temperatura sobre o FSC torna-se dependente da PAM. Então, se a PAM se eleva, o
fluxo sanguíneo e o consumo de oxigênio cerebral. FSC também se eleva e causa um aumento no volume ce-
rebral. Se a PAM cai, o FSC também diminui, reduzindo a PIC
mas podendo acarretar isquemia e necrose.
agitação psicomotora e crises convulsivas aumentam bastan-
te o consumo de oxigênio cerebral. A diminuição da taxa me- ACOPLAMENTO METABÓLICO
tabólica pode fornecer proteção contra injúria isquêmica, en-
quanto o aumento da taxa metabólica pode precipitar isque- Acoplamento metabólico refere-se ao equilíbrio da oferta
mia se o paciente não for capaz de aumentar o fluxo sanguí- e demanda de oxigênio e glicose cerebrais.2,5 Normalmente,
neo cerebral para satisfazer o aumento adicional de demanda estas funções estão intimamente relacionadas e se alteram
metabólica.2 proporcionalmente. Durante a ativação cortical, o aumento
no consumo de oxigênio e de glicose é compensado por um
AUTO-REGULAÇÃO aumento concomitante no FSC regional (Fig. 23-4). O contrá-
rio ocorre durante sedação, anestesia e hipotermia.
O FSC é mantido num nível relativamente constante mes-
mo frente às flutuações normais na PAM pelo mecanismo de Vários mediadores têm sido imputados na mediação en-
auto-regulação.2,5,7 Este é um mecanismo vascular de vaso- tre consumo e demanda metabólica.5 Os principais vasodila-
constrição e vasodilatação ainda dependendo de uma melhor tadores são o íon hidrogênio, o ácido lático, a concentração
compreensão dos seus mecanismos fisiopatológicos. Uma extracelular de potássio, a prostaciclina, a adenosina como
queda da PPC é compensada com vasodilatação, assim como produto de degradação do ATP e o óxido nítrico. O tromboxa-
uma elevação da PPC é compensada por vasoconstrição, den- ne A2 é um importante vasoconstritor.

Fluxo Fig. 23-5. Auto-regulação cerebral normal e


alterada patologicamente.
Normal
Ruptura da BHC
Edema
Hipertensão arterial
Hipóxia crônica
FSC

cerebral PAM
Banda
Fluxo
Normal
Auto-regulatória

PAM (mmHg) Injúria cerebral


grave

PAM
0 50 100 150 200
188 Parte IV ❑ MONITORIZAÇÃO NEUROLÓGICA

DIÓXIDO DE CARBONO 100

O dióxido de carbono (CO2) causa vasodilatação cere- F


bral.2,7 O aumento da PaCO2 causa vasodilatação arteriolar ce- S
C
PaCO2
rebral, aumento do FSC e pode elevar a PIC (Fig. 23-6). O con-
trário ocorre com a diminuição da PaCO2 e a vasoconstrição ar- 50 PaO2
teriolar cerebral. Desta maneira, hiperventilação pode levar a
uma redução na PIC, mas às custas de uma diminuição no FSC e
um potencial de isquemia cerebral. O efeito de vasodilatação
ou vasoconstrição parece ser mediado pela concentração do 0
mmHg
H+ na parede da arteríola cerebral. Portanto, a vasoconstrição 0 20 40 60 80
hipocápnica aguda dura apenas algumas horas. Quando a hipo- Fig. 23-6. Relação entre o FSC e a PaCO2 e a PaO2.
capnia é mantida por mais tempo, existe uma gradual correção
do pH sérico e um retorno do FSC aos valores normais. Se a
PaCO2 for “normalizada” agudamente após algumas horas, isso
poderá levar a hiperemia cerebral e aumento da PIC. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Rossberg MI et al: Principles of cerebroprotection. In:
Murray MJ et al. Critical care medicine: perioperative
OXIGÊNIO management. 2. ed. Philadelphia: Lippincott: Williams &
Valores muito baixos da PaO2 também podem ter profun- Wilkins, 2002. 225-235p.
dos efeitos no FSC (Fig. 23-6).2,7 Quando a PaO2 cai abaixo de 2. Prough DS, Rogers AT. Physiology and pharmacology of
50 mmHg, existe um rápido aumento no FSC e no volume de cerebral blood flow and metabolism. In: Prough DS. Crit
sangue intracraniano por vasodilatação. Care Clinics 1989;5:713-28.
Hipóxia cerebral é um sério risco em pacientes hipoxêmi- 3. Castillo MA. Monitoring neurologic patients in intensive
care. Curr Opin Crit Care 2001;7:49-60.
cos, principalmente quando a PaO2 é menor que 50 mmHg,
4. Stávale MA. Hemodinâmica encefálica na hipertensão
devido à diminuição na oferta de oxigênio cerebral, mas tam- intracraniana. In: Stávale MA. Bases da terapia intensiva
bém por causa da marcante vasodilatação. Vasodilatação cere- neurológica. São Paulo: Santos, 1996. 1-12p.
bral põe o cérebro em risco adicional por duas razões. Primei- 5. Ullman JS. Cerebrovascular pathophysiology and
ro, a vasodilatação leva a hiperemia e predispõe a edema cere- monitoring in the neurosurgical intensive care unit. In:
bral nas áreas lesadas e em regiões normais. Segundo, o au- Andrews BT (ed.) Intensive care in neurosurgery. New York:
Thieme, 2003. 29-46p.
mento no FSC e no volume cerebral eleva a PIC e pode dimi-
6. Marshall WK, Arancibia CU, Williams CL. Monitoring
nuir significativamente a PPC, causando isquemia cerebral intracranial pressure. In: Lake C, Hines RL, Blitt CD.
global e lesão neuronal secundária. Clinical monitoring: practical applications for anesthesia
Em muitos pacientes com doença neurológica grave, o and critical care. New York: W.B. Saunders Company,
prognóstico neurológico a longo prazo pode depender criti- 2001. 103-117p.
camente da adequação do FSC global ou regional.2 O progres- 7. Mizumoto N. Regulação do fluxo sanguíneo cerebral. In:
Stávale MA. Bases da terapia intensiva neurológica. São
so da monitorização neurológica e o desenvolvimento recen- Paulo: Santos, 1996. 1-12p.
te de tratamentos eficientes somente estão se tornando reali- 8. Power I, Kam P. Physiology of the nervous system. In:
dade devido ao conhecimento fisiológico e fisiopatológico Power I, Kam P. Principles of physiology for the
bem caracterizado das últimas décadas. anaesthetist. London: Arnold Publishers, 2001. 33-62p.
Capítulo 29

FISIOLOGIA RENAL
Álvaro Réa Neto

HEMOSTASIA DA ÁGUA E ELETRÓLITOS


FILTRAÇÃO
AUTO-REGULAÇÃO
REABSORÇÃO SELETIVA E PASSIVA
FUNÇÃO ÁCIDO-BÁSICA
Secreção tubular de ácido
Filtração glomerular dos tampões que se combinam com H+
Amônia
EXCREÇÃO DE PRODUTOS RESIDUAIS
HORMÔNIOS E O RIM
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

245
246 Parte V ❑ MONITORIZAÇÃO RENAL E METABÓLICA

HEMOSTASIA DA ÁGUA E ELETRÓLITOS FILTRAÇÃO


A função primordial dos rins é a regulação da composição A filtração ocorre através das paredes dos capilares glo-
dos líquidos e eletrólitos do nosso corpo.1 O rim permite a merulares que são quase impermeáveis a proteínas e grandes
pessoa comer e beber de acordo com seus hábitos sem alterar moléculas. O líquido filtrado é assim virtualmente livre de
a composição dos seus compartimentos líquidos. proteína e não possui elementos celulares. A filtração é forma-
Os rins têm um alto fluxo de sangue e produzem um gran- da pela compressão do sangue dentro do leito glomerular. A
de volume de ultrafiltrado por dia (cerca de 180 l/dia). Isto é ne- pressão hidrostática (“cabeça de pressão”) é controlada pelas
cessário para manter a hemostasia normal pelos néfrons. arteríolas aferentes e eferentes, e depende da pressão arteri-
O suprimento de sangue renal é normalmente por volta al. Por volta de 20% do fluxo do plasma renal é filtrado a cada
de 20% do débito cardíaco.1,2 Aproximadamente 99% do san- minuto (125 ml/min–1). Esta é a taxa de filtração glomerular
gue flui para o córtex renal e 1% para a medula renal. O córtex (TFG).
é a parte externa do rim que contém a maioria dos néfrons. A Para manter o fluxo do sangue renal e a TFG relativamen-
medula é a parte interna do rim e contém os néfrons especia- te constantes, a pressão hidrostática no glomérulo deve ser
lizados na região justamedular, imediatamente ao lado da mantida também razoavelmente constante.1,2,4,5 Quando exis-
medula. Estes néfrons têm capacidade maior de concentra- te uma mudança na pressão arterial sanguínea, há uma cons-
ção, cujo mecanismo será explicado abaixo. trição, ou dilatação das arteríolas aferentes e eferentes.
O rim é um órgão peculiar, pois ele tem dois leitos capila-
res dispostos em série, os capilares glomerulares sob alta
AUTO-REGULAÇÃO
pressão de filtração e os capilares peritubulares que estão
situados ao redor do túbulo e estão sob baixa pressão (Fig. Auto-regulação da TFG é obtida pela auto-regulação do flu-
29-1).1,3 Isto permite que grandes volumes de fluidos sejam xo sanguíneo renal e através de um mecanismo de retroali-
filtrados e reabsorvidos. mentação mais conhecido como “equilíbrio glomerulotubu-
O néfron. Cada rim contém por volta de um milhão de lar”.1,2,5 Quando acontece uma diminuição na TFG, há uma di-
néfrons. O néfron é composto de um glomérulo e seu túbulo minuição resultante na taxa de fluxo do fluido dentro do túbu-
(Fig. 29-1). lo. Isto acarreta, na alça de Henle, um intervalo de tempo mai-
O túbulo é composto de um grande número de secções, o or para reabsorção de sódio e íons de cloreto, diminuindo a
túbulo proximal, a alça medular (alça de Henle) e o túbulo dis- concentração de íons de sódio e cloreto que alcançam o túbu-
tal, que finalmente se esvazia dentro do duto coletor. lo distal, que é detectada pela mácula densa. Isso, por sua vez,
A urina é formada como resultado de um processo de três diminui a resistência nas arteríolas aferentes resultando no
fases: 1. filtração simples; 2. reabsorção seletiva e passiva; e 3. aumento do fluxo sanguíneo renal. Também eleva a liberação
excreção.2,4 de renina do aparelho justaglomerular que estimula a produ-
ção de angiotensina II, causando constrição das arteríolas efe-
rentes. Estes dois mecanismos agem na elevação da pressão
Artéria hidrostática do leito capilar glomerular promovendo a norma-
aferente lização dos níveis de TFG.
Glomerulorrenal O complexo justaglomerular é constituído por células da
Cápsula de mácula densa, que são células epiteliais tubulares distais
Bowman
especiais que detectam a concentração de cloreto e por célu-
Túbulo
proximal Túbulo distal las modificadas da camada muscular, células justaglomerula-
res, das paredes das arteríolas aferentes e eferentes.2,4 Estas
células produzem renina. Renina é uma enzima que converte a
proteína plasmática angiotensinogênio em angiotensina I. A
enzima conversora da angiotensina (ECA), que é sintetizada
Artéria em pequenas quantidades nos pulmões, túbulos proximais e
eferente outros tecidos, converte a Angiotensina I em Angiotensina II
Dutos
que causa vasoconstrição e um aumento na pressão sanguí-
Alça coletores nea. A angiotensina II também estimula a glândula adrenal a
descendente Vasa produzir aldosterona, responsável pela retenção de água e
de Henle recta sódio, que juntos aumentam o volume do sangue (Fig. 29-2).
Alça ascendente Este é um sistema de retroalimentação negativo.4,5 Em
de Henle outras palavras, quando o estímulo inicial é uma queda do
volume de sangue e da pressão arterial que leva a uma dimi-
nuição da pressão de perfusão renal, a resposta renal é um
aumento no volume de sangue, na perfusão renal e na TFG,
Fig. 29-1. Representação esquemática do rim. revertendo o estímulo deletério inicial.
Capítulo 29 ❑ FISIOLOGIA RENAL 247

! Pressão NaCl NaCl H2O


! Pressão H2O
hidrostática ! TFG NaCl
arterial
glomerular
Ramo 100 Dutos
H2O
descendente coletores
300 corticais
Túbulo distal
! NaCl na NaCl
mácula densa NaCl
" Angiotensina II " Liberação 300 100 300
H2O
300
de renina

! Resistência NaCl H2O


" Resistência Arteríola aferente 600 H2O
400 Ramo 600
Arteríola aferente ascendente
" Pressão de
filtração NaCl Dutos
H2O
glomerular H2O 900 coletores
900 700 900 medulares
Fig. 29-2. Equilíbrio glomerulotubular.
NaCl
NaCl
1200
REABSORÇÃO SELETIVA E PASSIVA 1200 H2O H2O
1000 1200

A função do túbulo renal é reabsorver seletivamente 1400 1400


H2O
1400
aproximadamente 99% da filtração glomerular.
O túbulo proximal reabsorve 60% de todo soluto, que Alça de Henle
inclui 100% de glicose e aminoácidos, 90% de bicarbonato e Fig. 29-3. Mecanismos de concentração da urina.
80-90% de fosfatos inorgânicos e água.1,2
A reabsorção é feita tanto pelo transporte tanto ativo quan- 2. A parte delgada da alça ascendente é virtualmente imper-
to passivo. Transporte ativo requer energia para mover o soluto meável à água, mas permeável ao soluto, principalmente a
contra um gradiente de concentração ou eletroquímico. Esse é o íons de cloreto e sódio. Assim, os íons de sódio e cloreto
principal determinante do consumo de oxigênio pelo rim. Trans- são movimentados para fora, através do gradiente concen-
porte passivo é quando a reabsorção ocorre através de um gradi- tração, e o fluido dentro dos túbulos torna-se primei-
ente eletroquímico, de concentração ou de pressão. ramente isotônico e posteriormente mais hipotônico à me-
A maioria da reabsorção de soluto é ativa, com a água dida que mais íons movimentam-se para fora. A uréia, que
sendo livremente permeável e, portanto, movendo-se por era absorvida para o interior do interstício medular do
osmose. Quando ocorre reabsorção ativa do soluto do túbulo duto coletor, difunde-se na alça ascendente. Com isso, a
há uma queda na concentração, ocasionando atividade osmó- uréia mantém-se dentro do interstício da medula, onde
tica dentro do túbulo. Assim, a água movimenta-se devido às também desempenha um papel na concentração da urina.
forças osmóticas para áreas fora do túbulo, onde a concentra- 3. A parte mais espessa da alça de Henle ascendente, próxi-
ção de solutos é maior. ma ao túbulo distal, é virtualmente impermeável à água.
A alça de Henle é a parte do túbulo que mergulha ou “dá Entretanto, os íons de sódio e cloreto são ativamente
voltas” a partir do córtex até a medula (ramo descendente) e transportados para fora do túbulo, tornando o fluido
depois retornando ao córtex (ramo ascendente).1,2,4 Essa é a tubular marcadamente hipotônico.
parte do túbulo onde a urina é concentrada, quando necessá-
rio. Isto é possível devido à alta concentração de soluto na Vasa recta (ver Fig. 29-1) é a porção do sistema capilar peri-
substância ou no interstício da medula. Essa alta concentra- tubular que adentra a medula (onde a concentração de soluto
ção de solutos é mantida pelo amplificador de contracorren- no interstício é elevada). A vasa recta atua em conjunto com a
te. O sistema amplificador de contracorrente é um arranjo no alça de Henle para concentrar a urina através de um mecanis-
qual a mais alta concentração intersticial medular de soluto é mo complexo de contracorrente. Se a vasa recta não existisse, a
mantida, dando ao rim a capacidade de concentrar urina. A al- alta concentração dos solutos no interstício medular não seria
ça de Henle é o amplificador de contracorrente, e os vasa recta possível.
agem como alternadores da contracorrente. O mecanismo é
descrito abaixo: Os solutos difundem-se para fora dos vasos que condu-
Ações das diferentes partes da alça de Henle (ver Fig. zem o sangue para o córtex e para o interior dos vasos des-
29-3):1,2 cendentes em direção à medula, enquanto a água faz o con-
trário, movendo-se dos vasos descendentes para os ascen-
1. A alça de Henle descendente é relativamente impermeá- dentes. Este sistema permite aos solutos recircularem na
vel ao soluto, mas permeável à água, então esta água medula, mantendo o gradiente de concentração elevado e a
move-se por osmose e o líquido dos túbulos torna-se água desvia-se da medula e pode ser eliminada dependendo
hipertônico. do HAD.
248 Parte V ❑ MONITORIZAÇÃO RENAL E METABÓLICA

A concentração final da urina depende da quantidade de ácido (acima), reagindo com o bicarbonato (HCO–3) forma áci-
hormônio antidiurético (HAD) secretado pelo lobo posterior da do carbônico.
hipófise. Se o HAD estiver presente, o túbulo distal e o duto co-
letor tornam-se permeáveis à água. Como o duto coletor passa
pela medula com alta concentração de soluto no interstício, a H+ + HCO–3 ! H2CO+3 ! H2O + CO2
água move-se para fora da luz do duto, formando a urina con-
centrada. Na falta de HAD o túbulo é pouco permeável à água e, A anidrase carbônica, encontrada nas células tubulares
assim, uma grande quantidade de urina diluída é formada. proximais, catalisa a reação em dióxido de carbono (CO2) mais
Existe uma estreita conexão entre o hipotálamo do cé- água (H2O).2,4 Tanto a água quanto o gás carbônico entram na
rebro e a hipófise posterior.2 Células no interior do hipotála- celular tubular renal. O CO2 que se difundiu para dentro da
mo, osmorreceptoras, são sensíveis a mudanças da pressão célula forma novamente ácido carbônico na presença de ani-
osmótica do sangue. Se há baixo consumo de água, ocorre drase carbônica. O ácido carbônico ioniza-se para H+ e HCO3.
aumento na pressão osmótica sanguínea. Impulsos nervo- O H+ é então bombeado para fora da célula, de volta à luz do
sos do hipotálamo estimulam a hipófise posterior a produ- túbulo através da bomba Na+/H+ e o sódio retorna ao plasma
zir HAD quando a pressão osmótica sanguínea aumenta. Co- pela bomba de Na+/K+. A água é absorvida passivamente.
mo resultado, a perda de água no rim é reduzida devido à Desta forma, o rim filtra e regenera o bicarbonato conforme o
secreção de HAD, e a água é reabsorvida no duto coletor, cor- necessário, mantendo a homeostasia do pH sanguíneo e do
rigindo o distúrbio osmótico anterior. Após um excesso de principal tampão do organismo.
consumo de água, ocorre o reverso.
Outros tampões incluem o fosfato inorgânico (HPO4+),
urato e íons de creatinina que são excretados na urina como
FUNÇÃO ÁCIDO-BÁSICA
ácido quando combinados com os íons de H+ secretados no
Ácido é uma substância que pode liberar íons de hidrogê- néfron distal.
nio na solução.1 Base é uma substância que pode receber íons
de hidrogênio na solução. Tampão é uma substância cujo pKA (o
pH no qual metade está na forma ionizada e metade não ioni- Amônia
zada) assemelha-se ao pH do seu ambiente. Nestas circunstân- A amônia é produzida enzimaticamente a partir da gluta-
cias, a adição ou remoção de íons de hidrogênio resulta numa mina e outros aminoácidos e é secretada nos túbulos.2,4 Amô-
mudança mínima do pH, sendo esse o propósito do tampão. E nia (NH3) combina-se com íons de H+ secretados formando o
pH é o log negativo em relação à base 10 da concentração de íon, não-difusível, de amônio (NH+4) que por sua vez é excreta-
íons de hidrogênio [H+] e indica a acidez da solução. Quanto do na urina. A produção de amônia pode tornar-se elevada em
mais ácida a solução, mais alta a concentração de H+, e mais decorrência de uma grave acidose metabólica, podendo atingir
baixo é o valor do pH. O pH no corpo é mantido sob rígido con- valores próximos a 700 mmol/dia, ajudando sua compensação.
trole, pois quase todas as atividades enzimáticas do corpo são
dependentes da condição estável do pH. EXCREÇÃO DE PRODUTOS RESIDUAIS
Os pulmões e os rins trabalham juntos para produzir o pH
normal do líquido extracelular e arterial por volta de 7,35- A filtração ocorre quando o fluxo sanguíneo atravessa os
7,45 (34-46 nmol/l concentração de H+). O dióxido de carbo- glomérulos. Algumas substâncias não exigidas pelo corpo e al-
no (CO2), excretado pelos pulmões, quando dissolvido no san- guns materiais estranhos (p. ex.: drogas) podem não ser purifi-
gue, torna-se um ácido (HCO3). O rim excreta ácido fixo e para cadas pela filtração através do glomérulo.4 Tais substâncias são
isso desenvolve três funções: purificadas através da secreção tubular e excretadas na urina.

Secreção tubular de ácido HORMÔNIOS E O RIM


O tampão de bicarbonato de sódio é filtrado pelos glo- Os rins são órgãos produtores ou órgãos-alvos importan-
mérulos sendo posteriormente reabsorvido no túbulo proxi- tes de vários hormônios relacionados com a homeostasia de
mal.1,2 O sódio é absorvido pela bomba de íon sódio/hidrogê- eletrólitos e do volume circulante efetivo.
nio (Na+/H+), permutando Na+ por H+ na luz da borda proxi-
A renina (ver tópicos acima) aumenta a produção de angio-
mal da célula tubular. A bomba de sódio/potássio (Na+/K+) for-
tensina II, que é liberada quando há uma diminuição no volume
ça o Na+ para a célula a partir do líquido tubular, ocasionando
intravascular, p. ex.: hemorragia e desidratação.1,2,4 Este meca-
a troca pelo potássio.
nismo leva a: constrição da arteríola eferente para manutenção
da TFG, através de aumento na pressão de filtração dos glomé-
Filtração glomerular dos tampões que se combinam rulos; liberação de aldosterona da córtex adrenal; liberação ele-
com H+ vada de HAD, a partir da hipófise posterior; sede e estímulo
A maior parte do bicarbonato filtrado é reabsorvida (90% inotrópico do miocárdio; e constrição arterial sistêmica. O
no túbulo proximal). O H+, liberado como secreção tubular de oposto acontece quando ocorre sobrecarga de líquido.
Capítulo 29 ❑ FISIOLOGIA RENAL 249

A aldosterona promove a reabsorção do íon sódio e água no Os hormônios interagem, quando ocorre perda de san-
túbulo distal e no duto coletor, onde Na+ é trocado por K+ e gue ou desidratação, para manter o volume intravascular.
íons de hidrogênio através de uma bomba celular específica.4 Outras substâncias produzidas pelo rim são a 1,25
A aldosterona é também liberada quando há uma dimi- di-hdroxi vitamina D (a forma mais ativa da vitamina D), que
nuição na concentração do íon sódio. Isto pode ocorrer, por promove a absorção de cálcio intestinal e a eritropoetina que
exemplo, quando há grandes perdas de suco gástrico. O suco estimula a produção de células vermelhas.3,4 Ambas as subs-
gástrico contém concentrações significativas de íons sódio, tâncias diminuem na ocorrência de falência renal.
cloreto, hidrogênio e potássio. Entretanto, é impossível corri-
gir a alcalose e a hipopotassemia resultantes sem primeiro REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
repor os íons de sódio através da utilização de solução salina 1. Power I, Kam P. Principles of physiology for the
isotônica, por exemplo. anaesthetist. Arnold Publishers, 2001.
Peptídeo natriurético atrial (PNA) é liberado quando a pres- 2. Guyton AC, Hall JE. Human physiology and mechanisms of
são atrial é aumentada, por exemplo, na insuficiência cardíaca disease. 6. ed. Philadelphia: W.B. Saunders Company,
1997. 324-336P.
ou sobrecarga de líquido. Ele promove perda de íons de sódio
e cloreto e sobretudo de água, através do aumento da TFG. 3. Levine DZ. Care of the renal patient. 2. ed. Philadelphia:
W.B. Saunders company, 1991.
Hormônio antidiurético (HAD) aumenta a permeabilidade
da água no túbulo distal e duto coletor, aumentando assim a 4. Scher A et al. The kidney and body fluids. In: Patton HD (et
al). Textbook of physiology. 21. ed. Philadelphia: W.B.
concentração da urina.4 Em contraste, quando a secreção de Saunders Company, 1989. 1047-1138p.
HAD é inibida, permite a formação de urina diluída. Isto ocor-
5. Bartlett RH. Oxygen kinetics: integrating hemodynamics,
re principalmente quando a concentração de sódio plasmáti- respiratory, and metabolic physiology, In: Bartlett RH.
co torna-se baixa como na ingesta de grande quantidade de Critical care physiology. Boston: Little, Brown and
água. Esta queda é detectada pelos osmorreceptores. Company, 1996.

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